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AS INFLUÊNCIAS DE SCHOPENHAUER NA OBRA O NASCIMENTO

DA TRAGÉDIA DE NIETZSCHE

É consenso que Nietzsche (1844 – 1900) foi influenciado pela

leitura da principal obra de Schopenhauer (1788 – 1860) e tenha se

apropriado de alguns princípios de sua metafísica e de aspectos da

teoria da arte ali descrita, visto o uso recorrente de terminologias

parecidas deste, naquele, no entanto, é possível perceber que Niet tenta

sempre manter um distanciamento seguro da obra de seu predecessor.

Não é sem espanto que Niet entra em contato com o livro O

mundo como vontade e representação , e tão pouco é rasa a influência


que as ideias ali contidas exercitarão no pensamento dele. Segundo

depoimento de seu biógrafo Curt Paul Janz, essas foram suas palavras

para descrever o instante “Não sei que demônio me sussurrou: ‘leve

este livro para casa’”. Uma descrição mais longa acerca da ocasião nos

mostra quais foram as impressões que o livro exercera no filósofo:

“Uma vez em casa me recolhi com o tesouro recém

adquirido em um canto do sofá e comecei a deixar que aquele gênio

energético e sombrio influísse sobre mim. Toda linha gritava renúncia,

negação, resignação; tinha diante de mim um espelho no qual podia

contemplar o mundo, a vida e meu próprio ânimo com uma grandeza

deprimente. Um espelho a partir do qual o olho solar da arte me

olhava

com a sua absoluta falta de interesse.” É sem medidas que o jovem

Niet irá se enveredar nas páginas desta obra e, consequentemente, no

pessimismo ali contido, no aspecto trágico que Schopenhauer enxerga

como existente na vida, na crítica à tradição alemã, em sua teoria

estética e etc.
No prefácio da obra O Nascimento da tragédia grega no espírito

da música de 1873, que fora escrito 16 anos mais tarde, é com


bastante autocrítica que o filósofo se volta para esta obra juvenil. Ele

chega a afirmar que em sua obra lhe faltou coragem ou imodéstia de

pôr em termos próprios concepções que eram somente suas, ao invés

de penosamente adaptá-las em termos Kantianos e Schopenhauerianos

(se permitindo a intrusão das coisas modernas p.31), quando na

verdade eram até mesmo opostos à estes. A autocrítica do filósofo é

tamanha e lamuriosa que este clama a Dionísio por não ter usado as

palavras que este lhes revelava para descrever o espírito grego. Embora

haja rupturas e consonâncias teóricas, nos textos de juventude

a concepção nietzschiana de gênio tem origem declarada em

Schopenhauer e este gênio é Richard Wagner (1813 – 1883), o maestro

que segundo ambos os filósofos, esteve dotado do gênio criador da

arte e exprimiu através da música a essência do mundo. Não obstante,

entende-se que houve uma aproximação de Nietzsche

a Schopenhauer e a Wagner em O nascimento da tragédia, uma

vez que para os três a música é expressão imediata da Vontade

universal, essência do mundo, manifestando o cerne metafísico de

seus pensamentos (2019, p.128)

Schopenhauer desenvolveu sua teoria estética no terceiro livro de

MVR. De maneira resumida, a arte seria o conhecimento que não passa

pelo princípio de razão, é criação que está liberta de toda mudança,

uma verdade que permanece igual para todos os tempos e que, através

do artista que busca reproduzir as ideias eternas uma vez que teve

uma contemplação. Assim também o é em Niet quando este diz que o

artista plástico e o artista épico ficam imersos na pura contemplação

das imagens. (2013, p.75) Toda criação artística tem por objetivo

comunicar este conhecimento das ideias. A arte é interpretada como


obra do gênio, o artista é aquele que a natureza escolhe para exprimir-

se, por intermédio do gênio, nas palavras dele “o gênio é a disposição

inata do espírito pela qual a natureza dá regras à arte” (§ 46), Toda

arte é cópia da natureza, no entanto o gênio artístico é capaz de

ultrapassar a beleza contida nela ao representar com maior perfeição o

que há na natureza. É um conhecimento que não passa pelo filtro do

princípio de razão, cuja produção, ou seja, a obra de arte (que pode

aparecer como arte plástica, poesia ou música) tem por fim comunicar

(representar) este conhecimento. A verdadeira arte tem caráter

duradouro, uma vez que ela é uma ínfima parte da torrente do todo,

apreendida de maneira cósmica pelo gênio. De outra maneira, a sua

origem está no conhecimento das ideias (platônicas), o seu objetivo

único é comunicar esse conhecimento. É na obra de arte que o gênio

materializa

esse conhecimento. Nos sujeitos comuns, é a Vontade que predomina, e

quando o conhecimento se exerce é através de um impulso dela.

Em Nietszche, já no prefácio de O nascimento da tragédia, ele

antecipa que o livro é para os já iniciados e que são versados em

música e dotados de conhecimentos artísticos (não atoa é dedicado a

Richard Wagner, um sujeito raro, cujo Niet irá considerar como a

corporificação do gênio Schopenhauriano).

Também na obra, Schopenhauer concebeu o que ele chamou de

hierarquia das artes. Pode-se dividi-las em: arquitetura, escultura,

pintura, poesia

lírica, poesia trágica e, finalmente, pela música. A música sendo a

cópia da vontade mesma é o que a diferencia das demais artes, ou

seja, a música possui um efeito penetrante muito mais eficiente, pois

enquanto as artes em geral são apenas representações, sombras, a

música é a pura essência, para Schopenhauer (2005, p. 338) é “a cópia


de um modelo que ele mesmo nunca pode ser trazido à representação”

ou de outra maneira “A música não exprime nunca o fenômeno, mas

unicamente a essência íntima de todo fenômeno, numa palavra, a

própria vontade. Portanto, não exprime uma alegria especial ou definida,

certa tristezas, certa dor, [...] mas a própria alegria, a tristeza, a dor, [...]

exprime-lhes a essência abstrata e geral, fora de qualquer motivo e

circunstância.” (2014, p.93). Compreendemos a partir deste conceito

Schopenhaueriano que todas as artes são cópias de Ideias, mas a

música é a cópia da própria vontade, sendo assim, a música é capaz

de gerar Ideias para as outras artes, já o processo inverso seria

impossível (não é possível, por exemplo, fazer música de uma pintura,

mas o contrário é).

Desta maneira, portanto, o compositor musical no momento de

inspiração e criação da melodia, está completamente em transe, como

se estivesse hipnotizado, neste momento ele se desliga de seu querer,

está apartado de suas vontades. Quanto a esta inspiração criadora

(romântica), esta arte suprema edifica não somente a si própria, mas

também o compositor capaz de gerar uma bela melodia, visto que ela

pode intensificar e dar sentido do início ao fim, sendo uma linguagem

universal e o mais alto grau de objetivação entre as artes. Assim, a

música é o produto deste momento de inspiração. No MVR, o objeto

que o artista busca representar é sempre a ideia, tomada em sentido

platônico como já mencionado, não é conceito rígido e determinado,

objeto das ciências e que nada de novo se origina e que portanto de

nada serve para a arte. Todo bom produto artístico deve de alguma

maneira pertencer à humanidade e não ao seu momento histórico.

Vale ressaltar o estado de supressão da vontade que um artista

precisa alcançar para que a arte se realize. Em Schopenhaeur isto


aparece da seguinte forma: Apenas o gênio é capaz de esquecer de

suas vontades e as relações da vida, de modo que, a atitude da

genialidade é a objetividade perfeita de um espírito, em oposição

contrária ao gênio está a subjetividade que sempre está a par com este

espírito e suas vontades. Na ocasião de criação artística, a

personalidade do gênio se ausenta e resta o puro sujeito que conhece

e objetiva reproduzir na arte o que aparece somente em ideia. §36,

p.254.

Para José Thomaz Brum em O pessimismo e suas vontades:

Schopenhauer e Nietzsche, o primeiro filósofo concebera a arte então


como uma via de salvação, como uma liberação da servidão do querer-

viver. Em Nietzsche, de forma parecida, a criação artística não pode de

maneira alguma ser subjetiva, “[...] exigimos, em toda manifestação

artística e em todos os graus da arte, antes de tudo e em primeiro

lugar, a vitória sobre o subjetivo, a independência relativamente ao “eu”,

a abolição de toda vontade e de todo desejo individual. Porque, sem

objetividade, sem contemplação pura e desinteressada, não podemos

mesmo jamais acreditar na menor produção realmente artística.” (2013,

p.72) Se fizermos uma intepretação apressada podemos concluir que

Niet em tudo concorda com seu predecessor, ao dizer que a criação

artística necessita do gênio criador somente objetividade e supressão

da vontade individual, no entanto, esta aceitação vem com ressalvas.

Para Niet o artista renuncia a si mesmo, quando tomado pelos espíritos

apolíneo e dionisíaco, acontece um estado de unicidade ao Um

primordial neste momento é capaz de conciliar na criação artística as

contradições permanentes e irredutíveis da Natureza.

(Quando Niet investiga o gênio pelo qual a arte se realiza ele o

identifica em dois princípios criadores, o apolíneo e o dionisíaco, duas


divindades artísticas dos gregos, toma-os como representantes de dois

mundos artísticos diferentes. O primeiro é responsável por toda arte

imagética (e portanto o domínio da aparência e do fenômeno), é o

deus de todas as faculdades criadoras da forma, a ele cabe o mundo

do sonho e da imaginação. O segundo, se compreende pelo deus do

vinho, da embriaguez, de consequente alegria e festejo. Quando

evanecido por esta potência criadora “o homem não é mais artista,

tornou-se obra de arte: a potência estética da natureza inteira, para a

máxima satisfação do Um primordial, se revela aqui sobre o

estreitamento da embriaguez.” (2013, p.51))

O paralelo da criação musical representada pelo gênio artístico

tem seu limite no ponto em que Niet vai identificar o poeta lírico como

uma ferramenta que traduz o sofrimento primordial, de maneira que as

imagens do lírico nada mais são do que ele mesmo e de algum modo

objetivações de si mesmo. Um “eu” que existe verdadeira e

eternamente no fundo de todas as coisas. “Imaginemos agora este

quando ele próprio percebe, entre essas imagens, não como gênio

evocador, mas como “sujeito” com toda a multidão de suas paixões e

de suas aspirações subjetivas, dirigidas para uma finalidade de que lhe

parece real [...] Na realidade, Arquíloco, o homem das paixões ardentes,

cheio de amor e de ódio é somente uma visão do gênio que já não é

mais Arquíloco, mas sim gênio da natureza e exprime simbolicamente

seu sofrimento primordial nessa figura alegórica do homem Arquíloco;

enquanto esse Arquíloco como criatura que quer e deseja

subjetivamente, não pode e não poderá jamais ser poeta.” A oposição

se mostra neste momento entre os filósofos, pois em Schop aquele que

canta é sujeito de puro conhecimento e desprovido totalmente de

vontade e o canto deste, objetivado na canção lírica, é o jogo


alternado e misturado desses dois estados (o querer pessoal e a

contemplação serena). É com estranhamento e ressalvas que Niet irá

abordar esta questão, pois ele vê aí uma descrição do canto lírico

como uma arte precária, que está num constante jogo para conciliar

querer e contemplação. É a guerra entre o subjetivo e o objetivo. Para

ele “como artista, o sujeito está redimido de sua vontade individual e

transformado, por assim dizer, num meio pelo qual e através do qual o

verdadeiro sujeito, o único verdadeiramente existente, triunfa e celebra

sua liberação na aparência.” Pois para Niet não devemos ter a

pretensão de achar que somos nós os verdadeiros criadores da arte,

pois na verdade já somos projeções artísticas e que nossa máxima

glória é dar significado às artes. Portanto, os artistas meramente

exercem essa função e desconhecem a verdadeira ligação com este Um

primordial. E ainda que este conheça este princípio primordial não

estaria identificado com este, de modo que, somente no ato da criação

artística que o gênio poderá saber algo da eterna essência da arte.

Assim, Niet discorda quando a separação da subjetividade e

objetividade pela qual Schop julga a arte, ao dizer que na criação

artística o sujeito é ao mesmo tempo sujeito e objeto, poeta, ator e

espectador.
BURNETT. Henry. A metafísica da música de Arthur Schopenhauer; Veritas, v. 57,
n. 2, maio/ago. 2012, p. 143-162

DEBATIN. Gabriel. Vontade de tragédia, tragédia da música: Controvérsias entre


o jovem Nietzsche e Schopenhauer. Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.40,
n.2, p. 124-145, maio/agosto, 2019

NIETSZCHE, Friederich. O Nascimento da Tragédia. Ed. Escala. São Paulo, 2013.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Ed. Unesp.


2015.

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