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Há dez anos ou mais, traduzi por conta própria alguns Upanisads hindus de forma
bastante despretensiosa. Utilizei as traduções em inglês da editora indiana Advaita
Ashrama e as traduções do indólogo britânico R.C. Zaehner. Acrescentei comentários
que compilei a partir dos comentários de autoridades hindus tradicionais como
Sankaracarya, Gaudapadacarya, entre outros, e de indólogos e estudiosos do
pensamento indiano.
Relutei bastante em publicar essas traduções por receio de deturpar de algum modo a
maravilhosa mensagem dessa tradição milenar. Se agora as publico aqui, é no espírito
humilde de contribuir o mínimo que seja para o conhecimento desse tesouro espiritual e
metafísico, e, principalmente, como testemunho de meu profundo amor pelos Upanisads.
Peço desculpas de antemão por qualquer erro que tenha cometido nesse texto, na
tradução ou nos comentários.
1. Hari Om! Essa sílaba "Om" é tudo isso. E a interpretação é a seguinte: o que foi, o que
é e o que virá a ser é verdadeiramente Om. E tudo que que está além dos três períodos
do tempo é também Om.
2.Tudo isso é certamente Brahman. Este "Si" é Brahman. O Si, tal como é, tem quatro
quartos.
4. O estado de sonho (Taijasa), consciente do que é interno, que possui sete membros e
dezenove bocas e que lida com o que é sutil.
:
5. O estado de sono profundo é aquele em que o homem dorme e não deseja nada e não
sonha. O terceiro estado é Prajna, que tem o sono profundo como sua esfera e em quem
tudo se torna indiferenciado, uma massa de sabedoria que abunda em bem-aventurança,
experimenta a bem-aventurança e que é a porta para a experiência (dos estados
anteriores).
7. Não é consciente do mundo interno, nem do mundo externo e nem de ambos juntos.
Não é massa de sabedoria (prajna), nem sábio, nem ignorante. Invisível, com quem não
se pode ter comércio, incompreensível, indistinto, inconcebível (pelo pensamento),
indescritível. Sua prova é a unidade do Si, no qual todo o fenômeno cessa; e que é
imutável, auspicioso e não-dual. Assim eles consideram que é o quarto [estado]. Tal é o
Si e Isto deve ser conhecido.
12. O quarto é além de todas as letras. Não há comércio com ele; ele traz fim a todo
desenvolvimento, auspicioso e não-dual. Tal é o Om, verdadeiramente o Si. Quem o
conhece entra no Si através de si mesmo.
...
*(juntas, essas letras são pronunciadas como OM)
Comentários:
1. Assim comenta Sankara Acarya: "Como todos os objetos que são indicados por nomes
não são diferentes desses mesmos nomes e os nomes não são diferentes do OM, então
o OM é verdadeiramente tudo isso. E como o supremo Brahman é conhecido através da
relação que subsiste entre o nome e seu objeto, Ele também é OM."
:
OM é a sílaba da realidade última de tudo aquilo que foi, é ou será. Nele estão
identificadas as realidades manifestadas e as imanifestadas. Na presente perspectiva,
OM é Brahman enquanto considerado em seu aspecto de Absoluto, englobando aquilo
que está sujeito ao tempo, bem como o que não está, seja porque ainda não se
manifestou, já cessou ou é atemporal.
2. Tudo isso é Brahman e o próprio Eu não é mais que Brahman. Eis o ponto central: "Tu
és isso!" Ou seja, "tu mesmo, no mais íntimo de tua interioridade é Brahman". Esse "eu"
fenomênico, que carrega um nome, que se identifica com seus atos, que sofre e goza,
ainda não é a realidade mais profunda. Ele não é mais do que uma manifestação do
princípio de todas as coisas que está igualmente inteiro em cada ente sem jamais
esgotar-se neles.
Escreve Heinrich Zimmer: "A essência dos fenômenos macrocósmicos é una e é idêntica
a dos fenômenos microcósmicos." A partir dessa perspectiva, nenhuma dualidade poderá
se afirmar como última e irredutível. O supra-pessoal, o não-dual, é o objetivo espiritual
por excelência.
"Tu és isso!". O verdadeiro Eu, o "Si" de tudo o que há é Brahman e seus quatro quartos
são suas condições representadas nas letras da sílaba sagrada OM. Essas condições
serão apresentadas nos versos seguintes.
3. O estado de vigília é aquele do eu fenomênico, que vê, ouve, sente, toca, saboreia, ri,
chora, sofre e goza em meio a outros corpos animados e inanimados. Sua esfera de
ação primordial é com aquilo que é externo, ao que é presente pelos sentidos. Sankara
Acarya afirma que nesse estado a "idéia é que a Consciência aparece como se
relacionada aos objetos de fora, devido à ignorância."
E continua o sábio ortodoxo hindu: "Com efeito, uma vez que através dessas entradas
:
Vaisvanara, assim constituído, desfruta dos objetos grosseiros (brutos, espessos) - como
sons e o resto - então Ele é um Sthulabhuk, um desfrutador do grosseiro."Os objetos
grosseiros ou espessos são aqueles diretamente perceptíveis pelos sentidos e
representam a porção mais baixa na hierarquia da manifestação.
5. O terceiro estado é o do sono profundo no qual não há nenhuma forma, seja sutil ou
densa. Nele não sonhos ou desejos.
Sankara Acarya afirma que esse estado é chamado "indiferenciado, uma vez que o
conjunto inteiro das dualidades, que é variado como os dois estados (de vigília e de
sonho) e que não são mais do que modificações da mente, se tornam indiscerníveis
(nesse estado) sem perder suas características já mencionadas, da mesma forma que o
dia e o mundo fenomênico se tornam indiscerníveis sob o manto da escuridão noturna."
Como salienta Sankara, nesse estado de sono profundo, sem sonhos, o mundo das
formas se torna indiferenciado e indiscernível de forma análoga às coisas visíveis que se
indiferenciam na chegada da noite, mas não desaparecem ou são destruídas. O mundo,
por assim dizer, se recolhe na noite e retornará tão logo a luz do Sol o ilumine.
Esse estado é vazio, mas não é um nada. É um útero de uma mulher grávida. É repleto
de todas as possibilidades manifestáveis e que efetivamente se manifestarão. Seu vazio
é o da indistinção, não o da ausência.
:
Sankara declara que nesse estado há ausência de discriminação e que ele é "ananda-
mayah, repleto de alegria, sendo sua abundância de alegria causada pela ausência da
dor envolvida no esforço da mente que vibra de acordo com os objetos e seu
experimentador. Mas ele não é a Felicidade em si mesma, uma vez que a alegria não é
absoluta. Da mesma forma como, no linguajar comum se diz que alguém livre de
qualquer esforço é considerado feliz ou anandabhuk, 'aquele que experimenta a alegria',
assim também este é chamado anandabhuk, pois por ele se experimenta libertação
extrema do esforço"
Como diz o Mandukya Upanisad, tal estado é "a porta para a experiência", pois é dele
que tudo o que é manifesto advirá, como que atravessando uma porta. Ele é
chamado Prajna, consciência plena, porque nele somente há, como afirma Sankara, "o
conhecimento do passado, do futuro e de todas as coisas", pois ele as contém em
princípio.
O sutil e o grosseiro perfazem nama-rupa, o mundo dos nomes e das formas, cambiante
e mutável que deve ser ultrapassado na direção da identificação com o Princípio último,
eterno, imutável e imanifestado, Brahman Nirguna (sem forma), verdadeiro objetivo da
vida espiritual.
6. No quarto estado, Turiya, chega-se ao ápice da visão espiritual. Eis a natureza última,
fonte (Yoni) e fim de todas as coisas animadas, inanimadas, sutis, grosseiras, divinas e
humanas. Por isso é chamado de sarvesvara, "Senhor de Tudo".
:
Sankara Acarya afirma que "em sua imanência em toda diversidade, é o conhecedor de
tudo, por isso o Onisciente e o controlador interno." Tudo o que é, foi ou será dele provém
e para ele retornará. É Brahman Nirguna, o sem-qualidades, O sem-segundo.
Gaudapada Acarya, mestre de Sankara Acarya afirma em sua karika: "O grosseiro
satisfaz Visva e o sutil satisfaz Taijasa. E assim também o regozijo satisfaz Prajna. Saiba
que o gozo é triplo"Em seguida Gaudapada ensina: "Aquele que conhece ambos - o gozo
que há nos três estados e aquilo o qual é declarado ser o desfrutador ali - não se torna
afetado mesmo enquanto estiver desfrutando."
Ou seja, aquele que sabe a verdadeira natureza de todas as coisas sabe que os três
estados, vigília, sonho, sono sem sonhos e seus respectivos prazeres e alegrias estão
contidos eminentemente no quarto estado que é a origem e fim de tudo o que há. Assim,
somente Brahman é a realidade no sentido pleno e só ele é o desfrutador.
Aquele que conhece sua natureza verdadeira é como Arjuna na batalha, o santo que age
mas não se identifica com o que age e com o que experimenta e sabe que aqueles que
mata não são mais do que conformações passageiras do eterno e imutável substrato
não-dual de todas as coisas.
7. Turiya é diferente dos três primeiros estados e se revela de forma análoga a revelação
da ilusão que toma uma corda por uma serpente. É quando se nega a serpente que se
chega à corda. Turiya é a serpente nua, sem qualidades e sem determinações.
Se por um lado é a natureza de tudo o que há, o substrato último, e portanto não
diferente de nada do que há, por outro lado é sem qualidades e sem determinações
porque nenhum ser, grosseiro ou sutil, o esgota ou o representa totalmente. É a base que
está além de todas as classificações, para a qual os termos opostos (p.ex. consciência,
não-consciência) são inaplicáveis. Não pode ser visto, não pode ser manipulado, inferido,
pensado ou descrito.
Sankara Acarya assevera que sendo Turiya "destituído de toda característica que torne o
uso de palavras possível, Ele (Turiya) não é descritível por meio de palavras; e daí o
Upanisad busca indicar Turiya somente através da negação de atributos." Mas isso
significa que Ele é um vazio?
Sankara responde: "Não, pois uma ilusão, apesar de irreal, não pode existir sem um
substratum; pois a prata, a serpente, o ser humano, a miragem e outros não podem
existir separados dos correspondentes substrata: madrepérola, corda, tronco de árvore,
deserto e assim por diante".
E Sankara acrescenta: "Ao contrário de uma vaca, por exemplo, o Si, em sua realidade
própria, não é objetivo de qualquer outro meio de conhecimento; pois o Si é livre de todos
os atributos. Não pertence a qualquer classe como acontece com a vaca; por ser o Um
:
sem segundo, é livre de atributos genéricos e específicos. (...) Livre de qualidades,
escapa a qualquer descrição verbal."
Nele todo o fenômeno cessa, isto é, tudo o que é fenomênico tem nele sua base, mas
não o esgota ou o torna cognoscível. Imutável solo de tudo, não-dual porque não há
segundo que se lhe oponha e todas as oposições são nele resolvidas e dissolvidas. É o
solvente universal de tudo o que é fenomênico.
8. O Si, considerado a partir da sílaba, é Om. Considerado a partir das letras que o
compõem, os quartos do Si são as letras. A sílaba sagrada Om é um ditongo composto
por A, U e M.
Brahman pode ser considerado a partir de sua natureza não-dual, livre de toda limitação
e das determinações que constituem e tornam possível a existência de tudo o que é
manifestado. É Brahman Nirguna, sem gunas, sem qualidades. Encarado segundo a
manifestação, Brahman é Saguna, qualificado e múltiplo.
O grande Ananda Coomaraswamy assim se refere à sílaba Om: "De todo os nomes e de
todas as formas de Deus, a sílaba monogramática OM, que totaliza os sons e a música
das esferas cantadas pelo Sol ressoante, é a melhor. A validade desse símbolo sonoro é
exatamente a mesma daquela do símbolo plástico do ícone. Eles são, um e outro,
suportes de contemplação (dhiyâ-lamba). A necessidade de tais suportes deriva do fato
de que aquilo que é imperceptível ao olho ou à orelha não pode ser percebido
objetivamente tal como é em si mesmo, mas somente por meio da similitude. O símbolo
deve, obviamente, ser adequado, e não poderia ser escolhido ao acaso. Infere-se
(avêshyati, âvâhayati) o invisível do que é visível, o não compreendido do que é
compreendido. Mas essas formas não são mais do que meios de aproximação do
informal e devem ser descartados antes que nos seja dado de nos mudar nele."
A partir daqui, o Upanisad passa a identificar os estados às letras que compõem a sílaba
sagrada OM.
11. O estado do sono sem sonhos é M e simboliza o ponto extremo da manifestação. Ele
encerra a sílaba sagrada e corresponde à manifestação enquanto eminentemente
contida em seu princípio. É "medida" porque é o princípio de toda a manifestação, que se
compõe de seres determinados e ordenados. É "absorção" porque tudo o que há, sutil ou
grosseiro, tem nele sua origem e a ele retorna e dele não difere essencialmente.
12. O quarto estado não tem representação nas letras que compõem a sílaba sagrada
OM. Isso porque ele está além de toda palavra e toda representação. Nele todas as
coisas encontram seu fim, pois é o substrato não-dual de tudo o que há, houve e um dia
vai haver. Está além do próprio princípio da manifestação que é representado pela letra
M. É a verdadeira do eu fenomênico, é o Si supremo e quem realiza essa identidade
alcança Brahman por meio de seu próprio eu. Tat Tvan Asi. "Tu és isso!"
Heinrich Zimmer afirma que o quarto estado é o silêncio sobre o qual o som da sílaba
sagrada repousa. O som passa, mas o silêncio permanece. É o fundo eterno, imutável e
em si mesmo não-dual do qual e sobre o qual as dualidades nascem e duram no tempo.
Nada pode ser dito a não ser a negação sistemática de qualquer determinação e limite.
Como asseverava René Guénon, aquele que alcança esse quarto estado realiza a
"Suprema Identidade."
Encerram-se aqui os comentários curtos ao Mandukya Upanisad.
...
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