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Psicologia junguiana e arte poética:

uma revisão
Victor Palomo*

0 poeta goza deste privilégio incomparável:


pode, a seu capricho, ser o mesmo e ser outro
(Charles Baudelaire)

O capítulo VI do volume XV das obras com sua apreciação psicológica, a necessária avalia
pletas de Jung - transcrição de uma palestra pro ção clínica e biográfica do artista, as quais po
ferida na Sociedade de Língua e Literatura Ale dem resultar numa “superficialidade”(idem, par.
mãs de Zurique, em 1922 - é iniciado com uma 102).Segundo esse autor, um poeta pode ter sido
advertência:0“ser da arte”(os questionamentos influenciado mais pelas relações parentais ou,
estético-filosóficos acerca da natureza da arte) por exemplo,demonstrar por meio de suas obras
parece um objeto menos adequado às investi defesas repressivas. Se tais características es
gações psicológicas que 0 “processo de criação” tão presentes em artistas e na população como
artístico OuNG, 1987, par. 97). O texto “Relação da um todo, nada se elucidou sobre 0 processo cria
psicologia analítica com a obra de arte poética” tivo (idem, par. 100).
possui 35 parágrafos, sendo que os nove primei Dessa maneira, no que tangencia as especu
ros ocupam-se em assinalar 0 distanciamento lações psicológicas sobre a criatividade artísti
junguiano da obra freudiana, de forma a consi ca,Jung considera que a psicologia analítica deva
derar equivocado 0 entendimento da obra de arte se afastar de pressupostos médicos, uma vez
atrelado literalmente ao histórico pessoal e, es que “a obra de arte não é uma doença”(par. 107),
pecialmente, às relações do artista na primeira e sugere que os esforços sejam dirigidos às in
infância. Nesse caminho de raciocínio,jung pres dagações sobre “0 sentido da obra” (idem):
supõe que as obras de arte não autorizam, para
A verdadeira obra de arte tem inclusive um sen
tido especial no fato de poder se libertar das
* Médico psiquiatra, membro analista da SBPA e mestre em letras
estreitezas e dificuldades de tudo 0 que seja
pela Universidade de São Paulo.
E-mail: <victorpalomo@uol.com.br>, pessoal [de forma a configurar-se como] uma

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l G l I A\A
v.32/2, p.40-48

reorganização criativa justamente daquelas consciência de um fenômeno “como uma segun Palavras-chave:
condições das quais uma psicologia causalista da pessoa que tivesse entrado na esfera de um poesia,
querer estranho” (par. iio). Como se um “desco psicologia,
queria derivá-la.(idem, par. 107-8)
inconsciente
nhecido” pensamento em imagens, infenso à per
coletivo,
Deve-se enfatizar que essa revisão opta por cepção consciente automática, conferisse singu
biografia,
minimizar as imprecisões de um texto que, ini laridade à obra criada.* Vinicius de Moraes.
cialmente, combina comentários atinentes à obra Prosseguindo, Jung adverte que mesmo o es
de arte poética (em que 0 autor desconsidera as critor que julga controlar seu projeto poético se
sujeita a um equívoco: se o processo criativo é a Keywords:
diferenças entre as obras em prosa e em verso) e
poetry,
às obras de arte em geral, 0 que pode fragilizá- manifestação de essências vivas da alma humana,
Psychology,
-lo. Todavia, observa-se que jung fortalece seu eixo os assim chamados complexos autônomos, estar collective
argumentativo a partir do parágrafo 109, ao mi criando em absoluta liberdade seria uma ilusão unconscious,
nimizar observações sobre a “poesia”(entendida da consciência: “ele [o poeta] acredita estar nadan biography,
como arte em geral) e orientar-se, explicitamen do, mas na realidade está sendo levado por uma Vinicius de Moraes.
te, para a apreensão da arte literária, momento corrente invisível”(idem, par. 113).já os poetas que
em que distingue duas modalidades de fenôme vivem uma invasão de material inconsciente não
nos psicocriativos. Um primeiro caso refere-se às teriam a possibilidade desses últimos, os quais
obras que “nascem totalmente da intenção e de se distinguem por manter parte da consciência
terminação do autor, visando a este ou àquele organizada diante do imperativo de imagens.
resultado específico”, de forma que 0 poeta afir
ma um projeto conscientemente e escolhe suas
expressões semióticas mais adequadas, às quais
submete seu material artístico. Nessa modulação,
parece integrado e identificado com a obra e apa
renta uma onisciência sobre seu impacto e recep
ção:“Nesta tarefa,0 poeta é, porassim dizer, idên
tico ao processo criativo [...]” (idem, par. 109).
Em procedimento oposto, as obras se “im
põem” ao autor, que experimenta um estranha
mento diante do que é mobilizado pela função
transcendente: “[...] sua mão é de certo modo as
sumida, sua pena escreve coisas que sua própria
mente vê com espanto. A obra traz em si a sua
própria forma” (idem, par. 110). Nesses casos,
jung observa que a consciência é “inundada” por
pensamentos e imagens, que nada mais são que
a manifestação do si-mesmo do artista. Este não
se identifica com a realização criadora, mas tem
lembranças e idéias imantadas por uma motiva participation mystique fomente uma reimersão em
ção afetiva: os referidos complexos. Tais formula realidades coletivas, arquetípicas, as quais reve
ções, que compreendem a obra de arte como sím lam, para além das alegrias e dores de um cria
bolo (isto é, na sua polissemia), caminham para dor, a vida de toda a humanidade (1987, par. 162).
ratificara advertência inicial junguiana de que a in É relevante observarque, nas palavras iniciais des
vestigação psicológica sobre o processo artístico se pronunciamento, jung alude à dificuldade de
deva se guiar pelo sentido da obra que o impulsio apreensão do tema do processo de criação artís
na, ou seja, quais seriam os motivos mitológicos tica ao reconhecera impossibilidade de abrangê-
que subsistem e fomentam a tonalidade afetiva e -lo como um todo, aconselhando 0 pesquisador
a criatividade do complexo - em outras palavras, a contentar-se com a parcialidade de sua expres
quais disposições arquetípicas inconscientes se são:“O fenômeno anímico é de fato tão ricamente
anunciam às vivências pessoais do poeta e resul matizado, multiforme e ambíguo que se torna im
tam na obra de arte. “O processo criativo consiste possível captá-lo de modo completo em um úni
numa ativação inconsciente do arquétipo e numa co reflexo especular” (idem, par. 133).
elaboração e formalização na obra acabada”, sin Tal ponderação se coaduna com os esforços
tetiza jung (par. 130).== da teoria literária em clarificar um tema que, pela
Erich Neumann faz alguns acréscimos a essa sua multiplicidade e ramificações teóricas (divi
proposição junguiana clássica que se mostram de-se com a filosofia, a estética, a história), mos
relevantes. No texto Art and time (Neumann, 1959, tra dificuldades de sistematização. Em princípio,
p. 81-134), 0 autor enfatiza 0 caráter espontâneo faz-se necessário lembrar que a palavra poesia
do inconsciente coletivo que adquire visibilida tem raiz na expressão grega poiesis e aglutina os
de na obra de arte(idem, p.82)e arrisca uma com sentidos de fazer ou criar (Moisés, 2004, p. 358).
preensão para as transformações da arte ao longo E sabe-se desde os primeiros filósofos- dos quais
do tempo ao descrever dois sistemas que intera se menciona Aristóteles, pela envergadura do seu
gem simultaneamente. O primeiro, a consciência texto A poética (Aristóteles, 2005) e porque uma
coletiva (ou 0 cânone cultural), organiza-se como revisão da teoria estética foge aos propósitos
um conjunto de imagens representativo das re deste artigo - que a questão da mímese^ intriga
ferências de uma coletividade. Mas lado a lado va os que queriam diferenciar textos artísticos de
a esse substrato, 0 inconsciente coletivo previne expressões escritas com outra finalidade. O pen
a estagnação e a morte da cultura por meio da sador grego do século IV a.C. lembrava que a imi
erupção de símbolos que promovem desenvolvi tação é natural ao homem desde a infância, e isso
mentos, revoluções ou renascimentos em relação lhe faz diferente de outras espécies por adquirir
aos padrões artísticos previamente estabelecidos conhecimento, inicialmente utilizando procedi
(idem, p. 89). Tal função compensatória dar-se-ia mentos miméticos (idem, p. 21), 0 que lhe confe
ela força que 0 fenômeno denominado Zeitgeist re pertinência a uma ordem simbólica distante do
(0 espírito da época) fomentaria às consciências estado de natureza (ou de inconsciência).
criativas (idem, p. 99). Nesse sentido, a arte literária, que num pri
Outro texto do mesmo volume XV das obras meiro momento denominava-se genericamente
completas de Jung, “Psicologia e poesia” (pa “poesia”, resulta da capacidade de reprodução da
lestra proferida em 1930), colabora na mesma realidade do mundo, ou seja, a arte poética pode
linha propositiva, ao reiterar a necessidade de ser compreendida como recriação: “A epopeia,0
diferenciação entre a psicologia da obra de arte poema trágico, bem como a comédia,0 ditirambo,
e uma anamnese exaustiva do poeta, pois “cria a arte do flauteiro e do citaredo, todas vêm a ser,
ção” resultaria da possibilidade de ativação da de modo geral, imitações”(idem, p.19). Além des
função transcendente, de forma que 0 estado de sa asseveração, na parte IV de A poética, 0 autor

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]1'NGÜIANA

faz também uma observação que se aproxima de organiza num conjunto textual que o faz artísti
um raciocínio de natureza “arquetípica”: como a co, ou seja,“uma construção de objetos autôno
imitação, a melodia e 0 ritmo são naturais ao ho mos como estrutura e significado” (Cândido, 2004,
mem; de suas repetições e improvisações nas p. 178) que se descola do factual e se articula
ceu a poesia (idem, p. 22). como fantasia, de forma a tocar pontos incons
Aristóteles faz, ainda, na seção IX de A poéti cientes (ou até então improváveis) da psique. Tal
ca, outra observação que pode colaborar positi consiste no que 0 crítico Antonio Cândido deno
vamente com 0 que jung discutia acerca da ate minou 0 poder humanizador gerado pela força da
nuação do valor dos dados biográficos no enten palavra organizada (idem, p. 179).
dimento da arte poética. Para 0 referido filósofo, Na literatura junguiana, os textos que têm a
a obra do poeta “não consiste em contar 0 que intenção de compreenderas possíveis convergên
aconteceu, mas sim coisas quais podiam aconte cias entre literatura e psicologia são minoritários.
cer, possíveis do ponto de vista da verossimilhan Os textos anteriormente mencionados atingem
ça ou da necessidade”(idem, p. 28). E acrescen momentos de força ao destacar 0 processo criati
ta, no que tange à poesia épica, “Ainda quando vo poético como resultante de imagens advindas
porventura seu tema sejam fatos reais, nem por da motivação pessoal e do acervo coletivo incons
isso [0 poeta] é menos criador” (ibidem), pois é ciente, as quais se complexificam e estruturam
poeta por imitar e imita ações. como obra de arte escrita, por meio do talento do
Ora, a literatura é um campo de expressões dos poeta. As fragilidades desses ensaios residem
conteúdos da imaginação por meio da escrita, que numa imprecisão entre quais são os tipos de poe
se utiliza de recursos estilísticos como, por exem sia a que Jung se refere (provavelmente dá priori
plo, as metáforas, que nada mais são que palavras dade aos registros líricos, e não aos épicos) e por
polivalentes que tentam organizar a necessidade não considerar a força ou as fragilidades de sua
humana de fabular (Cândido, 2004, p. 176). Assim, hipótese nos diferentes períodos literários. Por
ao organizar-se em peças predominantemente exemplo, sabe-se que na poesia lírica do período
ficcionais, poéticas ou dramáticas, a arte literária romântico 0 sujeito poético ajustava-se mais inti
resulta do devaneio de um criador que quer comu mamente às vivências pessoais do poeta empí
nicar uma história (poesia épica, romance, novela rico, no mais das vezes com motivações evasi
ou conto), expressar conteúdos subjetivos valen vas. E tal posição “romântica” expressava uma
do-se do poder encantatório da palavra (poesia lí mundividência desencantada pela perda do pa
rica) ou deixar que personagens falem sem a pre trocínio advinda do mecenato e a necessidade de
sença de um narrador que teça a trama (arte dra enfrentamento do mercado em um contexto bur
mática ou teatral) (Rosenfeld, 2008, p. 15-26). guês em franco fortalecimento (disposições cole
Se assim se procede, a argumentação de jung, tivas). Tal estética romântica delineia a consciência
embora passível de críticas por não esmiuçar cer do poeta moderno, 0 qual vivência a pluralidade
tas especificidades dos gêneros literários, acerta de um sujeito que não mais pode ser definido
em amplificar para realidades coletivas 0 material como uma unidade, cujas expressões das emo
exposto pelo poeta. Essa formulação permite in ções e disposições íntimas já desvelam questões
ferir que em poesia a voz não é necessariamente identitárias e de escritura que caminham como
do sujeito empírico do poeta, mas de um sujeito inquietação e dissolução até 0 período contem
poético,instância erigida como conjunção de suas porâneo (Cara, 1989). jung não detalha tais nuan-
experiências (que vão além de fatos) e imagina ces, as quais poderiam enriquecer enormemente
ção. Evidentemente, muitos textos poéticos tra sua acertada percepção da importância das for
zem referências biográficas, em consideráveis ças coletivas para as “escolhas” poéticas.
momentos, explícitas.'' Todavia, esse material se Neste esforço revisional, cabe acrescentar

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uma contribuição hillmaniana ao tema. Ao inten Porque vieram as grandes carroças entornando
sificaras investigações da psicologia arquetípica cal no barro molhado?
a partir da asseveração junguiana de que ima
gem é psique Gung, 1987, par. 75), Hillman (1995, Os olhos de Suzana eram doces mas Eli
p. 27) enfatiza as raízes mitopoéticas da psique, tinha seios bonitos
de forma a considerar que a alma seja primaria Eu sofria junto de Suzana - ela era a
mente constituída por imagens. Tal proposição contemplação das tardes longas
implicaria 0 problema de encontrar um lugar para Eli era 0 beijo ardente sobre a areia úmida.
a palavra nesse conjunto teórico. Diante de tal Eu me admirava horas e horas no espelho.
provocação, 0 referido autor propõe resgatar 0
aspecto anjo da palavra, ou seja, as palavras, as Um dia mandei:“Suzana,esquece-me, não
sim como os anjos, teriam um poder invisível, sou digno de ti - sempre teu...”
para além do controle consciente do sujeito. Ao Depois, eu e Eli fomos andando...- ela
apontar que as palavras transcendem uma es tremia no meu braço
colha nominalista e permitem “invocar na alma Eu tremia no braço dela, os seios dela tremiam
uma ressonância universal”(Hillman, 2010, p. 55), A noite tremia nos ei-ou dos pescadores...
Hillman alude à natureza complexa das palavras, Meus amigos se chamavam Mário e Quincas,
em franca convergência com a posição junguiana eram humildes, não sabiam
clássica sobre 0 tema. Com eles aprendi a rachar lenha e ir buscar
Como forma de ilustrara pertinente discussão conchas sonoras no mar fundo
junguiana acerca dos aspectos factuais (a histó Comigo eles aprenderam a conquistar as
ria biográfica objetiva) e das disposições coleti jovens praianas tímidas e risonhas.
vas inconscientes no processo criativo poético, Eu mostrava meus sonetos aos meus amigos -
propõe-se a análise do texto “Ilha do Governador”, eles mostravam os grandes olhos abertos
de autoria do poeta Vinicius de Moraes (1913- E gratos me traziam mangas maduras roubadas
1980). O poema mescla referências biográficas nos caminhos.
com material advindo da imaginação do poeta, de
forma a recriar(ou mimetizar)0 passado pela ação Um dia eu li Alexandre Dumas e esqueci os
de material complexo que se anuncia (ou se tor meus amigos.
na palavra escrita) pelo fenômeno da recordação. Depois recebi um saco de mangas
Toda a afeição da ausência...
Ilha do Governador
Como não lembrar essas noites cheias
Esse ruído dentro do mar invisível são de mar batendo?
barcos passando Como não lembrar Suzana e Eli?
Esse ei-ou que ficou nos meus ouvidos Como esquecer os amigos pobres?
são os pescadores esquecidos Eles são essa memória que é sempre sofrimento
Eles vêm remando sob 0 peso de grandes Vem da noite inquieta que agora me cobre.
mágoas São 0 olhar de Clara e 0 beijo de Carmen
Vêm de longe e murmurando desaparecem São os novos amigos, os que roubaram luz
no escuro quieto. eme trouxeram.
De onde chega essa voz que canta a Como esquecer isso que foi a primeira angústia
juventude calma? Se 0 murmúrio do mar está sempre nos
De onde sai esse som de piano antigo meus ouvidos
sonhando a Berceusel
Se o barco que eu não via é a vida passando

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JÜNGUIANA

Se 0 ei-ou dos pescadores é 0 gemido de de forma a acessar um núcleo psíquico que é uma
angústia de todas as noites? antecedência de ser: perspectiva anterior ao ser de
cada um. Para esse pensador, para evocara infân
No poema integrante do segundo livro publica cia,cumpre fazê-la pormeio de imagens,como uma
do pelo poeta, intitulado Forma e exegese(Moraes, criança que conhece a ventura de sonhar, a qual
1986, p. 96-97), a ilha é espaço projetivo do liris mais tarde será a ventura dos poetas(idem, p. 94)
mo de um sujeito poético que, de forma oscilante - ao que acrescenta Octavio Paz (2012, p. 31): “O
mente deleitosa e melancólica, justapõe imagens artista é criador de imagens: poeta”. Ou seja, a pa
do mar, dos barcos, dos amores e dos amigos. A lavra poética consiste na linguagem em sua plu
saudade se desdobra em um fluxo de consciên ralidade de significados, garantida pela primazia
cia no qual a memória é 0 fio condutor dos ver dada à imagem:“A imagem admite e exalta todos
sos - consonantes com 0 que 0 poeta Ezra Pound os valores das palavras, sem excluir os significa
denominou “fanopeia”, uma vez que a imaginação dos primários e secundários” (Paz, 2012, p. 113).
visual predomina sobre os outros recursos tex Vinicius parece seguir com acuidade tais pre
tuais, sendo uma das formas por meio das quais ceitos. A imaginação do sujeito poético que em
carrega “a linguagem de significado até 0 grau má barcou para a “ilha-Pasárgada” afirma, por meio
ximo possível” (Pound, 2006, p. 63). da onomatopéia do barulho dos remos dos pes
O crítico Geraldo Carneiro (1984, p. 17) asso cadores, que 0 “ei-ou” traz as saudades do meni
cia dados biográficos de Vinicius de Moraes(que no antigo no timbre de uma voz que “canta a ju
costumava passar férias na Ilha do Governador, ventude calma”. O barulho do “mar invisível [que]
na cidade do Rio de Janeiro,onde convalescia sua são barcos passando” é metáfora para a matéria
mãe) à imaginação da subjetividade poética ela psíquica desprovida de consciência, a qual ganha
borada pelo poeta, de forma que os versos evo notoriedade como imagens sonoras fugazes que
quem os registros de uma infância reinventada. deslizam na memória (0 “ei-ou”) ou imagens vi
Tal articulação ecoa 0 filósofo francês Gaston suais (“barcos passando”) - alusões às proprie
Bachelard (2009, p. 99), que sugere que “para ir dades fragmentárias do processo reminiscente que
aos arquivos da memória importa encontrar, para comove, saudosamente, a subjetividade poética.
além dos fatos, valores [...] Para reviver os valores Prosseguindo, 0 poema possui justaposições
do passado, é preciso sonhar, aceitar essa gran de planos, condensações e deslocamentos,0 que
de dilatação psíquica que é 0 devaneio [...]”. As permite uma leitura que se aproxima do contexto
sim, as cenas idílicas enumeradas no poema se onírico. Roman jakobson (1995, p. 55) associa a
assemelhariam, pelo potencial evocativo/imagi metáfora aos processos de similaridade e a meto-
nativo, ao jardim das delícias ou ao paraíso do nímia aos de contiguidade, partindo dos pressu
qual toda a humanidade foi expulsa: “[...] a Ilha postos freudianos sugeridos em A interpretação
do Governador era a própria Pasárgada”, sugere dos sonhos (Freud, 1969), dos quais se desdobra
0 crítico (idem, p. 17)- a metáfora (semelhança) como condensação e a
Percebe-se, por consequência, que os dados metonímia (contiguidade) como deslocamento
biográficos pouco importam à elucidação do poe- Oakobson,1995, p. 61). Os ruídos(“ei-ou”), que são
ma, em consonância com 0 que propunha jung. “pescadores esquecidos”, condensam (ou são
Aqui prevalecem as expressões de uma infância metáfora) da saudade daquele lugar idílico, ma
arquetípica, que podemos supor que se mostre à téria psíquica que teima em voltar, escrevendo-
consciência do poeta de forma complexa. Nesta -se linguagem poética ora com timbre saturnino
linha arquetípica de raciocínio, Bachelard (2009, (“sob 0 peso de grandes mágoas”) ora como can
p. 103) acrescenta que, nos devaneios que tema- ção de ninar, ao som do “piano antigo sonhando
tizam a infância, a imaginação une-se à memória a Berceuse”.^

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Mas, ao plano das lembranças infantis, jun- inaprendida,além e acima da consciência”(Ferreira,
tam-se as saudades dos apelos eróticos - “Su- 1980, p. 297). Todavia, na mesma entrevista, em
zana” e “Eli” são deleitosamente lembradas em ponderação que se opõe à primazia do incons
sua exuberância feminina. O desejo erótico aten ciente como matriz do fazer poético, sugerida em
de aos processos metonímicos e sinestésicos, outras declarações,0 escritor ratifica que a poesia
como se a imaginação saudosa assim preferisse também “pode nascer no fogo da consciência”(0
elogiar0 objeto amado:“Os olhos de Suzana eram que se alinha ao que Jung postula no parágrafo
doces mas Eli tinha seios bonitos”, “Eli era 0 bei 109, citado anteriormente).
jo ardente sobre a areia úmida”. Ou,ainda,ganha De volta ao poema, a dicção coloquial e os ele
discreta dicção surrealista, compatível com 0 en- mentos lúdicos do cotidiano começam a tomar
cadeamento onírico do próprio poema: “Eu tre forma nos versos de “Ilha do Governador”, afir
mia no braço dela, os seios dela tremiam/ A noite mando um sujeito poético que descreve os encon
tremia nos ei-ou dos pescadores...”. Novamente tros da juventude com leveza:“Eu mostrava meus
cumpre assinalar que, mesmo que essas perso sonetos aos meus amigos - eles mostravam os
nagens tenham feito parte da história pessoal do grandes olhos abertos/ E gratos me traziam man
poeta, elas agora são reimaginadas e se inserem gas maduras roubadas nos caminhos Ou 0
numa corrente lírica que as inscreve no campo da poder encantatório do texto literário: “Um dia
imagem poética, e não biográfica:“A poesia é um li Alexandre Dumas e esqueci os meus amigos”.
dos destinos da palavra [...] Dir-se-ia que a ima O diálogo com a tradição permanece ainda vivo,
gem poética, em sua novidade, abre um porvir da desvelando uma função da saudade que pode
linguagem” (Bachelard, 2009, p. 3). ser entendida como 0 amorà literatura ou a possi
No que tange ao diálogo com os poetas con bilidade de fazer 0 homem entregar-se a um pai-
temporâneos, 0 poema em verso livre ganha, na deuma poético por ele eleito, aprendendo com
terceira estrofe, 0 tom bandeiriano de evocação seus ancestrais a encontrar seu lugar no tempo,
reminiscente das brincadeiras infantis, presente em formulação que pode ser lida à luz das fragmen
poemas como “Vou-me embora pra Pasárgada” tações puer/senexda libido (Hillman,1999). O poe
(Bandeira, 1993). Por sinal, 0 poeta Manuel Ban ta T. S. Eliot ,em convergência com a proposição
deira colabora oportunamente com a discussão hillmaniana, sugere que
deste artigo, se consideradas duas entrevistas
por ele concedidas. Em uma entrevista concedi [...] se nos aproximarmos de um poeta sem esse
da ao crítico Homero Senna (1980, p.71-72), Ban preconceito, poderemos amiúde descobrir que
deira clarifica os pressupostos da sua escrita não apenas 0 melhor, mas também as passa
poética: “Acontecem-me os poemas inesperada gens mais individuais de sua obra podem ser
mente e, às vezes,fulminantemente. De tal modo aquelas em que os poetas mortos,seus ances
que a minha impressão a posteriori é que não trais, revelam mais vigorosamente sua imortali
fiz 0 poema: ele é que se faz em mim”. Por meio dade [...]. (Eliot, 1989, p. 38)
dessa declaração (compatível com o que postu
lava Jung [par. 110] a respeito da invasão de pen E 0 teatro do tempo insinua-se ao sujeito, con
samentos e imagens),0 poeta dizia que não se faz duzindo-o à interioridade, de forma que a cons
poesia quando se quer,“mas quando ela, poesia, ciência lírica se distende ao passado: “[...] Como
quer” (Bandeira, 1957, p. 115-116). Mais tarde, em não lembrar essas noites cheias de mar baten
uma entrevista ao Jornal do Brasil, conta que nu do? [...]”. E projeta-se também ao futuro, pro
ma conferência lhe pediram uma definição de movendo a lembrança melancólica com matizes in
poesia e, recorrendo a Schiller, ele atacou:“Poe quietos: “[...] Eles são essa memória que é sempre
sia é a força divina que atua de maneira divina e sofrimento/ Vêm da noite inquieta que agora me

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U S G ü 1A N A

cobre As reminiscências apresentam-se como confissão, e não arte (inclusive deve-se assinalar
0 murmúrio do mar que traz ondas sonoras de um que fabulações parecem indissociáveis a todo es
tempo da infância que não mais voltará, como um forço de anamnese). A lírica possui temas recor
complexo-saudade que faz 0 tempo presente re rentes (ou “arquitemas”), que constituem assun
pleto de imagens distantes e desejadas. Tal vora- to literário básico (Achcar, 1994, p. 28), entre os
gem do tempo expõe sua condição inexorável, quais figura 0 da infância arquetípica. Jung sugere
como os barcos no “mar invisível”: “[...] Se 0 barco que 0 inconsciente coletivo atualiza esses “temas
que eu não via é a vida passando [...]”. Aliás, as típicos” que 0 escritor eterniza. Em convergência,
imagens do mar (“mar invisível”, “mar fundo” e vale a transcrição de um aforismo bachelardiano
“mar batendo”) gravitam em torno de um campo sobre a escrita poética e a criatividade:
semântico que consiste nas expressões desse
“complexo-saudade” (0 sentimento-ideia que é Deixemos, então, à psicanálise 0 cuidado de
decantação de um pretérito imperfeito). Essa sau curar as infâncias mal-tratadas [...] A poético-
dade presentifica as imagens mnêmicas de um -análise deve devolver-nos todos os privilégios
sujeito poético melancólico, angustiado pela vi da imaginação. A memória ê um campo de ruí
sita do “barulho do mar” e do “ei-ou dos pesca nas psicológicas, um amontoado de recorda
dores”,imagens arquetípicas do lugarde origem. ções. Toda infância está por ser reimaginada.
Como sugere 0 francês Roland Barthes (1991, (Bachelard, 2009, p.94)
p. 141), na presentificação “as cenas tomam po
sição de lembrança, ávidas de representar um pa Recebido em: 10/3/2014 Revisão: 8/10/2014
pel”. Em “Ilha do Governador”, tal “papel” permi
te ao sujeito poético aspirar pela saudade de um
tempo eterno,como se a consciência humana pu 'O tema do estranhamento, que nesse sentido dialoga com a
proposição junguiana, é desenvolvido pelo formalista russo V.
desse abolir 0 tempo cronológico e a escrita poé Chklovski no artigo "Arte como processo", o qual começa desen
tica consistisse na possibilidade de afirmar0tem volvendo a proposição de Potebnia de que a "a arte é o pensa
mento em imagens"(Chklovski, V. in Todorov,I, 1999, p. 75-95).
po do sonho que evoca aquele lugar de origem.
^ O poeta e ensaísta Octavio Paz afirma, em O arco e a lira (2012, p,
Nesse caminho argumentativo, 0 pensador fran 22), de forma convergente com Jung:"Quando - passivo ou ativo,
cês Gaston Bachelard (2009, p. 105) sugere que acordado ou sonâmbulo - o poeta é o fio condutor e transforma
dor da corrente poética, estamos na presença de uma coisa radi-
um dos convites que os poetas fazem ao homem calmente diferente: uma obra. A poesia se polariza, congrega e
é imaginar a infância perdida, de forma que, ao isola em um produto humano [...) Só no poema a poesia se isola e
revela plenamente",
contemplar as imagens do mundo, estarão re
’ O presente artigo não pretende incluir a acalorada discussão do
cordando de si mesmos. Como se 0 desgaste campo literário a respeito das funções, transformações e sentidos
da mimese ou, ainda, se a lírica é mimética ou autotélica (um
do tempo (0 “tique-taque” do tempo cronológi artefato ou jogo de palavras que nada evoca senão ela mesma). A
co) fosse vencido pela escrita sobre a origem, atenção, como se pode perceber, incide sobre os processos in
conscientes que Jung descreveu em seus artigos.
a qual se pretende uma “audácia da memória”:
“E sonhar sobre uma origem não é ultrapassá- “ Para tal proposição, tome-se como exemplo o poema "Confidên
cia do itabirano"(1940), de Carlos Drummond de Andrade(2013,
-la?”, questiona Bachelard (2009, p. 104). p. 10)ou "Evocação do Recife"(1930), de Manuel Bandeira (1983,
p. 133-6), ou grande parte da produção de poetas do periodo
Assim, pode-se inferir que a matéria biográ romântico.
fica, quando organizada em imagens poéticas, ^ A Berceuse é uma expressão francesa para canção de ninar
consiste numa recriação. Caso contrário, seria (www.google.com.br/berceuse, acesso em 20/02/2014).

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Sinopse Abstract
O presente artigo objetiva revisar os tex This article aims to review some Junguian
tos de C. G. Jung sobre as articulações entre texts on the connections between psycho-
poesia e psicologia, de forma a enfatizar sua logy and poetry in order to emphasize that
hipótese do entendimento do processo cria the Creative process Is less an expression
tivo menos como expressão da biografia do ofthe artist blography than ofissues ofthe
artista e mais de demandas coletivas incons collective unconsclous. Golng forward, the
cientes. Como amplificação, procede-se uma author analyses the poem “Ilha do Gover
análise do texto “ilha do Governador”, de nador”, by the Brazilian poet Vinícius de
autoria do poeta Vinicius de Moraes, desta Moraes, observing the images ofan arche-
cando as imagens de uma infância arquetí- typal childhood.
pica presentes nesse poema lírico.

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