Você está na página 1de 10

156

ANAIS
III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE
Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005

ESTÉTICA, FILOSOFIA E HISTÓRIA DA ARTE

A ARTE NO COTIDIANO: CONSCIÊNCIA E AUTOCONSCIÊNCIA


Maria Inês Hamann Peixoto*

RESUMO: Este texto versa sobre a significância da arte no desenvolvimento da consciência e


da autoconsciência, ou seja, no processo de humanização do homem – tal como ocorre
informalmente, na vida cotidiana. Pela ótica do materialismo dialético, estabelece-se uma
concepção de arte e de sua função social, bem como de uma visão filosófica, não alienada, da
cotidianidade. O artigo visa, de igual modo, enfatizar a importância de humanizar, pela arte, o
cotidiano dos indivíduos mediante o estabelecimento de relações de proximidade entre a arte e
o grande público.

A sociedade burguesa, ao privilegiar filosofias de cunho idealista e metafísico, tais como


as de Kant e de Hegel, propicia condições para que a arte seja compreendida tão somente
como criação de indivíduos excepcionalmente dotados, portadores de uma vocação, que, por
inspiração quer seja de ordem humana, religiosa ou mágica, em suas criações expressam
emoções pessoais criando obras originais e únicas.
Contrapondo-se a tal concepção, para o materialismo histórico e dialético – aqui
representado por Marx e alguns autores marxistas –, essencialmente antropocêntrico, a arte é
um produto do trabalho espiritual-material humano, uma forma de conhecer, condensar e

*
Doutora em Educação pela UNICAMP, Especialista em História da Arte - Artes Plásticas, pela EMBAP, e
professora do Mestrado em Educação da UFPR. É autora de Arte e grande público: a distância a ser extinta.
Campinas: Autores Associados, 200. Realizou exposições e performances em Curitiba e Antonina (PR), Joinville e
Blumenau (SC), Campinas (SP) e São Luís (MA). Artista plástica e performer radicada em Curitiba (PR). Como
artista plástica e performer, assina-se M. Inês Hamann.
157

expressar aspectos de determinada visão de mundo, a partir de uma realidade histórica e


socialmente datada. Desse modo, a arte, como uma forma ideológica, compõe a superestrutura
social; Marx foi o primeiro a assim identificá-la.1 A originalidade e a unicidade da obra, nesse
contexto, adquirem conotação diferente da ‘obra única’, fruto da genialidade: “é original o artista
que consegue captar [...] o que surge de substancialmente novo em sua época, o artista que é
capaz de elaborar uma forma organicamente adequada ao novo conteúdo, por ele gerada
como forma nova.” Cabe, então, à arte a representação “do desenvolvimento da humanidade
[...], a tarefa de descobrir precisamente na concretude do imediato conteúdo nacional e
classista a novidade que merece se tornar – e que ainda se tornará – propriedade duradoura
da humanidade”.2 Para Lukács, “a arte consiste sempre [...] em reter o significativo e o
essencial e em eliminar o acessório e o inessencial [sic]”.3
Como todos os demais produtos da criação humana, a arte é imanente ao social: nasce
na e para a sociedade. Daí que o extra-artístico não existe como um elemento estranho que a
afeta: “o estético, tal como o jurídico ou o cognitivo, é apenas uma variedade do social”. Como
forma de comunicação estética fixada numa obra, ela é “inteiramente única e irredutível a
outros tipos de comunicação ideológica. [...] Esta forma única de comunicação não existe
isoladamente; ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base econômica
comum”.4
Não há como negar, entretanto, que toda obra de arte manifesta um indivíduo-autor
com suas formas de pensar e sentir: “O autor [...] é a atividade organizada e oriunda do interior,
do [...] homem todo dos pés à cabeça: ele precisa de si por inteiro, respirando (o ritmo),
movimentando-se, sendo, ouvindo, lembrando-se, amando e compreendendo.5 Para
Goldmann, essas formas de pensar, sentir e ser não são ”entidades independentes em relação
às ações e aos comportamentos dos homens. Só existem e só podem ser compreendidas em
suas relações interindividuais que lhes conferem todo conteúdo e toda riqueza. [no original,
grifado]”.6 Enquanto gestada, a obra de arte é a materialização de fatos psíquicos de um
sujeito. “É o subjetivo objetivado, mas sem que o produto artístico seja mera transposição do

1
“A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao
considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material [...] das condições econômicas
de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas
pelas quais os homens tomam consciência desse conflito”. (MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política.
2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p. 25)
2
LUCÁKS, Georg. Introdução a uma estética marxista: sobre a categoria da particularidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968. p. 207 e 287.
3
LUKÁCS. Apud: KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de algumas tendências
da estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p. 153.
4
BAKHTIN, Mikhail. Discurso na vida e discurso na arte – sobre poética sociológica. Trad.: Carlos A. Faraco e
Cristóvão Tezza. Curitiba: texto para uso didático. 16 f. Versão inglesa de I. R. Titunik, 1976. Original russo, p. 2 e 4.
5
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). 4. ed. São Paulo: UNESP, 1998, p.
68.
6
GOLDMANN, Lucien. Ciências humanas e filosofia: que é a sociologia? 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1993. p. 106.
158

subjetivo nem possa ser reduzido a ele”,7 pois o objeto não é simples expressão de uma
subjetividade. Visões de mundo “são fatos sociais”; trata-se de “expressões individuais e
sociais ao mesmo tempo, sendo seu conteúdo determinado pelo máximo de consciência
possível8 do grupo, em geral da classe social”.9
Nas manifestações artísticas individuais, o materialismo histórico e dialético não se
detém na análise da forma da obra, mas entende que esta seja uma totalidade forma-
conteúdo,10 fruto de uma práxis unitária de criação-projeto-produção, que expressa a
consciência coletiva.11 Um produto humano pode tornar-se obra de arte “na medida em que a
estrutura que exprime não é particular a seu autor mas comum aos diferentes membros
constituintes do grupo social”.12
Pode-se afirmar que toda grande obra – em especial de filósofos, escritores ou artistas
– expressa, de modo relativamente coerente e adequado, uma visão de mundo, não apenas
um momento do presente ou do passado: pode também expressar projeções de futuro, com
base nas percepções e interpretações possibilitadas pelo movimento da história humana. A
habilidade de captar os traços essenciais do seu tempo e desvendar novas realidades permite
à arte trazer, em seu bojo, o novo, e, no ato de apontá-lo, a obra artística se configura como
coadjuvante para a sua construção.
Dentro da concepção marxista de arte, portanto, explicitá-la como comprometida, não
neutra, é quase uma obviedade, pois que os princípios estéticos que lhe subjazem têm em
comum a concepção de homem como construtor de si enquanto construtor da história e da
sociedade, pelo trabalho, ou seja, concebe-se a realidade como histórica e social, sendo sua
construção o próprio movimento que o homem imprime à realidade. Daí que, ao se interpretar a
arte como produto do trabalho humano, como criação humana – que desempenha, por
conseguinte, uma função social –, torna-se certeza manifesta que o objeto de arte esteja
comprometido com a realidade histórica e que contenha ou transpareça posições de seu
criador frente a ela. Contudo, o nível de consciência do artista sobre suas posições não tem

7
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da praxis. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 255.
8
Essa categoria Goldmann entende como “as tendências virtuais que se estão desenvolvendo e que estão
orientadas para a sua ultrapassagem”, a partir da concepção de que “o possível é a categoria dialética fundamental
para a compreensão da história humana”. (GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna. São
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. p. 40)
9
GOLDMANN, 1993. Op. cit., p. 107-108.
10
Reforça-se aí a idéia de que a forma não preexiste idealmente como um modelo a ser imposto à matéria. Na
verdade, ela é constituída simultaneamente como forma de um conteúdo social-psíquico e como forma de uma
matéria, na totalidade indissolúvel do processo de criação.
11
É importante que se ressalte não se tratar de uma consciência supra-individual, uma entidade metafísica, como
por exemplo, o Espírito Absoluto, de Hegel. Para o materialismo dialético, “consciência coletiva, consciência de
classe por exemplo, consiste apenas no conjunto de consciências individuais e de suas tendências tais que resultam
de mútua influência dos homens uns nos outros e de ações sobre a natureza”. (GOLDMANN, 1993. Op. cit., p. 105-
106) Lukács afirma que a consciência de classe “não é [...] nem a soma nem a média do que pensam, sentem etc.,
os indivíduos que formam a classe tomados um por um.” (LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe:
estudos da dialéctica marxista. 2. ed. Rio de Janeiro: Elfos; Porto: Escorpião, 1989. p. 64-65)
12
GOLDMANN, 1993. Op. cit., p. 107.
159

grande importância; isso é apenas uma “questão biográfica, não estética”, segundo Lukács.13 O
que realmente conta é o posicionamento concretizado-condensado na obra, aquilo que ela diz
ou permite interpretar.
Como produto essencialmente humano, a arte não é, nem poderia vir a ser, uma
produção automática; é, sim, um produto humano completo e complexo, para o qual são
solicitadas as qualidades mais refinadas do homem enquanto tal: em primeiro lugar, a
elaboração de uma certa compreensão do mundo e a abstração, para tomá-la como conteúdo
da obra; em segundo lugar, a capacidade de criar, que envolve três ações básicas: projetar na
mente o produto final, buscar os meios mais verdadeiros e significativos para a sua elaboração,
concretizar o planejado num processo altamente dinâmico que, em seu decorrer (ou seja, no
movimento da própria obra em seu vir-a-ser), não apenas pode determinar transformações no
plano original do trabalho, como também nas maneiras de ser, pensar e criar do artista no
diálogo com sua criação. Em síntese, trata-se da dialética da práxis humana em toda a sua
completude, da qual pode emergir um novo artista, um novo produto ou uma nova realidade, de
ordem espiritual-material.
Nesse quadro, a função social precípua da arte é a de “fazer-se o eco e o reflexo da
experiência comum, dos grandes eventos e idéias do seu povo, da sua classe e do seu
tempo”.14 A medida de grandeza do artista e de sua obra pode ser avaliada pela sua especial
habilidade de captar os traços essenciais da sua contemporaneidade e desvendar novas
realidades.15 Será por meio do exercício da arte como consciência perceptiva – pari passu à
construção da consciência filosófica e científica do real – que o homem poderá apreender a
realidade para transformá-la, humanizá-la e, dialética e simultaneamente, humanizar-se.
Uma outra função social da arte é a de permitir experimentar situações inusitadas,
“recriar para a experiência de cada indivíduo a plenitude daquilo que ele não é, isto é, a
experiência da humanidade em geral. A magia da arte está em que, nesse processo de
recriação, ela mostra a realidade como passível de ser transformada, dominada”.16 Mediante a
arte, pela fruição de objetos ou situações criados e apresentados-representados pelo artista, na

13
LUKÁCS, 1968. Op. cit., p. 209.
14
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. 9. ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p. 51 e
57-58
15
Para Bakhtin, a “forma esteticamente significante” expressa uma relação do artista tanto com o mundo da ciência
e da filosofia quanto com o mundo da ética. Entretanto, o artista (na condição de criador) não está envolvido com o
acontecimento na forma de participante direto, mas ocupa uma posição externa e desinteressada (mas não
indiferente) que lhe permite compreender “o sentido axiológico daquilo que [...] realiza”. (BAKHTIN, 1998. Op. cit., p.
36) O fato de não se encontrar submetido ao acontecimento lhe permite deter um domínio relativo sobre o conteúdo
da obra, entenda-se, um domínio para além do emocional ou técnico (sobre a matéria), mas, sim, axiológico, um ver
o acontecimento pelo lado de fora, situar-se em outro horizonte de valores. O artista terá “de se tornar o outro” com
relação a si mesmo. (BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 128) No
momento da fruição da obra, isso é essencial, pois domínio idêntico poderá ser experimentado pelo espectador,
possibilitando-lhe a reflexão, tal como no teatro épico de Brecht que, ao impedir o efeito catártico (identificação por
empatia), compele o público a ver de fora a ação, obrigando-o a posicionar-se frente a ela. (BENJAMIN, Walter. O
autor como produtor. In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin: sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991a, p.
198-199; id. Ibidem, 1991b, “O que é o teatro épico?”, p. 214-215.
16
FISCHER, 1987. Op. cit., p. 252.
160

presença do novo, apreende-se uma nova visão de mundo, amplia-se a consciência da


realidade, enquanto que, simultânea e dialeticamente, pode ver-se a si próprio, tornar-se
observador de si mesmo enquanto vivendo essa nova situação. O distanciamento de si e a
reflexão sobre seu próprio pensar e sentir ensejam uma ampliação da consciência e da
autoconsciência.
Em síntese, a grande função social da arte é ser um meio de identificação consciente
do indivíduo com a humanidade e com a natureza, porquanto proporciona condições para que
o homem conviva e comparta modos de ver, apreender, compreender e sentir o mundo
presente – e também o futuro, por projeções criadoras que a arte permite enquanto forma de
domínio da natureza.17 E tais projeções não se dão “como fatos exteriores [...] e sim como algo
essencial para a própria vida”, tanto no plano coletivo quanto para a vida individual. 18 Assim, a
arte em geral e a obra em particular jamais serão neutras,19 porque sua própria constituição
está comprometida com a realidade concreta, social e histórica; além do que, nela estão
implicados um conhecimento relativo e uma tomada de posição do autor frente a esse contexto
concreto de vida, ou seja, uma atitude ética e um posicionamento político do indivíduo criador
em face de sua contemporaneidade e das lutas históricas de seu tempo. Sem esse conjunto de
determinações, a obra de arte carece de sostanza e passa a ser tão somente um jogo.
Há, entretanto, uma condição, que vários materialistas enfatizam: o partidarismo ou
tendência da obra frente ao mundo só faz sentido, só será considerado caso a obra apresente
uma real qualidade estética.20 Benjamin afirma que “a tendência de uma obra literária só pode
ser politicamente correta se ela também for literariamente correta”,21 ou ainda, como apontam
Harrison e Wood, “a força ética da pintura não está na virtude do que ela retrata ou defende,
mas na estética que materializa”.22
Assim, a arte, por ser ela própria resultante da práxis, isto é, do fazer, do conhecimento
e da posição ético-ideológica do autor frente à realidade, eleva a humanidade no seu criador e,
junto com ele, o público enquanto fruidor ativo.
Com a riqueza de sua simbologia, ao constituir um mergulho no real, a arte, de modo
simultâneo e contraditório, “possibilita ao ser humano uma forma de suspensão da realidade, a

17
FISCHER, 1987. Op. cit., p. 253.
18
LUKÁCS, 1968. Op. cit., p. 286 e 290.
19
À suposta neutralidade e desinteresse da arte, defendidas pela concepção l’art pour l’art, o materialismo histórico
e dialético contrapõe uma arte social, politizada e partidária – entendendo-se por partidária não a adesão ou
participação em partido político (o que, entretanto, foi uma imposição para os artistas do realismo socialista). Hoje,
na arte realista, o partidarismo da obra significa a fidelidade e a verdade na representação sensível do mundo, da
realidade objetiva. Para Lukács, trata-se, também, de uma tomada de posição do artista frente a essa realidade.
(Sobre partidarismo da obra, ver: LUCÁKS, 1968. Op. cit., p. 208-219)
20
Evita-se, assim, que a mera propaganda política arvore-se em obra de arte, como também salvaguarda-se o
campo da produção artística de interferências oficiais ou imposições descabidas, de qualquer ordem, como ocorreu
na União Soviética, durante o período stalinista.
21
BENJAMIN, 1991a. Op. cit., p. 188.
22
HARRISON, Charles; WOOD, Paul. Modernidade e modernismo reconsiderados. In: WOOD, P. et al. Modernismo
em disputa: a arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. p. 254.
161

partir da qual retorna ao dia-a-dia transformado e enriquecido, [...] com sua compreensão da
realidade humana ampliada”. Isso “faz com que o indivíduo singular se identifique com a
humanidade em geral” e possa perceber-se “particularmente mais humano ao mesmo tempo
que compartilha esse significado e se sente parte da humanidade”.23
A construção da consciência-autoconsciência significa, para o indivíduo, sua chance de
sobrepor-se relativamente à alienação gerada no processo do trabalho, que se estende a todas
as áreas da existência humana. Essa construção se processa na vida cotidiana; é aí que o
indivíduo produz sua existência, sujeito ao bombardeio das mensagens simbólicas, dos
fetiches e lugares-comuns. Heller vê grande importância em se trabalhar com a categoria vida
cotidiana porque ela abarca todos os sujeitos de uma sociedade. Para essa autora,

a vida cotidiana é o conjunto das atividades que caracterizam as reproduções particulares criadoras da
possibilidade global e permanente da reprodução social. Não há sociedade que possa existir sem
reprodução particular. E não há homem particular que possa existir sem sua própria reprodução. Em toda
sociedade há, pois, uma vida cotidiana: sem ela não há sociedade. O que nos obriga, simultaneamente, a
sublinhar de modo conclusivo, que todo o homem – qualquer que seja o lugar que ocupe na divisão social
do trabalho – tem uma vida cotidiana.24

Apesar de parecerem idéias óbvias, Heller, com intensidade e competência, dedica-se a


resgatar para a filosofia o estudo da cotidianidade da vida humana – objeto privilegiado de
pesquisa das psicologias e da psicanálise: “A vida cotidiana é a vida de todo homem [...] é a
vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa da vida cotidiana com todos os aspectos de
sua individualidade, de sua personalidade. Nela colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus
sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas [sic], seus
sentimentos, paixões, idéias, ideologias”.25
Todavia, apesar de, na cotidianidade, o homem poder ser “atuante e fruidor, ativo e
receptivo”, em geral não consegue reservar tempo, ou ainda, gerar condições para se deter
sobre tais talentos, pelo que “não pode aguçá-los em toda sua intensidade”;26 torna-se, então,
na maioria das vezes, um homem unilateral, fadado a manter-se aquém de suas reais
possibilidades.
Deve-se considerar que, na sociedade capitalista, a propriedade privada dos meios de
produção e a conseqüente alienação do homem impuseram ao trabalho, à ciência, à política,
ao direito, à religião, à filosofia e à própria arte um distanciamento dessa vida cotidiana. Isso
aconteceu em dois processos distintos: o da “relativa autonomização da relação imediata com
a espécie, autonomização historicamente definitiva e irreversível”, e o da ruptura entre o

23
TROJAN, Rose Meri. O trabalho como categoria fundante da necessidade estética: reconstruindo a função
educativa da arte. Curitiba, 1998. 247 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Setor de Educação, Universidade
Federal do Paraná, p. 113.
24
HELLER, Agnes. La revolución de la vida cotidiana. Barcelona: Península, 1982. p. 9.
25
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992. p. 17.
26
HELLER, 1992. Op. cit., p. 17-18.
162

desenvolvimento do homem como ser genérico27 e como indivíduo (como membro pertencente
a grupos e classes).28 Se o fato de imaginar um possível retrocesso a estágios anteriores fosse
uma “utopia retrógrada”, tomar a alienação da vida cotidiana – em relação às grandes
objetivações acima apontadas – como definitiva, significa negar a possibilidade da
transformação; ou seja, em última instância, é negar a possibilidade da própria história. Cabe,
então, perguntar, com Heller, se essa vida do dia-a-dia deve ser necessariamente alienada e,
de igual modo, se é possível uma reestruturação da vida cotidiana sem impor uma perda de
continuidade em sua estrutura básica.29
Entretanto, é de todo impossível problematizar todas as situações, exercer um
questionamento sobre a totalidade do que existe. Assim, importa concentrar-se nas formas
como o sujeito se relaciona com tais atividades e na capacidade de hierarquizar essas formas;
em suma, o mais importante é que ele seja capaz de sintetizá-las em uma unidade, na que se
constitui sua vida.30 Ao trabalhar com tal síntese, então, alguém se poderá dizer um indivíduo
capaz de estabelecer uma relação consciente com as objetivações da espécie, ou seja, poderá
conduzir a própria vida pela ótica de uma concepção de mundo, propondo-se a resolução dos
conflitos pela transformação consciente ou pela conservação da realidade.
Os indivíduos e, em especial, educadores e artistas que vivem sua cotidianidade no
seio da sociedade capitalista – marcados pela alienação – necessitam ter como meta o
estabelecimento do exercício da reflexão e da crítica como tônica para a criação de um modus
vivendi não alienado. Para tanto, como indica Heller,31 não se pode intentar uma formulação
teórica, simplesmente. Uma ação coletiva se impõe, aliada às ações dos indivíduos no seu
campo de atuação específico. O artista, então, construirá sua obra nesse espírito. 32 Há que se
evitar, todavia, atitudes românticas: imaginar que a sociedade não alienada poderá se instalar
antes da transformação econômica e política, ou ainda, colocar-se em atitude de espera que tal
transformação ocorra para, depois, em condições ideais, intentar humanizar as relações do
27
Na sociedade capitalista contemporânea, em que o individualismo é marcadamente professado como única
instância verdadeira com que o ser humano necessita se haver e em que o mercado e a mídia transmudam o
conceito de cidadão em consumidor, importa resgatar o indivíduo como pertencente ao gênero humano: “O homem
é um ser genérico, não só no sentido de que faz objecto seu, prática e teoricamente, a espécie (tanto a sua própria
como a das outras coisas), mas também [...] no sentido de que ele se comporta perante si próprio como a espécie
presente, viva, como um ser universal, e portanto livre. [...] e a actividade livre consciente, constitui o caráter
genérico do homem. [Assim,] de modo geral, a afirmação de que o homem se encontra alienado da sua vida
genérica significa que um homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se encontra igualmente
alienado da vida humana”. (MARX, Karl. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 163-164;
166)
28
HELLER, 1982. Op. cit., p. 10.
29
Em função disso, é bastante pertinente a preocupação da arte social em vencer o distanciamento arte-artista-
público, privilegiando uma produção artística que se volte à reaproximação, que vá ao encontro do público na rua e
nas praças, lugar por excelência onde a vida cotidiana acontece.
30
HELLER, 1982. Op. cit., p. 11.
31
HELLER, 1982. Op. cit., p. 18.
32
A autora, artista plástica, centra sua produção em instalações e performances, formas de arte que facilitam a
participação direta e imediata do público – respeitando-lhe a liberdade de aderir ou não. Em muitos trabalhos, são
disponibilizadas condições para que o público defina a forma e o momento da participação; em outros, as formas de
interação são predefinidas pela autora. Em qualquer dos casos, entretanto, a viabilidade do estabelecimento de
relações imediatas com o público fica asseverada, ponto fundamental na poética do seu trabalho.
163

cotidiano. O próprio Marx afirma, nas teses sobre Feuerbach,33 que se deve realizar, de modo
simultâneo, as tarefas da transformação econômica e política e a busca da superação das
relações alienadas que se foram estabelecendo na vida cotidiana.
A consciência sobre as formas alienadas e aviltantes à dignidade humana de que se
reveste o cotidiano e as possíveis (e pequenas) tentativas individuais e ou coletivas para
suprimir/supera-las podem constituir força na direção da transformação social. Mesmo aquela
consciência relativa, fugaz – que aflora vinculada a atos isolados e passageiros – pode marcar
os indivíduos e resultar em revisão de valores, de atitudes e de mudanças na concepção de
mundo. Portanto, é necessário acreditar na força dos pequenos acontecimentos cotidianos
para a criação de uma sociedade humanizada, paralelamente à conjunção de forças em prol
das macrotransformações.
Urge, igualmente, fomentar o pluralismo de idéias como substrato de uma nova
sociedade democrática. Indivíduos ricos em percepções e idéias, tolerantes à diversidade de
idéias e modos de ser e sentir, são essenciais para a criação de novas formas, mais
humanizadas, de convivência humana.
Uma atitude importante na sociedade do consumo – com vistas à humanização do
social – é a de se quebrar o vínculo fortemente estabelecido entre bem estar ou prazer e posse
de bens como propriedade privada:

Os pontos de partida reais são [...] de natureza ética e política. Com relação ao aspecto ético do
problema: há que se ajudar a formular um programa dirigido contra a forma de vida baseada na
propriedade e contra a psicologia da apropriação. [...] o repúdio frontal ao fetichismo das ‘coisas’. A
diferença entre apropriação e prazer tem que ser formulada e clarificada. Com isso e para isso terá que ser
formulado o projeto de um modo ‘belo’ de vida – sem esteticismo.34

Com relação à diferenciação entre posse e prazer, a arte tem muito a contribuir para a
humanização das relações entre os homens: o prazer estético nada tem a ver com a posse do
objeto de arte. A ânsia pela posse privada só toma lugar se a obra de arte não for fruída como
tal e, sim, desejada-comprada como mercadoria – ou seja, quando apreciada pela ótica das
leis do mercado, que lhe determinam um valor como produto raro ou único – sobre cuja posse
o comprador deseje auferir vantagem financeira, seja no curto, no médio ou no longo prazos:
em suma, a posse privada do objeto de arte como aplicação, como investimento.
Longe disso, a apreciação, o consumo e a fruição estética são completamente gratuitos
e disponibilizados àqueles que se fizerem presentes, de alguma forma, ao objeto artístico. Por
esse motivo, a posse material pela via da compra não garante a fruição, o prazer estético;

33
Na tese n.º 1, lê-se: “A insuficiência principal de todo o materialismo até aos nossos dias [...] é a de a coisa
(Gegenstand), a realidade, o mundo sensível, serem tomados apenas sob a forma do objeto (Objekt) ou da
contemplação (Anschauung); mas não como atividade humana sensível, práxis, não subjetivamente”. (MARX, Karl;
ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: 1º capítulo seguido das teses sobre Feuerbach. São Paulo: Moraes, 1984.
p. 107).
34
HELLER, 1982. Op. cit., p. 24.
164

muito ao contrário, o valor pago pela mercadoria pode de certa forma inibi-lo,35 por agredir a
gratuidade inerente à arte como produto específico do homem enquanto ser individual-
genérico.
A arte, então, pode permitir ao indivíduo superar-se, pois, tal como a ciência, quebra o
pensamento espontâneo do cotidiano, costumeiramente voltado ao “eu individual-particular”. A
arte assim age por ser “autoconsciência e memória da humanidade”. Todavia, simultânea e
contraditoriamente, o trabalho de arte é perpassado pelo cotidiano, antes de tudo porque o
artista é um homem da cotidianidade e, se a produção artística a supera – como produto do
homem genérico, realizando a homogeneização36 –, dialeticamente, a intervenção do cotidiano
nela se concretiza pela mediação da individualidade do artista: “finalmente, toda obra
significativa volta à cotidianidade e seu efeito sobrevive na cotidianidade dos outros”.37
Ao finalizar, enfatiza-se: a arte exerce significativa função no processo de humanização
do homem, por desencadear um processo de reflexão profundamente educativo, que só pode
resultar em crescimento humano. Sobretudo quando se trata de obra que permite-privilegia a
fruição estética ativa-interativa, por livre adesão do indivíduo e da coletividade presente, e, de
modo especial, se isso tudo ocorre dentro do âmbito da vida cotidiana, no qual se dão as
relações imediatamente humanas. Disponibilizada de modo gratuito, a arte inserida no
cotidiano pode vir a ser um momento de veemente exercício da liberdade, de ampliação da
consciência-autoconsciência e de intenso prazer sensório-intelectual desvinculado das
relações de posse e dominação que permeiam a quase totalidade das relações humanas, na
sociedade capitalista contemporânea.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Discurso na vida e discurso na arte - sobre poética sociológica. Trad.: Carlos A.
Faraco e Cristóvão Tezza. Curitiba: texto para uso didático. 16 f. Versão inglesa de I. R. Titunik, 1976.
Original russo.
_____. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_____. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). 4. ed. São Paulo: UNESP, 1998.
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin: sociologia. 2.
ed. São Paulo: Ática, 1991a. p. 187-201.

35
Como aponta VÁZQUEZ, “a relação de posse fecha as portas ao gozo estético, à atitude estética”, pois dificulta
“que o homem se aproprie do objeto humanamente, como homem total”. (VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. As Idéias
estéticas de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 263)
36
Homogeneização é o termo pelo qual Heller designa o processo de superação do pensamento espontâneo do
homem individual pela consciência do homem genérico. Lukács usa os termos ganze Mensch, ou homem inteiro e
Menschen ganz, ou homem inteiramente, (este último poderia ser o correspondente ao homem rico, de MARX).
(HELLER, 1992. Op. cit., p. 27) Compreende-se que esses autores, ao assim se posicionarem, referem-se à questão
da educação do homem, em sentido amplo, assim como Saviani, quando fala no processo de superação do senso
comum pela consciência filosófica. (SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São
Paulo: Autores Associados, 1980. p. 9-15)
37
HELLER, 1992.Op. cit. p., 26-27.
165

_____. O que é o teatro épico? In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin: sociologia. 2. ed. São
Paulo: Ática, 1991b, p. 202-218.
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. 9. ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Guanabara,
1987.
GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna (por uma sociologia da totalidade). São
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.
_____. Ciências humanas e filosofia: que é a sociologia? 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
HARRISON, Charles; WOOD, Paul. Modernidade e modernismo reconsiderados. In: WOOD, P. et al.
Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. p. 170-259.
HELLER, Agnes. La revolución de la vida cotidiana. Barcelona: Península, 1982.
_____. O cotidiano e a história. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de algumas tendências da
estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin: sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991.
LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista: sobre a categoria da particularidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
_____. História e consciência de classe: estudos da dialéctica marxista. 2. ed. Rio de Janeiro: Elfos;
Porto: Escorpião, 1989.
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
_____. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: 1º capítulo seguido das teses sobre Feuerbach. São
Paulo: Moraes, 1984.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Autores
Associados, 1980.
TROJAN, Rose Meri. O trabalho como categoria fundante da necessidade estética: reconstruindo a
função educativa da arte. Curitiba, 1998. 247 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Setor de
Educação, Universidade Federal do Paraná.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. As Idéias estéticas de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
_____. Filosofia da praxis. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

Você também pode gostar