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INCONΦIDENTIA: Revista Eletrônica de Filosofia

Mariana-MG, Volume 2, Número 3, julho-dezembro de 2014.


Faculdade Arquidiocesana de Mariana - Curso de Filosofia

A 'MATÉRIA' (HYLLÉ) NO LIVRO LAMBDA DA METAFÍSICA

Marcelo Fonseca Ribeiro de Oliveira

Resumo: O escopo deste artigo são os capítulos 1 a 5 do Livro 12 (Lambda) da Metafísica de Aristóteles. O
objetivo é a problematização de ‘matéria’ (hyllé), delineando a sua função no interior do Livro Lambda, ou seja,
em relação aos conceitos correlatos, e buscando um entendimento, metafísico e gnosiológico, do seu estatuto
(qual é a definição de matéria, a sua relação com a substância e com o movimento e o problema do seu
conhecimento).
Palavras-chave: Matéria, Metafísica, Aristóteles

Abstract: This paper has as scope the chapters 1 to 5 of Book 12 (Lambda), of Aristotle's Metaphysics. The
objective here is to problematize the concept of 'matter' (hyllé), sketching its function inside these chapters and
showing some relevant concepts which are in relationship with it. The aim is to research a metaphysical and
epistemic understanding of 'matter', looking for your definition inside and along the first five chapters of
Lambda.
Key-words: Matter, Metaphysics, Aristotle

O problema da matéria é um topos clássico na literatura aristotélica. A tradição, da Idade


Média ao Renascimento, retomou e tratou deste, que é um dos problemas mais fascinantes do
corpus aristotélico e científico. A Idade Moderna, com a solidificação do naturalismo e a
fundamentação das ciências naturais, propôs soluções estáveis a este conceito, fulcral para os
experimentos e progresso científico. Proponho retornar a um dos principais capítulos que trata
deste tema, em toda a extensa obra do estagirita, com fins de mostrar a sua importância, e,
timidamente, propondo uma confluência entre filosofia e ciência, fusão esta que houve no
princípio, mas que o século passado consolidou enquanto áreas distintas.

Mostra-se então, inicialmente, onde o conceito ‘matéria’ aparece no decorrer dos capítulos 1 a
5 do Livro Lambda. Cabe mencionar que ‘matéria’ parece estar mais próxima à definição de
‘conceito’, do que de ‘termo’ ou ‘palavra’. Justifica-se esta aproximação com o seguinte
raciocínio: Aristóteles, ao referir-se à matéria, está em busca de algo que transmita
diretamente um estado de coisas na realidade, no mundo e na substância. Se usássemos
‘termo’ para definir matéria, estaríamos exclusivamente no âmbito e na esfera da linguagem,
o que não é o caso. O uso de ‘palavra’, gramatical e oral, é também limitado e simples em


Mestrando em Filosofia na UFMG. Bolsista CAPES.
demasia. Ao deixar claro que ‘matéria’ é um 'algo' que se relaciona, de diversas formas, direta
e indiretamente a elementos reais e à realidade, mas que também possui relação com
conceitos puros (como ‘potência’ e ‘ato’, que são conhecidos pelo intelecto a partir das
coisas), e, por conseguinte, ao pensamento; o uso de ‘conceito’ em sua definição é o mais
adequado. Vamos ao mapeamento das suas ocorrências não sem, juntamente, apresentar em
linhas gerais, o conteúdo de cada capítulo.

No capítulo 1 de Lambda, Aristóteles ocupa-se em apresentar o que entende por ‘substância’.


Ele introduz então, os três tipos (sensível perecível, sensível eterna e imóvel [não sensível]), e
afirma que a substância é o seu objeto de investigação. Repare-se que a definição da
substância não sensível é ‘imóvel’, ou seja, o critério de definição é o movimento. O capítulo
termina com a afirmação sobre os tipos de ciência que estudam os tipos de substância.

O início do capítulo 2 é diferente em diferentes edições1. Neste momento do Livro XII,


Aristóteles, ao dizer sobre a mudança, o movimento e os contrários, introduz o conceito de
‘matéria’2. Aqui, a matéria é o que subjaz à mudança que ocorre entre contrários (não entre
opostos ou intermediários entre opostos, se utilizando terminologia do Organon)3. A segunda
ocorrência de ‘matéria’ está em relação aos quatro tipos de mudanças (o que, qualidade,
quantidade e lugar)4, onde se afirma que é preciso que a matéria que muda seja capaz de
conter os dois contrários. Os conceitos de ‘potencialidade’ e ‘atualidade’ são apresentados em
seguida, na medida em que tudo o que é tem dois sentidos. O ‘devir’ é então explicado através
do vir a ser das coisas da potência ao ato. Tudo o que existe vem a existir, esteve em ato e

1
Na tradução de E. Bini, lemos a primeira frase do capítulo tratando da questão dos contrários: “Ademais,
enquanto o contrário não persiste, alguma coisa persiste, o que nos leva a concluir que além dos contrários há
uma terceira coisa, a matéria. (...)” (Metafísica, 2012: p.298, 1069b7). Já na tradução de Ross, lemos: “Sensible
substance is changeable. Now if change proceeds from opposites or from intermediates, and not from all
opposites (...)” (Metaphysics, 1952: p.598, 1069b1). Na tradução de Carlini, lemos: “Qualcosa, inoltre, rimane
quando o l’uno o l’altro dei contrari sparisce. C’é, dunque, oltre i due contrari un terzo termini, la matéria.”
(Metafisica, 1928: p.371, 1069b1). Notar que na edição italiana contam-se os parágrafos. A tradução brasileira e
a italiana convergem quanto à edição, e iniciam o capítulo 2 no mesmo lugar, diferentemente da de Ross.
2
“(...) Further, something persists, but the contrary does not persist; there is, then, some third thing besides the
contraries, viz. the matter. (...)” (Metaphysics, 1952: p.598, 1069b7). Como edição principal de consulta,
adotamos a da tradução de Ross (Metaphysics, 1952). Todas as seguintes referências serão com base nesta
tradução, e indica-se o número da página e a numeração e letras das colunas, com base na edição standart de
Berlin do texto Grego.
3
A posição de Aristóteles neste capítulo sobre os contrários e sua relação com o que não muda é de difícil
entendimento. Em um momento ele diz que o que muda não são os contrários (1069b5-10). Logo depois, os
contrários não permanecem. “(...) there must be something underlying which changes into the contrary state; for
the contraries do not change. Further, something persists, but the contrary does not persist (…)” (p.598,
1069b5-10).
4
P. 598, 1069b14
4
existe através de uma potência, ou seja, existia em potência antes que em ato5. Ou seja, as
coisas existiam antes de existir. Esse recurso parece advir da necessidade de evitar a
existência do vazio, do nada:

"(…) Uma atestação da posição de Aristóteles deve começar com a sua descrição
da mudança. A primeira reinvindicação importante que ele faz sobre isso é que não
há tal coisa como a geração ex nihilo, pelo contrário, em toda mudança há algo que
se principiou com ela, e durante a mudança essa coisa se torna o que não foi antes.
(...)" (BOSTOCK, 2006, p.30).

A partir daí, o capítulo apresenta uma série de ocorrências de ‘matéria’. Após a menção a
Anaxágoras, Empédocles, Anaximandro e Demócrito, Aristóteles diz que estes pensadores
parecem ter tido em alguma medida a noção de matéria6. E o que significaria isso? Que a
matéria, enquanto sendo passível de conter contrários, pois é o que muda, deve conter em
potência aquilo que pode vir a ser em ato7. O capítulo prossegue, afirmando que todas as
coisas que mudam possuem diferentes matérias, incluso as coisas eternas 8. A matéria,
portanto, não se confunde com as coisas. Estaria Aristóteles pensando nas substâncias
sensíveis móveis e imóveis.

O último parágrafo do capítulo 2 apresenta uma intensificação nas ocorrências de ‘matéria’.


Ao responder a um problema formulado por ele próprio, Aristóteles estabelece três sentidos
de ‘não-ser’. Primeiro, o ‘não-ser’ que está contido no estado de potência. Em seguida, ele
afirma não ser correto dizer que todas as coisas estavam juntas, pois elas diferem entre si em
suas matérias9. Aqui há uma alusão crítica aos seus predecessores. Aristóteles diz que, pelo
fato das coisas se diferirem em matéria, logo há uma série infinita de coisas distintas. O
problema é: as coisas não estiveram todas juntas, no modelo de explicações cosmológicas à
maneira de Anaxágoras, por exemplo, pois as matérias são distintas em coisas distintas. Se
tudo estivesse reunido indefinidamente, elas teriam a mesma matéria, o que é falso. O que
sustenta esse raciocínio é a noção da matéria enquanto princípio, pois se tudo estivesse
reunido enquanto um, a matéria seria única em coisas distintas10.

5
Talvez fosse o caso de se perguntar sobre o estatuto da existência das coisas em potência, ou seja, como é
existir em potência?! Essa questão parece ir de encontro ao último parágrafo do capítulo 2, onde o próprio
Aristóteles levanta o problema de que tipo de não-ser procede a geração.
6
p.598, 1069b23
7
Mas, se a matéria deve conter contrários em potência, seria ela também passível de ser em ato? Ou a matéria só
é matéria enquanto permanece no estado latente de conter contrários, sempre em potência?
8
p.599, 1069b25
9
p.599, 1069b30
10
p.599, 1069b30
5
O capítulo 3 apresenta o conceito de ‘matéria’ logo na primeira proposição 11. Neste momento,
o Estagirita relaciona a ‘matéria’ (e a ‘forma’) ao devir, negativamente, ou seja, nem a matéria
nem a forma vêm a ser. Mas, ele está referindo-se aqui ao âmbito físico ou conceitual? E, em
seguida em seu texto, o que ele significa com a ‘última matéria e forma’? Ele afirma aqui que
a ‘forma’ não vêm a ser, mas sabe-se que é pela forma que a substância adquire o ser. Ele diz
que a matéria é o que é movido (por um movente e, por conseguinte, em direção a algo, à
forma). Segue-se daí um exemplo: a esfera de bronze. Associa-se, daqui, a matéria ao bronze
e a forma à esfera, compreendendo que há a necessidade da forma e da matéria não serem
perenes, pois, se caso fossem, o procedimento de busca das causas se prolongaria ao infinito.
Mas, e quanto à afirmação do início do trecho12, de que a matéria não vem a ser? Se ela não
pode ser eterna, logo ela veio a ser. Ou pode haver algo que não é eterno e que não surgiu de
outro algo? Decorre daí uma distinção entre ser e movimento como princípio de explicação
desta contradição.

O texto segue e, após um parágrafo onde o foco é a substância 13, sua relação com o
movimento de vir a ser (devir) e o estabelecimento de quatro princípios de movimento (arte,
natureza, sorte, espontaneidade), Aristóteles estabelece três tipos de substâncias. E então, a
matéria figura como um dos três tipos, e segue-se uma série de ocorrências do conceito.

"Há três tipos de substância – a material, que é o 'isso' na aparência (para todas as
coisas que são caracterizadas por contato e não por unidade orgânica são material
e substrato, e.g, fogo, carne, cabeça; estas são todas matérias, e a última é material
daquilo que é em sentido pleno substância); (...)" (p.599, 1070a 10).

O tipo de matéria que é substância é aquela dada aparentemente (ao nível da aparência), ou
seja, desdobrando este trecho, aquilo que nossos sentidos captam enquanto primeira camada
do conhecimento relacionado ao real (é importante notar esta substancialidade aparente da
matéria. Isto pode ontologicamente conferir a ela uma existência em sentido ‘fraco’ e,
gnoseologicamente, ao seu conhecimento, certa incompletude ou indeterminação). Ele segue
explicando que aquilo que é tocável e substrato é matéria (fogo, carne, cabeça). Os exemplos
surpreendem, uma vez que eles não estão ordenados categoricamente, ou seja, Aristóteles
poderia ter colocado só os elementos primários como exemplo (água, ar, fogo, terra). O que
ele estaria indicando aqui? O que o texto explicita é que a ‘última’ matéria é a verdadeira
substância. Ora, a ‘última’ ocorrência do conceito ‘matéria’ fora justamente a que foi

11
p.599, 1069b35
12
1069b35 a 1070a
13
Angioni (2005) traduz ‘substância’ por ‘essência’, alterando todo o sentido do texto.
6
relacionada à série de elementos. Esta é a verdadeira substância para Aristóteles? É isso que
ele quis dizer ao apontar que seus antecessores parecem ter tido um conhecimento de matéria?
Sendo assim, o que o diferenciaria dos materialistas (que entenderam existir na natureza
apenas os quatro elementos, e que postularam o conhecimento apenas destes)? Ou, antes, de
uma concepção ingênua de ‘matéria’?

A diferença básica entre Aristóteles e Demócrito concerne à importância dada por aquele à
potencialidade da matéria.

"(…) Embora Demócrito e Aristóteles concordam em tratar a matéria como o


substrato contínuo em movimento, a matéria para Demócrito não funciona como
potencialidade pela razão de que é permanente e initerruptamente atual em todos os
aspectos nos quais qualquer coisa para Demócrito é sempre atual. (…)"
(JOHNSON, 1967, p.4).

Ora, sendo a matéria aristotélica, potência, como o contínuo pode subsistir nela?

As outras duas substâncias são: a natureza (um ‘isto’, estado positivo, onde o movimento tem
lugar) e a substância particular (os singulares, na tipologia do Organon, ou seja, Sócrates e
Calias, os indivíduos). Haveria aqui a possibilidade do conhecimento dos singulares, uma vez
que eles são substâncias? A metafísica segue, no exercício de estabelecer as distinções. No
caso, a relação entre as substâncias compostas e seu modo de existir (em alguns casos, não há
substância composta sem haver forma). O exemplo que se segue é o da forma da casa,
caracterizando-se o estatuto ontológico desta forma de maneira ambígua. A menção a Platão é
feita (o ‘isso’, no texto, parecendo se referir à forma, e a existência separada em relação à
matéria sendo concedida, por Aristóteles, somente aos objetos naturais). Uma distinção entre
causa existindo enquanto definição e causa existindo enquanto coisa, nas coisas, é feita.
Seguem-se os exemplos da saúde e da forma esférica. O problema da existência posterior da
forma é posto, em diálogo com Platão, e o capítulo termina com a recusa da existência das
Formas platônicas e os exemplos da gênese do homem e das artes (no caso, a medicina).

Continuando o mapa do conceito, apresenta-se o capítulo 4 que se inicia, sinuoso e sutil, com
os diferentes sentidos de causas e princípios das diferentes coisas e elementos. A pergunta por
como pode haver um mesmo elemento para todas as distintas coisas é o seu fio condutor.
Aristóteles estabelece a impossibilidade de haver um mesmo elemento constituindo, enquanto
causa, coisas que contém diversos elementos. Segue-se uma distinção entre predicados e
elementos (exclusão dos inteligíveis, como o ser e a unidade, entre os elementos, pois são

7
predicáveis de cada composto). Ele, então, define os elementos, substância ou termos
relativos, e a nega, mais uma vez, que todas as coisas tenham os mesmos elementos.

A ‘matéria’ aparece no segundo parágrafo do capítulo 4, na edição que serviu de base a este
trabalho, enquanto relacionada aos elementos perceptíveis dos corpos, e à potencialidade
(potência)14. Ou seja, os elementos podem tanto ser matéria quanto forma, sintetizando e
reduzindo a gama de problemas que surgem a partir deste trecho. Em um momento
percebemos a forma elementar, relativa aos elementos, em outro, sua matéria. Há elementos
em que só percebemos a forma e há também os que são perceptíveis e existem como
compostos de matéria e forma (sínolo). O texto segue, afirmando que as substâncias
apresentam ambas, e que as coisas são compostas por ambas. As coisas só têm os mesmos
elementos em sentido analógico, embora coisas especificamente diferentes tenham elementos
especificamente diferentes.

E, então, a segunda ocorrência de ‘matéria’, dessa vez estabelecida enquanto princípio (junto
à forma e à privação)15. Cada princípio é diferente para diferentes classes (ou gêneros, na
tradução de Angioni).

Posteriormente, o texto estabelece mais causas (não só os elementos são causas, mas os
princípios, a causa movente), e, por analogia, três elementos e quatro causas e princípios. A
finalidade é estabelecer o que primeiro move todas as coisas e todas as causas.

Encerra este sucinto mapa de ocorrências o capítulo 5, que se inicia com uma distinção entre
aquilo que não existe separadamente e as substâncias, que existem separadamente 16.
Aristóteles, na sequência da atestação de que a substância é aquilo que existe separadamente,
diz que todas as coisas têm a mesma causa (contrariamente aos diversos tipos de causas,
estabelecidas também no capítulo anterior)17. Neste trecho, parece ser a substância (ou
essência) a causa das coisas, uma vez que o movimento é relativo à substância. E exemplifica
as causas enquanto substância, sendo a alma e o corpo, ou a razão, o desejo e o corpo
(repetindo o corpo enquanto causa).

14
“[10] Or, as we are wont to put it, in a sense they have and in a sense they have not; e.g. perhaps the elements
of perceptible bodies are, as form, the hot, and in another sense the cold, which is the privation; and, as matter,
that which directly and of itself potentially has these attributes (…)” (p.600, 1070b 10 a 15). Os sublinhados
correspondem ao itálico da edição da tradução de Ross. Não há notas nela que justifiquem os itálicos.
15
p.600, 1070b 15-20
16
Notar a brevidade quase lacônica da tradução de Angioni: “[1070b 36] Dado que há coisas separadas e
coisas não separadas, aquelas é que são essências. (...)” (ANGIONI, 2005: p.206).
17
1070b 20
8
Analogicamente, ele diz, os princípios são coisas idênticas, e então apresenta-nos a atualidade
e a potencialidade (que são diferentes para coisas diferentes, e aplicam-se diferentemente a
eles). A mesma coisa existe de maneiras distintas: atualmente ou potencialmente (estes
estados do ser, modos de existência, seriam excludentes, disjuntivos entre si).

E, então, a primeira ocorrência de ‘matéria’. Dessa vez, relacionada ao complexo ‘matéria e


forma’, e à privação. Aristóteles diz que a matéria existe potencialmente18. A forma é, assim
como os compostos, e se inclui no ser as privações e a matéria, que pode conter potência e
ato. Então, qual seria o estatuto metafísico da matéria? Ou seja, de que modo poderíamos
conhecer a sua existência e defini-la, no momento onde ela se encontra em seu estado de
potência? Aristóteles prossegue com as relações entre matéria e potência, e diz que a
atualidade e a potencialidade aplicam-se, de modo diverso, nos casos em que a matéria da
causa e do efeito não é a mesma.

A ‘matéria’ aparece então mais duas vezes neste trecho, relacionada ao exemplo do fogo e da
terra enquanto elementos que são causa do homem, e ao sol enquanto causa externa do pai,
mas não que o sol seja matéria, nem forma ou privação do homem enquanto sendo da mesma
espécie, mas como causa movente.

"(…) Mas a distinção de atualidade e potencialidade aplica-se em outros casos


onde a matéria da causa e do efeito não é a mesma, em alguns dos casos nos quais
a forma não é a mesma, mas diferente, e.g, a causa do homem é 1) os elementos no
homem (viz. fogo e terra como matéria, e a forma peculiar), e, por conseguinte 2)
algo mais externo, i.e, o pai, e 3) ao lado dele o sol e o seu curso oblíquo, o qual
não é nem matéria nem forma nem privação do homem nem da mesma espécie nele,
mas causas moventes." (p.600, 1071a 10-20).

A possibilidade das causas serem expressas por termos universais é então colocada.
Aristóteles nega, após postular que a atualidade e potencialidade do princípio próximo
assegura a sua causalidade, a existência mesma da causa universal19. Há causas universais
quando estas são postas sem qualificações, ou seja, só o singular causa o singular (singular
enquanto coisas qualificadas, como Peleu é o princípio originário de Aquiles).

18
“(...) For the form exists actually, if it can exist apart, and so does the complex of form and matter, and the
privation, e.g. darkeness or [I0] disease; but the matter exists potentially; for this is that which can become
qualified either by the form or by the privation.) (…)” (p.600, 1071a 5-10). Na tradução espanhola de Garcia
Yebra (1998), lê-se: “(...) pues la especie, si es separable, está en acto , y también el compuesto de ambas, y la
privación, por ejemplo la oscuridad o la enfermedad, pero está en potencia la matéria, pues esta es la que puede
llegar a ser ambas cosas (...)” (Metafisica, 1998: pgs.611-12)
19
Sintomaticamente, estas contradições, tão próximas no texto de Aristóteles, talvez indiquem que a redação do
texto não tenha sido feita por ele, ou que tenha havido interferência de copistas, ou que ele tenha escrito para
imediatamente por à prova oral seus manuscritos, sem ter tido oportunidade de revê-los.
9
Ele retoma a fórmula de causas e elementos diferentes para diferentes coisas, e que só em
sentido analógico há a mesma causa. É então que ‘matéria’ ocorre novamente. No caso, no
contexto das diferenças entre as causas de diferentes coisas. Existem matérias, formas e
causas moventes distintas para entes distintos20. Ele pergunta indiretamente pelos princípios e
elementos das substâncias (se são os mesmos, ou distintos entre si), e apela para um recurso
nominal sofisticado, ou seja; quando os mesmos nomes são aplicados a causas diversas, são as
mesmas causas para cada nome diverso.

Encontramos as últimas ocorrências de ‘matéria’ deste capítulo, no contexto de explicação de


quando as causas são as mesmas. São as mesmas, ou análogas, a forma, a privação e a
matéria, como causas de todas as coisas. Parecem ser também causas das substâncias, pois,
uma vez que a substância é aniquilada, são também anuladas as coisas, logo, as causas das
coisas são causas também das substâncias. E, finalizando este capítulo, a matéria é distinta
para coisas distintas, no contexto da distinção das causas primeiras.

"(…) mas quando os sentidos são distintos, as causas não são as mesmas, mas
diferem, exceto isso: nos sentidos que se seguem, suas causas são as mesmas. Eles
são 1) o mesmo ou análogos neste sentido, essa matéria, forma, privação, e a causa
movente são comuns a todas as coisas (...) Mas em outro sentido há causas
primeiras diferentes, viz, todos os contrários que não são termos ambíguos nem
genéricos; e, por conseguinte, a matéria de coisas diferentes difere (...) (p. 601,
1071a30 – 1071b)

A partir dos trechos acima expostos, será problematizado o conceito de ‘matéria’ e seu
estatuto metafísico e gnoseológico.

1.

Como buscarei indicar ao longo desta parte, a intenção dubitativa sobre os problemas terá
prioridade em detrimento da resolutiva. O escopo do problema é redutível em parte, como,
por exemplo, uma investigação que trate do problema da matéria enquanto substância, e não
enquanto princípio, ou em suas relações com os elementos, ou em sua potencialidade. De
qualquer modo, os conceitos em Aristóteles não parecem prescindir de dependência entre si.

20
pgs.600-01, 1071a 25-30
10
A primeira aparição de ‘matéria’, no capítulo 2, parece poder ser esclarecida pelo conceito
grego de hüpokeimenon21. A matéria seria aquilo passível de alteração, uma vez que está
sujeita à mudança entre opostos. Daí, Aristóteles estaria visando justificar a alteração dos
compostos, a mudança, o movimento. No entanto, por ser conhecida em relação à potência, a
matéria é indeterminada22. Ora, o primeiro enigma surge: como conhecemos a matéria, a
partir de seu duplo aspecto de passividade e atividade, especialmente se aplicamos os
princípios lógicos e gnoseológicos descobertos por Aristóteles no que posteriormente
intitulou-se Organon? A matéria, enquanto sujeito (hüpokeimenon), anula o princípio de não
contradição e de identidade23. A pista que nos indica que o Estagirita estava pensando em
elementos passíveis de se alterarem pelo recebimento de uma forma, é a sequência do
capítulo, onde ele menciona as teorias de seus antecessores, onde figuraram os quatro
elementos enquanto princípios cosmológicos.

O capítulo 3 prossegue neste enigma, uma vez que postula ser a matéria incognoscível, a
partir de sua capacidade de ser e de não ser. O capítulo postula a matéria ligada à substância,
com fins de justificar a mudança nas substâncias24. A matéria seria o que muda nas
substâncias compostas. Ora, como pode a matéria ser passível de todos os contrários?
Aristóteles parece deixar este problema em aberto. Esta ampla possibilidade de receber
contrários, passível na matéria, a torna sem propriedades definidas25.

Como compreender a postulação, que ocorre no capítulo 4, das relações entre a matéria, os
elementos e os princípios? Fica claro que a matéria é princípio. Mas enquanto princípio há
nela substancialidade? Parece haver um uso indeciso, por parte de Aristóteles, da atribuição
de substancialidade à matéria.

“(...) A matéria, todavia, não possui algumas das características da


substancialidade. Ela não subsiste por si, porque não há matéria que já não possua
forma; não é algo determinado, porque tal só pode ser algo que já possui forma;

21
1069b14
22
“(...) Em seu aspecto de sujeito, a Matéria é desprovida de forma, é indeterminada, portanto incognoscível
por si mesma (...)” (ABBAGNANO 2003: p.646)
23
Bostock (2006) apontou o problema da identidade da matéria, trazendo a definição aristotélica para o debate
contemporâneo, especificamente, contextualizando, a partir de problemas da Física e Química, a relevância da
questão. O exemplo que ele se utiliza é o do problema dos estados da água, mostrando que ela pode, sob
determinada temperatura, apresentar comportamento e reação tanto de como se estivesse em estado líquido,
quanto de como se estivesse em estado sólido.
24
“(...) A substância sensível corruptível, ao invés, está submetida a todos os tipos de mudança, justamente
porque a matéria da qual é constituída inclui a possibilidade de todos os contrários. (...)” (REALE 1994: p.364)
25
“(...) But Aristotle’s official doctrine is that matter has no essential properties. (…)” (BOSTOCK, 2006,
p.35). Bostock irá problematizar esta indeterminação atribuída à matéria aristotélica, mostrando que em algumas
circunstâncias ela é bem definida.
11
tampouco é algo unitário, porque a unidade deriva da forma; enfim, não é em ato,
mas apenas em potência. Diremos, pois, que a matéria só é substância em sentido
muito fraco e impróprio. Isso explica muito bem por que às vezes Aristóteles negue
que a matéria seja substância e, às vezes o afirme: ela só possui a primeira
característica da substancialidade e não as outras.” (REALE, 1994: pgs.356-57).

E cabe dizer que este problema é pertinente, apenas se a relação entre princípios for entendida
em sentido analógico, de substâncias e causas, como ele propõe no capítulo seguinte.

Para finalizar esta brevíssima incursão, voltemos ao capítulo 5, no momento onde a matéria é
tida como causa. Justificaria esta relação pela necessidade de postular-se uma causa eficiente
para as substâncias? A matéria seria a causa das coisas materiais, mas e quanto à sua
potencialidade e à sua passividade, participariam dela enquanto causa? Haveria uma causa
material para cada oposto que pode existir na matéria? E a matéria enquanto causa seria
passível de alteração e movimento? A causa é um princípio, ou algo diverso? Para vislumbrar
hipóteses que respondam às questões acima, no intuito de tecer relações, seria necessário ir a
outros Livros da Metafísica, em especial, os VII e VIII.

Introduzindo um recurso externo aos capítulos que foram tratados, apela-se ao conceito de
‘matéria prima’ como possível via de resposta. Parece haver, por detrás e enquanto substrato,
um algo que subjaz aos elementos, ao que comumente se pensa enquanto os quatro elementos
materiais (água, terra, ar e fogo): este ‘algo’ que subjaz seria a ‘matéria prima’26. Quer dizer,
haveria gradações de mudanças, por onde o movimento se faz e as coisas se constituem.
Como substrato primeiro, este ‘algo’, que é passível de se tornar um dos quatro elementos (e
que parece não possuir existência concreta e empírica, sendo um recurso intelectual utilizado
por Aristóteles com a finalidade de justificar suas hipóteses metafísicas sobre a mudança do
ser e do não ser, mesmo que sejam estas hipóteses, hipóteses empíricas). Posteriormente, a
depender de que causa, ou princípio de movimento, como foi estabelecido no capítulo 3, agirá
transmitindo a forma, um dos quatro elementos se transforma em direção a se tornar uma
coisa (natural ou artificial).

2.

26
“What is called ‘prime’ matter, then, is in the first place the stuff of which each of the four elements is made,
and in them it is found in its simples possible forms. (…)” (BOSTOCK, 2006: p.33). Bostock se debruçará sobre
os problemas decorrentes desta noção aristotélica.
12
O problema da indivisibilidade e da indeterminação da matéria, de sua relação com os
elementos, de sua eterna potencialidade e de seu estatuto gnosiológico foram apenas
apontados acima. O Livro Zeta da Metafísica apresenta a matéria em relação ao ser e à
substância, porém, não o consultamos e utilizamos aqui. Parece não haver na matéria
substancialidade, enquanto apartada de sua relação com os elementos (princípio de
indeterminação). A fórmula aristotélica lapidar é a de que a matéria sempre tende à forma.
Porém, não tratou-se especificamente da matéria noética e da matéria tópica. Caso se leve o
princípio de incognoscibilidade da matéria ao extremo, pode-se dizer que nada é matéria,
porque nada pode ser. Este princípio parece partir do estatuto de potencialidade da matéria,
que contém o não ser, e do axioma de que só o ser é conhecível. No entanto, Aristóteles
parece estar em direção a uma espécie de conciliação gnoseológica entre ser e não ser, ou
seja, sua teoria do conhecimento consideraria a possibilidade de certo tipo de conhecimento
do não ser. Como o conhecimento do não ser acontece, via a noção de matéria, e constitui a
sua Gnoseologia, porém, é um passo não simples, e que não será feito aqui.

Referências Bibliográficas

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