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AULA 4

TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIA

Profª Gisele Thiel Della Cruz


TEMA 1 – A TEORIA LITERÁRIA, A ANÁLISE SOBRE O LEITOR

1.1 A teoria da literatura e os sete aspectos sob análise

Como já sabemos, os estudos desenvolvidos pela teoria da literatura dão


conta de sete aspectos: a forma, o autor, o mundo, o leitor, o estilo, a história e o
valor. Mesmo que não possam ser pensados de forma independente, há correntes
teóricas que se debruçam mais sobre um aspecto do que sobre outro. Depois de
termos estudado as correntes que se concentram na forma e em aspectos sociais
do texto literário, nosso tema será em relação à recepção desse texto pelo leitor.
Para nossa apresentação nos basearemos no início da hermenêutica, ramo
da filosofia que se dedica à interpretação, e sua influência sobre a Escola de
Constança, na Alemanha, onde se origina a conhecida estética da recepção, em
especial a partir dos anos 1960.
Em nossa aula, trabalharemos com os teóricos Hans Robert Jauss e
Wolfgang Iser. Para finalizar, proporemos uma discussão mais contemporânea
sobre o texto e a leitura, proposta por Vicent Jouve.

1.2 A hermenêutica e os estudos literários

A hermenêutica é um ramo da filosofia que significa arte da interpretação.


Inicialmente referia-se à interpretação das escrituras sagradas. Um dos filósofos
precursores da interpretação dos textos bíblicos, ainda no século XVII, foi o
racionalista holandês Baruch de Espinosa. No século XIX, os estudos
hermenêuticos foram ampliados e essa questão de interpretação textual acabou
sendo ampliada para além do texto bíblico. Os dois hermeneutas mais importantes
desse período foram os alemães Friedrich Schleiermacher e Wilhelm Dilthey.
A hermenêutica ficou submetida à teologia e à filologia até o século XVIII,
quando começaram a se desenvolver os estudos de Schleiermacher. O autor
proporá uma teoria geral da compreensão e do entendimento. Para Schleirmacher
(2005), o foco da hermenêutica está na linguagem e projetam-se dois tipos de
hermenêutica, a gramatical e a técnica. Para o caso da primeira, a ideia está em
captar os mecanismos de expressão da língua, enquanto a segunda é subjetiva e
procura identificar os usos individuais e particularizando as normas da linguagem.
Nesse sentido, compreende a singularidade da mensagem e a produção do autor.
O que Schleiermacher defende é que há uma metodologia capaz de decifrar

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verdades dos textos, sendo o leitor implicado nessa metodologia. Esse tipo de
método é chamado divinatório. No caso da teoria literária, o estudioso procuraria
desvendar o sentido primeiro do texto. Segundo Gadamer (1997),

É, em última análise, um comportamento divinatório, um transferir-se


para dentro da constituição completa do escritor, um conceber o
“decurso interno” da feitura da obra, uma reformulação do ato criador. A
compreensão é, pois, uma reprodução referida à produção original, um
reconhecer do concebido, uma pós-construção, que parte do momento
vivo da concepção, da “decisão germinal” como ponto de organização
da produção. (Gadamer, 1997. p. 292)

Outro estudioso da hermenêutica foi Wilhelm Dilthey, que irá estabelecer


uma relação desse ramo da filosofia com outras áreas do conhecimento, tais como
a ciência do espírito (a melhor tradução para as ciências do espírito seria ciências
humanas, cuja terminologia original, em alemão, é Geistwissenschaft) e as
ciências naturais. O que o autor postula é a dicotomia entre a explicação e a
compreensão. Em grande medida, suas ideias reforçam a noção proposta por
Schleiermacher de que o texto se faz presente como o lugar para se conceber o
espírito passado ou presente, estranho ou familiar. Baseando-se nessa premissa,
Dilthey afirma que há relação entre as ciências do espírito quanto ao seu objeto
de investigação, o texto (Paula, 2008). Ao fazer essa constatação, do
deciframento do texto como prática hermenêutica que cabe às ciências do
espírito, o autor propõe um direcionamento do intérprete para as coisas do texto.
Esse movimento que dialoga como pensamento metódico da ciência moderna, de
certa maneira, antecipa o que é proposto pelos formalistas russos e pelos
estruturalistas (Paula, 2008).
Mais recentemente, os estudos hermenêuticos foram desenvolvidos pelo
alemão Hans-Georg Gadamer. Os estudos que se preocupam com o sentido
original do texto e se desdobram sobre a teoria da literatura querem desvendar
questões como o sentido do texto literário. Para o teórico, a verdade do texto não
pode ser conhecida pelo procedimento científico, mas por meio da experiência da
arte e da tradição histórica. Segundo Paula (2008), o estudo da tradição
hermenêutica e dos aspectos e considerações referentes a essa tradição, com
base em novos dados e problematizações, estabelece uma relação entre a
compreensão hermenêutica e a interpretação de obras literárias.
Hans-Georg Gadamer aponta, em seu livro Verdade e método, que a
estética deve subordinar-se à hermenêutica. Isso tem um caráter inversamente
verdadeiro, de tal maneira que se faça justiça à experiência da arte. A

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aproximação e os processos de evolução de modelos artísticos e da hermenêutica
são históricos, principalmente se tomarmos como referência a literatura. Em
amplo sentido, ambas têm como investigação a linguagem e, por isso, em grande
medida se aproximam e mantêm (co)relações.
Para pontuar o papel da hermenêutica para Gadamer, convém saber que:

a aplicação hermenêutica não consiste em relacionar algo de geral e


prévio com uma situação particular, modelando esta à maneira do
técnico ou do artesão. O intérprete, que se confronta com uma tradição,
tenta aplicá-la a si mesmo, e isso não significa que o texto transmitido
seja por ele compreendido como algo de universal, que pudesse depois
ser utilizado para uma aplicação particular. Pelo contrário, o intérprete
pretende apenas compreender o texto, isto é, o que diz a tradição e o
que constitui o seu sentido e significação. Mas, para o compreender, ele
não pode ignorar-se a si mesmo, nem tão pouco esquecer a situação
hermenêutica concreta em que se encontra. Precisa de relacionar o texto
com a sua situação, se quer realmente entendê-lo. Deve, pois, colocar
em jogo os preconceitos próprios, abrindo-se ao diálogo que por eles é
proporcionado.
A aplicação, eixo fundamental da hermenêutica para Gadamer,
não designa mais um modelo de apreensão teórica, por exemplo, o
método das ciências do espírito; ela exprime, pelo contrário, o modo
como se processa a compreensão humana finita, na sua dialética
essencial entre um primeiro momento, o de ser afetado pela significação
já transmitida e considerada essencial ao agir, e um segundo, o da sua
apropriação crítica ou reflexiva. A aplicação representa o ato existencial
de ser si próprio do ser humano, enquanto este é no tempo e por isso,
orientado no mundo a partir de uma antecipação da perfeição e de um
horizonte de significações, inevitavelmente já sempre recebidas e
aceites como válidas. O primado do recebido, o reconhecimento da sua
validade prática e a necessidade da sua tradução, ou construção de um
análogo na situação concreta do presente, eis os núcleos que nos
permitem entender o conceito gadameriano de aplicação. (Silva, 2010,
p. 3-4)

TEMA 2 – A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

Ao falarmos sobre a influência dos estudos hermenêuticos na teoria


literária, devemos considerar a centralidade da estética da recepção nesse
quesito. A estética da recepção investiga o papel do leitor na literatura. Para essa
corrente de estudos, o papel do leitor para que a literatura aconteça é tão
fundamental quanto o papel do autor. O texto literário seria uma espécie de
partitura que necessita da participação efetiva do leitor para que se realize.
E desde quando podemos pensar que as questões relacionadas ao texto e
a sua recepção junto ao público vêm sendo estudadas?
De acordo com Zilberman (2008), a ideia de recepção do texto literário
remonta à Antiguidade Clássica e já está proposta nos escritos de Aristóteles, na
Poética, ao compor a noção de mimésis e apresentar a necessidade de um público
que escute ou interaja com a obra. Essa recepção do público ficou definida pelo
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conceito de catarse, efeito provocado no público, em forma de emoções
exacerbadas, purificando-as ou expurgando-as. Na tragédia, por exemplo, essas
emoções são latentes e aparecem em função das ações das personagens, em
forma de tensão, dor ou pena na plateia que compõe o anfiteatro. Por sua vez,
sem mediação, a poesia exercia os efeitos sobre o público de forma direta. Ele,
ouvinte do texto, experimentava as sensações de forma direta.
Segundo Regina Zilberman (2008, p. 86):

O legado de Aristóteles às teorias da recepção transcende, assim, a


aceitação de que decorre da resposta do auditório – resposta definida
de modo coletivo, mas experimentada de maneira pessoal – a
consolidação da poesia enquanto sistema dotado de características
próprias, aptas a serem descritas por meio de instrumentos específicos,
como a Poética e a Retórica à época daquele filósofo, ou, desde o século
XIX, a Teoria da Literatura e a História da Literatura.

Séculos depois, quando a produção escrita chegava em maior quantidade


ao público leitor, o posicionamento sobre o que era escrito e sobre a sua
relevância também se alterou. A modernidade, mais especificamente o século
XVI, trouxe a novidade da imprensa de tipos móveis, inventada por Gutemberg.
Com isso, houve uma maior circulação dos textos escritos e inaugura-se um novo
filão de leitores. A ascensão da burguesia, ao longo da modernidade, terá em
mãos leituras que dialogam com a sua perspectiva. E, em grande medida, uma
espécie de neutralidade política deixou de existir nos textos ficcionais.
Para Zilberman (2008, p. 86),

A equação estabeleceu-se de imediato: maior audiência igual a maior


oferta; o crescimento dessa oferta possibilitou, de uma parte, a
profissionalização dos escritores; de outra, porém, esses precisaram se
adaptar às exigências tanto dos empresários do livro, interessados na
lucratividade de suas fábricas, quanto dos consumidores, carentes de
uma literatura que se adequasse a seu gosto e à sua formação. Assim
como a revolução tecnológica do século XV suscitou o aparecimento de
novos gêneros e a reciclagem dos antigos modos de expressão, as
modificações do século XIX ocasionaram o surgimento de formas
específicas de comunicação. A imprensa, agora diária, introduziu o
folhetim, que migrou das folhas dos jornais para as páginas dos livros,
processo praticado dos dois lados do oceano Atlântico, como
testemunham as criações literárias do francês Alexandre Dumas e dos
brasileiros José de Alencar e Machado de Assis.

Assim, no início do século XX, alguns trabalhos se voltam para a literatura


que ganhava espaço em livros e folhetins. São obras que pensam o gosto do
público e a sua simpatia pela ficção: A sociologia do gosto literário, de 1923, do
alemão L. L. Schücking; A ficção e o público leitor, de 1931, de Q. D. Leavis; e Os
usos da alfabetização, de 1957, de Richard Hoggart.

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Na segunda metade do século XX, houve uma cisão referente à produção
ficcional e ao olhar sobre ela. Andreas Huyssen chamou esse fenômeno de great
divide. De um lado, fica explícita uma literatura definida como alta cultura; de outro,
aquela produzida por uma cultura mais popular. Essa nova abordagem acabou
dividindo o campo intelectual que, de um lado, valorizava e propunha o crivo
classificatório das obras canônicas e, de outro, aqueles que se dedicavam a
estudar o fenômeno da cultura de massa. Daí são criadas várias vertentes dos
estudos literários: dentro da teoria, da crítica e da história da literatura. Dos anos
de 1960 aos anos 1980, houve muitas discussões e articulações no campo dos
estudos da literatura, dentre as quais discussões importantes no que se definia
como estética da recepção.
A estética da recepção dividiu-se em duas categorias. A primeira, cujos
representantes são Roman Ingarden e Wolfgang Iser, tinha como foco de
observação a leitura como ato individual, dialogando abertamente com a
fenomenologia. A segunda, cujo representante é Hans Jauss, interessava-se pela
hermenêutica da resposta pública ao texto e seus aspectos históricos.
Pensando nas observações feitas ao pensamento de Jauss e à estética da
recepção, Zilberman observa que:

A Estética da Recepção assume a perspectiva do leitor, portanto,


conforme sua denominação sugere, ao considerar que é ele quem
garante a historicidade das obras literárias. Em decorrência do fato de o
leitor não deixar de consumir criações artísticas de outros períodos,
essas se atualizam permanentemente. Conforme Jauss anota, uma obra
“só se converte em acontecimento literário para seu leitor”; portanto, é
esse sujeito que afiança a vitalidade e continuidade do processo literário.
(Zilberman, 2008, p. 92)

TEMA 3 – A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E A CONTRIBUIÇÃO DE JAUSS

A vertente da estética da recepção voltada para os aspectos históricos tem


como principal representante H. R. Jauss. “A história literária com desafio à Teoria
Literária”, artigo publicado em 1967, problematiza a história literária tradicional e
aponta o leitor como aquele que estabeleceria a relação entre a crítica literária e
a história. Esse trabalho é considerado o ponto de partida da estética da recepção.
A partir de então, formou-se a chamada Escola de Constança, responsável pela
publicação de uma obra coletiva, em 1975, cujo subtítulo era “recepção da
literatura em perspectiva teórica”. É bom salientar que nesse momento em que
surgem as discussões da estética da recepção, de forma geral as ciências
humanas discutiam os seus paradigmas.
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No artigo publicado por Jauss, era clara a tentativa de criar uma alternativa
à oposição existente entre os formalistas e os estudos sociológicos. Essa
dualidade que aparecia entre a estética proposta pelos formalistas e o olhar sobre
a história seria superada com a figura do leitor. Por meio de uma cadeia de
recepções, construída pelo leitor, seria possível decidir sobre a relevância da
estética e da história.

Em primeiro lugar, Jauss intervém, com grande entusiasmo, no debate


entre a teoria formalista e a teoria marxista da literatura. Reconhece os
méritos dos formalistas, mas assinala que compreender a obra de arte
em sua história não é a mesma coisa do que apreendê-la na ‘história,
segundo o horizonte histórico de seu nascimento, em sua função social
e na ação que ela exerceu sobre a história’.
À teoria marxista, Jauss reprocha o fato de negar à arte (bem como à
moral, à religião e à metafísica) uma história que lhe seja própria. Como
explicar que uma obra do passado — como os poemas homéricos —
ainda continue a despertar o interesse do leitor do século XX? Jauss
aponta para a deficiência da "teoria do reflexo", que não vê na obra nada
mais do que o simples reflexo de um estágio da evolução social e
conclama a estética marxista a assumir a historicidade específica da
literatura. (Figurelli, 1988, p. 266)

As discussões e teorias propostas por Jauss remetem à grande experiência


e conhecimento que ele tinha da história, da filosofia e da história da literatura.
Seu método poderia, inclusive, ser chamado de análise histórica, uma vez que
percorreu e retomou a tradição grega, a língua latina, a Idade Média e pensadores
modernos e contemporâneos para apresentar sua proposição. Esse aparato
erudito solidifica, sem dúvida, seus argumentos. Dessa maneira, na constituição
de seu olhar sobre a recepção, ele toma como conceitos fundamentais três termos
gregos: poiesis, aesthesis e catharsis. Com base neles, Jauss irá propor a
recuperação da fruição estética como categoria fundamental da experiência
estética.
Além disso, sem dúvida alguma, entre as propostas centrais de Jauss está
a capacidade leitora, que chama a atenção para o leitor, que deve somente se
preocupar com o texto e não com a intenção do autor.
Jauss chama de horizonte de expectativa e desvio estético aquilo que já
faz parte do repertório do leitor e aquilo que causará um estranhamento no
processo de leitura:

pelo fato de não exigir nenhuma mudança de horizonte, mas sim


de simplesmente atender a expectativas que delineiam uma
tendência dominante do gosto, na medida em que satisfaz a
demanda pela reprodução do belo usual, confirma sentimentos
familiares, sanciona as fantasias do desejo, torna palatáveis – na
condição de “sensação” – as expectativas não corriqueiras ou

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mesmo lança problemas morais, mas apenas para “solucioná-los”
no sentido edificante, qual questões já previamente decididas. (Jauss,
1994, p. 32)

Por fim, segundo a professora Zilberman (2008, p. 96),

Jauss considera que, entre a obra e o leitor, estabelece-se uma relação


dialógica. Essa relação, por sua vez, não é fixa, já que, de um lado, as
leituras diferem a cada época, de outro, o leitor interage com a obra a
partir de suas experiências anteriores, isto é, ele carrega consigo uma
bagagem cultural de que não pode abrir mão e que interfere na recepção
de uma criação literária particular.
Assim, quando se depara com um romance como Dom Casmurro, de
Machado de Assis, ele sabe de antemão que esse romance é um
clássico da literatura brasileira, que foi escrito após Memórias póstumas
de Brás Cubas e antes de Esaú e Jacó, que influenciou autores como
Graciliano Ramos, Fernando Sabino e Ana Maria Machado, por
exemplo; o romance, portanto, vem carregado de uma história de leituras
que se agregam a ele.
Da sua parte, esse leitor, independentemente de sua formação ou
profissão, carrega também sua história de leituras, construída a partir de
sua relação com a literatura e com outras formas de textos transmitidos
pela escrita. Assim, o diálogo entre a obra e o leitor coloca frente a frente
duas histórias, a partir da qual se estabelece uma troca: o leitor incorpora
a leitura de Dom Casmurro, com todos os elementos que o romance traz
consigo, à sua própria história; Dom Casmurro, por sua vez, agrega à
sua identidade de obra literária a leitura desse leitor, que fará uma
decodificação específica do texto a partir de sua matriz pessoal e
cultural.

TEMA 4 – O LEITOR DE ISER

Wolfgang Iser publica em 1978 O ato da leitura, obra em que o teórico trata
das estratégias adotadas pelos textos e do repertório contido neles. A ideia é que
o leitor se familiarize com o texto para que dê sentido no processo de leitura. O
texto literário leva o leitor a uma consciência crítica de seus códigos e expectativas
sociais. Para Iser (1996a; 1996b; 1999), o texto literário é aquele que melhor é
capaz de transgredir modos normativos e descontruir hábitos rotineiros de
recepção. Nesse sentido, ao fazer esse movimento, o leitor estaria fomentando o
pensamento crítico e ampliando a sua visão de mundo. Segundo essa
perspectiva, há efeitos do texto literário, e o leitor pode ser transformado nesse
processo. Portanto, a literatura pode romper ou configurar os códigos do leitor.
Iser, ao propor a capacidade transformadora da literatura, coloca a obra no
lugar central de discussão. A obra não tem mais um sentido único apenas, ou uma
só interpretação ou apenas uma leitura que esgote sua capacidade semântica.
Ainda, toda a leitura é carregada de informações preexistentes que vão moldando
a capacidade interpretativa do leitor. A leitura não tem total grau de pureza, ela
não é inocente. As reações do leitor ou do público leitor revelam as características

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históricas e sociais do contexto de leitura. Ainda, outro aspecto a ser pontuado diz
respeito aos efeitos da leitura do texto literário e às possíveis funções ligadas a
ele.
Iser desenvolverá investigações em torno os aspectos comunicativos da
literatura. Em 1991, publica O fictício e o imaginário, obra em que se aprofunda
na discussão sobre a natureza do texto literário e sua relação com o leitor. Além
das investigações propostas e que dizem respeito à teoria da literatura, são feitas
outras relacionadas à neurociência, à psicologia cognitiva e à antropologia, em
diálogo com a estética da recepção. Em todas essas investigações, a questão
central posta é o texto literário e o leitor.
Inicialmente, os trabalhos de Iser se direcionam para a discussão do
fenômeno da substituição. Por ele, substitui-se o autor pelo leitor. Esse leitor tem
um caráter personalista, criado com base na sua relação com o texto. Na obra O
ato da leitura são propostas categorias para esse leitor, apresentado em três: o
leitor real, o leitor implícito e o leitor fictício (Iser, 1996a; 1999). O leitor real, como
o próprio nome sugere, é uma espécie de leitor empírico, aquele que está diante
do texto e cujo olhar percorre as palavras que estão no papel e absorve o discurso.
O leitor implícito, por sua vez, seria aquele que preencheria os espaços propostos
pelos discursos. Esse é o leitor pressuposto pelo texto. Ele seria capaz de
recuperar e compreender as diferentes intertextualidades que o texto sugere. Por
fim, o leitor fictício, aquele que é pensado pelo autor e, nesse sentido, tem uma
leitura do texto imaginada pelo autor, ou seja, o modo como o texto será recebido
imageticamente. Nessas categorias não há uma hierarquia a ser observada nem
uma possibilidade de que possam acontecer de forma autônoma, elas são
intercaladas no momento em que acontece a recepção do texto.
Segundo Zilberman (1999, p. 9):

Wolfgang Iser não é um historiador da literatura, mas, como Jauss, dirige


sua atenção, pelo menos em seus dois primeiros livros, cujos títulos são
suficientemente expressivos desse propósito, O leitor implícito (Iser,
1972) e O ato de ler, (Iser, 1976) para as maneiras como se verifica o
processo de leitura. A expressão que cunha, ‘leitor implícito’, parece
responder à noção adotada pelo crítico norte-americano, Booth (1973),
em A retórica da ficção, de ‘autor implícito’, categoria intermediária entre
o autor real, motivo da história e de biografia, e o narrador, função
diversificada que se modifica a casa obra escrita. Tal como o ‘autor
implícito’, o ‘leitor implícito’ é uma virtualidade, encarnada ou não por um
indivíduo histórico, mas pressuposta pelo texto, logo, apta a ser
analisada, conforme procede Iser ao longo do volume que carrega esse
título. O ato de ler expande-se em considerações teóricas, verificando
como se compõe a matéria narrativa, para suportar, sem perder a

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identidade, a interferência do leitor que se intromete sob a forma da
leitura.

Para Iser (1996a;1999), a leitura acontece com base em um processo que


deslocaria as tradicionais perspectivas de interpretação, em que haveria ator e
textos absolutos e que de certa forma os caminhos de entendimento já estariam
estabelecidos. De acordo com o teórico, o leitor seria obrigado a converter a
imagem material do texto em imagem virtual, produzindo sentidos dessa realidade
virtual. Isso é definido por Iser como a interação entre o texto e o leitor. Nesse
momento, detecta-se a relação entre o leitor e o repertório do texto. Por fim, por
meio da interação, o leitor irá preencher os espaços vazios do texto. O leitor,
imerso no texto e em sua estética, recuperaria a composição interpretativa textual
subentendida, que não existe sem o ato de leitura.

TEMA 5 – A LEITURA – JOUVE

5.1 Interação texto-leitor

No livro A leitura, Vicent Jouve (2002) discorre sobre as possíveis formas


de participação e interferência do leitor no processo de leitura. Após os anos de
1970, o desempenho do leitor na abordagem do texto se tornou um tema mais
discutido. Jouve (2002), ao descrever como ele se dá, fez uma abordagem de
caráter conceitual e teórico, concretizada por inúmeros exemplos extraídos das
obras de criação, nas quais destaca as diferentes formas que o leitor utiliza e a
construção de recursos que sugerem como o leitor executa ou pode executar tal
leitura.
Ainda na introdução da obra, o autor apresenta algumas possibilidades de
como e por que a década de 1970 trouxe tantas discussões referentes à recepção
do texto. Segundo Jouve (2002), nesse momento há um certo desgaste das
abordagens estruturalistas que tentavam reduzir o texto literário a uma série de
formas, e o estudo limitado das estruturas leva a modelos demasiado gerais ou
demasiado incompletos. A responsável por os estudiosos se interessarem pelos
problemas da recepção seria a expansão da pragmática (relação dos signos como
seus usuários).
Assim, como já vimos, a Escola de Constança é a primeira tentativa de
renovar o estudo dos textos levando-se em conta a leitura. A abordagem alemã
(pensando no surgimento e nos trabalhos de Jauss e Iser) chama a atenção para

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o deslocamento da relação de texto-autor para texto-leitor. Esses estudos
desenvolvidos pela Escola de Constança, como observado, acabaram divididos
em dois ramos, aquele desenvolvido por Jauss referente à estética da recepção e
à teoria do leitor implícito de Iser.
Segundo Jouve (2002, p. 14):

A “estética a recepção”, surgida no início dos anos 1970, parte da


vontade de repensar a história literária. Jauss constata o seguinte: a obra
literária – e a obra de arte, em geral – só se impõe e sobrevive por meio
de um público. A história literária, portanto, é menos a história da obra
do que a de seus sucessivos leitores. A literatura, atividade de
comunicação, deve ser analisada por seu impacto sobre as normas
sociais.
A teoria do “leitor implícito” de Iser, por sua vez, data de 1976. Enquanto
Jauss se interessa pela dimensão histórica da recepção, Iser se volta
para o efeito do texto sobre o leitor particular. O princípio de Iser é que
o leitor é o pressuposto do texto. Portanto, trata-se de mostrar, por um
lado, como a obra organiza e dirige a leitura, e por outro, o modo como
o indivíduo-leitor reage no plano cognitivo aos percursos impostos pelo
texto.

Dessa maneira, Jouve (2002), ao retomar os principais teóricos da estética


da recepção, centra sua análise no universo narrativo e nos processos de leitura.
Para tanto, o autor debruça-se sobre esses processos, identificando suas facetas
neurofisiológicas, afetivas, cognitivas, argumentativas e simbólicas. Por meio
dessa abordagem, Jouve (2002) destaca a complexidade e a pluralidade do
processo de leitura. Na primeira dessas facetas, a neurofisiológica, sua
observação está relacionada aos atos físicos e mecânicos do olho, procurando
mostrar que ele não apreende signos separadamente, mas por pacotes. Depois,
no processo cognitivo, defende a ideia da conversão de palavras e grupos em
elementos de significação que demandam um esforço significativo de abstração.
O que ele define como afetivo provém das emoções que a leitura suscita. “Se a
recepção do texto recorre às capacidades reflexivas do leitor, influi igualmente,
talvez, sobretudo – sobre sua afetividade As emoções estão de fato na base do
princípio de identificação, motor essencial da leitura de ficção” (Jouve, 2002, p.
19). No processo argumentativo, Jouve sugere a possibilidade analisável e
interpretativa do texto e, por fim, o simbólico em que o contexto de cada leitura é
valorizado perante os outros objetos do mundo com os quais o leitor tem relação.
O sentido da leitura tem uma relação direta como contexto cultural de cada leitor.
Portanto, ao pensar coletivamente, o leitor individual também faz parte de
uma história coletivo e, nesse sentido, pode ser entendido como público. O leitor
efetivo remete não somente ao público contemporâneo à primeira publicação de

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determinada obra como a todos os públicos reconhecidos que a obra irá encontrar
ao longo de sua trajetória histórica. A leitura de um texto, dessa forma, é
atravessada por muitas leituras anteriores que, em certa medida, servem como
bagagem. Assim, Jouve (2002) escreve um subtítulo ao primeiro capítulo que
explica, em alguma medida, a historicidade da leitura e, ao mesmo tempo, o leitor
que toma em mãos a obra em um mundo fora do texto: “o texto e o além do texto”.
Mais especificamente no capítulo 3 da obra O leitor, Jouve remete à
discussão sobre a insuficiência textual, advertindo que a leitura, longe de ser uma
recepção passiva, apresenta uma interação produtiva. Para Jouve (2002, p. 61),
a obra precisa, em sua constituição, da participação do destinatário. Nesse
sentido, sem o leitor, o destinatário, o universo textual está inacabado. Um
romance, por mais semelhante que ele se pareça com o mundo em que vivemos,
não tem a possibilidade de dizer tudo. Tudo que se propõe no texto tem, por isso,
conexão com o mundo empírico. Mesmo as personagens mais fantásticas e
ficcionais conversam com propriedades ligadas aos indivíduos do mundo real. Um
ser absolutamente completo, conforme sugere Jouve (2002), é inassimilável pelo
leitor. O texto, por sua incompletude, precisa da contribuição, em última instância,
do leitor.

5.2 O texto como programação

Segundo Jouve (2002), a definição mais geral do modo de leitura se dá


pela inscrição do gênero e seu lugar na instituição literária. Assim, o gênero
remete a um primeiro ponto de leitura, a sua convenção tácita e, portanto, a uma
orientação de expectativa do público. Há ainda o crédito que o leitor dará ao texto,
apoiado pelo que a instituição literária oferece.

O gênero remete para convenções tácitas que orientam a expectativa do


público. Se o leitor aceita sem problema ver mortos ressuscitarem em
uma narrativa fantástica, ele se chocará com o mesmo acontecimento
num romance policial. Da mesma forma, não aceitará encontrar na
leitura de um romance histórico contradições flagrantes com a História
Oficial. (Jouve, 2002, p. 67)

Assim, o leitor acreditará no texto e irá procurar uma pertinência naquilo


que lhe causa problema. É, em última instância, o que se define por pacto de
leitura e que Umberto Eco propõe em seu livro Seis passeios pelo bosque da
ficção, ou o que Genette chama de peritexto, termo que remete aos prefácios,
introduções e avisos que irão orientar a leitura: “enfim, ao longo do texto inteiro, o

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pacto de leitura está determinado pela submissão da obra a certo número de
normas, mais ou menos evidentes, que vão codificar a recepção” (Jouve, 2002, p.
69).
Segundo Eco (1994, p. 83),

Quando entramos no bosque da ficção, temos de assinar um acordo


ficcional com o autor e estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo
fala; mas, quando o lobo come a Chapeuzinho Vermelho, pensamos que
ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordinário prazer que o
leitor experimenta com sua ressurreição).
Imaginamos o lobo peludo e com orelhas pontudas, mais ou menos
como os lobos que encontramos nos bosques de verdade, e achamos
muito natural que Chapeuzinho Vermelho se comporte como uma
menina e sua mãe como uma adulta preocupada e responsável. Por
quê? Porque isso é o que acontece no mundo de nossa experiência [...],
o mundo real”.
O que estou dizendo parece óbvio, mas não o é se nos ativermos a
nosso dogma de suspensão da descrença.

Jouve sugere, pelo contrato de leitura, que a recepção se constrói


apoiando-se nos espaços de certeza oferecidos pelo texto, como se fossem
pontos de ancoragem. Além dos títulos e do gênero, há as palavras que remetem
ao tema, à organização ou à concatenação dos textos, unidades fundamentais em
sua composição. Além dessas pistas ou caminhos de leitura, o texto pode
inclusive programar espaços de indeterminação que exijam, em grande medida,
a criação do leitor. Nesse sentido, esse espaço já era entendido por Iser como o
vazio (ausência deliberada de uma anotação ou informação da qual o leitor nunca
terá acesso) ou a negação (questionamento de certos elementos vindos do mundo
externo). Ainda, Jouve (2002) completa que, para o processo da leitura, conta-se
com o conceito de isotopia, ou seja, de signos textuais que remetem para o
mesmo lugar; quanto mais redundante for o texto, maior a isotopia e mais fácil a
decifração.
Por fim, é importante ressaltar que, ao sugerir os processos de leitura,
Jouve (2002) reafirma o papel do leitor e define os reflexos de antecipação e
simplificação. Nesse caso, o leitor modelo contribuiria com a antecipação (a leitura
como um teste, o texto mediria a capacidade de precisão do leitor, como estão
fundamentados os romances policiais). Ainda cita a performance do leitor (quando
ele se baseia em estruturas mais simples até aquelas mais complexas) e a
competência do leitor, dialogando abertamente com as teorias e abordagens de
Umberto Eco para o tema.

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REFERÊNCIAS

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Dutra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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