PLATÃO, A República ou sobre a Justiça, diálogo político. Tradução: Anna Lia
Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
Jorge Luiz de Lima Cavalcante1
O livro A República ou sobre a Justiça, diálogo político, publicado por volta de 380 a.C, é considerado por diversos estudiosos como uma das obras mais famosas e extensas do filósofo grego Platão (428-347 a.C.), discípulo de Sócrates; diz-se que este dialoga com aquele que sistematiza e organiza as informações textualmente. O célebre texto é formado por dez partes, denominadas livros, nas quais o pensador discorre sobre os valores, costumes e instituições basilares para a consolidação e desenvolvimento de uma sociedade ideal, a República. Dentre os aspectos abordados estão: moral, educação, costumes, literatura, mundo das ideias, imortalidade da alma, dentre outros, explanados através de diálogos e alegorias, todos eles norteados e compreendidos a partir do conceito central da obra socrático-platônica: a Justiça, tema que Sócrates procura compreender, definir e desenvolver através de reflexões com seus interlocutores. Os filósofos supracitados situam a Justiça como a referência maior entre todas as virtudes, sendo necessário, para uma prática satisfatória e abrangente, o entendimento do que tal conceito significa, da sua natureza filosófica. O escrito de Platão se debruça, além dos tópicos já mencionados, sobre as dificuldades de captar a complexidade da definição de Justiça; apesar dos impasses, ela é compreendida como a união entre igualdade e virtude, sendo a injustiça marcada pela ignorância e o vício. O Livro I, primeiro dos dez livros da obra A República, tem início com a ida de Sócrates à casa de Céfalo. Naquele contexto, influenciado pela realização dos jogos olímpicos, o filósofo procura sistematizar o conceito de Justiça. A partir de perguntas diretas e aparentemente simples, ele percebe a dificuldade da empreitada, uma vez que, além da profundidade temática, cada um dos participantes da conversa tem uma percepção a respeito do que é exposto. Céfalo, comerciante idoso e abastado, que não teme a morte, defende que a Justiça seria falar a verdade e restituir tudo aquilo que pertence a outrem. A colocação é refutada por Sócrates, que silencia e se retira, deixando que a conversa prossiga entre os presentes e Polemarco, filho do anfitrião. Para esse jovem, ser justo significa prejudicar inimigos e conceder benefícios aos amigos. Sócrates se contrapõe à máxima, por considerá-la imperfeita, ponderando que o mal e tudo o que nasce dele não podem ser considerados ou associados à prática da Justiça, já que esta envolve ações benéficas, e não prejuízos. Além disso, seria difícil definir quem são, verdadeiramente, amigos ou inimigos dos indivíduos. Em seguida, Trasímaco, um dos presentes na cena, sugere que Sócrates não quereria encontrar repostas, apenas confundir, fazer um jogo de palavras, sem apresentar definições possíveis. Segundo o ponto de vista daquele, Justiça é aquilo que confere vantagens ao mais forte, que seria o Governo. Sócrates, outra vez, discorda da colocação, salientando o fato de que, tendo o debate sido centrado no aspecto do que é vantajoso e do individual, o exame quanto à natureza da Justiça fica prejudicado e ele segue sabendo pouco a respeito dela. No Livro II, tem-se a continuidade da busca por compreender o que é a Justiça. Glauco, um dos interlocutores do diálogo, aborda a injustiça por meio da narração do 1 Aluno do Z período do Curso de Direto da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal/Proesp). Trabalho solicitado pelo Professor Doutor XXX, como requisito parcial para a avaliação da disciplina YYY. Mito do anel de Giges: neste, Giges, um pastor de ovelhas, servente do rei da Lídia, encontra, após uma tempestade, o cadáver de um gigante que usa um anel. O protagonista o leva consigo e descobre que a jóia pode torná-lo invisível; tempos depois, usa esse poder para seduzir a rainha, depor o rei e governar despoticamente. Através da narrativa mítica, Glauco aponta que as pessoas são atingidas por injustiças, mas, de acordo com determinados contextos, oportunidades e motivações, por vias de outras formas de injustiça e corrupção, também podem auferir benefícios para si ou para os seus. Nesse sentido, todos seres humanos seriam propensos a comportamentos corruptos e injustos, não se revelando, portanto, a Justiça enquanto uma virtude intrínseca, mas uma espécie de simulacro, já que justos perfeitos não existem. Adimanto, irmão de Glauco toma a frente da discussão e discorda dos argumentos: postula que a Justiça é uma virtude, não por sua natureza em si mesma, mas pelos efeitos que provoca. Nesse viés, os justos sempre terão sua recompensa, seja pelo reconhecimento humano ou dos deuses. Sócrates elogia as considerações, mas percebe que a ausência de um olhar abrangente, e não apenas pontual, sobre o tema, afasta os interlocutores do acesso à complexidade conceitual da Justiça. Uma vez que todos concordam que a Justiça deve prevalecer às injustiças, Sócrates propõe pensá-la, não mais pelo prisma individual, mas coletivo. Dentro desse exercício, deveriam ser criados ordenamentos que regessem o todo social, através da idealização de uma cidade perfeita, um modelo, no qual guardiões e demais cidadãos têm força, talento, para suas atribuições sociais específicas, equilíbrio de temperamento e tudo funciona de forma organizada e justa: economia, educação, artes, exército. O Livro III se debruça, segundo a ideia de Justiça, sobre a definição do que seria a cidade ideal. Juntos, Sócrates, Glauco e Adimanto, postulam que ela deve ser dividida em três classes, em cuja intersecção harmônica residiria a perfeição. Caberia ao primeiro grupo, de cidadãos mais simples, de classe baixa – que teriam na alma feno, ferro e bronze –, o desempenho de funções básicas e necessárias ao desenvolvimento da pólis: agricultura, comércio e artesanato. A segunda classe – média –, teria cidadãos mais habilidosos, os guerreiros, pois possuiriam prata em suas almas. Eles deveriam, através da formação de um exército e de auxiliares na administração pública, proteger a cidade. Finalmente, a classe alta ou nobre, composta por magistrados, era orientada a estudar por anos a fio, dedicando-se ao conhecimento, à razão e à política, a fim de terem o preparo suficiente e satisfatório para governar, uma vez que a Justiça, enquanto virtude, só poderia ser praticada por quem se dedicasse a tais demandas intelectuais. Ressalte-se que, ainda no Livro III, Sócrates/Platão recomendam a censura da poesia épica (das obras de Homero, principalmente), uma das principais formas de produção literária da época. Essa postura se justifica pelo fato de que, segundo o pensamento dos filósofos em questão, essas formas de arte deturpam valores, comportamentos humanos e, até mesmo as ações dos deuses, não sendo um exemplo positivo dentro da República ideal. O Livro IV apresenta a definição de Justiça encontrada por Sócrates ao longo das reflexões que permeiam o diálogo: trata-se do equilíbrio e a harmonia entre as partes componentes da cidade. Nessa senda, analogamente à pólis, divide a alma humana em três partes. A porção apetitiva se localizaria no baixo-ventre e, associada a um monstro de várias cabeças, diria respeito aos desejos e desenvolvimento da moderação e da prudência. Por sua vez, a parte irascível, da qual faria parte o coração e seria representada por um leão, concerniria ao ímpeto e à coragem. A última das divisões, chamada de racional, simbolizada por um menino, residiria na cabeça e seria responsável pela Sabedoria e pela coordenação das três partes. Assim, sendo a Razão o nascedouro de tal controle, haveria harmonia e, com ela, Justiça. O Livro V discorre sobre três bases importantes para a República: a primeira delas orienta que bens e famílias devem ser comuns aos governantes, dessa forma, guardiões não devem acumular riquezas ou ter propriedades privadas; a segunda defende que homens e mulheres devem ter direitos iguais nos âmbitos de governo ou guerra; a terceira indica a necessidade de o rei ser filósofo, uma vez que a educação pautada pela Filosofia leva seu governante a pensar e agir de acordo com critérios norteados pelo Bem e, consequentemente, pela Justiça. Os Livros VI e VII debatem acerca da natureza do filósofo e do saber filosófico, apoiando-se em três imagens do Bem. A primeira delas, a linha, contém conjectura, opinião, crença, conhecimento e compreensão; na linha estão presentes o mundo sensível, “terreno”, imperfeito porque não é perscrutado pela Razão, e o mundo das Ideias ou inteligível, no qual estão presentes os modelos ideais e verdadeiros. A segunda imagem relaciona o Bem e o sol: o Bem traz um vislumbre da luz do mundo inteligível, da Verdade, da Sabedoria, esclarece, assim como o sol ilumina o mundo sensível. A terceira imagem está presente na Alegoria da Caverna, cuja função é educativa: orientar a alma para superar as sombras. Nessa narrativa, pessoas estariam confinadas e acorrentadas em uma caverna, de costas para a luz do sol, de modo que, presas, só tinham acesso às sombras projetadas nas paredes. Um desses indivíduos, que alegoriza o filósofo, consegue se libertar das correntes, sair, ver o sol em sua plenitude, isto é, liberta-se do saber sensível, limitado, tendo acesso ao Conhecimento, à Ideia. Entretanto, ao retornar e compartilhar o que experienciou, é ridicularizado pelos demais indivíduos. O Livro VIII é responsável por discutir sobre formas de Governo e caracteres humanos possíveis, de acordo com a menor ou maior proximidade de paixões e vícios. A timocracia, governo militar, egóico e ganancioso, é marcada pelo excesso de disciplina e pelo acúmulo de riquezas; a oligarquia é governada por homens ambiciosos, o que gera conflito entre pobres e ricos; a democracia é pautada numa liberdade absoluta e desenfreada, com valores invertidos, provocadora de caos; a tirania é uma governança na qual um guardião aparece como “salvador” ante o quadro caótico instalado, mas é tirânico e se mantém no poder graças a esse traço. De todas as formas de governo, a indicada na República é a aristocracia, uma vez que seu líder é um filósofo, que cultiva o amor pela Sabedoria e respeita as leis porque as compreende em profundidade. No Livro IX há um exame da natureza do tirano, delineado como um ser absolutamente comandado pelas paixões, desejos, que não respeita os ditames sociais ou pratica a Justiça. Contrariamente a ele, o filósofo sabe equilibrar prazeres e reflexão, sendo esta a suprema forma de prazer; assim, consegue viver bem e livremente, pois não se deixa escravizar pelos impulsos. A última parte de A República, o Livro X, tematiza acerca da natureza da Literatura (chamada, à época, de poesia), reforçando a necessidade de seu banimento na cidade ideal. Para Platão, a literatura apresenta, imita, situações, objetos e pessoas do mundo sensível de forma empobrecida: traz para o texto algo que existe na realidade e que, por sua vez, é a imitação do modelo ideal, presente no mundo inteligível. É, portanto, uma imperfeita imitação em terceiro grau que pode suscitar conflitos e devaneios que desviariam o cidadão da Razão, disciplina e temperança. Além desse tópico, há a exposição do mito escatológico de Er, personagem que volta do Hades e narra o destino das almas: as injustas foram punidas, as justas, recompensadas.