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Crítica
16 de Novembro de 2009 Metafísica
Ontologia
Keith Campbell
Tradução de Desidério Murcho
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Ficou famosa a declaração de Kant de que a existência não é uma propriedade, e esta
perspectiva tornou-se amplamente aceite. A lógica moderna que descende de Gottlob
Frege e de Principia Mathematica (1910–1913) de Alfred North Whitehead e Bertrand
Russell substitui todas as expressões “existe” por “há”. Assim, “Os leões existem”
torna-se “Há leões”, ao passo que “Os dragões não existem” se torna “Não há
dragões”.
Em termos técnicos, este processo substitui qualquer afirmação de existência por uma
afirmação que usa um quantificador que abrange um domínio (o mundo), de modo que
existir se torna uma questão não de possuir uma propriedade especial, a existência,
mas de possuir alguma outra propriedade corriqueira. A determinação de reformular
todas as afirmações de existência ou inexistência com “Há…” e “Não há…” é expressa
pelo dictum de W. V. Quine: “Ser é ser o valor de uma variável”.
Se a existência não é uma propriedade, não pode ser uma perfeição. Isto anula aquelas
versões do argumento ontológico a favor da existência de Deus que dependem de a
existência ser uma das perfeições. Uma resposta recente consistiu em argumentar que,
mesmo não sendo a existência uma propriedade, a existência necessária é-o (Plantinga,
1974, 1975; van Inwagen 1993).
Dúvidas?
Realidade e efectividade
É a existência tudo o que há, ou devemos reconhecer categorias ainda mais vastas do
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que a do Ser? Em Platão, e mesmo antes, encontra-se uma distinção entre Realidade
(O que é) e a Aparência (O que não é nada, e no entanto apenas parece Ser).
Aristóteles distingue o existente completo (Ser), do que está ainda em formação
(Tornar-se). Estas distinções vêem-se talvez melhor como uma maneira de advogar que
há diferentes graus de realidade no seio da categoria do Ser.
Uma ontologia completa deste género, na qual o domínio da Essência é mais lato do
que o da Existência, foi apresentada por James K. Feibleman em 1951. No trabalho de
Richard Sylvan (1980), isto alarga-se ainda mais. No seu sistema, as variáveis
individuais abrangem não apenas o efectivo e o possível, mas também o impossível.
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As categorias do ser
A principal tarefa da ontologia é fornecer um inventário das categorias, as divisões
mais gerais da Realidade. As mais importantes são as seguintes:
Indivisibilidade. As substâncias têm de ser distintas dos compostos, de modo que uma
substância única tem de ser indivisível, no sentido de não ter partes que sejam elas
mesmas substâncias. Isto elimina as coisas comuns, que não podem ser substâncias.
Esta exigência de simplicidade é muito enfatizada na doutrina de Tomás de Aquino
sobre Deus. Leva em Leibniz à monadologia e em Roger Joseph Boscovich à doutrina
dos pontos materiais.
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capacidade de persistir, isto é, retêm a sua identidade passando por pelo menos
algumas mudanças. Um carro dos bombeiros pode mudar de cor, e no entanto
continuar a ser o carro dos bombeiros que sempre foi. As substâncias compostas
comuns da vida quotidiana têm alguma persistência, mas não podem sobreviver a
todas as mudanças. Um carro dos bombeiros desmontado e reduzido a sucata já não é
um carro dos bombeiros. A persistência completa pertence apenas às substâncias
fundamentais.
Se tomarmos a independência das substâncias num sentido lógico e não causal, uma
substância é seja o que for que, em princípio, pode subsistir sozinha. Esta era a
exigência de David Hume, e seja o que for que lhe obedecer é uma substância
humiana. Para compostos, a exigência é que a coisa, incluindo todas as suas partes,
poderia existir sozinha. Esta exigência é muito menos rigorosa do que a independência
causal e não exige persistência.
Os elementos básicos nestas ontologias podem não ser simples nem indivisíveis, e não
têm persistência. Contudo, estes estados de coisas ou eventos são substâncias
humianas. Na verdade, a menos que não exista coisa alguma, algo tem de ser uma
substância humiana e, nesse sentido, qualquer teoria da ausência de substância tem de
estar errada.
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O realismo com respeito aos universais é pelo menos tão velho quanto Platão. A sua
teoria das Formas apresenta um realismo consumado que atribui às propriedades
genuínas quer existência real, num domínio próprio, quer um estatuto superior a
quaisquer instanciações que delas possam existir neste mundo. As Formas existem
ante rem — isto é, estejam ou não instanciadas. Considera-se tradicionalmente que
Aristóteles sustenta um realismo modificado, segundo o qual as propriedades são reais,
e universais, mas só podem existir in rebus, enquanto propriedades de instâncias
concretas. Encontra-se aqui uma vez mais a sua perspectiva de que o mínimo
“susceptível de ser” é um isto-tal, uma união de um particular com um universal.
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Quando se combina esta abordagem com uma explicação das substâncias comuns com
muitas características em termos de feixes ou co-presença, o problema da relação de
inerência desaparece. Há também outra economia significativa, pois não é preciso ter
uma categoria separada para substâncias. Estas possibilidades são exploradas no livro
Abstract Particulars, de Keith Campbell (1990).
Há, contudo, uma longa tradição que atribui primazia às propriedades intrínsecas.
Aristóteles sustentava que as relações são “a menor das coisas que são”; Hobbes, entre
outros, sustentava que a existência de relações depende de um acto mental de
comparação; e a perspectiva de Leibniz era que toda a relação se fundamenta numa
característica intrínseca de um dos seus termos, ou de ambos. Este programa
reducionista é exposto em Campbell (1990).
Estados de coisas. Um estado de coisas básico consiste num particular que tem uma
propriedade, ou em duas (ou mais) particulares que estão numa dada relação. Uma
propriedade única que inere num só particular é um mínimo “isto-tal”. O Tractatus
Logico-Philosophicus (1921) de Wittgenstein apresentou uma ontologia na qual o
mundo é composto de estados de coisas relacionais mínimos: os que efectivamente
ocorrem são factos, restando além destes os meramente possíveis. Estes temas — que
as categorias básicas só ocorrem em combinação, e que estas combinações constituem
a realidade — são retomadas por D. M. Armstrong, no livro A World of States of
Affairs (1997).
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Objectos abstractos
O pensamento humano, especialmente na matemática e na lógica, parece envolver
entidades que não têm aparentemente lugar no mundo espácio-temporal. Admitir tais
itens é um desafio ao princípio da economia; contudo, é difícil conseguir reduções
bem-sucedidas.
Objectos geométricos. Diferentemente de seja o que for que ocorra no mundo natural,
os objectos da geometria — cubos euclidianos, por exemplo — são concebidos como
perfeitos, imutáveis, intemporais e sem poderes físicos causais. Além disso, há
geometrias, e objectos geométricos correspondentes, com muitas mais dimensões do
que as que este mundo tem. Um espaço geométrico pode dividir-se e subdividir-se
numa infinidade de configurações de diferentes dimensões. O platonismo na geometria
envolve assim uma expansão infinita na ontologia.
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Seres necessários
Considera-se habitualmente que as coisas comuns existem contingentemente; isto é,
existem, mas poderiam não existir. Tivessem as leis da natureza do nosso mundo sido
diferentes, ou as condições iniciais, e haveria um grupo diferente de seres
contingentes. Mas algumas coisas parecem imunes aos caprichos causais e do acaso;
situando-se fora da rede causal, não podem ser trazidos à existência e não podem ser
destruídos. São “seres necessários”. Se o platonismo estiver correcto com respeito a
quaisquer objectos abstractos, haverá seres necessários e até, paradoxalmente, a classe
vazia.
Para Aristóteles, seja o que for que exista ao longo de um tempo infinito é necessário
porque ele defendia que ao longo de um tempo infinito todas as possibilidades
acabariam por se efectivar. Para Plotino, qualquer ser divino estaria fora do tempo, e
como tal não poderia mudar, não poderia deixar de existir e consequentemente seria
um ser necessário. Para Tomás de Aquino, a necessidade de Deus deriva da sua
simplicidade: a essência de Deus e a sua existência são idênticas; deste modo, Deus é
um tipo de ser que tem de existir. Para Espinosa, toda a substância genuína é causa sui,
contendo em si a explicação suficiente do seu próprio ser, e portanto pode garantir a
sua própria existência sob todas as condições possíveis.
Duns Escoto, e depois Descartes, ligou o ser necessário à lógica: um ser necessário é
aquele cuja inexistência seria autocontraditória. “Os feijões reais não existem” é
autocontraditória mas apenas trivialmente porque a existência foi inserida na definição
do sujeito. Isto não faz dos feijões feijões necessários. Se a existência não for inserida
na definição do termo sujeito, é duvidoso que qualquer negação de existência seja
autocontraditória. A melhor discussão da noção de ser necessário é a de Alvin
Plantinga (1974, 1975).
Keith Campbell
Bibliografia
• Adams, R. M. “Primitive Thisness and Primitive Identity”. The Journal of Philosophy 76
(1979): 5-26.
• Alexander, Samuel. Space, Time, and Deity: The Gifford Lectures at Glasgow. 2 vols.
London: Macmillan, 1920.
• Armstrong, D. M. A Combinatorial Theory of Possibility. Cambridge, U.K.: Cambridge
University Press, 1989.
• Armstrong, D. M. Universals and Scientific Realism. 2 vols. Cambridge, U.K.:
Cambridge University Press, 1978.
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