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Além do princípio do prazer (1920)

Neste artigo Freud buscará entender melhor algo que


observa em alguns de seus pacientes com traumas de guerra,
mas também no modo como algumas pessoas vivem, e que
contraria sua tese geral acerca do psiquismo humano buscar o
prazer e evitar o desprazer, tratando-se nestes casos, de pessoas
que ficam revivendo sua experiência traumática em sonhos, por
exemplo, ou em cujos destinos repetem e encontram sempre a
mesma situação.
Algo que vimos na semana passada, no artigo “O estranho”,
estar relacionado ao que ele chamou de compulsão à repetição, e
que diz respeito ao caráter fixo da pulsão.

Parte I

Freud inicia chamando a atenção para o fato de que o


princípio de prazer domina de forma imperativa o psiquismo
humano, embora curiosamente em algumas situações tal modelo
seja de difícil aplicação pela presença massiva do desprazer
envolvido.
Por exemplo, quando temos que adiar algum prazer para
estar em acordo com a realidade, e experimentamos isso como
desprazer, e nos sintomas psiconeuróticos, quando a satisfação
de algum desejo, há muito recalcado, é experimentada pela
pessoa como desprazer e não como prazer.
Ele explica, entretanto, que estas duas situações não abalam
a hipótese do princípio do prazer, tratando-se, nestes casos, tão
somente de um desprazer perceptivo (experimentado como tal) e
não de um desprazer propriamente dito.

A teoria do princípio do prazer

Entende-se por princípio do prazer a busca automática do


psiquismo em manter estável e dentro de limites aceitáveis a sua
excitação, experimentando desprazer caso tal excitação aumente
ou passe do limite tolerável, e prazer uma vez que ela reduza.
Assim explica o psicofísico Fechner sobre isso:

Todo movimento psicofísico que se eleve acima


do limiar da consciência será experimentado
como prazer na medida em que, além de um
certo limite, se aproximar da estabilidade
completa, e será experimentado como
desprazer na medida em que, além de um
certo limite, desviar-se desta estabilidade. Ao
passo que entre os dois limites, descritos como
limiares quantitativos de prazer e desprazer,
haverá uma certa margem de indiferença
estética.

Isso significa dizer que o prazer só pode ser experimentado


em relação ao desprazer, pois corresponde à extinção, retirada ou
diminuição da excitação desprazerosa, sem a qual haveria
indiferença e não prazer.
Outra forma de dizer isso é que a sensação psíquica de
prazer não advém da ausência do desprazer (experimenta-se isso
como indiferença), mas só pode existir em função deste.
Por exemplo, o bebezinho só experimenta prazer no instante
em que, faminto, for alimentado, para logo depois voltar ao seu
estado inicial de indiferença psíquica.
Tal princípio precisa ir se adaptando aos poucos à
realidade, que oferece uma série de empecilhos, regras e
proibições para as pessoas satisfazerem seus desejos.
Por exemplo, um homem que gaste todo seu dinheiro porque
não suporta o desprazer de não poder comprar os bens que
deseja, logo entrará em dívidas ou poderá roubar para isso.
Ao passo que outro, mais capaz de postergar seu desejo,
poderá poupar para adquirir mais tarde o seu sonho, do que
experimentará mais prazer que o primeiro, haja vista que, como
vimos acima, a experimentação do prazer só existe em relação ao
desprazer, neste caso, a satisfação de finalmente ter dependendo
da dor anterior de não poder ter.
A isso Freud chama princípio de realidade:

Este último princípio não abandona a


intenção de obter prazer; não obstante exige e
efetua o adiamento da satisfação, o abandono
de uma série de possibilidades de obtê-la e a
tolerância temporária do desprazer como uma
etapa no longo e indireto caminho para o
prazer.
Nesse sentido, Freud diz que os instintos sexuais são os mais
difíceis de educar, a saber, de se submeterem ao princípio de
realidade.
Voltando ao tema central do texto, Freud conclui então que
estes dois casos não o auxiliam a ampliar o entendimento da
compulsão à repetição, algo que poderá ser melhor entendido
estudando-se o modo como a mente humana lida com perigos
externos e traumas reais.

Parte II

Freud define as neuroses traumáticas (dentre elas, as de


guerra) como decorrentes de situações onde a pessoa é tomada
de surpresa, sofrendo um choque com algo inesperado (um carro
ou animal atravessando a pista, uma bomba ou tiro que te atinge)
e ficando sem condições de reagir.
Outro aspecto interessante dessas neuroses é que
ferimentos e danos reais ocasionados podem proteger a pessoa
de desenvolver a neurose. Dentre seus sintomas, estariam
agitações motoras e grande indisposição subjetiva (desânimo,
prostração).
Decorre daí a importância de se discriminar ansiedade
(estado de expectativa frente a algo desconhecido), medo (temor
de algo conhecido) e susto (surpresa), a ansiedade, neste caso,
nunca podendo gerar uma neurose traumática e sim o susto.
Chama sua atenção nesse aspecto o fato de que os sonhos
destas pessoas repetem incessantemente a cena traumática.
Outra situação onde há muita repetição de uma mesma
situação ou cena é nas brincadeiras das crianças.
Freud observou a repetição de uma mesma brincadeira em
seu netinho que consistia em lançar para longe de si objetos
dizendo a palavra Fort (“Foi”, “Sumiu”), seguida da ação de trazê-lo
de volta dizendo um alegre Da (“Voltou”, “apareceu”), o que ele fez
certa vez com um carretel.
A interpretação dada por Freud a este jogo foi a de que ele
estava com ele aprendendo a deixar a mãe partir sem protestar e,
principalmente, através da repetição, tornando-se “dona da
situação”, donde se conclui que, mesmo nos jogos repetitivos das
crianças, o princípio do prazer ainda está em operação.
Parte III

Neste item Freud vai buscar na clínica elementos para


entender melhor a compulsão à repetição que opera no paciente
em análise.
Explica ele que tal compulsão à repetir deriva do
inconsciente reprimido, ao passo que o ego resiste a isso, pois a
liberação do reprimido lhe produziria desprazer.
O que é novo nesse aspecto é que o paciente em análise
também costuma repetir situações do passado que nunca lhe
trouxeram prazer algum, por exemplo, o amor não correspondido
dos pais, suas pesquisas sexuais fracassadas e o ciúme por um
novo irmão. Todas situações que o paciente repetirá na
transferência.
O mesmo ocorre com pessoas normais de quem se tem a
impressão de estarem marcadas por um destino maligno.
Tais observações, abundantes na vida real, só podem levar a
concluir que, de fato, existe na mente uma compulsão à repetição
que está acima do princípio do prazer. Compulsão que explicaria
os sonhos repetitivos das neuroses traumáticas e o impulso que
leva as crianças a brincar, embora dificilmente se possa ver a
atuação pura dela em estado puro.
Tal compulsão seria algo mais primitivo, mais elementar e
mais instintual que o princípio do prazer.

Parte IV

Freud observa nesse item que a compulsão à repetir que se


vê nos sonhos de pessoas traumatizadas e no das pessoas em
análise explicar-se-ia pelo fato de que a mente da pessoa estaria
buscando “elaborar” a experiência traumática vivida, que lhe teria
pego no susto e desprevenido, e sem recursos para lidar com ela
na ocasião.
Assim, o trauma teria ocorrido porque, na ocasião, o escudo
protetor natural do psiquismo da pessoa contra eventos externos
excessivamente fortes estava despreparado (“descatexizado”), o
que teria gerado um rompimento momentâneo de tal barreira
protetora.
Isso geraria uma pane momentânea no princípio do
prazer-desprazer, guardião da vida, e acionaria um princípio
anterior à ele, cuja função primordial seria tentar buscar religar
as experiências traumáticas pelo pensamento e pela fala,
inserindo-as num campo possível de ser pensado e narrado em
palavras.
Outro fator traumático para o psiquismo adviria não dos
eventos externos, mas a partir de dentro, gerado por um aumento
instintual, situação que também colocaria em suspenso o
princípio do prazer, protetor da vida, e acionaria o sistema
anterior, “além do princípio do prazer”.
Decorre daí que tal sistema parece ter tido originalmente a
função de proteger o psiquismo em sua desesperada luta contra
as grandiosas forças externas e seus tempestuosos instintos
internos, sendo um exemplo da atuação defensiva deste sistema
elaborativo primário o mecanismo da projeção.
O surgimento da consciência e dos órgãos do sentido, neste
caso, teria sido o resultado deste estado de total desamparo dos
organismos vivos antes os perigos externos e internos, já que sua
função seria a de, primeiro, proteger o interior do organismo
amortecendo os estímulos externos e, segundo, discriminar,
aprender e memorizar o que seria perigoso ou não para a sua
sobrevivência.
Um detalhe importante neste aspecto é que como o
princípio do prazer é imperativo, quando o sistema está
funcionando bem, ele tem mais prevalência sobre o sistema Cs do
que as percepções externas, o que explica que muitos seres
humanos, senão quase todos, coloquem o prazer acima de sua
percepção da realidade.
Conclui-se deste item que a preponderância da compulsão à
repetir evidencia a presença de traumas psíquicos,
entendendo-os por isso: 1) uma situação externa ou interna que
rompeu a barreira psíquica e que era suportável para aquela
pessoa; 2) um ego descatexizado e, portanto, sem recursos
simbólicos para pensar ou falar sobre aquilo.

Parte V

Como o aparelho psíquico não possui uma barreira


protetora contra os instintos, o aumento massivo dos mesmos tem
um efeito comparável no psiquismo às neuroses traumáticas.
Nesse aspecto, somente se o psiquismo for capaz de sujeitar
ou dominar tais instintos regidos pelo processo primário, é que o
princípio do prazer se estabelecerá, caso contrário prevalecerá a
compulsão a repetir.
Assim, em todas as condutas onde a compulsão à repetição
prevalece o que se tem é a atuação massiva de instintos e/ou
experiências que não foram dominadas pelo psiquismo, e que por
isso mesmo agem desligada do princípio do prazer, trazendo
sofrimento e destruição.
Dito de outro modo: para que o guardião da vida psíquica (o
princípio do prazer) se estabeleça é importante que o psiquismo
seja capaz de produzir sentido sobre suas experiências e aprenda
a dominar seus instintos, escapando assim da compulsão a
repetir.
Explica-se o caráter repetitivo dos instintos pelo fato deles
serem, em sua natureza, impulsos inerentes da vida orgânica que
buscam restaurar sua condição inicial que foi perturbada por
forças externas, já que todo instinto é naturalmente conservador.
Por exemplo, um grupo de aves ou de tartarugas sempre
voltará ao mesmo lugar para procriar, por gerações e gerações.
Assim, ao contrário do que se pensa, toda substância viva
tem uma natureza inercial e conservadora.
Nesse aspecto, toda “evolução” que ocorre na vida orgânica
decorre de acidentes ou pressões externas que a desviam do seu
caminho habitual, que ele buscará tão logo recuperar.
Daí a ideia de Freud de que toda vida é um acidente de
percurso que desvia a vida orgânica de seu estado de não
existência, para a qual ela buscará ao final de tudo sempre voltar,
sendo que quanto mais complexo o organismo, maior será este
desvio.
Ou seja, toda existência contém em si mesma um ímpeto de
restabelecer seu estado inicial de não existência, ao que Freud
designa instinto de morte ou Thanatos.
Ressalta-se neste aspecto que a luta do organismo por
conservar este grande détour que é a vida, o que se chama
instinto de autoconservação, corresponderá ao anseio do mesmo
de morrer por seus próprios termos, e não por algo que seja
externo a ele:

O organismo vivo luta com toda sua energia contra


fatos (perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a
atingir mais rapidamente seu objetivo de vida (ou seja, a
morte).
Contrariamente a tal tendência de retornar ao estado de
não vida, as células germinais (no humano, óvulo e
espermatozóide), teriam a tendência oposta, a saber, se
multiplicar e se fundir a outra, similiar mas diferente de si mesma,
instinto que Freud nomeia de instinto de vida ou Eros.
Tal instinto corresponderia à tendência inata destes
organismos elementares sexuais que sobrevivem ao próprio
indivíduo que lhe deu origem, sendo o modelo mais contundente
disso o encontro do óvulo com o espermatozóide originando um
ser, ao mesmo tempo igual e completamente diferente de ambos,
que levará adiante a espécie.
Nesse aspecto, o instinto de vida para Freud corresponde
aos esforços da espécie para se perpetuar, alheio aos interesses e
à vida do próprio indivíduo.
Tal instinto também não é progressivo nem tende ao
desenvolvimento, mas visa, como o outro, a conservar e repetir um
padrão repetitivo e inato em toda espécie existente, a saber, se
perpetuar.

Parte VI

Neste item, Freud propõe investigar se a biologia confirma


sua premissa de que toda substância viva está fadada a morrer
por causas internas, a saber, por substâncias nocivas produzidas
por seu próprio metabolismo ou se haveria situações onde a
substância viva pudesse ser imortal.
Um exemplo de substância nociva produzida pelo
metabolismo celular para manter vivo o organismo é a respiração
onde o oxigênio, necessário à vida, é transformado em gás
carbônico tóxico, precisando ser rapidamente eliminado.
O argumento filosófico por trás dessa reflexão é que seria
mais fácil aceitar a morte de todo ser vivo sendo esta uma lei
imperiosa da natureza do que se a morte fosse obra do acaso, do
qual então se poderia tentar fugir.
Ressalta-se que o entendimento da morte como sendo algo
natural é absolutamente estranho às raças primitivas,
atribuindo-a à influência de inimigos ou ação de um mal espírito.
Na biologia, existe pouquíssimo acordo entre os biólogos
sobre a morte ser ou não um destino natural e inevitável à toda
criatura viva. Vide, por exemplo, algumas árvores de quem nem se
pode computar mais os anos de vida.
Weismann, por exemplo, considerou que os organismos
unicelulares são imortais, podendo se reproduzir infinitamente
por cissiparidade ou bipartição, sendo este, por exemplo, o caso
das bactérias que se reproduzem de forma assexuada.

Para ele, a morte só teria surgido nos organismos


multicelulares onde a divisão entre as células somáticas e as
células reprodutoras ou sexuais, teria tornado um luxo a
imortalidade do indivíduo. Ressalta-se que tal divisão acompanha
a divisão de Freud entre os instintos do ego (mortais) e os
instintos sexuais (imortais).
Já outros experimentadores como Maupas e Calkins
demonstraram que mesmo organismos unicelulares tornam-se
enfraquecidos, senis e acabam por morrer após um número muito
alto de divisões. Achados que acabaram por refutar a premissa
de Weismann de que a morte teria sido uma aquisição tardia dos
organismos vivos, após sua divisão entre soma e plasma.
Conclui-se daí que a morte, dos organismos uni e
multicelulares, parece advir dos produtos excretados pelo próprio
metabolismo, já que, nos experimentos onde os organismos
unicelulares viviam eternamente, à cada geração se trocava o
fluido circundante.
Morrer-se-ia, nesse sentido, intoxicado pelos próprios
resíduos metabólitos necessários para se manter a vida, o que
corrobora a tese do instinto de morte.

O instinto de vida

Freud vê a atuação do instinto de vida, a saber, uma


tendência da vida à manter as coisas através de ligações, na
tendência evolutiva das células de se ligarem entre si.
Por exemplo, uma comunidade de células continuará viva
mesmo que algumas individuais morram.
No nível psíquico, isso se traduziria por ser o instinto de
vida, ou Eros, o responsável por manter as células somáticas
ligadas umas às outras, e o sujeito numa boa relação com seu
corpo.
Outra forma de dizer isso seria que o instinto de vida,
responsável por manter as coisas vivas, defletiria o instinto de
morte do interior das células para fora, por exemplo, sob a forma
de agressividade, garantindo com que o organismo se salvasse
momentaneamente de sua própria tendência à morrer, embora ao
final, o instinto de morte venceria.
Um exemplo do instinto de morte defletido pelo ego seria,
neste caso, o sadismo e o instinto de destruição.
Freud diz algo muito interessante nesse ponto: que os
processos vitais do organismo levariam à morte porque
tenderiam a abolir as tensões químicas, ao passo que a união
entre substâncias vivas diferentes aumentaria tais tensões, o que
geraria uma renovação ou rejuvenescimento.
Ve-se isso claramente na vida humana: no envelhecimento
do organismo, na rotina extenuante do dia-a-dia, sente-se
estagnação, ao passo que na criancinha pequena e no contato
forçado com o diferente, sente-se renovação.
Finalizando, Freud especula que o instinto de vida teria
operado desde o início da vida sobre a Terra ao lado do instinto
de morte e teria tido como objetivo, desde sempre, reunir as
partes que foram separadas por ocasião da animação da vida.

Parte VII

Freud conclui que a tendência à repetição, própria aos


instintos, não opera em oposição ao princípio do prazer, mas à
serviço dele. A saber, será necessário que a mente aprenda a
sujeitar o caráter repetitivo dos instintos para que o princípio do
prazer se instaure.
Assim, na medida em que o princípio do prazer visaria à
diminuição da excitação ao nível zero ele operaria em
conformidade com o instinto de morte.
Aprender a sujeitar um impulso instintual seria etapa
preliminar para que a excitação pudesse ser totalmente eliminada
na descarga.
Vê-se bem isso no orgasmo sexual: para haver uma descarga
absoluta no orgasmo, o psiquismo deve ter sido capaz antes de
fazer um bom trabalho de sujeição instintual, caso contrário, a
descarga sempre será completa e insatisfatória.
Outro ponto é que os processos excitatórios livres originam
sentimentos de prazer e desprazer muito mais intensos do que os
vinculados, o que explica, por exemplo, porque pensar dá muito
menos prazer do que comer, por exemplo.
Daí que no início da vida humana os sentimentos de prazer
e desprazer deviam ser muito mais intensos, mas também menos
garantidos, ao passo que, com a evolução, tornaram-se menos
intensos (“mais vinculados”), mas também mais garantidos.
Outro fato notável é que o instinto de vida aciona mais
prontamente nossa percepção interna, sendo sentido como algo
que rompe a paz, produz tensão e desconforto, cujo alívio é
sentido como prazer, ao passo que o instinto de morte é mais
silencioso e não dá sinais contundentes de estar agindo.

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