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A reminiscência no Mênon

Sílvia Lemes

É no diálogo Mênon que Platão traz pela primeira vez a conhecida “teoria da
reminiscência”, tendo como pano de fundo a busca pela definição da virtude. A
reminiscência retornará em outros diálogos, como no Fédon, com a questão da
imortalidade da alma; e no Fedro, com a experiência do amor, do discurso retórico e da
dialética.

O diálogo inicia com Mênon indagando Sócrates se a virtude é coisa que se


ensina (70a1-4). Sócrates, como de costume, não responde, mas começa a conduzir a
conversa para o lugar comum de seu método maiêutico. Sócrates se posiciona como um
total leigo na questão: “Estou tão longe de saber se ela se ensina ou não, que nem sequer
o que isso, a virtude, possa ser, me aconteceu saber, absolutamente. [...] Me censuro a
mim mesmo por não saber absolutamente nada sobre a virtude. E, quem não sabe o que
uma coisa é, como poderia saber que tipo de coisa é?” (71a6-b4). A partir daqui
Sócrates muda a questão, de se a virtude é ensinável para o que ela é.

Depois de quatro tentativas de Mênon de definir a virtude e todas serem


refutadas pro Sócrates, Mênon se vê numa aporia:

Sócrates, mesmo antes de estabelecer relações contigo, já ouvia dizer


que nada fazes senão caíres tu mesmo em aporia, e levares também
outros a cair em aporia. E agora, está-me parecendo, que enfeitiças e
drogas, e me tens simplesmente sob completo encanto, de tal modo
que me encontro repleto de aporia (79e6-80a3).

É com a tentativa de sair da aporia que Sócrates introduz a teoria da


reminiscência, ou seja, o aprendizado como rememoração. A reminiscência será
apresentada de 81a5 a 82e3, e começa com os seguintes passos: primeiro Sócrates traz a
imortalidade da alma e seu perene renascer (81b3-5); segundo, tendo a alma visto todas
as coisas, tanto aqui quanto no Hades, “não há o que não tenha apreendido”, e não é de
se espantar que ela rememore tudo que tenha visto antes (81c5-8); e por fim, com tudo
na natureza sendo aparentado, nada impede que ao rememorar uma coisa (o que
definimos aprendizado) a pessoa descubra outras. Mas para isso é preciso coragem e
persistência (81c9-d5). E Sócrates afirma: “Pelo visto, o procurar e o aprender são, no
seu total, um rememorar” [τὸ γὰρ ζητεῖν ἄρα καὶ τὸ μανθάνειν ἀνάμνησις ὅλον ἐστίν.]
(81d4-5).
Mênon questiona Sócrates se é isso mesmo que ele quer afirmar, que o que
aprendemos é na verdade rememoração [anamnese - ἀνάμνησίς], e pede que Sócrates o
ensine. Como é possível ensinar, rebate Sócrates, se acabou de afirmar que não existe
ensinamento, mas apenas rememoração [ἀνάμνησιν]. Sócrates pede que lhe seja enviado
um dos escravos para que ele possa demonstrar sua tese. De 82a4 a 85b7, teremos a
famosa conversa com o escravo, que apesar de não ter conhecimentos de geometria, é
grego e fala grego. Sócrates pede a Mênon que fique atento para ver se o escravo está
rememorando ou aprendendo dele. Depois de desenhar uma figura no chão (um
quadrado) e fazer varias perguntas ao escravo, que vai lhe respondendo, Sócrates
questiona Mênon: “Vês Mênon, que eu não estou ensinando isso absolutamente, e sim
estou perguntando tudo? Neste momento, ele pensa que sabe qual é a linha da qual se
formará a superfície de oito pés. Ou não te parece?” (82e3-5).

Dando prosseguimento a seu método, Sócrates continua perguntando ao


escravo. O fenômeno da reminiscência vai surgindo conforme as perguntas e respostas,
o que leva Sócrates a concluir com aprovação de Mênon que as opiniões do escravo são
próprias dele, mesmo não sabendo, “logo, naquele que não sabe, sobre as coisas que por
ventura não saiba, existem opiniões verdadeiras, sobre estas coisas que não sabe” (85c4-
5). Desse modo a reminiscência (anamnese) estava justificada.

Para o professor Paviani, há uma correspondência entre a linguagem no


exemplo usado da figura geométrica, ou seja, os termos usados por Sócrates e as linhas
que formam o quadrado (2011. p. 249). Existe uma conexão entre o raciocínio de
Sócrates e as figuras e os cálculos. Por esse motivo, a teoria sofrerá alguns
questionamentos ulteriores. Primeiro, o escravo apenas responde sim ou não (sem
realizar operações complexas); segundo, será que com as perguntas e os desenhos,
Sócrates não estaria – de fato – ensinando; terceiro, a questão da ligação entre
linguagem, conhecimentos e objetos (o escravo fala grego, o conhecimento da língua já
é uma forma de saber). Müller (2014, p. 422), por exemplo, baseado em Theodor Ebert,
irá argumentar que a conclusão de Sócrates e Mênon está cheia de sérios problemas
lógicos, mas que por outro lado, trazem outras formas de entendimento sobre o que
Platão entendia por reminiscência (anamnese).

Por uma questão de limitação temporal e espacial na confecção do presente


trabalho, não será possível debruçar sobre as minucias de todas as observações críticas
ao texto platônico. O que é possível, e de forma breve, é compreender que esse tema
central do diálogo é um percurso, a reminiscência é um processo. Deseja-se mostrar que
o escravo pode passar por um aumento qualitativo de entendimento a partir das questões
postas por Sócrates. Com isso observa-se que a reminiscência se dá por um processo
que vai da opinião (δόξα) para a verdade (ἐπιστήμη). Logo, o conhecimento da figura
geométrica conduziria o escravo ao conhecimento científico. Para além da questão da
imortalidade da alma, pode-se extrair do diálogo que a aprendizagem se dá a partir de
níveis/graus. Mesmo não estando explícito no diálogo, Paviani resume da seguinte
forma: “a) da crença falsa para a crença verdadeira; b) da incapacidade de entender e de
elaborar conceitos para a formulação de juízos ou enunciados; c) do conhecimento pré-
existente para o conhecimento cotidiano” (2011, p. 250).

Já caminhando para o fim do diálogo, Sócrates é incisivo ao definir a


reminiscência como um “cálculo de causa” [αἰτίας λογισμῷ]. “E isso, amigo Mênon, é a
reminiscência, como foi acordado entre nós nas coisas ditas anteriormente” (98a2-3).
Nesse sentido, a reminiscência é um raciocínio capaz de explicar suas origens, suas
razões. Logo, para fazer a passagem de uma opinião correta para um conhecimento
seguro é preciso que sejam demonstrados os processos que fazem a ligação de um ao
outro, no caso do diálogo isso vem através das questões postas por Sócrates. Podemos
dizer que a opinião correta que o escravo apresenta no final da conversa, pode cair no
esquecimento se permanecer apenas como um caso isolado, ou pode se tornar um
conhecimento seguro, se o escravo for confrontado com novas questões que o levam ao
esclarecimento do teorema geométrico que estavam analisando (questões que o conduz
à compreensão da razão que funda aquela opinião e a liga a outros teoremas).

Por fim, como foi dito acima, a problemática envolvendo a reminiscência será
abordada em três diálogos, Mênon, Fédon e Fedro. O não utilizá-la em outras obras, em
especial nas de maturidade, deixa uma duvida no ar: o que levou Platão a abrir mão
dessa teoria?

Referências

MÜLLER, N. Aspectos da reminiscência no Mênon de Platão. Anais do seminário dos


estudantes de Pós-graduação em Filosofia da UFSCar, 2014, 10ª edição.

PAVIANI, J. Ética e aprendizagem em Platão. HYPNOS, São Paulo, n. 27, 2º semestre


2011, p. 246-259.

PLATÃO. Mênon. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola, 2001.

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