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"Aos olhos de Platão, todo exercício dialético, precisamente por ser uma submissão às
exigências do Logos, exercício do pensamento puro, desvia a alma do sensível e permite
a ela que se converta na direção do Bem. É um itinerário do espírito na direção do
divino."(tradução minha)
O diálogo Mênon, de Platão, inicia diretamente com uma questão formulada pelo próprio
Mênon e endereçada a Sócrates: "a virtude (ἀρετή) pode ser ensinada?" Se não for
ensinada, é possível adquiri-la pelo exercício ou, se nenhuma das duas opções for
verdadeira, a virtude é dada aos homens por natureza ou por algum outro meio?
Sócrates responde que até há pouco tempo os tessálios eram tidos como sábios, graças
aos ensinamentos do sofista Górgias. Em Atenas, entretanto, Sócrates afirma, a
sabedoria parece ter partido da cidade, pois não há quem possa responder à questão
formulada por Mênon.
Sócrates admite que, igual a seus concidadãos, ele também não sabe o que seja a
virtude, e nem encontrou quem o soubesse. Mênon, espantado, indaga como isso seria
possível, dado que Sócrates havia encontrado Górgias quando o sofista esteve em
Atenas. O filósofo desconversa dizendo que não possui boa memória e que não recorda
o que achou à época das preleções de Górgias. Em seguida, pede a Mênon que recorde
as idéias de Górgias sobre o tema ou que apresente as suas próprias concepções que,
como Mênon admite, são as mesmas do mestre sofista.
:
Mênon aceita a sugestão de Sócrates e enuncia a sua definição de virtude. A virtude
masculina é ser capaz de gerir os assuntos da cidade, fazendo o bem aos aliados e mal
aos inimigos, e guardando-se ele mesmo de sofrer os males que infringe a seus inimigos.
A virtude feminina é bem administrar a casa e ser obediente a seu marido, e as virtudes
das crianças, dos anciãos, do homem livre e do escravo são diferentes em cada caso.
A questão posta por Sócrates remete ao ponto central da discussão: encontrar a unidade
formal que subjaz a todos os exemplares. Perguntar o que é algo é perguntar sobre
aquilo que torna a coisa o que ela é e a distingue de todas as demais. Enumerar os
exemplares de algo não é dizer o que é esse algo. Sócrates tentará fazer Mênon
entender que a sua resposta é inadequada porque sequer é uma resposta à questão
realmente posta. A pergunta não foi acerca dos tipos de virtude que há e sim acerca
daquilo que torna uma virtude uma virtude. Isto é, o que unifica todos os exemplares de
virtude e que permite que cada um seja identificado como uma virtude. Qual é a unidade
que subjaz à multiplicidade?
Mênon responde que, no que tange ao serem meramente abelhas, elas não diferem
umas das outras em nada. Sócrates avança e declara que o mesmo se dá com as
virtudes. Embora muitas em quantidade, todas possuem um caráter único. O termo
utilizado por Sócrates, em grego, é εἶδος (eidos), que significa "o visto", "imagem",
"forma", "tipo", "espécie". O termo assume no diálogo uma acepção que vai além das
referências à visão sensível, e remete à capacidade de perceber um padrão formal por
trás das coisas vistas.
A primeira indução que Sócrates emprega parte dos exemplos de virtudes na tentativa de
encontrar a unidade formal entre as virtudes. Mênon não consegue entender o que o
filósofo pretende, e Sócrates emprega uma segunda indução mostrando que o que
acontece com a força, com a saúde e com o tamanho deve acontecer também com
virtude. Se Mênon admite que a força, a saúde e o tamanho têm cada um sua própria
unidade que concede sentido aos seus exemplares (a força é a mesma não obstante se
a aplicamos a homens ou a mulheres, por exemplo), então o mesmo deve se dar com a
virtude.
Reticente, Mênon não consegue admitir que uma mesma virtude seja aplicável ao
homem e à mulher, ao jovem e ao idoso. Sócrates insiste um pouco mais e insta Mênon a
dizer o que Górgias considerava ser a virtude. Mênon obedece e enuncia a segunda
definição de virtude: a capacidade de comandar os homens. Sócrates critica a definição
exposta indagando se é a mesma a virtude da criança e a do escravo. Obviamente que
não, pois a criança não comanda ninguém e muito menos o escravo comanda seu
mestre. Portanto, a definição não se aplica a todos os casos.
Mênon é obrigado a concordar que a sua definição não é boa. Sócrates sugere uma
emenda: a virtude não seria comandar os homens com justiça (δικαιοσύνη)? Parece ser
verdade, pondera Mênon, pois a justiça é virtude. Mas, pergunta Sócrates, a justiça é
virtude ou uma virtude? Isto é, a justiça é uma entre outras virtudes ou é a virtude
enquanto tal? Novamente Mênon é obrigado a admitir que a sua definição é errônea, pois
evidentemente há outras virtudes como a coragem (ἀνδρεία), a temperança
(σωφροσύνη) e a sabedoria (σοφία). A justiça é uma entre outras virtudes, e permanece
o problema da unidade que subjaz a todos os exemplos de virtude.
Sócrates recorre a uma terceira indução. A redondez é uma figura ou é a figura? Se for a
figura, então toda figura é redonda, o que é evidentemente falso. A redondez é uma entre
outras figuras, mas o que é figura permanece em aberto. Do mesmo modo, se alguém
perguntasse o que é cor e tivesse como resposta que cor é branco, seria fácil notar que
as outras cores não são branco. Há uma unidade subjacente que torna cada cor uma cor,
e essa unidade não pode ser quaisquer das cores que há.
É mister remontar das diversas figuras àquilo que as torna todas figuras. O que está
sendo buscado é "o mesmo em todas essas coisas", a unidade que fundamenta a
multiplicidade. Sócrates se propõe a definir o que é figura. O objetivo de definir o que é
figura é oferecer um exemplo de apreensão do eidos a fim de conduzir indutivamente
Mênon a compreender como definir o que é a virtude. Sócrates define a figura como o
único ser que sempre acompanha a cor. A definição não convence Mênon, pois se
alguém não souber o que é cor, não entenderá o que é figura.
:
Sócrates recua e admite definir a figura com termos que sejam de conhecimento de
Mênon, como as noções geométricas de limite, extremidade e sólido. A definição será:
figura é o limite do sólido. Uma definição só pode ser enunciada utilizando termos cujos
significados já sejam compreendidos por quem a enuncia ou para quem ela é enunciada.
A definição de figura depende da compreensão prévia de um conjunto de termos: limite,
extremidade, sólido e superfície.
Mênon convence Sócrates a definir o que é cor, e o filósofo afirma que o fará segundo o
modo de Górgias, o sofista. Sua definição é a de que a cor é uma emanação de figuras
de dimensões proporcionadas à visão. Mênon fica satisfeito com a definição e a
considera melhor do que a definição de figura dada por Sócrates. Este, no entanto, faz
ver a Mênon que a mesma definição de cor serviria também para definir o que é o som, o
odor e coisas do mesmo gênero.
A questão é que uma definição que serve a tantos fenômenos tão diferentes não é capaz
de apontar o que distingue especificamente esses fenômenos uns dos outros. Não é
possível compreender o que distingue a cor do som com a definição formulada à moda
de Górgias. Ela é genérica demais e não desce àquilo que torna a cor o que ela é e a
distingue de todos os demais fenômenos, como o som ou o odor. Já a definição de figura
formulada por Sócrates enuncia o que distingue especificamente a figura de todos os
outros objetos estudados pela geometria.
Sócrates diz que é trágico que Mênon rejeite a sua definição de figura e abrace a
definição de cor à moda dos sofistas. O filósofo o incentiva a oferecer uma nova definição
da virtude tendo em vista os exemplos já fornecidos de unidade formal da multiplicidade.
A quarta definição da virtude concebida por Mênon é "regozijar-se com as coisas belas e
poder alcançá-las". Em seguida, Sócrates inicia a crítica dialética da definição
apresentada.
A primeira pergunta é se aqueles que buscam o belo estão buscando coisas boas.
Mênon responde que sim, e Sócrates indaga se parece a seu interlocutor que todos os
homens buscam o bem. Mênon não concorda e afirma que há quem busque coisas más.
Sócrates pergunta se alguns homens buscam as coisas más mesmo sabendo que são
más ou as buscam acreditando serem boas, embora sejam na realidade más. Para
Mênon há os dois casos.
No caso dos que buscam as coisas más sem saber que são más, na realidade buscam o
bem, diz o filósofo. Mênon é obrigado a concordar. No segundo caso, aqueles que
querem as coisas más sabendo que são más estariam desejando a infelicidade e a
miséria. Sócrates indaga se há realmente quem queira ser infeliz. Novamente, Mênon é
obrigado a recuar e a admitir que não há quem busque as coisas más sabendo que são
más. Todos buscam o bem, mesmo considerando erroneamente o que é mal como bom.
A segunda parte da definição diz que a virtude implica poder alcançar as coisas belas.
Mas isso se refere ao poder e não ao querer, pois todos podem querer igualmente ser
:
virtuosos. A distinção está no poder, já que alguns são melhores que os outros, e não no
querer, no qual todos seriam iguais. Se for assim, então a virtude é poder alcançar coisas
boas, tais como saúde e riqueza, ouro e prata, honra e postos de comando na cidade.
Mênon concorda.
Mênon define as ações virtuosas utilizando-se de virtudes como a justiça. Isto é, não só
não definiu o que é virtude em seu eidos, como supôs a justiça como sendo uma virtude
sem saber o que é virtude. Não é possível definir algo tomando uma de suas partes como
se fosse o todo. Não é possível definir a virtude tomando uma das virtudes como se ela
fosse a definição de todas as virtudes. Sócrates força Mênon a admitir que não sabe
ainda o que é virtude.
Confuso, Mênon campara Sócrates a um feiticeiro ("góēs", γόης), pois este o havia
enfeitiçado com suas palavras a ponto de conduzi-lo à aporia (Ἀπορία, "sem saída").
Segundo a historiadora Sarah Iles Johnston, em sua obra Restless Dead: Encounters
Between the Living and the Dead in Ancient Greece, o góēs tinha como função invocar e
apaziguar os mortos, mas também podia enviar os defuntos contra os inimigos de seu
cliente por meio das katadesmoi, placas de maldição de chumbo depositadas em
cemitérios. Em seguida, Mênon compara Sócrates a uma arraia cujo ferrão paralisa a sua
presa. O filósofo aceita a comparação desde que ele também seja vítima do veneno da
arraia, pois encontra-se tão paralisado quanto Mênon, e não sabe dizer que coisa é a
virtude.
Mênon, refutada sua quarta definição da virtude, pergunta se é possível que alguém
procure e encontre aquilo que não sabe o que é. A questão levantada é capciosa, e
parece ter como objetivo interditar o prosseguimento da discussão. Se não é possível
conhecer algo que já não se conhece de antemão, então todo o debate travado até aqui
foi inútil e todo debate posterior será necessariamente infrutífero. Refutado em todas as
suas tentativas de definir o que é a virtude e incapaz de seguir os exemplos de unidade
formal na multiplicidade fornecidos por Sócrates, Mênon tenta impugnar a própria
discussão pondo em dúvida a possibilidade mesma do conhecimento.
Sócrates declara que a questão de Mênon é erística, ou seja, que não tem outro objetivo
senão "vencer" a discussão a qualquer custo. Não obstante, ela precisa ser respondida.
Em vez de responder com um argumento, Sócrates apela para os sacerdotes e para os
poetas que, como Píndaro, ensinam que a alma é imortal e que renasceu inúmeras
vezes, conhecendo este mundo e o Hades. O conhecimento, então, não seria o
aprendizado de algo novo e nunca visto, mas sim uma anamnese (ἀνάµνησις,
"rememoração") dos conteúdos já aprendidos em outras vidas. Como as coisas são
semelhantes, não é de se espantar que a rememoração de uma coisa conduza à
rememoração de muitas outras. É a isso que usualmente os homens chamam de
aprendizado.
O argumento erístico, diz Sócrates, não deve sequer ser considerado, pois ele tornaria os
homens preguiçosos e indolentes, e são justamente esses os tipos de homens que
gostam de ouvir tais argumentos. Por outro lado, a evidência dos sacerdotes torna os
homens diligentes e inquisidores. Sócrates declara que confia nesse argumento e que,
baseado nele, deseja retornar à busca pela definição da virtude.
Mênon, porém, pede ao filósofo que o ensine o que é a anamnese. Sócrates considera a
solicitação traiçoeira, já que o que foi dito é justamente que não há ensino, somente
rememoração. Assim, ao ensinar a Mênon o que é a anamnese, Sócrates estaria
entrando em contradição com sua própria afirmação. Mênon diz que não visa embaraçar
Sócrates com seu pedido, e pede que ele mostre de alguma forma o que é a anamnese.
O filósofo aceita e solicita que seja trazido a ele um dos escravos que acompanham
Mênon para que responda às suas perguntas.
Diante da dúvida de Mênon sobre a capacidade de se saber aquilo que não se sabe,
Sócrates apela não à dialética, pois isso seria uma petitio principii, pois o que está em
:
jogo é justamente a capacidade humana de captar o eidos da coisa considerada. Isto é, o
problema migra da dialética para a questão do fundamento do conhecimento ou da
possibilidade do conhecimento. A única saída é oferecer não um argumento, mas uma
demonstração performativa da capacidade humana de conhecimento.
Como Mênon não compreende o apelo ao divino, a saída é performativa, isto é, mostrar
que é possível conhecer expondo um espetáculo explícito de conhecimento, uma
exibição incontestável do poder de conhecimento: alguém conhecendo aquilo que ainda
não conhecia. A única forma de fundamentar a possibilidade do conhecimento é
manifestar explicitamente o conhecimento acontecendo. Por isso o escravo será tão
importante, pois ele não sabe nada de geometria. Não pode ser acusado de saber antes
o que exibirá saber por meio das perguntas a ele dirigidas pelo filósofo. Sócrates, o goes,
conhece a psicagogia (guiamento das almas) de conduzir a alma a retornar a
conhecimentos anteriores a esta vida.
(continua na parte 2)
...
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