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A Ética em Platão a capacidade de conhecer as Ideias e de se prova disso, que é a prova da lembrança

Texto adaptado por Geder Cominetti1 aproximar da Verdade. O corpo, por sua vez, é a (reminiscência).
fonte das paixões (πάθος), que são os desejos e Cebes: E o que é essa prova, Sócrates?
sentimentos que nos afastam da Verdade e nos Sócrates: É o seguinte: quando a gente aprende
Platão foi um dos maiores filósofos da Grécia
levam ao erro e ao mal. alguma coisa, a gente não tá criando um
Antiga, que viveu entre os séculos V e IV a.C. Ele
conhecimento novo, mas lembrando de um
foi discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, e A ética platônica consiste, então, em buscar a
conhecimento velho, que a gente já tinha antes de
fundou a Academia, a primeira escola de filosofia harmonia entre a alma e o corpo, subordinando
nascer. Isso quer dizer que a alma já existia antes
do Ocidente. Platão escreveu diversos diálogos, as paixões à razão. O objetivo da vida humana é
do corpo, e que ela conhecia as Ideias, que são as
nos quais expôs suas ideias sobre diversos temas, alcançar a virtude, que é a excelência da alma, e
Verdades que não mudam nunca e que são a
como a política, a arte, a ciência, a gnosiologia e a que se manifesta em quatro formas: a sabedoria, a
Realidade de Verdade.
ética. coragem, a temperança e a justiça. A virtude é o
Cebes: Mas como você pode mostrar isso,
caminho para a felicidade, que é a realização
No ano passado, estudamos a gnosiologia, em Sócrates?
plena do ser humano.
Platão. Aprendemos acerca de como Platão Sócrates: Eu vou te dar um exemplo. Você tá
entendia a nossa realidade dividida em dois A seguir, leremos alguns diálogos de Platão, vendo esse triângulo que eu desenhei na areia?
planos diferentes: o mundo sensível e o mundo adaptados aos propósitos desta aula. Cebes: Tô, Sócrates, eu tô vendo.
inteligível. Em Platão, as Ideias são perfeitas, Sócrates: E você sabe que a soma dos ângulos de
A prova da imortalidade da alma pela
imutáveis e eternas, e são a verdadeira realidade. dentro de um triângulo é igual a dois ângulos de
reminiscência (lembrança)
Por isso, as Ideias são causa das coisas noventa graus?
Fédon: E vocês sabem como foi que o Sócrates
sensíveis, enquanto as coisas sensíveis são Cebes: Sei, Sócrates, eu sei disso.
provou que a alma não morre?
cópias das Ideias. O mundo sensível, que Sócrates: E como você sabe disso, Cebes? Você
Cebes: Isso mesmo, Fédon, conta pra gente como
percebemos pelos sentidos, é apenas uma cópia já viu algum triângulo perfeito, que tivesse
foi essa última conversa do nosso mestre.
imperfeita e ilusória das Ideias2. exatamente dois ângulos de noventa graus?
Fédon: Tá bom, Cebes, eu vou contar o que eu
A ética é a parte da filosofia que estuda os lembro. A gente tava lá com o Sócrates, que ia Cebes: Não, Sócrates, eu nunca vi esse triângulo.
princípios e valores que orientam a conduta tomar a cicuta (veneno), quando ele falou que Sócrates: Então, como você pode saber uma coisa
que você nunca viu?
humana. Em Platão, a ética está intimamente queria nos ensinar uma última coisa sobre a alma.
ligada à sua gnosiologia e à sua concepção de Sócrates: Meus amigos, não fiquem tristes por eu Cebes: Eu não sei, Sócrates, você me diz.
realidade. morrer, porque isso é só a alma se separar do Sócrates: Eu te digo, Cebes. Você sabe isso
corpo. E eu vou falar pra vocês que a alma não porque a sua alma já viu essa ideia de triângulo,
Em Platão, o ser humano é composto por alma e que é perfeita e que não muda, no mundo das
morre e que o corpo morre.
corpo, assim como estudamos em Sócrates. Mais ideias, antes de se juntar ao seu corpo. E quando
Cebes: Mas, Sócrates, como você pode ter tanta
adiante, veremos que Sócrates não despreza o você vê um triângulo que a gente vê, que é
certeza disso? Não pode ser que a alma se acabe
corpo, mas Platão sim. imperfeito e que muda, você se lembra dessa ideia,
com o corpo, como o fogo se apaga com a água?
A alma é imortal e pertence ao mundo inteligível, Sócrates: Não, Cebes, a alma não se acaba com o e a reconhece. Isso é a lembrança, Cebes, a
enquanto o corpo é mortal e pertence ao mundo corpo, mas se solta dele. E eu vou te dar uma memória da alma.
sensível. A alma é a sede da razão (λόγος), que é

1
Este texto é adaptado do original, cuja referência consta Este texto tem fins didáticos e não deve ser interpretado de entanto, perceba que “Ideias” ou “Formas” sempre devem
ao final do texto. Não é permitida a reprodução nem a modo avulso às aulas ministradas pelo autor. ser escritas com a inicial maiúscula. Por sua vez, podemos
utilização parcial ou integral deste texto sob violação de 2
Podemos chamar as “Ideias” de “Formas” ou de “Eidos”. chamar o “mundo sensível” de “mundo material”, “plano
direitos do autor, a não ser que o autor autorize por escrito. Podemos chamar o “mundo inteligível” de “plano material” ou “plano sensível”.
inteligível”, “mundo das Formas”, “plano das Ideias”. No
Cebes: Nossa, Sócrates, eu entendi o que você Premissa 3: Se a alma existia antes do corpo, ela Sócrates: Eu vos darei um exemplo. Vedes este
quis dizer. Mas isso não prova que a alma não não depende dele para existir, pois é de natureza triângulo que desenhei na areia?
morre, mas só que ela já existia antes. diferente e superior. (74b-76e) Cebes: Sim, Sócrates, eu o vejo.
Sócrates: Sim, Cebes, mas se a alma já existia Conclusão: A alma é imortal, pois não pode ser Sócrates: E sabes que a soma dos ângulos
antes do corpo, ela também não morre. Porque se destruída pelo corpo nem por nada do mundo internos de um triângulo é igual a dois ângulos
ela existia antes do corpo, ela não precisa dele pra sensível. (77a) retos?
existir. E se ela não precisa do corpo pra existir, ela Cebes: Sim, Sócrates, eu sei disso.
não pode ser destruída pelo corpo. Então, a alma *** Sócrates: E como sabes isso, Cebes? Acaso já
não morre, Cebes, e continua viva depois que o viste algum triângulo perfeito, que tivesse
corpo morre. Agora, se entendeu o texto acima, veja se exatamente dois ângulos retos?
Cebes: Eu me rendo, Sócrates, você me consegue entendê-lo numa linguagem mais Cebes: Não, Sócrates, eu nunca vi tal triângulo.
convenceu. A sua prova é muito forte. A alma não próxima à da tradução original: Sócrates: Então, como podes saber algo que
morre, e você vai viver pra sempre nos nossos nunca viste?
corações. Fédon: E como Sócrates, tu provaste a Cebes: Eu não sei, Sócrates, tu me dirás.
Sócrates: Eu agradeço, Cebes, pela sua boa imortalidade da alma? Sócrates: Eu te direi, Cebes. Tu sabes isso porque
vontade em me escutar. E agora, meus amigos, é Cebes: Sim, Fédon, conta-nos como foi esse último a tua alma já viu essa ideia de triângulo, que é
hora de eu ir embora. Que Deus me acompanhe, e diálogo de nosso mestre. perfeita e imutável, no mundo inteligível, antes de
que vocês sejam felizes. Fédon: Pois bem, Cebes, eu vos direi o que me se unir ao teu corpo. E quando tu vês um triângulo
lembro. Estávamos reunidos em torno de Sócrates, sensível, que é imperfeito e mutável, tu te lembras
Resumo da prova da imortalidade da alma pela
que estava prestes a beber a cicuta, quando ele dessa ideia, e a reconheces. Isso é a
reminiscência:
nos disse que queria nos deixar um último reminiscência, Cebes, a recordação da alma.
Premissa 1: Há coisas que conhecemos sem ter ensinamento sobre a alma. Cebes: Admirável, Sócrates, eu compreendo o teu
aprendido por meio dos sentidos, como as Sócrates: Meus amigos, não vos entristeçais por raciocínio. Mas isso não prova que a alma seja
verdades matemáticas e lógicas. (74a-75b) minha morte, pois ela é apenas a separação da imortal, mas apenas que ela seja pré-existente.
Premissa 2: Se conhecemos algo sem ter alma e do corpo. E eu vos digo que a alma é Sócrates: Sim, Cebes, mas se a alma é pré-
aprendido por meio dos sentidos, é porque já o imortal e que o corpo é mortal. existente, ela também é imortal. Pois se ela existia
conhecíamos antes de nascer. (75c-d) Cebes: Mas, Sócrates, como podes afirmar isso antes do corpo, ela não depende dele para existir.
Premissa 3: Se já conhecíamos algo antes de com tanta certeza? Não é possível que a alma se E se ela não depende do corpo para existir, ela não
nascer, é porque a nossa alma já existia antes do dissolva com o corpo, como o fogo se apaga com a pode ser destruída pelo corpo. Logo, a alma é
corpo. (75e) água? imortal, Cebes, e sobrevive à morte do corpo.
Conclusão: O conhecimento humano é a Sócrates: Não, Cebes, a alma não se dissolve com Cebes: Eu me rendo, Sócrates, tu me convenceste.
recordação das ideias eternas e imutáveis que a o corpo, mas se liberta dele. E eu vos darei uma A tua prova é irrefutável. A alma é imortal, e tu
alma já conheceu antes de nascer. (76a) prova disso, que é a prova da reminiscência. viverás para sempre em nossos corações.
A conclusão acima se torna premissa do seguinte Cebes: E o que é essa prova, Sócrates? Sócrates: Eu vos agradeço, Cebes, pela tua boa
argumento, que prova a imortalidade da alma: Sócrates: É a seguinte: quando aprendemos algo, vontade em me ouvir. E agora, meus amigos, é
não estamos criando um conhecimento novo, mas hora de eu partir. Que a divindade me acompanhe,
Premissa 1: O conhecimento humano é a recordando um conhecimento antigo, que já e que vós sejais felizes.
recordação das ideias eternas e imutáveis que a possuíamos antes de nascer. Isso significa que a
alma já conheceu antes de nascer. (72e-73a) alma já existia antes do corpo, e que conhecia as __________
Premissa 2: Para recordar as ideias, a alma deve ideias, que são as verdades eternas e imutáveis. PLATÃO. Fédon. In: Os Pensadores. São Paulo:
ter existido antes do corpo, pois as ideias não são Cebes: Mas como podes demonstrar isso,
acessíveis aos sentidos. (73b-74a)
Abril Cultural, 1973. v. 3, p. 91-92.
Sócrates?

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