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Referência: ARISTÓTELES. Categorias. Traduzido por José Veríssimo Teixeira da Mata. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

O problema do ser e categorialidade

O tratado é importante por dois motivos. São eles: 1) Impacto histórico: um dos escritos que
teve mais presente na história da filosofia, sobretudo, com as contribuições medievais - os estudos
lógicos eram feitos com base no órganon aristotélico cujo primeiro livro era o Categorias. O próprio
conceito de categoria foi bastante influente para os demais filósofos, eles encontram hoje a primeira
intuição que era a de Aristóteles ao forjar o conceito. Para se ter uma noção: a categorialidade chamou
a atenção de filósofos tão diversos como Plotino, Porfírio, Aquino, Descartes, Spinoza, Leibniz,
Locke, Berkeley, Hume, Kant, Hegel, Brentano, e Heidegger (para mencionar apenas alguns). 2)
Sistema aristotélico: fornece a base de investigação para uma grande variedade de investigações
filosóficas feitas por Aristóteles. A saber: a discussão sobre tempo e movimento na Física, a ciência
do ser enquanto ser na Metafísica, até mesmo sua rejeição à ética platônica em Ética a nicômaco.
Existe uma sistematização clássica do livro, que foi muito utilizada pelos medievais e
comentadores clássicos. Nos seguintes termos: o tratado Categorias pode ser dividido em três partes.
São elas: 1) Pré-Predicamenta (capítulos 1-4): na qual o filósofo discute algumas relações
semânticas, realiza uma quádrupla divisão dos seres, segundo os conceitos de “dito-de” e “presente
em”, por fim, apresenta sua lista com as dez categorias. 2) Predicamenta (capítulos 5-9): discussão
detalhada a respeito das categorias de substância, quantidade, relação e qualidade. Além disso,
fornece um tratamento superficial das demais categorias. 3) Pós-Predicamenta (capítulos 10-15):
debate algumas concepções relativas aos modos de oposição, prioridade e simultaneidade,
movimento, finalizando com uma discussão rápida sobre ter. Ademais, existe um consenso
generalizado de que no Categorias estão dois sistemas de classificação, um dado no Pré-
Predicamenta, e o outro no Predicamenta. São eles: a divisão quádrupla dos seres e a divisão em dez
categorias dos seres.
Com isso, é possível notar uma ambiguidade (intencional) presente na obra. Ao mesmo tempo
trata de questões gramaticais (modo como a linguagem funciona) e ontológicas (que tipo de seres há).
O grande propósito de Aristóteles era compreender a realidade. Já que a única maneira de acessá-la é
por meio da própria linguagem, torna-se evidente a necessidade de compreendê-la antes de mais nada.
De modo claro: não há pensamento sem linguagem, nem tampouco o contrário. Nessa linha de
raciocínio, o filósofo ainda pressupõe um isomorfismo (mesma forma) entre linguagem e mundo. Da
mesma maneira que a língua se divide, em termos essenciais, em sujeito e predicado, os objetos do
mundo se separam em substância e seus acidentes. Além disso, ele aceita a visão segundo a qual
palavras retratam conceitos e conceitos denotam objetos do mundo. Assim, sua preocupação
linguística está em função da sua relação com os objetos no mundo para os quais as palavras
correspondem. Logo, sua visão filosófica sobre a linguagem é, em grande medida, um discurso sobre
os aspectos mais gerais da realidade. Sendo essa visão o fio condutor dos temas abordados.
Com efeito, a própria ideia de categorialidade carrega esse duplo significado, essa
ambiguidade. Por um lado, significa os gêneros de ser (ontologia): grandes modos (tipos) de
existência de todas as coisas que existem (dos seres). A saber: substância, quantidade, qualidade,
Referência: ARISTÓTELES. Categorias. Traduzido por José Veríssimo Teixeira da Mata. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
O problema do ser e categorialidade

lugar - sustentando que o ser é segundo algum desses grandes gêneros. Por outro, os diferentes
esquemas de atribuição (gramática): para “dizer alguma coisa de alguma coisa” é preciso realizar um
discurso atributivo, atribuindo algo a algo. Em sentido segundo, as categorias são as maneiras
segundos as quais podemos atribuir características as coisas, ou seja, realizar combinações entre os
termos - segundo complexão. Pois, termos isolados como "Sócrates" e “velho” não possuem valor de
verdade. Porém, ao realizar a atribuição “Sócrates é velho”, estamos diante de um discurso que pode
ou não ser verdadeiro. Portanto, as categorias são as diferentes maneiras, para um ser de que se fala.
Há tantos gêneros do ser quantos esquemas de atribuição - quantas categorias.
Para exemplificar as relações semânticas, o autor fornece logo no primeiro capítulo uma
divisão dos termos. Divididos em: 1) Unívocos: quando dizemos que há o fenômeno da sinonímia, as
palavras são sinônimas. Pois, apresentam nome em comum, bem como o mesmo enunciado da
essência (definição). Exemplo: homem e boi sendo ambos chamados de “animal”. 2) Equívocos:
quando acontece o fenômeno da homonímia, as palavras são homônimos. Porque, apresentam nome
em comum, mas diferem quanto ao enunciado da essência (definição). Exemplo: homem individual e
retratado de homem, ambos chamados de “animal”. 3) Derivados: quando acontece o fenômeno da
paronímia, as palavras são parônimas. Pois, obtêm a denominação pelo nome, diferindo-se de uma
outra coisa pela desistência (terminação). Exemplo: da palavra gramática se forma “gramático”. Da
palavra coragem obtém-se “corajoso”.
No sentido ontológico, Aristóteles tenta, de certo modo, responder ao desafio lançado por
Parmênides. O chamado “problema do ser”. Na visão do filósofo Eleata: já que valorizou o
pensamento como ponto de partida para entender o fenômeno da realidade, defende a impossibilidade
do movimento. Vejamos: o primeiro passo é admitir a tautologia da identidade do ser (o ser é, o não
ser não é). Ademais, o nada nada é, nem nada pode vir dele (não origina coisa alguma). Bem como,
ser e pensar são o mesmo (não há como pensar, nem dizer o não ser, o nada). Logo, posto que a
mudança implica dizer a passar do ser ao não-ser (ou o contrário), o movimento não existe (seria algo
como dizer o não-ser, uma impossibilidade). Então, o único caminho para a verdade é o da eternidade
do ser, da impossibilidade do movimento. Eis o desafio lançado: se o ser é único, absoluto,
indivisível, então todas as coisas que existem são da mesma maneira e no mesmo sentido de que as
outras. Logo, tudo é um. Nesse sentido, o discurso atributivo perde qualquer sentido. A única ciência
possível já está realizada e não existe mais nada a se dizer do ser mesmo. O discurso é anulado no
próprio movimento em que ele se desenvolve.
O mestre de Aristóteles, Platão, tentou resolver o enigma lançado pelo pré-socrático. Da
seguinte forma: rebatendo Parmênides demonstrando a existência de um certo não ser - que permite a
multiplicidade, o movimento, a linguagem atributiva. Algo como um não ser relativo, ou seja, sempre
relacionado ao ser. De modo claro: o não ser é “o outro” de um ser, sua diferença. Exemplo: a vida
como o não ser da morte.
Referência: ARISTÓTELES. Categorias. Traduzido por José Veríssimo Teixeira da Mata. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
O problema do ser e categorialidade

O discípulo estagirita, contudo, diverge de seu mestre. Desse modo: é preciso colocar uma
questão preliminar. Estabelecendo o que se quer dizer por “ser”, pois essa palavra nem sempre tem o
mesmo sentido. Em primeiro lugar, o ser ajusta-se bem a várias acepções. São elas: 1) Ser em
potência/em ato: existe uma distinção entre dizer o ser e sua significação temporal. Podendo significar
algo atual, ou passado, ou possível de ocorrer. Exemplo: “Sócrates é falante” denota a capacidade
desse homem individual de falar. Podendo ou não estar falando no presente momento. 2) Sentido
alético: confirmação daquilo que é verdadeiro. Usamos “é” no sentido de “sim”, de “é verdade”.
Exemplo: quando alguém duvida se Sócrates é homem, podemos responder com “mas, sim, é um
homem”. 3) Ser por acidente/em si: há uma distinção entre determinações que podem ser atribuídas ao
ser (ser por acidente) e a denotação do ser da coisa (o que ela é) - ser por si. Exemplo: se me
perguntam sobre Sócrates. Posso dizer “ele é homem”, bem como suas atribuições: “velho”, “culto”,
“filósofo”, etc. 4) Categorias: a determinação de que tipo de ser é esse ser por si mesmo, qual seu
gênero de existência. Porque, há o ser que significa substância, o ser segundo a qualidade, segundo a
quantidade, e segundo cada uma das categorias. Portanto, o primeiro passo para falar sobre o ser é
distinguir os diversos sentidos dessa palavra, que são, ao mesmo tempo, diversos gêneros de seres e
diversos modos de ser, ou seja, as categorias. Resolvendo assim os paradoxos em que estavam
enredados seus predecessores.
Para prosseguir na obra, é preciso deixar claro o que Aristóteles entende por substância. Para
iniciar, existem dois tipos de substância. São elas: 1) Substância primeira: aquela que não é dita de
nenhum sujeito, nem está em algum sujeito, dita no sentido mais fundamental, primeiro e absoluto -
subjaz a todas as outras coisas, todas as outras coisas existindo em relação a ela. O indivíduo
numericamente um, um isto. Exemplo: o homem individual, o cavalo individual. 2) Substância
segunda: espécie e também seus gêneros nos quais as substâncias primeiras subsistem, pertencem.
Pois, são os únicos predicados a revelarem a substância primeira. Exemplo: “homem” de homem
individual, “cavalo” de cavalo individual.
Além disso, as substâncias possuem certas características. São elas: 1) Nenhuma substância
possui contrários: inexiste uma “anti-substância”, o “contrário da essência”. Exemplo: nada é
contrário ao homem individual, nem ao homem, nem ao animal. 2) A substância primeira é capaz de
receber contrários; é próprio da substância ser receptiva de contrários, por sua capacidade de
mudança. Exemplo: a cor, sendo uma e mesma numericamente, não será branca e negra. Nem uma
mesma ação má e boa. Por outro lado, as substancias podem receber contrários: o homem indivual,
sendo um e mesmo numericamente, se torna ora branco, ora negro, ora quente, ora frio, ora mau, ora
bom. 3) Toda substância primeira é um “isto”: o que é revelado é individual e numericamente um.
Exemplo: o homem individual apontável no mundo é único enquanto substância primeira,
numericamente um. 4) A substância segunda enquanto espécie é mais substância que o gênero por
encontrar-se mais próxima do substrato, na sua definição. Exemplo: para falar do homem individual
(substância primeira) é muito mais preciso aplicar homem (espécie, mais próximo do sujeito) que
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animal (gênero, mais geral). 5) Nenhuma substância admite mais e menos: nenhuma é mais substância
do que outra, em relação àquilo que ela é, não se diz mais ou menos. Exemplo: se uma substância é
homem, não será mais ou menos homem, nem ele mais do que ele próprio, nem outro mais do que
outro. 6) Nada mais poderia existir se as substâncias primeiras não existissem: todas as outras coisas
ou são ditas das substâncias primeiras como de sujeitos ou existem nelas como em sujeitos. Pois,
todas as demais entidades possuem alguma dependência assimétrica com relação à substância
primeira.
Por fim, retratarei os dois sistemas apresentados ao longo do tratado.
Primeiro, a divisão quádrupla dos seres. Segundo os critérios de “dizer de” e “existir em”,
Aristóteles classifica as entidades do mundo (nos seus aspectos mais elevados) em quatro grandes
grupos. Contudo, para facilitar a compreensão, posto que o autor não explica muito bem esses dois
critérios, é possível realizar a seguinte classificação acrescentando denominações que auxiliam no
entendimento da ideia geral do filósofo.
Assim, sua divisão é desse modo apresentada por mim, das coisas que são umas: 1) são ditas
de um sujeito e estão em um sujeito: existem as entidades que são universais e acidentais. Ou seja,
que revelam uma multiplicidade, mas que não correspondem ao enunciado da essência de nenhuma
substância. Exemplo: o branco presente em todas as coisas brancas, a brancura universal. 2) são ditas
de um sujeito, não estando em um sujeito: existem as substâncias segundas, ou seja, os universais
essenciais - espécie e gêneros aos quais uma substância primeira pertence. Assim, substâncias
secundárias podem ser interpretadas como características essenciais de substâncias primárias. Além
disso, como as substâncias primárias parecem ser membros de tipos naturais, é possível interpretar as
substâncias secundárias como os tipos a que pertencem as substâncias primárias. Se assim for, as
substâncias primárias não somente são membros de tipos naturais, mas que elas são essencialmente
caracterizadas pelos tipos a que pertencem. Exemplo: a espécie “homem” ao se falar do homem
individual. 3) estão em sujeito, não sendo ditas de nenhum sujeito: existem características das
substâncias que não são essenciais. São chamados de particulares não-substanciais, ou seja, entidades
que são únicas, presentes em um sujeito particular, mas que não configuram uma característica
essencial desse sujeito, mas sim acidental. Exemplo: um certo conhecimento gramatical, uma
brancura particular de um objeto. 4) nem estão em um sujeito, nem são ditas de sujeitos: ocupam lugar
privilegiado na divisão aristotélica dos seres, as entidades chamadas de substâncias primeiras - os
indivíduos numericamente um. Destaca-se o fato de elas não serem acidentais. Não sendo predicadas
acidentalmente de nada, nem sendo entidades manifestadas temporalmente, caracterizadas
acidentalmente, ou artificialmente unificadas. Logo, correspondem às unidades essenciais. São
fundamentais, pois todas as demais entidades possuem alguma dependência assimétrica com relação à
substância primeira. Exemplo: o cavalo individual, o homem individual.
Segundo, a divisão em dez categorias de seres. Uma divisão das “coisas que são ditas” ( ta
legomena), ou seja, as palavras em dez tipos distintos. Nesse sentido, o segundo sistema apresenta
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uma classificação de palavras. Bem como, pode ser pensado como uma classificação dos diferentes
tipos de predicados linguísticos. De modo claro: as expressões sem qualquer combinação (termos
simples) correspondem a uma das dez categorias. De modo simplório: o segundo sistema de
classificação apresentado é tão somente uma lista dos tipos mais elevados de seres, ou seja, as
categorias. Ela é do seguinte modo: 1) Substância: a categoria mais fundamental. Dividida em:
substância primeira e substância segunda. Exemplo: homem individual, “homem” de homem
individual. 2) Quantidade: a medida de algo, um número que pode ser usado para falar de outra coisa.
Exemplo: dois côvados, três côvados. 3) Qualidade: adjetivação de algo, atribuição de características.
Exemplo: branco, gramatical. 4) Relação: aquilo que está em relação com algo, “conectado” com
algo. Exemplo: metade, maior. 5) Onde: localização, onde algo está. Exemplo: no Liceu, na Ágora. 6)
Quando: temporalidade, quando algo aconteceu. Exemplo: ontem, antes. 7) Estar em uma posição:
onde se coloca. Exemplo: está sentado, está deitado. 8) Ter: possuir algo. Exemplo: está calçado, está
armado. 9) Fazer: realizar uma ação. Exemplo: cortar, queimar. 10) Sofrer: sofrer uma ação. Exemplo:
ser cortado, ser queimado.

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