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MELMAN, C. Novos estudos sobre a histeria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
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Se, por um lado, é importante distinguir a abordagem teórica do corpo feita pela
psicanálise daquela da ciência, que trabalha com a noção de organismo, é também indispensável
definir com rigor a abordagem psicanalítica, frisando que, se a psicanálise não reduz o corpo
ao organismo, ela tampouco lhe confere uma dimensão imaterial, inconsistente ou vagamente
metafísica. Aliás, para Lacan, a consistência é justamente a propriedade que define o corpo.
Colette Soler, no seu Seminário intitulado L’en-corps du sujet (2001-2002), abre a
primeira aula situando a importância do corpo na psicanálise:
A autora retoma a tese de Lacan de que o corpo, nos seres falantes, é um corpo habitado
pela linguagem. Mais do que isso, é um corpo construído pela linguagem:
É preciso a linguagem para isolar o corpo como um fato. Eis porque Lacan
diz: “O corpo, é a linguagem que lhes concede”, tese que surpreende,
precisamente porque cada um de nós imagina que recebeu seu corpo de
nascimento; seu corpo, quer dizer de certa maneira em curto-circuito sobre a
operação da linguagem. Tudo leva a crer no nosso discurso comum que o
corpo não passa pela mediação da linguagem. [...] É por isso que podemos
dizer que, em última instância, um animal não tem corpo, que um animal é um
organismo. Efetivamente, para ter um corpo é preciso que o fato seja posto
porque é dito, porque é articulado. Mas, desde que seja articulado, desde que
seja dito, desde que proferimos “meu corpo”, “ teu corpo”, “um corpo”, então
o corpo é admitido no simbólico, mas como significante.3
Uma vez que, diferentemente dos animais, não dispomos de um padrão de condutas
(sexuais, sociais, alimentares, etc.) predeterminadas pelo instinto, mas nossa relação com o
mundo, com os outros, com nós mesmos e com o nosso corpo é mediada pala linguagem, somos
uma espécie diferente, uma espécie mutante, como chama Soler: “O corpo pulsional não é um
corpo animal. O corpo pulsional é um organismo desnaturado. O fato – eis aí a hipótese de
Lacan – de ser falante não deixa o animal humano indene. Poder-se-ia dizer que o falante é um
mutante na escala animal” 4.
Isso nos conduz diretamente ao nosso tema, que é a relação entre corpo e pulsão.
2
SOLER, C. L’en-corps du sujet – Cours 2001-2002. Paris: [s.n.], Aula de 21/11/2001, p.03 (Tradução, para uso
interno, de Sonia Magalhães).
3
Idem: aula de 05/12/2001, p.21 (Tradução, para uso interno, de Graça Pamplona).
4
SOLER, C. L’en-corps du sujet..., op. cit., aula de 21/11/2001, p.4-5.
2
Corpo e pulsão
Se a teoria psicanalítica nos ensina que o corpo do falasser é desnaturado, que não é um
corpo animal; se a clínica nos mostra que ele se distingue do organismo, que não pode ser
reduzido a sistemas de órgãos regidos pelo funcionamento fisiológico; cumpre definir
conceitualmente de que forma se organiza esse corpo. Freud empenhou-se nessa tarefa desde o
início da psicanálise ao cunhar o conceito de pulsão [Trieb], que definiu nos seus “Três Ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade” (1905) como “o representante psíquico de uma fonte
endossomática e contínua de excitação”5. Em seguida, no seu célebre artigo de 1915, “As
pulsões e seus destinos”6, considerou-o um dos conceitos fundamentais [Grundbegriff] da teoria
psicanalítica. Anos mais tarde, nas “Novas conferências introdutórias à psicanálise”7 (1933),
ele considerou as pulsões como a mitologia da teoria psicanalítica.
Ao comentar essa denominação, Lacan discorda do termo mito:
Afastarei, de minha parte, este termo de mito – aliás, nesse mesmo texto [“As
pulsões e seus destinos”], no primeiro parágrafo, Freud emprega o termo
Konvention, convenção, que está mais perto do que se trata, e que chamarei
com um termo benthamiano que fiz notar àqueles que me seguem, uma
ficção.8
5
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: _____. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v.VII, p. 171.
6
FREUD, S. As pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
7
FREUD, S. Novas conferências introdutórias à psicanálise [1933]. In:______. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XXII
8
LACAN, J. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1963-1964]. 2.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 161.
9
LACAN, J. O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 22.
10
OGDEN, C. K. La teoría del language de Bentham. (apud WAJNBERG, D. A verdade tem estrutura de ficção.
In: CESAROTTO, O. Ideias de Lacan. São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 155-159. p. 157).
3
tenta construir tal conceito trabalhando, como observa Marc Darmon11, com um modelo
importado, o do arco reflexo, a partir da ideia de estímulo interno. Lacan irá retomar o problema
a partir de novas referências teóricas que se distanciam da fisiologia. Para nós, que temos como
referência teórica o ensino de Lacan, é importante destacar os pontos em que este diverge da
teoria freudiana no que concerne à teoria das pulsões. Ao contrário do que pensam alguns,
constatar tal divergência não dispensa o estudo da teoria freudiana, mas exige um conhecimento
profundo desta para que possamos distinguir rigorosamente as teses de Freud e Lacan,
reconhecendo o que este último conserva da teoria freudiana e o que acrescenta de sua lavra.
A própria escolha feita por Lacan do termo da língua francesa pulsion [pulsão] para
traduzir o Trieb freudiano não é uma mera questão de preferência de tradução, mas uma tomada
de posição teórica. É bastante conhecida a crítica de Lacan à opção de Strachey por instinct
[instinto] na tradução inglesa da Standard Edition, quando havia à disposição, na língua inglesa,
o termo drive. Tal opção elimina as características singulares do Trieb (vide notas dos tradutores
brasileiros12), impondo um viés biologizante. Desde que a obra de Freud caiu em domínio
público, temos o privilégio de dispor de várias traduções do artigo metapsicológico de Freud,
todas de ótima qualidade, sendo que a maioria dos tradutores brasileiros adota o termo pulsão.
O orgânico e o pulsional
11
DARMON, M. Pulsions. In: _____. Essais sur La topologie lacanienne. Paris: Editions de l’Association
Freudienne, 1990. p.231-257. p. 232.
12
HANNS, L. Comentários do editor brasileiro. In: FREUD, S. Obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 2004. v.I: Escritos sobre a psicologia do inconsciente: Pulsões e destinos da pulsão, p.137-144;
HELIODORO TAVARES, P. Sobre a tradução do vocábulo Trieb. In: FREUD, S. As pulsões e seus destinos, op.
cit., p. 73-90.
13
SOLER, C. L’en-corps du sujet, op. cit., aula de 21/11/2001, p. 16.
4
lugar para o bebê, um sujeito marcado pela falta, que tomará o bebê como o objeto que vem
preencher, ainda que transitoriamente, a sua falta.
Segundo Marie-Christine Laznik, para que o infans ultrapasse a sua condição puramente
orgânica, de um serzinho que chora, mama, defeca e dorme, para que possa advir como um
sujeito, é preciso haver um olhar daquele que ocupa o lugar do Outro que o invista
libidinalmente, que possa enxergá-lo além da sua condição puramente orgânica, antecipando a
sua condição de sujeito. O “olhar”, aqui, deve ser entendido não no sentido literal da visão:
“Trata-se aqui do olhar no sentido da presença: o olho sendo o signo de um investimento
libidinal, muito mais que o órgão suporte da visão” 14.
Freud destaca o fato de que, ao contrário das outras espécies, na espécie humana os
filhotes nascem com uma imaturidade neurológica que não lhes permite o necessário controle
dos movimentos para garantir a sua sobrevivência. É preciso a assistência daquele que Freud
chama de Nebenmensch (que foi traduzido como próximo auxiliar), que possa lhe garantir os
cuidados básicos. Esse Nebenmensch, em termos da teoria lacaniana, equivale ao Outro; nesse
caso, como vimos, encarnado por sujeitos que se ocupam dos cuidados do bebê e que o tomarão
como o objeto que preenche a sua falta, ainda que transitoriamente, o que lhes confere a
sensação de completude. Daí porque o bebê é idealizado por seus pais, que lhe conferem uma
aura majestática. Freud se refere a essa idealização do bebê pelos seus pais fazendo referência
a um cartum de uma revista que mostra o bebê coroado com a inscrição “His Majesty the Baby”.
Laznik considera que o investimento libidinal do bebê é o que possibilita que o sujeito
daí possa advir. Ela mostra como a mãe, ocupando o lugar do Outro primordial, supõe um
sujeito ali onde objetivamente há um organismo. Nesse processo, ela instaura o circuito
pulsional e faz com que as zonas erógenas, com suas bordas, sejam delimitadas sobre o corpo.
Como tais zonas se estabelecem? Há algum tipo de determinismo orgânico? No artigo
metapsicológico de 1915, Freud afirma que a fonte (Quelle) da pulsão é “o processo somático
que ocorre em um órgão ou em uma parte do corpo e do qual se origina um estímulo
representado na vida psíquica pela pulsão”15. Vimos também que ele se refere a uma excitação
interna, sobre a qual, afirma: “Uma destas espécies de excitação descrevemos como sendo
especificamente sexual e falamos do órgão em causa como a ‘zona erógena’ da pulsão
14
LAZNIK, M.-C. Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito pulsional:
quando a alienação faz falta. In: ______. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito (textos
compilados por WANDERLEY, D.) 3.ed. Salvador: Ágalma, 2013. p. 49-68. p. 50.
15
FREUD, S. Pulsões e destinos da pulsão. Tradução de Luiz Hanns. In: _____. Obras psicológicas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2004. v.I: Escritos sobre a psicologia do inconsciente, p. 149.
5
componente sexual que dela surge”16. Falando sobre as zonas erógenas oral e anal, ele diz: “Na
história, estas partes do corpo e os tratos vizinhos da membrana mucosa tornam-se a sede de
novas sensações e de modificações de enervação [...]” 17.
Para Freud, portanto, as características fisiológicas são determinantes para o
estabelecimento de tais zonas por possibilitarem o aparecimento de sensações prazerosas.
Lacan, por sua vez, destaca o caráter de borda da fonte pulsional. Para ele: “[...] a Quelle
inscreve na economia da pulsão essa estrutura de borda” 18
. Ele chega a falar da borda das
orelhas, dos olhos, etc. E conclui: “Na tradição analítica, reportamo-nos sempre à imagem
estritamente focalizada das zonas reduzidas à sua função de borda” 19.
Tais bordas, como vimos, são estabelecidas pelo investimento libidinal do corpo do bebê
por parte de quem se ocupa dos cuidados maternos. O toque, a carícia, os cuidados de higiene
corporal, acompanhados da fala que denomina as partes do corpo do bebê, delimitam nesse
corpo as zonas erógenas, fontes da pulsão. Isso faz com que tais zonas se distingam das outras
zonas do corpo. Esse investimento do Outro é essencial para que os orifícios do corpo possam
funcionar não somente como zonas erógenas, mas também desempenhando suas funções
orgânicas.
Marie-Christine Laznik descreve, a partir da sua vasta experiência na clínica do autismo,
casos clínicos nos quais as bordas dos orifícios corporais não desempenham adequadamente
suas funções orgânicas pela falta do investimento libidinal.
Isso assume toda sua importância quando nos lembramos a que ponto, nas
crianças autistas, essas zonas não fazem borda – seus lábios deixam escorrer
a saliva, os esfíncteres não funcionam como tal. Isso por não terem sido zonas
de investimento erógeno, por não terem sido tomadas num circuito pulsional.20
Charles Melman fala de erotização das funções orgânicas, ou seja, de como o organismo
é transformado pelas pulsões:
16
FREUD, S. Três ensaios..., op. cit., p. 171. (Substituímos instinto, nessa tradução, por pulsão).
17
Id., ibid., p. 171-172.
18
LACAN, J. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit., p. 169.
19
Id., loc. cit.
20
LAZNIK, M.-C. Por uma teoria lacaniana das pulsões. In: _____. A voz da sereia..., op. cit., p.93.
6
satisfazer. Não vou me engajar na patologia oral, nos problemas da
alimentação, nos problemas da defecação, etc.21
Por que as zonas ditas erógenas só são reconhecidas nesses pontos que se
diferenciam para nós por sua estrutura de borda? Por que se fala de boca, e
não do esôfago ou do estômago? Eles também participam da função oral. Mas
ao nível erógeno, falamos de boca, e não somente da boca, dos lábios e dos
dentes, disso que Homero chama cerca dos dentes.24
21
MELMAN, C. A questão do corpo em psicanálise. In: ______. Formas clínicas da nova patologia mental e
artigos inéditos. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2004. p.120.
22
FREUD, S. Pulsões e destinos da pulsão, op. cit., p.149.
23
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p.169.
24
Id., ibid., p. 166.
25
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p. 169.
7
Vimos a importância do investimento libidinal desses orifícios por meio de exemplos
inversos, ou seja, exemplos em que podemos notar as consequências adversas para o sujeito
quando tais investimentos não se dão. Charles Melman fornece exemplos de casos em que o
não investimento desses orifícios altera o seu funcionamento, como na síndrome de Cotard, em
que o sujeito faz um delírio de que o seu corpo não possui orifícios. Para concluir que: “Então,
o que sustenta o corpo, o que faz sua consistência, é o esburacamento, é o fato de que ele seja
esburacado”26.
Por pressão de uma pulsão entendemos seu fator motor, a soma da força ou a
exigência de trabalho que ela representa. Esse caráter de exercer pressão é
uma propriedade universal das pulsões, na verdade, sua própria essência. Toda
pulsão é uma parcela de atividade; assim, quando, de maneira menos rigorosa,
falamos de pulsões passivas, estamos nos referindo a pulsões cuja meta [Ziel]
é passiva.27
26
Id., ibid., p. 122.
27
FREUD, S. Pulsões e destinos da pulsão, op. cit., p.148.
28
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p.160.
29
Id., ibid., p. 163.
30
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p.169
8
Vejamos como Freud define a meta (Ziel) da pulsão: “A meta de uma pulsão é sempre a
satisfação [Befriedigung], que só pode ser alcançada pela suspensão do estado de estimulação
junto à fonte pulsional [Triebquelle]” 31.
Acerca dessa noção de satisfação, é importante conhecer o que dizem os tradutores
brasileiros para evitarmos uma leitura intuitiva.
31
FREUD, S. As pulsões e seus destinos..., op. cit., p. 25.
32
TAVARES, P. H. Notas do tradutor. In: FREUD, S. As pulsões e seus destinos..., op. cit., p. 67.
33
FREUD, S. As pulsões e seus destinos..., op. cit., p. 29.
34
Id., ibid., p. 163.
35
LACAN, J. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise..., op. cit., p. 186.
36
Id., ibid., p. 187.
9
Objekt (objeto)
Para Lacan, trata-se do seu objeto a, cuja formalização teórica ele nos deu no seu
Seminário 10, A Angústia38, ainda que suas primeiras referências datem de bem antes.
O objeto da pulsão, como é preciso concebê-lo, para que se possa dizer que,
na pulsão, qualquer que ele seja, ele é indiferente? [...] a esse seio, na sua
função de objeto, de objeto a causa do desejo, tal como eu trago sua noção –
devemos dar uma função tal que pudéssemos dizer seu lugar na satisfação da
pulsão. A melhor fórmula nos parece ser esta – que a pulsão o contorna.39
Essa superposição do seu conceito de objeto a – que ele considera sua “invenção” – ao
objeto da pulsão teorizado por Freud pode parecer forçar a barra para alguns. Sabemos que a
teoria lacaniana desperta até hoje muitas resistências e que o objeto a é um conceito
particularmente controverso. Mas Lacan, obviamente, não é um ingênuo: ele não pretende
revelar aqui nenhuma verdade oculta da teoria freudiana, mas marcar uma posição, estabelecer
os pontos em que a sua teoria se distingue desta, embora se apoiando nela.
Ao frisar que não se trata, na pulsão, de um objeto qualquer, mas do objeto a, que a pulsão
não atinge, mas contorna, ele dá um novo tratamento ao tema da satisfação pulsional. Esta,
como vimos no comentário do tradutor brasileiro acerca do termo da língua alemã empregado
por Freud, não é senão um momentâneo apaziguamento, distante do que poderia ser uma
satisfação plena. Ao dizer que a pulsão não apreende o objeto, mas o contorna, Lacan enfatiza
o caráter inapreensível de tal objeto, o que na sua teoria diz respeito ao fato de que, por sermos
seres da linguagem, nossa relação com o objeto é mediada pela linguagem. Jamais podemos
apreender o objeto enquanto tal.
37
FREUD, S. As pulsões e seus destinos..., op. cit., p. 25-27.
38
LACAN, J. O Seminário, Livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
39
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p. 166.
10
Lembremos que uma das definições de Lacan sobre o objeto a é aquela de causa do
desejo. Enquanto causa, ele estaria logicamente antes do desejo e não no ponto final, como
objeto a ser alcançado. Lacan também se refere ao objeto a como objeto perdido. Essa definição
pode criar uma dificuldade no entendimento quando aplicada aos objetos da pulsão.
Melman assim resume essa dificuldade:
Mas que nos permite dizer que tais objetos bem reais são objetos “perdidos”?
Qual é o sentido da relação desses objetos com essa qualidade particular que
eles teriam de serem objetos perdidos? [...] Então qual é o sentido de tal
afirmação?
O sentido dessa afirmação prende-se ao seguinte: não há, na realidade,
nenhum objeto que possa vir nos garantir quanto a uma conformidade dos
desejos do sujeito com o Outro, pelo fato muito simples de que, se
primordialmente a mãe veio encarnar esse Outro, trata-se de uma encarnação
suficientemente transitória para nos lembrar que, no Outro, não há ninguém!
Nem para nos atender, nem para nos prescrever ou designar o que seria esse
objeto que assegurasse nossa conformidade com seu desejo.40
Portanto, o que o sujeito perde, primordialmente, é essa relação com o Outro materno, na
qual era possível efetuar uma troca envolvendo os objetos pulsionais. Lembremos que Lacan
diverge dos pós-freudianos, para os quais as pulsões se sucedem numa linha evolutiva, passando
da pulsão oral à pulsão anal num processo de desenvolvimento. Para Lacan, na passagem de
uma pulsão a outra não há um desenvolvimento, mas uma mudança na relação do sujeito com
o Outro. Trata-se de uma relação de demanda ou de desejo, primordialmente relação de
demanda. Assim, na pulsão oral, a demanda é do sujeito (o bebê) ao Outro materno, e o objeto
dessa demanda é o seio. O seio não enquanto o que amamenta, pois não é a necessidade que
está em jogo, mas a demanda. A necessidade diz respeito ao aspecto fisiológico, à fome, à sede
e aos objetos que as aplacam – neste caso, o leite. Porém a demanda não se limita a esse aspecto
fisiológico.
40
MELMAN, C. Para introduzir à psicanálise nos dias de hoje. Porto Alegre: CMC, 2009. p. 86.
41
SAFOUAN, M.; HOFFMANN, C. O desejo nas mutações familiares e sociais. São Paulo: Instituto Langage,
2016. p.18.
11
Já na pulsão anal, o que ocorre, segundo Lacan, é uma virada na demanda, que passa a
ser demanda do Outro, neste caso, da mãe que demanda ao bebê que faça cocô como sinal de
boa saúde, de que está saudável. É a esse jogo do objeto que é demandado e do que é cedido
que Melman se refere quando fala de uma relação ao Outro que é perdida para sempre,
lembrando ainda que Lacan estudou os textos do antropólogo e etnólogo Marcel Mauss (1872-
1950) que tratam do mecanismo do dom em sociedades arcaicas. Nessas sociedades, o presente
recebido deve ser retribuído com outro presente de valor equivalente ou superior, sendo esse
mecanismo de troca essencial para a manutenção dos laços sociais.
Um dos termos que Lacan utiliza no seu Seminário 10, A Angústia, para falar da
constituição do objeto a, é cessão do objeto. Este termo implica um Outro a quem o objeto é
cedido como um dom. Implica também a materialidade desse objeto, como algo que é separado
do corpo, a título de desmame, defecação ou mesmo nos casos menos evidentes da voz e do
olhar.
Vimos que o corpo pulsional não apenas se distingue do organismo, mas interfere nele.
Trata-se de um corpo que não é dado pela natureza, com o qual o sujeito já nasce, mas um corpo
que lhe é dado pela linguagem. Isso pressupõe um Outro encarnado que possa conferir ao sujeito
esse corpo, assim como os significantes. Apesar de nascermos banhados pela linguagem, não
somos capazes de articular os significantes para constituir uma fala, sendo necessário que o
Outro nos forneça esses significantes.
Marie-Christine Laznik42 ressalta a importância dessa primeira alienação simbólica – a
necessidade de passar pelos significantes do Outro para advir à condição de falante – na
constituição do sujeito. Além dessa alienação simbólica, é preciso passar também pela
alienação imaginária (a captura pela imagem no Estádio do Espelho e a construção do eu ao
modo dessa imagem), e pela alienação real, que diz respeito à instauração do circuito pulsional.
É o fracasso desta última, no autismo, que impede o investimento das zonas erógenas e a própria
capacidade de investimento nos objetos.
Essa alienação situada nas três dimensões – real, simbólica e imaginária – mostra que,
para Lacan, é primordialmente do Outro que recebemos os significantes com os quais vamos
42
LAZNIK, M.-C. Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito
pulsional..., op. cit., p. 49-68.
12
construir a nossa fala, a imagem unificadora que vai constituir o nosso eu e o nosso próprio
corpo. A alienação, portanto, não deve ser tomada aqui no sentido comum, negativo, enquanto
alienação política, mas como uma passagem necessária na constituição do sujeito. É a partir
dos significantes do Outro, por exemplo, que cada um vai poder articular a sua própria fala,
distinta de todas as outras.
Dito isso, é curioso constatar, nos dias de hoje, a popularidade de um discurso que prega
uma autonomia do indivíduo, afirmando que este pode decidir a sua identidade, inclusive a
identidade sexual – dita “identidade de gênero” – e definir o seu corpo a partir de uma escolha
consciente, de um ato de vontade. Esse discurso vai no sentido contrário aos avanços teóricos
e clínicos da psicanálise. Se a descoberta freudiana nos mostrou que não temos uma relação
instintiva com o nosso corpo e com a sexualidade, mas que tal relação é moldada pela
linguagem, isso não significa que ela seja fruto de escolhas conscientes, feitas por um sujeito
indiviso, sem divisão. Nem que possa se instalar sem o Outro, muito pelo contrário.
Tampouco faz sentido a definição, em tom de denúncia, da linguagem como transmissora
de normas e de proibições que dizem respeito ao desejo. Essa pretensa denúncia parte de uma
noção do desejo enquanto imanente, logicamente anterior às interdições que sobre ele recaem.
Tal noção merece ser classificada como pré-freudiana, no que ela ignora as condições de
estabelecimento do desejo em relação à lei, que Lacan sintetizou com a máxima: “O desejo e
a lei são uma e a mesma coisa” 43.
É preciso reconhecer, de fato, a radicalidade da teoria psicanalítica – o que não
significa, simplesmente, repetir seus enunciados –, para evitar cairmos na arapuca de discursos
que, ao se apresentarem como libertadores do corpo e da sexualidade, só fazem nos aprisionar
a concepções rudimentares dessas noções.
43
LACAN, J. O Seminário, Livro 10: a angústia, op. cit., p. 120.
13