Retomando a distinção entre filósofos e não filósofos tratada no livro anterior,
Sócrates diz que a guarda da cidade destina-se aos filósofos; o que ele justifica discorrendo sobre as virtudes daqueles que são apaixonados pelo saber em sua totalidade, e sobre sua sinceridade e seu compromisso com a verdade. Ele reafirma o que revelou no Livro V: a plenitude da filosofia; discernindo quem se serve dela para males, dos poucos que não corrompem a alma e sua natureza, isentando a filosofia de todo ridículo e perversidade que a vestiram com ignorância durante todo esse tempo no senso comum. Torna-se necessária, pois, a discussão sobre como evitar que as pessoas de natureza justa se desviem do bem e acabem por realizar os piores males para a cidade e para si. Primeiramente, Sócrates esclarece a necessidade de revelar a verdadeira filosofia e os verdadeiros filósofos ao povo, para que este compreenda que será melhor governado inicialmente pelos poucos de alma pura, que resistem na realidade em que os vícios sobressaem às virtudes, e conceda o poder a eles com respeito e confiança. Em seguida, trata da escolha dos governantes e sua formação, pois já tratou dos cidadãos de modo geral, mas não dos governantes mesmo. Prossegue que eles devem ser postos a prova tanto nos prazeres quanto nos sofrimentos para verificar se são fiéis à cidade e seguem a Ideia do bem, independentemente da dor e do prazer. Devem então percorrer o caminho mais longo, o da experiência; e não da demonstração, para que a realização das virtudes se concretizem em seu mais alto grau de perfeição, e que se atinja o conhecimento do bem em si, pois sem conhecimento deste de nada servem as virtudes até aqui descritas. Contudo, Sócrates afirma ser antes necessário discorrer sobre o filho do bem em si, fazendo uma analogia ao sol, o qual é o responsável da terceira espécie de mediador fundamental da vista, para que o olho veja o objeto. Assim como a luz não é o sol, a ciência e a verdade não são o bem em si, mas se assemelham. E se encaminha para a explicação da linha dos quatro estados da alma: as imagens, os seres e objetos, as ciências como as dos geômetras, e a inteligência. Sendo assim, Sócrates propõe duas distinções do saber: a do mundo visível e a do inteligível. Cada uma tem um subdivisão em falso e verdadeiro, no que concerne a primeira: as imagens e os seres e objetos que formam as imagens; e na segunda: as fomas inferiores que se servem das ciências em geral, e as formas superiores do saber, o das Ideias. Nesta segunda subdivisão, as formas inferiores se baseiam em hipóteses como princípio para conhecer a essência de algo particular, por isso é menos verdadeiro que as formas superiores, visto que estas se portam das hipóteses como meio para se chegar ao princípio universal somente pelo raciocínio, pelo pensamento puro, pelas Ideias, não se confundindo e se restringindo ao mundo sensível, como faz o entendimento. Sócrates explicita que a dialética é então mais clara que as técnicas. Num primeiro momento, poderíamos afirmar que Platão coloca ele próprio em uma contradição quanto ao modo de submeter a hipótese ou submeter-se a ela. Pois tanto no entendimento quanto no pensar puro, nas Ideias, ele parte de hipóteses, ou seja, coisas que podem se realizar ou não. No entanto, é exatamente a mesma contingência que propõe contradição que, ao mesmo tempo, propõe o possível e irrefutável, deixando ao filósofo escolher o caminho: hipótese como princípio de partida, ou como princípio universal que extrapola o mundo visível e permite adentrar no conhecimento de algo mais profundo.
Referências bibliográficas
Platão. A República. Tradução, introdução e notas de Eleazar Magalhães