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O limite do encantamento do mundo: o processo de auto auto

aniquilamento do gênio apolíneo no Nascimento da Tragédia


Sílvia de Lourdes Lemes Aguiar

Resumo: Esse estudo se insere na pesquisa geral do dicionário dos intraduzíveis (o


dicionário dos introduzíveis problematiza) que, embora não esteja ligado à tradução,
trata de um aspecto muito importante, que é o problema da recepção da filosofia em
diversas culturas e em diversas línguas, mais especificamente à interpretação da tragédia
grega feita pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, bem como o desenvolvimento da
duplicidade, apolíneo e dionisíaco. Ademais, o estudo tem o objetivo de mostrar as
fortes influências da metafísica schopenhaueriana no Nascimento da Tragédia (1888) e,
também, as diferenças que marcam o afastamento de ambas filosofias.

No processo de desenvolvimento de sua metafísica de artista, (NIETZSCHE,


2007) Nietzsche em muito se aproxima da metafísica da Vontade de Schopenhauer. A
contemplação estética provocada pelo gênio apolíneo se assemelha muito ao fenômeno
da ascese na metafísica de Schopenhauer1. No entanto, a diferença em relação à
metafísica de Schopenhauer é evidente. Em Schopenhauer, toda a dor e contradição
imanentes da Vontade são resolvidas no momento da contemplação estética, em
Nietzsche, porém, as criações do gênio apolíneo não representam um triunfo definitivo
sobre a dor primordial. Na metafísica de artista desenvolvida no Nascimento da
Tragédia, o encantamento provocado pelo gênio apolíneo é apenas um estado provisório
para revelar o verdadeiro mistério da tragédia. Por que a arte apolínea não representa
uma vitória definitiva sobre a verdade dionisíaca terrível e seu fundamento primordial
de dor e contradição? Essa é a pergunta que respondemos nesse estudo. Ilustrar como
uma imagem da tragédia que seja pintada ou esculpida. (estatua de laocoonte).

Antes de partimos de imediato para a resposta dessa questão, farei uma breve
digressão para apresentar o universo no qual se insere o Nascimento da Tragédia, bem
como o processo de criação artística na metafísica nietzschiana.

O Nascimento da Tragédia, é uma obra de juventude de Nietzsche, que surge


não apenas como estudo filosófico da arte, mas também como um grande
empreendimento que almeja introduzir uma nova maneira de se fazer filologia, e, por
outro, dar início a um projeto cultural na Alemanha. De forma geral podemos

1
Schopenhauer, 2005
caracterizar o Nascimento da Tragédia, como o livro de um filólogo que ousou pensar
filosoficamente e que via no renascimento da arte apolíneo-dionisíaca da tragédia, a
promoção de uma reflexão sobre a cultura alemã a partir de uma estética afirmativa da
vida.

A obra inicia-se com a apresentação de dois impulsos: o apolíneo e o dionisíaco.


Nesse ponto, Nietzsche parece se apoiar na oposição que Schopenhauer faz entre a
representação e a vontade. Apolo, visto como o Deus da aparência, da ilusão,
simbolizaria o mundo como representação, enquanto que Dioniso, visto como Deus da
fúria sexual, prazer e dor, manifesta a Vontade para além da representação. O apolíneo é
para Nietzsche o princípio de individuação, formador do mundo fenomênico e da
imagem enquanto o dionisíaco é o princípio da desmedida, da desintegração do eu e da
subjetividade. Ambos os impulsos, antagônicos entre si, são pensados por Nietzsche a
partir de diferentes formas de manifestações artísticas. O impulso apolíneo é
identificado por Nietzsche na bela aparência dos Deuses Olímpicos e heróis gregos,
enquanto que o dionisíaco é representado pelo culto das bacantes. 2 Esses dois impulsos
teriam passado por várias fases de disputa entre si, oscilando em momentos de
predominância de um sobre o outro. No entanto, ao se reconciliarem, teriam dando
origem a uma nova forma de arte: a tragédia grega: (imagens para esses textos).

[...] ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na


maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a
produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela
contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava apenas
aparentemente a ponte, até que, por fim, através de um miraculoso ato
metafísico da vontade helênica, apareceram emparelhados um com o
outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quando
a apolínea geraram a tragédia ática (2005, p. 27).

Nietzsche entende só ter sido possível essa junção através da música. O coro
trágico, oriundo do cultos das bacantes, teria sido o responsável pelo rompimento com
os princípios de individuação, na medida em que incitava uma descarga de imagens
apolíneas. Essa descarga produzia o mito trágico que trazia em sua essência a sabedoria
dionisíaca do aniquilamento do herói. Ao ser aniquilado, o indivíduo é reconectado ao
Uno, passa a conhecer então a essência do mundo. Nesse sentido, a tragédia grega
exprime o fenômeno da embriaguez dionisíaca, na medida em que é capaz de romper
2
O professor Roberto Machado define esses cultos como “cortejos orgiásticos de mulheres que, em transe
coletivo, dançando, cantando e tocando tamborins em honra de Dioniso, à noite, nas montanhas,
invadiram a Grécia vindos da Ásia. Cf (2005, p. 8).
com o consciente fazendo com que o indivíduo entre em contato com o prazer
primordial

Uma das chaves para compreender a metafísica de artista de Nietzsche é o Uno –


primordial. Identificado no Nascimento da Tragédia como “o eterno padecente e pleno
de contradição” (2005, p. 39), o Uno- primordial revela um fundamento declaradamente
pessimista. Nesse ponto, Nietzsche equipara a Vontade ao Uno – primordial. Contudo,
em Schopenhauer a individuação é a causa de todo o sofrimento, já que ela mesma põe
fim a harmonia e a unidade originária da vontade 3. Em Nietzsche, o Uno- primordial é a
causa do sofrimento no mundo da individuação. Vivendo em constante contradição
consigo mesmo, em incessante dor, esse ser não pode permanecer por muito tempo
indeterminado. Uma força vinda dele mesmo obriga-o a fragmentar-se, a multiplicar-se
em seres finitos, a fixar-se em imagens e a produzir o mundo das formas individuais, da
realidade fenomênica.

O mundo fenomênico, como resultado desse movimento do querer, traz em si as


marcas da dor, do despedaçamento do uno primordial e, para se libertar dessa dor, faz
um segundo movimento, dessa vez estético, reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direção à aparência. Desse último, emana a aparência da aparência
ou a bela aparência do sonho, um bálsamo para o querer, um remédio para libertálo
momentaneamente da dor pelo seu desmembramento em indivíduos. Esse é o processo
transfigurador do Uno-primordial, que a “natureza artista” realiza por meio do sonho
para criar a bela aparênciaNesse sentido, o Uno-Primordial cria o mundo da arte, da
aparência e da individuação para livrar-se das contradições nele concentradas 4. O que
Nietzsche tentará fazer a partir de então é a superação desse fundo notadamente
pessimista e da influência pessimista de Schopenhauer, para, finalmente conseguir
estabelecer a arte como única forma de justificativa do mundo e da existência humana.

A compreensão de Nietzsche sobre a relação entre os dois impulsos


fundamentais (apolíneo – dionisíaco) é a que o dionisíaco representa o conhecimento
das dores a que o Uno- primordial está submetido, de forma que seu sofrimento reflete
nos horrores da existência individual. Apolo, por outro lado, triunfa sobre as potências

3
“Essa autocisão que se efetua no mundo da individuação é remetida a um misterioso pecado original,
que põe fim à unidade originária e harmônica da vontade consigo mesma”.

4
Cf. ARALDI, 2009, P. 124
originárias, visto que através da arte, ele consegue glorificar a vontade nas suas
manifestações belas e aparentes:

O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para


que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre
ele e a vida, a resplandecente criação onírica dos deuses olímpicos [...]
De que outra maneira poderia aquele povo tão suscetível ao sensitivo,
tão impetuoso no desejo, tão singularmente apto ao sofrimento,
suportar a existência, se esta, banhada de uma glória mais alta, não lhe
fosse mostrada em suas divindades? O mesmo impulso que chama a
arte a vida, [...] permite também que se constitua o mundo olímpico.
(NT, 2005, p. 36 – 37).

“O apolíneo não é, no entanto, expressão da autonomia e da liberdade dos gregos


para criar uma nova forma de vida; ele é um dos meios da Vontade (helênica) para
“atingir seu alvo, o gênio”5. A arte surge como “meio de cura da verdade dionisíaca
terrível. Para a sua redenção, o Uno-Primordial precisa da aparência, da arte. Dessa
forma, a vida só pode ser suportada através das criações artísticas e das ilusões belas e
aparentes:

O verdadeiramente-existente e Uno-primordial, enquanto eterno


padecente e pleno de contradição necessita, para a sua constante
redenção, também da visão extasiante da aparência prazerosa –
aparência esta que nós, inteiramente envolvidos nela e dela
consistentes, somos obrigados a sentir como o verdadeiramente não
existente (NT, 2005, p. 39).

Se Nietzsche está dizendo que o Uno-primordial necessita para a sua constante


redenção, da visão extasiante da aparência, voltamos então a nossa pergunta inicial: Por
que a arte apolínea não representa uma vitória definitiva sobre a verdade dionisíaca
terrível e seu fundamento primordial de dor e contradição? O cume do encantamento do
gênio apolíneo é um limite, um estado provisório. No momento que o gênio apolíneo
atinge seu pleno estado de encantamento, ele se auto aniquila, perpetuando-se como
cume e autodestruição do mundo da aparência. Esse processo, de auto aniquilamento do
5
Cf. ARALDI, 2009, p. 127
gênio apolíneo, é a forma como Nietzsche busca relevar o mistério da tragédia, ou seja a
união entre os gênios apolíneos e dionisíacos:

O efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a


Sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a
um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da
natureza. O consolo metafísico – com que, como já indiquei aqui, toda
a verdadeira tragédia nos deixa – de que a vida, no fundo das coisas,
apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é
indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria (2007, p. 55).

Nesta passagem está contido também algo que será de grande importância para o
desenvolvimento da obra, que é tragédia como sinônimo de alegria, no sentido em que
transforma o sofrimento em um sentimento afirmativo da existência. É nesse sentido
que Nietzsche a conceitua como um consolo metafísico, pois, no desenvolvimento da
arte trágica, afirma Machado, “o espectador aceita o sofrimento com alegria, como parte
integrante da vida, porque seu próprio aniquilamento como indivíduo em nada afeta a
essência da vida” (2005, p. 9).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARALDI, L, C. As Criações do Gênio- Ambivalências da “metafísica da arte”


nietzschiana. KRITERION, Belo Horizonte, n. 119, Jun./2009, p. 115-136.

MACHADO, Roberto (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia: ou helenismo e


pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tradução de


Jair Barbosa. São Paulo: UNESP, 2005.

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