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palavra e pelo acesso a ela que se estabelece uma primeira

perspectiva para sinalizar os elementos interpretativos.


Interpretar a realidade pressupõe o conhecimento das
essências e as suas correspondentes justaposições às
palavras. O que podemos identificar como “hermenêutico”
FILOSOFIA DA LINGUAGEM E HERMENÊUTICA: em Platão se resume ao critério de identificação de
PLATÃO, ARISTÓTELES E PERÍODO MEDIEVAL-CRISTÃO essências corretamente nomeadas.
Na sua obra Crátilo, ao negar tanto o naturalismo
Prof. Dr. Paulo Rogério da Silva extremado (segundo o qual cada coisa tem um nome por
Claretiano – Centro Universitário natureza – posição esta defendida por Crátilo), como
também o convencionalismo linguístico (para o qual a
significação é fruto da convenção e do uso da linguagem
1. PLATÃO – posição esta defendida por Hermógenes), Platão assume
uma posição intermediária aos dois extremos, afirmando
Para Platão, não há uma teoria hermenêutica que, de um lado, não é possível descobrir a significação
propriamente dita (conforme os critérios atuais), nem de uma palavra na própria forma do som (naturalismo)1,
regras para conduzir uma interpretação. No entanto, há nem acreditar que a significação de uma palavra é apenas
uma proposta de identificação da verdade (essência das resultado de um acordo convencional (convecionalistas)2.
coisas) por meio do ajustamento dos nomes e das
1
O que seria um absurdo para Platão, pois, neste caso, todos
palavras: a correta interpretação é decorrente daquela poderiam compreender imediatamente línguas estrangeiras.
2
atitude que, ao conhecer a essência de algo, é capaz de O que não deixaria de ser outro absurdo para Platão, pois como usar
os nomes como instrumentos, se eles não possuem uma referência
nomeá-la adequadamente. Ou seja, para Platão, é pela fixa ao qual corresponder? Nesse caso, haveria infinitos acordos e as
pessoas não poderiam mais saber do que estariam se referindo. Esta

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Logo, as palavras não significam as coisas por ser cortado, afirmamos nós, com alguma coisa?
[Hermógenes] – Sim.
simplesmente imitar os sons ou pelo fato de fazerem parte [Sócrates] – E o que devia tecer não se devia tecer
de uma convenção, mas sim porque apresentam e com alguma coisa? E, do mesmo modo, o que se devia
furar?
correspondem a essências fixas e imutáveis: [Hermógenes] – Indubitavelmente.
[Sócrates] – E o que era preciso nomear não se devia,
da mesma maneira, nomear com alguma coisa?
Por conseguinte, se todas as coisas não são todas [Hermógenes] – É assim mesmo.
iguais, ao mesmo tempo e sempre, a cada uma delas [Sócrates] – E qual instrumento com que se devia
não é própria de cada um em particular, daí resulta furar?
com evidência que elas têm por si mesmas uma certa [Hermógenes] – Um trado.
realidade permanente, que não se relaciona conosco [Sócrates] – E aquele que se devia tecer?
nem depende de nós; não se deixam, por isso, arrastar [Hermógenes] – Uma lançadeira.
para aqui e para acolá por nossa fantasia, mas existem, [Sócrates] – E de que nos servimos para nomear?
naturalmente, por si mesmas e segundo a sua essência [Hermógenes] – Do nome.
própria (PLATÃO, 1963, p. 16). [Sócrates] – Dizes bem. Portanto, o nome também é
um instrumento.
[Hermógenes] – Sem dúvida.
Com isso, a tese de Platão é que a linguagem [Sócrates] – Se eu, pois, perguntasse: que instrumento
é a lançadeira? Não será aquilo com que tecemos?
apenas nomeia as essências, as coisas no mundo, como
[Hermógenes] – Sim.
uma espécie de instrumento “separador” (distinguir aquilo [Sócrates] – E o que fazemos quando tecemos? Não
distinguimos a trama da urdidura, confundidas uma
“é” daquilo que “não é”). Confira no trecho a seguir como com outra?
[Hermógenes] – Sim.
Platão argumenta a função instrumental e designativa da
[Sócrates] – Não poderás dizer o mesmo do trado e
linguagem: dos outros instrumentos?
[Hermógenes] – Com toda certeza.
[Sócrates] – Poderás, então, falar do mesmo modo a
[Sócrates] – Aquilo que era preciso cortar não devia respeito do nome? Sendo um instrumento, se
nomearmos com ele, que fazemos nós?
[Hermógenes] – Não o posso dizer.
é a tese do relativismo de Protágoras combatida por Platão no [Sócrates] – Não nos instruímos mutuamente e não
discurso. Cf. Platão, 1963, p. 13-16 (ou, segundo a numeração oficial distinguimos as coisas como elas são naturalmente?
dos escritos platônicos, de 386a até 386e). [Hermógenes] – Exato.

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[Sócrates] – Logo, é o nome um instrumento, que variedade de nomes, mas ter a certeza de que tais nomes
serve para instruir e distinguir a realidade, como faz na
teia a lançadeira (PLATÃO, 1963, p. 18-20). – em sua variedade linguística e idiomática – de fato
nomeiam as coisas de acordo com suas essências.
Neste sentido, na teoria da linguagem de Platão, Mas ainda resta um problema: quem poderá então
não faz diferença dizer “hypos” ou “cavalo”, contanto que julgar e escolher com exatidão os nomes em relação às
a essência (eidos) da qual esteja se referindo seja de fato verdadeiras essências? Se para usar bem a linguagem, é
correspondente à ideia de “hypos” / “cavalo”. Veja como preciso fazer com os nomes, em sua diversidade,
isso é exposto novamente no Crátilo: designem corretamente sua essência correspondente,
então, tal tarefa só pode ser realizado por quem conhece
Não é, portanto, o nome apropriado, naturalmente, a tais essências, isto é, pelo filósofo [dialético]: “ora, quem
cada objecto que o legislador deve pôr em sons e em
sílabas? Não importa a ele, de olhos fitos no nome em sabe interrogar e responder dás-lhe outro nome que não
si, criar e estabelecer todos os nomes, se quiser ser
um autorizado criador dos mesmos [isto é, dos seja o de dialético” (PLATÃO, 1963, p. 25).
nomes]? Dado o caso que nem todos os legisladores Neste caso, a função da linguagem serviria apenas
se sirvam das mesmas sílabas, isso pouco monta, pois
não se deve ignorar que nem todos os ferreiros, tendo para corresponder os elementos gramaticais e semânticos
em vista o mesmo instrumento, o fabricam do mesmo
aos elementos ontológicos das coisas. Oliveira afirma
ferro; não obstante, dando-lhe cada um forma
idêntica, ainda que se sirva de um ferro diferente, o justamente essa tese em Platão, como também apresenta
instrumento é bom, quer seja fabricado entre nós, quer
entre os bárbaros [não-gregos]. Não é verdade? uma primeira crítica:
(PLATÃO, 1963, p. 23-24)

A linguagem é reduzida a um puro instrumento, e o


Portanto, assim como nem todos os ferreiros conhecimento do real se faz independente dela. [...] A
utilizam do mesmo ferro para fabricar seus objetos, nem linguagem não é, pois, constitutiva da experiência
humana do real, mas é um instrumento posterior,
todos os legisladores utilizam dos mesmos nomes para tendo uma função designativa [...] O pensar é uma
atividade essencialmente não-linguística e, sendo
nomear coisas comuns. O mais importante não é
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assim, a relação da linguagem para o real é secundária corretamente. Nesse sentido, a lógica formal é
(OLIVEIRA, 2006, p. 22).
fundamental não apenas para as investigações filosóficas,

No entanto, a questão da linguagem e da mas também para a compreensão de aspectos

interpretação na Filosofia Antiga não se esgota em Platão; relacionados à interpretação.

outro autor também retoma essa temática: Aristóteles. Enfim, a justeza do procedimento lógica capaz de

Ainda no horizonte tradicional da linguagem – isto é, como guiar o reto pensamento e raciocínio, também acaba

instrumento de significação –, Aristóteles avança a produzindo um discurso sobre o que é verdadeiro ou falso,

discussão da teoria da interpretação para o âmbito da cujo contexto de fundo é a própria correspondência entre

Lógica. o conceito e a realidade. Em uma perspectiva


interpretativa, o discurso nos faz perceber que as coisas
“são o que são”, e sua principal função é revelá-las a nós.

2. ARISTÓTELES b) No que diz respeito à teoria da interpretação,


Aristóteles também não conseguiu romper com esta

Sobre a interpretação em Aristóteles, podemos tradição instrumental e secundária da linguagem –

identificar duas questões, uma mais geral e outra mais conforme surge em Platão. Em sua obra Órganon, mais

específica: a) a relação de dependência da interpretação especificamente no livro Da Interpretação (Peri

com a lógica; b) a teoria da interpretação como relação da Hermeneias), Aristóteles continua com tal concepção ao

linguagem falada e escrita com estados da alma. afirmar que as palavras escritas são símbolos

a) De modo geral, a correta interpretação para representativos das palavras faladas, e as palavras

Aristóteles depende da correta formalização da lógica. faladas, por sua vez, símbolos dos conceitos ou “estados

Interpretar corretamente é utilizar-se de critérios seguros da alma” (também chamados de “afecções” ou

para expressar o pensamento e, partir dele, argumentar

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“paixões”3).
Mas de onde vêm os conceitos? Aí está a outra Os sons emitidos pela fala são símbolos das paixões da
alma [ao passo que] os caracteres escritos [formando
questão em Aristóteles: os conceitos são abstrações palavras] são os símbolos dos sons emitidos pela fala.
imediatas que o intelecto faz das essências das coisas Como a escrita, também a fala não é a mesma em toda
parte [para todas as raças humanas]. Entretanto, as
contidas na própria realidade. Somente depois de paixões da alma, elas mesmas, das quais esses sons
falados e caracteres escritos [palavras] são
abstraídas enquanto conceito pelo intelecto é que tais originalmente signos, são as mesmas em toda parte
“estados da alma” serão nomeados linguisticamente. [para toda a humanidade], como o são também os
objetos dos quais essas paixões são representações ou
Desta maneira, como é possível perceber, a imagens. Destes temas, contudo, me ocupei em meu
tratado a respeito da alma; dizem respeito a uma
linguagem em Aristóteles também tem tanto uma função
investigação diversa da que temos ora em pauta
designativo-instrumental4, como também secundária5. A (ARISTÓTELES, 2005, p. 81).

palavra escrita é um símbolo da palavra pronunciada; e a


Ora, o que decorre deste trecho é o seguinte: mais
palavra pronunciada é um símbolo dos estados da alma.
uma vez, o que está em jogo é a relação entre a palavra
Confira trecho apresentado pelo próprio Aristóteles no
falada ou escrita com as essências, porém, agora, mediada
Órganon:
pelos estados ou afecções da alma. Noutras palavras, em
Aristóteles não existe uma relação imediata entre
3
Pelo termo “paixão” não esmos nos referindo à questão do
sentimento ou afeto, mas ao significado grego da palavra, que “linguagem” e “ser”; pelo contrário, a mediação sempre
significa a faculdade do intelecto que possibilita que a alma seja afeta
por algo – no caso, pela abstração das essências.
será realizada por tais estados da alma. Tanto a palavra,
4
Designativo-instrumental porque a linguagem é apenas um meio de como a escrita não possuem uma significação por si
representação entre palavras escritas e palavras faladas, e entre
palavras faladas e conceitos. mesmas, mas somente na medida em que correspondem
5
Secundária porque a linguagem só representa as coisas depois de com os estados da alma, que se assemelham e estão
serem abstraídas no conceito. Portanto, o exercício do intelecto, aqui
exposto por Aristóteles, tem a pretensão de ser uma atividade não- imediatamente relacionados com o “ser” – isto é, com o
linguística.

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real. “universais”, que abordam uma temática da Filosofia da
Nesse sentido, a interpretação (“hermeneia”) para linguagem.
Aristóteles nada mais é do que a transposição e
exteriorização dos estados da alma por meio da linguagem 3.1 A EXEGESE E OS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO DOS
falada ou escrita – que tem a função ligar, por meio do TEXTOS SAGRADOS
nome, o pensamento e a realidade.
Como podemos observar, a linguagem apenas No contexto antigo-medieval (ao menos do séc.
representa, de diversas formas e idiomas, as reais III d.C. em diante até o séc. XIII), a hermenêutica se
essências abstraídas pelo intelecto, que são universais e caracterizou como uma exegese, que se propunha a
imutáveis, isto é, são as mesmas para todos. Disto dissolver as incompreensões que surgiam nas Sagradas
decorrem duas conclusões: a) que o conhecimento é da Escrituras e a extirpar aspectos ambíguos de ordem
ordem do conceito e não da linguagem; b) para que a linguístico-semântica, além de apropriar-se dos sentidos
linguagem seja dotada de significado, ela deve estar figurados dos textos, na tentativa de promover
associada a um conceito não-linguístico. orientações morais, bem como conhecer a verdade
revelada por uma interpretação mediada pela instituição
autorizada: a Igreja Católica.
3. PENSAMENTO MEDIEVAL-CRISTÃO Uma primeira referência pode ser encontrada no
autor judeu Fílon de Alexandria (15 a.C.-40 d.C), que
Sobre a questão da linguagem no contexto afirmava que o método de interpretação dos textos
medieval, podemos apresentar duas questões: a) sobre a sagrados precisa considerar dois sentidos:
questão do método exegético com relação à interpretação a) Literal, relacionado à linguagem falada ou
dos textos sagrados; b) sobre a questão filosófica dos escrita no seu significado convencional – isto é, de acordo

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com contexto histórico-cultural da época. organizados de três maneiras:
b) Alegórico, relacionado à natureza espiritual e a) Literal, que se trata do sentido sintático-
moral que o texto deseja exprimir. semântico e histórico das palavras, proveniente da leitura
Confira um trecho significativo na obra da Criação interpretativa dos não-cristãos – fundamentado pela
do Mundo e outros escritos, de Fílon. Observe, nesse razão.
trecho, o esforço do autor em separar significados latos b) Moral, que se refere ao sentido prático
dos significados alegóricos (metafóricos) a respeito de relacionado à conduta do cristão, de acordo com os
elementos presentes na narrativa da criação do mundo. valores previstos nos textos sagrados, própria da leitura
interpretativa dos cristãos iniciados – fundamentado pela
A meu ver, tais considerações (sobre o Jardim do razão, mas também iluminada pela fé.
Éden) parecem supor um filosofar em sentido mais
simbólico que próprio, pois sobre a terra ainda não c) Espiritual, que se trata do sentido religioso
apareceu no passado nenhuma árvore da vida nem das palavras, própria da leitura interpretativa dos cristãos
nenhuma árvore do conhecimento, nem é verossímil
que apareçam no futuro. Parece, antes, que com o – fundamentado pela fé nos dogmas cristãos.
nome de “jardim” Moisés faz alusão ao princípio
hegemônico da alma, repleta de algum modo dessa Observe esses três sentidos interpretativos em
miríade de plantas que se chamam opiniões (dóxai); Orígenes no trecho abaixo, da obra Tratado sobre os
com o nome de árvore da vida, à piedade para com
Deus (teosebia), a maior das virtudes, que torna a Princípios:
alma imortal; e com o nome de “árvore do
conhecimento do bem e do mal”, à prudência
(sophrosyne), virtude com que se julgam as coisas É preciso, portanto, inscrever três vezes na própria
contrárias por natureza (FÍLON, 2015, p. 97). alma os pensamentos das Escrituras santas: quem é
mais simples a fim de que seja edificado pelo sentido
imediato [literal]; o que ascendeu um pouco que seja
Seguindo essa divisão proposta por Fílon (literal e pelo que é como que a alma [moral]; mas o perfeito
alegórico), Orígenes (185-253 d.C), autor cristão, também que seja pela lei espiritual [espiritual] que contém uma
sombra dos bens que hão de vir (ORÍGENES, 2012, p.
admite a distinção de sentidos interpretativos, porém 294).

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palavras. Deve-se conservar essa regra para a
compreensão das divinas Escrituras, ou seja, avaliar o
Essa distinção enquanto metodologia segue, no que é dito não pela baixa qualidade das expressões,
entanto, uma hierarquia de sentidos, que vai do literal até mas pela divindade do espírito santo que lhe inspirou
a redação (ORÍGENES, 2012, p. 316).
o espiritual. Para Braida (2021), por exemplo, esses três
sentidos correspondem a três atitudes básicas do ser No entanto, a preferência pelo sentido espiritual
humano: não desqualifica o sentido literal. Pelo contrário, é pela
valorização da linguagem em suas dimensões sintáticas,
Carnal – a interpretação literal, visível e óbvia para semânticas e históricas que o sentido espiritual se torna
todos, correspondendo aos não doutos.
Pneumática – a interpretação dos tocados pela fé acessível. Essa valorização do literal como instrumento do
cristã e que discernem outros sentidos para além do
espiritual é a diferença entre a exegese de Orígenes e a
literal.
Espiritual – a interpretação propriamente alegórica e de Fílon. Confira o trecho abaixo de Orígenes:
religiosa (BRAIDA, 2021, p. 40).

Dissemos tudo isso para mostrar que a finalidade


Isso demonstra que, embora o sentido literal dos
fixada pelo poder divino que nos deu as santas
textos seja valorizado e considerado como ponto de Escrituras não é compreender somente o que a letra
apresenta, pois, às vezes o que é tomado à letra não
partida fundamental, para Orígenes ele só tem razão de é verdade, e chega a ser incoerente e impossível; mas
existir na medida em que leva para o sentido espiritual. que certas coisas foram entretecidas na trama da
história que aconteceu e da legislação que é útil em
Ou seja, no que diz respeito à interpretação, o espiritual sentido literal. Porém, ninguém suspeite,
generalizando, que dizemos que nada é história porque
se sobrepõe ao sintático-semântico: alguns acontecimentos não aconteceram, e que
nenhuma legislação é para cumprir à letra só porque
algumas determinações não são razoáveis, e são
Há realidades cujo significado não pode ser impossíveis. Pelo contrário: é preciso dizer que a
adequadamente explicado por nenhuma exposição da verdade histórica de alguns fatos é clara (ORÍGENES.
língua humana, mas que são afirmadas mais por um 2012, p. 302).
ato de simples inteligência do que pelas qualidades das

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Após o séc. IV, com as contribuições de Santo quadripartite com diferentes termos. Enquanto Costa e
Agostinho e João Cassiano (360-435 d.C.), esse modelo Camargo (2017) e Braida (2021) apresentam tais sentidos
Orígenes foi organizado para uma forma quadripartite, como decorrentes da tradição medieval, Beranger (2012),
exposta da seguinte maneira: no vídeo História da Hermenêutica: a interpretação na
1) Literal ou histórico: sentido associado ao Idade Média, afirma ser uma organização de Santo
aspecto lato das palavras e de acordo com as Agostinho. Vejamos, no quadro abaixo, como esses
circunstâncias históricas do autor. Trata-se de um sentido termos foram apresentados e de que maneira eles podem
mais óbvio e evidente. ser organizados a partir dessa metodologia exegética:
2) Moral: sentido associado à orientação da
conduta do cristão. Ou seja, sentido que direciona o agir Sentido Caracterização

das pessoas e aponta para aquilo que se deve fazer. Literal ou


Costa e Camargo (2017) utilizam termo “literal”;
já Braida (2021) usa a palavra “histórico”. Evaldo
Histórico
3) Alegórico: sentido associado às metáforas Beranger (2012), prefere utilizar os dois termos.

presentes nos textos sagrados, que apontam para aquilo Enquanto Costa e Camargo (2017) e Braida
(2021) utilizam o termo “moral”, Beranger (2012)
que o cristão deve crer. Trata-se de um sentido mais usa a palavra “tipológico”. Mas ambos termos
possuem o mesmo sentido: tipológico vem de
profundo. Moral ou “tipo”, ou seja, uma referência ideal para algo,
Tipológico um princípio moral a ser praticado ou seguido (no
4) Escatológico ou anagógico: sentido caso, a figura de Cristo), uma exortação quanto
associado à preparação do cristão, sob certas condições, à conduta, as regras para o dia a dia (o que
fazer). Outros autores também usam o termo
para as coisas futuras que ele deve esperar. “tropológico” (LOPES, 2004).
Alegórico Beranger (2012) separa em dois sentidos
No material sugerido no Plano de Ensino e Guia de
e/ou distintos (analógico e alegórico) aquilo que,
estudos (PEGE)6, os autores apresentam essa divisão analógico segundo Costa e Camargo (2017) e Braida

InterSaberes, 2017; BRAIDA, C. R. Hermenêutica. Batatais:


6 Claretiano, 2021; BERANGER, Evaldo. História da Hermenêutica:
Dos materiais apresentados sobre o assunto, estamos nos referindo:
a interpretação na Idade Média, 2012. (Vídeo YouTube)
COSTA, L. S.; CAMARGO, L. N. Filosofia hermenêutica. Curitiba:

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(2021), constituem um único sentido (alegórico). 5) o pressuposto de que o conhecimento da coisa ou
Portanto, alegórico e analógico, embora assunto em questão é fator decisivo para a
contenham algumas diferenças, dizem respeito a compreensão (BRAIDA, 2021, p. 44).
uma questão similar: volta-se para o sentido
místico das Sagradas Escrituras, apresentando
um dogma ou crença pela qual os escritos Como é possível verificar, em Santo Agostinho já
ganham novo sentido para a vida do indivíduo.
estão presentes algumas questões hermenêuticas
Enquanto Costa e Camargo (2017) usam a
palavra escatológico, Braida (2021) utiliza o fundamentais, que ainda continuam válidas,
Escatológico
termo “anagógico”. Ambos se referem à mesma
ou Anagógico
coisa: a preparação do cristão para os eventos principalmente no que diz respeito a fatores e critérios que
futuros (salvação da alma). devem ser levados em consideração na ação de interpretar
e compreender.
Agostinho de Hipona, por exemplo, um dos
filósofos mais expressivos deste período, apresenta na
obra A Doutrina Cristã os pressupostos metodológicos de
3.2 A LINGUAGEM E A QUESTÃO DOS “UNIVERSAIS”
uma exegese, lançando as bases para as teorias
hermenêuticas futuras. Dentre tais pressupostos, de
O que são os universais? O universal é o conceito,
acordo com Braida (2021, p. 44) podemos encontrar:
a ideia, a essência comum a todas as coisas. Por exemplo,
o conceito de ser humano, animal, casa, bola, cadeira,
1) o fator da intermediação linguística e da diversidade
das línguas; círculo. Desde o século XI até o XIV, uma polêmica marcou
2) o fator da equivocidade de sentido das palavras e as discussões sobre a questão dos universais. Em outras
dos discursos;
3) o fator do distanciamento histórico gerador de mal- palavras: os gêneros e as espécies têm existência
entendidos;
4) o pressuposto da dependência das partes em separada dos objetos sensíveis? As espécies (como o cão)
relação ao contexto ou todo do texto quanto à e os gêneros (como os animais) teriam existência real?
determinação de sentido;
Seriam realidades, ideias ou apenas palavras? As

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principais soluções apresentadas são: a) realismo; b) reação à filosofia aristotélico-tomista.
nominalismo; c) realismo moderado. As divergências sobre os universais podem ser
Para os realistas, como Santo Anselmo (séc. XI) analisadas a partir das contradições e fissuras que se
e Guilherme de Champeaux (séc. XII), o universal tem instalaram na compreensão mística do mundo medieval.
realidade objetiva (são res, ou seja, “coisa”). Essa posição Sob esse aspecto, os realistas são os partidários da
é claramente influenciada pela teoria das ideias de Platão. tradição, e como tais valorizavam o universal, a
O realismo moderado trata-se de uma posição autoridade, a verdade eterna representada pela fé. Para
intermediária entre “realismo exagerado” e os nominalistas, o individual é mais real, o que indica o
“nominalismo”, representado por Pedro Abelardo (séc. deslocamento do critério de verdade da fé e da autoridade
XII) e Tomás de Aquino (séc. XIII). Segundo Pedro para a razão humana.
Abelardo, os universais são conceitos ou entidades
mentais que existem somente no espírito. Para Tomás de
Aquino, os universais só existem formalmente no espírito, 3.3 O NOMINALISMO MEDIEVAL DE OCKHAM
embora tenham fundamento nas coisas. Esta posição é
claramente influenciada pela teoria do significado de Com o nominalismo de Ockham, a metafísica
Aristóteles. também sofre mudanças estruturais: através de uma
Para os nominalistas, como Roscelino (séc. XI), crítica ácida às contradições da metafísica tradicional,
o universal é apenas o que é expresso em um nome; ou promovem uma dissolução das realidades ontológicas a
seja, os universais são palavras, sem nenhuma realidade nomes. O nominalismo, retomando as teses de
específica correspondente. A tendência nominalista Aristóteles7, substitui as “formas das coisas” (formae
reapareceu com algumas nuanças diferentes no século XIV
com Guilherme de Ockam, franciscano que representa a 7
No livro Da Interpretação (presente no Organon), Aristóteles afirma
que a linguagem apenas simboliza os conceitos do intelecto (ou

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rerum) pelos “signos das coisas” (signa rerum): como que problema ontológico quanto à explicação sobre a natureza
antecipando a racionalidade moderna, as ideias destas entidades no âmbito linguístico. Logo, o vocábulo
metafísicas não passam de sinais que o próprio sujeito signo não é referência ontológica de nada:
cognoscente atribui às coisas.
Segundo Ockham, na sua obra Suma Lógica, Toma-se o signo por aquilo que faz algo vir à cognição
e é destinado a supor por aquilo (sc. ‘natum est pro illo
existem dois tipos de linguagem: uma convencional (oral supponere’) ou a ser acrescentado a tal na proposição
e escrita) e outra puramente conceitual; assim, enquanto – são desse modo os sincategoremas e os verbos e
aquelas partes da oração que não têm significação
os termos escritos e falados têm uma relação convencional finita; ou que é destinado a ser composto de tais, deste
modo é a oração. E tomando assim o vocábulo ‘signo’,
e institucionalizada com os objetos no mundo, os termos a expressão (vox) não é signo natural de nada
mentais (conceitos) têm uma relação natural com os (OCKHAM, 1999, p. 120).

mesmos objetos no mundo:

4. CRÍTICA AO REALISMO ANTIGO (PLATÃO E


Entre esses termos [escritos e mentais], porém,
encontram-se algumas diferenças. Uma é que o ARISTÓTELES) E MEDIEVAL
conceito ou afecção da alma significa naturalmente
tudo o que significa, já o termo falado ou escrito nada
significa senão de acordo com a instituição voluntária Segundo Oliveira (2006), as reflexões linguísticas
(OCKHAM, 1999, p. 120).
de Platão e Aristóteles desdobram-se em pressupostos

Por isso, supor o signo como nomes gerais muito sérios, que condicionou toda a tradição

correspondentes a entidades ontológicas autônomas e epistemológica da ontologia e, posteriormente, da filosofia

abstratas é um erro, pois com isso cria-se um novo do sujeito, até a sua passagem ao paradigma da
linguagem. O primeiro deles trata-se do papel
afecções da alma), que, por sua vez, são abstrações imediatas (e não
linguísticas!) que o intelecto faz das essências das coisas contidas na “secundário” e “instrumental” da linguagem, cuja função
própria realidade. Cf. ARISTÓTELES, 2005, p. 81.
é apenas a designação da essência desvelada pelo
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intelecto por meio dos sons. Neste caso, a linguagem humana do real, mas é um instrumento posterior,
tendo uma função designativa [...] O pensar é uma
também está fora da constituição do conhecimento8. atividade essencialmente não-linguística e, sendo
assim, a relação da linguagem para o real é secundária
(OLIVERA, 2006, p. 22).
A linguagem é reduzida a um puro instrumento, e o
conhecimento do real se faz independente dela. [...] A
linguagem não é, pois, constitutiva da experiência O segundo pressuposto, como consequência do
primeiro, decorre do fato de que o conhecimento passa a
8
Pierre Aubenque, nesse sentido, tenta encontrar interpretações
alternativas ao pensamento de Aristóteles, em especial, na sua ser concebido como algo pertencente à ordem do conceito
concepção de linguagem. Para o autor, Aristóteles ficou preso sim na
e não da linguagem, que para ser dotada de significado,
tradição secundária e instrumental da linguagem ao afirmar a
ontologia como condição da comunicação humana (pois, sem deve estar associada a uma essência não-linguística.
essência, não há o que ser comunicado); porém, interpretações mais
atentas dos textos de Aristóteles indicam que sua teoria da linguagem
poderia ter tomado outra direção: se a ontologia é condição a priori
da linguagem, então, o seu inverso também é legítimo, isto é, ao Aqui está a tese fundamental de Platão e de toda
abstrair a linguagem torna-se impossível realizar a ontologia. Para filosofia do Ocidente: ele pretende, com essa discussão
Aubenque, essa revolucionária interpretação da teoria da linguagem das diferentes teorias vigentes de seu tempo, mostrar
aristotélica apresenta significados que só foram descobertos após a que na linguagem não se atinge a verdadeira realidade
guinada linguística; se ao invés da escolha ontológica, Aristóteles e que o real só é conhecido verdadeiramente em si sem
tivesse trilhado o caminho da linguagem como constitutivo ao palavras, isto é, sem a mediação linguística (OLIVEIRA,
conhecimento, com toda certeza, a história da filosofia seria outra. “La 2006, p. 22).
teoría aristotélica del lenguaje presupone, pues, una ontología. Ahora
bien: inversamente, la ontología no puede hacer abstracción del
lenguaje, y ello no sólo por la razón general de que toda ciencia Com isso, a filosofia da linguagem enveredou-se
necesita de palabras para expresarse, sino por una razón que le es
propia: aquí, el lenguaje no es sólo necesario para la expresión del para uma característica determinista na história ocidental:
objeto, sino también para su constitución. Mientras que el discurso
encuentra su objeto bajo el aspecto de tal o cual ser determinado que a função instrumentalista da linguagem. Excluída como
existe independientemente de su expresión, el hombre no habría
pensado jamás en plantear la existencia del ser en cuanto ser, sino parte constituinte do pensamento, a linguagem seria
como horizonte siempre presupuesto de la comunicación. Si el
discurso no mantiene ya, como en los sofistas, una relación inmediata
apenas um instrumento de revelação e exposição (por
con el ser, al menos – y por esa misma razón – es mediación obligada meio dos sons) daquilo que o pensamento conseguiu
hacia el ser en cuanto ser, y ocasión única de su surgimiento”
(AUBENQUE, 1981, 129-130). abstrair da essência das coisas (e sem a mediação

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linguística). Esta tradição semântica da linguagem FÍLON de Alexandria. Da criação do mundo e outros
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perdurou até o pensamento de Frege, Russell e o primeiro
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