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O inconsciente (1915)

O estudo pormenorizado da repressão, que consiste em


evitar que uma dada ideia chegue à consciência, obrigou Freud a
se debruçar profundamente sobre o que seria este “inconsciente”.
Sendo disso que se trata o texto que estudaremos nas próximas
semanas.

I. Justificação do conceito de inconsciente

Freud escreve este item porque existe, na tradição filosófica,


uma resistência muito grande à pressuposição de que possam
haver na mente ideias das quais a pessoa não toma consciência.
Já que para a filosofia todos os processo mentais (uma ideia,
por exemplo) seriam necessariamente conscientes
Freud refuta esta premissa com alguns exemplos.
Primeiro, os níveis de consciência são variáveis e cheios de
lacunas.
Por exemplo, estamos atentos e focados em algo mas, de
repente, nos distraímos com algum pensamento “solto” que vem e
nos leva para longe, sendo difícil explicar, para alguém que nos
pergunte, no que exatamente estávamos pensando e porque
aquilo nos ocorreu. Exemplo do quão variável é nosso estado e
consciência sobre o que pensamos.
Outra coisa é que a quantidade de aspectos dos quais
podemos tomar consciência, ao mesmo tempo, numa dada
situação é muito limitada. Por exemplo, numa festa, demoramos
dias ou semanas para nos conscientizarmos de tudo o que
percebemos lá com os nossos sentidos, e das ideias que nos
ocorreram na ocasião.
Muitas delas ficam latentes, pelo simples fato de que não
seria possível pensá-las todas ao mesmo tempo, ou por serem
incompatíveis com o momento.
A pressuposição de que há ideias ou lembranças latentes é
inevitável se pensarmos na memória, não sendo possível nos
tornarmos conscientes, ao mesmo tempo, de tudo o que já
vivemos ou passamos desde o dia em que nascemos até o
momento atual.
Nesse aspecto, as ideias inconscientes diferiram das
conscientes pelo único ponto de que as primeiras careceriam de
consciência.
Assim, quando o analista diz ao seu paciente, que chega de
cenho franzido e acabrunhado, que ele parece preocupado com
algo, ao que ele responde que sim, mas que não tinha percebido
isso, o analista nada mais fez do que torná-lo consciente do
estado preocupado em que se encontrava.
Freud argumenta que é muito fácil para o homem inferir do
comportamento alheio explicações mentais para os seus atos, do
que fazer isso com os seus próprios.
Por exemplo, pode-se explicar facilmente o comportamento
de um solteirão que não foi ao casamento do amigo pela inveja,
ao passo que se eu mesmo sou o solteirão, posso justificar minha
ausência por não ter tido tempo ou não gostar de festas, mas,
nunca por inveja:

A experiência mostra que compreendemos


muito bem como interpretar em outras
pessoas (isto é, como encaixar em sua cadeia
de eventos mentais) os mesmos atos que nos
recusamos a aceitar como mentais em nós
mesmos. Aqui, evidentemente, algum
impedimento especial desvia nossas
investigações de nosso próprio eu, impedindo
que obtenhamos dele um conhecimento real.

É este o motivo - o de que nunca somos capazes de pensar


coisas desagradáveis de nós mesmos - que torna a auto-análise
impossível.
Daí Freud dizer que tais atos mentais - a inveja, no nosso
exemplo, carecem de consciência. Tratar-se-ia, neste caso, de um
sentimento de inveja inconsciente. Outra forma de dizer que a
pessoa não estaria, neste caso, consciente da própria inveja.
Freud termina o item concluindo que o homem é tão
inconsciente de seus atos mentais quanto seus olhos são
incapazes de enxergar a Terra girando ao redor do Sol.
Ou seja, se o nosso antropoformismo (animismo primitivo) fez
os nossos ancestrais pressuporem uma consciência idêntica à
sua nos rios, nas pedras, no Sol, nas árvores, nas plantas e nos
animais (de onde criaram seus Deuses), também nos fez
paradoxalmente inacessíveis e estranhos à nós mesmos. “Nós
mesmos” que só podemos enxergar nos espelhando nos outros.
O mundo interno de cada um é tão incognoscível quanto os
objetos da realidade, ambos passíveis de serem deformados por
nossos objetos de percepção. Os órgãos do sentido, no caso da
realidade, e a consciência ou a razão, no caso do mundo interior.
Deve-se, pois, desconfiar das percepções adquiridas por
meio da consciência acerca do próprio mundo mental, pois ela
prefere evitar o desconforto à enxergar a verdade, podendo
deformá-la por isso.

II. Vários significados de “O inconsciente” - o ponto de vista


topográfico

O fato de que podem permanecer inconscientes ideias


banais latentes (onde fui em minha última viagem) e outras que
sofreram forte repressão, cujo efeito é a amnésia total (a
masturbação que eu fazia na infância), Freud viu-se obrigado a
criar uma outra nomenclatura, além da anterior, para sistematizar
o inconsciente, que levasse em conta não só o fato da ideia ser ou
não inconsciente, mas o lugar onde ela estava.
Esta diferenciação sistemática ou topográfica passou a ser
importante porque uma ideia pode ser inconsciente (ou
pré-consciente), mas não estar ou nunca ter estado no
Inconsciente. Ou porque nunca sofreu repressão ou porque
nunca deixou de estar no Inconsciente.
A premissa aqui é que ao longo do desenvolvimento
criar-se-ia uma barreira de censura que dividiria o sistema
Consciente do sistema Inconsciente, não permitindo que as ideias
reprimidas chegassem à consciência.
Barreira de censura que afrouxaria durante o sono,
permitindo a emergência do Inconsciente nos sonhos, por
exemplo.
Então, do ponto de vista dinâmico uma ideia latente é
inconsciente, mas do ponto de vista sistemático é consciente (ou
pré-consciente). E uma ideia reprimida seria inconsciente tanto
do ponto de vista descritivo quanto sistemático.
Ao formular que o Inconsciente é um lugar psíquico, mais do
que um só estado, Freud fundamenta o cerne de investigação de
sua psicologia profunda: a psicanálise. Sendo o trabalho do
psicanalista tentar acessar este lugar profundo, obscuro e
desconhecido da mente da própria pessoa.

Mudança de estado ou de lugar?

Freud está interessado em conhecer quão profundo é o


fosso que divide a Consciência do Inconsciente, por isso se
indaga o que ocorreria com uma ideia reprimida, oriunda do
Inconsciente, quando alguém lhe informa sobre ela.
Mudaria ela de estado, permanecendo no mesmo lugar, ou
mudaria de registro, coexistindo nos dois lugares ao mesmo
tempo?
Encaminha sua resposta dizendo que, neste caso, ao que
tudo indica, parece que a ideia passaria a existir nos dois lugares
simultaneamente: no Consciente como um saber racional, a partir
do que se escutou, e no Inconsciente, tal como já existia antes,
como uma lembrança primitiva da experiência, da qual a pessoa
nada sabia.
Este é o momento em que o que se ouve ainda não tem
nenhum efeito no modo como se sente, até que ambas vão
paulatinamente se aproximando.
A repressão só cessaria, portanto, quando, vencidas as
resistências, o paciente viesse a se lembrar daquilo que esqueceu:
Realmente, não há supressão da repressão até que a
ideia consciente, após as resistências terem sido
vencidas, entrem em ligação com o traço de
lembrança inconsciente.

III. Emoções inconscientes

Freud é taxativo ao dizer que afetos e emoções não podem


se tornar inconscientes, pois só ideias são passíveis de repressão.
Afetos não.
O que ocorre com frequência é que um afeto sentido seja
mal interpretado pela pessoa porque ela reprimiu a ideia
correspondente a ele. Caso em que dizemos que ele está
“inconsciente” para a pessoa.
Por exemplo, um paciente, cujo pai foi diagnosticado com
câncer, sentiu-se inexplicavelmente envergonhado e culpado por
ter reprimido a ideia que lhe passou de raspão pela cabeça ao
receber a notícia: antes ele, do que eu. Afeto que, neste caso,
corresponderia ao seu impulso de autopreservação.
Na medida em que afetos são processos de descarga (uma
pessoa feliz, chacoalha as mãos; uma pessoa triste, chora, etc.), o
que pode ocorrer com eles é se tornarem inibidos, mas não
inconscientes, no sentido das ideias.
Freud chama a atenção para o fato curioso de que a
repressão é capaz de inibir um impulso instintual em sua “raiz”,
impedindo-o de se transformar numa manifestação afetiva. Sendo
que é o que ocorre na sublimação.
Por exemplo, numa pessoa saudável psiquicamente, o
impulso instintual sádico pode ser inibido, não vindo a se
expressar em ódio destrutivo, mas ser sublimado nas artes
marciais.
Isso demonstra a importância da Consciência como sede da
repressão e responsável pelo controle da afetividade e motilidade
de uma pessoa. O que evidencia-se numa pessoa normal, capaz
de expressar seus afetos e atividade muscular de forma
organizada.
Decorre daí que existe uma luta constante pela primazia
sobre a afetividade entre os sistemas Cs e Incs, onde, na
normalidade predomina o domínio do Cs sobre o Incs e na
anormalidade, o inverso.

A ansiedade e as ideias substitutivas


Outro destino do impulso instintual é emergir diretamente
do Incs, sem ligar-se a nenhuma ideia, o que a pessoa
experimentará como ansiedade.
Uma terceira possibilidade ainda (além da inibição do
impulso pelo Cs e a emergência da ansiedade) é o impulso
instintual ter que aguardar para ligar-se à alguma ideia
substitutiva, para chegar à Cs.
É o exemplo do pequeno Hans que expressou o impulso
instintual de ser castrado pelo pai, pela ideia de que cavalos eram
perigosos.

IV. Topografia e dinâmica da repressão

Freud trabalha agora com o modelo econômico.


Pressupõe que a repressão e, consequentemente, a
passagem de uma ideia do estado pré-consciente para o
inconsciente ocorreria devido à retirada do investimento (catexia)
libidinal desta.
Aqui a manutenção da ideia em estado inconsciente
dependeria da ação permanente de anticatexias (ou
contra-investimentos) oriundas do sistema Cs-Pcs, o que
explicaria o estado de exaustão geral do psiquismo ao manter
ideias reprimidas no inconsciente.
Pode-se observar a ação destas anticatexias do sistema Cs,
por exemplo, no estado de atenção concentrada e no “pensar”
obsessivo, considerados aqui como defesas contra a emergência
das ideias inconscientes.
Aplicando o modelo econômico nas três neuroses, o quadro
ficaria assim:

Neurose de ansiedade

A pessoa experimenta pela primeira vez uma ansiedade


difusa provocada pela tentativa de algum impulso erótico emergir
do inconsciente.
É o exemplo das crianças entrando na fase edipiana que se
sentem ansiosas quando o desejo erótico por algum dos pais se
intensifica no inconsciente (quando o outro vai viajar, por
exemplo), e tenta forçar entrada no consciente.
As anticatexias do consciente defendem-se contra o impulso
erótico e jogam-no de volta para o inconsciente, e passam a ligar
a ansiedade à uma ideia substitutiva banal, que vai servir de
racionalização contra o impulso original.
Por exemplo, a criança ficará ansiosa quando vir cachorros,
cavalos ou ir à escola, por exemplo, sendo este já o princípio da
doença fóbica. A própria ideia racionalizada para explicar o
motivo da ansiedade servirá como defesa contra a descoberta do
motivo original:

A criança irá se comportar como se não


tivesse qualquer predileção pelo pai (ou pela
mãe), tornando-se inteiramente livre dele,
como se seu medo do animal fosse um temor
real (...)

O ego comporta-se como se o perigo de um


desenvolvimento da ansiedade o ameaçasse
não a partir da direção de um impulso
instintual, mas da direção de uma percepção
(...)

Histeria de conversão

Aqui a catexia do impulso instintual oriundo do inconsciente


converter-se-á em sintomas físicos ao passo que as anticatexias
do Cs comporá a porção do sintoma que representa o esforço
defensivo ou punitivo do sistema Cs contra o desejo proibido. Ao
passo que sua outra parte, representará a satisfação do desejo.
Por exemplo, a histérica Dora desenvolveu sintomas de
apendicite e vômitos que representavam, a um só tempo, seu
desejo de engravidar do senhor K e a punição por tê-lo beijado e
nutrido fantasias de casamento para com ele.
Outra paciente que desenvolveu claudicação no andar
representou com ele o “passo em falso” por ter se apaixonado pelo
cunhado, sintoma com o qual também se punia perdendo a
liberdade de ir e vir.

Neurose obsessiva

Nesta doença é onde as anticatexias do Cs são mais


atuantes e severas, perscrutando qualquer mínimo pensamento e
intenção sob a qual possa emergir um desejo do inconsciente,
contra o qual constrói proibições, rituais e auto expiações. Neste
caso, sempre um desejo agressivo.
Assim, um jovem paciente gravemente doente de um quadro
obsessivo de 18 anos, depois de cometer qualquer pequeno erro
ou deslize (pegar uma porta errada, não ouvir o cumprimento de
alguém) necessitava dizer em voz alta a palavra “perdão”, tal como
um tique ou cacoete, o que lhe deixava em situações sociais muito
embaraçosas.

V. Características especiais do sistema Ics.

O sistema Ics possui características muito próprias sendo


regido pelo processo primário, em oposição ao sistema Cs que é
regido pelo processo secundário.
No processo primário, objetiva-se que os impulsos
instintuais, existentes no inconsciente, atinjam a satisfação via
descarga que é o que acontece, por exemplo, quando sonhamos.
Neurologicamente falando, o chamado sono profundo ou
REM consiste no domínio absoluto do processo primário.
A vigência do processo primário também se vê crianças
pequenas onde o poder do sistema Cs é quase nulo sobre os
impulsos.
O processo primário ou sistema Ics não é capaz de julgar,
pensar logicamente, avaliar, discriminar, etc, sendo estas funções
do sistema Cs.
A negativa, ou seja, a assertiva de que uma “coisa não é” não
existe no sistema Ics, só sendo possível negar algo a partir do
momento em que sistemas Inc e Cs se dividem.
Uma curiosidade sobre isso é que o sistema Cs só consegue
responder a algo que existe no inconsciente pela sua negativa.
Observa-se muito isso nos seres humanos, sobretudo nas
crianças pequenas que dizem: “Eu não bati no Joãozinho" , o que
imediatamente significa dizer que bateram.
Daí Freud dizer no texto que a negativa é um grau mais
elevado da repressão.
O processo primário também desconhece a passagem do
tempo e dá pouca importância à realidade factual. Tudo nele é
um eterno presente.
Isso explica, por exemplo, a sensação borrada e confusa de
tempo de muitas lembranças da nossa infância, principalmente
as carregadas de muito desejo (uma viagem, um brinquedo, um
cheiro ou som, uma paisagem, etc.).
Nisso se vê outras características do processo primário, a
saber, sua capacidade de condensar e deslocar.
Numa lembrança “onírica” podem se condensar muitos
sentidos ao mesmo tempo. Ou, desloca-se para o aroma de um
bolo, por exemplo, a lembrança de algo marcante tornada
inconsciente, que ficará para sempre associada a ele. Freud
chamará isso de lembranças encobridoras.
Em oposição ao processo primário, o sistema Cs, também
chamado processo secundário, discrimina, é lógico, “percebe” o
tempo e a realidade factual.
Ele faz isso inibindo as catexias do inconsciente,
tornando-as mais coerentes e organizadas. Vê-se o êxito máximo
deste sistema inibitório do sistema Cs no pensamento organizado
e coerente.
É muito difícil ter acesso ao Inconsciente em seu estado
puro, pois muito cedo no desenvolvimento, com a maturação
neurológica saudável da criança, o sistema Cs já começa a se
sobrepor sobre ele, estruturando-se enquanto função motora e
tomada de consciência.
O mais próximo que chegamos dele é nos sonhos, nas
crianças e nas doenças nervosas.

VI - Comunicação entre os dois sistemas

Freud associa o Inc a uma tribo aborígene no sentido de


que representam nossos impulsos primitivos, tanto os herdados
filogeneticamente, quanto os exibidos na infância, e depois
forçados a se “descartar” no desenvolvimento.
São como um corpo vivo, que trabalha continuamente no
interior da mente, influenciando todas as funções da Cs, embora
seja desconhecido por ela.
Exemplo, num artista, o Inc pode expressar-se através de sua
obra; numa pessoa comum, numa “intuição”; no cientista, num
insight que o levará à uma descoberta científica.
Diz-se que Picasso tinha uma placa que ele punha no seu
quarto enquanto dormia, e que dizia: “Não perturbe. Artista
trabalhando.”
Um dos produtos mais comuns do Inc que influencia a vida
desperta do sujeito são as fantasias que ficarão pré-conscientes
enquanto não oferecerem perigo, sendo reprimidas assim que o
façam.
Um exemplo muito comum de fantasia inconsciente, típica
da adolescência, é o jovem nutrir fantasias romanescas de que irá
salvar a mãe do pai mau (ou de alguma doença ou perigo, que
representa para ele o mau), em nome do que ela lhe devotará, em
troca, sua fidelidade e amor. Fantasia, aliás, muito trabalhada de
forma distorcida pela cultura em livros e filmes.
O Inc também é afetado por experiências oriundas da
percepção externa, sendo que este canal segue
permanentemente aberto.
É o que explica, por exemplo, vermos ou ouvirmos algo com o
qual sonhamos depois.
Outro fato marcante é o Ins de uma pessoa reagir ao de
outra, sem passar pelo Cs.
Na doença mental, o que ocorre é uma completa falta de
comunicação ou separação total entre o sistema Ins e o Cs.
Já no tratamento psicanalítico, busca-se influenciar o Inc a
partir do Cs.
Por fim, pode ocorrer de um impulso inconsciente tornar-se
aceito no Cs quando o ego passa a justificá-lo por argumentos
racionais. É o que se chama racionalização.
Neste caso, a marca de que se trataria de um impulso
inconsciente seria ele se mostrar fraco à refutação lógica (embora
a pessoa o justifique racionalmente) e expressar-se como um
desejo irresistível e incontrolável.
Por exemplo, eu posso expressar meu impulso de ódio
argumentando que não gosto dela por X ou Y.
Através da racionalização, Freud começou a perceber que o
sistema Cs também tem partes inconscientes que podem se
aliarem ao Inc, ajudando-o a se manifestar.

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