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<pa~aáÍ!Jffla~
OTIDIANO
Introdução à constituição de um
campo de análi~e social
6 João Carlos Tedesco
A epistcrne do campo interacionista 70
Inreração. ocasiões e encontros: o cenário social se fazendo 75
O indivíduo C0l110personagem em representação 79
Críticas ao interacionismo simbólico 81
4 A Etnometodologia 87 APRESENTACÃ() .:>
Fontes-auxílio da corrente etnometodológica 87
Temas fundamentais da etnornctodologia 88
Pressupostos do campo específico da etnornctodologia
A vida cotidiana no campo da ernomctodologia: as noções em
91
./ .' ,I'
ação 96 J ,fies Heller, certa feita, escreveu que a vida cotidia-
Instrumentais metodológicos que dão suporte à corrente li O I
-' na é a vida de todo o homem e é vida do homem :\
Críticas à etnometodologia 115 .inteirof No livro que ora apresentamos, o professor Te-
11
desco, entre outras coisas, cartografa o(s)campo(s) epistemológicots), ':1
5 O prcsentismo [ormista de maffcsoli 119 teóricoís) e metodológicoís)daquilo que podemos denominar de "pres- :i
:[
As suas fontes 119 supostos do cotidiano e da cotidianidade". É um trabalho de fôlego I'
Localizando alguns pressupostos J 21 quanto ao alcance da revisão bibliográfica. Nela, o autor envolve as
A epistemologia do cotidiano J 25 multiplicidades de enfoques e a pluralidade de posturas em dabate.
O auxílio de Lyotard J 36 Neste trabalho fica patente a tese de que o debate sobre o
A crítica ao prescnrisrno tormista 137 cotidiano e suas implicações nasceu no esquadrinhamento dos pró-
prios modernos. Certamente, o catálogo de implicações sobre o
. 6 O cotidiano numa vertente da tradição marxista J 43 terna não consiste apenas em arrolar a possibilidade cognitiva ins-
Os autores, as fontes e alguns pressupostos 143 trumental do conhecimento, mas torna evidente uma pergunta:
Elementos teóricos que caracterizam a vida cotidiana na ótica essas possibilidades são suficientes para reconstituir a vida doho-
marxista mais ampla 149 mem inteiro no sentido da condição humana?
Questões tcórico-mctodológicas apontadas pelo paradigrna Parece que muitos dos autores críticos da modernidade, pe-
111arxIsta 174 las leituras instrumentalizadas dos modernos, não conseguiram
Críticas à corrente marxista do cotidiano 182 "", ati~gir tal objetivo e, talvez, nem fosse e.s,se? o~j~tivo ~e!es.
;"MUltOSdesses autores permaneceram no VIeSsimbólico-estético-
discursivo. Outros, na ânsia de apreender a realidade, fixaram-se
Considerações finais apenas nas estruturas produtivas. A multiplicidade das formas de
a perspectiva de análise crítica 185 racionalidade, cuja complexidade é maior que aquela proposta pelos
conceitos, exige um exame rigoroso dos paradigmas instrumenta-
Referências bibliográficas 193 lizados. Aquilo que era percebido como o irracional passa a ser a
interface dessa complexidade num processo de intermediação en-
tre o todo e a parte. Para alcançar essa identificação torna-se pre-
ciso reconstituir uma rede de comunicação entre os momentos
e~~~cífi~osda razão que são cons~r~ídos at.r~vés da práxis cotidi~-
n~orem, alguns autores, na fúria de criticar os modern~s, cal-
ram no empobrecimento, na fragmentação e na polarizaçãoxlsssa
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João Cartos Tedesco :-Y~radigmas do '(cotidiano 9
........... _ . ... - .
forma autônoma e individualizada de entender o cotidiano está árvore e a orquídea podem formar uma totalidade agregada de mul-
esgotada, pois perdeu a sua capacidade de reencaixamento das tiplicidades relacionais. A imediatez dos olhares polarizados está su-
culturas. O cotidiano pelo cotidiano, quanto muito, consegue ex- perada. Muitas árvores morreram sufocadas por orquídeas, nem
por o sistema imunológico dos modernos, porém uma leitura mais por isso desaparece a floresta, muito menos, as orquídeas.
apurada desses mesmos modernos deixa transparecer, com algu- Portanto, o momento suportável localiza-se entre o diagnós-
ma dificuldade, que resguardam a rede imunológica contra os pos- tico e a autópsia dos modernos. Mesmo vivendo num mundo das
síveis perigos para a sociedade moderna. Com certeza, a estrutu- revoluções frustradas, solo fértil para as compensações simbóli- I
I
ra instrumental da razão moderna já não poderá ser mais a mes- cas do tudo-já-foi, observa-se um vigor criativo das novas sociabi- ,j
ma depois da releitura dos modernos e com a instalação do teore- lidades e das identificações. A racionalidade unívoca criticada cede
ma da heterogeneidade. A absolutização da heterogeneidade em espaços àquilo que o nosso autor propõe: "restabelecer relações
si atribui ênfase imensurável à dominação do discurso, eliminan- dialéticas recíprocas e de implicações entre fatos". Em outras pa-
do-se novamente a possibilidade de intermediação. Cair-se-ia, en- lavras, isso significa tratar o cotidiano com sentido histórico, polí-
tão, tão-somente na formação de linguagens radicais, porém sem tico, cultural e econômico. Dessa forma de entender o cotidiano,
produtividade metodológica na apreensão de experiências. com certeza, podemos esperar pressupostos metodológicos para a
Parece-nos que existe um momento suportável entre o fim reconstrução da existência da sociedade.
traçado pelos iluministas através de concepções de progresso e \l Aliás, existem muitas outras polarizações discursivas que
temporalidade linear e a relatividade e provisoriedade do cotidia- também estão com seus dias contados, tais como região/nacional,
no, sem cair nas aporias de um e outro. Se entendi bem o texto micro/macro, sujeito/objeto, infra/superestrutura, indivíduo/socie-
do professor Tedesco, ele nos leva a esse momento suportável. dade etc. São todas discussões que o autor não deixa escapar no
Várias vezes, o autor leva os modernos ao seu ponto crítico, colo- seu texto, ou, pelo menos, a elas faz referência. Portanto, o cami-
cando-os à exaustão de "cara contra a parede". Simultaneamente nho vislumbrado neste texto é o das múltiplas intermcdiações.
'I
a esse processo, possibilita-nos diagnosticar esses mesmos mo- Dessa forma, supera-se o lamento fácil das'carpideiras/ que cho- ~ I
dernos, através da releitura que faz de suas potencialidades radi- ram a morte dos modernos em detrimento da vitalidade das racio- .<!
cais. O diagnóstico proposto permite-nos compreender os moder- nalidades historicamente varridas para debaixo do tapete pela ver-
nos no horizonte de seu fim. Contudo, podemos dizer que ainda dade absoluta da ciência novecentista. A questão é a seguinte: se
não conseguimos captar os modernos em toda sua complexidade, as racionalidades estão presentes no mundo da vida, c disso não
pois, se assim fosse, teríamos algumas chances de superá-Ios. Pa- podemos escapar, como ampliar nossos horizontes teórico-meto-
rece que esse não é o caso aqui. O autor procura compreender os
modernos, debruçando-se sobre seu significado na medida em que
dológicos para a sua compreensão? Esse parece ser o fio condutor
das preocupações do professor Tedesco em todo o texto. Pela com- I
focaliza sua trajetória epistemológica. Essa trajetória é mapeada plexidade da questão, o caminho encontrado é uma "pedrei-
I
pela releitura que faz dos modernos e pela leitura de seus críticos, ra". É um texto que exige de nós uma força de vontade que supere
aqueles que atestaram sua morte através da autópsia. nossos esquemas a priori concebidos. A densidade, a vasta revisão
Podemos comparar essa situação àquela que encontramos bibliográfica feita pelo autor poderiam tornar o texto de difícil
na natureza. A semente de orquídea normalmente é colocada nos penetração, mas isso ocorre, evidentemente, por conta da com-
troncos e galhos de outras árvores maiores. Ali, alimentando-se, plexidade da temática em questão. Que o leitor tenha uma provei-
cresce e dá flores maravilhosas. Entretanto, a orquídea pode che- tosa leitura!
gar a sufocar a sua própria sorte: a árvore hospedeira, matando-a.
A conseqüência é a sua própria inanição e morte. Aquilo que era
observado tradicionalmente de forma isolada poderia ser uma ár- Astor Antônio Diehl
vore frondosa ou uma orquídea florida. Mas, por outro lado, a Junho de 1999
,...,
INTRODUCAO
-'
Desconfiei do mais rrivini
na aparência singela
E examinei, sobretudo, o que parece habitual.
Suplic.unus expressamente:
não aceitei" o que é de hábito
corno COi"'l natural.
pois em tcmpo de desordem san gren r a,
de confusão organizada,
de arbitr.tric d.idc consciente,
de humanidade dcsumanizada,
na(b deve parecer n.uurnl,
nada deve parecer impossível
de mudar.
B. Brcchr ~ I
,'!to se fala sobre o cotidiano, sobre práticas coti-
dianas, sobre relações cotidianas, sobre rnoderni-
.vdade e cotidiano, sobre história e cotidiano, o coti-
diano aqui, O cotidiano ali ... Mas o que é o cotidiano? É um lugar, é
uma dimensão, é um estado de espírito? Se existe o cotidiano é porque
se pressupõe um não-cotidiano. O que seria esse não-cotidiano? Quan-
do se apresenta? Fala-se em teorias do cotidiano; é possível teorizar as
miriades de situações que se apresentam no cotidiano e/ou cotidiana-
mente? Quando o cotidiano se transforma em cotidianidade? O coti-
diano pode se constituir em campo de análise social? O que ele tem de
específico em relação aos outros campos? Questões e mais questões!
Na presente análise não temos a pretensão nem condições
de dar conta disso. Queremos apenas mapear, levantar pressu-
postos analítico-metodológicos de apreensão de processos que cons-
tituem o cotidiano e que se constituem nele. O presente texto!
1 o texto foi escrito para servir de base para nossa CjILClIUrcaçào de doutoramento em
Ciências Sociais na Unicamp. apresentada em julho ele 1997.
12 João Carlos Tedesco ,f~radigmas do otidiano 13
quer perpassar algumas das abordagens que têm condições de lan- do mercado e de sua unidimensionalidade (neoliberalismo), dos
çar mão de instrumentais analíticos e que formam)~sse campo de metadiscursos totalizantes e fechados abriu horizontes de inter-
aIlfG9P§ã.QgQCeql Cf.Lél.D2-ª.ggçotidianQl9 objetivo é analisar algu- pretação do real e da vida (existência) sob formas muito pouco
mas de suas epistemes, mostrando que ambas buscam dar conta
abordadas pela razão uniformizadora do racionalismo da moder-
de seu objeto e têm muito a dizer sobre os processos que perpas-
nidade. No entanto, a esfera da heterogeneidade, da intercultura-
sam o cotidiano na atualidade, porém nem todas dão ênfase à
lidade, da desconstrução, do dissenso, do plural, do sensível e do
dimensão crítica e aos processos socioistóricos e estruturais que
subjetivo já fazia parte, como contradição, do próprio movimento
constituem e se constroem nele. Queremos, então, insistir numa
modernista, crítico que era dos discursos ,e projetos dogmáticos
abordagem crítica, numa episteme que dê ênfase aos processos
do racionalismo autoritário e totalizanto. E por isso que falar em
colonizadores e cristalizadores do cotidiano e, ao mesmo tempo,
pôs, trans, alta, baixa, anti, fim. da modernidade é complicado e
que apresente situações, canais, necessidades e possibilidades de polêmico; implica garimpar pressupostos, avaliá-Ias com os olhos
transforrná-lo.
da crítica epistêmica e da própria contemporaneidade do real.
~\Há polêmicas sobre a origem desse campo de análise, sua
Gri.tiGar,o.u.so.da"I'llzão..n.ão_signifLC..a_d,e)3k1Jf:.Lª.!l~!I1 rçfQjA-
constituição, seus métodos de apreensão do real, suas epistemo-
lª~Jomp~l-:....ç@lformas dogmátic~as não sig[lifi"º-ª__ <lll~..12ªg.ªE)_gstit_
logias e importância para o conjunto do campo sociolõgícoxàlguns
jam construindo outras, paradoxalmente, pelo viés do relativo, do
identificilm o campo do coli diano corno espaço da pós-modernida~ heterogêneo, do hedonismo e do flexível, as quais, na prática, não
ele, do pllll'a)i§IJ!Q,dQ§J.l}étodQs moles ,como urrm zonadfLflf!§cieZa con~eguem ir muito além da esfera da crítica.
daa.narrativas totalizantes e do pedestal da razão, coment~nclj~ ~ Quem leu Weber sabe que a modernidade é um meio, um
menlº!üfkgg[lcE~ris, dando 11m novo reencantamento.dQillJJndi2~tª- objetivo, como é também um problema, pois apresenta sua face
via da sociabilidade comunal e de matrizes discursivas, Já.ollt..r:o.S
~,_>«.,_.,."._.,_ .•. _ .•...... 0',0.0" .. .. ..•.. .......• __ " "0'_ .• 0.0 _._ .....• __ '0 " _, .. ,_ .. _.00.0 _', 0.0 "0_"_ o', "._ 0.0 .", __ ._~. . .. ,, __
perversara razão instrumental, que é, acima de tudo, burocrática
o tematizampelovi~J2da dialética, dQ,?macroprocessos, da racio- e utilitáriajífiiehl, 1997). É essa concepção de meio que parece ter
nalidade técnica, pragmática, burocrática enleI'çantiL [ocalizan- se esgotado. Temos a impressão de que só restam os fragmentos
do os grandes conflitos sociais (classes, capitais, técnicas,_cultu- mediadores e os lamentos dos pôs; fala-se em pós para tudo: pôs-
ras ...) que perpassam a 9sfGra"do ..cotid,tmlO,'
moderno, pós-história, pós-trabalho, pós-emancipação, pós-indus-
Hª..tel1dênciai';, emalgumas áreas das ciências sociais, de trial, pós-emprego ... O discurso radical dos pós e dos [ins, além de
ignorar a existência de uma base analítica constitutiva do chama- sua irresponsabilidade científico-acadêmica, retira todo o poten-
do C[l',I1P.o Fioc.iol{JgÚ";Q do coiidisusa, QU, então, de querer reduzi-Io
cial de autocrítica e, como conseqüência, a dimensão dialética que
a uma roupagem em direção à crítica dos modernos, da própria
a modernidade ocidental sempre teve.
modernidade e dos frutos históricos da modernização, enfatizan-
Os signos da cultura pós-moderna foram muito bem trata-
do que o mesmo nada mais é de que um locus analítico inconse-
dos e criticados por Baudrillard e Morin; há mais tempo, por Sim-
qüente e reencantado em contraposição às experiências históri-
mel, Weber, Marx, os frankfurtianos etc.; mais recentemente, por
cas frustradas de cunho coletivo e emancipador enquanto finali-
Lyotard, dentre outros, o que demonstra que o pós não é tanto
dade histórico-social, de que é nada mais que um antro de subjeti-
um depois, nem que há tão nitidamente um antes em oposição e
vismo analítico, de descontentes e (re lcontentes com o pouco, com
que nem é possível desconstruir (Lyotard, Feyerabend) e/ou reen-
o banal, com o anódino, com o plural, com o esotérico e com o
caixar tudo (Giddens), muito menos ignorar a existência do contí-
romantismo reencantador do sensível.
nuo e de processos em ruptura/redefinição."?
Acreditamos que reduzir e preconceituar apressadamente
É nesse jogo complexo e ambivalente que os paradigmas da
esse campo não seria um bom exercício de seriedade acadêmica.
sociologia da vida cotidiana se inserem para constituir seu campo.
Não temos dúvida de que o desencanto com a racionalidade obje-
Analisar as motivações, as origens da reação pós-moderna, a ten-
tiva da técnica, do industrialismo, do tempo linear, dos resultados tativa de recuperação de valores modernistas da modernidade, as
14 João Carlos Tedesco
.'Jj~radigmas do Y;'otidiano ......... 15
.. -- -- '-' ....................•....... _' , .
resistências frente ao fugidio e às definições unívocas, a noção e o IjÉ Goffman quem trabalha bem os significados da interação.
conceito, as regras duras e moles, o sujeito e o coletivo, o frag- Veremos que há uma valorização dos significados que mediatizarn
mento e a totalidade, ajaula de ferro e o reencantamento calei- as relações entre pessoas e que seu deciframento não é nada fácil;
doscópico da razão sensível etc. significa não fazer juízo de valor seus procedimentos interpretativos e critérios para seu uso. a sua
apressado, negativo nem positivo; significa um exercício de vigi- simlllação e teatralização construída revelam uma profunda capa-
lância, de lapidação, de abertura epistemológica para as grandes cidade de inventar imaginariamente as circunstâncias e os atos
transformações, rupturas e redefinições que o real nos apresenta sociais na interacão.
e para as quais nos desafia. Jogar fora o que os pós-modernos ~Os etnometodólogos também utilizam recursos fenomenoló-
analisam, preconceituosamente, só porque advogam uma pós-mo- gicos ao dar atribuiçãoao conhecimento cotidiano a partir da pro-
dernidade é, acreditamos, virar as costas para um conjunto de dução de significados partilhados pelos atores. A etnometodologia
processos e relações que perpassam e reconstroem socialmente o esforça-se para romper com os significados previamente definidos
cotidiano e o mundo mais global. O olhar analítico-reflexivo e crítico das acões reinventando-os em correspondência com a normalida-
(plural) tem dificuldade de apossar-se de camisas-de-força, sendo de q~e os próprios indivíduos dão ao social, o que possibilita a
essas, muitas vezes, forçadoras de sínteses e/ou tendentes a cair reprodução social, a constituição da vida cotidiana e de realidades
nas armadilhas dos modismos da flexibilização e do relativismo. múltiplas que se constroem na instabilidade e em descontinuida-
As várias correntes que compõem o campo da sociologia do des de significados e de mundos que nela se produzem (Martins,
cotidiano, como veremos, retomam a noção de senso comum, ob- 1998).
viamente cada uma ao seu modo. Há um revalorizar do interesse .É esse vivido pleno de significados que Lefebvre diz ser, como
sociológico pela vida cotidiana mediado pelo senso comum, talvez, veremos na abordagem marxista, a fonte das contradições da di-
como diz Martins (1998), como forma de resposta, de esperança nâmica colonizadora da cotidianidade, como momento de criação,
no homem e não na história, frente ao potencial de regeneração como resíduo, como possibilidade, como obra, como novo e como
da sociedade capitalista e de suas falsas promessas de redenção, transgressão.
de liberdade e de igualdade nunca realizadas. É sobre um pouco disso tudo que queremos refletir e que
Esse reinventar da sociedade provocou também um reinven-
constitui o campo de a.ná~~Ae~o c..otidiano ..AdEfW:rare~os basica-.
tal' do fazer sociológico, do pensamento e de alguns pressupostos mente em duas matrize~a fenomenologia e 'i1'marxlsmo, bem
da ciência social. Adentrar nas sociologias fenomenológicas, reco- como em suas tradições, vertentes e canais aproximados. Insisti-
nhecer que o senso comum possui sentido, vontades e pode tam- remos na perspectiva crítica do cotidiano, crítica da forma como a
bém se transformar na força da sociedade civil, que pode também
razão e a modernidade e seu projeto de modernização transfor-
revolucionar a vida, implica evitar as recaídas positivistas da so-
maram (colonizaram) esse cotidiano; crítica, também, da razão
ciologiaxComo veremos, a fenomenologia resgata a noção de sen- sensível de exacerbação subjetivista que tende a desfazer o emer-
so comum. gir da história, da consciência emancipadora do indivíduo social e
·~O senso comum é comum não porque seja banal ou mero e exterior de um coletivo dialético e transformador. Insistiremos na impor-
conhecimento. Mas porque é conhecimento compartilhado entre os tância do senso comurn. não como instância fechada, mas como
sujeitos da relação social, o significado a precede, pois é condição um pré-requisito para a análise do vivido, para âmbitos de suspen-
de seu estabelecimento e ocorrência. Sem significado compartilha- são e de análise científica. Queremos resgatar esse âmbito do so-
do não há interação. Além disso, não há possibilidade de que os
cial, romper preconceitos e reducionismos; em síntese, mostrar a
participantes da interação se imponham significados, já que o sig-
importância das várias abordagens que constituem essa nova matriz
nificado é reciprocamente experimentado pelos sujeitos (Martins,
1998, p. 3-4 L de interpretação do social, no sentido de localizá-Ias, de contrapô-
Ias e de agrupá-Ias no formato do campo em questão. Acreditamos
que, no início deste século, quando parece que muitas coisas es-
J
16. . ................ " ............• João Carlos Tedesco
. -- _-.
tão balançando, o cotidiano está se prestando, como laboratório
social, para os pós, para os trans, para a tradição/tradução e, por
que não, também para pensar num espaço/tempo de dialetização
do real.
Construiremos nosso texto em seis capítulos. No primeiro,
discutiremos a constituição do campo sociológicodo cotidiano ten-
tando levantar pressupostos epistemológicos do mesmo, bem como
mostrar a extrema necessidade de uma análise crítica do social
que esse campo poderia proporcionar. No segundo, escavaremos a
sociologia clássica e tradições sociológicas para retirarmos alguns
dos possíveis precursores do campo sociológico do cotidiano. A
análise mostra que muitas correntes tematizaram, de uma forma
ou de outra, a dimensão do cotidiano. No terceiro, quarto e quinto
capítulos, enfocarernos as epistemes decorrentes e/ou em parte
deduzidas e relacionadas à fenomenologia. Nossa preocupação é
com o horizonte da interação social, dos imaginários, do contexto
da ação, da intersubjetividade e do senso comum pela ótica do
interacionismo simbólico,
, da etnometodologia e\jdo presentismo
formista de Maffesolfs Procuraremos mostrar que são correntes
importantes e que tentam dar conta de processos e relações so-
ciais do e no cotidiano, mas que carecem de uma análise mais
estrutural e crítica desse âmbito social. Necessitaremos, então,
adentrar num sexto capítulo, no qual tentaremos resgatar noções,
conceitos e autores marxistas na análise do cotidiano. Nossa inten-
ção é mostrar, sem refutar o subjetivo, que a análise do cotidiano
não pode se debruçar sobre si mesma; precisa problematizar as-
pectos promotores de sua constituição, como é o caso da dimen-
são da técnica, do consumo dirigido, do tempo e do espaço funcio-
nal, do problema da alienação, dos signos e dos simulacros, dos
controles e burocratizações. O intuito é resgatar suspensões; é
dialetizar a práxis cotidiana; é construir um referencial teórico-
metodológico crítico dos processos que perpassam, constituem e
se redefinem no cotidiano.
o CANIP M
CONSTrT r CÃO
j
campo conceitual não pode nascer e se solidificar sem
ornar consciência de sua identidade interna e de sua di-
/',/ferença em relação aos outros campos que o cercam;
por isso, o seu nascimento está atrelado a canais interpretativos
incompletos, o que não significa refutar nem hipostasiar horizon-
tes genéricos já conhecidos e revelados contextualmente. O diálo-
go é parte integrante do confronto, Um campo, tratando-se de um
campo científico, delineia-se definindo-se os embates, ou seja, con-
flitos e interesses específicos, Para que um campo se constitua é
necessário que haja embate (Bourdieu, 1976).
Grande parte das teorias e das fílosofias sociais parece duali-
zar e/ou até dicotomizar as ações individuais e subjetivas e a de-
terminação objetiva das sociedades. A simultaneidade e com-
plementaridadede ambas as epistemoJogias pouco são tratadas.
Para alguns,seria isso impossível. Por um lado, as denominações
de sistêmica, holista, estrutural, substantiva e macroanalítica, por
outro, de atomista, subjetiva, compreensiva, fenomenológica e mi-
croanalítica, refletem modelos ideais e fechados das perspectivas
analíticas. Uma tematiza o papel das estruturas coercitivas e so-
ciais (Durkheim, Parsons, Lubmann ...) na determinação de com-
portamentos coletivos e individual, privilegiando o aspecto con-
ceitual do conhecimento, a externalidade em relação aos indiví-
duos, uma totalidade organizada como estrutura universal etc.,
ao passo que a outra concentra-se nos processos internos de com-
preensão e de significação do comportamento e das ações sociais
delimitadas pela vida cotidiana. Essa última preocupa-se mais com
o caráter contingente da ordem social, privilegiando, fundamen-
> .~radigmaSdo 'V'~tidiano 21
20. ~
........ "-.- ...- .. ..... João Carlos Tedesco
talmente, as negociações nas interações; sua episteme busca re- dispositivos sociais, às classes e aos sistemas. Centralizar o sujei-
futar pretensões totalizantes, centralizadoras, universalizantes e 1..) individual através de suas práticas e representações, pelas quais
uniformizadoras, próprias do racionalismo moderno. No entanto, ;-;('relaciona e negocia com a sociedade, com a cultura e com os
ambas pretendem, sim, a diferenciação, a refutação de modelos, ° .rcontecimentos, significa dizer que o cotidiano não é só vivido'
transitório, o indivíduo como liberdade e criação. A abordagem u.rna-se, sim, objeto de interrogação e de debate, ou seja, é um
pós-moderna é a que está dando, hegemonicamente, identidade .'spaço que, pela doxa (opinião), poderá chegar à reflexão e ser
II 111 a semente promotora de superações e de suspensões.
interna à estruturação do campo da sociologia do cotidiano. Gran-
de parte das análises que tematizam pelo viés do cotidiano de- "\Priorizar o efêmero, o contingente, o fragmento, o relativo,
monstra esse perfil. I) múltiplo, o sujeito etc., em vez do permanente, do coletivo e do
O campo da sociologia da vida cotidiana é fruto de uma cons- conjunto, significa possibilitar substância ao cotidiano e substi-
t.u i r a socialização de um projeto totalizante por um outro de frag-
tituição muito recente, porém sua base e seus pressupostos ad-
vêm do surgimento da chamada sociologia tradicional. O referido mentação, de centralidade e de singularidade subjetiva? Apelando
p.rra a tese da indeterminação, da ambigüidade da realidade da
campo constitui-se comouma espécie depraxeologia (Juan, 1996);
llcxibilização e da desconstrução, não se estaria descriticizando o
contempla o domínio das ações individuais, rotineiras e não orga-
nizadas - como fatos sociais - situando-as em seu ambiente insti- sujeito, jogando-o fora? Em nome do não-aprisionamento esque-
tucional-simbólico e no lugar ocupado pelos atores na estrutura mático da razão instrumental, não se estaria despersonalizando o
social. Não é algo novo para o campo sociológico como um todo próprio sujeito? São questões pouco trabalhadas até então.
essa dimensão de análise, porém ganha maior significação e cons- <~Segundo Balandier (1983), o mérito da constituição do cam-
1 da sociologia do cotidiano está em demonstrar a possibilidade
tituição em razão das especificidades e das variações dos campos, 11)
bem como dos processos multivariados e complexos que o real de estabelecer ligações entre os grandes dispositivos sociais e os
que regulam a vida cotidiana, bem como em resgatar o reapareci-
apresenta e de que as inúmeras abordagens tentam dar conta,
algumas mais aceitas, outras em fase de busca de credibilidade monto do sujeito em face das estruturas, dos sistemas e do insti-
t.uído no vivido.
dentro do campo. r
\]' O campo da sociologia do cotidiano? advém da problemática
Como já mencionamos, malgrado seus precursores, enquan-
to campo, a sociologia elo cotidiano constitui-se no embate entre que assume essa mesma dimensão de análise: aceleraçào do coti-
modernos e pós-modernos, no centro da crise das propostas tota- d 1<1 no (mercantilizaçào do tempo, do espaço, das ações...), da frag-
lizantes e/ou niilistas do pós-histórico, do pós-industrialismo, da niontação dos acontecimentos, da deslocalização (circulação rápi-
pós-tradição, da crise do pós-projeto emancipador da modernida- da dos processos, da imagem, da informação, do símbolo...), ao
de, da crítica à sociedade burocrática, tecnocrática, colonizadora e mesmo tempo, da institucionalização das decisões e dos atos roti-
fragmentadora do social e do humano, tão bem manifesta pelos nuiros, da importância dos sistemas de objetos técnicos e da velo-
críticos modernos da modernidade e também pelos ditos "pós-
modernos". Constitui-se esse processo todo num terreno fértil para
a definição de epistemes que transitam pela postura multidirecio- l)is('\\Unclo sobre o objeto da sociologia da vida cotidiana. .Jeveau (1980) resgata
,(J\I("("I(OS durkheuntntauos ele ICllOS norlllais e [aios patológicos. O autor caracte-
nal, pluralista, pela crítica aos grandes modelos coletivos de so- 1"1'/.;] a noçao de regularidade e a de vnunijestaçào bruta da atividade Iruruana.
ciedade e de formas conceituais. :\lIlh<10 _se ~OnlP?~nl. analtücamente, de urna forma relactoual. carregando consigo
IIlkraçoes uuphcuas Ou exphcítas. expressas eUl vocabulartos. tais corno rito ín-
É por isso que a sociologia do cotidiano está hoje em grande ",r;\~·,io. transação. código. relação face a face. jogo. sociabilidade e afettvídade
expansão. Porém, como nos diz Balandier (1983), seu objeto care- ."q~l1l1do o autor. o coudrauo 11<10 pode ser isolac1o enquant.o categoria distinta do
-,Hei,d. pois no cotidiano se manifestam as tensões. os conflitos'. os desenvolvi-
ce de uma melhor definição e seu campo de intervenção tem limi- "II'ldos ídeotogtcos. as crises. os p r occssos de alienação (burocracia. consumo. os
I'IO"C:-'SOS institltciOnaisl.\o ..
CJue demonstra que a sociologia da vida cotidiana não
tes problemáticos. O sujeito individual, suas relações próximas e
I', JII'('{'ssal·ialllente. uma 1~"'OSSOCiologia.urna pequena história quando compara-
regulares, não está isento de vínculos em relação aos grandes d.• {'(IIII a história.
':'Y~radigmas do 'totidiano ..........
-.,..._.__
.... 23
22 João Carlos Tedesco
...-~ -- --..----
por modernistas. Com isso não queremos dizer que a radicaliza-
cidade e funcionalidade que esses dimensionam etc., quer dizer,
ção crítica dos princípios modernos pela pós-modernidade tenha
de quando esse horizonte do cotidiano apresentou-se profunda-
de ser refutada, que não tenha sentido, ou, então, que o fato de
mente problemático.
reconhecermos a subjetividade, o imaginário, a impressão, a em-
Essa dimensão da problematicidade possui um caráter obje-
patia, o sensorial etc. seja um suposto irracional ou não possa ser
tivo, histórico e social. Acreditamos, fundamentando-nos na crise
alimentado pela via da razão.
de perspectivas paradigmáticas de transformação do mundo, no
, \ ). Lendo Mauss, vemos que os fenômenos coletivos são rea-
aparecer de conflitos estruturais com a crise do industrialismo
grupados em indivíduos, em atos e em idéias. O autor toma ações
do Estado, dos fundamentos da luta de classes, da capacidade de
cotidianas, tais como o jogo, a pesca, a caça etc., como práticas
regulação econômica, da destradicionalização, do desafio da re-
que se movem e que orientam superstições. No Ensaio acerca do
produção do indivíduo, da crise ecológica e de referenciais que
possam ancorar as novas sociabilidades. É por isso que, quando se \ dom (Essai sur le don - 1923), as trocas totais, a circulação de
fala em uida cotidiana não se entende só o vivido no plano do bens, as lógicas de obrigação, a alegria e o crédito que a acompa-
nham tornam-se momentos por excelência do agir cotidiano (Juan,
indivíduo, nem a interação pura e simples, nem só as posições
coletivas e muito menos, a idéia de freqiiência das açães\A vida 1996).
cotidiana é um atributo do ator individual e se realiza sempre Poderemos passar inúmeros autores, talvez mais do campo
da antropologia cultural e social do que da sociologia, e veremos
num quadro socioespacial, ~eja de um modo individualista, seja
de um modo estruturalista.» que todos eles têm algo a contribuir para a constituição do campo
Pelo fato de participar de diversos meios, não significa que da sociologia da vida cotidiana. No entanto, há alguns pressupos-
esse meio faça reduzir a vida cotidiana a suas condições objetivas tos constituidores do campo que o identificam e o especificam.
de existência, nem que o privado seja privilegiado em relação ao
pÚbliCOÁí/A vi.dac~tidiana é, também, manifestação pública (Juan, A/!!tm;';{>Ví.!';~tf,,()çt()S ef'io;.1l!t1w/ógicos dtl
1996). sociologia do trabalho, a sociologia política do Estado, a
sociologia urbana, a mobilidade social (posição, classe, domina- tun:;!i.;e do c at idf:.:UfO
ção, sistemas de desigualdade), a institucionalização de sistemas de Q/" " '
\ ,,'Y E importante que tenhamos presente a relevância para o
T
poder, os movimentos sociais e culturais, dentre inúmeros outros,
formam a trama das dimensões interpretativas da sociologia da ..::.'estudo das ciências humanas; para a análise das ações cotidianas,
vida cotidiana. Não que ela seja um somatório das brechas/falhas dos pequenos episódios, dos/fatos sane prestige que constituem,
das outras, porém os processos sociais perpassam esse horizonte como diz Lefebvre, a substância do cotidiano\Por mais que pare-
de análise e contribuem para cristalizar uma dimensão/esfera do ça óbvio e sem importância, não podemos esquecer que a trajetó-
social em profundo dinamismo (mesmo conservando a aparência ria de nossa vida, do nascimento até a morte, constitui-se numa
/ de rotina, de reprodução, de estagnação, de banalidade ...). cotidianidade. Lukács (1966, p. 11) é claro ao dizer que
< Segundo Crespi (1983), na ausência de perspectivas totali- ~ o primário é a conduta do homem na vida cotidiana , terreno esse ,
zantes, abre-se espaço para o cotidiano. No entanto, o cotidiano em que pese sua importância central para a compreensão dos modos
. mostra um presente contraditório e sem solução. O autor concor- de reação mais elevado\e complicados, continua ainda, em grande
da que é necessário uma transformação concreta das significa- parte, sem ser estudado+O comportamento cotidiano do homem é
ções e das representações coletivas do cotidiano e que isso está começo e final de toda atividade humana'] Se representamos a
inteiramente ligado às transformações das estruturas sociais e cotidianidade como um grande rio, pode dizer-se que dele se des-
das condições materiais. prendem, em formas superiores de recepção e reprodução da reali-
dade, a ciência e a arte, que se diferenciam, se constituem de acordo
A sociologia do cotidiano não surge com a crítica da pós-mo-
com suas finalidades específicas, alcançam sua forma pura nessa
dernidade. Já falamos que muitas de suas críticas já foram feitas
24 - ----.. . -- "'~ ..- João Cartas Tedesco .?/~radigmaS do 't:~tidiano ... 25
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especificidade - que nasce das necessidades da vida social - para, imediato, do pragmático, da reprodução da reprodução (Lefebvre,
em seguida, como conseqüência dos seus efeitos, de sua influência Kosik); reprodução individual e mediação entre o particular e o
na vida dos homens, desembocar de novo na corrente da vida coti-
genérico (Heller); como a própria condição humana fundamental
diana.
(Arendt); como o espaço dos homens históricos reais (Marx).
Não é porque estamos mergulhados numa cotidianidade com Essas noções/conceitos têm uma justificação teórica peculiar:
aparência de uma esfera totali.zante que seja impossível construir independentemente do que pesem essas afirmações e de que fon-
nossa individualidade, nossa espiritualidade e elevação. A cotidiani- te teórica brotam, todos reconhecem que não há uma realidade
dade não nos vitima; ela sela o social e o histórico, ao mesmo tempo humana que não esteja, bem ou mal, imbricada e vinculada à
em que singulariza e define a própria condição humana (Arendt). realidade do concreto cotidiano ou que não esteja inserida numa
-~.A tese de Marx de que se deve partir dos homens, da sua coiidianidade (Reller, 1989).
vida real, vem ao encontro das preocupações do estudo do cotidia- ,,\ Um pressuposto básico, para início de conversa, é que todos
no. Desse ponto de partida, bastante esquecido pela tradição mar- possuem uma vida cotidiana - com suas complexidades, contradito-
xista, surgem correntes teóricas tematizando a linguagem comum riedades, ambigüidades, rotinizações, (prélocupações, conflitos, rup-
(influência de Wittgenstein, de De Certeau, de Chornski), a feno- turas, elevações etc. -, o que não significa dizer que seja um invólu-
menologia (husserliana e weberiana), apontando a importância cro da vida do homem. Alguns a consideram como um subsisterna,
dos valores e do senso comum, ambos como possibilidade de reve- ligado a outros níveis mais globais, porém servindo de base para
lação da estrutura da sociedade, da totalidade do social (Lukács, atividades consideradas superiores. É desse modo que a vida cotidia-
Heller, Kosik), como fonte de um estetismo e de uma nova revo- na torna-se um espaço por excelência de reprodução do indivíduo em
lução política apontada pelos pós-modernos (Maffesoli, Lyotard ...). concomitância à reprodução do complexo social (Azanha, 1992).
Essas tradições, mesmo em suas abordagens diferenciadas e até '-t O importante a reter, preliminarmente, é que a vida cotidia-
excludentes, demonstram que a banalidade do cotidiano não é tão na pode ser, mas não é meramente, nem apressadamente, nem
irrelevante; que o presente não é de todo desinteressado pela lógi- reduzidamente, sinônimo de banalidade, de insignificante, de re-
ca da espera,' coabita, sim, uma lógica da atenção, do vivido, na síduo, de produto, de alienação, de atraso (ou de contraponto à
qualo indeterminado e o socioistórico se revelam (Azanha, 1992). modernidade), de senso comum, de receptáculo, de modelação, de
Desse modo, definir o cotidiano não é algo fácil, nem tão coleta de dados, situações e fatos. É, talvez tudo isso. No entanto,
banal; implica assumir posturas epistêmicas em conflito." a sua complexidade nos desafia a deslizar nos paradigmas que
Muito se fala sobre o cotidiano, tratado em vários textos como buscam retê-Ia. Precisamos analisá-Ia e concebê-Ia despidos de
categoria de análise, como parte de um todo, como uma esfera do preconceitos e de mitos ideologicamente construídos. Isso os pós-
social, como uma dimensão da realidade que carrega característi- modernos nos alertam bem!
cas peculiares: senso comum, alienação, mesmismo, que anda por ~ Defendemos que a vida cotidiana é, antes de tudo, um produto
si etc. Lefebvre diz que o cotidiano é uma soma de insignificân- histórico. Ela se vincula e possui uma relação de estreiteza com os
cias, não de insignificante;:-U cotidiano é visto, também, como o movimentos, as rupturas e as continuidades que as várias modalida-
mundo da vida (Schutz, Haberrnas); como unidade de análise e dei des organizativas e de existência social assumem. É um espaço es-
atividade de tipo relacional (Weber); lugar do homem concreto, dO\ tratégico de usos e táticas, de desvios, de tecnologias disseminadas
(arte de fazer, de falar, de silenciar, de registrar ... diz De Certeau)."
" ·.ri
!~
3 Na tendência teleológica de determmadas frlosotlas da hi stórra. ver Crespí (1983). '-"f) ...,(
J A sociologia do cotidiano esforça-se por adquirtr um estatuto de ciência nonnal. legí-
tímando-se em tomo de três dimensões que lhe servem de suporte: a) o paradigma do
.'>(3 Míchel De Certeau 11994) reflete sobre a produçao secundaria que se esconde no
processo de utilização racionalizada. ceutraltzadn e secularizada da producao. As
sujeito como agente histórico. b) O papel da íntersubjetividade e. como elemento fun-
práticas cotidianas não são só o "fundo noturno", os "pequenos nadas" da atívtda-
damental do conhecimento do Illundo do vida em sua ligação com O universo de com-
de social: são. antes de tudo. estratégias. formas de- saber fazer. mciolloliclndes
preensào da socioJogia do conhecimento e c) da sociologia cltalétíca de base marxista.
internas. muitas vezes não vistas a olho nu.
l,
26 João Carlos Tedesco
.':Y~radigmas do 'rí'otidiano 27
'\;
~,Para compreender a vida cotidiana é necessário restabelecer
relações dialéticas recíprocas e de implicações entre fatos (Azanha, Não cansamos de dizer, pois estamos cada vez mais conven-
1~92). D~sse modo, os fatos não ficam mais pura e simplesmente cidos, que a crise de interpretações mais homogeneizantes do pre-
hierarquizados ou sem relaçãoxA cotidianidade tem uma relação sente (grandes teorias), as incertezas e vulnerabilidades que en-
estreita (encadeamento) com as formas de organização e de exis- gendram e que expõem as sociedades contemporâneas (economias
tência da sociedade;" globalizadas, laicização, flexibilização, desestatização e neolibera-
A crítica da vid~ cotidiana parte daí, ou seja, trata-se de abrir lismo, de um lado, fundamentalismos e messianismos, de outro)
o cotidian? (ou, nesse caso, a cotidianidade) ao histórico, ao políti- abrem espaços para o presentismo, no estilo pós-moderno, bem
co, ao .sOCIaI,promovendo, com isso, uma transformação radical como para o reatar de paradigmas mais universalizantes (macrois-
do cotidiano, Desse modo, a vida cotidiana passa a ser um nível tóricos), não só no pensamento social, mas em inúmeras aborda-
um .nível intermediário, mediador entre as esferas superiores ge~ gens dos campos do conhecimento.
Ao mesmo tempo, percebe-se uma tentativa de resgate do
ne~'lcas (a ~arte, a filosofia, a política etc.) e o mais simples, mais
evidente. E, como diz Lefebvre, um misto de natureza e de cultu- sujeito em meio às estruturas e aos sistemas, rompendo com a
ra, de história e de vazio, de individual e social, de real e irreal linearidade da concepção de história, com o vazio em face do ins-
tituído, do ordinário e da banalidade, priorizando o conhecimento
um lugar de transição e de encontro, de interferências e de confli-
tos, enfim, um nível de realidade. que se funda na interação, pouco ligando para as temporalidades
(lineares e horizontais que se cruzam ... ) e os destinos da história.
Temos a convicção de que, em pleno estágio avançado de
Na direção da subjetividade e de seu contexto-real, um es-
modernização, mesmo que as técnicas tenham avancado e invadi-
forço interdisciplinar (antropologia, história, psicologia) está sen-
do.o cotidiano social, relações tradicionais perma;lecem; conti-
do implementado na tentativa de se reconstituir experiências ex-
nuidades estão presentes em meio a rupturas, apresentando in-
cluídas ou em excludência, as tecnologias miúdas (De Certeau),
c~usive, limit~s.e imbricações na racional idade técnica. A com~le-
xidado do cotidiano não se resume ao fetichismo linear da técni- discursos, histórias de vida e história genealógica, da memória,
ca, fruto de interferências múltiplas (divisão do trabalho, do tem- genealogias de práticas vividas, etnias, classes e gêneros, pode-
po, do espaço, das classes, do saber, do poder ... ), mas, sim, por res, saberes. Enfim, experiências de sujeitos históricos e cultu-
preservar uma ~iqueza imens~ frente a uma realidade pobre, pro- rais cujas identidades eram omitidas ou, no mínimo, não merece-
gramada icolonizadas. Por mais que a modernidade vá promoven- ram a atenção e o espaço devidos (Mello, 1994)."
do aquilo que Lefebvre chama de catástrofe silenciosa, o cotidiano A idéia de um enfoque do mundo da experiência comum (sem
l~ta p0.r·pre~ervar a antiga realidade, as antigas representações ser totalmente empiricista) leva consigo alguns pressupostos epis-
(inclusive pnvadas de reparo), as quais objetivam se perpetuar na tcmológicos e metodológicos fundamentais: o de que a história é
prática social. social, cultural e economicamente construída e constituída; de
que o cotidiano é crivado por tensões e movimentos (permanên-
cia-transformação) como um campo de múltiplas possibilidades e
i 11 terseções que se aproximam, se diluem, se conservam e se ele-
varn (Azanha, 1992).
-1\ O sujeito, o sujeito do cotidiano, é o sujeito total (Azanha,
I !)92), assim como a totalidade dos sujeitos vive inseri da num co-
o estudo do cotidiano tem como ponto de partida o sujeito
tidiano. Da perspectiva do sujeito, o cotidiano é o momento pre-
enqua~lto se~ particular-individual, suas relações próximas, regu-
lares, intensivas, adesivas, fixas e mutáveis. Porém, não signifi-
ca que os grandes dispositivos sociais, as macroteorias (sistemas, II>-dudos nesse sr-ntrdo se mulüphcam. Alguns apenas: PERROT. Michelle. Os ex-
duídos da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1988: DE CERTEAU. M. A Ílwcllcào
classes, orgamzações ... ) não possam se apresentar.
do colidicmo. Petrópolis: Vozes. 1993 e 1994. 11 v.: THOMPSON. E. A voz elo pas-
slIdo. Rio ele Janeiro: paz e Terra. 1992.
28 João Carlos Tedesco
;1~radigmas do Y;otidiano 29
sente e, neste tempo presente, o sujeito age, está situado entre o
passado e a situação da ação, indicando a presença do futuro. No
sistema de reprodução de relações sociais de produção em meio à
entanto, o cotidiano ancora a percepção do tempo (e também do reprodução da força de trabalho e de outros meio~ d: (r.e)produçã~.
espaço), fortalecendo a dimensão do eu (Mello, 1994). Essa reprodução, imbricada aos elementos da dinâmica produti-
vista forma a ética tecnocrática que reduz a vida cotidiana a uma
Assim, no cotidiano, o sujeito está dentro e fora da história
(há um interno e um externo), isto é, vive-se num cotidiano, mas emp:esa, a instantes previamente definidos, a programaç~o espa-
isso não significa imersão absoluta nele. Deduz-se, do quejá fala- cial-temporal, a mesmos gestos em torno dos mesmos ob.J~tos.
mos, que estudar o cotidiano é privilegiar a presença histórica, ~Pensando como Lefebvre, o cotidiano deixou de s:1' rICO.em
social e psicológica dos sujeitos; sua ação está aí, orientada pelo subjetividade para se tornar objeto. da or~a~iza~ão s?clal capita-
ausente, por um universo simbólico que ordena o ontem e o ama- lista. Portanto, a compreensão da vida cotidiana implica adentrar
nhã, lembranças ou projetos contidos na evocação do passado ou para o lado sensível e prático dessas relações sociais, d~ vivido e
na percepção do devir (De Certeau, 1994l.7 do concebido, da subjetividade, das representações e das Imagens,
O estudo do cotidiano normalmente define a espacialidade porém sem perder de vista sua criticidade, historicidade e contex-
do sujeito numa localização e numa dimensão. Apequena comuni- tualidade.
"7Apartir das rnicrorrelações podem-se apreender jatos sociais
dade (sem cair na dimensão localista dos estudos originais da so-
ciologia urbana americana) permite uma observação mais deta- i;
ma totalizantes, universo da mercantilização capitalista, por
lhada dos fenômenos, da presença dos atores sociais, de suas exemplo; pode-se descobrir também que o vazio e a banalidade
representações, estratégias, práticas, enfim, de um conjunto de não são expressivos de insignificância, mas de resistência, ruptu-
fatos que denotam uma experiência total (Balandier, 1983) em con- ras em relação às representações da tecnicidade, das segre~aç.ões
traposição às estruturas e ao meio global (Azanha, 1992). socioeconômicas, religiosas c espaciais, da negação do sub]etJ:,o,
Por mais que o cotidiano seja expressivo da banalidade, esta da simples ocupação e funcionalidade do papel na divisão SOCIal
não está sempre presente, ou, se está, não está no vazio; há signi- do trabalho, dentre outras (Azanha, 1992). Ou seja, uma análise
ficados nisso. Além do mais, há graus diferenciados de banalida- crítica do cotidiano poderá revelar limites e contradições da e na
de, bem como há fatos nele que delimitam espaços de resistên- racionalidade tecnológica; revelar riquezas e sutilezas não apa-
cias, de confronto entre atividades regulares e, também, entre a rentes no seio da pobreza do cotidiano.
dimensão do cotidiano e a sociedade global.
É nesse sentido que Lefebvre analisa a vida cotidiana no
mundo moderno da ótica da racionalidade instrumental. O capita-
[) co1Ít_;(i9HO C0l1/fO '{ul'0t1e l:{,9
,( ,9ff{i.I<;e
, ,"' ticn
cri 'J '
lismo colonizou a vida cotidiana; criou uma cotidianidade (conjun- soclai
to de significações, de signos que significam as práticas cotidia-
nas, sobretudo no âmbito do simbólico) sob o signo do consumo Pensamos a abordagem crítica do cotidiano em concordân-
(consumo dirigido), modelado pelo fetiche da produção capitalista cia com Lefebvre quando diz que, em geral, o cotidiano não pode
(publicidade, produtividade, burocratização etc.), racionalizando e ser transformado sem uma transformação das estruturas sociais,
quantificando valores, signos e formas de vida. das representações coletivas (suas significações) e das condições
O cotidiano, ideologizado como insignificante e banal, for- materiais que o condicionam e que o colonizam, as quais o trans-
nece a base e a sustentação da constituição do capitalismo em formam em cotidianidade.
Voltamos a insistir, o estudo crítico do cotidiano comprome-
te-se com a análise do indivíduo histórico, isto é, um sujeito en-
Mat n-íce llalbwacl rs , em A tnenioria coletivn. tem at tza ('0111 profunrltdade a vmcula-
cáo da meuióría. elas trajetórias de viela e sua vi ncu lacao comuuítarta. social. his- volvido num complexo de relações presentes numa realidade his-
tórica e grupal: In051ra ~laraliJ(:~llte COIllO os tempos. os univer-sats concretos, abs- tórica em virtude de suas significações culturais e não da necessi-
tratos e presentes t ernauzum a uu-n tórra eol,,' \'ida 110 cou.trno temporal.
r-- ---
30
João Carlos Tedesco .Y~radigmaS do '6otidiano ....•... - .... - 31
I
dade de produzir identidades em massa H ou coletivos presentistas 11 /I iuersal y, con ella, el entero tema de todas Ias ciencias históri-
e inorgânicos, parecido com o que hoje se convencionou chamar, C;lS y todas Ias filosofias, se desarrolla en este mundo realista-
paradoxalmente (7),de pós-moderno global, em que fluxos de mer- ingenuo, es un argumento del mayor peso también para el trata-
cadorias e identidades a elas agrupadas unificam consumidores e micnto de cuestiones epistemológicas" (Lukács, 1996, p. 491.
partilham identidades, homogeneizando-as (?) globalmente. Concordamos com Sartre (1973) quando afirma que o pensa-
Um estudo crítico da vida cotidiana não se resume ao inte- monto concreto eleve nascer ela prtixis e voltar-se sobre ela; não ao
resse das atividades padronizadas em conformidade com modelos acaso e sem regras, mas, como em todas as ciências e em todas as
que se apresentam na base de culturas ele grupo, aos moldes do técnicas, em conformidade com princípios. Desse modo, a realida-
reencantamento do mundo e da nova tribalização do social. Há de é concreta, histórica, construí da cotidianamente pelos homens
diversidades e especificidades sociais e culturais que dificilmente em suas relações sociais de produção (Azanha, 1992). Para apre-
se enquadram na estandartização, seja ela em nível micro, seja endê-Ia, acreditamos nós, devemos estar envolvidos nos atos, na
no âmbito da chamada "mundialização da cultura". paixão, nas relações de trabalho e, sem dúvida, aprender e inter-
Não se podem, entretanto, deixar de lado as regularidades, pretar a voz do outro; em caso contrário, corre-se o risco eletratar
as atividades de tipo relacional (Weber, Mauss, Durkheim, Balan- de alguém descarnado, sujeito a afirmações absurdas e genéricas,
dier e outros mostraram muito bem isso), apreciadas ou concebi- despojadas de especificidade,reduzindo a diversidade e a uniformida-
das, implícitas ou explícitas nos ritos, nas interações, nos códigos, de. Não podemos imaginar a (re )construção social da realidade (sem
no face-a-face, no jogo, nas socialidades, nas tensões e nas crises cair no institucionolismo de Peter Berger!) sem o conhecimento das
do conjunto social. relações sociais de produção das pessoas nelas envolvidas."
A ciência deve partir, ter como objeto o cotidiano, que se Temos claro que a vida cotidiana constitui-se numa das prin-
apresenta como uma base fundamental para a investigação cien- cipais formas de manifestação e de transformação da realidade
tífica. "Los reflejos científico y estético de Ia realidad objetiva son histórica," porém, na vida cotidiana, o sujeito particular, seu ca-
formas de reflejo que se han constituído y diferenciado cada vez ráter, é multivariado e sua dinâmica está mais presente, aparen-
más finamente, en el curso de Ia evolución histórica, y tienen en temente, na prática reiterativa. No entanto, como nos diz Lefeb-
Ia vida real su fundamento y su consomación ultima [...J. EI fecun- vre (1974), o conhecimento do espaço revela as contradições do
do punto medio entre esos dos polos es el reflejo de Ia realidad espaço. Daí ser o cotidiano um espaço também de síntese do mun-
proprio de Ia vida cotidiana" (Lukács, 1966, p. 34). As duas formas do vivido. Tem-se aí a importância de ter pressupostos para a
de reflexo do real nascem das necessidades da vida cotidiana, da compreensão epistemológica, hoje com mais intensidade, busca-
necessidade de dar respostas a seus problemas e de elevá-Ia a dos nas referências de cunho dialético-hermenêutico (Gadarner,
formas superiores de desenvolvimento. Geertz, Habermas ...).
Isso não significa que a ciência e a arte (o estético), por mais Em síntese, um bom pressuposto é partir da tentativa de
que busquem refletir a interação do homem cotidiano com a natu- apreender o movimento histórico ou a realidade que se desenvol-
reza cotidiana, resolvam os problemas da vida cotidiana. De qual- ve por sucessivas superações, para falar como Lukács (1966), ou
quer forma, a ciência não pode prescindir desse horizonte por mais
espontâneo e débil que seja. "Nunca se insistirá demasiado en
este hecho de que todas nuestras grandes decisiones vitales tie- 'I Marx já dizia que o concreto é concreto porque e a síntese- ele- uuilupln s rle tc rmt-
uacões. portanto. unidade do diverso. Significa dizer que a realídade é coustr nídn
nen lugar en un mundo realista-ingenuo, que Ia entera história pelos homens: é mut avel: é produt.o ele sínteses parciais. geradoras ele novas sín-
teses e de novas contradições no cotidiano e no interior ele todas as estruturas.
10 C01n essas breves colocações. dizemos que lemos a convicção ele qUE' o ser social se
.' 1.5"'\ M. Foucault. prmctpahnente em viqia» e punir. fornece-nos subsídios para enten- taz cotídianamente 110 embate com suas próprias crises e contradições e C01l1 as tarn-
",' der os problemas das ídenuftcações de massa. sua importância. seus métodos e bém presentes no meio social mais amplo. Queremos dizer também que essa relação
sua ideologizaçào. Ver também BEn'ELHEIM O corurao íqjorrnaclo: autonomia da dialéüca homem/sociedade. na lormacáo da consciéncía. não é mero reflexo da matriz
era ela masstücução. Rio ele JaJleiro: Paz e Terra. 1985. econômica. Só quem quer ürar o movimento ela história é que pode pensar assim.
32 João Carlos Tedesco
seja, uma unidade dialética de negação/afirmação, e não na ó~ica
exclusiva de causa/efeito. O real omite vieses que são expressivos
de uma multiplicidade de estruturas conceptual-explicativas da
realidade em criação (Noronha, 1986).
É evidente que os movimentos ou ondas conjunturais (Gra-
msci, 1978) são importantes, pois fornecem a possibilidade de per-
cepção do curso que nos leva ao movimento estrutural (Azanha,
1992). No entanto, precisamos dialetizar o fenômeno, não na ten-
tativa de isolá-lo mas de perceber sua vinculação, articulação e
contradição com o processo global que norteia as relações, princ~-
palmente capitalistas e de mercado e que são negadoras do SUJeI-
to. Porém, é impossível avançarmos mais sem entrar_em f~~tes
que, mesmo aparentemente distantes, dão sustentaçao ~e.anco-
conceitual às epistemes que constituem o campo de análise do
cotidiano.
A Ivadkão dtwf.du iminI9jfa'. 1
J.pI> ..
\j J.)l-"!rkheil1LtillY~~.tenba .sic!ô aJçmt.~Msiçª_ª-_(ü.n§J)irªºªQ.Q.Q.._
campo sociológiç.oelo çotidiflno,'Sl.1apreocupaçãn, é evidente, .uª,o
.eXª-.Jls.sa;..
ao ..c.9ntniriº,-~JJ.ª.$ªbsu::.dªg,em:; ....
b.)J.SJ;-ªy.ªm.smt~n.dgL...Qp
macroprocessos dedutoros das relações cotid!iLDª.s..No.entª:QJQ.,-~
do.paradigma durkbeiminiano (seu institucionalismo) que nascem
°
os debates sobre campo dasociologia da.{lidacotidiQBÇl_nti~iri
é clqro aº.dizJ~.~gu.g_ª.§instªJlci-ª.s.13.ubjetiy.p.,'3 .e.LQ.q~;j.mb.ºli~as,-JllLl1!a
perspectiva antropológica, são produzidas socialmente. A socieda-
.de.moder-na induz, !'i0mesmo tempo, a uma dependência cadavez
mais forte de cada indivíduo em relação ao sistema e a.uma perso-
nalização crescente de .atÍy.ida.desmaiss mais esp_eç!al~~açl.é!-~, ou
seja, os modos de vida se homogeneízam e os estilos de vida tgen-
res de uie) se particularizam; quanto maior a organização global
das funções especializadas (divisão do trabalho), mais o sistema
requer regularidades, produzindo, assim, rotinas e hábitos da vida
cotidiana (Juan, 1996).
Esses processos produzem, segundo Durkheim, efeitos opos-
tos, porém complementares. Em outras palavras, constituem o
sistema e o ator; produzem consciência coletiva, porém deixam
lugar às variações individuais. Para ° autor, a evolução desses
processos atinge todos os aspectos da realidade social. As norma~ .
.sociais tornam-se C<i.QE1.YEêzII1.ªis ªl:Js.tI'ªtªEi.~.!ll.edidªque sE)~§.P§l~
~inli:;::al1J~possibilitªndoªcadil um optar livre~~nte e de maneira
.partjcular por sua adoção CWatier, 1996). I
._ ..... _.__ ..... _--_ .. -.~---
,
'-f)aradigmas ',:
do '(otidiano
João Cartos Tedesco .- ... _ .... -
34_ - .
'.-Em outras palavras sem heci
Durkheim deixa claro que o avanço da particularização ca- ~ue lhe dá especificidade) 'e da C~;~~id:~:~n~o ~as 'r:argens (do
minha junto com a generalização
durkheiminiana
dos atributos. Essa dicotomia
(morfologiaJpsicologia: corpo e simbólico) leva-
nos a deduzir que as ações ordinárias são produtos de ordens com-
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não se crê. O sociólogo deveria ter a ambição de, em vez dos de- teoria da queda tendencial da taxa média de l~c~odo sistema econômi- I
terminismos gerais, descobrir os sistemas de interação subjacen- c~ como um todo. Segundo alguns de seus críticos - Raynaud, Sivré, '
tes ao objeto/fenômeno de estudo, priorizar o singular e colocar Birnbaun -, a utilização dessas fontes chega a ser espantosa. --'-
em evidência a indefinida pluralidade de casos (Ansart, 1990). Uma segunda crítica direcionada se dá no excesso de auto-
! ,~Em síntese, o individualisnw metodologico busca criticar vigo- nomia do indivíduo frente às estruturas. Os indivíduos aparecem
i
e idênticos (ao estilo da teoria dos
I
rosarnente a ambição de toda a tradição sociológica, principalmente na teoria como intercambiáveis
durkheiminiana e marxista, que atribui à sociologia a tarefa de des- jogos). No entanto, a maior crítica advém do excesso de utilitaris-
cobrir/desvendar leis universais de explicações de fatos sociais.-Con- mo, da racionalidade das escolhas, dos cálculos frios dos custos e
,11 ceitos como sociedade, classe social, nação, contratos sociais, mode- benefícios em razão das disposições dos indivíduos. Os utilitaris-
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to, estrutura, dentre outros, passam pelo nível epistemológico do tas trabalham com noções de felicidade e de maximização, porém
I1
: individualismo metodologico como decorrentes de noções abstratas, não explicam se esses desejos se encaminham para fatores econô-
!I micos, simbólicos e políticos, nem se têm apoio em representa-
essencialistas, sem dar conta dos aspectos multiformes das ações e
li ções coletivas, o que perverteria o princípio de agregação dos com-
I interações dos processos reais em sua pluralidade de situações.
As inúmeras mudanças econômicas, ligadas tanto às inven- portamentos individuais como explicação dos fenômenos sociais.
ções, às mudanças técnicas, aos fracassos da burocratização e/ou ~ te~tativa de retirar o movimento histórico do efeito de agrega-
à planificação, aos apelos à motivação dos atores econômicos ao çao faz com que o indioidualismn metodolôgico, na nossa maneira
consumo, como à inventividade, às multitendências, às singulari- de ver, não tenha suficiente argumentação para analisar confli-
dades, à diferença, à liberdade de escolha, à descrença ao olhar tos, movimentos de idéias e movimentos sociais com característi-
dos processos coletivos sindicais, ao alargamento dos direitos in- cas mais orgânicas.
dividuais, dentre outras, abrem espaços para outras estratégias
neoliberais e da filosofia individualista; conduzem a uma reconsi-
deração dos comportamentos dos indivíduos, a uma ruptura pos- () Ü(di1Adt(::1tí~t41(J insrit acional
sível dos tempos da tradição para os tempos da escolha. "Sem
lParsons é um dos pais das chamadas teorias do sistema so-
defender um individualismo apolítico, esse approche conduz a le-
cial e da teoria geral da ação. Na sua análise, um sistema de ação
gitimar instituições políticas com respeito às leis de mercado e
tem por finalidade a manutenção de modelos de controle e objeti-
sistematicamente orientadas em direção à defesa dos indivíduos e
va a estabilidade e reprodução dos valores, dos sistemas simbóli-
das margens de liberdade individual" (Ansart, 1990, p. 314).
cos, dos modelos culturais e da ordem normativa. Seu sistema de
\. Os adeptos do individualismo metodológico são criticados pelo
ação social possui uma função agregadora e integradora interna,
fato de se servirem de Weber, Durkheim e Marx no conjunto de seu
a qual coordena as partes constitutivas do sistema de ação, bem
paradigma: o primeiro, em sua sociologia compreensuia (valores e sub- como de adaptação aos condicionantes globais e ambientais e
jetividades);Wo segundo, na interpretação do suicídio; o terceiro, na por último, de realização de objetivos definidos coletivamente (Par-
sons, 1973).
No seu sistema geral de ação (1973) há subsistemas culturais,
19 Raynaud (1996) crilica o falo de o individualismo metodológrco ulilizar Weber. o sociais, de personalidades e comportamentais que promovem a condi-
qual se inscreve l1U111é:1 Irarlicáo que coloca em evidencia a objeüvacáo elas aüvída-
eles llO Inundo. e 11()0somente a rer-onsttuuçào da relação est.ratéatca elos íudtvíduos
ção e o suporte para a ação. Servindo-se da cibernética, Parsons atri-
e o campo pré-consuuudo das relacóes sociais. É claro que Weber nào entendia as
ações individuais como simples expressão das necessidades da estrutura. A sua
preocupaçào não era operar uma dedução da SOCiedade em geral a partir da indi-
vidualidade. mas. sunplesmenre. dar à ctr-ncta a tarefa illfillÚa de explicar a ativi- illdiVidl1;.:i~. os objetivos perseguidos pejos alares. O papel da sociologia é perce-
dade objeuvada nas esl.ruluras coletivas. Em outras palavras. a sociologia webe- ber os eíeuos perversos. o IH(jCl]" dn desordem [Lít ulo ele um livro de Boudon), os
ruura busca rcconst itutr a raríonahdade implicua das at ívtdades humanas A so- eleítos emergentes. as conseqúencías uào previamente eslabelecielas pelas ações
ciologia podera explicar O!-:>b.lO:::; socí.us Ú 11IedicL.'1 que compreender as atividades humanas.
50 .' João Carlos Tedesco
bui hierarquização, sistemas superiores, esses ricos em informação e Para o campo da sociologia ela vida cotidiana essas idéias
I I
que também controlam sistemas inferiores. Os últimos são ricos em
energia e fornecem as condições da ação. Porém, o autor dá maior
rolltribuíram no sentido de mostrar a ligação das interações dos
;!I.ores em contextos relacionais, onde as identidades concretas
I:
'I (i ndivíduos e grupos) interdependem, formando um sistema de
II
I