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A concepção de alma no tratado Acerca d’alma e

sua relação com a teoria das Categorias

Introdução ao De Anima, de Aristóteles, por Tomás Calvo Martinez

Tradução e notas extras: Danilo R. Fernandes.


“Em primeiro lugar, sem dúvida, faz-se necessário
estabelecer a que gênero pertence e o que é a alma – isto é,
se se trata de uma realidade individual, de uma entidade
ou se, pelo contrário, é qualidade, quantidade ou qualquer
outra das categorias que distinguimos – e em segundo
lugar, se se encontra entre os seres em potência ou antes
constitui uma atualidade. A diferença não é, desde já,
insignificante.”

(Acerca d’alma, I, 1, 402a23-27.)

É costume de Aristóteles (costume, aliás, tão mais estimável quanto pouco comum)
começar uma obra oferecendo a enumeração de todas aquelas questões com que se
deverá enfrentar ao longo dela. Um índice semelhante de questões existe também no
tratado Acerca d’alma. A breve citação que encabeça este tópico de nossa Introdução
contém precisamente aquelas linhas com que se abre a relação dos problemas a serem
tratados. De acordo com o programa exposto nessas linhas, a questão fundamental e que
há de ser abordada em primeiro lugar é: “a que gênero pertence e o que é a alma”. Tal
afirmação implica que Aristóteles não se coloca de modo explícito o problema sobre se
a alma existe ou não: sua existência não se questiona, senão que se passa diretamente a
discutir sua natureza e propriedades. O leitor de hoje sentirá, seguramente, que sua
atitude ante o tema acha-se a uma notável distância da abordagem aristotélica, e
considerará que a verdadeira questão a ser debatida não é a da natureza e propriedades
da alma, senão a existência mesma de uma realidade de tal natureza e propriedades. O
horizonte dentro do qual Aristóteles debate o problema da alma difere notoriamente do
horizonte intelectual em que se acha instalado o leitor moderno em virtude de diversas
circunstâncias históricas, das quais talvez mereçam se destacar as duas seguintes: as
conotações religiosas associadas à idéia de alma e a decisiva influencia exercida pelo
Cartesianismo sobre a psicologia metafísica a partir da modernidade.1 É certo que no
pensamento grego o tema da alma aparece associado insistentemente a concepções e
crenças de tipo religioso (imortalidade, transmigração, culpas e castigos, etc.): basta
recordar o pitagorismo e a filosofia platônica. Aristóteles, no entanto, não levanta a
questão da alma em conexão com crenças religiosas, mas o faz desde uma perspectiva
estritamente naturalisa.

Aristóteles aceita, pois, a existência da alma, se bem que sua atitude ante a mesma é
substancialmente alheia a conotações religiosas tradicionais. A perspectiva em que se
situa é a da explicação do fenômeno da vida. O raciocínio subjacente a seu modo de
abordagem é, mais ou menos, o seguinte: no âmbito dos seres naturais, há os viventes e

1
A influência do Cartesianismo introduziu na Modernidade uma nova abordagem do problema da alma:
ao se afirmar a autonomia e a não comunicação entre a substância pensante (alma) e extensa (corpo), a
alma restava totalmente desvinculada do corpo, e o fenômeno da vida viria a ser interpretado desde uma
perspectiva mecanicista. Abandonava-se assim a abordagem tradicional do tema da alma, que sempre se
havia considerado em relação com a vida.
os não viventes; entre aqueles e estes existe uma diferença radical, uma barreira
ontológica intransponível; deve haver, portanto, algo que constitua a raiz daquelas
atividades e funcionamentos que são exclusivas dos viventes. Este algo – seja o que for
– é denominado alma (psyquê) por Aristóteles, e, ao menos, temos de convir que tal
denominação se encaixa perfeitamente na tradição grega de que Aristóteles se nutre. O
problema está, pois, em determinar a natureza desse algo, da alma. Poderíamos dizer
que se trata de encontrar uma referência adequada ao termo “alma” e que tal busca
somente é possível através de uma investigação – filosófica e empírica – das funções,
das atividades vitais. O tratado Acerca d’alma não é senão um tratado acerca dos
viventes, acerca dos seres naturais dotados de vida.

O primeiro problema a se debater é, portanto, que tipo de realidade é a alma. Nas linhas
citadas anteriormente, este problema se manifesta, por sua vez, em duas questões
fundamentais: em primeiro lugar, se a alma é uma entidade ou constitui uma realidade
meramente acidental; em segundo lugar, se é ato, atualidade ou, pelo contrário, se se
trata de uma potência, de uma potencialidade ou capacidade de viver que possuem
certos corpos naturais e da qual carecem os seres inanimados. Aristóteles enfrenta o
tema da alma equipado com um sistema conceitual bem delineado e original. Frente a
toda filosofia anterior, ensaia um audaz experimento de tradução consistente em
reinterpretar o dualismo tradicional de corpo-alma através de seus próprios esquemas
conceituais de entidade-acidentes, matéria-forma, potência-ato. O resultado será uma
teoria vigorosa e nova acerca da alma, distante igualmente de todas as especulações
anteriores, mas não isenta de certas ambiguidades e tensões internas.

A) A palavra grega ousía (que geralmente se costuma traduzir por “substância” e que
traduziremos sempre por “entidade”)2 abarca na obra aristotélica uma pluralidade de
noções cuja sistematização coerente não é fácil. Com efeito, Aristóteles denomina
ousía, entidade às seguintes realidades ou aspectos do real: a) “O que não se predica de
e nem existe em um sujeito; por exemplo, um homem ou um cavalo” (Categorias, 5,
2a12-13). Trata-se, segundo estabelece explicitamente Aristóteles, da acepção
fundamental do termo ousía, com a qual se faz referência aos indivíduos pertencentes a
um gênero ou espécie naturais. b) As espécies a que pertencem os indivíduos e os
gêneros em que aquelas estão incluídas, por exemplo, “o indivíduo humano está
incluído na espécie ‘homem’ e o gênero a que esta espécie pertence é o ‘animal’, daí
que a espécie ‘homem’ e o gênero ‘animal’ se denominem entidades segundas” (ib., 5,
2a16-18). Neste caso, a palavra ousía passa a significar o conjunto dos predicados
essenciais que definem um indivíduo. (Os indivíduos se denominam entidades
primeiras). c) Aquelas realidades que são capazes de existência independente,
autônoma, isto é, as “substâncias” (na acepção tradicional deste termo), em oposição
aos acidentes. d) O sujeito físico do movimento, isto é, o que permanece idêntico como
substrato das distintas modificações resultantes do movimento. e) Por último, o sujeito

2
A conveniência de traduzir o termo grego ousía por “entidade” foi também defendidade por C. García
Gual, “A tradução e a Metafísica de Aristóteles”, Emerita, 35 (1967), 91-104.
lógico-gramatical da predicação, do discurso predicativo: “o que não se predica de um
sujeito, senão que os demais se predicam dele” (Metafísica, VII, 2, 1029a8). O termo
ousía se insere pois, num conjunto de oposições que determinam seu significado, como:
indivíduo frente aos gêneros-espécies, predicados essenciais frente a predicados
acidentais, substância frente a acidentes, sujeito permanente frente às determinações
sucessivas do movimento e o sujeito do discurso predicativo frente aos predicados dele.
A teoria aristotélica da ousía, da entidade, é, pois, muito complexa e somente uma
compreensão adequada dela permite que se inicie a abordagem do problema da alma, a
qual se oferece em nosso tratado.

B) O conceito de ousía, de entidade, tem seu enquadramento na teoria das categorias.


No livro das Categorias – ao que fizemos referência anteriormente – a teoria é
introduzida em função dos juízos predicativos. Aristóteles começa distinguindo (Cat., 2,
1a15) dois tipos de expressões: aquelas que constituem juízos ou proposições, por
exemplo, “um homem corre”, e aquelas que não são juízos, como “homem”, “corre”,
etc. Estas últimas são os elementos a partir dos quais se formam os juízos ou
proposições. A teoria das categorias é constituída pela classificação de tais termos ou
locuções simples (ib. 5, 1a5). Nem todos os termos, no entanto, são classificáveis em
alguma das dez categorias (os conectivos ficam fora do esquema), senão somente as
palavras que cumprem uma função significativo-designativa. Daí que o esquema das
categorias constitua também uma classificação das coisas designadas por meio de
palavras, isto é, uma classificação dos distintos tipos de realidade.

Em seu significado técnico como predicados, o quadro categorial parece responder na


obra de Aristóteles a duas perspectivas distintas sobre a linguagem predicativa: a)
Tomemos, em primeiro lugar, como sujeito da predicação a uma entidade primeira, a
um indivíduo, Sócrates, por exemplo. Em tal caso, as categorias constituiriam uma
classificação de todos os possíveis tipos de predicados suscetíveis de lhe serem
atribuídos: Sócrates é... homem (ousía, entidade), pequeno (quantidade), honesto
(qualidade), etc. É evidente que neste exemplo – quando o sujeito do discurso é para os
distintos predicados uma entidade primeira, individual – o único predicado essencial
(isto é, o único que expressa o que é o sujeito) é a entidade (entidade segunda, neste
caso: gêneros-espécies). b) Suponhamos, em segundo lugar, que o sujeito é, em cada
proposição, uma realidade distinta pertencente à mesma categoria que o predicado:
Sócrates é homem, a honestidade é uma virtude (qualidade), etc. Neste segundo
exemplo, o discurso é sempre e em cada caso essencial já que em todos eles expressa o
que é o sujeito.3 A peculiaridade da categoria primeira (a entidade) frente às nove

3
Ambos os aspectos da teoria das categorias como classificação de predicados aparecem claramente
expostos no seguinte texto dos Tópicos: “é claro, a partir de tudo isso, que o discurso o qual expressa a
essência (tí esti) se refere algumas vezes à entidade, outras à quantidade e outras a qualquer das categorias
restantes. Por exemplo, se ante a presença de um homem afirma-se que o que está presente é um homem
ou um animal, diz-se a essência (tí esti) e refere-se à entidade. E se ante a presença de uma cor branca
afirma-se que o que está presente é branco ou cor, diz-se a essência e refere-se à qualidade. E, igualmente,
se ante a presença da magnitude de um cotovelo afirma-se que o que está presente é a magnitude de um
cotovelo, diz-se a essência e refere-se à quantidade. Pois cada um desses, se se afirma de si mesmo – ou
restantes se mostra na circunstância de que, quando o predicado pertence a ela
(entidades segundas, gêneros-espécies), o sujeito pertence necessariamente também a
ela (entidade primeira ou segunda, de acordo com o caso).4 Em outras palavras, o
discurso dentro da categoria “entidade” é sempre um discurso essencial.5

Esta é, em linhas gerais, a situação da teoria nos livros aristotélicos relativos à lógica.
Neles, no entanto, não são suficientemente esclarecidas certas questões importantes.
Destas, a mais notória é a relativa às entidades segundas, ao sentido que há chamar-lhes
entidades e à sua relação com as entidades primeiras ou indivíduos. Assim, no c. 5 das
Categorias (3b10-23) é estabelecido como algo característico da entidade em geral que
ela significa “um isto” (tóde ti). Quanto às entidades primeiras, o assunto é claro:
“Sócrates”, “Platão”, etc., são palavras que designam realidades concretas, cumprem
uma função deíctica, são, em última instância, demonstrativos. No caso das entidades
segundas (gêneros e espécies), a questão é, todavia, bem diferente e Aristóteles mesmo
indica que, mais do que “um isto” (tóde ti), significam “um de tal tipo ou qualidade”
(poión ti): afirmar que Sócrates é homem equivale, com efeito, a afirmar que “Sócrates
é uma entidade de certo tipo ou qualidade, a saber, a humana” (Cat., 5, 3b). Este
problema não é, aliás, uma questão puramente semântica, isto é, não diz respeito
meramente ao discurso, senão que no nível da realidade extralinguística remete ao
problema da relação existente entre aquilo que denominamos entidades segundas
(gêneros e espécies) e aquilo que denominamos entidades primeiras (indivíduos,
exemplares das distintas espécies). Trata-se, definitivamente, do problema do
platonismo.

C) É na Metafísica – e muito especialmente nos livros centrais da mesma – que


Aristóteles parece responder adequadamente à ambiguidade relativa à entidade logo
acima indicada, assim como a outras questões afins não aclaradas suficientemente nos
tratados de lógica. A abordagem aristotélica torna-se possível neste caso pela introdução
de duas teorias de suma importância: a teoria concernente à pluralidade de significações

seu gênero – significa a essência; mas se se afirma de outro, não se diz a essência, senão a quantidade, a
qualidade ou qualquer das categorias restantes” (I, 9, 103b27).
4
Ou seja, quando o predicado de algo pode ser classificado dentro da categoria “entidade”, esse algo do
qual se predica necessariamente é também uma entidade. Considerem-se as seguintes proposições: a)
Sócrates (entidade primeira) é homem, animal (entidades segundas); b) o homem (entidade segunda,
espécie) é animal (entidade segunda, gênero). No primeiro exemplo, os predicados podem ser ou
“homem” ou “animal”, que são entidades segundas (“homem” se refere à espécie, “animal” ao gênero); e,
no segundo exemplo, o predicado “animal” (que se refere ao gênero) é também uma entidade segunda.
Portanto, se o predicado de algo está na categoria “entidade”, o sujeito do qual se predica necessariamente
é ou uma entidade primeira (indivíduo) ou uma entidade segunda (espécie).
5
É sempre um discurso essencial pois não se refere a atributos da entidade. Quando o predicado de algo
não se encaixa na categoria “entidade”, mesmo que esse predicado seja uma essência, o discurso não é
essencial: é , digamos, acidental. Por exemplo, considerem-se as seguintes afirmações: “o branco é uma
cor”, “a honestidade é uma virtude”. “Cor” não está na categoria “entidade”, pois “cor” não pode existir
fora de uma entidade que tenha alguma cor particular, ainda que “cor”, como predicado, seja uma
essência. Da mesma forma, “virtude” não pode ser classificada dentro da categoria “entidade”, pois
“virtude” não pode existir fora de uma entidade que possua alguma virtude particular, ainda que
“virtude”, como predicado, seja uma essência.
de “ser” e “ente” e a teoria hilemórfica. Aquela recai primariamente sobre a língua; esta,
sobre a estrutura da realidade extralinguística.

O c. 1 do livro VII da Metafísica se situa dentro do esquema das categorias entendidas


conforme às primeiras das perspectivas que indicamos mais acima, isto é, como
classificação de todos os possíveis predicados para um discurso cujo sujeito seja uma
entidade primeira. Sobre as coisas – observa Aristóteles – é possível a nós formular
afirmações de condições e classificações muito diferentes: cabe, por exemplo, dizer que
são, mas também cabe dizer onde, quando, de que tamanho, como são. Pois bem, foi-
nos dito que, entre todas estas possibilidades de falar sobre a realidade, a primeira e
original (prôton) é aquela que se articula conforme ao esquema lógico-linguístico: “o
que é isto?”. É óbvio e trivial que, em cada caso, a resposta concreta dependerá do tipo
de realidade a que se aponte com tal pergunta, mas é importante salientar que, em
qualquer caso, as distintas respostas deverão ter uma estrutura idêntica. A resposta terá
de ser sempre um nome que signifique dentro da categoria de entidade: a isto aponta
Aristóteles ao assinalar que a resposta terá de ser do tipo “(isto é) um homem ou um
deus” (1028a15-18).6 Essa resposta, por sua vez, poderá ser ulteriormente determinada:
podemos acrescentar que se trata de um homem ou sentado ou andando ou bom, mas
em tal caso falaríamos já de determinações ou afecções (acidentes) dessa entidade
concreta e individual que chamamos homem. Afecções ou acidentes cujo sujeito
(hypokeímenon) é a entidade no duplo sentido daquela palavra, isto é, tanto no sentido
de sujeito físico da aderência (“pois nenhum acidente tem existência nem pode dar-se
separado da entidade”. Ib. 1028a23), quanto no sentido de sujeito lógico da predicação
(“pois bom ou sentado não se diz sem esta7”. Ib. 1028a28).

Ousía, entidade, é, portanto, aquilo que realiza a função dupla e coordenada de ser
substrato físico de determinações e sujeito lógico ou referente último da nossa
linguagem acerca da realidade. Desde um ponto de vista metafísico, esta dupla
caracterização traz em si a possibilidade de um monismo materialista: não se deve
concluir que a única entidade real é a matéria, substrato último de todas as
determinações reais (posto que as entidades primeiras ou indivíduos não seriam senão
modificações da matéria) e por conseguinte sujeito último de toda predicação?8 Apesar

6
Ou seja, à pergunta “o que é isto?” responde-se sempre com um predicado da categoria “entidade”, seja
tal predicado um deíctico (entidade primeira), uma espécie ou um gênero (entidades segundas).
7
“Esta” aqui se refere à categoria lógica “entidade”.
8
“[...] com efeito, tudo o mais não são senão afecções, ações e potências dos corpos, e a longitude, a
latitude e a profundidade são distintos tipos de quantidade, mas não entidade (a quantidade não é, desde
logo, entidade); logo, entidade será, antes, o sujeito último em que se dá tudo isso. E eliminadas a
longitude, a latitude e a profundidade, descobrimos que nada resta, a não ser que haja algo delimitado por
elas; pelo que, aos que adotam esse ponto de vista, por força há de lhes parecer que não há entidade a não
ser a matéria. Por minha parte, chamo matéria aquilo que por si mesmo não pode ser denominado nem
algo, nem quantidade, nem nenhuma outra das determinações do ente. Trata-se, com efeito, de algo do
qual se predica cada uma dessas determinações, algo cujo ser é distinto do de cada uma das categorias (e
assim como as demais se predicam da entidade, esta por sua vez se predica da matéria) [...] os que
partirem dessas considerações descobrirão, portanto, que a matéria é entidade” (Met., VIII, 3,
1029a1127).
da veemência desse raciocínio, Aristóteles se nega a aceitar semelhante conclusão
monista. A negativa aristotélica se justifica pela indeterminação própria da matéria, que
a torna incapaz de constituir o sujeito de algum discurso essencial. Com efeito, a
pergunta “o que é a matéria enquanto tal, isto é, para além de todas as suas
determinações?” escapa a toda possibilidade de discurso definitório.9 Deve-se levantar
essa pergunta em termos tais como: “o que é a matéria no caso da água, da árvore,
etc.?”, pelo que o sujeito da pergunta – e da resposta correspondente – já não é a matéria
enquanto tal, senão um tipo determinado de matéria. Situado nessa encruzilhada,
Aristóteles estabelece como características fundamentais da entidade, da ousía, o ser
algo individualizado, distinto (choristón), isto é, algo determinado (um isto, tóde ti).10
Deste modo, regressamos ao ponto de partida, fechando o círculo a partir do qual se
origina a teoria aristotélica da entidade: posto que o discurso essencial se origina na
pergunta “o que é isto?”, aquele a que esta pergunta se refere há de ser “um isto”, isto é,
uma entidade primeira, individual. O passo seguinte leva-se a cabo facilmente, sem
esforço. O sujeito e referente último do discurso deve ser algo determinado e a matéria é
indeterminada; “o que é aquilo que faz com que a matéria saia de sua indeterminação e
venha a ser algo determinado?; evidentemente, a forma. No âmbito das realidades
naturais, o sujeito que se busca será, portanto, a matéria determinada pela forma, o
composto hilemórfico.

Nesta discussão acerca da matéria como entidade, cabe distinguir dois aspectos da questão. Há, em
primeiro lugar, um aspecto da questão que afeta de maneira direta ao léxico, à língua: é correto utilizar a
palavra ousía para designar a matéria? De fato a língua grega o permite, e Aristóteles mesmo o faz
frequentemente; mas também de direito, pois a matéria cumpre com as funções indicadas que, no juízo de
Aristóteles, é nota fundamental da significação de tal termo. Há, em segundo lugar, um aspecto da
questão que está subjacente e não se reduz à mera utilização da palavra: ousía – no sentido mais genuíno
desse termo – é aquela realidade que constitui o referente último do discurso essencial e, portanto, há de
ser uma realidade determinada e não indeterminada como a matéria. Diríamos que a matéria, segundo
Aristóteles, fica abaixo da linha de flutuação do discurso. O que é linha de flutuação? É um termo náutico
que designa a linha d’água que separa a parte submersa do casco do navio e a sua parte seca.
9
Como explicado na nota de n. 5, o discurso essencial se caracteriza por seu predicado ser uma entidade
segunda (gênero ou espécie), e isso necessariamente implica que o sujeito do qual se predica seja também
ou uma entidade segunda (espécie) ou uma entidade primeira (indivíduo). Com efeito, tudo o que existe
concretamente possui alguma determinação, pois se dizemos, por exemplo, que algo é madeira, este algo
é um composto de matéria e daquilo que determina essa matéria como madeira. Daí que se diz que a
matéria em si mesma, separada daquilo que a determina como "um isto" (entidade primeira) o qual pode
ser fisicamente demonstrado e do qual se pode predicar a espécie ou gênero (entidades segundas), seja
totalmente indeterminada, seja pura potência. Por quê? Ora, sem aquilo que a determina como "um isto",
a matéria, poderíamos dizer, é um "não isto", um nada, pois de fato não é possível que se aponte no
mundo natural, como no caso das entidades primeiras, para uma matéria que não seja determinada de
alguma forma. Mas também não é correto dizer que a matéria em si mesma e sem determinações não
exista e seja um nada, pois se ela não existisse e fosse um nada, nada poderia vir a ser alguma coisa.
Então, qual o seu modo de existência? Ela existe como potência pura, a qual pode receber qualquer tipo
de determinação que a constitua como "um isto" o qual pode ser de tal espécie e gênero. E se a matéria
em si mesma e enquanto tal é pura potência, pura indeterminação, é impossível que se lhe atribua algum
tipo de predicado essencial que a determine de alguma forma, pois aí já estaríamos falando de uma
realidade composta por dois aspectos: a própria matéria, que em si e enquanto tal é entidade capaz de ser
determinada, e aquilo que a determina e a constitui como um ente natural o qual pode ser classificado
como “um isto” (entidade primeira, indivíduo), “um homem” ou “um animal” (entidades segundas,
espécie-gênero).
10
“À entidade parece corresponder de maneira especialíssima o ser algo distinto (choristón) e algo
determinado (tóde ti)” (Ib. 1029a27-28).
D) A pergunta primária e original (“o que é isto?”) e sua resposta pertinente (por
exemplo, “um homem”) recaem sobre a entidade primeira, individual. O discurso não
termina, no entanto, aqui, pois cabe prolongá-lo a um segundo nível: e o que é um
homem? A resposta a essa pergunta vem, por sua vez, a recair sobre o que em filosofia
costuma se denominar “essência” pela força do uso e da tradição. Ao tema da essência
(palavra essa que serve para traduzir a expressão aristotélica tò tí ên eînai) dedica
Aristóteles um conjunto de discussões tão interessantes quanto complicadas. 11 Nos
limitaremos a acompanhar o fio da meada de um dos aspectos da questão.

A essência é o conteúdo da definição. Com efeito, o que é o homem se manifesta e se


expressa em sua definição. Esta, por sua vez, constitui uma frase, um enunciado
complexo. Daí a definição de homem como “vivente-animal-racional” ou então como
aquele ser que “nasce, alimenta-se, cresce, reproduz-se, envelhece e morre (vivente),
sente, deseja e se desloca (animal) e, por fim, intelige, raciocina e fala (racional)”. Uma
definição se compõe, pois, de partes. E quais partes do definido contém o enunciado da
definição? Trata-se de uma questão a que Aristóteles concede notável importância e
cuja resposta há de ser cuidadosamente trabalhada. Não se deve confundir a perspectiva
desde a qual se define o homem físico e a perspectiva desde a qual se define o
metafísico. Situando-se nesta última perspectiva, Aristóteles considera que a definição
não deve incluir as partes materiais do composto (tal seria o caso de uma definição de
homem que enumerasse seus membros, tecidos e órgãos), senão somente as partes da
forma específica, as partes daquilo que Aristóteles denomina eîdos (Met., VII, 10,
1035a15).12

Ao chegar-se a esse ponto, torna-se necessário chamar a atenção sobre o significado do


termo eîdos. Ele se traduz frequentemente apenas pela palavra latina “forma”. Essa
maneira de traduzi-lo não mereceria qualquer tipo de comentário, não fosse também a
palavra “forma” aquela que é utilizada para se traduzir o termo grego morphê.
Traduzidos ambos os termos pela mesma palavra, o leitor se vê forçado a considerá-los
como sinônimos, desbotando-se em grande medida o significado preciso que o termo
eîdos possui em contextos decisivos como o que estamos analisando. 13 A distinção

11
O c. 5 desse livro VII da Metafísica é dedicado a elucidar o que é essência. Essa questão é
especialmente pertinente a Aristóteles já que – de acordo com o texto citado mais acima dos Tópicos, I, 9,
103b27 – é possível haver um discurso essencial a respeito das realidades compreendidas em todas e cada
uma das categorias, isto é, cabe expressar não somente o que é uma entidade, senão também o que é uma
cor, etc.: portanto, há essência não somente das entidades, senão também dos acidentes. A resposta
definitiva de Aristóteles é que “a essência ou é algo exclusivo das entidades ou, no mínimo, corresponde a
elas primária, principal e absolutamente” (1031a11-14). Essa resposta se justifica na importante doutrina
aristotélica de que as palavras “ente” e ‘ser” possuem múltiplos sentidos, do quais o primário e
fundamental é o que corresponde à entidade. Mais acima aludimos à importância dessa doutrina em cuja
exposição e análise não nos foi possível entrar.
12
A prolixa e complicada discussão desse problema das partes da definição tem lugar no c. 10 deste livro
da Metafísica. Essa questão é abordada também no tratado Acerca d’alma, I, 1, 403a29-b16.
13
A esse perigo de equivaler ambos os termos não é alheio o próprio Aristóteles, ainda que ignore
frequentemente a distinção entre eles (por exemplo, utilizando expressões como morphê kaì eîdos)
quando o contexto não exige tal diferenciação. Porém, assim exige tal distinção o contexto que estamos
analisando e que é precisamente aquele em que se situa a explicação aristotélica da alma. A esse respeito,
existente entre morphê e eîdos neste contexto é a que existe entre a estrutura de um
organismo vivente e as funções ou atividades vitais que tal organismo realiza.14 O eîdos
é o conjunto das funções que correspondem a uma entidade natural. O conjunto de tais
funções constitui a essência da entidade natural (ib. 1035b32) e por conseguinte
constitui também o conteúdo de sua definição, de acordo com o modelo de definição de
homem que mais acima propusemos.

E) O discurso acerca da entidade natural – que em seu segundo nível nos levou à
pergunta “o que é um homem?” e desta à essência e à definição – há de se prolongar
ainda a um terceiro nível ao qual corresponderia a pergunta: e por que isto é um
homem?15 Esse terceiro momento do discurso possui uma importância decisiva já que,
no momento anterior, a matéria ou os elementos materiais não haviam sido
considerados por ter-se o discurso centrado exclusivamente na essência entendida como
eîdos. Esse novo nível e essa nova pergunta restauram a composição hilemórfica da
entidade a que o discurso se refere. Aristóteles ressalta, com efeito, como a pergunta
recai diretamente na matéria: perguntar “por que isto é um homem?” equivale a
perguntar por que estes elementos materiais estão organizados de modo tal que
constituam um homem. A resposta, por sua vez, deve-se buscar na forma específica, no
conjunto de funções a que serve tal organização material: “logo, o que se pergunta é a
causa pela qual a matéria é algo determinado, e esta causa é a forma específica (eîdos)
que, por sua vez, é a entidade (ousía)” (ib., VII, 17, 1041b6-9).

A teoria aristotélica da entidade natural torna-se completa nesse último momento do


discurso. O eîdos, o conjunto de funções que corresponde a uma entidade natural,
aparece como causa da entidade natural mesma. Não se trata, obviamente, de uma causa

vale salientar que a alma não é denominada morphê por Aristóteles em nenhuma ocasião, mas é sim
denominada eîdos muitas vezes. (Há textos em que – tratando-se da alma – utiliza-se morphê kaì eîdos e
ainda em tais casos essa expressão não se aplica de maneira direta à alma; não há nenhum texto em que
esta seja denominada somente morphê e muitos há em que ela é denominada eîdos. Para evitar confusões,
costumamos traduzir eîdos não simplesmente como “forma”, senão como “forma específica” naquelas
passagens em que a confusão é possível).
14
Isto é, o olho, por exemplo, é a estrutura material pela qual se dá o ato perceptivo da visão. Da mesma
forma, a mão é a estrutura material pela qual se realiza o ato de segurar, agarrar, pegar objetos e coisas.
Percebe-se aqui então uma diferença muito nítida entre o mero formato de algo e a sua função específica:
no caso do olho, sua função é a visão; no caso da mão, sua função é segurar, agarrar, pegar objetos e
coisas. Daí o famoso exemplo de Aristóteles de que uma mão cortada tem apenas o formato de mão e não
a sua forma específica, pois, machucada, não pode realizar a função específica a que serve, isto é, segurar,
agarrar, pegar objetos e coisas. Portanto, quando se trata de definir uma entidade natural (composta de
matéria e forma específica), de dizer a sua essência, deve-se predicar não o conjunto que forma a sua
estrutura corporal, mas sim o conjunto de funções a que tal estrutura corporal serve. Pois, se assim não
fosse, se definíssemos uma entidade natural pela sua estrutura corporal, que diferença haveria na
definição de um homem e a definição de uma estátua de homem? Fica claro, pois, a necessidade de a
definição expressar esse conjunto de funções, uma vez que tal conjunto de funções pressupõe uma
estrutura material que lhe sirva de suporte, enquanto a mera estrutura material não nos deixa pressupor
que haja de fato a realização de determinadas funções.
15
A primeira pergunta foi “o que é isto?”, cuja resposta foi o enunciado “é um homem” (entidade
segunda, espécie). A segunda pergunta foi “o que é um homem?”, cuja resposta foi a definição, a
essência, a forma específica, o eîdos “vivente-animal-racional”. Por fim, chega-se agora a esta terceira
pergunta: “e por que isto é um homem?”.
ou agente exterior: a causalidade da forma específica é imanente. 16 Na qualidade de
causa imanente Aristóteles denomina “entidade” (ousía) à forma específica, recolhendo
assim uma das significações básicas do termo ousía expostas no livro V da Metafísica:
“Noutro sentido, [denomina-se ousía] aquilo que é causa imanente do ser de quantas
coisas não se predicam de um sujeito; tal é, por exemplo, a alma para o animal”
(1017b14-16).17 Por último, o eîdos ou forma específica não é somente a essência e a
causa imanente de uma entidade natural, senão também sua causa final ou fim. A
pergunta “por que estes elementos materiais são um homem?” somente é respondida
plenamente quando tais elementos são considerados desde o ponto de vista da função a
que estão destinados e servem: a atividade específica do ser humano que constitui sua
razão de ser, sua finalidade.18 Desse modo, chega-se à tese aristotélica mais radical a
respeito da natureza: a forma específica como finalidade imanente, isto é, como télos,
como atualidade, ato ou atividade que é um fim em si mesma.

F) Após esta necessária viagem pela teoria aristotélica da entidade, voltemos agora às
duas questões que Aristóteles considera fundamentais acerca da alma: é a alma entidade
ou, pelo contrário, é uma determinação acidental do vivente? É ato, atualidade ou mais
apropriadamente deve ser considerada como uma potência, como uma capacidade dos
organismos vivos? A resposta a ambas as perguntas – largamente elaborada no livro II
do tratado Acerca d’alma – é dada nos termos que expusemos anteriormente. Aristóteles
estabelece e afirma repetidas vezes que a alma é essência (tò tí ên eînai), forma
específica (eîdos) e entidade (ousía) do vivente. Suas idéias a respeito são expressas
concisamente nas seguintes palavras: “Fica demonstrado, portanto, de maneira geral, o
que é a alma, a saber, a entidade definidora (ousía katà lógon), isto é, a essência de tal
tipo de corpo”19 (II, 1, 412b9). Sendo forma específica do vivente, a alma constitui

16
A causalidade – imanente – da forma específica ou eîdos deve ser entendida de duas maneiras: a) um
conjunto de elementos materiais constitui uma entidade determinada na medida em que tais elementos
materiais são aptos a realizar e realizam as funções pertinentes; b) no caso dos seres viventes, ademais, o
eîdos é a causa geradora dos elementos materiais e de sua estruturação; são, com efeito, as funções vitais
mesmas (alimentação e crescimento ou desenvolvimento) as que vão produzindo os distintos órgãos a
partir da semente ou do embrião. Trata-se de uma concepção dialética, circular da causalidade na medida
em que a função produz a estrutura (as atividades vitais mesmas criam e segregam os distintos órgãos) e a
estrutura, por sua vez, serve à função, embora a prioridade caiba a esta última, ao eîdos.
17
Está-se querendo dizer aqui, basicamente, que, noutro sentido, denomina-se ousía aquilo que é a causa
imanente, isto é, a forma específica que determina aquelas coisas as quais não podem ser predicadas de
um sujeito. E o que são essas coisas que não podem ser predicadas de um sujeito? Como vimos
anteriormente, os elementos materiais, a matéria. Esta enquanto tal e sem qualquer tipo de determinação
não pode sequer ser objeto de discurso e muito menos de demonstração. Como foi dito no tópico C), só é
possível o discurso sobre algum tipo de matéria já determinada, como, por exemplo, o homem. O que é a
matéria no caso do homem? É aquilo que é determinado pela forma específica (eîdos) “homem”, forma
essa que constitui tal composto hilemórfico na realidade natural.
18
“Por que estes elementos, por exemplo, tijolos e pedras, são uma casa?; é óbvio que a pergunta se
refere à causa; e esta, desde o ponto de vista da definição, é a essência, que por sua vez é, em alguns
casos, o fim (tínos héneka)” (ib. 1041a26-29). Neste texto, ressalta-se como o terceiro dos níveis que
distinguimos no discurso se refere à essência enquanto fim ou finalidade.
19
Vale citar outras passagens do livro VII da Metafísica em que se expressa o mesmo. Assim, no c. 10,
lê-se: “[...] a alma dos animais (ela é, com efeito, a entidade do ser animado) é a entidade enquanto
definição, a forma específica e a essência de um corpo de tal tipo [...]” (1035b14-16). No c. 11 do mesmo
livro, pode-se ler: “[...] a definição de homem é a definição de alma; a entidade é, com efeito, a forma
também seu fim imanente e, portanto, sua atualização ou enteléquia: “logo, a alma é
necessariamente entidade enquanto forma específica de um corpo natural que em
potência tem vida. Pois bem, a entidade é enteléquia, logo a alma é enteléquia de tal
corpo” (ib., 412a20-23).

A coerência da explicação aristotélica se baseia na afirmação fundamental de que a


alma é o eîdos, a forma específica do vivente: precisamente por sê-lo, é também sua
entidade e enteléquia. Agora, quais as implicações dessa afirmação fundamental de que
a alma é a forma específica do vivente? Mais acima ressaltamos que a forma específica
é o conjunto das funções que correspondem a uma entidade natural: portanto, a forma
específica de um vivente serão as atividades ou funções vitais (alimentação, reprodução
etc.) que em seu conjunto costuma-se denominar “vida”. A teoria aristotélica parece
favorecer deste modo a identificação da alma com a vida. Se isso é assim, não fica a
alma desprovida de substancialidade, de existência e realidade autônomas? Não se
trataria, definitivamente, de uma maneira discreta de eliminar a alma mantendo – isso
sim - a palavra “alma” como um mero sinônimo da palavra “vida”?

A identificação da alma com a vida, a equivalência de ambos os termos, insinua-se em


nosso tratado como uma possível consequência interna da abordagem aristotélica. Nos
limitaremos a voltar a atenção do leitor sobre duas passagens cruciais a respeito. A
primeira delas diz o seguinte: “entre os corpos naturais, há os que têm vida e há os que
não a têm (e costumamos chamar vida a nutrição própria, o crescimento e o
envelhecimento). Donde resulta que todo corpo natural que participa da vida é entidade,
mas entidade no sentido de entidade composta. E posto que se trata de um corpo de tal
tipo – a saber, que tem vida – não é possível que o corpo seja a alma” (ib., 412a12-17).
Volvamos as atenções nas linhas que destacamos: na premissa se estabelece que o
vivente é composto pelo sistema “corpo/vida” (o vivente é um corpo que tem vida),
enquanto que, na conclusão, este sistema é substituído pelo outro de “corpo/alma” (isto
é, o vivente é um corpo que tem alma: a alma não é corpo).20 O segundo texto a que
aludiremos corresponde à célebre e conhecida definição aristotélica de alma: “logo, a
alma é enteléquia primeira de um corpo que em potência tem vida” (ib., 412a27-28). 21
De acordo com o sistema aristotélico, ato ou enteléquia é sempre e em cada caso o
cumprimento adequado da potência que se atualiza. Portanto, o ato ou enteléquia de um
corpo que em potência tem vida há de ser precisamente a vida, e não qualquer outra

específica imanente de cuja união com a matéria resulta o que denominamos entidade composta [...]”
(1037a28-30).
20
Entre os comentaristas, Sofonias se apercebeu de certo modo da quebra introduzida na argumentação
nessa passagem aristotélica. Suas palavras restabelecem a coerência do texto em seu aspecto formal: “O
que possui vida é, pois, um corpo e tal tipo de corpo. Portanto, é composto de corpo e vida (ek zoês kaì
sómatos): aquele (o corpo) enquanto sujeito e matéria; esta (a vida), enquanto está no sujeito como
forma” (ad loc.).
21
O que significa a palavra enteléquia? No aristotelismo, enteléquia significa a realização plena e
completa de uma tendência, potencialidade ou finalidade natural, com a conclusão de um processo
transformativo até então em curso em qualquer um dos seres animados e inanimados do universo. Ou
seja, enteléquia é a atualização de uma potência; enteléquia, no caso da alma, é o ato primeiro pelo qual o
corpo natural passa da mera potencialidade de ter vida para tornar-se de fato um vivente.
coisa. Não obstante, Aristóteles nos oferece a alma em seu lugar. Como no caso
anterior, a coerência interna do texto parece exigir a identificação de alma (psyquê) e
vida (zoê).

A dessubstancialização da alma é, pois, uma poderosa possibilidade interna da teoria


aristotélica acerca do vivente. Esta dessubstancialização da alma poderia se dar de dois
modos diferentes. De fato, ao se situar a alma entre o corpo e a vida, e ao se tentar
conceituá-la desde a teoria de potência e ato, não somente caberia a possibilidade de
reduzir a alma ao ato identificando-a com a vida, senão que caberia também a
possibilidade de reduzi-la à potência identificando-a com a capacidade do organismo
para viver. Esta última possibilidade – da qual existem também indícios em nosso
tratado22 - foi a que historicamente obteve mais êxito na escola aristotélica primitiva.
Pelo que sabemos, para Aristóxenos a alma já não é senão a harmonia ou equilíbrio
entre as distintas funções do organismo. Em idêntica direção se movem Estratón e
Dicearco. Este – discípulo imediato de Aristóteles – recorre também ao conceito de
equilíbrio corporal para afirmar que “não existe alma”, que ela é algo “insubstancial”
(anoísios).23 Por mais que Aristóteles tenha criticado e rechaçado a doutrina da alma-
harmonia,24 a alma agora significa, mais ou menos, o que em linguagem naturalista os
médicos chamam saúde: o equilíbrio estrutural e funcional do organismo que o torna
capaz de realizar as funções vitais.

22
Podemos ler o seguinte texto em nosso tratado: “Mas também é necessário considerar o que acabamos
de dizer em relação com as distintas partes do corpo. Com efeito, se o olho fosse um animal, sua alma
seria a visão: esta é, desde logo, a entidade definidora do olho. O olho, por sua vez, é a matéria da visão,
de maneira que, faltando esta (a visão), aquele (o olho) não seria absolutamente olho, a não ser pelo seu
nome, como é o caso de um olho esculpido em pedra ou pintado. Procede ademais aplicar à totalidade do
corpo vivente o que se aplica às partes, já que, tal como a parte está para a parte, também a totalidade da
potência sensitiva está para a totalidade do corpo que possui sensibilidade como tal. Ora, o que está em
potência para viver não é o corpo desprovido de alma, mas sim aquele que a possui. Sementes e frutos,
por sua vez, são tal tipo de corpo em potência. A vigília é enteléquia à maneira em que o são a visão e o
ato de cortar; a alma, pelo contrário, o é à maneira da visão e da potência do instrumento. O corpo, por
sua vez, é o que está em potência. Mas assim como o olho é a pupila e a visão, no outro caso – e
paralelamente – o animal é a alma e o corpo” (II, 1, 412b17-13a3).
A teoria aristotélica da alma funciona de maneira dupla e opositiva: frente ao corpo e frente à vida ou
funções vitais. Frente ao corpo, a alma se destaca como ato; frente à vida, a alma aparece como potência.
Esta segunda é a perspectiva a qual corresponde o texto transcrito, no qual os exemplos utilizados são
dois: o olho e o machado. O olho se define pela capacidade de ver (visão) e o machado pela capacidade
de cortar: tais capacidades ou potências constituem sua essência. Analogamente, ressalta Aristóteles, o
vivente se define por sua capacidade de viver, sendo esta a sua essência, isto é, sua alma. O parágrafo
oferece o mesmo paradigma para os três casos: a) instrumento de ferro (= matéria)/ capacidade de cortar
(= eîdos)/ ato de cortar; b) pupila (= matéria)/ capacidade de ver, de visão (= eîdos)/ ato de ver, de visão;
c) corpo (= matéria)/ capacidade de viver (= eîdos)/ atividade ou funções vitais. É óbvio que nos três
casos aludidos a capacidade ou potência está determinada pelo tipo de matéria que a possui, assim como
pela estrutura e disposição peculiares desta (da matéria). De certa maneira, esta explicação pode ser
tomada como apoio para a redução da alma à potência, à estrutura e equilíbrio corporais.
23
Sobre este ponto, pode-se ver as observações de Ortega y Gasset em sua obra La idea de princípio em
Leibniz, Buenos Aires, 1958, c.18, págs. 163 e seguintes.
Tanto Aristóxeno como Dicearco procediam do pitagorismo. Portanto, seria exagerado supor que sua
doutrina acerca da alma seja resultado de uma evolução do aristotelismo. Sua origem é evidentemente
pitagórica. No entanto, não é menos certo que fosse possível tentar encaixar essa doutrina dentro de uma
determinada linha de interpretação do aristotelismo.
24
A crítica de Aristóteles à doutrina da alma-harmonia se acha no livro I, c. 4, de nosso tratado (407b27-
408a30).
Apesar do que expusemos, é fato que Aristóteles não leva a cabo a dessubstancialização
da alma através de nenhuma das duas possíveis reduções a que nos referimos. A
metafísica aristotélica caminha por outras vias, impostas pela afirmação da autonomia
da vida com relação à matéria, e esta autonomia da vida com relação à matéria é o que
justifica, em último caso, a autonomia ativa da alma com relação ao corpo.25 26 Tal linha
de pensamento acaba prevalecendo ao longo do tratado Acerca d’alma. Ressurge assim
inevitavelmente a imagem tradicional do corpo como órgão, como instrumento do qual
a alma se serve: “pois é necessário que a arte se sirva de seus instrumentos, e que a alma
se sirva de seu corpo” (I, 3, 407b25-27). A alma não se reduz ao conjunto das funções
vitais, senão que – para além destas – aparece como o agente ativo regulador de sua
coerência e harmonia.27 É certo que Aristóteles insiste em que o sujeito o qual realiza as
atividades vitais não é a alma, senão o vivente enquanto entidade composta: “não é a
alma que se compadece, aprende ou discorre, senão o homem em virtude da alma”

25
Aparentemente, Aristóteles recorre no tratado Acerca d’alma a uma observação de tipo empírica que
justificaria a distinção entre alma e vida: a interrupção de certas atividades vitais durante o sono. Observe-
se o seguinte texto: “[...] logo, a alma é enteléquia de tal corpo. Mas a palavra “enteléquia” entende-se de
duas maneiras: uma, no sentido em que o é a ciência, e outra, no sentido em que o é o teorizar. É, pois,
evidente que a alma o é [ou seja, é enteléquia] como a ciência: pois tendo-se alma pode-se estar dormindo
ou em vigília, e a vigília é análoga ao teorizar, enquanto o dormir é análogo a possuir a ciência e não
exercitá-la” (II, 1, 412a22-26).
Essa constatação empírica não deixa de ser trivial para efeitos de justificar a distinção entre alma e vida.
Com efeito, o dado de experiência proposto é perfeitamente incorporável na teoria de potência e ato sem
necessidade de afirmar a irredutibilidade da alma às atividades vitais. Em primeiro lugar (e isto sabia
perfeitamente Aristóteles, que o constata nos pequenos tratados dedicados ao sono), o ato de dormir não
faz cessar a vida, apenas algumas funções vitais. Porém, mesmo supondo-se possível a interrupção total
das atividades vitais, ainda caberia a explicação teórica para tal fato pela doutrina de ato e potência, sem a
necessidade de distinguir a alma das funções vitais. Sigamos imaginando e suponhamos que, em tal caso,
o corpo continua sendo potencialmente vivente, isto é, possui vida em potência. Ora, é tese aristotélica
que qualquer ser natural está em potência quando esta se atualiza sem nenhum impedimento (cf. Met., IX,
7). De acordo com essa tese, a presença ou ausência de impedimentos e a intervenção de agentes
exteriores bastariam para explicar o hipotético fenômeno em questão sem necessidade de supor a
existência de uma alma em tal corpo. (A não ser que venhamos a identificar a alma com a capacidade de
viver, em cujo caso escaparíamos de Sila para cair em Caríbdis.) A negativa aristotélica de reduzir a alma
ao conjunto das atividades vitais (ou a uma mera possibilidade de viver resultante da estrutura e estado do
organismo) obedece, sem dúvida, a outras razões de maior calibre que esta banal constatação empírica.
26
Ou seja, nem todo corpo possui em si a capacidade para realizar as funções vitais, e, por isso, a
capacidade de realizar tais funções vitais não provém do corpo enquanto tal. Respondendo à objeção de
que a alma seria a mera atualidade das funções vitais, da vida, podemos perguntar: qual o princípio pelo
qual um corpo é vivo? Pois o princípio pelo qual um corpo adquire a possibilidade de realizar as funções
vitais, não é a mesma coisa que o exercício mesmo dessas atividades. A isso, como demonstrado na nota
anterior, Aristóteles nos fornece como exemplo a vigília e o sono, dizendo que o ato de dormir não faz
cessar a vida, ainda que muitas atividades vitais, como a visão, por exemplo, não estejam atualizadas.
Também como exposto na nota anterior, possuir a capacidade para realizar as funções vitais não significa
que elas serão de fato realizadas, pois agentes externos podem interferir na atualização dessas potências.
No caso de um embrião humano congelado, ele possui alma ou não? Em si mesmo, ainda que não realize
as atividades vitais (alimentar-se, crescer etc.), ele as possui como potência, pois, colocado em um
ambiente propício, irá se desenvolver. Só que, nessa linha do argumento, poderíamos dizer então que a
alma é a mera potência do exercício das funções vitais. Mas então, por que alguns corpos possuem a
potência de realizá-las e outros não? Nesse ponto do raciocínio, a redução da alma ao exercício da vida
fica resolvida e a redução à mera potência fica resolvida, dizendo-se que a alma é o ato primeiro pelo qual
um corpo adquire a potência de realizar as funções vitais, ainda que, caso haja interferência de fatores
externos, tais funções podem de fato não se realizar.
27
Cf., por exemplo: I, 5, 411b5-9; II, 4, 415b28-a9.
(408b15-16); no entanto, compare-se esta veemente declaração com o que se estabelece
no seguinte texto da Metafísica: “[...] o ato está no agente mesmo, por exemplo, a visão
naquele que vê, a especulação naquele que especula e a vida na alma” (1050a34-b1).
Posto que a visão está no que vê e a especulação no que especula, a vida está
paralelamente no que vive. O texto disse que está na alma: o que vive é, pois, a alma, de
acordo com a estrutura lógica desse texto da Metafísica.28

Uma vez afirmada a irredutibilidade da alma, o quadro da explicação aristotélica da vida


resta definitivamente traçado de acordo com as seguintes linhas: a) O vivente se
especifica e se define por um conjunto de funções (nutrição, etc.). Tais atividades ou
atos são, em suma, o que denominamos vida. A vida é, portanto, atividade, ato. b) A
alma – a qual não se identifica com a vida – é também ato. Deste modo, a alma acaba
por ser a enteléquia ou ato primeiro do vivente, e a vida seu ato segundo. c) Mas todo
ato é ato de uma potência. Daí que a distensão ou hiato existente nos viventes naturais
entre o ato primeiro (alma) e os atos segundos (funções vitais) implique a existência de
potências correspondentes a estes últimos: à nutrição, sensação, etc., correspondem
outras tantas potências (nutritiva, sensitiva, etc.). São as potências ou faculdades da
alma.

A marca histórica garantidora de toda obra filosófica de primeira magnitude é a sua


capacidade de estimular a reflexão e promover o surgimento de desenvolvimentos
ulteriores, de linhas de pensamento que – procedendo dela- divirjam e se contraponham
entre si. Este tem sido o caso da doutrina acerca da alma e a vida exposta em nosso
tratado. Dentro das coordenadas conceituais desenhadas nele, polemizou-se
apaixonadamente sobre a natureza da alma, desde os discípulos mesmos de Aristóteles
até aos humanistas do Renascimento, passando pelos comentaristas antigos e as
distintas escolásticas medievais. Em antropologia filosófica, esta obra aristotélica
inspirou ininterruptamente toda uma corrente de pensamento que – sem esquecer sua
dupla vertente orgânica e anímica – insistiu poderosamente na unidade do ser humano.
Desta obra aristotélica procedem e a ela se remetem como à sua ata fundacional todas as
correntes vitalistas até nossos dias. Inclusive no próprio âmbito da mística (âmbito do
qual ninguém pareceria mais alheio à primeira vista do que o próprio Aristóteles) este
tratado serviu de inspiração e proporcionou elementos conceituais à filosofia árabe,

28
Essa ambiguidade no plano da teoria (quem é o sujeito que realiza as atividades vitais e em qual reside
a vida?) corresponde a uma ambiguidade paralela no plano do uso da linguagem por parte de Aristóteles
(sujeito gramatical dos verbos que expressam atividades vitais). No tratado Acerca d’alma podemos
distinguir três tipos de textos: a) Há alguns em que o sujeito dos verbos os quais expressam operações
vitais é um nome comum como “as plantas”, “os animais”, etc. (“as plantas crescem”, etc. Cf., por
exemplo: II, 2, 413a25-25; II, 2, 413b16-17; II, 8, 420b31-32). Essas expressões corresponderiam, no
plano da teoria, à afirmação de que não é o corpo nem a alma que vive, senão a entidade composta de
ambos. b) Há outros texto em que o sujeito dos verbos os quais expressam operações vitais é um pronome
pessoal (“vivemos”, “pensamos”, etc. Geralmente se trata, neste caso, de atividades cognoscitivas. Cf.: II,
2, 414a4-13; III, 1, 424b13 e seguintes; etc.). c) Há outros muitos, enfim, nos quais o sujeito de tais
verbos é a alma (“a alma alimenta, intelige, delibera, afirma, nega, deseja, foge ou persegue”, etc. Cf.,
entre muitos outros: II, 8, 420b27-29; II, 4, 416b20-23; III, 7, 431a14-17). Esse tipo de expressão
corresponderia, por sua vez, no plano da teoria, à doutrina de que é a alma que executa as operações vitais
e de que é nela que reside a vida.
através da teoria do Intelecto (noûs) não gerado e imortal do qual o homem participa.
(Mais adiante nos referiremos a esta doutrina aristotélica.) Igualmente notável é, enfim,
a influência desta obra de Aristóteles nos campos da psicologia e da teoria do
conhecimento, naquela através de sua teoria das faculdades, nesta através de sua
concepção de conhecimento como assimilação, como captação intencional das formas
das realidades conhecidas. Quanto a sua transcendência histórica, somente o Fedón de
Platão poderia, talvez, comparar-se a este tratado no que diz respeito ao tema da alma.

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