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EU, CLARICE

Ana Laura Moraes Martinez

2015
PRÓLOGO

Cada vida humana que nasce é uma aurora. Antes de cada nascimento, misterioso e enigmático,
uma claridade se acende, em algum lugar, anunciando que o milagre da vida se deu. Hora de esperança,
medo e temor. A vida é como um dia. Caminhamos da aurora ao crepúsculo. Do encantamento da luz ao
mistério da noite. Viver e morrer: duas notas de uma melodia só.
CAPÍTULOS

AURORA

Meu nascimento.............................................................................................................................................
O cigarro de papai.........................................................................................................................................
Meu irmão alienígena....................................................................................................................................
Devastação......................................................................................................................................................
A vela...............................................................................................................................................................
Por que as cartolinas molham? ....................................................................................................................
Não se salva uma família sendo criança.......................................................................................................
Meu gato Mozart............................................................................................................................................
Deus.................................................................................................................................................................
Eu e mamãe....................................................................................................................................................
Por que as meninas sangram? .....................................................................................................................
Primeiro beijo.................................................................................................................................................
Hiato................................................................................................................................................................
Primeiros anos da maturidade......................................................................................................................
CREPÚSCULO

Vida é travessia..............................................................................................................................................
O prazer de ser mulher..................................................................................................................................
Resgate de almas............................................................................................................................................
Irmão pássaro azul.........................................................................................................................................
O amor se descobre em mim.........................................................................................................................
Chico e Frida, nossas companhias felinas....................................................................................................
Minha casa, meu oásis...................................................................................................................................
Liberdade provoca inveja..............................................................................................................................
Mintaka, Alnilam e Alnintak: minhas três Marias.....................................................................................
Prazer na ausência.........................................................................................................................................
E o ciclo da vida começa a se encerrar.........................................................................................................
Canção de despedida......................................................................................................................................
Minha morte...................................................................................................................................................
Sonata do adeus..............................................................................................................................................
AURORA
Meu nascimento
Nasci no dia vinte e três de julho de mil novecentos e setenta e oito, à meia-noite e quinze, no
Hospital Nossa Senhora da Consolação. Curioso já nascer precisando de consolação.
Meu nome de batismo é Clarice Nunes Mariano. Mariano por parte de pai, Nunes por parte de
mãe. Sempre tive curiosidade de saber a história das coisas e por isso perguntei à mamãe, certa vez,
porque me deu este nome. Sua resposta foi:
- Quero que você encontre a luz que eu nunca achei... Você será clara, minha filha.
Responsabilidade imensa para uma pequena vida que acabava de despontar, não é? Encontrar a luz
que a minha mãe, por desatenção ou falta de sorte, nunca encontrou.
Portanto, já nasci com uma missão nada fácil. Descobrir a luz nunca encontrada por minha mãe.
Sugiro que você investigue qual sua missão secreta nessa vida. Todos nós temos uma. É mais ou
menos como uma herança, maldita ou bendita, que os nossos pais nos deixam sem saber. Podemos herdar
ouro, mas também promissórias impagáveis que, quase sempre, vêm se arrastando gerações a fio porque
alguém, na família, decidiu que não queria saber delas e as passou adiante. É mais ou menos assim que
funciona a vida de uma criança: quando nascemos já há um script pronto, um papel que temos que
desempenhar. A desgraça é que ninguém nos avisa que papel é este. Temos que descobrir por conta
própria.
Bem, mas voltemos ao início.
Eu nasci e concretamente isso não significou grande coisa para o universo. Mozart, Beethoven,
Bach, Aristóteles, Sófocles, Homero, Einstein, todos eles, muito mais sábios e evoluídos que eu, também
nasceram e morreram. Grande coisa, diz o universo. Se você chama isso de pessimismo da minha parte,
eu chamo de realismo.
Sina ou não, eu já nasci bem realista. Nunca gostei de enganações para cima de mim.
Bem, mas já que estamos todos aqui como inquilinos, e temos que encontrar algo de útil para fazer
até que a morte venha, decidi escrever minha modesta história.
Fica a seu critério lê-la ou não. Mas se a ler, saberá aos poucos, que não é uma história muito
diferente da de qualquer outro ser humano: tem pequenas tragédias, alguns momentos cômicos, crises,
frustrações, amor, drama e morte. Nada muito diferente de qualquer outro script. O que há de especial
nela – se é que há – é o fato de eu estar imbuída de um sincero desejo de encontrar algum sentido nesta
lógica ilógica vida.
Então, se você decidiu me acompanhar, ou porque não tem nada melhor para fazer, ou porque
também não sabe muito bem qual o sentido da vida, basta me seguir.
- Coragem!
Vou começar contando alguns detalhes do meu nascimento. Sei que ninguém gosta de saber disso:
sangue, restos de placenta, bebê roxo etc. Mas tirando estes detalhes um pouco nojentos, você vai
concordar comigo que há uma certa poesia no ato de nascer. Eu sempre me emociono vendo partos pela
televisão.
- Você não?
Acompanhe minha narrativa. Irei me esforçar para levá-lo de volta à metamorfose gosmenta e
assustadora que é um nascimento. Espero que eu consiga, usando somente estas fracassadas palavras, que
é tudo o que tenho.
Vejo tudo borrado. Não posso ainda dizer que vejo, porque nem sei que tenho olhos, ouvidos,
mãos, cabeça e pés.
- Onde estou? Pergunto esgoelando, embora ninguém me entenda.
Também não posso dizer onde eu estou, porque não sei que eu existo. Sou um nada. Sopro de
consciência.
Minha mãe me contou que eu nasci roxa e muito cabeluda. Tinha pelos por todo o meu corpo.
Coitada, ela deve ter se assustado, embora, por educação ou amor, nunca tenha me dito nada a respeito.
Acho que nasci um pouco bicho. Uma mistura de loba e criança, talvez.
Na minha primeira hora de vida respiro com dificuldade. Ainda não sei respirar fora da água.
- Como é que se faz isso mesmo? Alguém pode me ajudar... Estou apavorada. Sinto algo se
movimentar dentro de meu pequeno corpo, mas não sei o que é. Minha barriga mexe sem parar, tudo dói
lá dentro. Estou como uma autômata. Por favor, o façam parar... Estou nervosa e excitada. Preciso
dormir, mas tenho medo de cair no abismo escuro. Alguém, por favor, pode segurar a minha mão para
que eu passe pelo túnel? Ah, finalmente...
Sinto os dedos de minha mãe passando sobre mim. Agarro um deles com minhas mãos como se
aquele dedo fosse minha tábua de salvação. Embalada por este calor, consigo finalmente dormir fora do
útero pela primeira vez.
Depois da queda no sono abissal, acordo e há um paraíso me aguardando. Sou levada, roxa e
cabeluda, ao colo macio de minha mãe. Puro amor, amor de mãe. Ela me aguardara muito. Coloco
instintivamente minha pequena e ávida boca em sua teta fresca e quente, de onde jorrava um líquido
viscoso e denso que descia pela minha garganta. Grito de susto.
- Que é isso que entra quente pela minha garganta e que depois de cair em minha barriga me
deixa tão calma, com as faces rosadas, em puro idílio?
Não é do homem que jorra o leite da vida. É da teta da mulher.
Quando eu nasci, papai não estava lá. O motivo que encontrou para si mesmo era que tinha que
fazer uma viagem urgente de trabalho. Então, estavam no hospital somente minha pobre mãe, parindo
sozinha, e minha avó materna.
A ausência de meu pai no dia da minha estreia doeu fundo em mim, e por muito tempo. Mas,
depois de anos investigando tal questão, a princípio enigmática, pude compreender seus motivos mais
íntimos. É que meu pai tinha medo de amar.
- Está bem, já sei o que você vai dizer ao me ouvir reclamar da ausência do meu pai, no dia do
meu nascimento.
Você deve estar pensando que eu estou caindo em contradição, pois disse acima que eu já sei que
minha pobre existência não tem qualquer importância para o universo.
- Mas pegue leve, né?
Eu sou ainda uma criança desamparada que precisa sentir, mais do que tudo, que é amada pelos
seus pais. Já disse que não somos nada importantes para este planeta tão árido de amor – e isso é a mais
pura verdade – mas, para podermos aguentar o baque que é viver, alguém precisa estar receptivo,
esperando pela gente. Nós precisamos ser o centro do universo para alguém, pelo menos no início.
- Concorda?
Ou você acha que é à toa que precisamos acreditar erroneamente que para tudo existe um centro?
Pensa bem: Galileu, confirmando a descoberta de Copérnico de que a Terra não era o centro do universo,
foi enviado à prisão perpétua e só conseguiu o perdão da Igreja depois de abjurar suas ideias. Os santos
padres ficaram muito bravos porque estes sábios e corajosos homens estragaram a nossa ilusão de que
éramos os seres mais importantes do universo e que tudo girava ao nosso redor. Mas depois, o que
fizemos? Simplesmente transferimos o centro do nosso universo para o sol. E se eu lhe disser que
universo não tem centro, que no caos não há centro?
- Certo?
Mas não tenho tempo para questões filosóficas. Devo voltar ao meu nascimento e lhe explicar
como o meu pai, coitado, não deve ter aguentado tanto mistério. Por isso saiu correndo, assustado feito
criança, no dia em que eu nasci.
Mas, para sua alegria ou espanto, eu nasci igual a ele.
- O queixo é igual do pai, disse minha avó em um tom velado de indignação, provavelmente
porque queria que eu tivesse nascido com o queixo dela.
Já estou agora na segunda hora de vida e ainda continuo viva. Pelo menos pareço estar.
- Ufa...
- Já percebeu como a vida é um constante risco de morte entre um minuto e outro? Cada minuto
vivido é um milagre.
Nestas duas horas de vida eu só sei fazer cinco coisas: mamar, dormir, defecar, fazer xixi e chorar.
Sou exatamente como um outro bicho que acabou de nascer, exceto pelo fato de que ainda vou demorar
uns dois anos para aprender a me locomover sozinha e a pegar as coisas por mim mesma.
Agora já estou na terceira, quarta, quinta hora de vida... E ainda continuo viva.
- Acho que vou vingar. Devo ter nascido para alguma coisa importante. Penso alegre.
Na quinta hora de vida, titia e titio ligam para saber se estou bem.
- Sim, ela está bem. É uma linda e cabeluda menina, diz a vovó.
Demorei a entender porque não gostava, já mais velha, que me cortassem os cabelos. Hoje eu sei:
nasci cabeluda.
Sexta hora de vida, desespero total.
- Ei, por favor, alguém me ajude aqui. Digo berrando como posso. Tem alguém querendo me
morder.
Movimento meu pequeno corpinho feito louca.
- Chi, chi, chi. Calma, bebê, diz minha mãe.
Meu pé direito havia se enroscado no macacão. Como é difícil ser criança pequena e viver em um
mundo terrível repleto de bocarras cheias de dentes, de gargantas, de olhos devoradores de meninas.
Destes medos terríveis a gente não se desapega nunca, nem mesmo nos sonhos. E não venha me dizer
que isso é bobagem porque não é!
- A vida é coisa que espanta. Nunca percebeu?
Depois de dois dias naquele hospital – lugar horrível, cheio de luzes brancas – vou para a minha
nova casa. Da primeira – o útero – tive que me despedir à força. Não queria, mas... paciência. Quando o
milagre da vida se dá, óvulo e espermatozóide se encontram em um trilhão de possibilidades e ninguém
nos pergunta se queremos ou não nascer.
Se fôssemos perguntados, talvez recusássemos e não haveria humanos para povoar a terra.
- Já pensou?
Ainda bem que isso é pura especulação. Muita escolha confunde. Já bastam todas as que temos
que fazer pela vida.
Deixando o hospital, fomos direto para casa. Casa simples, construída com o esforço amoroso dos
meus pais. Chão batido que minha mãe lustrava com cera vermelha, com braço forte. O teto não tinha
forro.
Já maior, em minhas andanças de menina pequena, engatinhando como enceradeira, o macacão
ficava vermelho nos joelhos e pés. Tudo muito simples, mas muito lindo.
Gosto de pessoas simples. Sempre gostei. Elas não têm medo de gente humana. Tenho medo de
gente fascinada pelo luxo. Acreditam ser Deus.
Bom, agora que eu já nasci e sobrevivi aos arriscados primeiros anos da minha vida, posso respirar
aliviada e você também.
O cigarro de papai
Se você acompanhou atentamente minha narrativa, saberá que meu pai não estava presente no
momento da minha estreia no mundo. Isso me entristeceu por um tempo, até que anos depois – quando eu
já estava com dez ou onze anos – recebi de presente de minha mãe alguns novos elementos para
compreender meu enigmático pai.
Contou-me ela que papai era um assustado rapazote e que eram recém-casados quando eu nasci.
Ele tinha apenas vinte e três anos e quase nenhuma experiência vivida.
Acontece que esse rapazote assustado, talvez por susto de viver, fumava muito, muito mesmo,
antes de eu nascer. Fumava feito chaminé. Magrelo e cabeludo, com aquele cigarro no canto da boca,
parecia uma espécie de personagem cavernoso saído direto de Woodstock, nos dizeres de minha mãe.
Completei a história por mim mesma e concluí brevemente que papai sempre se sentira um pouco
monstruoso. Por isso é que se enfeiava.
- Você já reparou, meu amigo, como algumas pessoas se enfeiam para afastar qualquer risco de
amor maior?
Elas têm tanto medo que alguém descubra seus tesouros maiores e queiram amá-las – amar é um
espanto – que se enfeiam até não poderem mais. Papai era uma pessoa assim. Sua barba cavernosa, feia
de doer, era para tentar manter os seres humanos afastados. Talvez ele não tenha tido a sorte de ter um
olhar amoroso para dizer que ele não era um monstro, mas uma pessoa incrível, boa e generosa.
- Então, por que papai estava viajando quando eu nasci? Era o que eu me perguntava.
Bem, uma pessoa mais prática vai dizer que ele precisava viajar. Estava a trabalho e como não
mandei nenhum aviso sobre a minha estreia, ele não teve escolha e precisou ir. Está certo. Mas eu que não
me contentava facilmente com verdades aparentes, tive que ir fundo em minha busca e encontrar uma
resposta que fizesse sentido para mim. Encontrei a seguinte: acho que meu pai tinha muito medo de me
ver e sentir algo bom nascendo no seu peito apertado e desajeitado para amar. Não sei. O fato é que,
mesmo de longe, ele não aguentou: o amor e a alegria são contagiosos.
Mamãe me contou alguns anos depois, para tentar me curar deste sentimento de que papai não me
amava, que ele teve um gesto lindo quando soube por telefone, exatamente à uma hora e vinte e oito
minutos, que eu nasci: jogou seu cigarro acalmador de alma no lixo e nunca mais fumou.
- Quer gesto de amor maior que este?
Às vezes eu gostaria de poder ter existido como uma mosca ou uma parede só para poder
presenciar esse momento-instante. Imagino a cena: meu pai, magrelo e com suas barbas cavernosas,
andando de um lado para o outro do corredor do hotel sujo, aguardando aquele telefonema que mudaria
para sempre a sua vida.
A partir daí comecei a ter mais paciência com ele e com sua limitação para amar.
Já pensou a agonia da espera e o medo tenebroso que sente uma pessoa que aguarda o nascimento
de seu filho? Não é motivo para sair correndo? Aquele amor prestes a explodir no peito não é coisa de
espantar? O confronto com o sinistro que é olhar para um ser que nasceu de si mesmo? Encontro com o
espelho, talvez? A vida é muito misteriosa para ser explicada...
O fato é que papai, se tinha muito medo de amar, também era teimoso de doer. Talvez sua forma
árida de mostrar amor fosse pela teimosia com que fazia cada coisa, cada realizar em sua vida. Por isso
conseguiu se livrar do cigarro para sempre e provar seu amor por mim.
Em sua teimosia obstinada, certa vez meteu na cabeça que passaria dois meses sem comer
embaixo de uma árvore. Acho que ele queria virar árvore.
Eu entendi o coração dele. Estava desacorçoado com o humano homem. Achava que ser árvore
doía menos. Até que ele tinha razão! Às vezes cismava de virar algum bicho. E virava. Já conseguiu virar
cavalo, coelho e até uma bicicleta.
- Acredita?
Deixava de tomar banho, de comer e de se pentear. Virava bicho que só. Meu pai era uma alma
solitária e livre. Aprendi com ele a ser voadora, alma de pássaro.
O sábio Victor Hugo disse certa vez que o solitário é um selvagem, aceito pela civilização. Papai
era assim. Teimoso e selvagem como um lobo. Quando metia uma coisa na cabeça, ninguém era capaz de
tirar. Quantas pessoas você conhece que dizem: vou parar de fumar. E param. Simplesmente param. Eu
conheço pouquíssimas e uma delas é o meu pai.
O ser humano faz promessas, mas falta a muitos deles a tenacidade e a força de caráter para
cumprirem. Acabam, hipocritamente, mentindo para si mesmos.
- Não, só mais um. Hoje é sábado. Na segunda-feira eu paro.
Papai odiava esse tipo de hipocrisia humana.
Sábio esquisitíssimo esse meu pai.
Meu irmão alienígena
Continuando minha história, quando eu tinha cerca de dois anos, nasceu meu irmão.
- Há pessoas que nascem sem sorte, já repararam?
Nessa época, meus pais já estavam completamente cegos pelo ódio. Talvez eu tenha me esquecido
de lhe contar, mas logo depois que eu nasci meus pais começaram a se estranhar. Acho que meu pai
estava virando bicho de vez. Passaram a brigar feito cão e gato e o casamento foi aos poucos
desmoronando.
Por isso meu irmão só conheceu a pior parte deles. Suas cegueiras fizeram com que aquela pobre
criança se tornasse uma condenada à alienígena. Ele certamente não se sentia humano.
- Você acha que ser um humano é uma coisa boa?
Para algumas pessoas definitivamente não é. Algumas pequenas e frágeis criaturas sentem que os
seres humanos podem ser tão maus e cruéis, que elas preferem ser de outro planeta, mesmo que isso
signifique que elas tenham que ter doze dedos em cada mão, quatro olhos ou pele de escamas rugosas.
Meu irmão era uma dessas pessoas.
Nasceu em um mundo despreparado para recebê-lo e ampará-lo nessa arriscada coisa que é o
viver. O casamento dos pais é um berço e quando esse berço está frio, quebrado ou cheio de espinhos, a
pequena alma sente e não aguenta o baque. Grande tesouro é poder ter pais que se amam.
Em sua recusa por ser humano, ele nunca aprendeu a falar a sua língua materna. Comunicava-se
com grunhidos e urros que davam arrepio de ouvir. Mexia seu pequeno corpo como um robô ou
autômato, provocando nos humanos, risos, repulsa e ódio.
Talvez ele tenha buscado, em sua luta ferrenha pela vida, os olhos atentos e amorosos de meus
pais que nessa época estavam perdidos. Completamente perdidos em si mesmos.
Às vezes a dor e o ódio são como uma droga excitante e pesada que suga toda a energia do ser
vivente. Não sobra nada para quem está em volta. Sorve-se o ódio, a revolta e a excitação raivosa como se
sorve uma droga alucinógena. O resultado é o descolamento da realidade. Tudo fica grande e monstruoso.
O ser perde o seu referencial.
- Já reparou, meu amigo, que o ódio é mais pegajoso que o amor?
Quando ele gruda, gruda que só. A alma insiste em permanecer nele. Talvez, em sua miopia, a
pobre criatura pense que se deixar o amor vencer o ódio, isso é violação, humilhação, sinal de fraqueza.
A arrogância, prima-irmã do ódio, não permite o perdão. Perdão é coisa de Deus. Odiar é coisa de
Lúcifer, o anjo expulso. Guimarães Rosa disse algo lindo e sábio sobre isso, certa vez. Ele disse assim:
O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não
precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.
Meus pais não sabiam que o demônio existia. E não se precaviam contra suas mandingas. Ao
contrário. Entregavam-se com ardor nos braços do demo. E isso os excitava até à exaustão.
Mas o demo agia em mamãe e em papai de formas diferentes. Vou explicar.
Em mamãe, o demo tinha cara sutil de criança inocente. Comparecia através da televisão. Por isso,
vivia em frente à TV. Como eu a odiava: à mamãe e à TV. Acho que era a forma que ela encontrava de
não pensar em suas dores maiores, dores de alma.
Já em papai, o demo aparecia pelo isolamento. Ele passou a viver em outro mundo. Eu sentia,
intuía que havia coisas maravilhosas neste universo fantástico e solitário que ele habitava, mas eu não era
convidada a entrar. Provavelmente por eu ser menina. Papai tinha medo das meninas. E também tinha
medo do amor. E também era um pouco egoísta demais.
- Esquisito cavernoso.
Com tudo isso meu irmão foi ficando uma criatura cada vez mais estranha. Teimava em conversar
com os animais, comia plantas e se recusava veementemente a tomar banho. Dizia que iria embora com o
ralo.
Na falta de adultos preparados e sensíveis para compreender a dor maior dele, meu irmão foi
ficando cada vez mais alienígena e incapaz de conviver em sociedade.
Sua imagem nas poucas fotos tiradas – disso eu lembro bem – era a de um espectro. Corpo
desabitado de alma.
Aos poucos, provavelmente julgando-se menos que um nada, começou a lanhar seu corpo como
podia. Provocava-se acidentes terríveis. Acho que fazia isso porque no corpo, pelo menos, a dor é
palpável. Na alma, não.
Então, meu pequeno irmão alienígena, a cada centímetro que ganhava em estatura, perdia um em
carnes arrancadas. Machucava-se das formas mais inimagináveis. Dava um jeito de se arrebentar de
bicicleta, de skate ou de patins. Pulava de cima das árvores, sem qualquer proteção. Acho que ele queria
voar. Olhando tudo aquilo, eu tinha certeza que meu irmão não viveria até os dezoito.
Quando você, caro amigo, estiver diante de alguém que lanha, que machuca e que rasga seu
próprio corpo, mais respeito e compaixão. Há uma alma dilacerada ali. Uma alma que busca tangibilizar
no corpo, sua dor sem nome. No corpo, o que dói é um lugar. Na alma, tudo dói e não se sabe de onde
vem essa dor. Ser alienígena é melhor do que ser nada. Precisamos ser alguma coisa.
Por tudo isso que eu descrevi, nossa relação era bastante capenga. A dor e o sofrimento afastam as
pessoas, ao contrário do que se pensa. Ele me odiava e eu o odiava de volta. E assim íamos crescendo.
Refleti muito sobre o porquê de tanto ódio. Acho que ele considerava que eu havia roubado meus
pais dele. Achava que a melhor parte dos meus pais havia ficado para mim e que isso era culpa minha.
Que os tive só para mim, por puro egoísmo. Na cabeça de uma criança as coisas se passam assim. Ela não
consegue entender o conceito fatalidade. Meu irmão não compreendia que fora uma fatalidade, uma falta
de sorte, ele ter nascido justo no momento em que meus pais mais se odiavam. E que por causa disso – e
não por minha vontade – não havia sobrado nenhum amor para ele.
- Mas vai fazer a cabeça de uma criança entender isso.
- Você já parou para pensar em como normalmente é conflituosa a relação entre irmãos?
Há muitas histórias famosas e sombrias sobre a difícil relação entre irmãos, descritas pela pena de
gente que sabe o que fala: Caim e Abel, Dimítri e Ivã, Esaú e Jacó e por aí vai. Quem precisa se contar
mentiras, diz que não. Que irmãos só se amam e pronto.
- Hipócrita. Nunca parou para enxergar a realidade?
Se, porventura, você conhecer uma história bem bonita entre irmãos, onde só há amor,
compreensão, amizade e companheirismo, pode me contar agora. Vamos lá. Prometo que irei rever esta
minha visão pessimista das coisas – se você quiser continuar insistindo em chamá-la assim. Mas, sem
querer decepcioná-lo, acho que não vai encontrar nenhuma.
Enquanto falo com você, estou me lembrando de uma história bem singela de uma família que eu
conheci. Vejam como a coisa pode ficar feia quando as crianças sentem aquilo que os adultos tentam
esconder a qualquer custo. Aconteceu na nossa rua. Vou lhe contar como foi.
Flávio e Pedro eram irmãos gêmeos. Disputaram, desde o ventre, o mesmo espaço, a mesma mãe,
o mesmo amor. Nascidos, a mãe chegava a confundi-los de tão iguais que eram, exceto pelo gênio. Flávio
nascera mais paciente que Pedro, nos dizeres da mãe. O pai abandonou a mãe grávida. Paradeiro
desconhecido até hoje.
Joana, a mãe, Flávio e Pedro. Linda família. Acontece que Joana, embora nunca tenha confessado
a si mesma, tinha uma clara preferência por Flávio. Isso obviamente nunca lhe chegara à consciência.
- Imagina amar um filho mais do que outro? Que pecado...
Já crescidos, ambos ingressam na faculdade, juntos. E, como o destino não deixa por menos, o
inevitável aconteceu. Flávio e Pedro apaixonaram-se pela mesma moça. A linda Dulcineia.
- Adivinha quem ela escolheu? O Flávio. Óbvio. Ou você acha que o destino brinca em serviço?
Pedro, enlouquecido de tanta dor por mais uma vez ter sido preterido pela segunda mulher de sua
vida – a primeira fora sua mãe – não aguentou este novo baque. Ao saber da escolha de Dulcineia,
esbofeteou a cara do irmão, quebrou-lhe o nariz e desapareceu para sempre em sua dor insana. Nunca
mais se soube dele.
Ao ser informada do sumiço do filho, a mãe, tentando disfarçar seu alívio secreto, disse:
- Coitado, ele sempre foi mais esquisito que o Flávio. Nunca entendi o porquê! Deus o guarde
onde ele estiver agora!
Mas, por ora deixemos as pequenas tragédias dos outros de lado, porque tenho a minha para lhe
contar e o tempo urge.
Devastação
Já lhe disse que, enquanto eu crescia em tamanho e em anos, minha pequena e aconchegante casa
se esvaía em devastação. Para uma criança, a casa são os pais. Se os pais se devastam e se odeiam, a casa
– lugar de aconchego e abrigo – vira espinho.
Foi isso que aconteceu com minha família. Papai odiava cada dia mais mamãe. Esta, por sua vez,
desaprendida da arte do amor próprio, aceitava toda aquela judiação vinda dele. Se ela preparava um
almoço ou jantar com carinho, ele vomitava, vociferando, a comida. Expelia-a como se fossem fezes. Se
ela se arrumava e punha-se elegante, ele a chamava de bruxa velha. Se ela preparava uma linda festa de
aniversário para os filhos, ele, desarvorado, vestia-se como mendigo, só para judiar.
Aquilo tudo foi minando o amor-amar de minha pobre mãe, já tão carente das delicadezas do
coração. E ela não aguentou.
Chegou ao pior que um ser humano pode ir. Deixava-se humilhar. Oferecia seu corpo e sua mente
como oferenda ao diabo. Desatinava, puxava os cabelos, urrava, babava. Tornou-se um monstro. Que
pena. Que irreconhecível, que desfigurada, que machucada...
- Como minha mãe pôde se permitir chegar a este ponto? Isso eu nunca entendi.
Nunca entendi o gozo horripilante que sentem alguns seres humanos em serem maltratados,
cuspidos, humilhados.
- Talvez carências maiores e mais antigas na arte do amor. Pensava eu com minha cabeça
confusa e desamparada.
Certa vez, em um relampejo de sanidade, minha mãe ameaçou dizer basta.
Começou a dirigir, vestiu-se com roupas bonitas e elegantes, arrumou trabalho. Isso deixou meu
pai muito ameaçado. Ele tinha medo de mulher forte e valente.
Então o monstro saiu mais uma vez da toca e espreitou a andorinha que ameaçava alçar voo:
- Como alguém tão estúpida e burra como você pode dirigir? Era o que ele vomitava em cima
dela.
Ah, aquilo tinha ido longe demais. Então, mamãe em um ato que buscava ser heróico, mas que, no
fundo, era bem atrapalhado, começou a ter uma mania infernal.
Depois das violentas brigas, ocorridas sempre no meio da madrugada, mamãe, em profundo ato de
desespero, pegava sua maletinha furada pela falta de uso, jogava suas roupas dentro dela e, aos gritos,
como louca, saía pela rua deserta, dizendo que ia embora para sempre.
Meu irmão, já muito alienígena, não acordava. Talvez ele nunca tivesse realmente saído do sono
profundo do não-nascer.
- Como pode alguém acordar, se vive em um estado em que nem se acorda, nem se dorme, mas só
se vegeta?
Eu, em meu desespero-desamparo, mas também em uma tentativa enlouquecida de salvar mamãe,
saía pela rua deserta atrás dela. Magricela, com a chupeta na boca, cabelos desgrenhados pelo sono
interrompido por causa da devastação do ódio, eu saía. E ia longe. Atrás de mamãe.
Ela, como louca desvairada, como sonâmbula e hipnótica, andava por horas a fio. Sua alma havia
se perdido, para sempre no abismo da noite. E eu a seguia em meu inocente, impotente e flamejante
desejo de salvá-la daquele estado de torpor irresistível. Mas, ela não me ouvia. Ela não me via.
Então, eu estava só – magricela e de chupeta – no meio do abismo da noite escura, da rua deserta.
Os vizinhos – os únicos que talvez pudessem nos salvar daquela morte iminente, de quando se cai no
abismo do desamparo – estavam sedados pelo sono, que torna o homem alheio à dor do mundo. Há um
egoísmo no sono. O homem que dorme alisa seu próprio umbigo.
Meu pai, a esta altura, nem se lembrava de ter tido filhos. Depois da briga infernal, enquanto
mamãe concentrava sua atenção em sua maletinha esfarrapada, papai deixava a casa e fugia durante dias
para uma caverna que eu nunca consegui encontrar.
Eu estava só. Eu, minha chupeta e meu magro heroísmo.
Desta devastação, eu nunca me salvei inteiramente.
A vela
Mas, nem tudo era dor nesta tragédia familiar. Havia momentos poéticos.
Havia dias em que chovia. E em minha cidadezinha distante, qualquer ameaça de chuva, por
menor que fosse, era motivo para a energia elétrica ser interrompida.
E lá em casa, como todos gostavam de televisão, menos eu – que achava aquela caixa preta uma
coisa do demo que deixava as pobres criaturas hipnotizadas e parecendo bobas – a falta de energia era
meu momento de êxtase.
- Por quê?
Porque ficávamos sem TV.
Ah, como eu era docemente feliz nesses momentos. Como eu os aguardava com a ansiedade de
uma criança à espera do Natal.
Nestes instantes em que a escuridão se impunha, eu, em meio aos xingamentos de minha mãe e
aos resmungões do meu pai, corria pegar uma vela.
- Está vendo a minha sina? Clarice, claridade, luz, vela...
Estes eram os meus minutos ou horas de deleite. Acendia a vela com a delicadeza e o cuidado de
quem estava em oração, realizando algo sublime e sagrado.
E, no calor daquela chama, todos nos reuníamos em volta da mesa da cozinha. Era lindo e
emocionante ver como a chama iluminava aqueles rostos, agora mais humanos e delicados. Os olhos de
todos brilhavam. Talvez em chamamento milagroso de suas crianças, todas encantadas com o brilho da
luz. E então, papai contava histórias de sua infância. E mamãe, com cara de apaixonada, olhava, olhava...
O meu irmão voltava a falar como humano. Agora todos nós éramos capazes de entendê-lo,
porque ele estava sendo concebido, mais uma vez, em um ato de amor. E ficávamos ali naquele instante
sublime em volta da chama. Era puro deleite.
Eu, com minha cabeça ansiosa, torcia para que aquele instante durasse uma eternidade. O fato é
que eternidade não é para nós. Mas, pouco importa.
- Qualquer pouquinho de felicidade já basta.
Naquele momento, toda a família sagrada estava irmanada pelo mistério da luz. Luz de Prometeu
que veio trazer ao homem consciência. Que o desbestializou e o colocou em posição ereta. Que o separou
dos outros animais. Que o fez cozinhar a carne. Que o fez menos antropofágico e menos animalesco.
E eu, pequena Clara, tal como Prometeu diante dos deuses, com aquela chama de luz frágil, mas
constante, trazia meus pais de volta à humanidade.
Mas, como tudo o que é sublime tem um fim, assim como a própria vida, logo a luz artificial se
acendia.
Pluft.
Ouvíamos o barulho das luzes se acendendo. E também da geladeira. E também da TV.
Meu coração se apertava de angústia e desespero. Sabia que novamente iria perder papai, mamãe e
o irmão no vazio do inanimado. Então, eu rapidamente me despedia dos seus olhos brilhantes que, com a
luz mentirosa, iam mais uma vez ficando opacos e sem vida. E eles, desajeitados por tanta intimidade,
rapidamente se levantavam e caíam de volta em seus abismos sem fim.
- Adeus. Eu pensava com o peito apertado de tanto doer.
Por que as cartolinas molham?
- Por que há uma crueldade encarniçada na vida humana? Por que tudo o que gostamos é frágil
como um papel?
Era esse o pensamento que não abandonava minha pequena cabeça quando eu estava com oito
anos e vivi uma experiência terrível que veio se somar ao desmoronamento da minha família. Vou lhe
contar. Foi assim:
A professora havia pedido um trabalho de casa. Tratava-se de algo muito especial. Ela queria que
fizéssemos um desenho da nossa família.
- Coisa sagrada isso de família, não?
Com minhas mãos frágeis, em uma tarde ensolarada de quarta-feira, preparei todo o meu material
com esmero: lápis, canetas coloridas, giz de cera, tesoura, cola, papel crepom. Tudo devidamente disposto
em cima da mesa. Aquilo mais parecia um pedacinho do paraíso.
À minha frente, bem aberta e generosa, a cartolina rosa, grande, linda. Abria-se, como se abre um
abraço ou um quadro de artista, para receber tudo o que cabia em mim e ainda mais um pouco. Momento
de êxtase.
Pego minhas cores preferidas e começo a desenhar minha sagrada família: papai, mamãe, eu,
irmão e nosso gato siamês, meu fiel companheiro das horas surdas e melancólicas de fim de tarde. Tudo
lindo e pronto. O desenho ficara perfeito. Amarro com esmero a cartolina enrolando-a em uma fita de
cetim.
Naquela noite eu nem dormi.
Às cinco horas da manhã pulei da cama como um trem-bala. Dormi de roupa e tudo para poder
estar pronta para a escola o quanto antes.
Acontece que naquela fatídica manhã estava chovendo.
- Tudo bem. O céu não sabe da minha ínfima existência. Vou perdoá-lo. Pensei com minha cabeça
que tentava lutar contra o ódio e o amargor de justo naquele dia estar chovendo.
Acontece também que se eu fosse de carro para a escola, não haveria problema. Mas, a minha
jornada era longa. Dois ônibus e mais um trajeto a pé. Minha cidadezinha era inexistente no mapa e o
meu trajeto, muito longo.
Saio de casa com meu irmão. Íamos sozinhos para a escola. Como uma equilibrista, gerencio tudo
como posso: sombrinha, mochila pesada, meu irmão de um lado e a minha preciosa cartolina cor-de-rosa
do outro. Tudo com apenas duas mãos. Eu, pequena, tentando proteger meu corpo e minha cartolina
daqueles corpos gigantes, incapazes de gentilezas, no ônibus apertado e poeirento.
- A pobreza diária brutaliza. Era o que eu pensava.
Primeira metade do percurso vencida. Cartolina intacta. Linda. Descemos do ônibus para nosso
segundo trajeto até a escola, agora a pé.
Em meio às buzinas e carros desembestados, gente passando por todo o lado, poças de água da
chuva recém-caída, eu vou agarrada à minha preciosa cartolina. Ela tinha que chegar à escola.
Mas, eis que o fatídico acontece. Enquanto tentávamos atravessar a estúpida rua, da estúpida selva
de pedras, um carro-elefante passa, com toda a força estripadora de sonhos, bem em cima de uma poça
enlameada. Toda aquela lama, misturada às lágrimas, ao sangue dos sonhos pisados, me machuca
fatalmente.
- Adeus, linda cartolina. Adeus, sagrada família.
Era tanta água que o papel foi se desfazendo, como se desfaz uma alma judiada pela vida. Quase
sumindo, quase desintegrando eu, em meu pequeno e inútil desespero, tento salvá-la: a ela e à minha
família.
E fico ali, dura como pedra, idiota, carregando meu sonho desintegrado que escorria pelas mãos.
Enlameada dos pés à cabeça, personifico em meu corpo, em minha cara cheia de lama verde, em meus
cabelos desgrenhados e sujos, todo o desprezo do mundo com a minha dor infantil.
- Afinal, era só uma cartolina, não é? Depois compramos outra, filhinha... responde, como estátua
marmorizada, a linda e cheirosa professora loira que iria me receber na escola, enlameada e feia, quarenta
minutos depois.
E eu permaneço ali, incapaz de perdoar o mundo, com meu ódio pequeno e ignóbil. Cansada de
lutar, como lesma, sento no chão da calçada, desfalecida. Não tinha mais forças para continuar vivendo.
- Por que a vida, às vezes, é tão irritantemente cruel?
Nunca encontrei a resposta para isso...
Não se salva uma família sendo criança
Se você é um leitor atento, perceberá que grande parte da minha dor pela cartolina molhada vinha
de uma dor maior, mais funda: lá, em algum lugar na minha pequena alma, eu sentia, eu sabia que minha
família não existia mais. Eu sabia que ela estava sendo destruída pela lama do ódio. Sabia também que eu
queria, eu desejava, com todas as minhas forças poder salvá-la.
Quando se é criança e os pais também são, o que acontece é uma catástrofe: a criança fica
desamparada e sente que é ela quem tem que cuidar dos adultos. Em seu modo infantil de interpretar as
coisas, a criança julga ser ela a culpada pelo desmoronamento. Ela pensa: é por culpa minha que eles são
infelizes e se odeiam. Então, se eu fiz este estrago, tenho que salvá-los. Demorei muitos anos, décadas
talvez, para descobrir que ninguém é poderoso a este ponto, nem para o bem, nem para o mal.
Mas, com minha cabeça avançada eu também sentia, com uma clareza ensurdecedora, que havia
uma crueldade no mundo adulto. E eu sentia que era essa crueldade adulta, que não enxergava a criança
que eu tinha direito de ser, que estava devastando minhas necessidades infantis. Portanto, era eu quem
estava sendo atropelada por aquele casal louco e inconsequente.
- Ah, amigo leitor, como eu gostaria de ter encontrado alguém que pudesse juntar meus pequenos
e destroçados pedaços que, assim como o papel, caíram, minguados, em plena rua naquele dia chuvoso e
melancólico.
Pensando com a clareza que o distanciamento no tempo traz, hoje vejo que esta cartolina colorida,
com esta linda família, representava o meu desejo de encontrar amor, estabilidade, confiança. No fundo,
eu nunca desisti de encontrar isso no mundo humano, mesmo que eu tivesse que buscar este amor tão
sonhado fora da minha desestruturada família.
Eu sentia com uma força inquebrantável que a única coisa que podia me salvar da loucura, da
insanidade, era o amor de um ser humano. Talvez tenha sido isso que me salvou: a esperança de encontrar
pela vida alguém que bondosamente me estenderia sua mão amiga e me consolaria por toda a dor do
mundo que, de certa forma, eu carregava em meu peito magro.
- De onde vinha esta confiança? Você me pergunta.
- Sinceramente, não sei.
Mas, enquanto não encontrava isso, salvava-me como podia.
Encontrei companhia estável em um lindo e vesgo gato siamês. Apresento a vocês, Mozart. Meu
fiel escudeiro
Meu gato Mozart
Sempre tive fascínio por gatos, nunca entendi direito por quê. Talvez eu tenha algumas pistas.
Vamos a elas.
Primeiro, não gosto da algazarra que paira entre os seres humanos. Desde pequena tenho uma
mania estranha e um pouco bizarra. Quando alguém conversa comigo ou quando eu observo a conversa
de alguém, fico fixamente olhando suas bocas, mexendo incessantemente e sem parar. É engraçado ver
como há um automatismo ingênuo no humano. Quantas palavras saem de forma automática.
- Tudo bem? Diz a vizinha.
- Tudo bem, responde a outra de forma automática.
No início, quando ainda não sabia destas regras sociais esquisitas, diante de uma pergunta dessas
eu respondia, com toda a sinceridade que o meu coração podia. Ficava em estado de êxtase por perceber
que alguém se importava comigo e estava querendo verdadeiramente saber como eu estava me sentindo.
- Ingênua.
Com o desencanto, parei de falar e virei um pouco autômata também. Mas autômata consciente.
Então, talvez seja por isso que eu goste de gatos.
Eles são enigmáticos, filosofais, silenciosos, meditativos. E, o mais importante: aguentam o
silêncio.
- O silêncio é uma prece... Nunca reparou?
Então, quando tinha cerca de oito anos eu ganhei um gato de uma amiga da minha mãe. Lindo,
vesgo de olhos azuis, rabo bipartido. Meio gato, meio serpente... Chamava-se Mozart.
Ah, que companheiro e tanto.
Mozart sabia ler a minha alma. Eu adorava passar longos tempos fitando seus profundos olhos
azuis. E ele correspondia. Conversa felina. Entendíamo-nos perfeitamente bem, eu e ele. Almas gêmeas.
Mozart foi meu companheiro de tédio, de medo e de terror.
Quando o tempo fechava lá em casa e o demo fazia sua visita aos meus pais, eu, mais que
rapidamente, agarrava Mozart e o levava para debaixo da cama. Ele ficava lá, quieto. Parecia intuir que o
que eu precisava naquele instante-terror era de sua respiração estável e de seus olhos fixos em mim. Sua
presença era tranquilizadora.
Certo dia, quando eu tinha uns nove anos, Mozart foi roubado. Sei disso porque algumas crianças
que estavam brincando na rua viram uma mulher pegá-lo, embora não soubessem descrever a bandida
nem explicar porque não a detiveram.
- Maldade pura alguém roubar bicho de criança. Você não acha?
Fiquei sem comer. De magra, virei cadavérica. Minha mãe ficou desesperada por me ver daquele
jeito. Eu não dormia, não comia. Só chorava, chorava. Tinha sido, de novo, roubada de algo essencial. E
mais uma vez, por um ser humano.
- Com certeza, a pessoa que o roubou já está com sua passagem garantida para o inferno. Era o
que eu pensava, revoltada.
O que eu ainda não sabia é que quem faz uma maldade destas já vive no inferno. Não o inferno do
fogo, mas o inferno da alma. Pessoas que fazem judiações não são felizes. Hoje consigo até ter pena
delas. Estão em tempo integral na companhia do demo, que são elas próprias. A ruindade é uma coisa que
corrói o coração.
Como minha mãe era mais sofrida que má, ela ouviu a minha dor de alma, e moveu o mundo para
encontrar meu gato. Colou cartazes pela cidadezinha toda, até que a megera, ladra felina, foi denunciada.
A cena – depois minha mãe contou – era de dar dó.
Ela encontrou Mozart no quintal da megera invejosa, preso por uma corrente, magro, cadavérico,
doente e amedrontado por um cão pitbull.
- Repare bem, caro leitor, se não é difícil entender as motivações tenebrosas que vão em uma
alma humana.
Mesmo que essa mulher que me roubou Mozart quisesse muito aquele gato – por qualquer motivo
que fosse – isso não dava a ela o direito de roubá-lo de mim.
E, ainda que, suponhamos, por alguma razão desconhecida, ela tivesse que fazer isso, por que
deixar o gato naquela judiação?
- Que explicação racional há para isso? Se você encontrar uma, por favor, me avise. Mas,
enquanto não encontrar uma plausível, aconselho você a continuar tendo medo do bicho homem.
A origem da maldade humana é, para mim, a única questão filosófica que existe.
Veja bem. Façamos um exercício de compreensão. Suponhamos que esta mulher tivesse caído
vítima de uma inveja terrível ou de um princípio de amor ao perceber que alguém, que não ela própria,
tinha um gato tão lindo e cativante quanto Mozart. A partir daí, ela diz:
- Quero este lindo gato para mim. Vou fazer de tudo para tê-lo.
E vai lá e o rouba. Pois bem. Mas, se ela enxergou a beleza daquele gato que agora, mesmo sendo
fruto de um roubo, pode ser dela, por que destruir o que ela mais invejou? Por que judiar do gato que ela
tanto quis que fosse dela?
- Dá para entender?
Até onde minha cabeça de criança pode chegar, talvez, lá no fundo, ela estivesse se vingando,
através do gato, de todas as pessoas do mundo que são mais felizes e mais bondosas que ela. Conclusão:
Mozart representava para esta mulher a pura bondade e a pura alegria que ela, com seu coração murcho,
era incapaz de sentir.
- Achou boa essa explicação? Se não achou, tente encontrar outra melhor...
Mas, voltemos à minha história com Mozart.
O dia em que minha mãe o resgatou – e ele ficou mais de quatro meses naquele inferno – foi um
dos mais felizes da minha vida.
Minha querida mãe pegou aquele resto de gato, lavou, secou, deu comida e água e, depois, o
colocou no hospital de gatos: a minha cama.
Quando cheguei da escola, depois de um dia quente, de ônibus poeirento e tudo o mais, minha
mãe, com olhar brilhante de heroína, disse:
- Você tem uma visita. Adivinha quem veio ver você?
Não precisou falar mais nada. O nosso coração sempre se antecipa à razão. Eu sabia que era
Mozart. Corri feito louca ao meu quarto.
Lá estava ele, miúdo e cadavérico. Abriu com muito esforço seus lindos e tristes olhos azuis e
fitou-me. Naquele olhar havia um misto de desculpas e vergonha por ter se ausentado por tanto tempo e,
de alegria expansiva pelo reencontro, tão aguardado.
Abraçamo-nos e, em seu ronronado faceiro, reencontrei mais uma vez meu pequeno paraíso na
terra.
Depois disso, vivemos um longo tempo juntos...
- Ah, está curioso para saber como ele morreu?
Bem, depois de muitos anos comigo, quando já estava velho e um pouco cego, Mozart, em suas
andanças de gato, foi passear na casa de um dos vizinhos e foi devorado por um cachorro bravo. Só
achamos seu rabo bipartido, que era o seu RG. Talvez Mozart estivesse predestinado a morrer devorado
por um cachorro bravo.
Mas desta vez eu perdoei a vida. Mozart morreu livre, velho e feliz. Morreu aproveitando suas
andanças noturnas de gato ancião, mas ainda caçador.
- O cachorro?
Só estava seguindo seu instinto animal. Nada mais. Não havia maldade em seu bravejar.
Bem, talvez a mulher maldosa que roubou Mozart estivesse mais próxima dos animais do que dos
homens.
- Nunca reparou quanta gente nascida que há por aí que nunca estreou nessa vida como humana,
por falta de um ser vivente que possa ensiná-la a arte de amar?
Deus
Eu estava com nove anos quando fiz estas reflexões. A vida lá em casa continuava igual ou um
pouco pior. Ela estava tão somente seguindo o princípio da inércia: quando nenhuma força é exercida
sobre os corpos, eles tendem a ficar em seu estado natural. Traduzindo para a lei dos homens: se a vida
está ruim, ela continuará ruim, caso você não faça nada a respeito.
Minha mãe tentava fazer algo. Ela rezava.
Acontece que Deus é uma criatura muito ocupada para se preocupar em resolver pendengas
humanas. Além disso, se Ele nos criou a sua imagem e semelhança, espera, como um pai amoroso, que
sejamos suficientemente competentes para sairmos das nossas próprias enrascadas. É o ser humano que
quer um pai que os mime e os desresponsabilize pelas aprontações.
- Tão infantil esse ser humano...
Mas, eu nunca vi Deus dessa forma.
Então, pela voz duvidosa dos homens, Ele nunca me convenceu de sua existência. O que eu
conheci dele, por intermédio dos homens, eu não gostei:
Culpa, remorso, pena, punição, fogo do inferno. Tudo muito maquiavélico para o meu gosto.
- Veja bem a cena, caro leitor. Diga-me se você também não ficaria com a pulga atrás da orelha?
Eu e mamãe na missa. Tudo lindo. Igreja barroca, música embalando medos e anseios e a voz do
santo padre para nos guiar nesse caos que é a vida. Tudo bem.
Mas havia uma parte da missa que me interessava bastante. Era a parte da confissão dos pecados,
seguida pela música do perdão:
- Perdão, senhor, por lhe ter ofendido. Aos seus pés volto, arrependido. Dizia a voz compenetrada
e espectral do santo padre.
Ah, como aquilo me enchia de alegria.
- Quer dizer que eu poderia pecar o quanto quisesse ou precisasse que eu seria perdoada, desde
que eu me arrependesse?
Ouvia isso com toda a seriedade de uma criança.
- Ou você não sabia que as crianças levam a vida muito a sério? Experimente prometer algo e
não cumprir, ou falar uma coisa e fazer outra pra você ver.
Então eu ouvia aquela música linda e, muito dedicada, punha-me a refletir sobre os meus
infindáveis pecados da semana. Vasculhava, com atenção, cada pequeno pecado, cada mínima ofensa ou
maldade:
- Uh, deixa eu ver: na terça desejei que meu pai morresse. Também briguei com uma amiga na
escola, porque tive inveja dela, já que seu pai a leva para a escola em um lindo carro. Na quarta briguei
com mamãe, fui malcriada. Na quinta, briguei com um menino da vizinhança, o Joaquim, porque ele
contou para a minha mãe que eu estava preparando um lindo presente do Dia das mães para ela. Um
estraga-prazeres. Ah, sim. Também fiz o meu irmão ser o meu escravo na nossa brincadeira de casinha.
Depois de repassar cada pequeno pensamento ou ato maldoso, eu, circunspecta, juntava minhas
pequenas mãos em oração e olhava para o alto. Com todo o ardor do meu pequeno coração, eu pedia:
- Senhorzinho, por favor, perdoe os meus pecados. Eu sei que fui eu que o mandei para a cruz,
mas vou tomar jeito. Prometo!
Terminada a oração do perdão eu estava com o peito lavado. A missa terminava, para mim, em
tom alegre e festivo.
Então, saíamos da igreja, eu e mamãe, com a alma leve e o corpo de Cristo em nós. Mas, então
vinha a feiura. Logo ali, em frente à igreja, os beatos e beatas juntavam-se, como moscas e punham-se a
trocar venenos:
- Você viu o filho da fulana? Coitada, ela não merecia um filho ladrão, dizia a ministra de Cristo.
- Vi sim. Esse menino nunca teve jeito. Puxou ao pai. Rebatia a segunda ministra.
Ouvindo aquilo eu sentia uma tristeza sem fim. Ficava cheia de perguntas na cabeça:
- Mas não é pecado falar mal dos outros? Vocês não acabaram de se desculpar com Deus por
terem sido más? Então, vocês não se arrependeram de verdade, suas fingidas. E, além do mais, ladrão
não merece compaixão? Ele não é nosso semelhante? Deus não nos ensina a amar o outro como nosso
semelhante, mesmo ele sendo ladrão? Por que eu aprendo no catecismo que é feio falar mal dos outros
se estas mulheres adultas estão fazendo isso? Adultos não sabem mais que crianças?
Todas estas perguntas começavam a explodir na minha pequena cabeça como bombas. Aquilo
tudo era muito difícil de entender. Eu começava a achar o ser humano um bicho muito complicado.
Estas dúvidas corrosivas foram fazendo com que eu ficasse desconfiada do que diziam os adultos.
De alguma forma eu sentia que ali havia uma mentira muito perigosa. Eu sentia que estas pessoas
mentiam para si mesmas, mas elas não sabiam disso. Elas se enganavam sem perceber. Eram vítimas do
próprio engodo que elas haviam criado.
E como eu era esperta, não me deixei enganar. Larguei catecismo, nunca mais comunguei.
Mamãe achava aquilo estranho e talvez tivesse medo que eu estivesse me tornando uma
excomungada, o que, na linguagem religiosa, significa a pior das punições para quem vai contra os
mandamentos da santa Igreja.
Mas, na verdade, o que mamãe não sabia era que eu estava dando meus primeiros e tímidos passos
rumo a quem eu era, de verdade: Clarice, a clara.
Salva da mentira e da hipocrisia, eu me salvei da salvação eterna. Depois disso, nunca mais tive
medo da punição e do fogo do inferno.
Resolvi isso do jeito mais simples que pude. Essa é minha religião: Deus, se é que existe, está em
mim. Não precisa existir fora. Eu sou Deus, porque sou perfeita em minha imperfeição. A natureza é
Deus. O tempo é Deus. Deus está em tudo e não precisa existir porque ele é imanência. E como aprendi
com Nietzsche, muitos anos mais tarde: não devemos gostar de um Deus que não sabe dançar.
Simples assim.
Eu e mamãe
Estou agora ficando mocinha. Mais especificamente tenho dez anos.
É incrível – e meu leitor saberá do que eu estou falando – o quanto uma menina precisa da mãe
para poder crescer. Por isso uso este pequeno capítulo para lhe contar alguns detalhes de minha relação
com mamãe.
Para começar, para mim, minha mãe tinha mil faces. Nunca pude decifrá-la inteiramente. Mãe-
esfinge.
Ela tinha o dom de ser, ao mesmo tempo, doce e destemperada, rude e amena, amarga e lisa,
sublime e miserável. Qualidades tão opostas em uma mesma pessoa – você vai concordar comigo -
deixam qualquer um louco.
Acontece também que mamãe nunca julgou que ser mulher é uma coisa boa. Talvez porque tenha
vivido sua própria infância em uma família muito machista em que as mulheres eram desvalorizadas e se
deixavam desvalorizar.
- Já percebeu como as pessoas só fazem com a gente aquilo que a gente permite?
Resumindo, ela não gostava de ser mulher. Não gostava do seu próprio sexo. Não gostava do seu
próprio corpo. Não tinha orgulho de ser quem ela era.
Entendo mamãe. Ser mulher não é um negócio fácil. Nem Freud conseguiu entender bem o que
nós queremos. Talvez porque ele não fosse mulher.
Ser mulher não é fácil por vários motivos. Consigo pensar em alguns. Primeiro, a maioria dos
homens têm medo da gente, sobretudo quando não bancamos o tal sexo frágil.
Depois, há as próprias mulheres que, por terem nascido acreditando que são mesmo o sexo frágil,
acabam, ou se fragilizando demais ou querendo virar homem. Tudo isso porque, no fundo, ninguém sabe
definir o que é uma mulher. Talvez porque não exista definição que caiba dentro da gente.
- Ser humano é um bicho que não cabe em definição nenhuma.
Bem, mas voltando à mamãe, vou lhe contar uma coisa muito difícil que vivi com ela. Depois
disso, vai perceber como minha mãe era assustada com o seu próprio sexo. Vamos lá.
Eu, pequenina, cinco anos. Mariazinha, uma vizinha, quatro anos e meio. Descobríamos, juntas, o
prazer da masturbação. Escondidas, como bandidas em busca de um pouquinho de prazer, no canto do
sofá da sala, enquanto nossas mães conversavam, baixamos as calças uma da outra, excitadíssimas com a
visão do sexo pulsante.
O desejo de colocar a mão ali – maçã proibida – era intensíssimo. Como ainda não tínhamos, nós
duas, caído vítimas da vergonha, da queda do paraíso, da culpa primordial, entregamo-nos com prazer e
dedicação àquele instante sagrado.
Nossas mãos, como lesmas assanhadas, buscavam o sexo uma da outra e começamos a mexer, ali.
Nossas pequenas mãos em estado de êxtase. O prazer era intenso, quase dilacerante.
Eu e Mariazinha naquele momento de êxtase e eis que acontece a tragédia.
Mamãe, que me procurava por qualquer motivo banal, flagrou-nos.
Nunca compreendi muito bem até que ponto ela farejou o meu quinhão de prazer, considerado por
ela proibido, sujo ou pecaminoso e foi lá, estragá-lo só por deleite. Ou se o mesmo acontecera com sua
própria alma no passado. Tendo a pensar que mamãe não era má, que não fez isso por pura maldade. Fez
isso porque, no passado, alguma Eva que odiava ser Eva, também usurpara dela o direito de sentir prazer
em seu sexo.
Assassinatos de alma deste tipo acontecem todos os dias, dentro dos lares mais cristãos, feito pelas
pessoas mais educadas e civilizadas.
No fundo da alma humana há um abismo repleto de demônios peçonhentos e perigosíssimos.
Quando não se tem ajuda para lidar com eles, o estrago é grande. Os assassinatos são em massa. Gerações
inteiras de família podem ser assassinadas em suas almas pelos pecados da carne. Pecados nunca
nomeados. Pecados nunca assumidos. O homem não teme aquilo que deseja e conhece. Teme aquilo que
deseja, mas nem sonha que deseja. Sinistra é a alma humana em suas entranhas.
Acontece que mamãe nos flagrou e começou a gritar e a me bater feito louca. Disse-me com sua
bocarra infernal, cuspindo fogo:
- Clarice Nunes Mariano! Nunca mais faça isso. Você é uma suja. Isso que você está fazendo é
uma porcaria, uma sujeira. Suja, suja, suja...
Estas palavras de mamãe ressoariam para sempre em minha mente, agora de Eva envergonhada.
Os tapas na boca, nas nádegas, nas mãos, na cabeça, em todo o corpo, nos cabelos eriçados e sujos pelo
pecado, agora bem instalado. Uma humilhação indizível. E o meu quinhão de prazer – tão sublime e
sagrado porque natural – perdido para sempre. Roubado para sempre. Usurpado para sempre.
- A vida não é mesmo justa. Era o que eu pensava com minha cabeça cheia de revolta, dor e
vergonha.
Nunca pude perdoar inteiramente mamãe por isso. Talvez nunca possa.
Depois deste instante trágico, nunca mais coloquei a mão ali. Nunca mais senti nada ali. Nada,
nada, nada... Encontrei outras formas de prazer, talvez mais aceitáveis por esta sociedade tão hipócrita,
tão necessitada de ser elegante, cheirosa e limpa. O ódio por isso ainda corrói minha alma.
A relação com Mariazinha também foi destruída, para sempre. Nunca mais conseguimos nos olhar
nos olhos. Quando sua mãe ia a nossa casa pedir sal ou açúcar e Mariazinha ia com ela, desviávamos o
olhar uma da outra. Demonstrávamos que tínhamos aprendido bem a lição, o que esperavam da gente.
Tornávamo-nos, finalmente, criaturas dóceis, assexuadas, quase mármore.
Os olhos baixos, em sinal de respeito e culpa. A vergonha. O pecado. A culpa por termos ousado
recriar o pecado original. Tudo aquilo ainda era demais para nossas pequenas cabeças.
Por que meninas sangram?
Continuando minha saga com mamãe, que odiava ser mulher, vou lhe contar agora como foi
minha primeira menstruação.
Eu tinha onze anos quando sangrei pela primeira vez. Foi quando descobri o que é ser mulher.
Aquele sangue abissal correndo pelas minhas perninhas ainda muito magricelas e muito infantis, me
revoltou profundamente.
- O que era aquilo? Perguntava em um misto de vergonha e indignação
- Clarice, você se tornou mocinha, minha filha. Vá se acostumando porque vai ter que aguentar
isso durante muitos anos.
Mamãe tentava apaziguar meu orgulho ferido e minha dor inconformada, mas suas armas eram
insuficientes. Como eu disse, ela nunca teve ajuda para lidar com os mistérios que envolvem o ser
mulher.
Com minha cabeça indócil eu queria entender o que tinha acontecido, mas ninguém me dizia o
óbvio:
- Clarice, você está sangrando porque agora o seu corpo está preparado para gerar um bebê.
- E por que o sangue? Eu perguntaria com os olhos ávidos à mamãe.
- O sangue significa que o pequeno óvulo que seu corpo produziu para receber o bebê o não foi
utilizado e por isso ele precisa ser expelido do corpo através do sangue. Não fique chateada, minha filha.
Pode parecer ruim em um primeiro momento sangrar todos os meses, mas isso é uma dádiva que a
natureza lhe deu. Você pode agora ter o seu próprio bebê quando crescer e tiver seu próprio marido.
Não é maravilhoso isso, filha?
- Não é tão difícil quanto parece, certo?
- Errado.
Para ela, isso estava fora de alcance.
Acontece que os adultos, às vezes, se esquecem de que o óbvio é o essencial. Os adultos se
esquecem de que a criança não vem com um manual de instrução para lhe ensinar todos os mistérios da
vida. E sem este óbvio, a criança fica perdida.
Mas, como eu lhe disse, caro leitor, não culpo minha pobre mãe.
Cada um dá aquilo que pode. Nós só podemos guiar alguém pelos mistérios e perigos da vida se
fomos guiados por alguém bondoso e paciente, em algum momento de nossas vidas.
Mas, diante disso, eu passei a odiar ser mulher.
Odiava sangrar todos os meses. Odiava ter seios nascendo em mim. Odiava ter espinhas, que
vieram com os hormônios. Odiava chamar a atenção dos rapazes. Em suma, eu odiava ser eu mesma
naquele corpo estúpido que insistia em crescer de forma desproporcional e desengonçada.
Mas mesmo assim fui crescendo. Afinal, a natureza é muito mais forte que a gente. Fui crescendo,
adolescendo e ficando cada vez mais Eva envergonhada.
Minha reconciliação com ela só viria mais tarde. Muito mais tarde. Você verá.
Primeiro beijo
Vou lhe contar agora como foi esquisitíssimo o meu primeiro beijo. Estou agora com doze anos e
mais desengonçada do que nunca.
- Você, amigo leitor, teve a sorte de ter um bom primeiro beijo?
Das muitas histórias que já ouvi por esta vida, concluí que, quase sempre, o primeiro beijo é um
desastre.
Além de tudo o que eu já lhe contei a respeito do meu sentimento de Eva envergonhada, mais a
expectativa de um beijo cinematográfico, tipo novela, e o medo, que faz a gente se espichar como porco-
espinho; tudo isso fez com que meu primeiro beijo tivesse sido uma experiência tragicômica.
Vou te contar como foi.
Há um tempo sentia que minhas brincadeiras de rua com Manoelzinho Para-raios – esse apelido
era porque ele usava aparelho nos dentes – já não tinham o mesmo ar de inocência. Eu e ele estávamos
crescendo, daquele jeito desengonçado que você sabe. Ele, com aquela voz meio esganiçada, meio grossa,
com que ficam os meninos que estão em seus primeiros raios da adolescência. Eu, com minha magreza
excessiva, cara cheia de espinhas, braços maiores que pernas e mais estranha que nunca.
Eu e Manoelzinho, já órfãos da carência dos anos da primeira infância, começamos a trocar
olhares maliciosos. Não digo que ali descobria o amor, mas o frisson trêmulo da carne. Amor é outra
coisa...
Com a falta de jeito típica dos pequenos jovens e ávidos por concretizar nossas fantasias de beijos
e delícias, combinamos o dia em que, finalmente, nos beijaríamos. Bem infantil e sem nenhum
romantismo. Era ânsia mesmo de checar se beijar alguém de carne e osso se parecia com os infindáveis
treinamentos que eu – e tenho certeza, ele e você – fazíamos em frente ao espelho ou em uma parte do
braço.
- Ah, é sério que você nunca treinou beijar em frente ao espelho ou no braço? Mentirosa.
Combinamos que nos beijaríamos no sábado. Assim que a mãe de Manoelzinho fosse à feira, e
mamãe, à missa.
Chegado o dia, arrumei-me como podia. Com ar de mocinha pitanga, aguardei ansiosamente sua
chegada. O tão esperado beijo seria no balanço do meu quintal.
Depois de dez minutos de espera, chega Manoelzinho cheirando à colônia roubada do pai. Os dois
palpitando com os primeiros tremores do corpo. Coração acelerado, quase saindo pela boca. Levantei-me
do balanço em que estava sentada e fiquei diante dele, com o corpo retesado e tremendo. Disse a ele, em
tom mandão:
- Feche os olhos e abra a boca. Vou contar até três e então nos beijamos. Certo? Falei com ar de
superioridade.
Manoelzinho Para-raios obedeceu com a docilidade de quem se deixa levar pela voz da
experiência. Fechou os olhos, abriu a boca e ficou aguardando. Então, aproximei-me ainda mais de sua
boca aberta e no três casquei-lhe um beijo estridente. Depois, saí correndo envergonhada.
E foi assim o meu primeiro beijo. Sem graça como abobrinha.
Ainda bem que, na vida, nada é definitivo. Estamos sempre ensaiando. Depois deste beijo
desengonçado e tímido, pude ter muitos outros, mais apaixonados e excitantes. Mas, isso só quando já
não andava mais tão espantada com o sexo e com o corpo.
E se você ainda está vivendo esta difícil fase da vida, caro amigo, dou-lhe um conselho:
- Não tome a parte pelo todo. Como eu disse, a vida é feita de ensaios. Para podermos estrear na
peça, antes, temos que ensaiar muito. Muito mesmo. Além do mais, como você vai saber se gosta do beijo
de alguém se nunca beijou outro alguém que odiou beijar?
Mas, chega de primeiro beijo, porque a história tem que seguir adiante.
- Ah, está bem. Você quer saber que fim levou Manoelzinho?
Acho que virou padre.
Hiato
Acabo de completar dezoito anos. Maioridade. Posso dirigir e ir presa. Sou agora responsável
pelos meus atos.
- Será?
Acho uma bobagem essa história de que as nossas capacidades acompanham necessariamente
nossa idade cronológica. No meu caso, por exemplo, apesar de eu ter completado dezoito anos e estar
legalmente emancipada, isso não correspondia em nada ao que eu sentia por dentro. Sentia-me insegura,
infantil, imatura, não resolvida. Tudo isso e mais um pouco. Está certo. Precisamos de um marco, uma
convenção para que a sociedade possa julgar minimamente quem é adulto e quem não é.
- Mas ser adulto tem mais a ver com a cabeça do que com a idade, certo?
De qualquer forma, agora eu já era uma pessoa maior de idade e precisava dar um rumo para a
minha vida. Não via perspectiva para mim em minha pequena cidadezinha. Tudo muito provinciano.
Minhas melhores amigas já estavam engravidando e os rapazes tinham deixado os estudos há
muito tempo para sustentar família. Eu não queria isso para mim. Eu sonhava alto. Queria ser historiadora
famosa, reconhecida.
- Por que História? Imagino que você esteja se perguntando.
Bem, eu era uma aficionada por entender a origem de tudo. Acontece que com toda a minha
ingenuidade dos dezoito eu não sabia que, no fundo, eu não queria estudar História. Eu queria escrever
história. De preferência, a minha história. Ser autora da minha própria travessia.
- Mas, como é que uma jovem inexperiente da vida iria perceber isso?
Essa ficha demorou muitos anos para cair. Mas, esses anos não foram jogados fora. Acho que eles
foram uma espécie de hiato, de preparação silenciosa, de treinamento para aquilo que eu viria a ser no
futuro.
- Nunca reparou que há metamorfoses que se passam dentro da gente de forma silenciosa e muda,
sem que a gente perceba?
E aí, de repente, um belo dia você tem um insight e acha que aquilo veio do nada. Nada vem do
nada. Isso é óbvio, mas precisa ser dito. A vida é processo.
No meu caso eu acho que o meu processo de eu vir a me tornar aquilo que eu era – Clarice, a clara
– começou desde a barriga da minha mãe.
Estou lhe falando: eu nunca me senti pertencendo ao lugar em que nasci. Sentia-me uma
estrangeira, uma estranha lá. Olhava ao meu redor e os meus amigos só falavam de coisas idiotas,
enquanto eu passava grande parte das minhas tardes em uma velha biblioteca, cheirando livros.
- Dá pra explicar de onde veio isso?
Pense bem, caro leitor: a gente não escolhe quem a gente vai ser. A gente é escolhida. Se eu, por
exemplo, pudesse escolher ser quem eu quisesse, queria ter nascido com uma voz linda para poder cantar
igual canário. Mas não nasci. Nasci com voz estridente.
- Vai fazer o quê?
Tem gente que passa a vida inteira brigando com a sua própria natureza.
- Eu já vou logo avisando. Você vai sair perdendo. E feio. A gente tem que se acasalar com a
nossa natureza, não maltratá-la.
Então, seguindo meio às cegas o faro do meu instinto, eu achei que devia fazer História. Mas, eu
queria fazer História em um lugar distante da minha cidadezinha. Aquele não era meu lugar. Precisava
encontrar um para mim.
E foi então que eu me inscrevi em um vestibular para uma faculdade bem, bem distante. E passei.
Considero este o meu segundo nascimento. O primeiro foi quando eu saí da barriga da minha mãe. E o
terceiro, quando eu saí da universidade. O quarto, depois da minha análise.
- É. Universidade pode ser um útero aprisionante. Depois vou explicar por quê.
Então, lá fui eu com minha pequena malinha de roupas e meus parcos dezoito anos, levada por
minha nobre mãe.
Vou explicar uma coisa: minha mãe me deu muito trabalho como você se lembra, mas sem ela eu
não teria conseguido. Ela foi uma leoa. No dia da matrícula, lá fomos nós duas de ônibus, morrendo de
medo. Nunca tínhamos ido tão longe. Nunca tínhamos deixado nossa pequena cidadezinha perdida no
mapa. Ela segurou firme na minha mão e disse:
- Filha, finalmente você vai ser alguém na vida. Vai realizar aquilo que eu nunca consegui.
Fico emocionada só de lembrar. Fui a primeira pessoa de toda a minha família a fazer
universidade.
- Não é lindo isso?
Há uma generosidade neste ato de minha nobre mãe que é indizível. Porque por inveja, maldade
ou decepção com a vida, ela poderia ter me segurado e dito:
- Não, se eu não fiz você também não vai fazer.
Conheço muitas histórias assim. A mãe ou o pai ficam frustrados com a vida e depois se vingam
nos filhos. Não os deixam crescer. E, se eles crescem, os pais estragam e não valorizam.
- Já pensou que judiação?
Mas nisso eu tive muita sorte. Minha mãe foi uma heroína amorosa e me levou pelas mãos à
universidade. Ao lugar em que, finalmente, eu poderia conhecer o mundo e saciar minha sede. Vou lhe
contar a cena da nossa chegada a minha nova cidade.
Eu e minha mãe, depois de dez horas de viagem de ônibus, descemos na rodoviária. Não
conhecíamos nada ali. Fomos perguntando, perguntando, até que descobrimos onde era a universidade.
Pegamos mais um ônibus – não tínhamos dinheiro para táxi – e, finalmente, chegamos. Depois de doze
horas adentramos a entrada principal. Silêncio e contemplação. Sentíamos, eu e ela, que pisávamos em
solo sagrado: o solo do conhecimento.
- Imagina a emoção de minha pobre mãe que só cursou até a quarta série?
Chegando lá, fizemos a matrícula e minha mãe logo arrumou um lugar para eu ficar.
- Passarinha se preocupa com o ninho do filho, não é?
Tudo arrumado, voltamos à nossa cidadezinha. Logo eu retornaria sozinha para o início das aulas.
Voltei à minha terra natal como um esportista olímpico, ganhador da medalha de ouro. Sentia um baita
orgulho de mim. Afinal, havia estudado em péssimas escolas, mas mesmo assim consegui me destacar
nos estudos.
- Já lhe disse que Freud disse que o sucesso é feito de competência e sorte?
O meu pai, nessa altura do campeonato, não me deu um centavo para estudar. Acho que ele tinha
medo que eu me tornasse uma pessoa muito inteligente. De alguma forma estranha, ele se sentia
ameaçado com isso.
Iniciei meu curso um mês depois deste episódio do ônibus. Desta vez, eu fui sozinha. Fui para
nunca mais voltar. Eu sabia que precisava encontrar o meu próprio lugar no mundo.
Os anos na universidade foram como tudo na vida. Vivi coisas boas e maravilhosas e outras
difíceis. Mas, antes de encerrar este capítulo, quero lhe contar por que a universidade pode ser um útero
pegajoso e sufocante.
O saber, a inteligência humana é uma dádiva de Deus. Mas, quando o homem usa sua inteligência
para tentar ser Deus, a coisa fica perigosa. Na universidade conheci muitos aspirantes a Deus. Por isso eu
digo e repito:
- Não tenho medo de gente simples. Tenho medo de gente metida à sabida.
Na universidade tinha muita gente assim. Acontece que esse tipo de gente seduz quem também
tem aspiração a ser Deus e aí a coisa fica ainda mais perigosa, já que quem tem coragem de pensar com
liberdade passa a ameaçar.
Eu me livrei desse mal, primeiro porque sou esperta, segundo porque nunca tive a pretensão de ser
Deus. Conheci desde muito cedo as mazelas humanas para acreditar que a gente valha alguma coisa.
Então, desta eu me livrei.
Gastava meu tempo de forma útil: estudava, trabalhava para me manter e também aproveitava um
pouco o lazer porque ninguém é de ferro.
- Ah, como eu me realizei na universidade!
Aprendi, sorvi tudo o que pude. Lá encontrei as duas coisas que eu mais gostava quando criança:
gente velha e sábia, e livros.
Nunca entendi muito bem por que, mas adoro gente velha. Mas não qualquer tipo de velho. Gosto
de velho e sábio. Gente velha e sem sabedoria me irrita muito. Acho que há certa obrigação do velho ser
mais sábio que o jovem. Quando isso não acontece, sinto que a natureza está sendo contrariada.
Na universidade, eu tinha uma professora velhíssima. Talvez ela tivesse uns trezentos anos. Como
eu adorava ficar perto dela. Olhava-a, com curiosidade viva, e cada uma de suas rugas. Achava aquilo
curioso e sinistro. Certo dia, ela convidou-me para ir à sua sala, depois da aula. Queria conversar sobre
um projeto acadêmico que estava pensando para mim.
Foi um deleite. Olhava, com respeito e veneração, seus olhos fundos e já cansados de tanta vida.
Pensava, curiosa, quanto de vida aquela mulher fora capaz de viver. Sorvia, pelo seu hálito, suas
experiências vividas. Queria-as todas para mim. Ainda não tinha aprendido com Guimarães Rosa que o
capinar é sozinho. E que se ela já tinha vivido tudo aquilo, eu ainda tinha muito caminho a percorrer.
De qualquer modo, aprendi tudo o que pude com ela. Nunca mais a vi depois de formada. Minha
arrogância juvenil não me permitiu continuar o contato. A vida é tortuosa e só conhecemos as motivações
depois de muito, muito tempo...
Outro lugar em que eu adorava estar era na biblioteca. O cheiro de livros velhos era como uma
droga para mim. Tornei-me uma compulsiva, rata de bibliotecas. Nesta época, era monstruosamente
branca, translúcida, transparente. Quase não tomava sol. Vampira dos livros. Quanta vida desperdiçada...
Machado de Assis, curiosamente um homem de livros, epilético, disse certa vez que quem lê
muito tem medo da vida. Esta, talvez fosse eu. Ou talvez eu buscasse nos livros alguma explicação sobre
a lógica ilógica da vida. Nunca encontrei. O que encontrei foram maiores perguntas.
Passei, ao todo, oito anos na universidade, entre estudos e especializações.
Tempo de fermentação, de metamorfose.
Há metamorfoses que acontecem dentro sem que a gente saiba. Metamorfoses tímidas, quietas,
que depois irrompem com tudo, como um vulcão que fermentou seu líquido flamejante por décadas, para
depois explodir com toda a força.
Uma grande força se preparava em mim.
Ao meu hiato de oito anos, dedico esta força que vim a descobrir anos depois. Suportar hiatos: eis
nosso heroísmo de cada dia.
Primeiros anos da maturidade
Estava com vinte e cinco anos quando saí da universidade onde aprendi tudo sobre História. A dos
outros. Sentia-me como um bicho recém-saído de um longo estado hibernal. A universidade é um útero
viscoso. E a liberdade, profundamente assustadora.
Em mim, na luta entre o desejo de permanecer no útero protegido, mas limitante, e correr livre
como bicho na selva que é vida, venceu o segundo.
- Você já reparou, querido leitor – agora acho que já posso chamá-lo desta forma, não? – como
nós odiamos, com toda a força que podemos, a liberdade? A nossa e a alheia?
A liberdade é para o ser humano um bicho peçonhento e venenoso. Ela vai entrando aos poucos
pelos poros, pelo sangue, pelas veias e vicia. Por isso é tão perigoso. Prendemos os pássaros porque
odiamos vê-los tão livres.
Entretanto, aviso-o desde já: não confunda, por favor, liberdade com ausência de medo. Livre e
nobre é aquele que realiza apesar do medo.
- Certo?
- Então, por favor, caro amigo, não me venha dizer que tem medo. Quem não tem?
O meu medo foi imenso, gigantesco, glacial e severo como um inverno longo, longuíssimo. Nunca
passou. Confesso. Mas eu ia seguindo adiante.
- Nós não temos outra opção? Temos?
Fui seguindo, seguindo, seguindo, como a borboleta monarca que, chegado o outono na América
do Norte, migra cerca de cinco mil quilômetros rumo ao Sul, para poder acasalar. Assim como ela,
aproveitei como pude as correntes de ar e o néctar das flores que encontrei pelo caminho, para poder
ganhar peso em minha longa travessia. Sorvi o que pude. Intuía uma fragilidade em mim e, salva por esta
intuição profunda, aproveitei o que pude das poucas, mas boas companhias que encontrei pelo trajeto.
Nos anos que se seguiram ao meu luto pela vida de estudante, eu trabalhei. Trabalhei muito e
duro. Conquistei o quinhão do meu abrigo, de algum aconchego material. Sem o básico não se pode
sonhar.
- Amigo meu, já observou como pessoas com fome profunda, vivendo na miséria, morrem de
sonhos?
Mia Couto, autor moçambicano de uma delicadeza ímpar – uma das minhas companhias pela
minha travessia – disse algo lindo sobre isso. Vou transcrever na íntegra pela minha falta de competência
para traduzir tamanha beleza:
Disse ele: O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem em si mesma. Confrontados com
a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no
nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes.
- Não é lindo?
Eu acho que governantes de países que permitem que seus cidadãos vivam em estado de miséria
deviam ser condenados a penas severíssimas. Há vida e alma sendo assassinadas ali. Ninguém pode
sonhar nem aprender nada com a barriga vazia. Tive a sorte na vida de ter nascido no meio do caminho.
Nem pobre paupérrima, nem rica riquíssima.
Sendo pobre demais, o ser sonhador morre à mingua e não tem força de vicejar. Sendo rico
demais, a ausência de dificuldades empanturra-o, deixa-o cheio de vontades, de achaques, de mimos. E
uma criatura mimada não tem força suficiente para sobreviver à luta que é a vida. Nisso eu tive muita
sorte.
Com o pouco, mas necessário que tive, e que foi dado com muito esforço, mais pela minha mãe
que pelo meu pai, eu fiz meu pé de meia. Fixei-me como professora em um curso de pós-graduação em
História.
Mas, como já te expliquei, eu comecei do avesso. Resolvi que deveria aprender a história contada
pelos outros. Ingenuidade. Imaginava que a história contada pelos outros era mais verídica que a minha.
- Amigo leitor, já parou para pensar no seguinte: não importa qual seja a história que nos
contem, nós precisamos, inevitavelmente, construir nossa própria versão dos fatos? A vida é assim.
Uma constante reedição dos fatos vividos, que inventamos a nós mesmos, do que achamos que é,
que foi e que será a nossa vida. Nós somos viciados em histórias.
Então eu seguia trabalhando, mas sentia que algo faltava dentro de mim. Talvez os primeiros
sinais deste saber inconsciente – o de que eu deveria buscar minha própria história - começassem a bater à
minha porta.
Por causa disso, e talvez também porque os anos começaram a insistir em passar cada vez mais
apressadamente, como uma ampulheta devoradora de homens, comecei a não me satisfazer mais com essa
História, contada pela boca dos outros.
Queria contar minha própria história. Ser narradora dos meus próprios personagens.
Há instantes na vida que são decisivos. O homem coloca-se diante da esfinge, que lhe pergunta:-
Quem és tu? O que desejas?
E nesse instante catastrófico, ou você se angustia e pensa, ou você é devorado. Optei mais uma
vez pela via aparentemente mais difícil: a via da angústia. Daquela que nasce do encontro sinistro do
homem consigo mesmo. Confronto que se dá diante do espelho.
Nesta época, vivi uma grave depressão. Caí em um poço muito fundo, muito viscoso, muito
áspero. Faltava luz e ar lá dentro. Mas eu permaneci quieta, tentando ser eu mesma, demais. Deste
excesso de mim mesma, quase chegando à náusea, algo novo nasceu. Este processo durou cerca de dois
anos. Estava então com trinta e sete.
Às vezes o homem se debate. Ele reluta, ele foge deste lamaçal viscoso em que cai quando se
depara consigo mesmo. Faz de tudo para sair dele. Eu tentei fazer o caminho inverso.
Buscando força das minhas entranhas, permaneci lá, por dois anos, nesse lugar escuro. Nutria, de
forma talvez um pouco ingênua, uma vaga e leve esperança de que ao final algo bom iria acontecer. Ou
então, morreria. E este seria o meu final. Morrer deprimida e sem amor.
- Às vezes, fugir é arriscado. Mas, permanecer é mais.
Eu decidi pagar para ver. E permaneci. E fiquei. Na solidão terrificante do meu quarto, passava
horas a fio entre um cigarro e outro – esqueci-me de lhe contar, mas comecei a fumar, como papai moço.
Ficava lá entre cigarros e entre uma página e outra, diante da tela branca do computador. Nada saía da
minha cabeça. Ela estava branca, vazia. Nada, nada, nada.
- O que escrever? Pensava eu. Não tenho nada a dizer às pessoa, porque não tenho nada a dizer a
mim mesma. Sou um vácuo. Uma fraude.
E quando a gente se pega com o monstro de mil tentáculos que é a depressão, ele custa a
desgrudar. Em um movimento heróico, todas as manhãs eu acordava, tomava banho, penteava meus
cabelos curtíssimos – eu os havia cortado, talvez para me mutilar e para me enfear, já que nunca fiquei
bem de cabelos muito curtos – e lutava. Lutava bravamente. Pelo menos eu tentava.
Em seguida, num ritmo maquinal e automático, eu sentava em frente ao computador e abria o
Word. Depois, ansiosa em frente àquela tela branca, eu desistia e acendia um cigarro. O primeiro do dia.
O primeiro de muitos.
As horas iam passando e eu permanecia ali marmorizada. Sete, oito, nove, dez horas da manhã e
nada de escrever. Não saía absolutamente nada. Sufocada por aquela falta de ar, que não era do quarto,
mas de mim mesma, sentia uma necessidade irrefreável de tirar toda a minha roupa e ficar nua. Sozinha,
nua, com um cigarro na mão em frente à tela branca do computador. Era a descrição do que eu havia me
tornado.
Talvez a minha necessidade de arrancar a roupa – hoje considero isso – fosse mais uma busca
premente de me desvencilhar de tudo aquilo que não era eu, de tudo aquilo que tinha vindo de fora para
dentro e que eu sentia invadir minha alma como um estupro.
Mas, o que eu não sabia era que isso que havia me invadido de fora para dentro, já estava
entranhado, já estava misturado ao que eu era. Nesse instante, eu não sabia mais o que era eu e o que não
era eu. Precisava começar do zero. Voltar a me olhar no espelho. Repassar, com um novo olhar, aquilo
que havia sido a minha vida até então.
Diante desta situação catastrófica eu tinha algumas possibilidades: matar-me, procurar um
analista, encontrar um amor ou fazer uma viagem de autoconhecimento. Nenhuma delas me agradava
inteiramente. Tirar minha própria vida, eu julgava uma escolha de péssimo gosto.
- Para quê? Só para dar trabalho aos outros? Deixar meus pais culpados? Era o que eu pensava
com o resto de sanidade que me sobrava.
E também havia o fato de que eu gostava, pelo menos um pouco, da minha vida.
- Morta, como eu iria fazer natação? Sentir o prazer inenarrável da água tocando o meu corpo?
Pensamento aparentemente estúpido, mas salvador.
- Não. Decididamente eu não queria tirar minha própria vida. Só estava passando por um
momento difícil. Pensava.
Dentre as outras opções, encontrar um amor era algo fora de cogitação. Primeiro porque eu não
saía, exceto para dar aulas a jovens com menos da metade da minha idade. Segundo porque, com o senso
estético que eu ainda conseguia manter, sabia que estava feia demais, por dentro e por fora, para atrair a
atenção de alguém que não fosse o pedreiro da esquina ou o porteiro do meu prédio.
Fazer uma viagem de autoconhecimento também não me parecia uma opção interessante. Além de
eu odiar acampamentos e falta de conforto, estava fora de forma para conseguir caminhar por horas a fio
em uma estrada contemplativa. Restava-me só uma opção: procurar um analista.
Em meus estudos sobre História nutria algum pequeno interesse pelo corajoso homem que fora
Sigmund Freud, embora não soubesse absolutamente nada sobre sua teoria.
- Não importa. Eu pensava. Não preciso de alguém para discutir teoria, mas para me ajudar a
encontrar minha própria voz. Sem ela, nunca conseguirei escrever.
E assim fiz. Aos trinta e sete anos, num buraco sem fim, resolvi ir encontrar o que restou de mim
em um divã.
Não vou lhe contar o que eu descobri sobre mim lá.
Se for um leitor esperto, perceberá minhas descobertas nas entrelinhas dessa modesta narrativa.
Só posso lhe dizer o seguinte: minha análise foi, para mim, como um novo nascimento. Renasci
como mulher. Clarice. Descobri esta mulher clara e solar que sempre existira dentro de mim, mas que
estava escondida e estraçalhada sob os escombros do que fora a minha traumática infância e adolescência.
Além do mais, se você ficou curioso com relação ao que se conversa em uma análise, procure uma
você. Deixe de ser folgado ou medroso e faça você mesmo o trabalho que precisa ser feito.
Não queira vir pegar carona no meu incansável esforço e dedicação. Este é intransferível.
A única coisa que lhe conto é: passei sete anos no divã. Sete anos de ressurreição. E eis que aos
quarenta e quatro anos surge: Clarice, a clara.
Veja com seus próprios olhos a mulher que me tornei no início do crepúsculo de minha vida:
momento em que os primeiros rompantes de lusco-fusco de uma vida começavam a dar seus sinais.
CREPÚSCULO
Vida é travessia.

Dizem que a vida é para quem sabe viver, mas ninguém nasce pronto. A vida é para quem é corajoso o
suficiente para se arriscar e humilde o bastante para aprender.

Clarice Lispector

Como você deve se lembrar, estou agora com quarenta e quatro anos e sete anos de divã. Vou lhe
contar como foi que descobri quando estava pronta para ir embora da análise. Foi quando tive o seguinte
sonho:
Estou em um corredor escuro e pegajoso, mas não sinto medo. Ao contrário, meu corpo desliza
por aquele espaço. Sorvo o ar com prazer e uma emoção doída. Aquele parece ser o primeiro e o último
dia da minha existência e preciso sorver o máximo daquela experiência, ao mesmo tempo sensual e
misteriosa. Caminho com uma roupa esvoaçante, branca, um pouco transparente. Por entre os panos,
meu corpo translúcido e também muito branco deixa-se entrever. É um corpo já maduro, levemente
enrugado, mas há uma beleza sublime que irradia dele. Sinto-me uma deusa. O clima de excitação é
intenso. Caminho, mas meus pés quase não tocam o chão. Flutuo, pois meu corpo quase já não possui
densidade humana. Ao final do corredor, encontro uma figura sublime: metade humana, metade deusa.
Apresenta-se como Antígona e diz que veio até mim para ajudar-me na travessia. Pergunto para onde.
Com um sorriso enigmático, monalisa, ela silenciosamente me estende a mão. Seguro-a docemente e
deixo o meu corpo ir. Entrego-me à travessia, num misto de medo e êxtase.
Não vou explicar nem interpretar meu sonho para você.
Mas, não precisa ser expert em psicanálise para entender o que Freud chamaria de umbigo do
sonho e nós chamaríamos de temáticas centrais, que tocam o próprio cerne do sujeito, que neste caso sou
eu. O umbigo do meu sonho metaforizava em belíssimas imagens, temas como sensualidade, coragem,
feminilidade, segundo nascimento, travessia, passagem, e túnel que liga vida e morte.
Nele surge uma figura mítica que, depois dos meus quarenta e tantos anos, passou a ter um
significado todo especial para mim. Trata-se de Antígona, mulher selvagem inventada pela cabeça genial
de Sófocles no século V a. C. Assim como ela, descobri que não podemos fazer concessões com relação
aos nossos desejos. Não sem pagarmos um preço altíssimo por isso. No fundo, minha análise ajudou-me a
ser como ela.
- Entende?
Minha mãe abriu mão do seu direito de ser mulher e de ter sua própria voz.
- Lembra a que ponto ela chegou?
Eu estava indo para o mesmo caminho. Repetia como papagaio aquilo que me diziam. Fui
aprender a História contada pela boca dos outros. Não sabia contar minha própria história, pela minha
própria voz. Adoeci por um mutismo de alma.
Mas depois de tantas pancadas a gente tem que aprender alguma coisa com a vida. Agora aqui
estou eu aproximando-me dos quarenta e cinco anos e não mais disposta a fazer concessões, só para ser
amada, boa ou aceita.
Alguém que está próxima dos cinquenta inevitavelmente começa a pensar em sua própria morte. E
eu sentia que não tinha mais tempo a perder.
Depois da elaboração deste sonho, tive alta da análise, consegui finalmente deixar o trabalho
enfadonho e sufocante da universidade, onde eu sentia estar cercada de pessoas com medo da vida e
invejosas daquelas que, como eu, ousavam se arriscar na travessia da vida. E comecei, finalmente, a
escrever por mim mesma.
A lembrança daquele espectro branco e vazio que eu era, sentada em frente ao computador,
fumando como chaminé, havia ficado para trás. Minha criatividade jorrava como a água de um rio
abundante e selvagem. Agora não havia mais amarras para mim, porque eu mesma – meu maior algoz –
estava liberta e podia gozar a vida, sem culpa, sem remorso, sem medo.
Nesta época comecei a escrever ficção. Interessava-me por todos os temas humanos que, no
fundo, são universais. Na essência, somos todos iguais ou bem parecidos. Japoneses, coreanos,
estadunidenses, canadenses, brasileiros, etíopes. Não importa. Todos nós temos medo das mesmas coisas.
Todos nós almejamos as mesmas coisas.
Todo o mundo tem medo de não ser amado. Todo o mundo tem um pouco de medo da morte. Ou
muito. Todo o mundo tem nostalgia da infância. Todo o mundo espera algo bom da vida. Todo o mundo
tem medo da solidão, uns mais, outros menos. A diferença entre a gente é que uns aguentam o medo e
seguem adiante e outros se acovardam. Essa, talvez, seja a única diferença entre o que realiza e o que fica
paralisado.
No meu caso, eu realizei. Escrevi meu primeiro material e mostrei a uma editora. Logo fui
convidada a publicar meu primeiro romance.
Nos anos seguintes, publiquei vários livros, fiz viagens incríveis, conheci pessoas do mundo todo.
Descobri nestas minhas andanças algo sublime. Descobri que a vida é travessia, não é ponto de paragem.
Nesta época meus pais já estavam velhinhos e continuavam vivendo a vida como podiam.
Eu, também já mais velha, comecei a nutrir um interesse particular por observar mulheres bem
mais velhas que eu. Observava atentamente suas rugas, seus corpos flácidos, seus cabelos. Achava aquilo
enigmático. Pensava que elas se pareciam com bruxas, mas não no sentido pejorativo do termo. Bruxas no
sentido de seres que, com alguma sorte e trabalho na vida poderiam, no alto de sua sabedoria, gozar da
vida pelas experiências vividas e acumuladas. Elas talvez tivessem condições de voar para muito alto,
usando somente suas mentes lúcidas de mulheres vividas.
Mas frequentemente o que eu encontrava à minha volta era amargor, dor, reclamação, queixa,
lamúria, lamentação e ódio. Velhas infelizes que aprenderam pouco sobre a vida e a morte, sobre o amor,
sobre o casamento, sobre a beleza e o mistério de ser mulher. Tinha medo, muito medo de ficar como
elas. Por isso me preparava como podia.
Observava mulheres velhas infelizes no casamento, adoecendo e não percebendo que aquele
adoecimento era reflexo de suas almas sombrias. Via mulheres velhas infelizes, nada sábias. Tinham
passado pela vida a passeio. Não tinham aprendido absolutamente nada sobre a arte de viver. As queixas e
lamentações, saídas de suas bocas sujas e enlameadas pelo ódio eu intuía que nasciam de uma
necessidade premente de segurar o processo, de evitar a passagem e a travessia.
Veja a Bete, por exemplo. Minha vizinha de apartamento. Cinquenta e três anos, três filhas, um
casamento de vinte. Um belo dia o marido, segundo ela, sem mais nem menos, disse que estava indo
embora: não a amava mais. Argumentou que o casamento já havia acabado há muito tempo e que ele não
a via mais como mulher. Ela havia se transformado em uma grande mãe para ele.
- Culpa de quem? Talvez você, como uma boa mulher, vá dizer que é do marido, é claro.
- Estes homens safados que só querem saber de mulheres mais jovens e deixam suas pobres
mulheres, tão dedicadas. Usadas e jogadas fora como bagaço de laranja.
Acontece que a Bete teve muita responsabilidade em seu desfecho infeliz.
Ao longo destes vinte anos de casamento, o que fez ela? Dedicou-se, abdicou de sua própria
identidade, virou serva do marido e das filhas. Vivia só para eles. Deixou profissão, dedicou-se
inteiramente à maternidade e ao casamento. Aos poucos, foi deixando mofar seu próprio desejo. Com os
anos, não sabia mais quem era. Não tinha mais sonhos, não vibrava por nada. A vida, para ela, passou a
ser uma sequência infindável e entediante de dias, semanas, meses e anos que se repetiam como num
filme de uma cena só.
- Agora me diga: como um homem pode continuar amando uma mulher que deixou de se amar?
Como um homem pode continuar desejando uma mulher que não deseja mais nada além de ser mãe e
esposa? Como pode um homem continuar amando uma mulher que abdicou de seus sonhos, de seus
desejos e foi embolorando como pão velho?
A gente só ama quem ama a si mesmo. Quem vibra com a vida. Quem se arrepia com o
desconhecido. Esta foi uma das minhas grandes descobertas, já beirando os cinquenta anos. Nesta época,
eu também pensava que queria me preparar como pudesse para o meu encontro sinistro com a morte.
Achava que grande parte da lamúria saída da boca dos velhos tinha a ver com o fato de que o ser humano,
quanto mais se aproxima de seus anos finais, mais sente em seu pequeno peito apertado, uma dolorosa
angústia advinda do fato de que o tempo não é algo infinito – como costumam pensar os jovens – e que,
por isso, cada dia vivido é único, passageiro e rápido como um cometa.
- Já reparou como, à medida que envelhecemos, vamos sentindo o tempo passar mais rápido?
Obviamente, não é o tempo que passa mais rápido, mas é a nossa percepção profunda de que não
temos mais tanto tempo a perder na vida, percepção que faz com que o ritmo das coisas pareça estar
acelerado. A relação do homem com o tempo sempre foi algo muito intrigante para mim.
De minha parte, eu pensava:
- Quero me preparar para este instante sinistro. Momento em que receberei a visita fúnebre da
morte. Nele, quero estar com minha melhor roupa. Com olhar de dignidade. Quero estar com um
sentimento solene de não ter ficado à toa. De ter sido fiel a mim mesma e aos meus sonhos. De ter
tratado bem as pessoas. De não ter perdido tempo. De ter feito aquilo que eu deveria fazer.
Como você pode perceber, eu tinha pressa. Pressa de viver. Mas, antes de seguir adiante, precisava
fazer alguns acertos com o meu passado. Precisava reinventar-me como mulher e resgatar a alma de meus
velhos pais.
O prazer de ser mulher
Já lhe contei como sempre me senti estranha sendo mulher. Na verdade, eu odiava ser mulher.
Havia aprendido com mamãe – que, por sua vez, aprendeu com sua mãe – que ser mulher não era algo
bom. Sentia que mulher era um bicho pecador, repleto de desejos perigosíssimos. Que o corpo de uma
mulher era o próprio demo personificado: corpo que sangra, que gera e pari, que seduz e encanta, que leva
à loucura e ao pecado.
Já crescida, fui percebendo que estes sentimentos herdados de mamãe tinham a ver com a forma
culposa como ela mesma aprendera a lidar com o seu sexo e com o seu prazer.
Acho intrigante pensar quantas pessoas nós levamos para a cama conosco durante o ato sexual:
nossos pais e mães, nossos avôs e avós; os pais e mães dos nossos parceiros, seus avôs e avós. É muita
gente para conciliar.
As pessoas costumam erroneamente tratar suas dificuldades sexuais como algo orgânico. Quanta
ingenuidade. Sexo é uma coisa de mente.
No meu caso, depois de chegar ao fundo do poço e passar alguns anos vasculhando meu ser na
análise, vivi uma grande transformação interna. Finalmente descobri o enorme prazer que existe em ser
mulher.
Pude pela primeira vez experimentar uma relação sexual prazerosa, pois havia feito as pazes com
minha Eva envergonhada. Também comecei a sentir um enorme prazer em ser possuidora de um corpo de
mulher: corpo enigmático, cheio de curvas, de cavernas quentes e de entranhas. Corpo que pode gerar
outro corpo. Há mistério maior do que esse?
Este prazer eu não podia mais conhecer, pois estava com quase cinquenta anos e não tinha um
parceiro. Nunca fui favorável à usurpação do sêmen masculino em um banco de esperma, por exemplo.
Acho uma desconsideração enorme com o papel importantíssimo do homem na geração e cuidado de um
novo ser. Nesse ponto, não sou nem um pouco moderna. Também considerava que deveria lidar da forma
mais coerente que eu pudesse, com o fato de que minha relação conflituosa com o meu sexo havia
deixado em mim marcas profundas. E algumas marcas ficam para sempre. A gente cuida, passa remédio,
entende, mas as marcas ficam lá, inscritas no nosso corpo. Eu sabia, portanto, que minha impossibilidade
de ser mãe era fruto de uma destas marcas. Tinha que aprender a conviver com ela.
Por outro lado, com minha arte de me reinventar, fui descobrindo outros jeitos de ser mulher. A
maternidade não é, de forma alguma, o único jeito de se realizar como fêmea.
Descobri que podia me realizar como mulher de outras formas, igualmente incríveis. Descobri que
tinha um corpo que era capaz de dar e receber prazer. Descobri que tinha um corpo ainda bonito e
atraente. Também descobri que capacidade de atração não tem necessariamente a ver com corpo bonito,
mas com algo misterioso que é a gente se sentir uma pessoa interessante por dentro.
- Já observou como algumas pessoas velhas são extremamente atraentes? E como algumas
pessoas jovens e lindas não são nada atraentes?
Capacidade de atrair – isso eu também descobri – tem mais a ver com mente do que com corpo.
Em minha reinvenção de mulher descobri que sentia um enorme prazer em trabalhar, em comer boa
comida, em tomar bom vinho, em ver bons filmes, em conversar com gente interessante. Tudo isso, para
mim, é ser mulher.
Em suma, descobri que ser mulher tinha a ver com nossa capacidade de se jogar na vida sem rede
de proteção.
A sedução e o prazer que irradiam de uma mulher sábia, segundo eu comecei a pensar, vinham
desta disponibilidade dela em estar na vida, aproveitando e gozando cada momento vivido, cada pequeno
instante. Uma mulher atraente e desejável é, em última instância, uma loba intuitiva que corre, com suas
carnes maciças e musculosas, à procura de selvas sinuosas e cavernas escondidas. É lá que está o seu
saber. E este saber eu finalmente havia encontrado. Restava-me agora resgatar a alma de meus velhos
pais. Sim, agora eu podia fazer este percurso de volta.
Resgate de almas
Eu ainda não lhe contei isso, mas desde que saí de casa para estudar, aos dezoito anos, nunca mais
havia retornado à minha cidadezinha inexistente nos mapas.
Talvez você interprete isso como frieza ou ingratidão de minha parte para com os meus pais.
Julgue como quiser. Afinal, julgar a conduta alheia, da perspectiva de alguém que não sabe o que se passa
nos abismos da alma humana, é sempre muito fácil. E o ser humano é ótimo em julgar comportamentos
alheios, embora seja péssimo em considerar, de forma mais profunda e corajosa, suas próprias ações.
O fato é que eu havia permanecido vinte e seis anos acreditando estar completamente distante do
meu passado difícil, mas esta era uma grande ilusão.
Nós carregamos a nossa história, o nosso passado, onde quer que estejamos. Não se foge daquilo
que se é. Não sem sérias consequências para o próprio fugitivo. Eu tentei, fiz o que pude para não ter que
me confrontar com a minha história. Mas, descobri que, sem este confronto, que eu sentia sinistro e
catastrófico, eu não poderia seguir adiante. Sem este retorno não poderia ser narradora de mim mesma.
Não sem antes me confrontar, cara a cara, com meus próprios demônios, medos e temores mais
inconfessáveis.
Depois de descobrir tudo isso, agora eu estava pronta para fazer a viagem de volta e reencontrar
minhas origens. Não vou dizer que não senti medo. Senti muito medo. Estaria mentindo para você se
dissesse que foi fácil. Não foi fácil reencontrar meus pais, agora muito velhos. Não foi fácil reconhecer
em seus pequenos e enrugados olhos o peso das culpas passadas, agora já um pouco reconhecidas pelo
correr dos anos.
- Você já observou que, com o passar dos anos, algumas pessoas – não todas – são capazes de
rever suas histórias e, confrontadas consigo mesmas, amansam seus pequenos corações pelo remorso?
Outras, não aguentando este confronto, enlouquecem e endurecem ainda mais o coração. Estas sentem o
confronto impossível e doloroso demais. Afinal, como se rever quando não há mais tempo hábil para
consertos?
As pessoas não observam muito, mas as dores da consciência enlouquecem e desestruturam os
velhos muito mais do que se imagina. Este era mais um motivo para eu fazer as pazes com o meu passado
e, finalmente, poder perdoar os meus pais por aquilo que eles não puderam ser e fazer.
Quando somos jovens pensamos que os pais são falhos, frágeis e imaturos porque querem.
Precisamos envelhecer para considerar que os pais são tão assustados e miseráveis quanto nós.
Frequentemente, eles estão tão ou mais amedrontados que as próprias crianças das quais eles tentam,
heroicamente, cuidar. Então, é preciso perdoá-los por suas humanidades. Era isso o que eu tinha
descoberto e precisava dizer a eles.
Precisava dizer que eu perdoava o meu pai por não ter me amado por eu ser menina, por eu ser
inteligente como ele, por eu ser sabida e esperta. Precisava dizer que perdoava minha mãe por ela não ter
me ensinado muito bem o que é ser uma mulher. E precisava dizer a ela que hoje eu compreendia que ela
fez isso, não por ser uma pessoa má, mas porque ela também não sabia o que é isso de ser mulher.
Precisava dizer a ela que eu havia descoberto, ou pelo menos estava no caminho de descobrir, o
que é ser uma mulher. E que ser uma mulher é uma delícia e que ela não devia ter medo da metamorfose.
Também precisava dizer a ela que eu era muito grata por ela ter me empurrado para fora do ninho e por
ter me deixado conquistar, por mim e por ela, aquilo que era um sonho acalentado por tantas gerações: o
encontro com a verdade, com a luz, com a clareza. Eu precisava dizer que, finalmente, depois de tantas
andanças e cabeçadas pela vida, eu havia encontrado aquilo que ela tanto quis, mas nunca encontrou: o
prazer em estar viva.
Em suma, tinha muita coisa para dizer a eles.
E então, aos quarenta e seis anos, fiz o caminho de volta.
Fui exatamente como eu saí: com pouca roupa na bagagem, mas com um desejo enorme de me
encontrar com algo bom que eu sabia que ainda existia, no fundo daquelas velhas almas. Este algo bom
eu chamei de esperança.
E então, eu fui. Cheguei sem avisar. Depois de horas e horas de viagem, finalmente cheguei à
minha casa da infância.
Primeiro choque: esta não existia mais. Só havia sobrevivido em minhas memórias. A casa que
meus olhos enxergavam agora estava muito diferente. Ela havia se deteriorado com a força implacável do
tempo. As enormes e lindas roseiras que minha mãe, em um rompante de amor, havia plantado em frente
à nossa pequena casa, tinham sido cortadas. Decepadas. Senti uma dor funda. Pensei que mamãe tivesse
feito esse assassinato por medo de que aquelas lindas rosas viessem despertar antigos sonhos.
- Pois, como avistar uma linda rosa e não se deixar vibrar pela beleza? Você não acredita que
nós temos mais medo da beleza do que da feiura?
Se não acredita, precisa começar a observar melhor a realidade.
- Ou por que você acha que os nossos noticiários diários estão repletos de feiura?
- É porque o belo e o bom espantam e metem mais medo no homem do que o feio e o mau.
Com a feiura o homem está habituado. Ela não desperta invejas, cobiças. A beleza, quando
estamos na companhia do demo, é uma ameaça maior. Queremos destruí-la a qualquer custo. Os olhos do
demo não aguentam ver a beleza assim como o vampiro não suporta ver espelhos ou sentir cheiro de
cebolas. Acho que se isso fosse ensinado nas escolas, teríamos seres humanos mais espertos e atentos
para a presença dos seus demos. Daqueles que moram dentro da gente e estão sempre à espreita para fazer
arruaça.
Mas voltando ao encontro com os meus pais, vou lhe contar em detalhes como foi. Vale a pena
pela beleza e perfeição do instante.
Como eu disse, cheguei sem avisar e a casa estava toda fechada. Se ela fosse gente, diria que
estava dormindo. Que tinha caído num daqueles sonos bem profundos, bem invernais. Ela estava
precisando de alguém para tirá-la daquele inverno fúnebre. E esta era eu.
Fui entrando bem devagar para não ser ouvida. Queria ver os meus pais em seus cotidianos. Pegá-
los em um instante de gente. Sem preparação.
Entrei pela porta, que estava recostada, e fui caminhando pelo corredor estreito e minúsculo. Na
pequena sala, vi minha mãe sentada de costas, em frente à televisão ligada. Percebi que ela ressonava.
Pareceu-me um sono tranquilo, mas também um daqueles sonos eternos em que não se espera por mais
nada, exceto pela morte. Desliguei a TV devagar. Emudeci a única companhia de mamãe por todos esses
anos. Percebi que ela estava magrinha, franzina, quase uma fagulha. O peso da idade tinha se imposto
ferozmente sobre ela. Mas que força havia tido aquela pequena e notável mulher.
Toquei leve e docemente seu pequeno ombro com minhas mãos. Seus olhos se abriram. E ela
olhou-me com os olhos doces de saudade.
Seus olhos, murchos e envelhecidos pelo tempo, encontraram os meus e nós duas, como anjos
nascidos para amar, ficamos ali a nos olhar por minutos que pareceram eternos. Depois, nos abraçamos.
Nossos braços estavam ávidos pelo reencontro tão esperado e tão temido, durante todos estes longos anos.
Mamãe não me fez nenhuma pergunta. Nenhum inquérito que tentasse esmiuçar o meu sumiço por anos.
Lá no fundo, nós duas sabíamos o motivo e o mantínhamos em segredo, como um pacto de sangue feito
entre irmãos.
Mamãe, em sua sabedoria muda, sabia que eu precisara destes anos para poder me metamorfosear
na mulher que eu havia me transformado e que ela pôde reconhecer dentro de mim. Ela também sabia que
eu tinha voltado para resgatá-la. E que só tinha voltado agora porque antes eu talvez não conseguisse
fazer o que precisava ser feito.
- Como resgatar alguém do abismo quando também se está nele? Este salvamento de mamãe eu
não havia feito até então porque estivera acima das minhas forças.
Mas agora que eu havia me tornado uma mulher forte e corajosa, poderia e conseguiria carregar
seu pequeno e doce corpo para fora da caverna. Agora poderia, com minha força, mostrar a ela quanta
vida há lá fora. Agora poderia, com a minha força de saqueadora, abrir com violência aquelas portas e
janelas cerradas por anos, para que a casa se deixasse invadir pela luz e pela claridade. Agora eu era
Clarice. Filha de minha mãe e de meu pai. Agora eu sabia que existia. Agora podia falar por mim mesma.
E eu falei. Permaneci na companhia de mamãe por um tempo a perder de vista. Resgates
demandam tempo. Conversamos sobre tudo o que você pode imaginar. Em meio a bolos e cafés
cheirosos, costuramos com fios de amor nossa história passada.
- A vida, caro leitor, é como uma colcha de retalhos. Para podermos construir um gostoso
cobertor, quente e aconchegante, para nos proteger do inverno que é esta vida, precisamos costurar
nossas lembranças com fios de amor. São eles que unem os pedaços de uma vida, fazendo-a toda. E foi
isso que fiz com mamãe.
Como bordadeiras de vida, nós costuramos nossa história, fio a fio. Repassamos cada pedaço dela,
sem deixar nada para trás. De nossas bocas não saíam somente palavras, mas fachos de luz que iam se
irradiando pela casa.
A casa, antes emudecida, triste e adormecida de um sono de morte, abriu-se em luz e claridade.
Aos poucos, novas roseiras foram crescendo e o meu jardim lindo e vistoso da infância voltou. Meus
olhos eram pura claridade. E mamãe, com suas pequenas mãos faceiras e amorosas, regavam cada uma
das lindas rosas – azuis, lilases, amarelas, vermelhas e roxas – que iam brotando do nosso amor
reconstruído.
Sentia aquele cuidado mútuo como um segundo nascimento, meu e dela. Ambas, em nossas
fiações de amor, íamos nascendo transformadas. Mamãe ficando linda e moça mais uma vez. Eu, velha e
sábia. Pura amorosidade.
Perguntei, então, à mamãe:
- Mamãe, por que você decepou suas lindas roseiras?
- Minha querida e doce Clarice, as roseiras me davam muito trabalho. Quando eu olhava para
elas meu peito se enchia de dor. Eu me lembrava, através delas, que a beleza e a bondade continuam
existindo. Mas também me dava conta que eu havia me deixado afastar, por covardia ou medo, de toda a
beleza que existe. E como me sentia fraca para recomeços, não pude conviver com esta visão inebriante.
Por isso as decepei. Hoje reconheço que foi o meu ódio e a minha dor que deceparam as lindas roseiras,
que sou eu mesma e que é você também. Não quero mais fazer isso, minha pequena Clarice. Você me
ajuda a não ter medo de amar?
- Sim, mamãe. Eu ajudo. Vamos aprender juntas. Respondi com lágrimas nos olhos.
Mas você deve estar se perguntando:
- E papai? Onde estava ele?
Depois de salvar minha mãe, com suas rosas, perguntei por meu pai. Ela disse:
- Seu pai, Clarice, deve estar metido em alguma caverna por aí. Desde que você se foi para
sempre, ele entristeceu muito. Acho que não se perdoa pelo que fez a você. Ajude-me a encontrá-lo. Eu
sinto que ele corre sério perigo. Se não pudermos resgatá-lo, ele morrerá de tanta dor e remorso.
- Mamãe, eu sei onde ele está. Deixe comigo. Vou resgatá-lo com minha claridade.
Deixei a casa e segui em direção a uma densa floresta que havia nas redondezas. Sabia que papai
estava virando bicho e que precisava correr para evitar que ele desistisse, para sempre, de ser homem.
Corri por horas a fio já que a floresta era muito distante. Lá havia um riacho de águas limpas e
claras. Encontrei papai, já um pouco peixe, mergulhando nas profundezas do rio. Chamei por ele. Nada.
Chamei agora mais alto. Nada. Gritei.
Meu grito contemplava um desespero e uma dor. Eu precisava evitar que papai se fosse para
sempre. Agora eu sabia que ele se sentia um pouco bicho como eu. Agora eu era capaz de entender sua
dor e a sua decepção com os seres humanos que, no passado, foram tão cegos às necessidades infantis de
papai. Então eu gritei, gritei, gritei.
Depois de horas gritando fiquei exausta. No fundo, eu havia desistido. Achei que tinha perdido
meu pai para sempre.
Então, sentei-me no chão duro e chorei. Chorei copiosamente. Aquele choro era por mim, por ele
e por todos aqueles que nos fizeram mal. Chorava por toda a humanidade. Chorava por todas as crianças
que são cotidianamente assassinadas em suas almas.
Já havia desistido de resgatá-lo quando, ao levantar minha cabeça cansada, avistei papai saindo da
água, ainda meio homem, meio peixe.
Acho que ao ouvir meu choro, papai finalmente sentiu que alguém o amava de verdade e desistiu
de virar peixe para sempre. Sentiu que, apesar de todas as misérias da vida, ainda valia a pena ser homem.
Ainda valia a pena ser pai. Ainda valia a pena viver.
Então, papai saiu da água e caminhou em minha direção. Apesar de velho e murcho, pude ver em
seus olhos o brilho de duas esmeraldas.
- Sim, papai, ainda tinha esperança. E eu iria resgatá-lo de suas dores. E não deixaria nunca
mais ele virar peixe, ou bicicleta, ou árvore, ou poste. Eu o ajudaria a ser o que ele realmente era: um
humano. Foi o que eu pensei ao avistar meu amado pai.
E então, com lágrima nos olhos, papai me disse:
- Minha filha, me perdoe por não ter conseguido amá-la como você merecia. Eu era um estúpido.
Nunca soube muito bem o que significa ser um homem e amar uma pessoa. Quero acabar com minha
vida, ir embora para sempre porque eu fiz tudo errado e hoje considero que não mereço continuar
vivendo.
- Não, papai. Isso que você está dizendo é uma heresia. Você pode ter feito muitas coisas erradas
e más, mas todo mundo merece perdão, até o pior criminoso ou assassino. E eu o perdoo. Além disso,
você não deve pensar que fez tudo errado. Eu amo estar viva e devo minha vida a você. Por favor, não
pense que dar vida a mim foi um erro. Estar vivo é uma dádiva, um milagre. Você só fez o que sabia
fazer. Como poderia dar amor se tinha tão pouco para dar?
- Ah, minha Clarice. O seu pai a ama muito. Obrigada por voltar. E obrigada por me dar o seu
amor.
E assim foi o meu resgate com meus pais.
Obviamente estou contando um resumo de tudo o que aconteceu e pode parecer que cheguei a ter
este nível de compreensão sobre a vida em um piscar de olhos. Mas, não foi. Trabalhei muito, chorei
muito, sofri muito. E no final de tudo, descobri que o que importa na vida, como disse o filósofo Sartre,
não é a vida que tivemos – porque esta nós não escolhemos – mas o que iremos fazer com a vida que
tivemos.
Vou explicar melhor.
Diante da minha história, da infância que eu tive, tinha duas escolhas: ou me revoltar, me
martirizar e transformar-me em uma grande e estúpida vítima da minha própria história ou compreender
que, na essência, a vida de todos os seres humanos é repleta de luta, de conflito, de dor, de angústia.
- Caro leitor, uma pessoa pode tentar enganar bem – pode até conseguir enganar a si mesma –
dizendo que sua vida é perfeita, mas muito cuidado. Não existe vida humana nesta terra que seja fácil.
Cada um de nós sente igualmente o peso de ser um ser humano, com suas lutas, contradições, anseios e
medos. No fundo, somos todos iguais. Miseráveis e sublimes. Todos nós.
Quando descobri isso pude perdoar meus pais. Afinal, como não perdoar alguém quando se sabe
que estamos todos no mesmo barco? Como não perdoar quando sabemos que, no fundo, todos nós somos
crianças que acabaram de chegar nesta vida humana caótica e ilógica?
Mas havia ainda um resgate a ser feito. E este seria o mais difícil porque, no fundo, eu sabia que
meu querido irmão estava muito, muito distante daquilo tudo que eu tinha conseguido descobrir pela vida.
Irmão pássaro azul
Como encontramos alguém que nunca nasceu? Como falamos com alguém que nunca existiu, de
verdade, como humano?
Tive medo deste momento, pois não sabia o que iria encontrar pela frente. Em minhas lembranças
infantis, o meu pequeno irmão alienígena não viveria mais do que dezoito anos. Mas, ele sobreviveu.
Sobreviveu como pôde. Sobreviveu como alma penada, espectro.
Então, o que eu sentiria ao rever meu pequeno irmão, sua alma de criança não nascida, hoje presa
em um corpo de velho? Isso eu temi com todas as minhas forças.
Temi a presença assombrosa deste momento. Confesso que tive pesadelos durante muitos anos
com ele. Em meus pesadelos, meu pequeno irmão alienígena gritava o meu nome e me pedia socorro.
Estava preso, para sempre, em lugar que eu não podia ver. Preso dentro de um útero que não terminou – e
nunca terminaria – de gerá-lo. Meu irmão havia se transformado, portanto, em uma criatura abissal e
inapreensível pelos olhos humanos: um corpo eternamente à espera de ser gerado.
- Como salvá-lo deste terrível destino? Eu ousava me perguntar.
E a resposta que eu encontrava era:
- Só se ele nascesse de novo e tivesse uma segunda chance.
Guimarães Rosa disse um dia ter mais medo de nascimentos do que de morte. Eu compartilho de
seu medo e temor. Crianças morrem antes mesmo de terem nascido. Meu irmão era um destes. Acontece
que não se nasce uma segunda vez, pelo menos não de forma concreta, que é como ele precisaria nascer.
Então, meu pequeno irmão havia crescido e se tornado uma espécie de condenação a meus pais.
Meu irmão mostrava a eles, com a dureza estranha de seu ser alienígena e viscosamente não
nascido, o trabalho que eles deixaram de fazer: trabalho de nascimento de alma.
- Corpos, caro leitor, são fáceis de fazer nascer. Basta uma relação sexual, mesmo sem maior
amor, e eles nascem. Nascem aos montes. Como ratos ou ninhadas de gatinhos. Acontece que nascimento
de almas exigem maiores cuidados. É preciso um amor maior. Um encontro de almas entre os pais que,
amantes, unem seus corpos e corações amparando, assustados, uma nova vida que estreia. A grande dor
do mundo humano é que homens procriam como ratos, mas se esquecem de parir almas. Aí a alma fica
penada.
Se você nunca reparou, comece a observar quantas almas penadas existem por aí. Os desavisados
os chamam de humanos, mas isso é que eles não são. Para brotar humano, tem que germinar no amor, no
respeito, na dedicação de cada dia.
Não digo que meus pais não amaram meu pequeno irmão alienígena. Não é isso. Eles bem que se
esforçaram. Mas quando ele estreou no mundo – isso eu já disse – meus pais estavam cegos pelo ódio. E
não puderam amparar aquela pequena criança.
Fui encontrar a presença estranhamente informe de pequeno irmão, agora preso em um corpo
velho, no quintal da nossa velha casa.
Estava acocorado no chão, mexendo em uma formiga que transitava ligeira pelo caminho recém-
aberto. Agachei-me ao lado dele – os dois como bichos assustados – e perguntei com toda a docilidade
que pude:
- O que está fazendo, querido irmão?
- Conversando com a formiga. O que mais estaria fazendo aqui? Respondeu-me em tom áspero.
Senti que sua aspereza advinha do fato de ele me sentir uma enorme traidora. Traidora por ter tido
a melhor parte dos meus pais para mim; por ter tido a sorte de ter ainda algum aconchego para me fazer
humana; por ter tido o enorme amor de minha mãe; por tê-lo deixado para sempre naquela condenação de
não existir. E ele, o que tinha?
Em sua perspectiva, restara-lhe o ódio viscoso de meu pobre pai que ao olhar meu irmão, via a si
mesmo em seu espectro. De minha mãe, também lhe restara pouco ou quase nada. Ele era, portanto, um
resto humano.
Tento retomar o nosso diálogo e lhe pergunto:
- E o que está conversando com ela? Quero dizer, o que lhe pergunta?
- Estou perguntando a ela como é ser formiga.
- E o que ela lhe respondeu?
- Que ser formiga é melhor do que ser nada...
Enquanto terminava de balbuciar a palavra NADA, com sua linguagem extraterrena, vi a
metamorfose. Meu pequeno-velho irmão, já com o corpo um pouco disforme, foi perdendo seus frágeis
contornos. Pensei que pela primeira vez ela havia conseguido nomear sua dor mais funda: ser nada.
- Sim, ele era um nada. E estava agora, em sua conversa de formiga, podendo se vingar de todos
aqueles que lhe fizeram ser um nada.
Ocorre que às vezes quando nomeamos uma verdade maior, a alma não aguenta a dor e vai se
desfalecendo. E era isso que estava acontecendo naquele instante. Meu irmão bradava sua condição de
nada e ia, concretamente, transformando-se em nada.
Vi ali diante dos meus olhos este fenômeno. Depois de proferir os últimos sons desta palavra –
nada – meu pequeno irmão foi se transformando em um líquido viscoso. Suas peles, agora envelhecidas,
foram aos poucos caindo pelo chão e se misturando à terra molhada. Seus olhos, seu nariz, sua boca, suas
mãos de seis dedos – mão alienígena – seus braços, suas pernas, seu cabelo, sua barriga, seus pés, tudo
virando nada. Perdendo-se na imensidão do vazio. E eu ali, sem poder fazer absolutamente nada. Nada.
Nada. Nada.
Depois de sumir, misturando-se completamente a terra, olho ao meu lado e vejo um lindo pássaro
azul. Era meu irmão, agora pássaro. Olhava-me atento e profundamente nos olhos, pela primeira vez. Pela
primeira vez aquela pobre criatura estava livre das agruras de sua dolorosa existência. Pela primeira vez
podia sentir o prazer do voo livre. Pela primeira vez podia sentir o vento batendo em suas lindas asas e
penas azuladas, resplandecendo de sol.
Sim, ele havia se transformando em um lindo pássaro azul que agora podia voar e ser, finalmente,
livre em sua existência de pássaro.
- Adeus, irmão querido. Seja livre e feliz em sua nova vida. Sinta a alegria que tão cedo lhe foi
duramente roubada. E me perdoe por eu não ter conseguido fazer mais por você. Eu também era só uma
criança. Uma criança assustada. Adeus, lindo pássaro.
Depois de eu dizer isso, o pássaro azul de olhos brilhantes bateu as suas asas azuis e voou para
bem longe. Nunca mais o vi, exceto nos meus sonhos, que agora não eram mais pesadelos, mas tinham o
doce sabor de voos, de bater de asas, de liberdade infinita.
Bem, depois deste regresso às minhas origens, eu estava pronta para voltar à minha vida. Agora
como Clarice. Estava finalmente pronta para amar. E aberta para esta linda travessia que se chama vida.
O amor se descobre em mim.
Por que foste na vida
A última esperança
Encontrar-te me fez criança
Porque já eras meu
Sem eu saber sequer
Porque és meu homem
E eu tua mulher.

Porque tu me chegaste
Sem me dizer que vinhas
E tuas mãos foram minhas com calma
Porque foste em minh’alma
Como um amanhecer
Porque foste o que tinha de ser.

Tom Jobim

Depois de resgatar meus queridos pais e de ajudar meu pequeno irmão a virar pássaro, estava
finalmente pronta para o amor.
Talvez você não saiba, mas é o amor que descobre a gente e não o contrário. Diz-se erroneamente:
estou sentindo amor. Não. É o amor que está sentindo em nós. E o amor, esse deus, só habita santuários
que estejam preparados para ele. O deus amor é exigente. Não mora em qualquer lugar. Quando se está
preparado para senti-lo, ele vem.
- Eu já lhe disse que amar é um espanto?
Pois é. O amor deixa a alma espantada. Amar não é um estado natural. É uma construção. Exige
trabalho. Muito trabalho. Na ingenuidade da nossa juventude achamos que sentimos amor e pronto. Ele
vai ficar lá para sempre.
- Meu Deus, quanta ingenuidade...
Para amar é preciso disposição. Por isso o amor só me descobriu quando eu estava aberta para ele.
E isso aconteceu depois que eu cheguei no fundo e renasci como Clarice. Depois que eu mergulhei nas
minhas entranhas e amei a vida, aos meus pais, ao meu irmão, à minha história, com uma força que eu
nem sequer imaginava que existisse dentro de mim.
Estava então com quarenta e seis anos e – agora sim – pronta para receber o meu amor, que eu
sabia estar em algum lugar esperando por mim.
Quando a gente descobre o mistério que ronda a vida, viver passa a ser tão divertido e excitante!
Um dia nunca é como o outro. Cada dia, cada momento tem uma tonalidade diferente. Há dias e
momentos ensolarados. Outros, chuvosos e convidativos à contemplação. Neste estado de viver não há
tédio porque não há repetição.
E eu certamente resplandecia – clara – com todas estas minhas deliciosas descobertas. E eis que
topo com o amor amado. Foi assim.
Participava de um congresso internacional de Literatura. Lá, em meio àquela multidão de
formigas, enquanto me apresentava em uma pequena conferência, avistei ao longe, um homem alto,
grisalho e muito elegante. Aparentava ter entre quarenta e cinquenta anos. Não mais que isso. Ele vinha
em minha direção com seu penetrante olhar, fixo em mim. Aquele olhar que parecia querer desnudar
minha alma me deixou constrangida. Senti-me nua. Como eu falava à plateia, ele sentou-se em uma
poltrona e aguardou o término da minha apresentação. Foi difícil eu manter a concentração durante o
restante de minha conferência. Aquele olhar penetrante invadia meu ser.
Terminada a palestra, enquanto os ouvintes se levantavam alvoroçados, o homem misterioso veio
em minha direção, resoluto. Apresentou-se. Seu nome era Pedro de Alcântara. Tratava-se de um jornalista
especializado em escritores brasileiros. Disse-me, em tom cordial, que admirava muito o meu trabalho e
as minhas obras já publicadas. Vinha para pedir um autógrafo. E um jantar.
Aceitei imediatamente. Estava pronta para ele.
A partir dali nunca mais nos deixaríamos.
Os anos seguintes foram de muita alegria e cumplicidade. O amor vivido por duas almas maduras
é puro encantamento. É claro que tivemos alguns dissabores pelo caminho. Nada é perfeito. Pequenas
brigas e aborrecimentos. Dificuldades cotidianas de um casal que dorme e acorda junto todos os dias. Não
tivemos filhos. Pedro soube respeitar as marcas do meu passado. Além do mais, éramos muito livres para
nos dedicarmos a uma terceira pessoa tão dependente quanto uma criança.
- Ah, como fomos felizes juntos, amiga minha. Como eu gostaria que você pudesse encontrar isso
na vida.
Sinto raiva daquelas pessoas amarguradas que reclamam do casamento. Elas não sabem como é
bom estar casado com quem se ama. Quanta dedicação, quanto prazer. O amor por alguém faz com que
queiramos ser melhores do que nós somos. Pela pessoa, nós resolutamente queremos ser o melhor que
pudermos ser. Puro respeito.
Quão infantis são aqueles casais que julgam – como crianças – que o parceiro, por amor, tem que
aguentar o seu pior. Engordam, ficam desleixados, infelizes, resmungões. Quanta desconsideração com
quem nos escolheu e quis ficar do nosso lado. Acho bem feito quando vejo uma traição acontecer por
causa disso. A mulher ou o homem enfeia-se, enche-se de ódio e revolta, de achaques. Então, um belo
dia, a parceira ou o parceiro redescobre-se vivo e arruma outro.
- Já percebeu como a maioria dos homens só aprende aos solavancos? Às vezes precisamos
chegar ao fundo do poço para começarmos a beber água limpa. Ouvi isso de uma grande amiga e nunca
mais me esqueci.
Minha relação com Pedro foi puro encantamento. Ele era um homem lindo, íntegro e me amava
com uma sinceridade e delicadeza comoventes. Lá no fundo da minha alma eu acalentava um medo
profundo de repetir a relação odiosa entre meus pais. E talvez por isso eu tenha me preparado muito para
Pedro. Éramos como vinhos envelhecidos e depurados: cada um oferecendo ao outro o melhor de si
mesmo.
Vou lhe contar uma história linda vivida com ele.
Certo dia eu estava aborrecida. Vivia uma recaída. Rememorações de um passado ruim que, às
vezes, a gente insiste em remoer só pelo puro prazer de estragar o momento presente. Neste dia eu estava
um pouco ranzinza. Havia descuidado e minha alma havia sido pega pelo demo. Tentei como pude, brigar
com Pedro. Mandei-o embora. Disse que ele devia arrumar outra mulher porque eu não estava à sua
altura.
- Sabe o que ele fez?
Com alma translúcida e dócil e olhos de pura amorosidade, olhou-me e, com voz de veludo disse:
- Minha querida Clarice, sei que você não é esta pessoa horrível que está fazendo de tudo para
ser. Vou ignorar o que me disse. Esperarei pacientemente minha doce e feliz Clarice voltar. Até lá lhe
darei um tempo para refrescar os ânimos.
Não pude continuar minha rabugice. Aquele amor me desconcertou completamente. Sua doce e
feliz Clarice voltou e nunca mais se foi.
E neste clima de respeito e cumplicidade mútua, envelhecemos juntos, eu e Pedro.
Juntos, fizemos lindas viagens, escrevemos, publicamos livros, praticamos esportes, tivemos
lindos gatos - que vimos nascer, crescer e morrer conosco - construímos uma casa com jabuticabeiras no
quintal e, mais do que tudo, amamos. Amamos a vida, a nós mesmos e um ao outro.
No crepúsculo de nossas vidas, estávamos tendo o privilégio de descobrirmos juntos, o enorme
prazer da velhice sábia.
Chico e Frida, nossas companhias felinas.
Vou lhe contar agora sobre a nossa convivência com nossos gatos.
Você certamente se lembra de Mozart – meu gato companheiro das horas tristes e melancólicas,
quando o tempo fechava em minha casa da infância. Também deve se lembrar da minha paixão por gatos,
sempre tão enigmáticos.
Esta, além de outras tantas, era uma paixão compartilhada entre mim e meu querido Pedro. Ele
também amava gatos. Acho que de alguma forma nós erámos um pouco como gatos: discretos,
meditativos, filosóficos e autossuficientes, no melhor sentido do termo.
Como não tivemos filhos, por opção nossa e também por marcas que eu havia carregado desde a
infância e que faziam com que eu não me enxergasse como mãe, os nossos gatos eram nossos grandes
parceiros do cotidiano.
Não quero dizer com isso que eles fossem substitutos de filhos que não quisemos ou não pudemos
ter. Não é isso. Eu e Pedro estávamos muito conscientes das nossas escolhas e não tínhamos a menor
pretensão de fazer substituições deste tipo que, quase sempre, criam uma situação um pouco ridícula.
Nossos bichos eram nossos bichos. Não os tratávamos como seres humanos. Mas, que
companheirismo. Que cumplicidade. Que sintonia um bicho considerado tão irracional ao que nós
pretensamente chamamos de racionalidade, pode ter com seus donos.
Eu acho muito engraçado reparar como os bichos de estimação de uma casa vão ficando parecidos
com seus donos. Uma dona histérica tem um cãozinho histérico, que late e faz um barulho infernal. Um
dono ansioso inevitavelmente acaba por deixar seu bichinho ansioso e irritadiço. Acho que isso acontece
porque, assim como as crianças, os animais têm uma espécie de intuição profunda para captar aquilo que
os adultos tentam esconder a qualquer custo, inclusive de si mesmos. No fundo, os animais e as crianças
são ótimos espelhos do que andamos carregando na alma. E nisso, eles não mentem. Nunca. Deve ser por
isso que alguns adultos têm tara por maltratar crianças e animais. Maltratam neles aquilo que de vivo e
espontâneo está sendo morto e assassinado por seus demos internos. Realizam fora aquilo que se passa
dentro deles mesmos.
No nosso caso, por sermos um casal sereno e em paz com nossos espelhos, nossos lindos gatos
também puderam viver uma tranquila vida enquanto estiveram conosco. Vou contar a você a história de
cada um.
Nosso primeiro gato foi um lindo e filosófico siamês chamado Chico.
É claro que eu quis outro siamês para poder reencontrar meu Mozart de rabo bipartido, devorado
pelo cachorro bravo da vizinha. Era o gato da minha infância que eu queria rever. Encontrei Chico em um
anúncio de jornal.
Sua dona devia estar tão desesperada para dar um fim no bicho – ou porque vivia em um estado de
pobreza que a impedia de cuidar dele e de seus irmãos ou porque não gostava muito do jeito esquisito de
Chico – que me mandou o gato em uma caixa daquelas em que os motociclistas usam para entregar
pizzas. Já pensou?
Coitado do Chico. Chegou todo arrepiado feito porco-espinho ameaçado. Eu imagino que ele deve
ter sofrido muito em sua casa antiga. Hoje penso que ele era parecido com meu querido pai e comigo
mesma: tinha medo de um amor se aproximando.
Por tudo isso foi difícil cuidar do Chico no começo. Amansar o seu medo de gente humana, seu
estranhamento com o mundo. Mas, como eu era expert na arte de entender pessoas e bichos com medo de
um amor maior, fui aos poucos entendendo o jeito distante de Chico. Compreendi que aquele era o seu
jeito de amar. Jeito discreto, silencioso, mas sempre presente. Chico – assim como acontece com alguns
seres humanos – desenvolveu uma espécie de compulsão por comida. Ele considerava, com sua cabeça de
bicho, que a comida era a única forma que ele tinha de receber amor.
Em todo o caso, Chico foi crescendo, crescendo, crescendo e se tornando um lindo e sossegado
gato. Foi ficando como o velho Chico, o rio, que começa minguadinho, um riachinho de nada no meio da
serra – aqueles riachinhos que você diz que não vão vingar – e depois vira aquele riozão de meu Deus.
Assim foi com o Chico. No início, achei que ele ia ficar meio abilolado, por causa de tanto sofrimento
logo no seu início de vida. Mas, assim como o velho Chico, ele ficou um gatão lindo e vasto. Ah, como
eu adoro ficar vendo o meu velho Chico contemplar o nada.
- Você nunca botou reparo como há uma beleza sublime no nada? Converse com o meu velho
Chico que ele vai lhe explicar como é.
Depois de alguns anos de vastíssima solidão, Pedro sugeriu que encontrássemos uma companhia
para o velho Chico. E foi assim que encontramos a Frida.
Frida era uma linda gata preta. Assim como Frida Kahlo ela era intensa que só. Também como
Frida era preta, pretíssima. Ela trouxe vida e alegria para a nossa casa. É verdade que chegou um pouco
destrambelhada. Acho que vivia antes em uma casa de gente muito ansiosa e sem muita estética na vida.
Mas aos poucos ela foi aprendendo o nosso jeito de ser e ficando uma gata profundamente estética. Por
exemplo, Frida nunca se sentava de qualquer jeito. Não. Como uma verdadeira lady, ela se sentava ao sol
de um lindo fim de tarde, tão elegante e esbelta como Monalisa. Cruzava suas lindas e pretas patas uma
sobre a outra e colocava seu focinho liso bem para cima, assumindo uma das posturas mais elegantes que
eu já vi na vida. Com seus longos cílios pretos, batendo em um estado de frenesi seus penetrantes olhos
amendoados, punha-se a contemplar serenamente um bichinho ou borboleta que passasse por ali. E ali
permanecia por horas a fio. Havia em cada um de seus gestos uma languidez de dama. Sim. Frida era uma
verdadeira dama. E que companheira incrível. Sempre ao nosso lado com sua languidez de gata-dama.
Frida também conversava à beça. Com seus barulhos engraçados comunicava a um bom
entendedor cada uma de suas alterações de alma. Grunhidos significavam que ela estava brava ou
ameaçada. Ronronados doces, que ela estava excitadíssima com aquele passar de mãos que iam e vinham
em seus pelos lustrosos. Barulhinhos agudos e frenéticos como grilos, que ela estava brincalhona como
criança. Suspiros, que ela estava particularmente feliz e satisfeita com sua vida.
- Viu? Só não entendemos a língua dos nossos bichos quando estamos muito fechados para o que
está além ou aquém da aparência. Abra bem seus olhos - não estes do corpo, mas os da alma - e
conseguirá falar com eles.
Minha casa, meu oásis
Agora vou lhe contar um pouco sobre a casa que eu e Pedro construímos juntos. Chamava-a de
meus oásis. O que é um oásis?
Um oásis é um pedaço do paraíso que a gente encontra no meio do deserto que se chama vida. A
vida é concretamente um deserto. Nós saímos à rua e o que encontramos?
Carros buzinando como loucos, pessoas que mal se olham. Encontramos feiura e tristeza. Falta de
compreensão e entendimento. Encontramos ódio e desconfiança. Encontramos falta de companheirismo e
de amizade. E eu nunca me acostumei com isso que encontrei nas cidades grandes.
Nasci e cresci em uma cidadezinha que, se por um lado estava ausente nos mapas, por outro era
repleta de pessoas simples. Pessoas que não têm medo de gente. Eu acho que a gente tem que tomar muito
cuidado com a riqueza. A riqueza, o acúmulo de dinheiro leva as pessoas a desconfiarem umas das outras.
Não vejo toda esta desconfiança entre as pessoas pobres. Elas podem sofrer de outras dores da alma, mas
desta, certamente, elas não sofrem. Há uma cumplicidade e um companheirismo na pobreza. Pessoas
pobres costumam ajudar umas às outras. Ricos se enjaulam em suas fortalezas e passam a se esquecer de
que também são pessoas. Pessoas que fazem cocô, que fazem xixi, que já foram crianças, que têm, em
algum lugar de suas gavetas, alguma meia furada, que dormem de pijama velho, que sentem frio e calor.
Muito dinheiro é perigoso, porque faz com que a gente se esqueça do fundamental: que todos somos
pessoas no meio desse deserto que é a vida.
Então eu sentia esse deserto da cidade grande como uma invasão para mim. Acho que Pedro
também sentia o mesmo. Por causa disso compramos um terreno no meio do mato e construímos nosso
pequeno oásis.
Lá plantamos muitas árvores, mantivemos nossos pés na terra e nosso olhar na lua. Queríamos, no
fundo, manter contato profundo com a natureza, da qual sempre fizemos parte.
Adorava passar os meus domingos debaixo do pé de nossas jabuticabeiras. Eu, Pedro e nossos
gatos, em estado de pura contemplação. Passávamos os domingos assim.
Eu lia meus livros favoritos, escrevia, ou simplesmente contemplava a beleza. Pedro se exercitava
e, depois, orgulhoso de si mesmo por sua potência e vitalidade, punha-se ao meu lado em estado de
relaxamento. Nossos gatos dormiam largados ao sol.
Quando a fome nos visitava, levantávamos sem compromisso para nos abastecer de alimento. Se
tivéssemos fome, comíamos. Se tivéssemos sono, dormíamos. Tudo seguindo o único ritmo que
realmente nos interessava na vida: o ritmo da natureza.
Também ouvíamos músicas, dançávamos ao sol e ríamos à beça. Ríamos de pequenas coisas: da
elegância discreta de nossa gata Frida ou do modo faceiro com que Chico pegava um bichinho no ar ou de
como, particularmente naquele dia, Pedro estava se sentindo vigoroso com seus esportes.
Sentia-me ali como uma rainha. A rainha do meu próprio palácio construído a partir das minhas
próprias ruínas, pedra a pedra. Ali eu era a senhora de mim mesma. E nesta pequena e singela comunhão
de corpos e de almas, permanecíamos em nosso pequeno oásis: eu, Pedro, Frida, Chico, nossos
passarinhos, nossas árvores, nossos livros, nossos sonhos e nossas estrelas. Precisamos de algo mais?
Liberdade provoca inveja
Neste meu percurso pela vida – agora como Clarice – descobri algo muito doloroso. Vou contar o
que foi.
Descobri que o meu estado de felicidade plena e minha capacidade de sentir prazer na vida, que eu
havia conquistado com muito esforço, deixava algumas pessoas muito invejosas e muito furiosas. Poderia
descrever aqui várias situações vividas que me fizeram entrar em contato com esta verdade dolorosa – a
de que o meu crescimento era ameaçador para alguns – mas vou narrar só um deles. Vejam meu episódio
com a Margarida.
Conheci Margarida na faculdade. Ambas fazíamos curso de História. Mulher inteligente, muito
bonita. Mas não nasceu guerreira. Tinha medo de si mesma. Tinha medo de ser leoa, ou talvez nem
pudesse ser, caso quisesse. Afinal, a gente só pode ser aquilo que a gente é.
Bem, a Margarida engravidou no penúltimo ano da faculdade de um rapaz da nossa turma.
Otacílio se chamava ele. Casaram-se, embora fosse óbvio para todos, menos para ela mesma, que ela não
o amava. Nunca compreendi essa besteira de ter que se casar quando se engravida. Acho uma baita
hipocrisia. Sexo não tem nada a ver com amor.
- E se as duas pessoas não se amam?
Criança precisa de pais que possam amá-la incondicionalmente, não de pais juntos só por
formalidade.
- Às vezes o ser humano é tão míope, não acha?
Acontece que Margarida era uma mulher fraca e não sabia questionar estas incongruências.
Casou-se, teve o filho e nunca foi tão infeliz. Bem feito. Quem mandou ir contra a sua própria natureza?
Quando eu estava com mais de quarenta e ela também, nos encontramos por acaso no
supermercado. Senti seu olhar invejoso no meu cangote. Perguntou-me como eu estava. Respondi, polida,
mas um pouco fria, que bem. Não queria entrar em detalhes para não inflamar sua dilacerante inveja.
Mas, ela, sofredora, insistiu.
- Mas você se casou? Teve filhos? O que anda fazendo da vida?
Respondi, com uma pontinha de triunfo:
- Eu estou muito feliz, Margarida. Casei-me com um homem ótimo chamado Pedro, que me ama e
respeita. Abandonei a História e virei escritora. Já estou em meu terceiro livro publicado. Foi ela quem
pediu, pensei sarcasticamente.
Sua inveja parecia que ia explodir. Seus olhos inflamados me deram pena. Então, Margarida
respondeu, em tom despeitado:
- Que bom pra você. Eu não tive a mesma sorte!
Não respondi por que não queria humilhá-la ainda mais do que sua própria dor já a estava
humilhando, mas pensei:
- Ah, minha cara. Não, o que te faltou não foi sorte. Foi não querer pagar o preço por ser quem
você é. Sua pequena covarde.
Depois deste dia, nunca mais a vi. Deve ter se perdido no caos que pode se transformar a vida
quando somos cegos aos nossos sentimentos mais profundos e inconfessáveis.
Note bem, caro leitor. O erro de Margarida não foi ter engravidado sem gostar. Isso pode
acontecer com qualquer um. O erro dela – o mais fatal – foi ter se casado para manter a aparência. Foi ter
ido contra a sua intuição que, em algum lugar da alma, lhe dizia que aquilo era um grande erro. Depois,
outro erro foi ter envolvido o seu filho neste engodo.
E mais, ter acreditado piamente que o desfecho trágico de sua história havia sido uma questão de
azar e o meu sucesso uma questão de sorte.
Esse é o lado mais cruel do sentimento invejoso. A pessoa tomada de inveja nem sonha que aquilo
que ela mais inveja – neste caso, o meu sucesso, a minha alegria, o meu casamento – foi não só
conquistado com muito empenho, mas exigiu de mim a minha capacidade máxima para suportar altas
doses de medo e de insegurança. Pois crescer dá mais medo do que ficar parado. Acredite.
Se a Margarida estivesse num momento mais amoroso com a vida ela não iria, despeitada,
simplesmente dizer que não teve a mesma sorte que eu. Ela iria, com o peito aberto e disponível, me
dizer:
- Gostaria muito de ouvir como foi que você conseguiu conquistar tudo isso. Vamos tomar um
café?
Mas não. Margarida escolheu permanecer distante com sua idealização a meu respeito.
Por isso digo e repito: não gosto de pessoas que julgam já saberem de tudo. Gosto de pessoas que
suportam o nosso constante estado de inacabamento. Gosto de pessoas que bradam, sem remorso nem
vergonha, aos quatro ventos que são humanas. Que têm medo, que erram à beça, que acertam às vezes,
que sentem frio na barriga, que se desconcertam, que têm dúvidas. Não gosto de gente acabada. Gosto da
liberdade que existe na imperfeição.
Acho que descobri isso com o meu envelhecimento: que a única coisa que eu podia fazer por mim
mesma e pelos outros era ser quem eu era.
Quando jovens, costumamos violentar quem nós somos. Renegamos nossas origens, nossa
história, nossa genética, nossos gostos – nosso gosto pelo silêncio e pela solidão, por exemplo. Queremos
ser como os outros, sem saber que esta é uma das maiores ciladas que existem. Ser como os outros além
de ser algo aborrecido e banal, já que a maioria é, quase sempre, burra e cega, nos tolhe de forma violenta
e brutal a essência, que é a única coisa que é verdadeiramente nossa.
Esta liberdade conquistada é odiada por gente que, como Margarida, sabe-se lá por qual
dificuldade, não deu o passo seguinte e tomou as rédeas da própria vida. Pessoas que ficaram assujeitadas
a teorias, à moralidade e às regras sociais ou às próprias expectativas.
Não falo aqui da liberdade ingênua dos jovens. Não falo da liberdade de se sair por aí derrubando
governos. Não falo da utopia ingênua de transformar o mundo. Falo da liberdade silenciosa e discreta que
alguns velhos adquirem com a sabedoria do tempo de se ser exatamente aquilo que são. Estes velhos não
lamentam o tempo passado, dizendo que naquela época é que era bom. Estes velhos não enchem os
ouvidos dos netos de resmungações e queixas. Eles estão sempre prontos a dar um bom conselho e a
ouvir atentamente o que o outro tem a dizer. Há uma abertura generosa para o outro e para a vida. Este é o
velho sábio. Eles estão prontos para receber aquilo que a vida é, sem idealizar, sem lamentar, sem
sofrimentos maiores.
Aos poucos, fui conquistando este sentimento de liberdade interna. Descobri que eu não tinha que
provar nada a ninguém, muito menos a mim mesma. Descobri que nem eu nem ninguém éramos perfeitos
porque perfeição não é para o ser humano. Descobri que a gente só pode ser aquilo que a gente é. Vou
repetir: a gente só pode ser aquilo que a gente é.
- Entende?
Quando eu compreendi isso, de uma maneira bem funda, passei a sentir uma incrível liberdade
interna. Dentro da minha cabeça, no meu santuário, no meu altar, eu tenho que ser honesta com aquilo
que eu sou, com aquilo que eu sinto, com aquilo que eu quero. E ninguém tem absolutamente nada com
isso. Eu posso desejar ardentemente que você morra. Eu posso mandar você à merda. Eu posso ter sonhos
eróticos com qualquer homem que eu quiser. Inclusive com papai.
– Sério que você nunca desejou isso? Está brincando...
E o melhor de tudo: ninguém vai ficar sabendo. E ninguém tem nada com isso.
Quando descobri isso – por mim mesma – fui ficando cada vez mais irritada com a hipocrisia de
alguns seres humanos.
- Ah, isso é pecado. Não, eu não sinto isso. Imagina. Isso nunca me passou pela cabeça, dizem as
nobres almas humanas.
- Vá à merda!
Ser humano é uma delícia quando assumimos nossas contradições, nossas imprevisibilidades,
nossas misérias, nossos engodos, nossos traumas, nosso gozo, nossa angústia, nossa fé, nosso medo da
vida, nosso medo da morte, nosso medo das pessoas más e invejosas.
Mintaka, Alnilam e Alnintak: minhas três Marias
Falei agora mesmo sobre inveja. Agora vou falar sobre o inverso disso. Vou contar a você sobre as
minhas três Marias. Era assim que eu chamava carinhosamente minhas três doces amigas.
Assim como o amor, a gente não faz amigo. Ou a gente tem a sorte e a disponibilidade de
encontrar. Ou não. Amigo é como sabor de sorvete. Não sabemos muito bem explicar por que gostamos
exatamente daquele sabor. Só sabemos que ele nos apetece e pronto.
Como você já deve ter percebido, eu nunca tive facilidade para me relacionar superficialmente
com as pessoas. Sentia-me uma espécie de impostora quando tinha que fazer parte de eventos sociais, em
que tinha que ser simpática com pessoas que nem sequer sabiam o meu nome. Certa vez vivi uma
experiência curiosa a esse respeito.
Ainda jovem, quando tinha acabado de ser contratada para lecionar em uma universidade, tive que
participar de uma festa de confraternização da instituição. Devo ter saído um pouco patética nas fotos.
Ainda bem que nunca as vi.
Nesta ocasião, por uma questão de etiqueta, fui sutilmente obrigada a passar por todas as mesas
apresentando-me como a jovem e novata recém-contratada. Não me lembro de ter vivido cena mais
aviltante e incômoda para mim. Sentia aqueles olhos todos cravejados de inveja e de observação maldosa
em meu cangote – olhares devoradores da estrangeira que eu era ali. Ser estrangeira não é tarefa fácil.
Não é fácil ser novata em uma escola nova. Não é fácil ser a professora recém-contratada de uma
universidade, repleta de velhos e velhas de almas, babando e sedentas por sangue novo. Já posso imaginar
alguns dos comentários assim que eu me virava e ingenuamente vestia, mais uma vez, o meu melhor
sorriso amarelo para ir cumprimentar a próxima pessoa:
- Você viu a professora nova? Diz a primeira.
- Vi sim. Até que ela é bem bonitinha, diz a segunda, que não parou de reparar o quanto eu estava
magra e bem vestida enquanto ela estava alguns quilos acima de seu peso ideal e reclamando que seu
vestido que não lhe caía bem.
Mas ainda bem que não tive que passar por isso muito tempo. E ainda bem que encontrei algumas
incríveis mulheres generosas que puderam me dizer que eu estava particularmente linda naquele dia. Ou
que tinham adorado os meus brincos de pérola. Ou que eu deveria dar uma cortada no meu cabelo, pois
ficaria ainda mais atraente – algo que foi dito com toda a delicadeza e doçura do mundo.
Minhas três Marias eram assim. Sempre tinham uma palavra amiga e carinhosa para me dar.
Veja a Clara, por exemplo. Ela morava fora do Brasil porque seu marido precisou se mudar a
trabalho. A gente se encontrava uma vez por ano e a cada encontro o nosso sentimento mútuo era o de
termos nos visto ontem. A distância não existe quando duas mentes se afinam. Certo dia, eu aguardava
ansiosa pelo nosso encontro anual. Fui buscá-la e assim que ela me viu, enquanto saía do prédio, disse em
tom alegre e generoso:
- Como você está linda!
Isso sim é que é amiga.
Havia também a Sofia. Esta era mais reservada, algo que eu sempre tentei respeitar. Sentia que sua
reserva vinha de lutas maiores e mais antigas. Sua mãe, segundo ela sentia, havia vivido uma grave
depressão quando ela era bem pequena. Então, Sofia tinha medo de se apegar e ficar na mão. Por isso
ficava um pouco na defensiva. Mas eu entendia o coração da minha amiga. Eu também já senti isso e
podia compreender o seu temor. Também sabia que Sofia era de uma generosidade sem fim e que tinha
um amor por mim do tamanho do mundo. E eu por ela. Éramos um pouco como irmãs gêmeas: nós duas
miúdas, delicadas, um pouco fadas. Embora nos falássemos pouco, Sofia sempre pairava os meus
pensamentos.
Às vezes no meio da tarde, pegava-me tentando adivinhar o que estaria fazendo Sofia. Depois, nos
telefonávamos e ela surpresa, dizia:
- Estava pensando em você agorinha mesmo!
Vai dizer que essa coisa misteriosa de afinidade e comunicação de mentes não existe?
Havia também a Helena. Esta eu conheci um pouco mais tarde. Ela era mais nova que eu alguns
anos. Ainda um pouco inexperiente, com coisas a aprender pela vida, mas com um desejo enorme de
acertar e de se encontrar. Nossa relação era como de mãe e filha: eu torcia por ela, aconselhava,
observava os passos à distância, mas sempre com Helena em minha cabeça. Ela, de sua parte, admirava-
me talvez como um modelo bom a seguir. A vida de Helena fora difícil. Não teve muito contato com o
pai e nasceu em uma terra onde o machismo e a crueza imperavam. Veio para o Sudeste sozinha em
busca do seu sonho. Acho que veio tentar encontrar aquilo que era dela e só dela. Veio encontrar a si
mesma, assim como eu. Espero que ela consiga percorrer o seu caminho e fazer a sua travessia. Sinto que
ela está no caminho, mas temo por ela. Há tantos perigos à espreita.
- Minha doce e pequena Helena. Irei torcer muito por você. E conte comigo para o que precisar.
Como você percebeu, havia entre nós quatro uma semelhança notável. Todas nós éramos mulheres
fortes, corajosas, lutadoras. Tínhamos uma maturidade aguda e um desencantamento maduro na forma
como enxergávamos a vida. Não conseguiria me relacionar com pessoas diferentes disso. Quando a
distância é muito grande, um abismo se cria e o demo corrói a relação.
Vivi uma experiência que comprova isso. Vou lhe contar.
Logo que saí da minha pequena cidade, ainda envergonhada pelo que eu achava que era,
aproximei-me de uma moça, mais ou menos da minha idade. Sentia que ela possuía coisas valiosíssimas
que eu, de fato, não possuía. Ela tinha pais que eu julgava se amarem. Acontece que ela não tinha
generosidade. Então, certo dia, percebendo a minha vontade de ter aquela família para mim – vontade que
dilacerava minha alma – me disse:
- Nós não podemos mais ser amigas. Você fica querendo as coisas que eu tenho. E amiga não
sente inveja uma da outra.
Acho que nunca me senti tão humilhada. Tão nada. Ela não havia compreendido que eu não estava
invejando o que era dela. Eu estava admirando, achando aquilo lindo.
Eu não estava invejando porque em momento algum critiquei ou tratei com desdém aquilo que ela
tinha e que eu achava tão admirável. Na verdade, o meu sentimento era o de que eu era uma pessoa pobre
por não ter tido pais que se amaram.
Mas, se ela realmente fosse minha amiga, uma estrela generosa e boa, teria me dito:
- Clarice, eu percebo que você fica com os seus olhos brilhando quando vê meus pais juntos. Mas
não fique assim, amiga. Você não teve a sorte de ter pais que se amam, mas é uma pessoa boa e generosa
e pode, um dia, encontrar um grande amor para você. Não se sinta pobre perto de mim. Isso não faz bem
a você.
Mas ela não teve essa nobreza. Acho que porque não era, no fundo, uma pessoa lutadora. Talvez
ela fosse um pouco mimada. Desconhecia os sofrimentos maiores de uma vida e por isso não podia fazer
companhia às minhas dores fundas.
Eu a desculpei por isso. Nunca mais a encontrei. Se a encontrasse hoje, não falaria ou faria nada.
Só lhe abriria um sorriso generoso que pretendia dizer:
- Aquilo que você me disse no passado me machucou, mas eu continuo viva, forte e feliz. Não sou
aquela pessoa que você julgou que eu era. Mas eu perdoo você pela sua miopia.
Prazer na ausência.
Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento
exclamações alegres,
porque ausência, essa ausência
assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

Acabo de fazer cinquenta anos. Estou ficando cada vez mais em minha caverna e ausente do
burburinho da vida prática e sem nenhum charme. Eu e Pedro construímos uma casa aconchegante no
meio do mato, com já lhe contei. Escolha nossa.
No fundo nós dois temos certa aversão às pessoas ditas civilizadas. Tão cheirosas e arrumadas, tão
politicamente corretas, mas tão previsíveis. Passo a odiar com todas as minhas forças as pessoas práticas
demais, teóricas demais, certinhas demais, politicamente corretas demais. Tudo máscara para esconder o
frenesi de se estar vivo.
Estamos cada vez mais solitários – eu, Pedro e nossos gatos Chico e Frida – mas não me sinto em
momento algum só. Descobri, finalmente, a diferença entre ausência e solidão tão lindamente descrita por
Drummond.
Passo grande parte dos meus dias metida em casa, no meio do mato. Mexo com minhas plantas,
cuido dos animais, leio e escrevo. Converso sobre amenidades com Pedro. Felizes e cúmplices um do
outro, comentamos sobre o comportamento contraditório e às vezes patético de algumas pessoas. Outro
dia, para não virarmos bicho de mato, resolvemos ir a uma festa de final de ano, organizada por alguns
colegas de Pedro.
Estávamos lá, eu, Pedro e Joaquim, um dos colegas de meu marido. Pedro conversava com
Joaquim sobre algum assunto que não me lembro mais – talvez política – e o pobre homem começou a se
exaltar. Achei que ia pular para cima de Pedro, tamanha era a sua braveza. Percebi claramente qual era a
catástrofe: o frágil Joaquim tentava convencer o meu marido de suas próprias convicções e certezas,
provavelmente porque lá no fundo de si mesmo ele próprio sentisse que suas convicções - utilizadas por
ele como calmantes para aplacar o susto do viver – estavam mais frágeis que papel. Portanto, Joaquim
estava começando a se sentir seriamente ameaçado pelo mistério. E quanto mais ameaçado ele se sentia,
mais ele gritava. E mais ele tinha que se agarrar às suas minguadas certezas. Pedro era para ele tudo
aquilo que ele mais odiava naquele momento: a ameaça da pergunta e da dúvida.
Enquanto o pobre Joaquim começava a babar e a urrar – o mistério começava a ser percebido,
ainda que sutilmente - Pedro, com toda a sua elegância discreta, continuava sereno. Acho que isso o
irritou ainda mais.
Eu e meu marido, frente àquela cena grotesca e um pouco triste, de vez em quando trocávamos
olhares de cumplicidade. Entendíamos só pelo olhar o que um queria dizer ao outro: que Joaquim estava
seriamente ameaçado pela metamorfose e que, naquele momento, era Pedro a barata que o ameaçava de
suas certezas. Coisas do demo.
Depois, em casa, rimos à beça desta situação. Com seu ótimo senso de humor, Pedro comentou:
- Você viu, Claricinha, como o pobre do Joaquim berrava e urrava feio leão bravo comigo?
Depois se embebedou e ficou ainda mais macho. Coitado, deve ter lá seus problemas de potência. Um
homem não se comportaria deste modo se não estivesse se sentindo seriamente abalado.
Diante deste comentário tão inteligente e perspicaz, olho com orgulho e admiração o companheiro
incrível que, por sorte e competência, a vida me trouxe. Sinto que formamos um casal imbatível.
E assim vamos passando os nossos dias felizes em nosso pequeno oásis. Pedro se dedica com
afinco aos esportes. Está a cada ano mais lindo. Eu me dedico aos meus autores e livros preferidos. Tenho
forte preferência pelos mortos. Coisa de alma muito velha. Às vezes tenho a impressão de ter nascido na
época errada. Acho lindo tudo o que é antigo. Não gosto de modernidades. Fazer o quê?
Pedro e eu temos poucos, mas bons amigos. Estamos descobrindo que quantidade pouco importa.
Amigo mesmo é aquele que você pode ligar no meio da madrugada porque está aborrecido ou triste e tem
certeza que ele vai ouvi-lo. Amigo é aquele que sabe o que está acontecendo na sua vida, mesmo que
vocês não se vejam há dois anos. Amigo é aquele que conhece suas preferências, que conhece os seus
piores defeitos e ainda assim continua do seu lado. O resto não merece este nobre título.
Também comecei a dar aulas de literatura para alguns jovens que vêm à minha casa. Querem
aprender a escrever. Observo com compaixão e empatia o quanto suas jovens almas são impacientes, o
quanto eles têm pressa, o quanto não aguentam e sofrem com a solidão.
Brigam com um namorado que nem é lá tão especial assim e quase morrem. Ainda não
descobriram que a máxima: antes só que mal acompanhado, é uma verdade muito sábia. Um dia perguntei
a uma de minhas alunas, que se queixava de um namorado que parecia nem gostar dela:
- Sandra, porque você continua com ele?
- Ah, Claricinha, tenho medo de ficar sozinha. Tenho pavor só de pensar nisso. Já estou com
trinta anos e quero me casar, ter filho.
- Mas, você não acha que está valorizando mais o casamento e a maternidade do que uma relação
de qualidade, que deveria vir antes de qualquer outra coisa?
- Não importa. Eu preciso realizar estas coisas senão sinto que estou atrasada.
- Atrasada com relação a quem?
- Às pessoas, ora. Minha mãe me cobra o tempo todo que eu tenho que casar e ter filho, que já
estou ficando velha demais.
- Bem, agora você chegou ao ponto fundamental. Não quer decepcionar a expectativa de sua mãe.
- É, acho que é isso. Acho que eu sinto que se decepcioná-la, ela vai deixar de me amar e isso é o
terror para mim.
- Mas, você não acha que um amor que impõe condições, que diz quando e de que modo você tem
que fazer isso sem respeitar seu tempo não é um amor exigente demais?
- Nunca parei pra pensar nisso... Sim, acho que é verdade. Amor é quando a pessoa aceita a gente
com o nosso ritmo próprio, não é?
- Acho que sim...
- Obrigada, Claricinha. Você é muito esperta.
- Ah, Sandrinha. É que eu já passei por isso e sei o quanto é difícil a gente se encontrar no meio
de tantas vozes.
Observe bem qual é o ponto central do sofrimento da pobre Sandrinha. Sua mãe, por qualquer
razão que seja, diz coisas horríveis a ela: diz que se ela não se casar e não tiver filho vai ficar velha e
sozinha.
Ora, esta mãe não devia ensinar à filha que, mais importante do que se casar e ter filhos, é ela
conseguir encontrar alguém que a ame e a respeite? Não está tudo trocado aqui?
Eu arriscaria dizer que esta pobre mãe também morre de medo da solidão – talvez tenha um
casamento infeliz, talvez nunca tenha conseguido encontrar a própria voz – e agora tiraniza a pobre
Sandrinha com seus próprios medos. E menina, por precisar desesperadamente da aprovação e do amor
duvidoso da mãe, cai nessa cilada. Capaz de se casar com qualquer um só para agradar a mãe. E aí o ciclo
está fechado. Mãe condenada à infelicidade, filha condenada à infelicidade.
- Entende o quanto isso é sério?
Se esta mãe conseguisse ensinar à filha aquilo que Drummond diz – que ausência é um estar em
mim – a Sandrinha, com certeza, seria uma mulher muito mais feliz. Se a mãe conseguisse ensinar a filha
que ela deve cuidar de seu jardim e que, depois disso, é que as borboletas vêm, seria lindo.
Acontece que as pessoas morrem de medo de estarem consigo mesmas. Talvez porque carreguem
um monstro de mil chifres com o qual terão que se confrontar, antes de seguirem adiante. Dançar de perto
com nossas ausências não é muito fácil no início e talvez não consigamos fazer isso sem ajuda. Mas,
depois que a gente pega intimidade com a gente mesma, é uma delícia.
Estou me lembrando de outra história. Trata-se de Rita. Ela foi minha colega de Universidade.
Lecionamos juntas na pós-graduação. Essa mulher vivia falando pelos cotovelos. Um dia perguntei a ela:
- Por que fala tanto, mulher?
- Tenho medo de ouvir minha própria voz. Respondeu-me com olhar infantil.
- E o que é que diz sua própria voz, quando você a deixa falar?
- Ela diz assim: Rita, você já vai fazer cinquenta e três anos, seu casamento está uma droga. Há
meses você não troca meia dúzia de palavras com seu marido. Precisa lidar com isso em algum
momento.
- E o que você faz depois de ouvir isso que a sua voz lhe diz?
- Eu tento esquecer e vou comer um chocolate...
Bem, sabem quando a Rita lidou com isso, caro leitor?
Quando o marido chegou para ela, um belo dia, sem mais nem menos, e disse que estava
apaixonado por outra mulher. Saiu de casa em uma semana e deixou Rita lá, aos prantos e vazia.
Rita fez força, fez muita força para não ter que lidar com o seu problema. Ela negou, negou, negou
até onde pôde. Depois, se esqueceu do que sua voz dizia e começou a dizer a si mesma que estava
perdendo o sono por causa do estresse do trabalho.
- Coitado do estresse. Leva a culpa por tudo hoje em dia, já reparou?
Eu não acredito em destino. Coisa mais infantil essa. O destino é aquilo que acontece porque a
gente descuida. Lembram-se do Pedro? O menino que era des-amado pela mãe? Se ele tivesse percebido
isso a tempo, por mais doloroso que fosse, não cairia na armadilha de ter que disputar com o irmão o
amor da mesma mulher que, no fundo, lá no fundo mesmo, era sua mãe.
Ele poderia ter observado corajosamente que sua mãe o amava menos. Paciência. A gente não
escolhe quem vai amar. Nem as mães! E, em seguida, em um ato de profunda dignidade por si mesmo,
poderia ter dito à mãe que não permitiria que aquilo continuasse: ficar em uma relação em que o amor
vem como esmola que se dá ao pobre! E a farsa seria desfeita. Com a verdade, por pior que ela seja,
sempre há algo que se possa fazer. Com a mentira e com o engano não. A mentira atrofia a cabeça.
- Então, caro leitor, sabe por que eu gosto tanto da minha ausência?
Por que ela é minha bússola, meu guia, meu norte. Nela eu posso escutar o som da minha alma, a
voz da minha intuição. É música pura.
Às vezes me imagino transando com a minha ausência. E sabe o que nasce daí? A paixão pela
vida. Mas isso é só para alma de loba velha. Sabedoria que vem com a idade vivida, e bem vivida. E
vamos aos sessenta
E o ciclo da vida começa a se encerrar
Quando se tem sessenta anos, a senhora morte já nos fez algumas visitas. E se ainda não fez, está
prestes a fazer.
Eu já havia perdido algumas pessoas queridas para a senhora morte, mas nenhuma destas perdas
foi tão dolorosa quanto a perda de meus queridos pais. O primeiro a ir foi papai. Acho que por sua
fragilidade maior.
Recebi um telefonema de mamãe. Dizia que era para eu ir o mais rápido que pudesse, pois papai
estava se despedindo desta vida.
Eu não tenho medo da morte. Para quem vive bem e intensamente esta longa, longuíssima vida, a
morte é um descanso.
Viver é bom, mas cansa. Acho engraçado quando as pessoas dizem que a vida passa rápido. Pode
ser que ela passe para alguns. Para mim, a vida é um filme longuíssimo. Neste lindo filme que é a vida
humana, temos tempo para realizar tudo o que desejarmos. Basta não perdermos tempo.
- Já observou, leitor amigo, quantas lembranças, quantas fotos, quantas memórias você – se foi
esperto o bastante – colecionou em sua longa vida?
Eu tenho a impressão que as pessoas que dizem que a vida passa rápido demais não tratam com o
devido cuidado suas preciosas memórias. Talvez elas, descuidadamente, reúnam todas estas memórias, às
pressas, em uma caixa qualquer que ficam esquecidas no fundo de um armário velho. As memórias de
uma vida não deviam ser tratadas com tanta displicência. Nossas ricas memórias – sejam elas felizes ou
tristes, pois disso tudo é feita a vida – devem ser guardadas em uma linda caixa com fita de cetim, para
serem revisitadas muitas e muitas vezes. Não se trata de viver de nostalgia. Não é isso. Acontece que
nossas memórias são tudo que nós temos. Sem memórias, nós não existimos. Não somos nada. Somos
espectro.
Mas voltando ao papai, assim que recebi o telefonema, fui correndo para minha cidadezinha natal.
Pedro acompanhou-me. Chegando à minha casa da infância encontrei uma cena lindíssima.
Papai estava deitado em seu quarto. Janelas abertas. A luz e a claridade invadiam o quarto,
tornando o semblante de meu velho pai uma mistura de humano e fantasma. Ele estava branquíssimo. Sua
tez alva resplandecia uma espécie de sabedoria adquirida com o tempo. Pousado sob o peitoril da janela,
estava o lindo pássaro azul – meu querido irmão – que observava a cena, com olhos atentos e brilhantes.
Acho que ele estava esperando papai para levá-lo com ele. Os dois finalmente iriam encontrar a paz
juntos.
Cheguei bem perto dele. Juntei minhas mãos às suas, que estavam frias e tremendo. Perguntei:
- Está com medo, meu pai?
- Não, minha filha. A minha vida foi uma sucessão de lutas e, no meio delas, algumas pequenas
alegrias. Estou cansado deste susto que é viver. Quero poder descansar.
Nesse instante, seus olhos se encheram de lágrimas. Seu olhar era profundo, sereno,
contemplativo. Ele parecia enxergar alguma coisa.
- O que está vendo, papai?
- Vejo um filme de toda a minha longa vida. Os meus erros e acertos. Meus temores. Também vejo
seu irmão. Ele está me chamando. Seu corpo transformou-se em um lindo pássaro azul. Ele bate as asas
em minha direção. Quer que eu o siga. Eu vou, minha filha. Tenho muito que conversar com ele. Errei
feio com aquele pobre menino. Não o enxergava como um filho, mas como um espelho meu. E um
espelho que eu odiava. Tenho que pedir perdão a ele.
- Vá em paz, meu querido pai.
E foi assim que meu pai deu seu último suspiro. Deixou seu corpo velho e cansado e acho que
também virou um lindo pássaro. Assim eu prefiro crer.
Não acredito em vida depois da morte, mas não afirmo com certeza que não existe algo do lado de
lá. Quem somos nós para afirmar com certeza qualquer coisa sobre essa coisa misteriosa que é a nossa
vida. Como dizia Shakespeare, há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.
De minha parte, prefiro acreditar nas coisas que eu vejo e sinto. Além do mais, acho que uma vida
só é o suficiente para nos cansarmos bastante. Se Deus é amor, acho que ele não prolongaria eternamente
esse susto que é viver. Isso seria ruindade. Acredito que assim como todos os outros bichos e como as
plantas – porque seríamos especiais? – temos um tempo de vida finito. Depois que acabou, acabou.
Viramos pó. Nada mais. Gosto de pensar assim. Isso aumenta meu sentimento de responsabilidade com a
minha vida.
Se acreditarmos em várias vidas, corremos o risco de ficarmos folgando nessa e de deixarmos para
a outra tudo aquilo que julgamos difícil, tedioso ou cansativo de fazer. Ou seja, grande parte das tarefas
que envolvem uma vida. Sou da opinião de que se tenho uma coisa difícil para fazer, prefiro começar por
ela. Nunca deixar para depois. Mas tenho ciência de que isso contraria nossa natureza que é
procrastinadora por excelência.
Veja meu pai que acabou de morrer. Teve uma longa vida para fazer o que julgava certo. Não sei
se foi embora com um sentimento de dever cumprido. Talvez não. Talvez tenha carregado consigo o peso
de algumas responsabilidades paternas deixadas de lado. Com relação a isso, eu não podia fazer
absolutamente nada para diminuir seu peso.
É por isso que eu acho que, quando possível, a gente tem que perdoar as pessoas. Porque no fundo
elas próprias já carregam um fardo pesado demais chamado consciência. Então, porque é que eu vou ficar
aumentando esse fardo já pesado da pessoa com os meus rancores menores? A consciência de um ser
humano é o pior algoz que eu conheço. Faz coisas terríveis com a criatura. Quer ver?
Veja o Manoelzinho - aquele menino em quem eu dei meu primeiro beijo.
- Lembra que eu lhe contei que ele virou padre?
Muito tempo depois eu fiquei sabendo que ele se matou. E sabe por quê? Porque ele sentia um
desejo sexual irrefreável. Era, como se diz, compulsivo por sexo. Acontece que o Manoelzinho – como a
grande maioria das pessoas – ao invés de buscar compreender de onde vinha este vício por sexo, julgava-
se um perverso, um criminoso. Quem o julgava desta forma severa? Ele próprio.
Manoelzinho carregava dentro de si um julgador feroz que esperava dele nada menos do que a
perfeição. Mas eu já disse aqui em algum lugar: perfeição não é para nós. Como somos bichos
imperfeitos! Não sei de onde a gente tirou que tinha que ser perfeito como Deus. Então a criatura, de um
lado, quer ser perfeita como Deus, de outro, sente vontade de fazer coisas que ela considera abomináveis
com seu próprio corpo e com o corpo dos outros.
- Como é que se chega a um acordo nisso?
Por isso que eu digo e repito: para mim, a grandeza de um homem não está no fato de ele não
errar. Isso só Deus. Nós vamos errar à beça. A grandeza de um homem está no fato de ele poder
reconhecer seus erros, assumi-los e poder aprender a controlar seus impulsos, da forma mais inteligente e
consciente que puder.
O meu velho pai teve dificuldade em controlar seus impulsos na juventude. Era um homem muito
apaixonado, muito fogoso. E pagou um preço altíssimo por isso. Não por ter sentido tudo o que sentia.
Disso ele não tinha culpa. O preço que ele pagou foi por não se conhecer. Acontece que ele cresceu e
viveu em um meio muito bruto, sem compreensão de alma. Seus pais eram ignorantes nas questões do
coração e da mente. Tratavam os filhos como bichos. Então, meu querido pai também foi uma vítima. Se
ele soubesse disso tudo, tenho certeza, teria ido muito longe. Mas pagou o alto preço pelo erro de
gerações inteiras. Foi vítima da violência muda das brigas familiares, de traições, de paixões incontidas,
de bebedeiras, de sexo sem amor. Isso tudo é o demo. Mata a alma de um homem.
Então, meu querido leitor, tenha mais compaixão com as pessoas que erram feio na vida. No
fundo, o homem é um ser cego. Uma criança em busca de um pouco de compreensão e de amor. Assim
somos todos nós.
Bem, depois da morte de meu pai, levei mamãe para morar comigo. Ela não tinha mais condições
de ficar só. Não sendo aquela fagulha de gente.
Permaneceu conosco por mais dois anos. Depois disso foi embora também. Acho que não
aguentou de saudade de papai.
O coração tem razões muito misteriosas que são difíceis da razão compreender. Nunca consegui
entender muito bem como minha mãe conseguira amar um homem-bicho como papai. Hoje compreendo.
Com seu olhar amoroso, ela pôde encontrar qualidades nele. Qualidades que nem ele mesmo sabia
possuir. Isso é amor: quando a pessoa enxerga dentro da gente coisas boas que nem desconfiamos possuir.
Ela o amou loucamente. Um amor desinteressado, amor que ama mais do que a si mesmo.
Então, mamãe não aguentou de saudade e partiu também. Sua partida foi serena como um suspiro,
longo e profundo. Morreu dormindo.
- Adeus, minha brava e guerreira mãe. Obrigada por me ensinar sua força.
Senti muito a morte de meus pais, mas sinto que, de fato, eles não morreram. Não dentro de mim.
São como uma chama viva – a minha clara chama da infância em volta da qual conversávamos em noites
sem energia elétrica. Eles me guiam e me norteiam. Eles definem para mim quem eu sou. Fazem com que
eu sinta orgulho da minha história, das minhas lutas, das minhas lágrimas, da minha garra e do furor com
que enfrento a vida. Devo tudo isso a eles e também a mim, que pude fazer um bom uso do que eu herdei
deste casal.
Vejo muitas pessoas que perdem seus pais e não conseguem se desligar deles. Sentem-se vazias e
choram por anos a fio. Acho isso estranho. Penso que quando a pessoa amada e morta é carregada de
forma amorosa dentro da gente, a morte, de fato, não existe. Carregamos nossos mortos dentro de nós.
Acho que estas pessoas que choram e se apegam a seus mortos como tábuas de salvação podem, sem
perceber, estar ligadas àqueles que se foram, mais pelo ódio do que pelo amor. O amor deixa ir. O ódio
prende.
Eu deixei meus pais irem embora. Acho que em parte porque quando vivos eu pude, de fato, estar
com eles. E isso ninguém tiraria de mim. Nem a senhora morte.
Canção de despedida
Estou agora com setenta anos e já começo a me cansar da vida. Depois de enterrar meus pais,
continuei minha jornada. Passo meus dias cuidando da nossa linda e escondida casa. Converso com
Pedro. Escrevo. Consegui publicar mais um livro nos dois anos seguintes. Cuido de meus gatos,
sobretudo de Chico – agora bem avançado em idade, cego e com dificuldade para se alimentar.
Sinto as limitações da idade em meu corpo, embora a minha mente continue lúcida e viva. Ser
velho de mente lúcida é um grande desafio. O corpo não acompanha a agilidade da mente e deste
desencontro nasce uma angústia difusa. A beleza e o vigor da juventude já ficaram para trás e o que nos
resta é aquilo que pudemos colecionar como experiências vividas dentro de nós. Pedro envelhece bem.
Talvez melhor do que eu. Amante dos esportes - corre e nada como um peixe. De minha parte, permaneço
muito tempo em casa, pratico exercícios na água, para me lembrar de meu pai peixe. Raramente recebo
visitas.
Como não tivemos filhos não temos netos para alegrar nossas horas. Paciência. Não dá para se ter
tudo nesta vida.
Adoro caminhar pelas praças ao ar livre, de braços dados com Pedro. Ficamos vendo, felizes, as
crianças brincando e a vida correndo com seu ritmo próprio.
De alguma forma, sinto que já estou me despedindo da vida. A morte se aproxima. Logo partirei
também.
É bom poder olhar toda a minha vida em perspectiva e ver quantas coisas realizei. Como e quão
intensamente amei. Como fui feliz como escritora. Como me realizei como esposa e amante. Como senti
frio na barriga diante de cada novo projeto. Como vibrei com cada nova conquista, com cada novo
recorde de tempo de meu querido marido em suas corridas diárias. Como viajei e gozei com intensidade o
frescor de cada nova paisagem que os meus olhos puderam contemplar.
Como a vida é linda! As paisagens que meus olhos viram, as pessoas que meu coração amou, as
alegrias que eu senti, as lágrimas que eu chorei – tudo isso está bem guardado em meu peito. Colecionei
cada uma de minhas preciosas memórias em uma linda caixa de cetim que agora, no fim da vida, posso
abrir e vasculhar orgulhosa. Manuseio cada uma destas memórias como pétalas. É pura vida. É o que eu
sou.
Em uma noite fria de inverno, chamo meu querido companheiro Pedro – fiel parceiro de uma vida
– para sentar-se ao meu lado. Com nossas mãos enrugadas e cheias de amor, pegamos nosso baú de fotos.
Olhamos cada uma delas com carinho e saudade.
- Você se lembra, Claricinha, desta viagem que fizemos? Ele diz sorrindo.
- Lembro sim. Nós fomos para aquela linda praia deserta. Lembra-se de como nos amamos no
mar? De como nos entregamos um ao outro com todo o ardor da mocidade?
- Sim, é claro que me lembro, meu amor. E esta outra? Você se lembra de quando foi?
- Ah, sim. Este foi o nosso Natal ao lado de papai e mamãe. Lembra-se de como eles estavam
felizes? Ah, como papai ficou feliz com aquela camisa de bolinhas que você deu a ele... Acho que naquele
instante ele sentiu orgulho por eu ter encontrado um marido tão bom quanto você.
E assim ficamos toda a madrugada. Costurando com os fios amorosos das lembranças, cada
momento vivido. Disso eu vou sentir saudade.
Sentirei saudade dos braços fortes de Pedro enlaçando minha pequena cintura enquanto bailamos
uma linda valsa.
Sentirei saudade do olhar amoroso e gentil do meu velho gato Chico, que me acompanhou durante
tantos anos.
Sentirei saudade da meiguice faceira da gatinha Frida, acordando-me todas as manhãs com suas
patinhas delicadas de fêmea.
Sentirei saudade do cheiro de flor de laranjeira, que sentíamos todas as vezes em que passeamos
pelas praças, em domingos ensolarados.
Sentirei saudade do nascer e do pôr do sol.
Sentirei saudade do cheiro de pão quentinho saído do forno que Pedro preparava carinhosamente
para mim todas as manhãs.
Sentirei saudade do abraço quente de mamãe.
Sentirei saudade do olhar inteligente de papai.
Sentirei saudade do gosto doce do bolo que meu lindo marido me preparava aos sábados à tarde. E
que me levava onde eu estava sentada – debaixo da jabuticabeira lendo meus livros tão amados.
Ah, sentirei saudade de meus amados livros. Meus fiéis companheiros desta longa e bonita jornada
que é a vida. Sentirei saudade de Guimarães Rosa, de Victor Hugo, de Dostoievsky, de Tosltói, de
Shakespeare, de Freud, de Mozart, de Bach, de Beethovem, de ouvir jazz, de dançar.
Sentirei saudade de sentir o enorme prazer de mergulhar o meu corpo todo na água e de deixá-lo
afundar com a despretensão e o encantamento de uma criança que mergulha, pela primeira vez, em águas
límpidas como a buscar reencontrar seus inícios.
Sentirei saudade de dançar, de cantar, de correr livre por aí.
Adeus, linda vida.
Obrigada pela gentileza com que me tratou.
Minha morte
Morri aos setenta e dois anos. Foi uma morte simples, singela. Assim como é a vida. Vou lhe
contar como foi.
Acordei naquela manhã pontualmente às cinco e meia, em clima de despedida. Sabia de alguma
forma misteriosa que iria partir. Então, disse a Pedro:
- Meu querido, sinto que hoje irei partir. Intuo isso. Gostaria que você me levasse até o lago.
Quero ver o nascer do sol. Você me ajuda?
- Sim, Claricinha. Disse Pedro com sua voz habitual de veludo e com olhar doce da despedida
anunciada.
Pedro e eu já estávamos preparados para este momento. Sabíamos como almas velhas que vida e
morte são duas notas de uma melodia só. Sabíamos que a morte vem como descanso depois de uma longa
e bem vivida vida. Por isso nenhum de nós dois barrávamos o processo. Estávamos preparados para
deixar ir quando fosse o momento. E o meu momento havia chegado.
Curioso que ele tivesse chegado antes do de Pedro. Por alguma fantasia muito infantil acalentada
em parte pelo meu início de vida difícil, em que era eu quem tinha que cuidar dos adultos ao meu redor,
eu sempre considerei que iria morrer depois de meu marido. Considerei que seria eu a pessoa forte e
estável a ficar ao seu lado ajudando-o em seu processo. Mas a vida mais uma vez havia sido generosa
comigo. E estava, como num nascimento às avessas, me dando uma nova chance. A chance de poder me
abandonar nos braços de meu doce Pedro. Agora seria ele o homem forte a me ajudar no meu instante
fatal.
Agora seria ele que me traria a tão aguardada e esperada redenção. Pois, se eu havia nascido sem
contar com os braços fortes de meu pai para me amparar em minha estreia, agora estava podendo partir
amparada pelos braços firmes e constantes de Pedro, meu amor. E eu sabia que podia me deixar levar por
ele. Eu sabia que ali estava segura e bem acompanhada. Então simplesmente deixei-me ir.
Diante do meu pedido, Pedro carregou-me até o lago que havia perto de nossa casa e que, durante
tantos anos, fez parte de nossos passeios matinais. Eu buscava aquele contato com as águas. Eu precisava
me despedir da minha adorada água que me transportava aos meus inícios, ao meu pai peixe, às
profundezas do meu ser.
Pedro me pôs sentada em um singelo banco de madeira e sentou-se ao meu lado. Ficamos ali um
longo tempo vendo o nascer do sol. Que dia lindo estava sendo prometido. Que manhã ensolarada e
convidativa a um mergulho.
Pedi a Pedro que me colocasse na água. Queria senti-la em meu pequeno corpo cansado e frágil.
Entrei na água carregada pelos braços fortes do meu amado marido. Deixei-me descansar e estar à
deriva em seus braços.
- Já experimentou o gosto bom de deixar seu corpo à deriva nos braços firmes e doces da pessoa
amada? Não há sensação melhor que esta. É como estar no paraíso.
Sentia naquele instante todo o meu corpo envolvido pela água quente e calma do lago: água
nascimento, água batismo, água envoltório, água que acalma. Morrer é um nascer ao contrário.
Permanecemos um bom tempo em silêncio: Pedro sustentando meu nascimento ao contrário, com
sua postura sublime e contemplativa. Sabia que ali se passava um pequeno milagre.
Depois, por eu começar a sentir frio, pedi que ele me retirasse da água e me deixasse secar ao sol.
Queria experimentar o estado puro das coisas: o sol secando meu frio, o vento batendo limpo em meu
corpo arrepiado. Não queria interferência que pudesse me retirar do puro que há em cada coisa. E Pedro
foi me acompanhando. Silencioso e compenetrado em sua função de parteiro da morte.
Voltamos ao nosso pequeno oásis. Pedro banhou-me, vestiu-me e depois me colocou em nossa
cama quentinha. Que útero aconchegante. Não senti vontade de comer. Já estava saciada de tanta vida e
de tanta beleza. Pedro respeitou meu pedido. Ele sabia que não era daquele alimento que eu precisava
naquele instante.
Passamos a tarde toda assim. Pedro deitado comigo. Mãos dadas. Conversamos sobre amenidades.
Demos algumas pequenas risadas. Não queríamos perder aquele instante final.
Já estava entardecendo. O lusco-fusco do crepúsculo se aproximava. Hora contemplativa. Meu
tempo de ir estava chegando. Eu sabia. Sempre soube que iria morrer no lusco-fusco. Hora mais linda e
triste em que o céu explode em cores alaranjadas e a noite vai se aproximando, aos poucos, convidativa e
sinuosa. A manhã é o tempo de nascer. O entardecer é o tempo de morrer. Deve ser por isso que muita
gente se deprime neste período do dia. Não sei.
Meu tempo de partir se aproximava. Pedro apertava minhas mãos, não para me segurar – ele
nunca faria isso – mas para me dizer que estava ali comigo, com sua presença firme e constante. O
instante se aproximava. Eu sentia.
Vi lágrimas em seus olhos. Lágrimas de adeus.
Pedi a ele que colocasse uma sonata de Bach. Aquela música linda, sublime, encantadora de
almas, embalaria a minha partida.
Chico e Frida se aproximaram de mansinho. Eles sabiam que eu iria partir. Deitaram-se
silenciosos e compenetrados aos meus pés, um de cada lado. Acho que queriam aquecer meu corpo
fúnebre no instante final. Uma última lembrança, um último pequeno e doce cuidado destes seres tão
gentis.
Que saudade sentirei de todos vocês, meus queridos companheiros...
E foi assim, ao som doce e sereno da sinfonia de Bach, amparada pelas mãos firmes e constantes
de meu querido Pedro e pelo toque quente e gentil de meus dois gatos, Chico e Frida, que fechei meus
olhos para nunca mais abrir. Adeus, linda vida. Sentirei saudade de estar aqui.
Sonata do adeus
A vida humana é uma sucessão contínua de nascimentos e de mortes. Uns partem e outros chegam
neste misterioso caos que é a vida. Nascemos assustados e frágeis como passarinhos. Precisamos de
alguém para nos amar. E o que encontramos é gente humana tão ou mais assustada que nós. A vida é
assim. Acerto e erro. Travessia e passagem. Inconstância. Balanço. Instabilidade. Mistério.
A gente caminha como cego pela vida sem saber muito bem o que busca. Fareja como bicho
assustado. A pessoa que segue sua natureza fareja, fareja e encontra. Em algum momento ela encontra o
que tanto buscou. Em algum momento ela encontra o amor. Não o amor perfeito, definitivo, acabado. O
que ela encontra é arte de amar, que vai se fazendo a cada ato, que vai se moldando e se descobrindo na
medida em que nos lançamos de peito aberto nesse mar revolto que é a vida.
Viver é arriscado. Amar é mais arriscado ainda. Por isso às vezes fugimos, recuamos, tememos.
Eu posso dizer que tive uma vida feliz. Comecei aos tropeços, mas fui indo, seguindo meu faro. E
encontrei, finalmente, o amor. Encontrei a luz que eu tanto persegui por toda a minha vida. Encontrei
minha claridade. Minha doce Clarice.
Acho que completei a missão me que me foi designada por mamãe:
- Minha filha, encontre a luz que eu nunca consegui encontrar.
Sim, mamãe. Eu encontrei a luz. A luz da verdade. O alimento da minha alma. E não precisei
buscar isso em nenhuma religião. Religião que infantiliza o homem. Fiz minha travessia de peito aberto,
com a cara e com a coragem. Senti medo? Claro que senti. Nunca deixei de sentir. Depois, descobri que o
medo faz parte.
Somos ensinados a não temer. Deviam nos ensinar que devemos temer, e muito. Viver é arriscado
e perigoso demais. E só quem é muito bobo ou ingênuo não tem medo da vida.
Sim, eu senti muito medo. Mas não me deixei paralisar por ele. Eu realizei, apesar do medo. Nos
momentos de pavor, eu segurava firme as rédeas da minha vida e ia, confiando em mim mesma e na única
coisa em que eu podia me amparar: no meu sentir.
Acho que deu certo.
Não tenho a pretensão ingênua de que minha vida te sirva de exemplo. Cada um tem que descobrir
o caminho por si mesmo. Com dizia Guimarães, o capinar é sozinho.
De qualquer forma, desejo-lhe boa sorte. E que você possa aguentar firme o medo e a inveja
quando eles vierem. Porque eles vão vir. Ah, vão. Se você se propuser a fazer algo de valor nessa vida,
vai sentir muito medo. E vai despertar o olhar da besta-fera da inveja. Cuidado com ela. Proteja-se da
única forma que você pode: aguente firme.
DADOS SOBRE A AUTORA

Ana Laura Moraes Martinez é formada em Psicologia pela Universidade de São Paulo onde
também fez Mestrado e Doutorado com ênfase em Psicanálise. Desde 1999 exerce o ofício de psicóloga
de orientação psicanalítica, dedicando-se ao cuidado emocional de diferentes faixas etárias. Iniciou
timidamente seus primeiros passos como escritora dedicando-se à escrita de textos psicanalíticos,
publicados em seu blog (www.ribeiraopretopsicologia.com.br), mantido no ar desde 2009. Da compilação
destes textos psicanalíticos, publicou em 2013 seu primeiro livro intitulado “O divã no dia-a-dia:
Crônicas do cotidiano sob o olhar da psicanálise” pela editora IELD. Desde 2014, num movimento de
ruptura com sua escrita inicial, mais teórica e explicativa, a autora vem produzindo literatura e
desenvolvendo em seus textos, curtos e longos, uma narrativa poética em que busca compartilhar com o
leitor, seu fiel companheiro, o olhar inaugural da infância sobre o mundo. Deste exercício prazeroso
nasceu seu primeiro romance “Eu, Clarice”, publicado em 2015. Como escritora de literatura, inspira-se
na companhia viva de autores como Dostoiévski e Tosltói, Victor Hugo, Charles Dickens, Thomas Mann,
Clarice Lispector, Manuel Bandeira e Guimarães Rosa. Para entrar em contato com a autora, escreva para
contato@psicologiaribeiraopreto.com.br

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