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EUTÍFRON – O CEGO QUE VENDIA VITRAIS

Resumo do diálogo
Sócrates encontra Eutífron, um “especialista” em assuntos religiosos, no pórtico do arconte-rei
(membro da assembleia responsável pelo culto religioso e por receber as denúncias de infrações
penais), conta ao jovem que está ali por ter sido acusado e ouve de seu interlocutor que, por
sua vez, está ali para denunciar seu pai por homicídio. Sócrates inicia uma conversa com Eutífron
a pretexto de com ele aprender tudo sobre religião, de modo a dirigir esse aprendizado a
Meleto, durante seu julgamento. Sócrates pede, portanto, que Eutífron lhe ensine a essência do
piedoso/religioso e do impiedoso/irreligioso. Na prática, Sócrates pergunta e o jovem responde.
Do início ao fim, ele demonstra não ser capaz de definir a ideia em jogo, insistindo em definições
que conduzem a contradições evidentes. Eutífron não consegue ESTABILIZAR o que chama de
“ímpio” ou “piedoso”, sendo incapaz de fornecer a Sócrates o conceito dessas coisas. Chega à
conclusão que não tem certeza sobre a essência da piedade e da impiedade, deixando o pórtico
– e Sócrates na mão.

Esquema da enunciação do problema no diálogo:


1. O que conduz Eutífron ao tribunal? EXPIAÇÃO POR MEIO DA ACUSAÇÃO. O jovem julga
que a testemunha de um crime, para livrar-se da culpa pelo crime/injustiça, deve
apontar à Justiça/Cidade o autor do crime, provando assim que não compactua com a
injustiça em questão. p. 82 do pdf ou [4c]
2. Algumas pessoas julgam que Eutífron age mal, pois o filho processar o próprio pai pelo
homicídio (ademais homicídio culposo; pois o pai matou de modo colateral, sem a
expressa intenção) de um assassino seria ímpio. Este Dilema é entendido por Eutífron
como resultado de um “conhecimento defeituoso de como se posiciona o divino a
respeito do piedoso e do ímpio”. p. 82 do pdf ou [4e]
3. PROBLEMA O que é o piedoso e o impiedoso? O que é a irreligião?
Problema paralelo: “Não temes que TAMBÉM estejas praticando uma ação ímpia ao
levar o pai ao tribunal?”
Convicção inicial: Eutífron afirma não temer, uma vez que conhece todos esses assuntos
com precisão.
Convicção final: Abandona a discussão com Sócrates sem demonstrar o que afirmava
saber.
Forma do diálogo
Sócrates interroga alguém que se diz especialista em determinado assunto sobre esse mesmo
assunto, conduzindo o interlocutor a perceber que desconhece o assunto em que se dizia perito.

Relação deste diálogo com a Apologia (diálogo seguinte)


Nesse diálogo, vemos o tipo de conversa que Sócrates tinha com as pessoas em Atenas; de modo
que essa obra é um testemunho de defesa em favor de Sócrates antes de seu julgamento.

Componentes do diálogo importantes para a leitura transversal de Platão

1. A ironia é o recurso estilístico predominante neste diálogo. Ironia, ou antífrase, é uma


figura de linguagem utilizada para dizer-se algo por meio de palavras ou expressões
que remetem propositalmente ao oposto do que se quis dizer.
Exemplos: descrição inicial de Meleto: p. 79 [2c-d] “... E é possível que ele seja um sábio
que, depois de observar a minha ignorância e de pensar que eu estava corrompendo os
de sua idade, apresenta-se diante da cidade para acusar-me como que diante de sua
mãe...” Palavra sábio; Coisa descrita imaturidade
A ironia DE Sócrates com relação à sabedoria de Meleto é repetida, como se fosse um
refrão, na atitude do próprio Eutífron com relação ao seu pai. Acusa-o por medo de ser
considerado cúmplice de um crime cuja gravidade é claramente contestável. Age
apressadamente, sem examinar os fatos de modo acurado, nem perguntar-se o quanto
suas impressões têm base na realidade do mundo. A representação da tolice de Eutífron
é uma pintura indireta de Meleto. Assim como o assassinato imaginado por Eutífron não
foi exatamente um assassinato; a irreligiosidade de que Meleto acusa Sócrates é na
verdade a busca pela compreensão CORRETA da essência da religião.
Todo o diálogo é a expressão dessa figura de linguagem que permeia a obra platônica.
Exemplo da inconsistência pessoal de Eutífron: Sócrates diz que o desfecho de seu
processo é uma incógnita, exceto para os adivinhos, classe à qual pertence Eutífron,
conforme ele próprio se descreve no início do diálogo[p.80/3c]. A essa frase, Eutífron
rebate: “Talvez o resultado seja irrelevante, Sócrates; mas tu pelejarás com tua queixa
sensatamente, e penso que eu também com a minha”. p. 81 [3e] O resultado não foi
irrelevante; foi a pena capital. Sócrates pelejou com a queixa de Meleto sensatamente,
mas Eutífron abandonou o pórtico sem pelejar com a sua. Quando se conhece a história
de Sócrates, e a maior parte dos leitores conhece, o efeito desse tipo de frase é sempre
cômico.
Outro exemplo de comicidade anterior: “... ser zombado por alguém talvez não
signifique nada. Pois na verdade, como me parece, aos atenienses pouco importa se eles
consideram que alguém seja terrivelmente hábil, desde que ele não se ponha a ensinar
a própria sabedoria.” [80/3d]
Outro exemplo: Sobre de que modo se valeria dos ensinamentos obtidos de Eutífron no
tribunal, diz Sócrates: “Se tu, Meleto”, eu diria, “concordas que Eutífron é um sábio em
assuntos dessa natureza, considera que também meu pensamento é correto e não me
leves ao tribunal! Se não, lança queixa contra ele, que é meu mestre, e não contra mim,
pois ele é quem corrompe os mais velhos, tanto a mim quanto ao pai dele: a mim
ensinando, e a ele repreendendo e punindo”. p. 83 [5b] Em seguida, Eutífron ainda se
gaba de que, caso Meleto tentasse denunciá-lo, descobriria seu ponto fraco e faria dele
o alvo da discussão no tribunal.
O ponto alto da ironia socrática, contudo, ocorre quando Meleto se compara aos
deuses, diante da desaprovação pública por processar seu pai, uma vez que Zeus, o
melhor e mais justo dos deuses, amarrou o próprio pai porque engolia os filhos
injustamente; e Cronos, pai de Zeus, já havia castrado seu pai para libertar seus irmãos
presos no ventre da mãe. Sócrates pergunta a Eutífron se ele acha que esses mitos
ocorreram ipsis literis.
2. Definição de forma/ideia/universal: A essência do religioso/piedoso deve se aplicar ao
homicídio e às demais coisas, para de fato capturar o ser da piedade.
O PIEDOSO EM SI É IGUAL A SI MESMO EM TODA AÇÃO.
O ÍMPIO É O CONTRÁRIO DO PIEDOSO
“E não tem uma única ideia concernente à impiedade tudo aquilo que vier a ser ímpio?”

Piedoso é processar quem comete injustiça


Os próprios deuses castigaram seus pais. Zeus/Cronos/Urano-Céu

ERRO 1 – redução. Descreve o PARTICULAR como GERAL. Circunscreve a essência da


piedade a um procedimento específico e próprio à esfera jurídica. São os particulares
que ESTÃO CONTIDOS NO GERAL.

Sócrates: “Ensina-me qual é precisamente essa ideia para que, observando-a e


utilizando-me dela COMO PARADIGMA, eu diga que é piedoso o que tu fizeres, ou
qualquer outra pessoa, conforme esse padrão, e caso contrário, diga que não é”. [p.
86/6e]. A definição correta dos termos coincide com a busca de parâmetros estáveis.
Como as impressões são fugidias, é o discurso, que se perde em digressões e não
estabiliza a coisa pensada ou investigada. O diálogo repete o movimento do
pensamento em busca de estabilizar o conceito. É uma captura.
O método matemático resolve divergências. A solução de um problema coincide com a
pacificação de uma discussão. O método é o instrumento utilizado. Aqui, não diz a
Eutífron que é a maiêutica, mas o emprega.

Piedoso é o que é caro aos deuses. O que os deuses odeiam é ímpio


Eutífron pode ser caro a Zeus e odiado por Cronos, já que os deuses divergem

O que é piedoso: é piedoso porque é amado pelos deuses; ou é amado pelos deuses
porque é piedoso?
A essência de algo não pode ser algo que ela sofre, que lhe ocorre. Ser amado pelos
deuses é uma afecção; algo secundário e circunstancial, não uma propriedade, muito
menos a essência de algo.

Sócrates demonstra esse ponto a Eutífron enroscando-o num jogo de palavras e frases
que imita sua confusão mental e sua falta de clareza quanto às noções que julgava
conhecer perfeitamente. E volta a indaga-lo: O que é o piedoso e o ímpio?

“Sócrates, eu não tenho como te dizer o que penso, pois de algum modo o que
estabelecemos sempre dá voltas em torno de nós e nunca deseja permanecer onde o
fixamos”.

Compara Sócrates a Dédalo, o criador do labirinto de Creta, onde o rei Minos escondia
o MInotauro.
Sócrates diz ter a sabedoria de Dédalo e os bens de Tântalo.
1. Capacidade de enredar os interlocutores em sua própria ignorância, revelando-lhes
o quão perdido estão;
2. Impossibilidade de alcançar o que mais almeja: a sabedoria

ERRO 2 – Conduz ao início

Todo piedoso é justo

Que parte do justo é o piedoso?


O cuidado dos deuses

Cuidar dos deuses é torna-los melhor. Isso é possível?

Não.

O piedoso e a piedade consistem no saber fazer sacrifícios e orações

Piedade=arte comercial entre deuses e homens

Piedoso é o que é caro aos deuses.

Interpretação ampla, com base no conhecimento de outros diálogos (leitura transversal)

 Eutífron está para a cidade de Atenas como seu pai está para Sócrates;
A cidade, perdida no labirinto de sua ignorância, condena Sócrates à morte por ter
certeza de que ele cometeu um crime, ainda que não seja capaz de explicar que crime
seja esse (como Eutífron, que mesmo agindo para fazer jus ao que julga ser piedoso, é
incapaz de explicar o que seja a piedade)
 Eutífron e seu dilema são metáforas para o problema de fundo do diálogo:
Uma inteligência confusa está fadada a agir de modo injusto (ou ímpio)? É possível agir
bem sem o conhecimento correto da justiça, da piedade, da religião?

Bibliografia

Platão. Diálogos III. Edipro

Stenzel, J. Platão Educador. Editora Kirion

https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-12052014-
102643/publico/2014_FranciscoDeAssisNogueiraBarros_VCorr.pdf

*MITOLOGIA GREGA

Thomas Bulfinch. O livro de ouro da mitologia: Histórias de deuses e heróis. Harper Collins
Brasil

Pierre Grimal. Mitologia Grega. L&PM Pockets

P. Commelin. Mitologia grega e romana. Martins Fontes

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