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CRÁTILO – UMA POÉTICA DA DIALÉTICA

• O diálogo Crátilo tematiza a “correção dos nomes”, isto é, se os nomes das coisas têm
ou não relação com as coisas nomeadas.
• Crátilo foi um seguidor do filósofo pré-socrático Heráclito e surge como personagem
neste diálogo. Hermógenes é discípulo de Sócrates, estrela do diálogo.
• A filosofia de Heráclito foi uma referência importante na formação de Platão, e este
diálogo é uma síntese de homenagem e recusa a certas ideias centrais deste filósofo.
• O diálogo apresenta três argumentos maiores, cada um dos quais subsumindo
argumentos relativos a dificuldades e paradoxos internos a eles.
Quais são?
1. As palavras que usamos para apontar as coisas são símbolos que nada tem a ver
com as coisas mesmas, de modo que o uso da linguagem se fundamenta na
convenção. Significa dizer que usamos certa combinação de sons (“xí-ca-ra”) para
apontar determinado objeto (qualquer xícara) por hábito. A linguagem é um
conjunto de símbolos aleatórios criados pelos homens para mostrar uns aos outros
determinadas coisas. O fato de diferentes línguas mobilizarem diferentes sons
para apontar certo objeto (chapéu/hat/chapêau, etc.) é uma prova de que as
palavras não têm relação direta com as coisas que nomeiam.

2. As palavras relativas às coisas nomeadas são constituídas com base no


conhecimento que temos das próprias coisas. Quando analisamos o significado de
cada palavra, descobrimos na formação dos temos a essência das coisas
nomeadas. EXERCÍCIOS ETIMOLÓGICOS (etimologia = Estudo da origem, formação
e evolução das palavras e da construção de seus significados a partir dos
elementos que as compõem) CONSTITUEM várias provas da relação intrínseca
entre os nomes/símbolos e as coisas em si.

Dificuldade: mas e os termos primitivos? Aqueles a partir dos quais a maior parte
das palavras que usamos é formada? Como estabelecer uma relação entre esses
termos primários e a essência das coisas? SONS que representamos visualmente
em LETRAS são tentativas de imitar o princípio das coisas; os componentes da
realidade.
Na argumentação de Sócrates, a realidade é concebida segundo a teoria de
Heráclito (apresentada na aula 2 sobre este diálogo), portanto, constituída a) pelo
movimento eterno; b) eterno transformar-se das coisas / o perpétuo devir; c) o
fogo como elemento primário de todas as coisas que existem; d) a unidade dos
contrários sendo o princípio físico capaz de explicar a estabilidade provisória das
coisas, isto é, o fato de existirem e persistirem, mesmo em constante
transformação. O fogo é o componente natural associado à harmonia porque,
também ele, é fruto de contrários: sua persistência se alimenta da destruição do
comburente, nas palavras de Heráclito: “fome e saciedade”, fome das coisas, que
faz as coisas existirem; e saciedade das coisas, que as destrói e faz perecer (REALE,
G., História da filosofia grega e romana, vol. 1, p. 68).
Por isso, vemos Sócrates dizer que o “devir”, o “fluxo”, é representado pelo
“rhoe”; o mover-se, pela combinação ievai, e argumentos do gênero. O alfabeto
grego é vinculado aos princípios da realidade tal como Heráclito os concebeu.
“Eles agarram ou não o ser ser pelas letras e sílabas, de modo a imitar a sua
essência”. (424b). Cada sinal elementar corresponderia a um dos seres
elementares (427c).

Finalmente, define-se o NOME como “uma indicação da coisa pelas sílabas e pelas
letras”. (433a)
MAS, Sócrates traz à tona o FATO de que uma frase nem sempre corresponde
àquilo que ela indica. Posso dizer “Oi, Francisco”, confundindo-o com José. Esse
tipo de desvinculação entre as palavras empregadas por nós e as coisas que
apontamos com elas é um indicativo da INCERTEZA quanto à relação essencial
entre NOME e COISA.

3. Os nomes são imitações pálidas das coisas. As coisas em si são NECESSARIAMENTE


diferentes, aliás, de suas representações. Se não o fossem, não seríamos capazes
de distinguir o nome “boi” do ser vivo “boi”. ADEMAIS, há retratos das coisas mais
precisos e conformes às coisas representadas; e retratos malfeitos das tais coisas
representadas. PORTANTO, ainda que haja relação entre os nomes e as coisas que
esses nomes indicam; ainda que se possa, como revelam os exercícios
etimológicos, estabelecer relações entre o ser das coisas e seus nomes, ainda
assim O CONHECIMENTO DA ESSÊNCIA DAS COISAS pode ser falso, equivocado, de
modo que os nomes criados com o propósito de espelhar a essência das coisas,
por força da verdade, podem manter-se em uso por hábito, sem SEREM CAPAZES
de exprimir a essência das coisas, valendo, então, como símbolos. Por essa razão,
aliás, é correto defender que o uso da linguagem se fundamenta na convenção,
como Hermógenes disse lá no comecinho do diálogo.

Estruturalmente, o terceiro grande argumento sobre a correção dos nomes unifica os


argumentos anteriores, que são contrários entre si. A tese platônica (que vimos no
Fédon) da diferença irreconciliável entre REALIDADE DAS COISAS e MUNDO SENSÍVEL
subsume os argumentos de que 1) usamos os nomes por hábito, após termos
convencionado, combinado usar tais sons para nos referimos a tal e tal coisa; 2)
notamos certas relações entre os componentes das palavras e o significado das coisas
que indicam. A linguagem só pode ser convencional porque a essência das coisas é
diferente das representações sensíveis das coisas, e a linguagem é uma forma
sensível de exprimir a essência das coisas, de natureza suprassensível e que só pode
ser conhecida pela inteligência, jamais pela análise etimológica dos termos.

Esquema do diálogo
I. Introdução. Apresentação do problema [383A – 384 E]
II. Primeira parte. Defesa da exatidão dos nomes por natureza [385-391B]
1. Nexo entre atribuição subjetiva [de significado] e relativismo
2. Relação entre atos justos e atribuição correta dos nomes
3. O nome como instrumento da denominação
4. Relação entre artífices de várias artes e artífices dos nomes
5. O artífice constrói os próprios instrumentos visando a idéia
6. A avaliação da obra do legislador dos nomes cabe ao dialético
7. Conclusão da discussão sobre a exatidão dos nomes por natureza.

III. Segunda parte. Correlação entre nomes e significados universais [391b


– 396 D]
1. Segundo os poetas, nomes distintos são atribuídos à proporção da
sabedoria daquele que os atribui.
2. O nome do indivíduo se conforma àquele da forma.
3. Diferenças de som no nome não alteram a identidade de significado.
4. Também a atribuição dos nomes próprios de pessoas é determinada
pela natureza e forma.

IV. Terceira parte. Explicação etimológica dos nomes por Sócrates [396D –
421C]
1. Théos
2. Daimon
3. Heros
4. Anthropos
5. Psyche
6. Soma
7. Invocação aos deuses
8. Hestia
9. Cronos e Rhéa
10. Oceano e Tétis
11. Posseidon, Plutão e Hades
12. Deméter, Hera e Perséfone
13. Apolo
14. As Musas, leto e Ártemis
15. Dionísio e Afrodite
16. Palas Atena
17. Hefesto
18. Ares
19. Hermes e Íris
20. Pan
21. Hélio, o sol
22. Selene, a lua
23. Meses e astros
24. Fogo e água
25. Ar, éter e terra
26. Estações e anos
27. Reflexões metodológicas
28. Valores exprimindo a consciência
29. Bem e justiça
30. O que se conecta ao feminino e ao masculino
31. Arte e funcionalidade
32. Virtude e vício
33. Belo e feio
34. Termos respectivos ao útil e ao vantajoso
35. Termos respectivos ao não-útil e ao nocivo
36. O que liga e o que obedece
37. Nomes de afetos, impulsos, sentimentos, moções voluntárias
38. Interpretação etimológica das categorias fundamentais

V. Quarta Parte. Redução dos nomes e coisas aos elementos primários (da
natureza)
1. Como fundar a exatidão dos primeiros nomes
2. A mimese dos nomes
3. Análise da língua e dos seres: correspondência de estrutura entre
língua e realidade
4. Dificuldade da redução dos elementos

VI. Quinta Parte. Defesa da exatidão dos nomes por convenção [427D – 435
D]
1. Esclarecimentos metodológicos
2. Tomada de posição de Crátilo a favor da exatidão dos nomes por
natureza
3. Resposta de Sócrates: erros na atribuição dos nomes
4. Diferenças na imitação
5. Relação entre nome e tipos de objeto
6. Validade relativa da convenção e do hábito

VII. Sexta parte. Os nomes não são um fundamento seguro para o


conhecimento do ser (da essência das coisas).
1. Possibilidade de erros do artífice dos nomes
2. A concordância entre etimologias não garante a correção dos nomes
3. O artífice dos nomes deve ter conhecido, primeiro, as coisas de um
modo diferente do nome
4. O melhor modo para conhecer as coisas é o direto, sem recorrer aos
nomes.

VIII. Conclusão. Visão de Sócrates das ideias como superação do


Heraclitismo e fundamento do conhecimento.
Naturalismo de Heráclito e Metafísica Platônica

As origens da filosofia remontam aos jônicos anteriores a Sócrates, que se distanciam das
formulações poéticas de representação do real de Hesíodo e Homero. Considerando as
características distintivas da Filosofia:

a) A representação da totalidade do real


b) O método de explicação racional
c) O puro interesse teórico

É notável que apenas com os jônicos o método de explicação racional entra em cena. O objeto
de sua investigação é o cosmo, a realidade, e todos eles se aproximam na medida em que
procuram individuar o primeiro princípio impricipiado, a fonte absoluta de tudo. (Reale, p. 43)

Das diversas escolas jônicas, para compreender os exercícios etimológicas de Sócrates no


diálogo Crátilo, é imprescindível conhecer os Milesianos e Heráclito de Éfeso.

Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes já compreendem princípio de todas as coisas


como uma realidade que permanece idêntica na transformação de suas afecções, uma
realidade que continua a existir intransformada.

Para Tales, o princípio de todas as coisas é a água, componente de que e em que subsistem.

Anaximandro, primeiro a usar o termo princípio (arché) define-o como o infinito ou ilimitado.
Apeiron, aquilo que não tem limites internos nem externos. Infinito espacial e indeterminado,
em termos de qualidade.

O aforismo atribuído a Tales “tudo está cheio de deuses”, que persiste em Anaximandro,
evidencia que os milesianos identificavam o princípio de todas as coisas com a divindade, de
modo que nada tinham de materialistas.

Anaxímenes identifica o princípio de Anaximandro, seu professor, com o ar. Por quê?

“O ar é concebido por Anaximandro como naturalmente dotado de movimento; e, pela sua


própria natureza mobilíssima, bem se presta (muito melhor que o infinito anaximandriano) a
ser concebido como em perene movimento.

Por que processo? Condensação e rarefação. A rarefação do ar dá origem ao fogo, a


condensação dá origem à água e depois à terra.

“Anaxímenes, exatamente pela introdução do processo de condensação e rarefação, fornece a


causa dinâmica que faz derivar do princípio todas as coisas, da qual Tales não tinha ainda
falado, e Anaximandro só soube determinar inspirando-se em concepções órficas; ele fornece,
portanto, uma causa que está em perfeita harmonia com o princípio, tornando assim o
naturalismo jônico plenamente coerente com as próprias premissas.” (Reale, p. 62)

HERÁCLITO DE ÉFESO

Ponto que une os milesianos: Notaram o dinamismo universal da realidade, “o dinamismo das
coisas que nascem e perecem, o dinamismo de todo o cosmo e dos cosmos que nascem e
perecem, o dinamismo do próprio princípio que dá origem às várias coisas porque dotado de
perene movimento”.
O passo de Heráclito é tematizar e explicitar esse aspecto da realidade, e refletir sobre suas
implicações.

Imagem clássica de Heráclito: O FLUIR DE UM RIO

De quem desce ao mesmo rio vêm ao encontro águas sempre novas

Não se pode descer duas vezes ao mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância
mortal no mesmo estado, mas por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança,
dispersa-se e recolhe-se, vem e vai.

Descemos e não descemos ao mesmo rio, nós somos e não somos.

SÓ O DEVIR DAS COISAS É PERMANENTE

“É este o aspecto da doutrina de Heráclito que se tornou mais célebre, logo fixado na fórmula
“tudo flui” (panta rhéi). E é também o aspecto que os seguidores destacaram, levando-o a
consequências extremas. (Crátilo, por exemplo, tirou como consequência que, se tudo flui
assim velozmente, é impossível qualquer conhecimento das coisas, e “acabou se
convencendo” – diz Aristóteles – de que não devia nem sequer falar, e limitava-se a mover
simplesmente o dedo, reprovando até mesmo Heráclito por ter dito que não é possível
banhar-se duas vezes nop mesmo rio: Crátilo, de fato, pensava que nem mesmo uma vez o
seria possível” (Aristóteles, Metafísica Livro Gama).

Heráclito, contudo, parte da constatação do devir universal para inferir algo mais agudo e
profundo:

A síntese dos opostos

Devir= conflito de contrários: “a guerra é mãe de todas as coisas e de todas rainha”.

O universal devir, portanto, revela-se como harmonia ou síntese de contrários, conciliação dos
beligerantes:

Fragmento 8: O que é oposição se concilia e, das coisas diferentes, nasce a harmonia mais
bela, e tudo se gera por via de contraste

Imagem do arco e da lira

A doença torna a saúde doce, a fome torna doce a saciedade e a fadiga torna doce o repouso.

Comum no círculo é o princípio e o fim.

De todas as coisas o um e do um todas as coisas.

“As coisas só tem realidade enquanto devem, e se o devir é dado pelos opostos que se
contrastam e, contrastando-se, pacificam-se em superior harmonia, então é claro que na
síntese dos opostos está o princípio que explica toda a realidade, e é evidente que exatamente
nisso consiste Deus ou o divino:

O Deus é dia-noite, é inverno-verão, é guerra-paz, saciedade-fome.

Componente físico originário: o fogo

Noção de alma vinculada ao pensamento órfico:

Imortais mortais, mortais imortais, vivendo a morte daqueles, morrendo a vida daqueles.
Crença órfica segundo a qual a vida do corpo é mortificação da alma e a morte do corpo é vida
da alma. Ainda, a metempsicose:

Depois da morte aguardam os homens coisas que estes não esperam e nem sequer imaginam.

Fragmento 85: difícil é a luta contra o desejo, pois o que este quer, compra-o a preço da alma

“É um pensamento no qual quase se adivinha o núcleo da ética ascética do Fédon: saciar o


corpo significa perder a alma”. (Reale, p. 71)

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