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O DIREITO NATURAL NA

FILOSOFIA GREGA
Os sofistas, cujos mais importantes foram Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini, surgidos
no período clássico ateniense, século V a. C., foram mestres na arte retórica (tékhne rethorikês),
entendida como a arte oratória, ou seja, a arte do discurso, visando o convencimento e a
persuasão. “Respondendo a uma necessidade da democracia grega é que os sofistas tiveram seu
aparecimento; o preparo dos jovens, a dinamização dos auditórios, o fortalecimento da técnica aos
pretendentes de funções públicas notáveis, o fornecimento de instrumentos oratórios e retóricos
para o cuidado das próprias causas e dos próprios negócios, tudo isso favoreceu a eclosão do
movimento que se pulverizou por toda a Grécia”, BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme
Assis. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Atlas, 14 a. edição, 2019, p. 105.
“No plano do debate filosófico, o resultado dessa mudança de eixo da cultura grega, com relação
à tradição anterior ao século V a.C. não foi senão a relativização da justiça (...) Isso porque, no
debate entre o prevalecimento da natureza das leis (phýsis) e o prevalecimento da arbitrariedade
das leis (nómos) os sofistas optaram, em geral, pela segunda hipótese, sobretudo os partidários das
teses históricas acerca da evolução humana”, (BITTAR; ALMEIDA, 2019, p . 107). A expressão
“o homem é a medida de todas as coisas” de Protágoras exprime o relativismo gnosiológico,
expressando a transição do período cosmológico para o antropológico.
A lei natural para Heráclito
 A natureza é phýsis, um brotar-se intermitente do invisível para o visível, da essência para a
aparência, e é conhecida a frase de Heráclito de Éfeso, “a natureza ama esconder-se”. Há um claro
enigma no cosmos e o filósofo como um iniciado é o único capaz de desvendar no fluxo
ininterrupto do nascer e morrer, do engendrar-se e perecer a harmonia universal invisível por
detrás da inconstância visível. Heráclito enfatizava que a lei, nómos, é o persuadir-se ao desejo do
um, identificado em seu pensamento à razão, lógos, ao fogo universal e a Zeus, expressando a
convicção profunda de que a vontade e as ações humanas obedecem a uma lei maior inscrita na
ordem das coisas; convicção nascida da constatação de que nossa alma possui uma racionalidade,
que ele chama mais uma vez de lógos. Se não há a primazia do humano sobre outros viventes, ele
se distingue destes pela capacidade racional, atribuído à psykhé, à alma, entendida como princípio
da interioridade. Embora não haja nos pré-socráticos uma reflexão sistemática sobre a ética,
conforme se atestará posteriormente em Platão e Aristóteles, há o questionamento profundo sobre
a moral humana e seu vínculo com a sociedade e com o cosmos. A expressão “conhece-te a ti
mesmo e conhecerás o universo e os deuses” demonstra com clareza essa relação entre a finitude
humana e a transcendência divina, intermediada pelo poder do lógos e pela alma como sede do
conhecimento e da sensibilidade, sendo observada em várias passagens dos Diálogos de Platão,
referindo-se à postura de seu mestre, Sócrates, em relação ao saber, que deriva, em seu caso, de
seu não-saber, não aceitando as falsas crenças impostas aos homens, indagando sempre sobre
ideias, como justiça, piedade, coragem, virtude, compartilhadas pelos cidadãos. A complexidade
cultural, política e filosófica do século IV a.C., em que põe Sócrates em oposição a seus
detratores, é descrita por Platão em seus Diálogos, textos que devem ser lidos não apenas como
obras filosóficas mas como peças literárias, de modo que é importante destacar o contexto
histórico-social onde o estudo da ética emerge de modo sistemático.
A Ética Socrática I
 Sócrates (470-399 a.C.) formulou o método de refutação, denominado
elénkhos, pois refutava as opiniões de seus interlocutores acerca de noções
morais, tais como as noções de piedade, coragem e justiça. Seu método é
exposto por seu discípulo mais importante, Platão, nos diálogos platônicos de
juventude, cujo exemplo é o Livro I de A República, onde se discute a noção de
justiça. Seus interlocutores geralmente expressam posições sofísticas, como
Trasímaco no citado diálogo, para quem “a justiça não é senão outra coisa que
a conveniência do mais forte”. Para Trasímaco, os governos, sejam tirânicos,
democráticos, aristocráticos, estabelecem leis que lhe são vantajosas,
considerando justas para seus subordinados, defendendo a faculdade legislativa
do governante, visando seu bem individual. Sócrates identifica o chefe de
Estado a um artífice, comparado ao médico, pois assim como o médico não
deve prescrever medicamentos que causem malefícios ao paciente, o
governante não deve prescrever leis que promovam danos aos seus
subordinados. Pelo recurso ao método refutativo, Sócrates demonstra a
Trasímaco que o bom governante requer a posse de certo saber, de uma
capacidade, dýnamis, interditando o vínculo entre justiça e força.
A Ética Socrática II
 A ponderação socrática tende a pensar a justiça como uma noção que visa o bem
daqueles que são por ele regidos. Segundo Trasímaco, o justo, exercendo função
pública, terá dificuldades nos negócios familiares, por descuidar-se deles, ao
passo que o injusto se beneficiará da coisa pública em prol da família. Constrói-
se a perspectiva realista das relações sociais, afastando qualquer traço de
idealismo, de modo que Trasímaco representa a ruptura com a cosmovisão
grega, defendida por Heráclito de Éfeso (séc. VI a.C.) para quem “a lei é o
persuadir-se ao desejo do um” (nómos peithestaí boulé henós). Para Trasímaco,
tanto nos assuntos públicos quanto nos privados se observa a prevalência do
injusto sobre o justo, à medida que ele sempre é prejudicado, de modo que é
chamado de bem aventurado pelos cidadãos quem se apodera dos seus bens,
compreendendo a injustiça total. O confronto verbal entre Sócrates e Trasímaco
é o prólogo para que Platão desenvolva sua teoria da justiça, vinculada à
capacidade racional da alma. Os amantes das honras e dos espetáculos se
afastam do conhecimento verdadeiro das coisas, enquanto os amantes do saber
contemplam, na perspectiva platônica, o espetáculo da verdade, por intermédio
da alma, de modo que cabe somente ao filósofo proferir discursos verdadeiros,
devendo conjugar em um mesmo poder a política e a filosofia.
Essencialismo e
convencionalismo
 Postulam-se duas posições antagônicas a respeito da ação política, de um lado a
sofística, para quem ela provém da convenção humana, podendo denominá-la
relativismo e convencionalismo político; de outro, a filosófica, para quem ela advém da
essência divina, declarando-a universalismo e essencialismo moral. Experimentamos
hoje o poder do discurso, como instrumento de persuasão, em que parlamentares, juízes
e chefes de Estado empregam a força encantatória da linguagem como arma de
convencimento do auditório universal. Platão foi autor sensível às potencialidades do
uso da retórica no regime democrático e os consequentes malefícios na esfera pública,
em assembleias e tribunais. Francis Wolff afirma que ao lógos, discurso do poder,
presente na época inicial da filosofia no poeta arcaico, no adivinho e no rei da justiça
correlato ao Nómos basileús, definido pelo regime magistral da verdade, em que “o
direito de declarar legitimamente as verdades socialmente mais elevadas é reservada a
certos indivíduos de exceção”, se sobrepõe na época clássica da filosofia o poder do
discurso, lógos, pautado pelo regime democrático da verdade, cujos procedimentos de
transmissão de verdades são a retórica, a dialética e a ciência, determinadas pela
máxima de que há o direito igual para todos de argumentar assim como a capacidade
de todo auditor de julgar. Não há risco maior para a esfera pública do que se submeter
ao império das opiniões, ao âmbito da dóxa, regida pelas paixões e desejos
momentâneos, em que o injusto toma a forma do justo e vice-versa.
A teoria platônica da Justiça
 Platão (427-347 a.C.) define no Livro VI de A República quatro modos de conhecimento
correlatos a quatro estados de alma; os dois primeiros modos se referem ao conhecimento
sensível, sendo (a) a imagem (eikón, eikónes) correlata à imaginação ou conjectura (eikasía) e (b)
a opinião (dóxa) relativa à crença (pístis) enquanto os dois últimos modos se referem ao
conhecimento inteligível, sendo (c) as formas geométricas, à medida que realizam a mediação do
sensível para o inteligível, porque é um conhecimento exato, referente ao pensamento (diánoia)
e, por fim, as ideias morais, também chamadas formas inteligíveis, como as ideias de Justiça,
Coragem, Temperança e Belo, conhecidas por meio do intelecto puro (nóesis), sem a mediação
do sensível. Conforme Bittar e Almeida, “a admissão de uma Realidade (divina) para além da
realidade (humana), importa, também, a admissão de que existe uma Justiça (divina) para além
daquela conhecida e praticada pelos homens. O que é inteligível, perfeito, absoluto e imutável
pode ser contemplado, e é do resultado dessa atividade contemplativa que se devem extrair os
princípios ideais para o governo da politeia, tarefa delegada ao filósofo” (BITTAR; ALMEIDA,
2019, p. 132). “Conhecer a verdade é ver com os olhos da alma ou com os olhos da inteligência.
Assim como o Sol dá sua luz aos olhos e às coisas para que haja mundo visível, assim também a
ideia suprema, a ideia de todas as ideias, o Bem (isto é, a perfeição em si mesma) dá à alma e às
ideias sua bondade (sua perfeição) para que haja mundo inteligível”, CHAUÍ, Marilena.
Introdução à História da Filosofia. Vol. I, São Paulo, Companhia das Letras,2012, pág. 258.
Ética a Nicômaco de Aristóteles
 Para Aristóteles (384-322 a.C.), toda escolha (proairésis) e toda ação (práxis) tendem para um
fim (télos), de modo que o fim da vida ética é a comunidade política (koinoné politiké), pois o
homem é por natureza um animal político (anthrópos phýsei zóon politikón).
 As ações humanas são possíveis e não necessárias, pois decorrem de uma deliberação e de
uma escolha voluntária entre alternativas contrárias. As ações humanas operam não por
proposições universais e necessárias, mas por juízos hipotéticos disjuntivos, porquanto é uma
ciência do contingente, ligada à vontade deliberativa e ao tempo futuro.
 O homem é um ser misto, dotado de livre escolha e desejo irracional. O desejo é órexis, se
movido por algo exterior, por uma afecção externa, é hormé, se impulsionado do interior, por
uma imagem interiorizada. A paixão, páthos, é um acidente e não substância, podendo ser
natural, devido nossa alma sensitiva e apetitiva, ou violenta, por excesso ou falta.
 A causa material da ação moral é o éthos, entendido como o caráter do agente, a causa formal
é a natureza racional do agente, a causa final é o bem individual, compreendido como
eudaimonía, felicidade, e a causa eficiente é a educação, de modo que a unidade das quatro
causas é a virtude.
 A virtude é a moderação, o justo meio, é uma disposição (héxis) para agir racionalmente
determinada pela prudência (phrónesis) em conformidade com a medida humana. A prudência
é a condição e o coroamento de todas as virtudes, sabedoria prática que lida com o contingente
e com o tempo, orientando a livre escolha, proairésis.
A Ética segundo Aristóteles
 A ação voluntária virtuosa é uma escolha preferencial (proairésis), proveniente de uma
deliberação racional (bouleusis), pois deliberamos sobre os preferíveis não necessários, sobre
os possíveis. Os atos voluntários são realizados (i) por escolha e não por necessidade natural,
porque o agente é o princípio das ações contrárias, (ii) por espontaneidade e (iii) sem
ignorância.
 Os atos involuntários são realizados (i) por constrangimento ou sob coação, (ii) por ignorância
das circunstâncias sob as quais agimos. O ato acrático ou incontinente se dá quando há dois
desejos conflitantes, o deliberativo e o passional, de modo que a akrasía, incontinência, é o
poder da paixão, páthos, sobre a vontade, exemplificada em vícios reiterativos.
 As virtudes dianoéticas são disposições intelectuais, existindo em potência, em dýnamei, na
alma racional (logistiké psykhé), como (i) a phrónesis, prudência, (ii) a epistéme, ciência,
identificada à disposição racional para o universal e necessário, (iii) o noûs, inteligência para
apreender os primeiros princípios, e (iv) a sophía, sabedoria prática para compreender as
coisas elevadas, exercida pelo noûs theoretikós, inteligência contemplativa. Na Ética
Nicomaqueia, Aristóteles considera que contemplar intelectualmente ou conhecer é um ato
mais perfeito do que agir, enquanto agir é mais perfeito do que fabricar; a theoría é mais
perfeita que a práxis e essa é mais perfeita que a poiésis, reiterando a distinção entre as três
espécies de ciências, as teoréticas, as práticas e as produtivas.

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