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ROBERT BLANCHÉ
Introdução
psicológicas não está ligada à existência de fatos mentais específicos, não será,
então, em vista do estado atual da Psicologia, um empreendimento supérfluo1.
Repudiar o realismo é perfilar-se ao lado daqueles a que a tradição chama
idealistas. Mas, é preciso considerar que entre as doutrinas geralmente
recobertas pelo nome idealismo há uma que não podemos qualificar de outro
modo que como realista. Isto é, não podemos dar nenhum abrigo à noção de
idealismo ontológico. Situando nossa tese na corrente idealista, referimo-nos
apenas a um idealismo epistemológico. Mas, importa, no limiar deste exame,
assinalar um singular engano que mais de uma vez se cometeu a respeito deste
último. Se o fazemos, não é apenas para evitar nele recair, é também porque ele
nos dá um novo testemunho da facilidade com a qual o espírito deixa-se ir em
direção ao realismo. Trata-se da curiosa confusão pela qual o idealismo
epistemológico, que implica a rejeição do realismo psicológico, é identificado
justamente a ele: como se a essência do idealismo consistisse em reduzir toda
existência à existência mental. Certamente, tal era bem a significação do
idealismo ontológico, pois as idéias às quais reduz ele as coisas são por sua vez
concebidas como coisas mentais, não como atos de intelecção. Mas, criticar o
idealismo epistemológico, tomando-o pelo idealismo ontológico, como o faz
por exemplo Russel, é enganar-se completamente de endereço. Suas objeções
incidindo, na verdade, contra um realismo psicológico de tendências
subjetivistas, nada de espantoso que esta transposição se revele inconsistente, e
que o idealismo epistemológico possa, aqui, concordar com seu adversário na
repulsa a tal concepção. Se nos reportarmos, por exemplo, às críticas que Russel
formula em relação ao idealismo, veremos que este poderia subscrever todas as
proposições com as quais Russel imagina fulminá-lo. “O que estabelece a
Lógica, declara ele, ainda que se tenha o costume de chamá-lo leis do
pensamento, é tão objetivo, incidindo tão pouco sobre o mental quanto a lei da
1
É necessário precisar que se acontece, por abreviação, chamarmos simplesmente psicólogos
os que admitem o realismo psicológico, nosso estudo não é de maneira alguma dirigido contra
a Psicologia, mas apenas contra certa tese de que a Psicologia clássica permaneceu solidária
sem ver seu caráter metafísico, e da qual a Psicologia atual teria, acreditamos nós, todo
interesse em se libertar. Não se deve esquecer que a afirmação de uma Psicologia científica
limitada ao estudo dos fenômenos não era em sua origem senão o reverso da negação de uma
Psicologia metafísica que pretendia provar pela observação interior a substancialidade da
alma. Esta negação conserva hoje ainda toda sua força. Mas a alternativa do substancialismo e
do fenomenismo que os psicólogos clássicos se compraziam em estabelecer é tão falsa quanto
o é, no interior do fenomenismo, a que faz nascer a discussão do behaviorismo, e
precisamente pela mesma razão. Que se trate, com efeito, de realidade substancial ou de
realidade fenomenal, é sempre às voltas com uma concepção realista do espírito que estamos,
e é essa concepção, ela própria, que, uma vez que impõe a escolha entre teses opostas e
igualmente embaraçantes, deveria, de saída, ser posta em discussão. À alternativa do
substancialismo e do fenomenismo, que permanece no plano do realismo, é necessário
substituir, ainda uma vez, a do realismo e de seu contrário.
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do psíquico não pode passar por aí, uma vez que ela separaria fatos idênticos”.
A impressão será confirmada se examinamos a maneira pela qual Binet põe o
problema da união do espírito e do corpo. Para ele, as principais dificuldades
deste problema “provêm destes dois fatos, que parecem incompatíveis: de uma
parte nosso pensamento é condicionado por certo movimento intra-cerebral de
moléculas e átomos e, de outra parte, este mesmo pensamento não tem
consciência deste movimento molecular. Como é possível que nossa
consciência ignore este evento fisiológico do qual depende e, como se jorrasse
de nosso sistema nervoso, se volte para um objeto longínquo?”. Vê-se que a tese
de Binet é desprovida de toda significação, uma vez que ela consagra,
finalmente, a distinção tradicional a que ela parecia se opor, levando a enunciar
o problema das relações espírito/corpo nos mesmos termos em que o formulava
o realismo dualista inerente à Psicologia clássica. Que um autor tenha podido
recair no dualismo psicofísico, após ter definido o espírito pela atividade de
conhecimento e tê-lo assim distinguido ao mesmo tempo de um sujeito
substancial e de todo conteúdo fenomenal, eis o que seria, sem dúvida,
inexplicável, se o realismo não tivesse se imposto a ele com toda a força de um
preconceito. É porque ele nos dava um exemplo particularmente impressionante
deste preconceito, e porque o dava aplicando-se, justamente, ao problema que
nos propomos tratar, que julgamos oportuno mencionar aqui seu estudo.
Em resumo, se convém, como o dizíamos, liberar a Psicologia da tese do
realismo psicológico, isto é, da afirmação de que existe uma realidade mental
específica, esta primeira dissociação nos parece solidária de uma segunda, que
deveria, desta vez, operar-se na noção confusa de realidade mental, para separar
as duas idéias de espírito e de realidade. Assim se explicaria o caráter ilusório
de uma Psicologia concebida como “Física” do espírito e a divisão que tende
espontaneamente a estabelecer-se entre duas espécies de Psicologia, uma das
quais é uma ciência da natureza, mas nada tem a ver com o mental, e a outra um
estudo do espírito, mas profundamente diferente das ciências naturais. Ora, esta
dissociação entre o espírito e a realidade, nós a encontramos feita nesta forma
de idealismo que é o idealismo epistemológico. Explicando a objetividade do
real pelas leis que o pensamento impõe aos fenômenos, o idealismo
epistemológico, por isso mesmo, distingue a atividade intelectual ao mesmo
tempo do dado sensível sobre o qual ela se exerce e do universo objetivo que
ela se esforça por construir. Ele evita, assim, confundir a ordem do pensamento
e a ordem da existência, e reduzir o espírito a uma espécie de realidade, como o
faz este realismo da idéia que se chama idealismo ontológico. Nós não tivemos,
por conseguinte, senão que nos deixar guiar por esta corrente de pensamento, o
idealismo epistemológico, quer dizer que nós não pretendemos originalidade
para as idéias diretoras do nosso trabalho. Restava-nos, somente, uma dupla
tarefa a realizar. Era preciso primeiro aplicar o princípio idealista ao problema
que nós nos púnhamos. Para isso, não bastava extrair deste princípio a
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CAPÍTULO I
Físico e Mental
Reencontra-se, assim, a distinção entre o fato psíquico, que não é um fato senão
para aquele que se acha por ele afetado, e o fato físico, cuja existência e cuja
natureza independem da maneira pela qual aparece às consciências individuais e
ao qual, por esta razão, se reserva propriamente o nome de fato. Ei-nos, então,
em presença de um outro sentido da palavra fato, repousando, ele também,
sobre o uso, e que se distingue do primeiro ou mesmo a ele se opõe. Mas, que
significa, exatamente, esta oposição entre o fato e a imagem? Não se trata, para
dizer a verdade, de uma separação entre dois tipos de fatos, dos quais um seria
totalmente estranho ao outro. A retidão do bastão não se opõe, de modo
nenhum, à minha sensação visual, e menos ainda a toda sensação possível.
Perceber não quebrado o bastão, enquanto que é quebrada a linha que dá sua
imagem visual, é afirmar que o bastão apareceria como não quebrado ao tato, e
mesmo à visão se o retirássemos da água. Não é, então, negar a imagem atual; é,
ao contrário, afirmar que uma necessidade a liga a outras imagens determinadas.
A diferença que separa a imagem subjetiva do fato objetivo não é outra senão a
diferença que separa a imagem considerada isoladamente da imagem integrada
num sistema no qual cada uma está ligada necessariamente a todas as outras. É,
então, a concepção das leis da natureza, leis segundo as quais a presença de
cada imagem é determinável em função de outras imagens, que nos permite
passar da subjetividade da imagem à objetividade do fato. Uma consciência
reduzida, como o quer o sensualismo, a contemplar passivamente uma sucessão
de imagens, seria absolutamente incapaz de distinguir o fato da aparência: para
ela, não haveria senão aparências, mais ou menos vivas somente. O laço que
une as aparências para fazê-las entrar no sistema do conhecimento não pode ser
dado, mas apenas concebido. Só o pensamento é capaz de estabelecer relações
entre as aparências para assim constituir fatos. O fato é obra do espírito, que
explica a presença de cada imagem ligando-a a outras com a ajuda de leis
convenientemente escolhidas, e que, compreendendo-a, confere-lhe assim
alguma objetividade.
Assim, quando dizemos: É um fato, referimo-nos ora à experiência bruta
(às imagens tais como seriam dadas antes de toda tentativa de interpretação),
ora à experiência organizada (na qual o pensamento conseguiria compreender
cada imagem, determinando seu lugar no conjunto das imagens). Para dizer a
verdade, a significação habitual da palavra oscila entre essas duas significações
extremas, em vez de coincidir exatamente com uma ou com a outra, e esta
indecisão favorece a confusão entre os dois sentidos. De uma parte, não há
jamais, para nós, fato bruto, não há jamais imagem separada de toda
interpretação: pois não há imagem senão para uma consciência que é por ela
afetada, e que não pode sê-lo sem saber ao mesmo tempo que o é: em
consciência há ciência. Esta pura imagem não é, então, senão um termo ideal,
que não pode ser efetivamente dado, uma vez que suporia ao mesmo tempo a
vigília e o sono da consciência. Assim, é impossível falar dela propriamente, e
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sem se deixar trair pela expressão. Todas as palavras de que nos servimos põem
a dualidade de uma consciência passiva e das imagens que ela acolheria, como a
placa fotográfica acolhe as impressões luminosas, enquanto que nesse estado de
pura sensação a dualidade do senciente e do sentido desaparece. Isso quer dizer
que o fato bruto se reduz a um limite2. Mas o mesmo ocorre com o fato objetivo.
Um fato qualquer só seria plenamente objetivo se o espírito fosse capaz de ligá-
lo à totalidade dos outros fatos, o que ele só poderia fazer se possuísse o sistema
acabado das leis da natureza e o conhecimento perfeito de todas as partes do
universo. Pois não basta que uma imagem seja relacionada a algumas outras
para que se tenha o direito de conferir-lhe, com certeza, a objetividade: é
preciso ainda que esse sistema limitado de imagens venha a ser, por sua vez,
inserido no sistema universal. É inútil sublinhar que o desenvolvimento da
ciência, ainda que permitindo estender sobre as imagens uma rede de leis cada
vez mais vasta e cada vez mais cerrada, recua ao mesmo tempo para um
longínquo cada vez mais inacessível o acabamento do sistema que ela trabalha
para construir. Devemos, então, rigorosamente falando, duvidar em algum grau
da objetividade de todos os fatos, na medida em que não sabemos organizá-los
em um sistema único. E assim, tal como o fato bruto, o fato objetivo não passa
de um limite, aquele para o qual tende o espírito em seu esforço para constituir a
ciência da natureza.
Isolando e apresentando em toda sua pureza cada uma das duas
significações que comporta, confundidas, a acepção usual da palavra fato,
chega-se a essa afirmação: jamais nos achamos em presença de fatos brutos ou
de fatos objetivos, mas somente diante de fatos situados numa série que,
segundo o sentido em que é percorrida, tende seja para o fato bruto, seja para o
fato objetivo. O que chamamos um fato é sempre um tecido de afirmações. Mas,
de afirmações que jamais formam um sistema que se possa inserir num sistema
total perfeitamente coerente. Nenhum fato é, então, para falar propriamente,
bruto, nem objetivo. Todo fato tomará a fisionomia de um ou do outro,
conforme for comparado a um sistema mais vasto que o compreenda ou, ao
contrário, a um sistema menos vasto nele compreendido. É por isso que nenhum
2
Entendemos por imagem, ou por experiência bruta, o limite ideal para o qual tende uma
análise que parte de nosso conhecimento atual, e não um estado que precederia realmente a
experiência organizada. Falando de imagens, queremos dizer simplesmente que nosso
conhecimento do real não se resolve num sistema de relações puramente formais como
aquelas de que se ocupam as matemáticas e a lógica, e que o valor de verdade das proposições
físicas vem de que elas incidem sempre, no fim das contas, sobre um dado sensível, mesmo se
esse dado é cada vez mais mascarado pelas afirmações que o interpretam. Estamos, então,
longe de sustentar que o conhecimento comece, cronologicamente, pela sensação bruta, para
elevar-se progressivamente ao pensamento. Da sensação bruta jamais seria possível sair, do
mesmo modo que, partindo do começo indefinidamente recuado do tempo, jamais se chegaria
ao presente, mas pode-se, idealmente, remontar indefinidamente do presente ao passado e, do
mesmo modo, cortar pouco a pouco da percepção atual as afirmações que a envolvem.
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dos exemplos que se possa dar de fato bruto ou de fato objetivo será exatamente
conveniente. Mas é útil, e mesmo indispensável, se se quer tranquilizar-se
quanto ao risco de confusão, pôr em relevo e apresentar separadamente as duas
significações extremas entre as quais oscila a significação ordinária da palavra
fato. Que fique entendido, então, que, doravante, quando, em nosso texto,
falarmos de fato bruto ou de fato objetivo, estaremos designando unicamente
dois limites puramente ideais distinguidos pela análise. Limites estes que são
exatamente aqueles entre os quais se move o conhecimento. O conhecimento
consiste não em acumular o maior número possível de imagens, menos ainda em
achar por trás das imagens uma realidade mais profunda que elas dissimulariam,
mas em relacionar, umas às outras, imagens dadas das quais se parte, mediante
laços necessários denominados leis da natureza. Em outros termos, a obra do
pensamento, primeiro na percepção, em seguida na ciência, consiste em fabricar
uma rede de relações que responda à dupla condição de constituir um sistema
inteligível e de aplicar-se às imagens dadas, conferindo, assim, por uma mesma
operação, ao conhecimento, o valor objetivo, ao real, a inteligibilidade; ou mais
exatamente, fabricando ao mesmo tempo o conhecimento, conferindo-lhe um
valor objetivo, e o real, conferindo-lhe a inteligibilidade. Estas relações não
devem ser consideradas como reais, mas somente como verdadeiras3; elas não
são nem fatos brutos, uma vez que os supõem, nem fatos objetivos, uma vez que
servem para construí-los. Elas pertencem a uma outra ordem que não a do fato
ou da realidade e que se pode chamar a ordem do pensamento ou da verdade.
Isso posto, como convém entender a oposição tradicional entre o mental e
o físico?
Desde logo, a diferença que se estabelece entre a realidade das imagens e
a realidade do mundo físico não é, de maneira nenhuma, a que separaria duas
espécies de realidade justapostas num mesmo universo, mas a que separa dois
planos de realidades, os dois planos extremos, um dos quais marca o ponto de
partida e o outro o ponto de chegada, de nosso conhecimento do real. Ou o real
é para mim o dado puro e simples, abstração feita de toda afirmação de uma
relação entre esse dado e alguma outra coisa: o que é real são então as
imagens que constituem o resíduo concreto de meu pensamento atual, de tal
maneira reduzindo-se, desse ponto de vista, a essas imagens que ocupam
atualmente minha consciência, que, nesse plano inferior de conhecimento, todo
o real seria psíquico. Ou o real é o objetivo, é aquilo cuja existência, podendo
ser estabelecida pelo pensamento, ultrapassa os limites de minha
3
As denominações são livres, e pode-se, se se quer, empregar real no sentido de verdadeiro.
É bem o que se faz, cremos nós, quando se diz que as leis naturais são reais, ou quando se diz
que elas existem: tomam-se essas palavras num sentido laudatório, para exprimir que elas não
são ilusórias, que elas têm um valor objetivo, numa palavra, que elas são verdadeiras. Mas
haveria um erro evidente em passar dessa simples denominação à afirmação de que elas
possuem os caracteres do que se entende ordinariamente por realidade.
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que é a mente, e depois uma quarta forma para conhecer esse conhecimento da
mente? Não é verdadeiro que, assim como não podemos experimentar uma
sensação sem saber que a experimentamos, tampouco podemos saber isto sem
saber que o sabemos, e sem saber isto ainda? Este encaixamento ilimitado de
experiências, que a experiência sensível, previamente, suporia, é como que uma
prova por absurdo do erro que comete o psicólogo quando interpõe, entre o
espírito e o conhecimento sensível, um conhecimento introspectivo. Vítima da
ilusão realista (que comanda tudo situar no plano da existência), ele toma por
uma coisa de uma espécie nova o conhecimento das coisas; de tal modo que ele
deverá supor, para explicar que se possa conhecer uma coisa, uma espécie de
conhecimento de segundo grau pelo qual se conhece, previamente, esta coisa
mental que é o conhecimento da coisa. A verdade é muito mais simples: é que
toda experiência supõe a dualidade de um objeto de experiência e de um ato de
conhecimento. Os objetos de experiência, os únicos que podem ser dados, são
as imagens que nos dão os sentidos, de sorte que toda a experiência é sensível.
Mas a sensação supõe, além da qualidade sensível, o espírito ao qual ela seja
dada e que a põe como qualidade sensível: é por isso que a pura sensação não é
senão um limite inacessível. Em outros termos, não há, falando propriamente,
“dados de consciência”, só há dados dos sentidos e a consciência desses dados;
consciência, isto é, conhecimento, e não realidade a conhecer; a consciência é
um ato, o próprio ato de saber, e não um objeto de contemplação. A oposição da
experiência interna à experiência externa, convenientemente interpretada, nada
mais significa agora do que a obrigação de distinguir, na própria experiência, o
pensamento que conhece e a realidade conhecida. Esta oposição é, então,
equívoca: ora ela marca a distância que separa duas maneiras extremas de
considerar a realidade, ora ela designa a correlação, no interior de todo
conhecimento, do ato de conhecer e do objeto conhecido. Pela terceira vez,
chegamos à mesma conclusão: que se examine a oposição tradicional do físico e
do mental, ou a do objetivo e do subjetivo, ou ainda a da experiência externa e
da experiência interna, por toda parte encontram-se, confundidas numa única
dualidade, a dupla dualidade de dois planos extremos de realidade, de um lado,
da ordem da realidade e da ordem do pensamento, do outro.
Esta confusão sendo reconhecida, nada impede a conservação da
distinção entre o físico e o mental, desde que se a traduza, tacitamente, numa ou
noutra das duas distinções que ela recobre, de maneira a não aplicar a uma o que
só convém à outra. Ora a oposição do físico e do mental significará a oposição
do fato objetivo ao fato bruto, ou seja, do universo à imagem; ora designará a
oposição da realidade e do pensamento (caso em que seria necessário ainda dar
a saber se a realidade que se distingue do pensamento é a realidade da imagem
ou a do universo). Qualquer que seja, aliás, dessas duas traduções, a que se
adote, jamais se deverá interpretar o dualismo psicofísico como um dualismo
ôntico, justapondo num mesmo universo duas espécies de realidades.
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CAPÍTULO II
A Imagem
4
Tal seria, para dar um exemplo, a opinião de Claparède (Point de vue du psychologue et
point de vue du sujet, Archives de psychologie, t. XXIII, no 89, abril 1931). Claparède aceita a
identificação da sensação à qualidade sensível quando ela é feita do ponto de vista do sujeito.
Mas contesta que ela permaneça válida do ponto de vista do psicólogo, isto é, do cientista que
observa o sujeito de fora para estudá-lo. “É só para o sujeito que a sensação coincide com o
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Robert Blanché 28
objeto sentido, pois, para o psicólogo, há sempre duas coisas: o objeto, o excitante, de um
lado, e de outro, a reação do sujeito a este excitante (a sensação, a percepção)”. Mas toda a
questão seria justamente a de saber se o observador tem o direito de assimilar a reação do
sujeito a uma sensação. Claparède escreve que o psíquico, considerado do ponto de vista do
psicólogo, “só pode ser algo de inextenso, de não espacial e de interior ao sujeito, designando
por “interior” o fato de que os fenômenos desta ordem só são conhecidos do próprio sujeito.
Esses caracteres (inextenso, interior, etc), não dependem de qualquer teoria, eles são
puramente empíricos. Eles apenas exprimem, apenas descrevem, a situação de fato diante da
qual se encontra o psicólogo”. Como pode-se dizer que, afirmando esses caracteres, o
psicólogo exprima simplesmente um fato, quando se admite que o fenômeno psíquico, por
natureza, lhe escapa, sendo conhecido apenas do próprio sujeito? O fato em presença do qual
me encontro aqui, eu psicólogo, é que esses fenômenos psíquicos “se furtam a meus sentidos,
que eu não posso esperar, mesmo com os aparelhos de radioscopia mais aperfeiçoados,
apercebê-los um dia dentro do crânio do meu sujeito”. Como posso afirmar, então, o que quer
que seja? Seria o mesmo que afirmar como um fato de experiência a presença nesta gaveta de
um fenômeno inextenso, inacessível aos sentidos, e conhecido apenas da mesa, e alegar como
prova a impossibilidade absoluta de percebê-lo. A conclusão normal de experiências negativas
desse gênero é que não há nada. A menos que se pense ter razões de crer na existência da
sensação no sujeito, e é, evidentemente, o que quer dizer Claparède. Essas razões são as
próprias declarações do sujeito, que fazem parte de sua reação ao excitante, e que trariam ao
psicólogo uma informação sobre a existência duma realidade que ele próprio não perceberia.
Evidentemente, o cientista tem o direito de aceitar as informações que lhe dão testemunhas
competentes e de boa fé, mas é preciso que ele interprete corretamente o sentido de suas
declarações, mesmo verídicas. Ora, a realidade da qual o sujeito que diz “vejo uma árvore”
assinala a existência, é a árvore, objeto físico, e não uma imagem, duplicata psíquica do
objeto. Claparède concorda com isto. “Do ponto de vista do sujeito, declara ele, é sempre o
objeto que é medido ou avaliado, e não a imagem ou a percepção mentais correspondentes a
este objeto. Para o sujeito, a avaliação incide sempre sobre objetos. Para o sujeito, não há
sensações, só há excitantes”. Nessas condições, pergunta-se que razões subsistem para afirmar
a existência desses “fatos psíquicos” que não são acessíveis a ninguém, escapando tanto ao
conhecimento do sujeito quanto à experiência do psicólogo.
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leis que a ciência pode formular, elas não dependem do capricho individual.
Assim, não são pessoais nem incomunicáveis. Pelo contrário, cada uma delas
pode, de direito senão de fato, ser calculada com precisão. E é nesta
dependência rigorosa em que elas estão umas das outras que consiste a
objetividade do mundo. O objeto não é a causa das sensações, ele é construído
pelo pensamento com a ajuda das sensações. Certamente, os “objetos” aos quais
chega a Física contemporânea não se assemelham aos que nos dá a percepção;
pode parecer que toda imagem sensível desapareceu completamente. Mas é
evidente que estas construções intelectuais, sob pena de permanecerem
inteiramente vãs, devem alcançar, finalmente, a experiência sensível, e que estas
redes superpostas de relações inteligíveis só têm valor de verdade porque se
estabelecem a partir de dados concretos. Assim, distinguir a sensação ou o
estado psíquico da coisa exterior ou objeto físico significa distinguir entre o fato
bruto, a imagem dada isoladamente, e o fato objetivo, aquele que a ciência
busca construir. Querer estabelecer entre estes dois fatos uma relação de
causalidade seria um empreendimento ilusório, uma vez que a palavra fato não
tem, nos dois casos, a mesma significação. É claro que não é o segundo termo
que é causa do primeiro, uma vez que, pelo contrário, o supõe. Dizer, com o
realismo materialista, que o objeto é causa de minha sensação é o mesmo que
afirmar que a ciência é causa da experiência. Aliás, seria igualmente irrazoável
reverter entre esses dois termos a relação de causalidade. O mundo não é
composto de outros elementos que não de imagens, mas é preciso, para que as
imagens componham o mundo, que elas sejam relacionadas umas às outras pelo
pensamento. Pode-se então dizer, mas em dois sentidos um pouco diferentes,
seja que o mundo só é composto de imagens, seja que ele é algo mais que um
conjunto de imagens. Do mesmo modo, pode-se dizer de uma casa, seja que ela
só é composta de pedras, seja que ela é algo mais que um conjunto de pedras:
este algo mais é o plano do arquiteto, que não é um objeto acrescentado às
pedras, mas um plano que presidiu a distribuição da pedras. A imagem é
comparável à pedra, o objeto físico, à casa. A diferença entre o objeto físico e a
sensação não é a de duas realidades heterogêneas que entram como ingredientes
na composição de um mesmo universo, é a das sensações ligadas pelo
pensamento e da sensação considerada isoladamente. As sensações não são
produtos e como que dejetos do mundo, elas são os materiais com os quais o
pensamento constrói o mundo.
Não se pode então nem distinguir onticamente sensação e objeto, nem
reduzir pura e simplesmente o objeto à sensação, nem a sensação ao objeto. A
distinção só pode ser a de dois planos de realidade, o que implica a distinção
correlativa de duas ordens: a ordem da realidade e a ordem do pensamento.
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CAPÍTULO III
O Pensamento
1. O Pensamento Reflexivo
que não a afirmação: nenhum avarento é feliz. Mas, se se põe primeiro que
nenhum avarento é feliz e se pede a justificativa deste juízo, não basta mais,
para resolver o problema, deixar-se guiar pela necessidade lógica, esperando
que ela leve a uma solução determinada, pois há uma multidão de justificações
válidas, seu número não tendo outros limites que não os da engenhosidade do
pesquisador. Manifesta-se, aqui, o poder de invenção do espírito: ele é livre, não
somente nisto que ele não sofre constrangimento físico, mas também nisto que,
no interior dos limites que lhe traça a lógica, ele é capaz de criações
imprevisíveis. Estas criações não serão equivalentes para a razão, uma vez que
umas darão ao problema uma solução mais simples ou mais direta que as outras;
mas serão equivalentes do ponto de vista da pura lógica, uma vez que um
raciocínio longo e complicado, desde que seja rigoroso, possui o mesmo valor
demonstrativo que uma raciocínio curto e simples. Ora, uma atividade desse
gênero está longe de ser excepcional. Todos os problemas técnicos, todos os
que põe cada homem no exercício de seu ofício, comportam estas operações
analíticas, já que consistem em buscar os meios capazes de levar a certos fins,
isto é, em remontar do resultado almejado às condições suscetíveis de levar a
ele: como obter uma clientela numerosa, como construir tal casa, como curar
este doente, como conseguir uma abundante colheita. Nenhum desses
problemas comporta uma solução única, de maneira que se possa, conhecendo
exatamente as circunstâncias, prevê-la com certeza. Peça a vinte engenheiros o
projeto de uma máquina para um uso determinado e tudo o de que você poderá
estar seguro é de que vinte projetos diferentes lhe serão apresentados. E se você
consegue prever com bastante exatidão, não, certamente, o detalhe do projetos,
mas, pelo menos, suas grandes linhas comuns, não foi seguindo no espírito de
seus engenheiros não sei que mecanismo psicológico pelo qual se fabricaria
neles a invenção da máquina, é que você mesmo, engenheiro ocasional, buscou
resolver por seus próprios meios o problema que você lhes tinha posto. Mas esta
contingência dos juízos não é limitada à solução dos problemas técnicos; ela se
estende por toda parte onde o espírito procede por análise; ela se encontra então
no enunciado das leis naturais, planando, assim, sobre o conjunto das ciências
da natureza. Os que pretendem descobrir as leis do funcionamento do espírito
imaginam que há leis da natureza, perfeitamente definidas e em número bem
determinado, e que para descobri-las, basta ao cientista saber lê-las uma a uma
na experiência graças a engenhosos métodos. Ora, as leis não são de modo
algum estabelecidas previamente, de modo que reste apenas descobri-las; é
preciso fazê-las, inventá-las, e nesta invenção da ciência se manifesta o poder
criador do espírito. O cientista, em presença dos fatos que ele deve explicar,
acha-se numa situação comparável à do homem a quem se pede que formule
premissas capazes de justificar um juízo. Todo vigor de uma inteligência
preocupada com evitar a menor falta de ordem lógica é aqui impotente para
achar uma resposta que se imponha, pois há uma infinidade de respostas
A Noção de Fato Psíquico
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5
Será necessário sublinhar que se trata aqui de uma dedutibilidade de direito, e não de fato? A
afirmação do determinismo, no sentido em que a entendemos, é da ordem da razão
“constituinte”, e esta exigência do pensamento deve ser distinguida da concepção positiva que
permite se fazer do determinismo o estado da ciência do momento dado de seu
desenvolvimento. É por isso que nós não tínhamos que levar em conta o “indeterminismo” da
nova física. Nós não temos, com efeito, que nos ocupar das dificuldades com as quais os
espírito se choca em seu esforço para entender o universo. O essencial é que ele não se deixa
intimidar por elas, e que ele põe em princípio que jamais qualquer uma delas deve ser
declarada inultrapassável. Se o estado atual da microfísica obriga modificar alguma coisa em
nossa idéia habitual do determinismo da natureza, poderemos falar nesse sentido numa crise
do determinismo, que será ao mesmo tempo uma crise do pensamento “constituído”. Mas é
claro que nada pode nos obrigar a renunciar a uma exigência tão geral e tão formal quanto a
da inteligibilidade do real.
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6
Goblot, Traité de Logique, Paris, Colin, 1918, § 7, p.22 e 23: “Se eliminamos todas as
causas não intelectuais do juízo, as que restam não diferem mais do que se chama uma razão.
Isolando a inteligência, obrigando-a a trabalhar sozinha, determinamos o domínio da Lógica,
talhado, assim, no da Psicologia. Podemos distinguir das outras causas do juízo as razões, isto
é, de suas causas extra-intelectuais suas causas puramente intelectuais. Como elementos
puramente intelectuais, isto é, juízos, determinam outros juízos? Este segundo problema é
propriamente lógico, e ele é psicológico: quais seriam as formas e os processos de uma
atividade intelectual subtraída às influências do sentimento e ao arbítrio da vontade? As leis
lógicas não são senão as leis naturais de uma inteligência pura. É porque uma inteligência
pura é uma abstração que suas leis parecem outra coisa que não leis naturais, e que a Lógica
parece opor-se à Psicologia como uma ciência do ideal a uma ciência do real.”
A Noção de Fato Psíquico
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2. O Automatismo Mental
7
W. James, Précis de psychologie (1892), chap. XVI (trad. Fr., Paris, Rivière).
A Noção de Fato Psíquico
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a reflexão não são somente imagens, mas, sobretudo, juízos. Quando minha
atenção se concentra para resolver um problema prático ou teórico não é de
imagens que tenho necessidade, tampouco de conceitos isolados; o que me vem
ao espírito são conhecimentos, suscetíveis de verdade ou de erro. E, sem
dúvida, eu não caio imediatamente sobre aqueles de meus conhecimentos que
seriam os mais apropriados à resolução do problema; sem dúvida, eles surgem
com certa desordem, de sorte que eu deveria em seguida fazer escolhas entre os
que se tiverem apresentado e organizar de uma maneira nova os escolhidos.
Mas, enfim, é já sobre pensamentos que se exerce minha reflexão, e não sobre
dados puros e simples; e esses pensamentos, submetidos à norma do verdadeiro
e do falso, não é possível tratá-los como objetos da natureza situados no plano
da existência. Se, então, a ordem da aparição das idéias difere da ordem que a
reflexão estabelecerá depois entre elas, pelo menos esta diferença não pode ser
radical. As idéias, sendo afirmações e não realidades, não se evocam segundo
uma necessidade natural que faria existir esta após aquela; sua evocação só
pode ser regida pela necessidade lógica, que faz com que a afirmação de uma
implique a afirmação de outra. Assim, só uma diferença de grau deverá ser
achada entre o pensamento espontâneo e o pensamento reflexivo; e a única
maneira de explicar uma sucessão incoerente de idéias será tentar encontrar,
dentro dela, relações de implicação lógica. Não que tais relações posam ser
consideradas como causas da aparição das idéias. Tem-se perfeitamente razão
de dizer, por exemplo, que “a semelhança concebida como “causa produtora”
não tem nenhum sentido, nem na ordem psicológica, nem na ordem
fisiológica”8. Mas, toda a questão é justamente saber se o encadeamento das
idéias deve se explicar por causas, segundo a ordem da necessidade lógica; ou,
em outros termos, se as idéias devem ser consideradas como fenômenos que só
se explicam pelas relações naturais que fazem com que sua existência dependa
da de outros fenômenos, ou como afirmações que só se explicam pelas relações
lógicas que fazem com que sua verdade dependa da verdade de outras
afirmações. Neste último caso, a noção de um automatismo das idéias nada mais
poderia significar senão a dialética em virtude do qual as idéias se condicionam
umas as outras; de sorte que, o pensamento automático, em lugar de opor-se
radicalmente ao pensamento lógico, deveria poder, de algum modo, reduzir-se a
ele.
Mas, se se duvidasse ainda da impossibilidade de tratar as idéias como
fenômenos mentais, achar-se ia, entretanto, uma razão para rejeitar a teoria que
superpõe a atividade do juízo ao desenrolar automático das idéias logo que se
notasse que esta hipótese nos leva, no fim das contas, de volta à primeira, já
examinada, e segundo a qual a intervenção da atenção suspenderia o
automatismo mental e substituiria, no curso de nossas idéias, a legislação da
8
W. James, ibid; p.302
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 49
3. A Memória
9
Cf. James, ibid., p. 379: “Um homem que busca uma lembrança em sua memória assemelha-
se a um homem que busca um objeto perdido em sua casa”.
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 51
presente estão presentes. Sem dúvida, pode ocorrer que certos eventos se
repitam, que o evento presente reproduza o evento passado. Mas, uma vez que o
evento passado passou, como compará-lo com o evento presente para afirmar
que eles se assemelham? Pouco importa que duas coisas se assemelhem, jamais
nos daremos conta da semelhança se uma delas permanece absolutamente
invisível. Compreender-se-ia, ainda, que eu possa reconhecer um objeto já visto
comparando-o com a lembrança que guardei dele, mas não se compreende de
modo nenhum como a lembrança seria, por sua vez, reconhecida. Com que, com
efeito, a compararia eu? Não com a percepção passada, uma vez que ela não é
mais presente, passou; nem com o traço que ela deixou em meu espírito, uma
vez que este traço nada mais é do que a própria lembrança. Enfim, se a
lembrança não passa de um fenômeno de revivescência, se se reduz à
reprodução atual de um fato mental passado, ela nada mais será do que um fato
mental presente, sem nada que lhe confira sobre os outros fatos mentais
presentes o privilégio de ser uma lembrança. A lembrança, se dela se quer fazer
uma realidade mental, aparece, então, como um verdadeiro monstro, devendo
ser ao mesmo tempo presente (uma vez que se trata de um dado atual) e passada
(uma vez que é de ser reconhecida como passada que ela tira sua natureza de
lembrança). Eis porque o problema do reconhecimento, pelo qual o estado
mental presente seria relacionado ao passado, é uma das pedras no caminho da
Psicologia clássica. A verdade é que a impossibilidade de tratar os atos
intelectuais como “dados mentais” leva a um primeiro deslocamento na teoria
psicológica da memória: é preciso convir que, na operação total da memória, se
sucedem duas fases bem distintas, a primeira delas apenas, comportando
conservação e lembrança, se passaria sob a legislação da natureza e diria
respeito às aventuras de certa realidade.
Mas, esta primeira limitação é ainda insuficiente. Não somente a metade
das operações mnemônicas escapa à competência de uma “Física” do espírito,
mas também a redução da lembrança a um dado mental puro e simples
dificilmente permite compreender como ela se conserva e dificilmente permite
achar as leis naturais de sua evocação.
Consideremos primeiramente a conservação. O realismo tem apenas duas
maneiras de concebê-la. (1) Ele poderá atribuir à lembrança, realidade psíquica,
uma conservação de natureza igualmente psíquica; dirá, então, que ela subsiste
em estado inconsciente. Solução cômoda, mas cômoda demais, pois é claro que
ela é puramente verbal; e mesmo a dificuldade de conceber um modo de
conservação para uma coisa mental convidaria, por si só, a pôr em dúvida o
postulado fundamental do realismo psicológico. (2) Ele dirá que o que se
conserva não é a realidade mental, a lembrança, são as condições fisiológicas de
sua reaparição. Mas, esta nova hipótese comporta duas interpretações. Se se
pretende com ela explicar o que se passa na mente, recai-se nas dificuldades das
teorias da interação psico-física, seja que se queira abrir a rede do determinismo
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 52
perpetuamente presente, excluindo toda sucessão, uma vez que o que não é mais
ou não é ainda dado, não é de modo nenhum dado. A ordem de sucessão só
ocorre no universo objetivo, na experiência organizada pelo trabalho do
pensamento. Se então se pode conceber uma conservação do real, isto supõe,
sem dúvida, que o próprio pensamento, num sentido, se conserva, mas também
que a conservação do pensamento é de natureza bem diversa da conservação do
real. A lembrança não pode ser um simples traço do passado, uma vez que o
passado só existe pela lembrança. A análise da memória leva, então, uma vez
mais, a distinguir a ordem da realidade ou da existência e a ordem do
pensamento ou da verdade. Agora, a conservação não designa mais a
manutenção da existência, uma vez que não se pode atribuir a existência à
verdade, mas à manutenção do valor. Ora, é da própria natureza da verdade ser
dotada de um valor eterno, nenhuma potência natural podendo fazer com que o
verdadeiro cesse de ser verdadeiro. É por isso que os pensamentos se conservam
por si mesmos, na exata medida em que são pensamentos. Suponhamos que um
ser tenha concebido estabelecer entre todas as suas idéias uma coerência
perfeita, de maneira que cada uma delas se ache, direta ou indiretamente, ligada
necessariamente a todas as outras: é claro que nenhuma de suas idéias poderia
mais lhe escapar, uma vez que cada uma estaria implicada em sua idéia
presente, e que, assim sendo, ele poderia sempre reencontrá-la. Esse caso
permanece puramente teórico, mas acharemos exemplos do mesmo gênero nos
sistemas limitados de conhecimentos. Um filósofo não corre o risco de esquecer
uma de suas próprias teorias, um geômetra o de perder a lembrança dos
teoremas fundamentais da geometria. Observações análogas podem ser feitas
sobre cada homem, do qual se diz, de ordinário, que só retém o que lhe
interessa, entenda-se o que vem facilmente tomar lugar no seu sistema principal
de idéias. E compreendemos também, imediatamente, como as lembranças se
reforçam pela repetição, o que falsamente fez pensar em alguma marca que se
gravaria cada vez mais profundamente. Em realidade, não é a repetição que
desempenha um papel na conservação da lembrança. Somente, quando um
mesmo juízo é afirmado em circunstâncias diferentes, ele se agrega cada vez a
um conjunto diferente de juízos, o que lhe confere mais estabilidade. Não é o
ato da repetição que assegura mecanicamente a perpetuidade da idéia, é a
possibilidade que ele oferece ao espírito de ligá-la a outras idéias, variadas e
numerosas, e assim de compreendê-la cada vez melhor. A faculdade que tem o
espírito de conservar lembranças não é, então, outra que não a que ele tem de
passar de certas idéias às que estão em relações lógicas com elas, isto é, a
própria faculdade de pensar. É por isso que a evocação das lembranças, longe
de ser um fenômeno regido pelo determinismo, não se distingue do exercício do
pensamento. Ela não pode se fazer senão segundo as relações lógicas entre
idéias, e de modo nenhum segundo as relações naturais entre fatos. Em outros
termos, não basta dizer, com a maior parte dos psicólogos atuais, que o valor
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 56
vez que também a imagem está carregada de significação; somente, será maior a
dificuldade da interpretação, uma vez que aqui o signo perdeu quase todo valor
social, não sendo, além disso, diretamente comunicável. Em resumo, a distinção
entre pensamento automático e pensamento lógico só é legítima se ela exprime
simplesmente a diferença que separa uma sucessão de pensamentos dotada de
uma significação individual e uma sucessão de pensamentos dotada de uma
significação universalmente válida. Estes dois casos extremos se ligam, aliás,
por uma cadeia ininterrupta de casos intermediários, de modo que não há entre
pensamento anárquico e pensamento disciplinado apenas uma diferença de grau.
A explicação de uma sucessão qualquer de idéias, por incoerente que esta
sucessão pareça, não pode ser senão da natureza de uma explicação lógica e
jamais da natureza de uma explicação física, o que quer dizer que a evocação
das lembranças é regida pelas regras comuns a todo exercício do pensamento.
Podemos agora passar rapidamente sobre o reconhecimento e a
localização, que cessam de levantar problemas novos. Evocar uma lembrança é
julgar, é um ato de conhecimento, não um objeto a ser conhecido ou
reconhecido. Quanto aos objetos sobre os quais incidem os juízos, é claro que
perguntar como podemos reconhecê-los vem a ser o mesmo que perguntar como
podemos conservar e evocar conhecimentos adquiridos outrora. Se a Psicologia
clássica se acha embaraçada para explicar o reconhecimento, é precisamente
porque o problema do reconhecimento reduz-se ao da memória intelectual, que
não pode ser convenientemente posto devido à posição por ela dotada. É ainda à
memória intelectual que remete a questão dita da localização das lembranças, a
inexatidão resultando do erro inicial pelo qual se faz da lembrança uma coisa. A
localização não incide sobre a lembrança, mas, graças à lembrança, sobre os
acontecimentos. Não é minha lembrança de uma viagem que fiz que é datada, o
datado é a viagem; e não posso atribuir-lhe uma data senão pelo conhecimento
que tenho ou desta data ou de certo detalhe da viagem, cuja relação cronológica
com outro evento, de data por mim conhecida, é conhecida por mim. Vê-se,
claramente, com este exemplo, como o problema da localização leva logo a
rejeitar a concepção realista da lembrança. Uma lembrança não é um evento
psíquico atual reproduzindo um evento psíquico passado, é um juízo atual,
conhecimento de um evento passado, e não é de modo algum localizada, mas
localizante, uma vez que não é uma realidade mas um ato de pensamento sobre
uma realidade. Assim, o exercício da memória só pode ser explicado se o
reduzimos ao exercício do pensamento.
Não há, então, razão para superpor dois modos totalmente heterogêneos
de sucessão dos pensamentos, um deles, pelo menos, obedecendo ao
determinismo natural, e podendo, assim, ser objeto de uma ciência positiva dos
fatos mentais. Pensamentos, por humildes que sejam, e mesmo não se elevando
acima do simbolismo concreto da imagem, atraem-se segundo seu sentido, e não
segundo sua existência. E se é verdadeiro que a significação de uma sequência
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 58
IV – O Pensamento Individual
enquanto é afirmada. E é por isso que, quando o sujeito afirma como verdadeira
certa relação, ele afirma, por isso mesmo, implicitamente, que não pode mais
cessar de afirmá-la, uma vez que sua afirmação consiste em obrigar-se a zelar
constantemente para que nenhuma outra afirmação esteja em desacordo com a
primeira. O constrangimento que pesa assim sobre a atividade pensante não é a
de uma realidade estranha, é o constrangimento interior da necessidade lógica.
A verdade não é então um produto inerte e capaz de subsistir por si como um
fruto maduro destacado da árvore; ela só subsiste graças ao ato pelo qual é
pensada. Em outros termos, os pensamentos, a atividade pensante e o sujeito
pensante são inseparáveis, e igualmente estranhos ao plano dos fenômenos.
Em resumo, quanto à relação dos pensamentos ao sujeito pensante temos
que escolher entre três hipóteses: ou bem os pensamentos e o pensador
pertencem igualmente à realidade fenomenal, ou bem somente os pensamentos,
ou, enfim, nem um nem outro. As duas primeiras hipóteses significam suprimir
o pensador. Uma vez que, nesse caso, o curso dos pensamentos não é senão uma
sucessão de fenômenos, o determinismo da natureza deve regê-lo; cada
pensamento deve ser levado necessariamente à existência por seus antecedentes
ou concomitantes na cadeia causal; e, em conseqüência, a atividade pensante
não é mais que uma vã palavra, destinada a mascarar nossa ignorância do
determinismo psicológico. Mas — sem insistir na absurdidade fundamental
dessa inclusão dos pensamentos no determinismo da natureza — suprimir assim
o sujeito pensante é suprimir a personalidade, uma vez que é suprimir a
existência para si. Resta então a hipótese que exclui os pensamentos do número
dos fenômenos psíquicos. Somos devolvidos à distinção entre a ordem do
pensamento e a ordem da existência, esta oscilando, segundo o grau de
organização intelectual, entre os dois planos da existência bruta ou psíquica e da
existência objetiva ou física. Livramo-nos assim da dificuldade que embaraçava
o psicólogo. Uma vez que para ele os pensamentos são fenômenos mentais, o
conhecimento que cada um tem de sua própria individualidade vai entrar ela
própria, como parte constituinte, nesta individualidade: ela será ao mesmo
tempo a idéia de um conjunto e um elemento interior a esse conjunto, ao mesmo
tempo a visão do edifício total e uma das muitas pedras do edifício. Contradição
intolerável, a que o psicólogo não pode subtrair-se a não ser caindo logo numa
outra. Pois tentar sair do embaraço invocando uma atividade sintética distinta
dos fenômenos mentais e que asseguraria a sua ligação, é agora não mais saber
“onde situar esta atividade que deveria ser então, ao mesmo tempo, mental e
exterior aos fenômenos mentais”: isto é, uma vez que se reduz todo o mental aos
fenômenos mentais, ao mesmo tempo mental e não-mental. Mas, essas
contradições se resolvem logo que, abandonando o postulado realista sobre o
qual se funda a Psicologia tradicional, recusamo-nos a situar os conhecimentos
no plano dos fenômenos, e distinguimos assim, no mental, o pensamento,
dotado de verdade, e o dado, dotado de existência. O idealismo epistemológico,
A Noção de Fato Psíquico
Robert Blanché 62