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Resumo: Queremos mostrar que a poética de Augusto dos Anjos pressupõe uma
compreensão filosófica da natureza humana inerente à história da filosofia no Brasil e que dessa
compreensão da natureza humana — na medida em que ela se opõe à concepção científica que,
pelo método experimental da filosofia moderna, fez da psicologia uma psicologia “sem alma” —
resulta a percepção estética de uma necessidade de horroroso.
Palavras-chave: Filosofia brasileira, Filosofia e arte, Filosofia e poesia.
O eu como princípio
Por amor da vida teórica e da aspiração a uma vida regida por normas universais, a
filosofia estabeleceu-se na Antiguidade grega, especialmente a partir do “conhece-te a ti
mesmo” socrático, como uma espécie de ciência cujo objeto é o conhecimento de si
como espírito3. Desde então, o marco da fundação de cada nova época da história da
filosofia, por oposição à decadência da vida teórica e ao ceticismo superveniente, é a
1
BRITO, Raimundo de Farias. O mundo interior. Introdução de Luiz Alberto Cerqueira. Lisboa: INCM, 2003,
p. 60.
2
ANJOS, Augusto dos. Gemidos de arte. In: Eu e outras poesias (02 vols.). Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, vol.
1, p. 101.
3
Depois de ressaltar a necessidade de buscar-se o “si mesmo” absoluto que confere o caráter ontológico à
consciência, Sócrates explica que “ao prescrever-se o conhecimento de si mesmo, o que se ordena é o
conhecimento de nossa alma”, no sentido de que o “si mesmo” consiste na parte da alma “em que nela se
encontra sua faculdade própria, a inteligência”. PLATÃO, Alcebíades, ou da natureza do homem, 134a.
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Em diálogo com a Razão (R), Agostinho (A) restabeleceu o conhecimento de si como princípio ontológico:
“R - Tu, que desejas conhecer-te, sabes que és?
A - Sei.
R - Por onde o sabes?
A - Não sei.
R - Sabes que és movido?
A - Não sei.
R - Sabes que pensas?
A - Sei.
R - Logo, é verdade que pensas?
A - Sim!
[...]
R - [...] só é bem-aventurado aquele que vive, e ninguém vive se não é; tu queres ser, viver,
entender, e ser para viver, e viver para entender. Logo, sabes que és, sabes que vives,
sabes que entendes” (AGOSTINHO, Solilóquios II, I-III).
5
MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. Fatos do espírito humano. Petrópolis: Vozes/ABL, 2004, p.
78.
6
Ibidem.
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Ressalte-se, entretanto, que este conceito da liberdade de arbítrio como princípio de ação
— que “consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer [de
maneira que] agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força
exterior nos obrigue a tanto10” — pressupõe uma tradição filosófica, o aristotelismo, no
interior do qual o luso-brasileiro Antonio Vieira (1608-1697), já postulara a liberdade dos
filhos de Deus pelo conhecimento de si:
Vieira distingue no homem dois modos do ser: o homem natural e o homem moral.
Aquele se compõe de alma e corpo; este se constitui ou consiste só na alma. De maneira
que, para formar ou reformar o homem moral é necessário separar a alma do corpo12.
Resultaria dessa separação uma perda ou prejuízo, como se assim ele passasse a ter
“menos” ser? Ao contrário, pois sendo “o conhecimento de si mesmo, e o conceito que
cada um faz de si uma força tão poderosa sobre as próprias ações13”, é tal separação
que lhe acrescenta ao ser o dever, permitindo-lhe deixar de obedecer cegamente à
natureza para agir como deve14. Neste sentido, os dois modos do ser não se excluem:
“Há de servir o corpo ao próprio conhecimento [...] de maneira que o mesmo que impede
7
Idem, p. 348.
8
Idem, p. 355.
9
Idem, p. 57.
10
DESCARTES, Meditações, IV.
11
VIEIRA, Antonio. As Cinco Pedras da Funda de Davi, parte III. In: Sermões (02 vols.). Organização de Alcir
Pécora. São Paulo: Hedra, 2003, vol. 2.
12
Ibidem.
13
Idem, parte II.
14
VIEIRA, Antonio. Sermão de Santo Antonio (1654), parte V. In: Sermões. Organização de Alcir Pécora. São
Paulo: Hedra, 2003, vol. 2.
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15
VIEIRA, Antonio. As Cinco Pedras da Funda de Davi, parte II. In: Sermões. Organização de Alcir Pécora.
São Paulo: Hedra, 2003, vol 2.
16
Idem, parte V.
17
Neste sentido ele acompanhou a Descartes, quando este afirma que “para que eu seja livre, não é
necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais
eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja
porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei
[...] De maneira que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais
do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade, e faz parecer mais uma
carência no conhecimento do que uma perfeição na vontade”. DESCARTES, Meditações, IV.
18
VIEIRA, Antonio. As Cinco Pedras da Funda de Davi, parte V.
19
MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. Fatos do espírito humano. Petrópolis: Vozes/ABL, 2004, p.
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meia folha de verdades. Não basta reconhecer e alegar a existência dos fatos internos20”.
Embora preocupado em combater os defensores da psicologia de feição racionalista, na
linha do espiritualismo de Cousin e Jouffroy, então em voga no Brasil, o mestre do Recife
também não encontrou nas objeções empiristas ao espiritualismo uma idéia convincente
de psicologia como ciência, observando que a “psicologia empírica, a despeito de todas
as suas descrições e pinturas do mundo subjetivo, ainda nada pôde levantar que seja
traduzível em forma científica21”. Contra racionalistas e empiristas, ele chama a atenção
para a psicologia dos artistas:
20
BARRETO, Tobias. Estudos de Filosofia. Introdução e notas de Paulo Mercadante e Antonio Paim. In:
Obras completas. Rio de Janeiro: INL/Record, 1990, p. 138.
21
Idem, p. 145.
22
Idem, pp. 149-152.
23
Idem, 153.
24
Ibidem.
25
Ibidem.
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Assim sendo, que é, para Farias Brito, o espírito como objeto de estudo?
26
HUSSERL, Edmund. La filosofía como ciencia estricta. Trad. de Elsa Tabernig, com estudo introdutório de
Eugenio Pucciarelli. Buenos Aires: Nova, 1969, p. 72.
27
BRITO, Raimundo de Farias. O mundo interior. Introdução de Luiz Alberto Cerqueira. Lisboa: INCM, 2003,
pp. 51-52.
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Ora, esse poder agente e real, esse princípio vivo de ação, essa força
criadora, não poderá deixar de ser objeto de ciência, e é o que mais
interessa ao nosso conhecimento. Há, pois, uma ciência [...] dessa força
criadora, uma ciência do espírito. E essa ciência, tendo o seu objeto
próprio e essencialmente distinto do objeto de todas as outras ciências, é
única em seu gênero, com seus princípios e com seu método próprio [...]
estuda a realidade em si mesma, o ser em seu mistério interior, em sua
significação mais íntima e profunda, numa palavra, o ser consciente de si
mesmo28.
Eu penso — eis para mim a primeira verdade [...] Não se deve, porém,
dizer como Descartes: eu penso, logo existo — cogito, ergo sum. Deve-
se ao contrário dizer: eu penso, logo existe meu pensamento. E se
existo, é porque sou capaz de pensar, e minha existência não consiste
em outra coisa, senão em meu pensamento. E se me tornar incapaz de
pensar, perdendo totalmente a consciência, cessarei de existir29.
Tal observação tem como alvo a interpretação material da forma condicional “se... então”
pertinente ao “penso, logo existo”. Do ponto de vista desta interpretação, o cogito implica
a percepção de uma existência: se penso, necessariamente existo e, neste sentido, a
verdade se fundamenta no sujeito como fenômeno objetivo, isto é como fato
fisiologicamente observável, e não no conhecimento de si como espírito ou pensamento.
Contrariamente, para Farias Brito uma “ciência do espírito” deve ter uma dimensão
metafísica, para além da mera constatação no âmbito da experiência, segundo a qual a
verdade se fundamenta no ato de pensar, de modo que se se perde a consciência de si o
sujeito pode manter-se fisiologicamente vivo, mas psiquicamente morto. E é justamente
em função dessa dimensão metafísica do conhecimento de si que vive o eu, de modo
que, para enfatizarmos o sentido da “psicologia transcendente” em Farias Brito, bem
como o da “expressão da dor estética” em Augusto dos Anjos, não parecerá extravagante
se dissermos que o eu está realmente morto, não simbolicamente ou “em certo sentido”
ou “como se estivesse”, mas literalmente morto, se ele perde a consciência de si como
espírito:
[Do ponto de vista físico] sempre que um corpo se move, é impelido por
algum corpo anterior em movimento, quer dizer: obedece à ação de uma
força estranha [...] só conhecemos a força em seus efeitos exteriores, ou
por outra, como movimento. E isto significa que só conhecemos a força
em sua aparência material, como movimento ou como corpo deslocando-
se no espaço: o que quer dizer precisamente que só conhecemos a força
como fenômeno, jamais como “coisa em si”. [Mas do ponto de vista
metafísico, há] uma força que conhecemos por outra forma, que,
conhecemos, por assim dizer, diretamente e face a face, ou mais
28
Idem, pp. 60-61.
29
Idem, pp. 354-355.
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A essência do belo
Coube a Farias Brito distinguir e proclamar entre nós a necessidade de estudo do espírito
enquanto fundamento do sentido da vida, denunciando, entretanto, o perigo de uma
exacerbada exigência de verdade acerca desse sentido. Assim, temos a ciência, que nos
permite realizar o ideal de uma vida em bases racionais; e a arte, que nos fornece este
ideal como
Por isso, diz ele, é um “absurdo de certos sistemas estéticos [a proposta de] descrever a
realidade nua e crua. É uma espécie de reprodução, à maneira de caricatura, da obra
mesma da ciência33”.
Evidentemente, não é esta a proposta de Augusto dos Anjos. Pelo contrário, belo é o
soneto onde se lê “Escarra nessa boca que te beija!”, mas não o significado literal de tal
exortação. Augusto dos Anjos faz uso da linguagem científica, é verdade, mas somente
para exprimir a sua percepção estética da feiúra do eu representado pelo filósofo
moderno, o qual reduziu a natureza à causalidade mecânica e chegou a conceber uma
psicologia sem alma:
30
Idem, pp. 367-368.
31
ANJOS, Augusto dos. Monólogo de uma Sombra. In: Eu e outras poesias. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982,
vol. 1, p. 49.
32
BRITO, Raimundo de Farias. O mundo interior. Introdução de Luiz Alberto Cerqueira. Lisboa: INCM, 2003,
pp. 65-66.
33
Idem, p. 71.
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Voltemos a Farias Brito. O método introspectivo, por ele defendido como método próprio
da filosofia, tem a ver com a sua idéia de que um saber estrito acerca do espírito “não se
aprende nos livros, mas na luta mesma da vida: é uma ciência que, por assim dizer, não
se aprende, mas vive-se; ciência [...] em que o objeto do conhecimento é consubstancial
com o sujeito36”, razão pela qual “A ‘coisa em si’ ou o espírito [...] só pode ser conhecido
por observação interior37”. Contrariamente às objeções kantianas de que esse método só
fornece ao observador a matéria de um jornal autobiográfico, Farias Brito não só observa
que “Kant confunde introspecção com imaginação38”, como ressalta que “Kant não
admitia ciência senão como sistematização no sentido da causalidade mecânica. Mas há
34
ANJOS, Augusto dos. Monólogo de uma Sombra. In: Eu e outras poesias. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982,
vol. 1, p. 49.
35
Idem, vol. 2, p. 41: Natureza Íntima, soneto dedicado a Farias Brito.
36
BRITO, Raimundo de Farias. O mundo interior. Introdução de Luiz Alberto Cerqueira. Lisboa: INCM, 2003,
p. 70.
37
Idem, p. 408.
38
Idem, p. 410.
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também a causalidade psíquica [...] a causalidade mecânica não é talvez senão uma
sombra da causalidade psíquica”39.
Do ponto de vista de uma realidade sem graça, onde tudo se explica segundo uma
causalidade mecânica estritamente dentro dos limites da experiência, a atividade poética
tem um caráter transcendente, como uma viagem extraordinária ao mundo da idealidade
do pensamento, ao país da fantasia, onde tudo é calma, perfeição e beleza; de onde,
entretanto, o eu retorna kafkanianamente condenado a uma existência absurda, sem
sentido nem esperança, para viver à sombra de si mesmo, numa realidade onde a vida
pode transformar-se, subitamente, em pesadelo e revolta:
39
Idem, p. 411.
40
A casa do Agra, ao fim da Ponte Buarque de Macedo, era o necrotério.
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Vêm-me à imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa...
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes! 42
***
E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,
Sentia, na craniana caixa tosca,
A racionalidade dessa mosca,
43
A consciência terrível desse inseto!
***
Estou sozinho! A estrada se desdobra
Como uma imensa e rutilante cobra
De epiderme finíssima de areia...
E por essa finíssima epiderme
Eis-me passeando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!
[...]
Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.
Referências Bibliográficas:
BARRETO, Tobias. Estudos de filosofia. Introd. e notas de Paulo Mercadante e Antônio Paim. In:
Obras completas. Rio de Janeiro: INL/Record, 1990.
BRITO, Raimundo de Farias. O Mundo Interior: Ensaio Sobre os Dados Gerais da Filosofia do
Espírito. Introd. Luiz Alberto Cerqueira. 3. ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003,
p.1-428.
41
ANJOS, Augusto dos. As Cismas do Destino. In: Eu e outras poesias. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, vol. 1,
p. 60.
42
. Idem, p. 135: Tristezas de um Quarto Minguante.
43
Idem, p. 80: Os Doentes.
44
Idem, 118: A Ilha de Cipango.
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_________Ensaio sobre o Conhecimento. Introd. Luiz Alberto Cerqueira. 3. ed. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2003, p. 429-466.
_________A Base Física do Espírito: História Sumária do Problema como preparação para o
Estudo da Filosofia do Espírito. Brasília: Senado Federal, 2006.
_________A Verdade como Regra das Ações: Ensaio de Filosofia Moral como introdução ao
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_________Farias Brito como expressão da identidade filosófica brasileira. In: BRITO, Raimundo
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_________O sentido interno do tempo no pensamento brasileiro: Farias Brito. Revista Filosófica
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_________A filosofia medieval como fonte da filosofia brasileira. Revista Ágora Filosófica, Recife,
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_________Fontes tomistas da idéia de liberdade no Brasil. Revista Ágora Filosófica, Recife, ano 6,
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MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Fatos do Espírito Humano. 3. ed. Org. e estudo introd. por Luiz
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