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Crítica
16 de Novembro de 2009 Metafísica

Ontologia
Keith Campbell
Tradução de Desidério Murcho

A ontologia é a ciência ou estudo mais geral do Ser, Existência ou Realidade. Um uso


informal do termo significa o que, em termos gerais, um filósofo considera que o
mundo contém. Assim, diz-se que Descartes propôs uma ontologia dualista, ou que
não há deuses na ontologia de d’Holdbach. Mas no seu significado mais formal, a
ontologia é o aspecto da metafísica que visa caracterizar a Realidade identificando
todas as suas categorias essenciais e estabelecendo as relações que mantém entre si.

Ser enquanto ser


A existência, a mais inclusiva de todas as categorias, deve abranger membros que têm
o mínimo em comum. Contudo, a filosofia ocidental procura há muito um conteúdo
substancial comum que esteja presente em seja o que for unicamente em virtude de
existir. A história destas tentativas para identificar o carácter comum do ser enquanto
ser não é encorajante.

No Sofista, o Estrangeiro Eleata de Platão propõe que um papel na rede causal do


mundo é uma condição necessária e suficiente da existência, que “o Poder é a marca
do Ser”. Esta ideia tem tido alguma circulação no século XX, particularmente no
trabalho de David Lewis (1986) e D. M. Armstrong (1978, 1989, 1997). Este princípio
eleático é um teste atraente da realidade no mundo natural, pois seja o que for que for
real na natureza deve ser capaz de fazer qualquer diferença. Pode ser necessário
enfraquecer a exigência, admitindo um espaço-tempo passivo que forneça a arena na
qual actuam os seres activos. Mesmo assim, o princípio eleático parece que é na
melhor das hipóteses um aspecto contingente do mundo porque não parece haver
qualquer impossibilidade envolvida na ideia de um ser completamente inerte. E é
também uma petição de princípio contra entidades abstractas como os números, ou
pontos geométricos, ou conjuntos, que, se existirem, estão fora do nexo causal.

Para Samuel Alexander (1920), ser é ser o ocupante exclusivo de um volume de


espaço-tempo. Isto elimina não apenas entidades abstractas, mas até uma teoria dos
campos do mundo natural, pois os campos de forças ocupam regiões do espaço-tempo
mas não se excluem entre si.

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J. M. E. McTaggart (1921–1927) argumentou que a marca do ser é estar numa


correspondência de determinação com todas as suas partes infinitas. Uma
correspondência de determinação assegura que de uma descrição suficiente de algo se
pode derivar uma descrição suficiente de qualquer das suas partes. Esta exigência
acarreta que o espaço, o mundo natural, e a maior parte dos conteúdos das mentes, são
irreais. Desta consequência a conclusão a retirar é que a marca do ser proposta por
McTaggart é excessivamente exigente.

O problema de um conteúdo substancial para o ser enquanto ser reflecte-se no


comportamento idiossincrático do verbo “existir”. Considere-se negativas singulares:
“Aristóteles não fala espanhol” é verdadeira porque o predicado “não fala espanhol” se
aplica ao item referido pelo termo sujeito. Mas “Pégaso não existe” não pode ser
verdadeiro em virtude de o predicado se aplicar ao item referido pelo termo sujeito. Se
o termo sujeito refere seja o que for, esse item existe, o que tornaria toda a frase falsa.

Ficou famosa a declaração de Kant de que a existência não é uma propriedade, e esta
perspectiva tornou-se amplamente aceite. A lógica moderna que descende de Gottlob
Frege e de Principia Mathematica (1910–1913) de Alfred North Whitehead e Bertrand
Russell substitui todas as expressões “existe” por “há”. Assim, “Os leões existem”
torna-se “Há leões”, ao passo que “Os dragões não existem” se torna “Não há
dragões”.

Em termos técnicos, este processo substitui qualquer afirmação de existência por uma
afirmação que usa um quantificador que abrange um domínio (o mundo), de modo que
existir se torna uma questão não de possuir uma propriedade especial, a existência,
mas de possuir alguma outra propriedade corriqueira. A determinação de reformular
todas as afirmações de existência ou inexistência com “Há…” e “Não há…” é expressa
pelo dictum de W. V. Quine: “Ser é ser o valor de uma variável”.

Se a existência não é uma propriedade, não pode ser uma perfeição. Isto anula aquelas
versões do argumento ontológico a favor da existência de Deus que dependem de a
existência ser uma das perfeições. Uma resposta recente consistiu em argumentar que,
mesmo não sendo a existência uma propriedade, a existência necessária é-o (Plantinga,
1974, 1975; van Inwagen 1993).

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Dúvidas?

Realidade e efectividade
É a existência tudo o que há, ou devemos reconhecer categorias ainda mais vastas do

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que a do Ser? Em Platão, e mesmo antes, encontra-se uma distinção entre Realidade
(O que é) e a Aparência (O que não é nada, e no entanto apenas parece Ser).
Aristóteles distingue o existente completo (Ser), do que está ainda em formação
(Tornar-se). Estas distinções vêem-se talvez melhor como uma maneira de advogar que
há diferentes graus de realidade no seio da categoria do Ser.

Aristóteles distinguia também o completamente Real (Acto) do que pode ser


(Potência). Esta distinção antecipa uma corrente forte em ontologia que reconhece
mundos possíveis para lá do mundo efectivo, aquele que habitamos. Nos
neoplatónicos, e mais tarde em Alexius Meinong, ao domínio do existente soma-se o
do subsistente, que abrange o que não existe apesar de poder ter existido, como
acontece com as montanhas douradas.

Uma ontologia completa deste género, na qual o domínio da Essência é mais lato do
que o da Existência, foi apresentada por James K. Feibleman em 1951. No trabalho de
Richard Sylvan (1980), isto alarga-se ainda mais. No seu sistema, as variáveis
individuais abrangem não apenas o efectivo e o possível, mas também o impossível.

Mundos possíveis. Gottfried Wilhelm Leibniz foi o primeiro a fazer um uso


sistemático da ideia de que se pode considerar que todas as possibilidades formam
mundos — cada um dos quais é um domínio internamente consistente que pode
combinar alguns elementos iguais aos do mundo efectivo e outros diferentes. O mundo
efectivo é um dos mundos possíveis, distinguindo-se de todos os outros pelo facto de
que nenhum dos seus elementos é meramente possível. Se podermos referir-nos a
mundos possíveis, é fácil definir seres necessários, que de outro modo são tão difíceis
de caracterizar, como aqueles seres que estão em todos os mundos possíveis (ver mais
à frente).

Realismo modal. Os mundos possíveis põem à nossa disposição explicações de


poderes causais, de condicionais contrafactuais, de disposições inexercidas e de
propriedades reais ininstanciadas. Estas vantagens levaram David Lewis (1986) a
abraçar o realismo modal, que afirma a realidade literal de todos os mundos possíveis.

Outros filósofos, apesar de valorizarem estas vantagens, recuam perante a expansão


aparentemente infinita da ontologia que isto exige, o que conduziu a explicações em
termos de sucedâneos de mundos possíveis: Rudolf Carnap, entre outros, propôs que
um mundo possível é um conjunto maximamente consistente de frases. Armstrong,
entre outros, desenvolveu a ideia de Wittgenstein de que um mundo possível é uma
recombinação inefectiva dos elementos deste mundo. Peter Lopston (2001) defende
um realismo redutivo, que expande o tipo de propriedade atribuída no mundo efectivo
de modo a incluir características que poderia-ter-tido. O sucesso destas abordagens é
tema actual de controvérsia.

Pluralidade de mundos na teoria quântica. A noção de que o mundo em que


vivemos não é o único foi também recentemente esboçada na interpretação de alguns
paradoxos da física quântica, que de outro modo são desconcertantes. Nestas
explicações, o mundo não é uma entidade única e unificada, mas antes algo sujeito a
bifurcações contínuas, um processo que gera um número cada vez maior de mundos.
As perspectivas deste género que defendem a pluralidade de mundos são diferentes,
numa acepção importante, do realismo modal: todos estes mundos quânticos são

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supostamente efectivos, mas mutuamente inacessíveis.

As categorias do ser
A principal tarefa da ontologia é fornecer um inventário das categorias, as divisões
mais gerais da Realidade. As mais importantes são as seguintes:

Substâncias. Uma substância individual ou particular é um objecto, uma coisa por


direito próprio. As coisas comuns do quotidiano, como tijolos e camas, fornecem um
modelo para a categoria da substância. Exige-se que as substâncias tenham várias
características básicas, apesar de não ser claro que estas características sejam
compatíveis entre si.

Particularidade e individualidade. Uma substância é simultaneamente um particular


e um indivíduo; não é apenas um pato qualquer, mas precisamente este pato. Um
objecto é da categoria que é (um pato) em virtude das suas propriedades. Mas se estas
propriedades são universais, partilhadas por muitos particulares, não podem por si
conferir particularidade. Alguns filósofos, o mais influente dos quais foi Locke,
propuseram um constituinte das substâncias que desempenhariam este papel, um
substrato que conferiria particularidade e individualidade. Um substrato seria um
particular bruto, um item inerentemente particular e individual, mas sem qualquer
outra característica. É difícil ver como esses particulares brutos poderiam distinguir-se
entre si, mas se os particulares brutos são todos exactamente parecidos entre si, como
poderia qualquer um deles individualizar a sua própria substância? Mais em geral, os
particulares brutos entram em conflito com o dictum de Aristóteles de que o mínimo
de ser, a menor coisa que pode ser, é um “isto-tal”, um particular que tem uma
propriedade.

Outra proposta é que se individua as substâncias pela sua localização. As localizações


— pontos de espaço-tempo e regiões — são em si particulares únicos; se puderem ter
particularidade primitiva, isso levanta a questão de saber por que razão os outros
particulares requerem um substrato ou outro particularizador. Há também outras
dificuldades com a localização: a localização não individua campos de forças ou outras
entidades físicas que não monopolizam o seu espaço. Não funciona também para
quaisquer itens de tipo imaterial.

Ou a individualidade — e portanto a particularidade — é primitiva, ou há particulares


brutos, ou cada substância tem uma propriedade especial, chamada ecceidade ou
istidade, que pode conceder particularidade e individualidade ao seu portador. Para
uma discussão deste problema veja-se o capítulo quinze de From an Ontological Point
of View, de John Heil (2003).

Indivisibilidade. As substâncias têm de ser distintas dos compostos, de modo que uma
substância única tem de ser indivisível, no sentido de não ter partes que sejam elas
mesmas substâncias. Isto elimina as coisas comuns, que não podem ser substâncias.
Esta exigência de simplicidade é muito enfatizada na doutrina de Tomás de Aquino
sobre Deus. Leva em Leibniz à monadologia e em Roger Joseph Boscovich à doutrina
dos pontos materiais.

Persistência. As substâncias distinguem-se das suas propriedades porque têm a

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capacidade de persistir, isto é, retêm a sua identidade passando por pelo menos
algumas mudanças. Um carro dos bombeiros pode mudar de cor, e no entanto
continuar a ser o carro dos bombeiros que sempre foi. As substâncias compostas
comuns da vida quotidiana têm alguma persistência, mas não podem sobreviver a
todas as mudanças. Um carro dos bombeiros desmontado e reduzido a sucata já não é
um carro dos bombeiros. A persistência completa pertence apenas às substâncias
fundamentais.

Independência. Qualquer substância poderia ser a única coisa em existência. Se esta


independência for interpretada causalmente, nenhum objecto comum é uma substância,
pois todos são postos em existência, e por isso a sua existência depende das suas
causas. O espaço-tempo e os seus campos poderiam considerar-se substâncias, mas
mesmo estes dependem, nos sistemas teístas, da actividade criadora de Deus. Assim,
no tomismo, Deus é a substância por excelência, mas o mundo natural inclui
substâncias criadas, que dependem de Deus mas que, noutros aspectos, existem por si.
Espinosa, insistindo na independência absoluta, concluiu que só pode haver uma
substância, a totalidade omniabrangente, Deus-ou-Natureza.

Se tomarmos a independência das substâncias num sentido lógico e não causal, uma
substância é seja o que for que, em princípio, pode subsistir sozinha. Esta era a
exigência de David Hume, e seja o que for que lhe obedecer é uma substância
humiana. Para compostos, a exigência é que a coisa, incluindo todas as suas partes,
poderia existir sozinha. Esta exigência é muito menos rigorosa do que a independência
causal e não exige persistência.

Teorias da ausência de substância. Tem-se tentado eliminar as substâncias. Russell


propôs que um objecto concreto comum não é mais do que um feixe de todas as suas
propriedades. Mas há sempre a questão de saber o que agrega o feixe. Além disso,
dado que as propriedades são universais, esta teoria acarreta que nenhumas duas coisas
podem ter uma parecença exacta.

Na versão de Donald Williams da teoria dos feixes (1966), as propriedades são


instâncias particulares ou tropos (ver mais à frente). Isto evita o problema da
possibilidade de haver dois objectos com uma parecença exacta, mas exige que todos
os membros do feixe estejam “co-presentes” — exige que estejam todos no mesmo
lugar do espaço-tempo. Há dificuldades em tratar uma localização no espaço-tempo
como se fosse apenas mais um tropo no feixe, mas se lhe for dado um tratamento
especial torna-se um substrato substancializante.

Russell defendeu também uma ontologia de eventos como uma perspectiva de


ausência de substância. Russell usava “evento” para a ocorrência de uma propriedade
num dado lugar e num dado momento do tempo; tais eventos não são aconteceres, mas
antes estados de coisas (veja-se mais à frente). Propôs que as substâncias comuns, e as
suas partes mais fundamentais, são sequências de agregados de tais eventos.

Os elementos básicos nestas ontologias podem não ser simples nem indivisíveis, e não
têm persistência. Contudo, estes estados de coisas ou eventos são substâncias
humianas. Na verdade, a menos que não exista coisa alguma, algo tem de ser uma
substância humiana e, nesse sentido, qualquer teoria da ausência de substância tem de
estar errada.

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Propriedades e relações. As propriedades são as características intrínsecas das coisas,


que lhes pertencem quando as consideramos individualmente. As relações, envolvendo
dois ou mais termos, são os modos sob os quais as coisas estão perante outras. Em
muitos aspectos, as propriedades e as relações podem ser tratadas conjuntamente.

Propriedades como universais. As propriedades são habitualmente concebidas como


universais que podem caracterizar um número infinito de instâncias. Só há uma Torre
Eiffel, mas a altura da torre, o peso e a constituição de ferro são características que tem
em comum com muitas outras coisas. O Problema dos Universais é o problema de
explicar como poderia uma qualquer entidade real existir, total e completamente, em
muitas instâncias diferentes. Este problema atraiu três propostas de solução:
nominalismo, conceptualismo e realismo. O nominalismo e o conceptualismo negam,
ambos, que as propriedades sejam genuinamente universais. Segundo o nominalismo,
o único elemento comum a todas as coisas de ferro é poderem todas ser descritas
usando o predicado “de ferro”, ou serem todas membros da classe das coisas de ferro,
ou serem todas parecidas a alguns objectos de ferro típicos. Segundo o
conceptualismo, o elemento universal consiste num impulso das nossas mentes para
agrupar várias coisas. Estas teorias reducionistas têm tido partidários desde o tempo de
Platão e foram especialmente prevalecentes entre os empiristas britânicos e os seus
descendentes. O nominalismo e o conceptualismo foram explicitamente postos em
causa por Russell nos Problemas da Filosofia (1912). A argumentação mais exaustiva
contra tais perspectivas foi apresentada por D. M. Armstrong, Universals and
Scientific Realism (1978).

O realismo com respeito aos universais é pelo menos tão velho quanto Platão. A sua
teoria das Formas apresenta um realismo consumado que atribui às propriedades
genuínas quer existência real, num domínio próprio, quer um estatuto superior a
quaisquer instanciações que delas possam existir neste mundo. As Formas existem
ante rem — isto é, estejam ou não instanciadas. Considera-se tradicionalmente que
Aristóteles sustenta um realismo modificado, segundo o qual as propriedades são reais,
e universais, mas só podem existir in rebus, enquanto propriedades de instâncias
concretas. Encontra-se aqui uma vez mais a sua perspectiva de que o mínimo
“susceptível de ser” é um isto-tal, uma união de um particular com um universal.

O realismo encontrou sempre duas objecções principais. Primeiro, que não é


económico, especialmente na sua forma platonista. A questão da economia é um tema
actual na filosofia da ciência, dado que pelo menos aparentemente as nossas melhores
teorias físicas e químicas envolvem propriedades não instanciadas. A segunda
objecção é que não consegue fornecer uma explicação coerente da ligação entre uma
propriedade e a substância que é sua portadora, sendo esta a relação de inerência. A
inerência não pode ser uma relação normal, porque nesse caso é apenas mais um
universal que precisa de uma ligação de inerência entre os seus termos, a substância e
a propriedade original. Mas se isto não é uma relação no sentido comum, é o quê? O
problema da inerência dá sustentação a versões do realismo nas quais as propriedades
são particulares.

Propriedades como particulares. Mesmo que a propriedade de ferro seja universal, o


caso particular de ser de ferro que ocorre na Torre Eiffel pertence apenas à torre e é tão
particular quanto a própria torre. A teoria dos tropos, tal como foi pela primeira vez
desenvolvida por Donald Williams, trata a instância não como uma entidade

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dependente que emerge da instanciação de um universal, mas como uma substância


humiana de pleno direito.

Quando se combina esta abordagem com uma explicação das substâncias comuns com
muitas características em termos de feixes ou co-presença, o problema da relação de
inerência desaparece. Há também outra economia significativa, pois não é preciso ter
uma categoria separada para substâncias. Estas possibilidades são exploradas no livro
Abstract Particulars, de Keith Campbell (1990).

Relações. Quando Russell reanimou o debate sobre o realismo deu às relações um


estatuto inteiramente igual ao das propriedades inerentes. Na verdade, foram as suas
reflexões sobre o papel das relações nos fundamentos da matemática e da lógica que o
conduziram ao realismo. O realismo de Armstrong assume a mesma forma.

Há, contudo, uma longa tradição que atribui primazia às propriedades intrínsecas.
Aristóteles sustentava que as relações são “a menor das coisas que são”; Hobbes, entre
outros, sustentava que a existência de relações depende de um acto mental de
comparação; e a perspectiva de Leibniz era que toda a relação se fundamenta numa
característica intrínseca de um dos seus termos, ou de ambos. Este programa
reducionista é exposto em Campbell (1990).

As relações são aparentemente dependentes, no sentido em que têm de ter substâncias


como termos, e estas substâncias têm de ter propriedades intrínsecas. Assim, a menos
que existam propriedades intrínsecas não poderá haver relações, mas não vice-versa.
As teorias dos feixes, aplicadas a coisas comuns, dizem respeito apenas às
propriedades intrínsecas. Incluir relações nos feixes conduz a problemas quanto ao
lugar a dar às relações, o que por sua vez induz uma tendência a favor de um monismo
como o de Francis Herbert Bradley, no qual as substâncias comuns são absorvidas
numa totalidade única omniabrangente.

Poderes. Algumas propriedades, como quadrado, parecem pertencer ao modo de ser


do objecto. Outras, como ser um solvente, parecem referir ao que um objecto pode
fazer. Esta é a distinção entre propriedades categoriais e disposicionais. Uma linha de
investigação retoma o princípio eleático e identifica as propriedades reais com as que
conferem ao seu portador uma disposição para agir ou para ser objecto de actuação.
Tais disposições são poderes; uma metafísica dos poderes é avançada no livro Powers,
de George Molnar (2003) e em Scientific Essentialism, de Brian Ellis (2001).

Complexos. Substância e propriedade são categorias básicas. Em combinação, podem


fornecer uma ontologia mais rica.

Estados de coisas. Um estado de coisas básico consiste num particular que tem uma
propriedade, ou em duas (ou mais) particulares que estão numa dada relação. Uma
propriedade única que inere num só particular é um mínimo “isto-tal”. O Tractatus
Logico-Philosophicus (1921) de Wittgenstein apresentou uma ontologia na qual o
mundo é composto de estados de coisas relacionais mínimos: os que efectivamente
ocorrem são factos, restando além destes os meramente possíveis. Estes temas — que
as categorias básicas só ocorrem em combinação, e que estas combinações constituem
a realidade — são retomadas por D. M. Armstrong, no livro A World of States of
Affairs (1997).

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Eventos e processos. Um estado de coisas é estático. Dar conta dos aspectos


dinâmicos do mundo exige uma explicação da mudança. Isto pode fazer-se usando
sequências de estados de coisas: a estabilidade consiste em estados de coisas
sucessivos muitíssimo parecidos entre si, ao passo que a mudança consiste em estados
de coisas que a dada altura são substituídos por outros sistematicamente diferentes.
Um evento é uma mudança singular, envolvendo um par de estados de coisas; um
processo é uma série mais complexa de eventos.

Whitehead, em Process and Reality (1929), deu prioridade ao dinamismo; todas as


substâncias que persistem aparentemente são efectivamente processos que se dão
muito lentamente. O estatuto do espaço-tempo é controverso. Pode ser uma substância
humiana; contudo, algumas explicações da matéria atribuem-lhe um lugar enquanto
processo, uma sequência de relações mutáveis complexas entre particulares.

Objectos abstractos
O pensamento humano, especialmente na matemática e na lógica, parece envolver
entidades que não têm aparentemente lugar no mundo espácio-temporal. Admitir tais
itens é um desafio ao princípio da economia; contudo, é difícil conseguir reduções
bem-sucedidas.

Números e conjuntos. Porque se pode representar todos os números na teoria de


conjuntos, não é preciso admitir conjunto e números. Russell propôs-se eliminar os
conjuntos a favor de funções proposicionais, mas isto revelou-se impossível de aplicar
a mais do que um fragmento da matemática (Goodman e Quine 1947, Quine 1969).
Porque as variáveis da teoria de conjuntos têm conjuntos como valores, e porque ser é
ser o valor de uma variável, estamos comprometidos com a sua realidade — e isto é
platonismo quanto a conjuntos e números. O tentativa mais importante de evitar o
platonismo é o de Hartry Field (1980, 1989).

Objectos geométricos. Diferentemente de seja o que for que ocorra no mundo natural,
os objectos da geometria — cubos euclidianos, por exemplo — são concebidos como
perfeitos, imutáveis, intemporais e sem poderes físicos causais. Além disso, há
geometrias, e objectos geométricos correspondentes, com muitas mais dimensões do
que as que este mundo tem. Um espaço geométrico pode dividir-se e subdividir-se
numa infinidade de configurações de diferentes dimensões. O platonismo na geometria
envolve assim uma expansão infinita na ontologia.

Uma abordagem a esta questão é considerar que os objectos geométricos são


abstraídos, isto é, tirados do seu contexto. Deste ponto de vista, todo o cubo é apenas
um fragmento espacial particular de espaço-tempo e todo o triângulo é um fragmento
de uma das superfícies espaciais do espaço-tempo. Um problema desta abordagem é
que nem todas as formas estarão disponíveis. Se o nosso espaço-tempo está longe de
ser perfeitamente euclidiano, não haverá cubos reais euclidianos. Podemos tratar estes
objectos inexistentes como variações imaginárias das que efectivamente existem, e
considerar que as geometrias que quantificam sobre tais coisas não são literalmente
verdadeiras.

Lógica. A filosofia da lógica faz referência a proposições, operadores, funções e

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inferências. Estas são entidades abstractas, que se relacionam com o raciocínio


aproximadamente do mesmo modo que os números se relacionam com a contagem e a
medição. Os problemas e possibilidades de sucesso de um tratamento reducionista
destas entidades são igualmente paralelos.

Seres necessários
Considera-se habitualmente que as coisas comuns existem contingentemente; isto é,
existem, mas poderiam não existir. Tivessem as leis da natureza do nosso mundo sido
diferentes, ou as condições iniciais, e haveria um grupo diferente de seres
contingentes. Mas algumas coisas parecem imunes aos caprichos causais e do acaso;
situando-se fora da rede causal, não podem ser trazidos à existência e não podem ser
destruídos. São “seres necessários”. Se o platonismo estiver correcto com respeito a
quaisquer objectos abstractos, haverá seres necessários e até, paradoxalmente, a classe
vazia.

Para Aristóteles, seja o que for que exista ao longo de um tempo infinito é necessário
porque ele defendia que ao longo de um tempo infinito todas as possibilidades
acabariam por se efectivar. Para Plotino, qualquer ser divino estaria fora do tempo, e
como tal não poderia mudar, não poderia deixar de existir e consequentemente seria
um ser necessário. Para Tomás de Aquino, a necessidade de Deus deriva da sua
simplicidade: a essência de Deus e a sua existência são idênticas; deste modo, Deus é
um tipo de ser que tem de existir. Para Espinosa, toda a substância genuína é causa sui,
contendo em si a explicação suficiente do seu próprio ser, e portanto pode garantir a
sua própria existência sob todas as condições possíveis.

Duns Escoto, e depois Descartes, ligou o ser necessário à lógica: um ser necessário é
aquele cuja inexistência seria autocontraditória. “Os feijões reais não existem” é
autocontraditória mas apenas trivialmente porque a existência foi inserida na definição
do sujeito. Isto não faz dos feijões feijões necessários. Se a existência não for inserida
na definição do termo sujeito, é duvidoso que qualquer negação de existência seja
autocontraditória. A melhor discussão da noção de ser necessário é a de Alvin
Plantinga (1974, 1975).

Keith Campbell

Encyclopedia of Philosophy, org. Donald M. Borchert (Macmillan Reference, 2006)

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