Neste artigo Freud buscará entender melhor algo que
observa em alguns de seus pacientes com traumas de guerra, mas também no modo como algumas pessoas vivem, e que contraria sua tese geral acerca do psiquismo humano buscar o prazer e evitar o desprazer, tratando-se nestes casos, de pessoas que ficam revivendo sua experiência traumática em sonhos, por exemplo, ou em cujos destinos repetem e encontram sempre a mesma situação. Algo que vimos na semana passada, no artigo “O estranho”, estar relacionado ao que ele chamou de compulsão à repetição, e que diz respeito ao caráter fixo da pulsão.
Parte I
Freud inicia chamando a atenção para o fato de que o
princípio de prazer domina de forma imperativa o psiquismo humano, embora curiosamente em algumas situações tal modelo seja de difícil aplicação pela presença massiva do desprazer envolvido. Por exemplo, quando temos que adiar algum prazer para estar em acordo com a realidade, e experimentamos isso como desprazer, e nos sintomas psiconeuróticos, quando a satisfação de algum desejo, há muito recalcado, é experimentada pela pessoa como desprazer e não como prazer. Ele explica, entretanto, que estas duas situações não abalam a hipótese do princípio do prazer, tratando-se, nestes casos, tão somente de um desprazer perceptivo (experimentado como tal) e não de um desprazer propriamente dito.
A teoria do princípio do prazer
Entende-se por princípio do prazer a busca automática do
psiquismo em manter estável e dentro de limites aceitáveis a sua excitação, experimentando desprazer caso tal excitação aumente ou passe do limite tolerável, e prazer uma vez que ela reduza. Assim explica o psicofísico Fechner sobre isso:
Todo movimento psicofísico que se eleve acima
do limiar da consciência será experimentado como prazer na medida em que, além de um certo limite, se aproximar da estabilidade completa, e será experimentado como desprazer na medida em que, além de um certo limite, desviar-se desta estabilidade. Ao passo que entre os dois limites, descritos como limiares quantitativos de prazer e desprazer, haverá uma certa margem de indiferença estética.
Isso significa dizer que o prazer só pode ser experimentado
em relação ao desprazer, pois corresponde à extinção, retirada ou diminuição da excitação desprazerosa, sem a qual haveria indiferença e não prazer. Outra forma de dizer isso é que a sensação psíquica de prazer não advém da ausência do desprazer (experimenta-se isso como indiferença), mas só pode existir em função deste. Por exemplo, o bebezinho só experimenta prazer no instante em que, faminto, for alimentado, para logo depois voltar ao seu estado inicial de indiferença psíquica. Tal princípio precisa ir se adaptando aos poucos à realidade, que oferece uma série de empecilhos, regras e proibições para as pessoas satisfazerem seus desejos. Por exemplo, um homem que gaste todo seu dinheiro porque não suporta o desprazer de não poder comprar os bens que deseja, logo entrará em dívidas ou poderá roubar para isso. Ao passo que outro, mais capaz de postergar seu desejo, poderá poupar para adquirir mais tarde o seu sonho, do que experimentará mais prazer que o primeiro, haja vista que, como vimos acima, a experimentação do prazer só existe em relação ao desprazer, neste caso, a satisfação de finalmente ter dependendo da dor anterior de não poder ter. A isso Freud chama princípio de realidade:
Este último princípio não abandona a
intenção de obter prazer; não obstante exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer. Nesse sentido, Freud diz que os instintos sexuais são os mais difíceis de educar, a saber, de se submeterem ao princípio de realidade. Voltando ao tema central do texto, Freud conclui então que estes dois casos não o auxiliam a ampliar o entendimento da compulsão à repetição, algo que poderá ser melhor entendido estudando-se o modo como a mente humana lida com perigos externos e traumas reais.
Parte II
Freud define as neuroses traumáticas (dentre elas, as de
guerra) como decorrentes de situações onde a pessoa é tomada de surpresa, sofrendo um choque com algo inesperado (um carro ou animal atravessando a pista, uma bomba ou tiro que te atinge) e ficando sem condições de reagir. Outro aspecto interessante dessas neuroses é que ferimentos e danos reais ocasionados podem proteger a pessoa de desenvolver a neurose. Dentre seus sintomas, estariam agitações motoras e grande indisposição subjetiva (desânimo, prostração). Decorre daí a importância de se discriminar ansiedade (estado de expectativa frente a algo desconhecido), medo (temor de algo conhecido) e susto (surpresa), a ansiedade, neste caso, nunca podendo gerar uma neurose traumática e sim o susto. Chama sua atenção nesse aspecto o fato de que os sonhos destas pessoas repetem incessantemente a cena traumática. Outra situação onde há muita repetição de uma mesma situação ou cena é nas brincadeiras das crianças. Freud observou a repetição de uma mesma brincadeira em seu netinho que consistia em lançar para longe de si objetos dizendo a palavra Fort (“Foi”, “Sumiu”), seguida da ação de trazê-lo de volta dizendo um alegre Da (“Voltou”, “apareceu”), o que ele fez certa vez com um carretel. A interpretação dada por Freud a este jogo foi a de que ele estava com ele aprendendo a deixar a mãe partir sem protestar e, principalmente, através da repetição, tornando-se “dona da situação”, donde se conclui que, mesmo nos jogos repetitivos das crianças, o princípio do prazer ainda está em operação. Parte III
Neste item Freud vai buscar na clínica elementos para
entender melhor a compulsão à repetição que opera no paciente em análise. Explica ele que tal compulsão à repetir deriva do inconsciente reprimido, ao passo que o ego resiste a isso, pois a liberação do reprimido lhe produziria desprazer. O que é novo nesse aspecto é que o paciente em análise também costuma repetir situações do passado que nunca lhe trouxeram prazer algum, por exemplo, o amor não correspondido dos pais, suas pesquisas sexuais fracassadas e o ciúme por um novo irmão. Todas situações que o paciente repetirá na transferência. O mesmo ocorre com pessoas normais de quem se tem a impressão de estarem marcadas por um destino maligno. Tais observações, abundantes na vida real, só podem levar a concluir que, de fato, existe na mente uma compulsão à repetição que está acima do princípio do prazer. Compulsão que explicaria os sonhos repetitivos das neuroses traumáticas e o impulso que leva as crianças a brincar, embora dificilmente se possa ver a atuação pura dela em estado puro. Tal compulsão seria algo mais primitivo, mais elementar e mais instintual que o princípio do prazer.
Parte IV
Freud observa nesse item que a compulsão à repetir que se
vê nos sonhos de pessoas traumatizadas e no das pessoas em análise explicar-se-ia pelo fato de que a mente da pessoa estaria buscando “elaborar” a experiência traumática vivida, que lhe teria pego no susto e desprevenido, e sem recursos para lidar com ela na ocasião. Assim, o trauma teria ocorrido porque, na ocasião, o escudo protetor natural do psiquismo da pessoa contra eventos externos excessivamente fortes estava despreparado (“descatexizado”), o que teria gerado um rompimento momentâneo de tal barreira protetora. Isso geraria uma pane momentânea no princípio do prazer-desprazer, guardião da vida, e acionaria um princípio anterior à ele, cuja função primordial seria tentar buscar religar as experiências traumáticas pelo pensamento e pela fala, inserindo-as num campo possível de ser pensado e narrado em palavras. Outro fator traumático para o psiquismo adviria não dos eventos externos, mas a partir de dentro, gerado por um aumento instintual, situação que também colocaria em suspenso o princípio do prazer, protetor da vida, e acionaria o sistema anterior, “além do princípio do prazer”. Decorre daí que tal sistema parece ter tido originalmente a função de proteger o psiquismo em sua desesperada luta contra as grandiosas forças externas e seus tempestuosos instintos internos, sendo um exemplo da atuação defensiva deste sistema elaborativo primário o mecanismo da projeção. O surgimento da consciência e dos órgãos do sentido, neste caso, teria sido o resultado deste estado de total desamparo dos organismos vivos antes os perigos externos e internos, já que sua função seria a de, primeiro, proteger o interior do organismo amortecendo os estímulos externos e, segundo, discriminar, aprender e memorizar o que seria perigoso ou não para a sua sobrevivência. Um detalhe importante neste aspecto é que como o princípio do prazer é imperativo, quando o sistema está funcionando bem, ele tem mais prevalência sobre o sistema Cs do que as percepções externas, o que explica que muitos seres humanos, senão quase todos, coloquem o prazer acima de sua percepção da realidade. Conclui-se deste item que a preponderância da compulsão à repetir evidencia a presença de traumas psíquicos, entendendo-os por isso: 1) uma situação externa ou interna que rompeu a barreira psíquica e que era suportável para aquela pessoa; 2) um ego descatexizado e, portanto, sem recursos simbólicos para pensar ou falar sobre aquilo.
Parte V
Como o aparelho psíquico não possui uma barreira
protetora contra os instintos, o aumento massivo dos mesmos tem um efeito comparável no psiquismo às neuroses traumáticas. Nesse aspecto, somente se o psiquismo for capaz de sujeitar ou dominar tais instintos regidos pelo processo primário, é que o princípio do prazer se estabelecerá, caso contrário prevalecerá a compulsão a repetir. Assim, em todas as condutas onde a compulsão à repetição prevalece o que se tem é a atuação massiva de instintos e/ou experiências que não foram dominadas pelo psiquismo, e que por isso mesmo agem desligada do princípio do prazer, trazendo sofrimento e destruição. Dito de outro modo: para que o guardião da vida psíquica (o princípio do prazer) se estabeleça é importante que o psiquismo seja capaz de produzir sentido sobre suas experiências e aprenda a dominar seus instintos, escapando assim da compulsão a repetir. Explica-se o caráter repetitivo dos instintos pelo fato deles serem, em sua natureza, impulsos inerentes da vida orgânica que buscam restaurar sua condição inicial que foi perturbada por forças externas, já que todo instinto é naturalmente conservador. Por exemplo, um grupo de aves ou de tartarugas sempre voltará ao mesmo lugar para procriar, por gerações e gerações. Assim, ao contrário do que se pensa, toda substância viva tem uma natureza inercial e conservadora. Nesse aspecto, toda “evolução” que ocorre na vida orgânica decorre de acidentes ou pressões externas que a desviam do seu caminho habitual, que ele buscará tão logo recuperar. Daí a ideia de Freud de que toda vida é um acidente de percurso que desvia a vida orgânica de seu estado de não existência, para a qual ela buscará ao final de tudo sempre voltar, sendo que quanto mais complexo o organismo, maior será este desvio. Ou seja, toda existência contém em si mesma um ímpeto de restabelecer seu estado inicial de não existência, ao que Freud designa instinto de morte ou Thanatos. Ressalta-se neste aspecto que a luta do organismo por conservar este grande détour que é a vida, o que se chama instinto de autoconservação, corresponderá ao anseio do mesmo de morrer por seus próprios termos, e não por algo que seja externo a ele:
O organismo vivo luta com toda sua energia contra
fatos (perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a atingir mais rapidamente seu objetivo de vida (ou seja, a morte). Contrariamente a tal tendência de retornar ao estado de não vida, as células germinais (no humano, óvulo e espermatozóide), teriam a tendência oposta, a saber, se multiplicar e se fundir a outra, similiar mas diferente de si mesma, instinto que Freud nomeia de instinto de vida ou Eros. Tal instinto corresponderia à tendência inata destes organismos elementares sexuais que sobrevivem ao próprio indivíduo que lhe deu origem, sendo o modelo mais contundente disso o encontro do óvulo com o espermatozóide originando um ser, ao mesmo tempo igual e completamente diferente de ambos, que levará adiante a espécie. Nesse aspecto, o instinto de vida para Freud corresponde aos esforços da espécie para se perpetuar, alheio aos interesses e à vida do próprio indivíduo. Tal instinto também não é progressivo nem tende ao desenvolvimento, mas visa, como o outro, a conservar e repetir um padrão repetitivo e inato em toda espécie existente, a saber, se perpetuar.
Parte VI
Neste item, Freud propõe investigar se a biologia confirma
sua premissa de que toda substância viva está fadada a morrer por causas internas, a saber, por substâncias nocivas produzidas por seu próprio metabolismo ou se haveria situações onde a substância viva pudesse ser imortal. Um exemplo de substância nociva produzida pelo metabolismo celular para manter vivo o organismo é a respiração onde o oxigênio, necessário à vida, é transformado em gás carbônico tóxico, precisando ser rapidamente eliminado. O argumento filosófico por trás dessa reflexão é que seria mais fácil aceitar a morte de todo ser vivo sendo esta uma lei imperiosa da natureza do que se a morte fosse obra do acaso, do qual então se poderia tentar fugir. Ressalta-se que o entendimento da morte como sendo algo natural é absolutamente estranho às raças primitivas, atribuindo-a à influência de inimigos ou ação de um mal espírito. Na biologia, existe pouquíssimo acordo entre os biólogos sobre a morte ser ou não um destino natural e inevitável à toda criatura viva. Vide, por exemplo, algumas árvores de quem nem se pode computar mais os anos de vida. Weismann, por exemplo, considerou que os organismos unicelulares são imortais, podendo se reproduzir infinitamente por cissiparidade ou bipartição, sendo este, por exemplo, o caso das bactérias que se reproduzem de forma assexuada.
Para ele, a morte só teria surgido nos organismos
multicelulares onde a divisão entre as células somáticas e as células reprodutoras ou sexuais, teria tornado um luxo a imortalidade do indivíduo. Ressalta-se que tal divisão acompanha a divisão de Freud entre os instintos do ego (mortais) e os instintos sexuais (imortais). Já outros experimentadores como Maupas e Calkins demonstraram que mesmo organismos unicelulares tornam-se enfraquecidos, senis e acabam por morrer após um número muito alto de divisões. Achados que acabaram por refutar a premissa de Weismann de que a morte teria sido uma aquisição tardia dos organismos vivos, após sua divisão entre soma e plasma. Conclui-se daí que a morte, dos organismos uni e multicelulares, parece advir dos produtos excretados pelo próprio metabolismo, já que, nos experimentos onde os organismos unicelulares viviam eternamente, à cada geração se trocava o fluido circundante. Morrer-se-ia, nesse sentido, intoxicado pelos próprios resíduos metabólitos necessários para se manter a vida, o que corrobora a tese do instinto de morte.
O instinto de vida
Freud vê a atuação do instinto de vida, a saber, uma
tendência da vida à manter as coisas através de ligações, na tendência evolutiva das células de se ligarem entre si. Por exemplo, uma comunidade de células continuará viva mesmo que algumas individuais morram. No nível psíquico, isso se traduziria por ser o instinto de vida, ou Eros, o responsável por manter as células somáticas ligadas umas às outras, e o sujeito numa boa relação com seu corpo. Outra forma de dizer isso seria que o instinto de vida, responsável por manter as coisas vivas, defletiria o instinto de morte do interior das células para fora, por exemplo, sob a forma de agressividade, garantindo com que o organismo se salvasse momentaneamente de sua própria tendência à morrer, embora ao final, o instinto de morte venceria. Um exemplo do instinto de morte defletido pelo ego seria, neste caso, o sadismo e o instinto de destruição. Freud diz algo muito interessante nesse ponto: que os processos vitais do organismo levariam à morte porque tenderiam a abolir as tensões químicas, ao passo que a união entre substâncias vivas diferentes aumentaria tais tensões, o que geraria uma renovação ou rejuvenescimento. Ve-se isso claramente na vida humana: no envelhecimento do organismo, na rotina extenuante do dia-a-dia, sente-se estagnação, ao passo que na criancinha pequena e no contato forçado com o diferente, sente-se renovação. Finalizando, Freud especula que o instinto de vida teria operado desde o início da vida sobre a Terra ao lado do instinto de morte e teria tido como objetivo, desde sempre, reunir as partes que foram separadas por ocasião da animação da vida.
Parte VII
Freud conclui que a tendência à repetição, própria aos
instintos, não opera em oposição ao princípio do prazer, mas à serviço dele. A saber, será necessário que a mente aprenda a sujeitar o caráter repetitivo dos instintos para que o princípio do prazer se instaure. Assim, na medida em que o princípio do prazer visaria à diminuição da excitação ao nível zero ele operaria em conformidade com o instinto de morte. Aprender a sujeitar um impulso instintual seria etapa preliminar para que a excitação pudesse ser totalmente eliminada na descarga. Vê-se bem isso no orgasmo sexual: para haver uma descarga absoluta no orgasmo, o psiquismo deve ter sido capaz antes de fazer um bom trabalho de sujeição instintual, caso contrário, a descarga sempre será completa e insatisfatória. Outro ponto é que os processos excitatórios livres originam sentimentos de prazer e desprazer muito mais intensos do que os vinculados, o que explica, por exemplo, porque pensar dá muito menos prazer do que comer, por exemplo. Daí que no início da vida humana os sentimentos de prazer e desprazer deviam ser muito mais intensos, mas também menos garantidos, ao passo que, com a evolução, tornaram-se menos intensos (“mais vinculados”), mas também mais garantidos. Outro fato notável é que o instinto de vida aciona mais prontamente nossa percepção interna, sendo sentido como algo que rompe a paz, produz tensão e desconforto, cujo alívio é sentido como prazer, ao passo que o instinto de morte é mais silencioso e não dá sinais contundentes de estar agindo.