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ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE A HERMENÊUTICA LITERÁRIA1

Prof. Dr. Paulo Rogério da Silva


Hermenêutica
Curso de Filosofia
Claretiano – Centro Universitário

De acordo com o artigo “Hans Robert Jauss e a Hermenêutica Literária”, os


autores Brizotto e Bertussi (2013) tentarão apresentar justamente em como Jauss
retoma a hermenêutica filosófica de Gadamer para fundamentar o que seria a
hermenêutica literária – isto é, a compreensão, a interpretação e a aplicação da obra
de arte ou do fato estético.
Mas, para tanto, precisamos entender a filiação filosófica de Jauss, que começa
em Heidegger e Gadamer.
Heidegger é o grande responsável por inovar a hermenêutica ao apresentar
as condições para o “interpretar”: só existe compreensão e interpretação porque os
homens estão no mundo, como consciências de si com os outros. Portanto, para
interpretar e compreender, antes de tudo é preciso “existir”. Sem essa pré-condição
não há possibilidade de hermenêutica. A interpretação e a compreensão
decorrem da consciência de que existimos no mundo.
Gadamer retoma de Heidegger essa questão e expande essa pré-condição
da hermenêutica existencial para o campo da linguagem. Gadamer (2008, p. 612)
mesmo disse certa vez: “o ser que pode ser compreendido é linguagem”. O que isso
significa? Que é através da linguagem que o mundo está aberto para nós, pois
aprendemos a conhecer o mundo aprendendo a dominar uma língua. Por isso não
podemos entender a nós mesmos se não nos entendermos como situados em uma
cultura histórica linguisticamente mediada. As coisas passam a “ser” a partir do
momento que são situadas linguisticamente e historicamente. Em “Verdade e

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O presente texto trata-se apenas de breves comentários decorrentes da leitura do artigo indicado para
leitura no CRC (Caderno de Referência de Conteúdo): BRIZOTTO, Bruno; BERTUSSI, Lisana Teresinha.
Hans Robert Jauss e a Hermenêutica Literária. Letrônica, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 735-752, jul./dez.,
2013.
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Método”, Gadamer afirma que a verdade é conhecida de três formas: a) pela arte; b)
pela compreensão histórica; c) pela linguagem.
Hans Robert Jauss, por sua vez, retoma a hermenêutica filosófica de
Gadamer e tenta dar origem a um novo ramo da hermenêutica, que ficou conhecido
como “hermenêutica literária”. Dentro da “hermenêutica literária”, que visa
justamente apresentar métodos e formas de compreensão, interpretação e aplicação
da “experiência estética”, Jauss apresenta a sua tese da “estética da recepção”. Para
tanto, Jauss retoma de Gadamer a questão a da unidade triádica do processo
hermenêutico, que consiste em: a) compreender; b) interpretar; c) aplicar. Essa
unidade, ao longo da história pós-iluminista, acabou excluindo o terceiro ponto, que,
de acordo com o artigo, foram recuperados por Gadamer e Jauss.
Aliás, segundo Jauss, é por causa desse contexto positivista que se justifica o
atraso evidente da hermenêutica literária. A hermenêutica era mais vista como
instrumento de clarificação dos textos científicos, jurídico e religiosos, mas não como
método de compreensão da experiência estética: “Tal atraso explica-se porque o
processo hermenêutico foi reduzido apenas à explanação, porque nenhuma teoria da
compreensão foi desenvolvida para textos de caráter estético, e porque a questão da
‘aplicabilidade’ foi relegada à crítica como não sendo científica” (JAUSS, 1983, p. 306).
Jauss chega então à conclusão que, para compreender, interpretar e aplicar a
leitura de obras estéticas (textos literários), era preciso uma hermenêutica específica,
voltada para a questão estética. A questão central de Jauss é a seguinte: como a
unidade hermenêutica proposta por Gadamer (compreensão, interpretação
e aplicação) pode ser utilizada para interpretar dos textos poéticos?
De acordo com Jauss, a interpretação de textos poéticos, na realidade, é uma
experiência. E a experiência primária de toda e qualquer interpretação de obras de
arte reside em duas ideias: a) no seu efeito estético; b) na estética da recepção,
isto é, no modo como o leitor recebe o efeito estético – tanto para o leitor da
atualidade, como para os leitores ao longo da história.
O que é o efeito estético? Trata-se do modo como o leitor compreende a
partir daquilo que apreciou como fruição estética e como passa a apreciar a partir
daquilo que entendeu. É o que Jauss chama de “compreensão fruidora” e “fruição
compreensiva”. Noutras palavras, trata-se de dois processos simultâneos que indicam
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como só se pode gostar do que se entende e compreender o que se aprecia. Isso é o


efeito estético.
O que é a estética de recepção? Compreender o modo como leitor da
atualidade e o leitor ao longo da história recebem esse efeito estético (“compreensão
fruidora” e “fruição compreensiva”).
Logo, a hermenêutica literária de Jauss tem uma dupla função: a)
aclarar o processo atual em que se concretizam o efeito e o significado do texto para
o leitor contemporâneo; b) reconstruir o processo histórico pelo qual o texto é sempre
recebido e interpretado diferentemente, por leitores de tempos diversos.
Portanto, a aplicação tem uma finalidade fundamental: “comparar o efeito
atual de uma obra de arte com o desenvolvimento histórico de sua experiência e
formar o juízo estético, com base nas duas instâncias de efeito e recepção” (JAUSS,
1979, p. 46).
A teoria hermenêutica de Jauss está fundada, portanto, na recepção,
constituindo-se como o fruto do relacionamento entre obra e leitor. Esse
relacionamento conecta dois conceitos – o de “prazer” e o de “entendimento” (efeito
estético).
Mas, em síntese, o que seria a experiência estética? Segundo Jauss (2002, p.
41): “A libertação pela experiência estética pode se realizar em três planos: a
consciência produtiva, ao criar um mundo como sua própria obra; a consciência
receptiva, ao aproveitar a oportunidade de perceber o mundo de forma diferente e,
finalmente – deste modo a subjetividade abre-se à experiência intersubjetiva – ao
aprovar um julgamento exigido pela obra ou identificar-se com as normas de ação
esboçadas e que posteriormente serão determinadas”.
Noutras palavras, a experiência estética seria um processo fundado em três
aspectos:
a) Poiesis (atividade produtiva e criadora): significa a experiência estética
fundamental de que o homem, através da produção de arte, pode satisfazer a sua
necessidade universal de fazer desse mundo estranho algo que é seu, que é fruto de
sua criação.
b) Aisthesis (atividade receptiva): significa a experiência estética
fundamental de que uma obra de arte pode renovar a percepção das coisas, embotada
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pelo hábito, do qual resulta no conhecimento intuitivo, como um tipo de conhecimento


alternativo ao conhecimento conceitual. Enquanto a intuição é livre esteticamente, o
conceito limita o fazer estético pelas definições impostas pela tradução cultural.
c) Katharsis (atividade comunicativa): significa a experiência estética
fundamental de que o espectador, na recepção da arte, pode ser liberado da
parcialidade dos interesses vitais práticos mediante a satisfação estética e ser
conduzido também a uma identificação comunicativa ou orientadora da ação.
Mas qual seria o processo da hermenêutica literária? Retomando
Gadamer, consiste em aplicar às obras de arte o processo da compreensão,
interpretação e aplicação. Para Jauss, esses três elementos do processo
hermenêutico podem ser comparados como três tipos de leituras sucessivas sobre
a obra de arte.
1) Compreensão (ou leitura de percepção estética): decorre da
percepção estética que o leitor apresenta ao iniciar a interpretação do texto. Essa
percepção estética é progressiva, ou seja, acompanha a partitura do texto (sendo
sua descoberta dada pela disposição do texto, pela sugestão do ritmo e pela
realização gradativa da forma). A compreensão remete, portanto,
hermeneuticamente ao horizonte de experiência da primeira leitura, o qual muitas
vezes pode tornar-se visível em sua coerência formal e plenitude de significado apenas
após várias leituras. Essa primeira leitura ainda não necessita possuir o caráter de
resposta a uma pergunta implícita ou explícita. A redução reflexiva da interpretação
que deseja compreender o texto enquanto resposta a uma pergunta, pode, nesse
primeiro momento, ficar suspensa, situação que nos lembra a epoché transcendental
(suspensão temporária de juízos e pré-conceitos).
2) Interpretação (ou leitura retrospectiva): decorre da leitura, cujo
significado do texto só se torna claro numa segunda leitura, após retornar do final ao
início do texto. Ou seja, “aquilo que o leitor assimilou no horizonte progressivo da
percepção estética torna-se tematizável no horizonte retrospectivo da interpretação.”
(JAUSS, 1983, p. 309). Isso permite ao leitor passar da primeira leitura (da
compreensão) para a segunda (da interpretação), chamada por Jauss de leitura
retrospectiva (recebe esse nome “retrospectiva” porque ela orienta voltar do fim
para o começo do texto ou do todo ao particular). Esse retorno do todo ao particular
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e, por conseguinte, do particular ao todo, implica o conceito de círculo hermenêutico


de Gadamer (2008, p. 385): “as partes que se determinam a partir do todo
determinam, por sua vez, a esse todo”.
A questão da primeira (compreensão) e da segunda leitura (interpretação) na
obra poética é descrita por Jauss da seguinte maneira:

“O leitor que realizou receptivamente, verso por verso, a partitura do texto e


chegou ao final, antecipando constantemente, a partir do detalhe, a
virtualidade do todo de forma e significado, apercebe-se da forma plena da
poesia, mas ainda não do seu significado igualmente pleno, quanto menos do
seu ‘sentido global’. Quem aceita a premissa hermenêutica de que o sentido
global de uma obra lírica deve ser entendido não mais como substância, não
como significado atemporal antecipado, mas como sentido-tarefa, espera que
o leitor, no ato da compreensão interpretativa, admita que de agora em diante
pode concretizar um entre outros significados possíveis da poesia, relevante
para ele, sem que exclua a possibilidade que outros discordem” (JAUSS, 1983,
p. 311).

Portanto, as perguntas não respondidas (implícitas ou explícitas), as quais


inicialmente se opunham à compreensão, necessitam ser solucionadas na etapa da
interpretação. Mas ainda surge um terceiro problema: quem garante que essa
leitura realmente é o resultado de uma experiência estética objetiva ou não
passa de uma produção embotada e parcial (subjetivada) por um
determinado leitor? Para tentar objetivar a experiência estética a partir das leituras
subjetivas, há então a necessidade de um terceiro tipo de leitura.
3) Aplicação (ou leitura histórica): esse tipo de leitura permite que se
recupere a recepção de que a obra foi alvo ao longo do tempo. É fato que a aplicação
(leitura histórica) depende em grande parte da compreensão (percepção estética) e
da interpretação (visão retrospectiva do texto), uma vez que ambas explicam a
importância de uma obra na história. No entanto, por outro lado, tanto a compreensão
quanto a interpretação necessitam, para existirem em um texto, da função
controladora da leitura de reconstituição histórica.
Portanto, a função da leitura histórica (aplicação) é justamente evitar que o
texto do passado seja adaptado ingenuamente aos preconceitos e às
expectativas de significado de nossa época contemporânea. Noutras palavras,
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a leitura histórica possibilita a compreensão do texto poético em sua alteridade,


distinguindo o horizonte passado do horizonte contemporâneo.
Todavia, se a leitura histórica não puder transformar a pergunta “O que disse
o texto?” em “O que o texto me diz e o que eu digo sobre o texto?” , a reconstrução
do horizonte de expectativa original ficaria comprometida e não passaria de um mero
historicismo. Por isso, a leitura histórica não deixa de ser também uma comunicação,
cuja função seria a de medir e ampliar, na comunicação literária com o passado, o
horizonte da experiência própria a partir da experiência de outros.
A interpretação histórica é fundamental tanto porque dá voz ao intérprete –
que reconhece seu lugar na “cadeia temporal” da recepção estética –, como também
porque possibilita ao próprio intérprete (crítico) o exame de seus pré-juízos no todo
da interpretação histórica.
Em síntese, segundo Jauss, a hermenêutica literária é o exercício da percepção
e reconhecimento da experiência estética (poiesis, aisthesis e katharsis) sobre uma
obra de arte ou texto poético, por meio das três sucessivas leituras: estética,
retrospectiva e histórica.

“O objetivo de Jauss com o exercício da hermenêutica literária (em suas três


leituras – estética, retrospectiva e histórica) é que o intérprete, ao questionar
o texto, deixe-se também interrogar. Nesse sentido, é fundamental a abertura,
isto é, quando lemos um texto, visualizamos uma obra de arte, conversamos
com alguém, precisamos estar ‘abertos’, ou seja, ter abertura. Através da
abertura reconhecemos o outro, estabelecemos relações com ele, resultando
num processo intersubjetivo” (BRIZOTTO; BERTUSSI, 2013, 749-750).

REFERÊNCIAS:

BRIZOTTO, Bruno; BERTUSSI, Lisana Teresinha. Hans Robert Jauss e a Hermenêutica


Literária. Letrônica, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 735-752, jul./dez., 2013.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. Trad. Luiz Costa Lima
e Peter Naumann. In: JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de
estética da recepção. Seleção, coordenação e prefácio de Luiz Costa Lima. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979, pp. 43-61.
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JAUSS, Hans Robert. O texto poético na mudança de horizonte da leitura (baseado no


exemplo do segundo “Spleen” de Baudelaire). In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da
literatura em suas fontes. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, pp. 305-
358.
JAUSS, Hans Robert. Pequeña apología de la experiencia estética. Barcelona:
Paidós, 2002.

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