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Corpo e Pulsão

Marcus do Rio Teixeira

Antes de tudo, é necessário explicitar a que estamos aludindo ao falarmos de corpo,


evitando dessa forma nos referirmos ao corpo no sentido do senso comum: um dado evidente,
cuja mera evocação responderia às questões sem necessidade da teoria. É preciso, portanto,
delimitar a abordagem dessa noção. Trata-se, para nós, de uma definição do corpo muito
específica, aquela da psicanálise, presente nas teorias de Freud e Lacan. Quando falamos de
corpo na psicanálise, estamos utilizando uma noção e não um conceito. “Corpo”, na psicanálise,
é uma palavra que não tem a precisão de um conceito, o que não diminui sua importância, pois
ele se articula a conceitos fundamentais como o de pulsão, além de ter uma importância crucial
na clínica. Cito Charles Melman: “O que entendemos por ‘corpo’? É comum que a interrogação
se feche rapidamente sobre si mesma, uma vez que ‘corpo’ é, na nossa cultura, a resposta última,
aquela que viria obturar todo questionamento”1.
A referência imprecisa ou tautológica ao corpo não é, porém, exclusividade do senso
comum. Vez por outra, escutamos referências ao corpo em autores do meio psicanalítico, que
partem de uma definição negativa, que dizem o que o corpo não é para Lacan, mas sem definir
exatamente o que ele seria; quando, por exemplo, se diz que Lacan não está falando de corpo
no sentido que a medicina fala do corpo. A afirmação é verdadeira, uma vez que Lacan de fato
não fala de corpo no sentido da medicina, como sistemas de órgãos regidos pela fisiologia, sem
a participação da pulsão. Mas, pretendendo-se com isso dizer que ele não fala do corpo de carne
e osso e, sim, de alguma espécie de corpo imaterial, intangível, não sei, neste caso, o que isso
poderia significar.
Essa dúvida é ampliada toda vez que se escuta falar que o corpo pulsional “não é este”
(referindo-se, por “este”, ao nosso corpo de carne e osso). Ora, obviamente, enquanto conceito,
a pulsão existe no campo teórico e não no mundo material. Porém, supor que o corpo no qual
se situam as zonas erógenas – as bordas das fontes pulsionais – não é “este”, é uma afirmação
imprecisa que, no limite, contraria o bom senso, porque teríamos de presumir que temos mais
de um corpo: este que já conhecemos e outro, de outra natureza – etéreo, imaterial,
transcendental...

1
MELMAN, C. Novos estudos sobre a histeria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

1
Se, por um lado, é importante distinguir a abordagem teórica do corpo feita pela
psicanálise daquela da ciência, que trabalha com a noção de organismo, é também indispensável
definir com rigor a abordagem psicanalítica, frisando que, se a psicanálise não reduz o corpo
ao organismo, ela tampouco lhe confere uma dimensão imaterial, inconsistente ou vagamente
metafísica. Aliás, para Lacan, a consistência é justamente a propriedade que define o corpo.
Colette Soler, no seu Seminário intitulado L’en-corps du sujet (2001-2002), abre a
primeira aula situando a importância do corpo na psicanálise:

A psicanálise, apesar do seu nome, análise da psiquê, é uma prática no centro


da qual se encontra a questão do corpo. Esta questão aí está desde o início,
especialmente pelo sintoma histérico, sob a forma mais evidente da conversão.
Ela aí está também, desde o início, pela noção de traumatismo sexual.2

A autora retoma a tese de Lacan de que o corpo, nos seres falantes, é um corpo habitado
pela linguagem. Mais do que isso, é um corpo construído pela linguagem:

É preciso a linguagem para isolar o corpo como um fato. Eis porque Lacan
diz: “O corpo, é a linguagem que lhes concede”, tese que surpreende,
precisamente porque cada um de nós imagina que recebeu seu corpo de
nascimento; seu corpo, quer dizer de certa maneira em curto-circuito sobre a
operação da linguagem. Tudo leva a crer no nosso discurso comum que o
corpo não passa pela mediação da linguagem. [...] É por isso que podemos
dizer que, em última instância, um animal não tem corpo, que um animal é um
organismo. Efetivamente, para ter um corpo é preciso que o fato seja posto
porque é dito, porque é articulado. Mas, desde que seja articulado, desde que
seja dito, desde que proferimos “meu corpo”, “ teu corpo”, “um corpo”, então
o corpo é admitido no simbólico, mas como significante.3

Uma vez que, diferentemente dos animais, não dispomos de um padrão de condutas
(sexuais, sociais, alimentares, etc.) predeterminadas pelo instinto, mas nossa relação com o
mundo, com os outros, com nós mesmos e com o nosso corpo é mediada pala linguagem, somos
uma espécie diferente, uma espécie mutante, como chama Soler: “O corpo pulsional não é um
corpo animal. O corpo pulsional é um organismo desnaturado. O fato – eis aí a hipótese de
Lacan – de ser falante não deixa o animal humano indene. Poder-se-ia dizer que o falante é um
mutante na escala animal” 4.
Isso nos conduz diretamente ao nosso tema, que é a relação entre corpo e pulsão.

2
SOLER, C. L’en-corps du sujet – Cours 2001-2002. Paris: [s.n.], Aula de 21/11/2001, p.03 (Tradução, para uso
interno, de Sonia Magalhães).
3
Idem: aula de 05/12/2001, p.21 (Tradução, para uso interno, de Graça Pamplona).
4
SOLER, C. L’en-corps du sujet..., op. cit., aula de 21/11/2001, p.4-5.
2
Corpo e pulsão

Se a teoria psicanalítica nos ensina que o corpo do falasser é desnaturado, que não é um
corpo animal; se a clínica nos mostra que ele se distingue do organismo, que não pode ser
reduzido a sistemas de órgãos regidos pelo funcionamento fisiológico; cumpre definir
conceitualmente de que forma se organiza esse corpo. Freud empenhou-se nessa tarefa desde o
início da psicanálise ao cunhar o conceito de pulsão [Trieb], que definiu nos seus “Três Ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade” (1905) como “o representante psíquico de uma fonte
endossomática e contínua de excitação”5. Em seguida, no seu célebre artigo de 1915, “As
pulsões e seus destinos”6, considerou-o um dos conceitos fundamentais [Grundbegriff] da teoria
psicanalítica. Anos mais tarde, nas “Novas conferências introdutórias à psicanálise”7 (1933),
ele considerou as pulsões como a mitologia da teoria psicanalítica.
Ao comentar essa denominação, Lacan discorda do termo mito:

Afastarei, de minha parte, este termo de mito – aliás, nesse mesmo texto [“As
pulsões e seus destinos”], no primeiro parágrafo, Freud emprega o termo
Konvention, convenção, que está mais perto do que se trata, e que chamarei
com um termo benthamiano que fiz notar àqueles que me seguem, uma
ficção.8

A referência aqui é ao filósofo Jeremy Bentham (1748-1832), o qual Lacan menciona no


seu Seminário 7, A ética da psicanálise. Nesse Seminário, Lacan assim define a noção
empregada por ele: “O fictício, efetivamente, não é por essência o que é enganador, mas,
propriamente falando, o que chamamos de simbólico”9. Na filosofia de Bentham, uma entidade
fictícia é “um objeto cuja existência é fingida pela imaginação – fingida com o propósito de um
discurso – e do qual, uma vez formulado se fala como um objeto real”10.
Trata-se para Freud, portanto, de tentar construir um conceito que dê conta da
singularidade do corpo do ser da fala, da transformação que ocorre em seu organismo. Freud

5
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: _____. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v.VII, p. 171.
6
FREUD, S. As pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
7
FREUD, S. Novas conferências introdutórias à psicanálise [1933]. In:______. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XXII
8
LACAN, J. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1963-1964]. 2.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 161.
9
LACAN, J. O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 22.
10
OGDEN, C. K. La teoría del language de Bentham. (apud WAJNBERG, D. A verdade tem estrutura de ficção.
In: CESAROTTO, O. Ideias de Lacan. São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 155-159. p. 157).
3
tenta construir tal conceito trabalhando, como observa Marc Darmon11, com um modelo
importado, o do arco reflexo, a partir da ideia de estímulo interno. Lacan irá retomar o problema
a partir de novas referências teóricas que se distanciam da fisiologia. Para nós, que temos como
referência teórica o ensino de Lacan, é importante destacar os pontos em que este diverge da
teoria freudiana no que concerne à teoria das pulsões. Ao contrário do que pensam alguns,
constatar tal divergência não dispensa o estudo da teoria freudiana, mas exige um conhecimento
profundo desta para que possamos distinguir rigorosamente as teses de Freud e Lacan,
reconhecendo o que este último conserva da teoria freudiana e o que acrescenta de sua lavra.
A própria escolha feita por Lacan do termo da língua francesa pulsion [pulsão] para
traduzir o Trieb freudiano não é uma mera questão de preferência de tradução, mas uma tomada
de posição teórica. É bastante conhecida a crítica de Lacan à opção de Strachey por instinct
[instinto] na tradução inglesa da Standard Edition, quando havia à disposição, na língua inglesa,
o termo drive. Tal opção elimina as características singulares do Trieb (vide notas dos tradutores
brasileiros12), impondo um viés biologizante. Desde que a obra de Freud caiu em domínio
público, temos o privilégio de dispor de várias traduções do artigo metapsicológico de Freud,
todas de ótima qualidade, sendo que a maioria dos tradutores brasileiros adota o termo pulsão.

O orgânico e o pulsional

Então, na psicanálise, o corpo que devemos conhecer, se seguimos o ensino


de Lacan – é verdadeiramente a hipótese mais convincente – é um efeito de
linguagem. Isto quer dizer que a linguagem toca o organismo, o desnatura, o
modifica.13
Sabemos que o pulsional não se confunde com o orgânico. Dito isso, a relação entre o
pulsional e o orgânico não é simplesmente da ordem de uma exclusão mútua ou de um
antagonismo, o orgânico existindo independente do pulsional ou em oposição a este. Ao
contrário, o investimento do corpo real do bebê (leia-se: do organismo) pelo Outro, encarnado
por quem se ocupa dos cuidados maternos, insere-o no circuito pulsional. Sabemos que, para
Lacan, o Outro é um lugar, e um lugar vazio, porém é preciso que algum sujeito ocupe esse

11
DARMON, M. Pulsions. In: _____. Essais sur La topologie lacanienne. Paris: Editions de l’Association
Freudienne, 1990. p.231-257. p. 232.
12
HANNS, L. Comentários do editor brasileiro. In: FREUD, S. Obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 2004. v.I: Escritos sobre a psicologia do inconsciente: Pulsões e destinos da pulsão, p.137-144;
HELIODORO TAVARES, P. Sobre a tradução do vocábulo Trieb. In: FREUD, S. As pulsões e seus destinos, op.
cit., p. 73-90.
13
SOLER, C. L’en-corps du sujet, op. cit., aula de 21/11/2001, p. 16.
4
lugar para o bebê, um sujeito marcado pela falta, que tomará o bebê como o objeto que vem
preencher, ainda que transitoriamente, a sua falta.
Segundo Marie-Christine Laznik, para que o infans ultrapasse a sua condição puramente
orgânica, de um serzinho que chora, mama, defeca e dorme, para que possa advir como um
sujeito, é preciso haver um olhar daquele que ocupa o lugar do Outro que o invista
libidinalmente, que possa enxergá-lo além da sua condição puramente orgânica, antecipando a
sua condição de sujeito. O “olhar”, aqui, deve ser entendido não no sentido literal da visão:
“Trata-se aqui do olhar no sentido da presença: o olho sendo o signo de um investimento
libidinal, muito mais que o órgão suporte da visão” 14.
Freud destaca o fato de que, ao contrário das outras espécies, na espécie humana os
filhotes nascem com uma imaturidade neurológica que não lhes permite o necessário controle
dos movimentos para garantir a sua sobrevivência. É preciso a assistência daquele que Freud
chama de Nebenmensch (que foi traduzido como próximo auxiliar), que possa lhe garantir os
cuidados básicos. Esse Nebenmensch, em termos da teoria lacaniana, equivale ao Outro; nesse
caso, como vimos, encarnado por sujeitos que se ocupam dos cuidados do bebê e que o tomarão
como o objeto que preenche a sua falta, ainda que transitoriamente, o que lhes confere a
sensação de completude. Daí porque o bebê é idealizado por seus pais, que lhe conferem uma
aura majestática. Freud se refere a essa idealização do bebê pelos seus pais fazendo referência
a um cartum de uma revista que mostra o bebê coroado com a inscrição “His Majesty the Baby”.
Laznik considera que o investimento libidinal do bebê é o que possibilita que o sujeito
daí possa advir. Ela mostra como a mãe, ocupando o lugar do Outro primordial, supõe um
sujeito ali onde objetivamente há um organismo. Nesse processo, ela instaura o circuito
pulsional e faz com que as zonas erógenas, com suas bordas, sejam delimitadas sobre o corpo.
Como tais zonas se estabelecem? Há algum tipo de determinismo orgânico? No artigo
metapsicológico de 1915, Freud afirma que a fonte (Quelle) da pulsão é “o processo somático
que ocorre em um órgão ou em uma parte do corpo e do qual se origina um estímulo
representado na vida psíquica pela pulsão”15. Vimos também que ele se refere a uma excitação
interna, sobre a qual, afirma: “Uma destas espécies de excitação descrevemos como sendo
especificamente sexual e falamos do órgão em causa como a ‘zona erógena’ da pulsão

14
LAZNIK, M.-C. Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito pulsional:
quando a alienação faz falta. In: ______. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito (textos
compilados por WANDERLEY, D.) 3.ed. Salvador: Ágalma, 2013. p. 49-68. p. 50.

15
FREUD, S. Pulsões e destinos da pulsão. Tradução de Luiz Hanns. In: _____. Obras psicológicas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2004. v.I: Escritos sobre a psicologia do inconsciente, p. 149.
5
componente sexual que dela surge”16. Falando sobre as zonas erógenas oral e anal, ele diz: “Na
história, estas partes do corpo e os tratos vizinhos da membrana mucosa tornam-se a sede de
novas sensações e de modificações de enervação [...]” 17.
Para Freud, portanto, as características fisiológicas são determinantes para o
estabelecimento de tais zonas por possibilitarem o aparecimento de sensações prazerosas.
Lacan, por sua vez, destaca o caráter de borda da fonte pulsional. Para ele: “[...] a Quelle
inscreve na economia da pulsão essa estrutura de borda” 18
. Ele chega a falar da borda das
orelhas, dos olhos, etc. E conclui: “Na tradição analítica, reportamo-nos sempre à imagem
estritamente focalizada das zonas reduzidas à sua função de borda” 19.
Tais bordas, como vimos, são estabelecidas pelo investimento libidinal do corpo do bebê
por parte de quem se ocupa dos cuidados maternos. O toque, a carícia, os cuidados de higiene
corporal, acompanhados da fala que denomina as partes do corpo do bebê, delimitam nesse
corpo as zonas erógenas, fontes da pulsão. Isso faz com que tais zonas se distingam das outras
zonas do corpo. Esse investimento do Outro é essencial para que os orifícios do corpo possam
funcionar não somente como zonas erógenas, mas também desempenhando suas funções
orgânicas.
Marie-Christine Laznik descreve, a partir da sua vasta experiência na clínica do autismo,
casos clínicos nos quais as bordas dos orifícios corporais não desempenham adequadamente
suas funções orgânicas pela falta do investimento libidinal.

Isso assume toda sua importância quando nos lembramos a que ponto, nas
crianças autistas, essas zonas não fazem borda – seus lábios deixam escorrer
a saliva, os esfíncteres não funcionam como tal. Isso por não terem sido zonas
de investimento erógeno, por não terem sido tomadas num circuito pulsional.20

Charles Melman fala de erotização das funções orgânicas, ou seja, de como o organismo
é transformado pelas pulsões:

Essa erotização pode ocorrer ter sido malconduzida – não é? – e é então


preciso que, para o funcionamento, a realização de nossas necessidades, uma
vez que é o mesmo orifício para as necessidades e para os desejos, é preciso
uma erotização correta, feliz, para que as necessidades possam igualmente se

16
FREUD, S. Três ensaios..., op. cit., p. 171. (Substituímos instinto, nessa tradução, por pulsão).
17
Id., ibid., p. 171-172.
18
LACAN, J. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit., p. 169.
19
Id., loc. cit.
20
LAZNIK, M.-C. Por uma teoria lacaniana das pulsões. In: _____. A voz da sereia..., op. cit., p.93.
6
satisfazer. Não vou me engajar na patologia oral, nos problemas da
alimentação, nos problemas da defecação, etc.21

Estamos aqui completamente distantes da noção de “biopsicossocial” empregada pela


psicologia. Não se trata, para a psicanálise, de partes estanques que se juntam para compor um
todo. O funcionamento do organismo não se dá de forma estanque em relação às pulsões, mas
é modificado por estas.

Componentes da pulsão: Quelle (fonte)

Freud distingue quatro componentes da pulsão: a fonte (Quelle), o impulso ou pressão


(Drang), o alvo ou meta (Ziel) e o objeto (Objekt). Veremos a seguir como ele define cada um
desses componentes e qual a leitura feita por Lacan. Acerca da fonte, diz Freud: “Por fonte da
pulsão entendemos o processo somático que ocorre em um órgão ou em uma parte do corpo e
do qual se origina um estímulo representado na vida psíquica pela pulsão” 22.
Na visão de Lacan: “Trata-se então para nós, no Drang da pulsão, de algo que é, e que só
é conotável em relação à Quelle, na medida em que a Quelle inscreve na economia da pulsão
essa estrutura de borda” 23.
Segundo ainda Lacan, a fonte da pulsão se localiza preferencialmente nas bordas dos
orifícios do corpo.

Por que as zonas ditas erógenas só são reconhecidas nesses pontos que se
diferenciam para nós por sua estrutura de borda? Por que se fala de boca, e
não do esôfago ou do estômago? Eles também participam da função oral. Mas
ao nível erógeno, falamos de boca, e não somente da boca, dos lábios e dos
dentes, disso que Homero chama cerca dos dentes.24

Limitei-me às duas bordas que estão interessadas no trato. Eu teria podido


também lhes dizer que a borda remelenta de nossas pálpebras, nossa orelha,
nosso umbigo são igualmente bordas também, e que há tudo isso nessa função
de erotismo. Na tradição analítica, reportamo-nos sempre à imagem
estritamente focalizada das zonas reduzidas à sua função de borda.25

21
MELMAN, C. A questão do corpo em psicanálise. In: ______. Formas clínicas da nova patologia mental e
artigos inéditos. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2004. p.120.
22
FREUD, S. Pulsões e destinos da pulsão, op. cit., p.149.
23
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p.169.
24
Id., ibid., p. 166.
25
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p. 169.
7
Vimos a importância do investimento libidinal desses orifícios por meio de exemplos
inversos, ou seja, exemplos em que podemos notar as consequências adversas para o sujeito
quando tais investimentos não se dão. Charles Melman fornece exemplos de casos em que o
não investimento desses orifícios altera o seu funcionamento, como na síndrome de Cotard, em
que o sujeito faz um delírio de que o seu corpo não possui orifícios. Para concluir que: “Então,
o que sustenta o corpo, o que faz sua consistência, é o esburacamento, é o fato de que ele seja
esburacado”26.

Drang (pressão ou impulso)

Por pressão de uma pulsão entendemos seu fator motor, a soma da força ou a
exigência de trabalho que ela representa. Esse caráter de exercer pressão é
uma propriedade universal das pulsões, na verdade, sua própria essência. Toda
pulsão é uma parcela de atividade; assim, quando, de maneira menos rigorosa,
falamos de pulsões passivas, estamos nos referindo a pulsões cuja meta [Ziel]
é passiva.27

Acerca da definição freudiana do Drang como a “própria essência” da pulsão, Lacan é


taxativo: “A pulsão não é o impulso. O Trieb não é o Drang [...]” 28
. Trata-se, para ele, de
refutar a concepção energética da pulsão: “Na pulsão, não se trata de modo algum de energia
cinética, não se trata de algo que vai se regrar pelo movimento. A descarga em questão é de
natureza completamente diferente, e se coloca num plano completamente diferente” 29.
A precisão com que Lacan distingue a força constante da pulsão da energia cinética, a
qual é submetida à variação da aceleração, é um dos melhores exemplos de como a sua releitura
da teoria freudiana é um trabalho teórico atento e rigoroso sobre as teses de Freud, trabalho este
que se distancia de uma leitura intuitiva como aquela que emprega imprecisamente o termo
energia. Porém, ao mesmo tempo em que a pulsão é uma força constante para cada um, os
sujeitos se diferenciam quanto à intensidade dessa força em cada um, o que Lacan define de
forma brincalhona: “Quer dizer, as pessoas têm maior ou menor goela” 30.

Ziel (alvo, meta)

26
Id., ibid., p. 122.
27
FREUD, S. Pulsões e destinos da pulsão, op. cit., p.148.
28
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p.160.
29
Id., ibid., p. 163.
30
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p.169
8
Vejamos como Freud define a meta (Ziel) da pulsão: “A meta de uma pulsão é sempre a
satisfação [Befriedigung], que só pode ser alcançada pela suspensão do estado de estimulação
junto à fonte pulsional [Triebquelle]” 31.
Acerca dessa noção de satisfação, é importante conhecer o que dizem os tradutores
brasileiros para evitarmos uma leitura intuitiva.

Befriedigung tem em satisfação sua melhor tradução. Causa estranhamento,


talvez, que a pulsão caracterizada como uma força constante possa ser
‘satisfeita’. Ocorre que no português formamos o vocábulo a partir da noção
do que é ‘suficiente’ (latim: satis). No alemão, por sua vez, a palavra é
formada pelo radical fried- (Frieden: paz), podendo ser entendida, portanto,
como um parcial e momentâneo “apaziguamento”.32

Esse comentário esclarece a aparente contradição entre a noção de satisfação e a ideia de


uma força constante. Ele nos indica também um dos motivos da discordância de Lacan acerca
do primeiro dualismo das pulsões proposto por Freud no seu artigo de 1915: “Sugeri diferenciar
dois grupos de tais pulsões primordiais: as pulsões do Eu, ou de autopreservação, e as pulsões
sexuais”33. Entre as pulsões de autopreservação, Freud inclui a fome e a sede. Para Lacan, fome
e sede não podem ser consideradas pulsões segundo a própria definição da pulsão de Freud,
como uma força constante: “A constância do impulso proíbe qualquer assimilação da pulsão a
uma função biológica, a qual tem sempre um ritmo. [...] ela não tem subida nem descida. É uma
força constante” 34.
Lacan também discorda da proposição de Freud, que situa o amor como uma pulsão:
“Tudo o que ele [Freud] diz do amor vai acentuar que, para conceber o amor, é a uma espécie
de estrutura diferente daquela da pulsão que é preciso necessariamente referir-se”35. A própria
ideia das pulsões do Eu [Ichtriebe] lhe parece contraditória: “O nível do Ich é não-pulsional, e
é aí – eu lhes rogo que leiam atentamente o texto – que Freud situa o amor” 36. Para Lacan, o
campo das pulsões diz respeito exclusivamente às pulsões sexuais (parciais). Daquelas listadas
por Freud, ele manterá as pulsões oral e anal. A estas, ele acrescentará a pulsão escópica (que
diz respeito ao olhar) e a pulsão invocante (que diz respeito à voz).

31
FREUD, S. As pulsões e seus destinos..., op. cit., p. 25.
32
TAVARES, P. H. Notas do tradutor. In: FREUD, S. As pulsões e seus destinos..., op. cit., p. 67.
33
FREUD, S. As pulsões e seus destinos..., op. cit., p. 29.
34
Id., ibid., p. 163.
35
LACAN, J. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise..., op. cit., p. 186.
36
Id., ibid., p. 187.
9
Objekt (objeto)

Chegamos, finalmente, ao componente da pulsão ao qual Lacan confere um destaque.


Freud assim o define:

O objeto de uma pulsão é aquele junto ao qual, ou através do qual, a pulsão


pode alcançar sua meta. É o que há de mais variável na pulsão, não estando
originalmente a ela vinculado, sendo apenas a ela atribuído por sua capacidade
de tornar possível a satisfação. Não é necessariamente um objeto material
[Gegenstand] estranho ao sujeito, podendo ser até mesmo uma parte do seu
corpo.37

Para Lacan, trata-se do seu objeto a, cuja formalização teórica ele nos deu no seu
Seminário 10, A Angústia38, ainda que suas primeiras referências datem de bem antes.

O objeto da pulsão, como é preciso concebê-lo, para que se possa dizer que,
na pulsão, qualquer que ele seja, ele é indiferente? [...] a esse seio, na sua
função de objeto, de objeto a causa do desejo, tal como eu trago sua noção –
devemos dar uma função tal que pudéssemos dizer seu lugar na satisfação da
pulsão. A melhor fórmula nos parece ser esta – que a pulsão o contorna.39

Essa superposição do seu conceito de objeto a – que ele considera sua “invenção” – ao
objeto da pulsão teorizado por Freud pode parecer forçar a barra para alguns. Sabemos que a
teoria lacaniana desperta até hoje muitas resistências e que o objeto a é um conceito
particularmente controverso. Mas Lacan, obviamente, não é um ingênuo: ele não pretende
revelar aqui nenhuma verdade oculta da teoria freudiana, mas marcar uma posição, estabelecer
os pontos em que a sua teoria se distingue desta, embora se apoiando nela.
Ao frisar que não se trata, na pulsão, de um objeto qualquer, mas do objeto a, que a pulsão
não atinge, mas contorna, ele dá um novo tratamento ao tema da satisfação pulsional. Esta,
como vimos no comentário do tradutor brasileiro acerca do termo da língua alemã empregado
por Freud, não é senão um momentâneo apaziguamento, distante do que poderia ser uma
satisfação plena. Ao dizer que a pulsão não apreende o objeto, mas o contorna, Lacan enfatiza
o caráter inapreensível de tal objeto, o que na sua teoria diz respeito ao fato de que, por sermos
seres da linguagem, nossa relação com o objeto é mediada pela linguagem. Jamais podemos
apreender o objeto enquanto tal.

37
FREUD, S. As pulsões e seus destinos..., op. cit., p. 25-27.
38
LACAN, J. O Seminário, Livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
39
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p. 166.
10
Lembremos que uma das definições de Lacan sobre o objeto a é aquela de causa do
desejo. Enquanto causa, ele estaria logicamente antes do desejo e não no ponto final, como
objeto a ser alcançado. Lacan também se refere ao objeto a como objeto perdido. Essa definição
pode criar uma dificuldade no entendimento quando aplicada aos objetos da pulsão.
Melman assim resume essa dificuldade:

Mas que nos permite dizer que tais objetos bem reais são objetos “perdidos”?
Qual é o sentido da relação desses objetos com essa qualidade particular que
eles teriam de serem objetos perdidos? [...] Então qual é o sentido de tal
afirmação?
O sentido dessa afirmação prende-se ao seguinte: não há, na realidade,
nenhum objeto que possa vir nos garantir quanto a uma conformidade dos
desejos do sujeito com o Outro, pelo fato muito simples de que, se
primordialmente a mãe veio encarnar esse Outro, trata-se de uma encarnação
suficientemente transitória para nos lembrar que, no Outro, não há ninguém!
Nem para nos atender, nem para nos prescrever ou designar o que seria esse
objeto que assegurasse nossa conformidade com seu desejo.40

Portanto, o que o sujeito perde, primordialmente, é essa relação com o Outro materno, na
qual era possível efetuar uma troca envolvendo os objetos pulsionais. Lembremos que Lacan
diverge dos pós-freudianos, para os quais as pulsões se sucedem numa linha evolutiva, passando
da pulsão oral à pulsão anal num processo de desenvolvimento. Para Lacan, na passagem de
uma pulsão a outra não há um desenvolvimento, mas uma mudança na relação do sujeito com
o Outro. Trata-se de uma relação de demanda ou de desejo, primordialmente relação de
demanda. Assim, na pulsão oral, a demanda é do sujeito (o bebê) ao Outro materno, e o objeto
dessa demanda é o seio. O seio não enquanto o que amamenta, pois não é a necessidade que
está em jogo, mas a demanda. A necessidade diz respeito ao aspecto fisiológico, à fome, à sede
e aos objetos que as aplacam – neste caso, o leite. Porém a demanda não se limita a esse aspecto
fisiológico.

[...] além do que se articula na demanda como necessidade, uma outra


demanda se perfila, que é a demanda de amor. Uma criança de quem alguém
se ocupa no sentido de responder às suas necessidades, sem palavras, sem
sorrisos e sem relações pessoais, uma criança destas se acha na
impossibilidade de se integrar numa relação humana. Em outras palavras, é
uma criança votada a perecer.41

40
MELMAN, C. Para introduzir à psicanálise nos dias de hoje. Porto Alegre: CMC, 2009. p. 86.
41
SAFOUAN, M.; HOFFMANN, C. O desejo nas mutações familiares e sociais. São Paulo: Instituto Langage,
2016. p.18.
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Já na pulsão anal, o que ocorre, segundo Lacan, é uma virada na demanda, que passa a
ser demanda do Outro, neste caso, da mãe que demanda ao bebê que faça cocô como sinal de
boa saúde, de que está saudável. É a esse jogo do objeto que é demandado e do que é cedido
que Melman se refere quando fala de uma relação ao Outro que é perdida para sempre,
lembrando ainda que Lacan estudou os textos do antropólogo e etnólogo Marcel Mauss (1872-
1950) que tratam do mecanismo do dom em sociedades arcaicas. Nessas sociedades, o presente
recebido deve ser retribuído com outro presente de valor equivalente ou superior, sendo esse
mecanismo de troca essencial para a manutenção dos laços sociais.
Um dos termos que Lacan utiliza no seu Seminário 10, A Angústia, para falar da
constituição do objeto a, é cessão do objeto. Este termo implica um Outro a quem o objeto é
cedido como um dom. Implica também a materialidade desse objeto, como algo que é separado
do corpo, a título de desmame, defecação ou mesmo nos casos menos evidentes da voz e do
olhar.

O corpo sem o Outro?

Vimos que o corpo pulsional não apenas se distingue do organismo, mas interfere nele.
Trata-se de um corpo que não é dado pela natureza, com o qual o sujeito já nasce, mas um corpo
que lhe é dado pela linguagem. Isso pressupõe um Outro encarnado que possa conferir ao sujeito
esse corpo, assim como os significantes. Apesar de nascermos banhados pela linguagem, não
somos capazes de articular os significantes para constituir uma fala, sendo necessário que o
Outro nos forneça esses significantes.
Marie-Christine Laznik42 ressalta a importância dessa primeira alienação simbólica – a
necessidade de passar pelos significantes do Outro para advir à condição de falante – na
constituição do sujeito. Além dessa alienação simbólica, é preciso passar também pela
alienação imaginária (a captura pela imagem no Estádio do Espelho e a construção do eu ao
modo dessa imagem), e pela alienação real, que diz respeito à instauração do circuito pulsional.
É o fracasso desta última, no autismo, que impede o investimento das zonas erógenas e a própria
capacidade de investimento nos objetos.
Essa alienação situada nas três dimensões – real, simbólica e imaginária – mostra que,
para Lacan, é primordialmente do Outro que recebemos os significantes com os quais vamos

42
LAZNIK, M.-C. Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito
pulsional..., op. cit., p. 49-68.
12
construir a nossa fala, a imagem unificadora que vai constituir o nosso eu e o nosso próprio
corpo. A alienação, portanto, não deve ser tomada aqui no sentido comum, negativo, enquanto
alienação política, mas como uma passagem necessária na constituição do sujeito. É a partir
dos significantes do Outro, por exemplo, que cada um vai poder articular a sua própria fala,
distinta de todas as outras.
Dito isso, é curioso constatar, nos dias de hoje, a popularidade de um discurso que prega
uma autonomia do indivíduo, afirmando que este pode decidir a sua identidade, inclusive a
identidade sexual – dita “identidade de gênero” – e definir o seu corpo a partir de uma escolha
consciente, de um ato de vontade. Esse discurso vai no sentido contrário aos avanços teóricos
e clínicos da psicanálise. Se a descoberta freudiana nos mostrou que não temos uma relação
instintiva com o nosso corpo e com a sexualidade, mas que tal relação é moldada pela
linguagem, isso não significa que ela seja fruto de escolhas conscientes, feitas por um sujeito
indiviso, sem divisão. Nem que possa se instalar sem o Outro, muito pelo contrário.
Tampouco faz sentido a definição, em tom de denúncia, da linguagem como transmissora
de normas e de proibições que dizem respeito ao desejo. Essa pretensa denúncia parte de uma
noção do desejo enquanto imanente, logicamente anterior às interdições que sobre ele recaem.
Tal noção merece ser classificada como pré-freudiana, no que ela ignora as condições de
estabelecimento do desejo em relação à lei, que Lacan sintetizou com a máxima: “O desejo e
a lei são uma e a mesma coisa” 43.
É preciso reconhecer, de fato, a radicalidade da teoria psicanalítica – o que não
significa, simplesmente, repetir seus enunciados –, para evitar cairmos na arapuca de discursos
que, ao se apresentarem como libertadores do corpo e da sexualidade, só fazem nos aprisionar
a concepções rudimentares dessas noções.

43
LACAN, J. O Seminário, Livro 10: a angústia, op. cit., p. 120.
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