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"À toda ação, toda obra, toda palavra, que Deus esteja presente como testemunha e
como guardião."
"O modo de vida que recomenda Porfírio, e que é aquele da escola de Plotino, consiste,
como era o caso na escola de Aristóteles, em 'viver segundo o espírito', ou seja, segundo
a parte mais alta de nós mesmos, o intelecto."
PIERRE HADOT, Qu'est-ce que la philosophie antique?, pag. 244 (tradução minha)
O filósofo neoplatônico Porfírio de Tiro (234-305 D.C.), biógrafo e compilador dos textos
de seu mestre Plotino (Enéadas), compôs diversas obras filosóficas, como comentários a
obras de Aristóteles (o famoso Isagoge, comentário às Categorias), interpretações
simbólicas de Homero, um tratado contra o cristianismo (Contra os Cristãos) e cartas de
orientação espiritual. A sua carta mais famosa, endereçada à própria esposa, Marcella,
foi composta quando o filósofo encontrava-se em viagem e versa sobre a natureza da
vida filosófica.
Porfírio inicia a sua carta declarando os motivos pelos quais havia desposado Marcella.
Não estavam entre os motivos nenhum interesse financeiro ou de status social, mas a
percepção do quão inclinada à filosofia era a disposição de Marcella. E a carta tem como
objetivo justamente exortar a esposa a ser fiel à vida filosófica, o único refúgio seguro.
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A ascensão aos deuses, afirma Porfírio, não pode se dar sem o concurso de inúmeros
obstáculos, pois não é por meio de facilidade que os homens tomam posse do verdadeiro
bem. Somente os deuses vivem uma vida sem cuidados. Ademais, os sábios
reconhecem comumente que os labores conduzem à virtude mais do que os prazeres.
Aqueles que suportaram nobremente as maiores desventuras são os que ascenderam
aos deuses, como testemunham os exemplos de Hérakles e os Dioskouroi (Castor e
Polideuces).
São as ações que demonstram as convicções de um homem, e ele deve viver a sua vida
de acordo com elas. O que aprendemos de sábios homens, indaga Porfírio, senão que o
que somos não pode ser tocado ou percebido pelos sentidos, aquela essência informe
que não pode ser tocada pelas mãos, mas somente inteligida pelo intelecto? A educação
não é o acúmulo de conhecimentos diversos e sim o abandono das paixões. Os vícios
são doenças da alma. A natureza divina é boa e não tem parte com o vício, pois, como
dizia Platão, é ilícito o impuro se aproximar do puro.
Que cada ato, ação e palavra tenham Deus como testemunha, assevera Porfírio, e que
se considere que seja Ele o autor de de todas as ações boas. As más ações, por outro
lado, têm em nós mesmos a sua origem. O sábio, conhecido por poucos ou mesmo
desconhecido de todos, é conhecido por Deus, pois a alma que segue Deus, e que que
se conforma a Ele, reflete a Sua imagem.
Todavia, não é seguro falar de Deus aos corrompidos pelas falsas opiniões. Não é lícito
que um homem ainda não purificado das más ações falar de Deus. Ações divinas devem
preceder qualquer discurso sobre Deus, e, em presença das multidões, é mister manter o
silêncio, pois é melhor ficar calado do que proferir palavras aleatórias sobre Deus. O
mestre de Porfírio, Plotino, afirmava na sexta enéada:
"Então, a alma deve se afastar de tudo o que é externo e se voltar inteiramente ao seu
interior, sem qualquer inclinação a qualquer coisa externa. Antes, a alma deve ignorar
tudo, principalmente as coisas sensíveis, mas também as formas e, então, considerando
o Uno, ignorar a si mesma. E, quando a alma vier a estar com o Uno, e, de certa forma,
em comunhão com ele em grau suficiente, então ela deve falar aos outros desse contato
íntimo." (Enéadas, VI, 9, 7)
Porfírio prossegue dizendo à esposa Marcella que a honraria mais adequada a Deus é
tornar a mente semelhante a Ele, e tal não pode ser alcançado a não ser pela prática das
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virtudes. Só as virtudes podem fazer a alma ascender a Deus. A alma do sábio está em
harmonia com o Divino, a tal ponto que o homem digno de Deus pode ser considerado
ele mesmo um deus.
A sua piedade (εὐσέβεια) se manifesta não pelas preces e pelos sacrifícios, mas por suas
ações. É a alma divinizada, que permanece imóvel em sua união com Deus, que glorifica
o Divino, dado que o semelhante atrai o semelhante. A alma é uma habitação ou dos
deuses ou dos maus espíritos. Estes habitam a alma daquele que nega a Deus. O ateu
confia em uma causa cega e sem razão que rege o universo e, assim, se coloca em
enorme perigo ao confiar em um impulso irracional e incerto nos eventos da vida. Os
deuses o conhecem, embora ele desconheça e ignore os deuses.
Há, segundo Porfírio, três leis: a lei divina, a lei da natureza humana e as leis das
nações. A lei da natureza fixa os limites das necessidades corporais e condena todo
anseio por aquilo que é desnecessário e supérfluo. A lei das nações regula as relações
entre os homens e seus contratos. A lei divina foi implantada pelo intelecto supremo na
alma dos seres racionais a fim de proporcionar a sua salvação.
A lei divina é desconhecida pela alma cuja intemperança tornou impura, mas brilha na
alma que possui autocontrole e sabedoria. Ela não pode ser transgredida, desprezada ou
alterada pelas vicissitudes do acaso. Somente o intelecto a conhece, e, a encontrando
impressa em si mesmo, a transmite à alma na qualidade de seu mestre, guardião e guia.
Todavia, é mister primeiro entender a lei natural e, então, passar à lei divina. O homem
que assim o faz não teme as normas da cidade, pois as leis escritas servem não para
impedir o homem bom de cometer crimes, mas para impedir que ele sofra injustiças.
O tema que Porfírio desenvolve aqui é semelhante ao tema que epicuristas e estóicos
também desenvolveram em suas respectivas escolas: o papel ético do conhecimento da
natureza. Saber distinguir o que é necessário naturalmente ao homem significa saber
:
distinguir entre aquilo que é lícito desejar e aquilo que não é lícito desejar. Há
necessidades humanas básicas cuja satisfação é imprescindível (comida, bebida, abrigo,
etc.), mas há outras tantas necessidades que não possuem esse caráter e que são, em
geral, geradas pelos desejos imoderados dos homens (luxo, riquezas, prazeres, etc.).
Enquanto as primeiras são facilmente satisfeitas, as últimas são difíceis e encarceram o
homem em uma espiral potencialmente infinita de desejos insatisfeitos e irrealizáveis.
O filósofo adverte, contudo, que não se deve culpar o corpo por nossos males e nem
pensar que nossas atribulações nos vêm das coisas exteriores. A causa reside em nossa
alma, pois o homem é infeliz seja pelo medo, seja pelo desejo ilimitado. Mais uma vez,
como os estóicos, Porfírio defende que é na alma que os juízos sobre as coisas são
formados e, sendo assim, é lá que os males e os vícios são gerados pela opinião vã e
pela imoderação dos desejos. É melhor se contentar em dormir sobre uma cama de
juncos do que se atribular por uma cama de luxo.
Obviamente, nada disso é fácil de conquistar. Mas o amor pela verdadeira filosofia
remove quaisquer perturbações e desejos inúteis. Vã é a palavra de um filósofo que não
consegue aliviar um problema mortal. Não há utilidade em um médico que não consegue
curar as doenças do corpo, assim como é inútil um filósofo que não consegue eliminar os
problemas da alma. Tudo isso pertence à lei da natureza.
Quanto mais o homem se volta à sua parte mortal, mais ele se afasta da imortalidade. O
sábio que é amado por Deus esforça-se e labuta tanto pelo bem de sua alma quanto os
outros homens pelo bem de seus corpos. Nu ele veio ao mundo e nu ele deve se dirigir
Àquele que o enviou. Deus ouve somente aqueles que não são vergados pelo peso das
coisas externas. Estamos atados às cadeias que a natureza lançou sobre nós, pelo
estômago e por outros membros e partes do corpo, bem como pelo uso que deles
fazemos, pelas sensações agradáveis e pelos temores que deles derivamos.
Muita disciplina é necessária para conquistar o controle sobre o corpo. Deixe que a razão
dirija todos os seus impulsos, assevera Porfírio à Marcella, e expulse de nós ímpios e
tirânicos mestres. O império das paixões é pior do que o dos tiranos, pois é impossível
para um homem ser livre se é governado pelas paixões. Tantas quantas são as paixões
da alma, tantos são os mestres cruéis que nos dominam.
...
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* Infelizmente, debalde meus esforços, não tive acesso ao texto original em grego para
tirar dúvidas sobre a tradução de alguns termos. Só encontrei a tradução para o inglês
realizada por Alice Zimmern (1910), disponível em:
http://www.tertullian.org/fathers/porphyry_marcella_03_revised_text.htm
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