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cena n.

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Poética(s):
a criação artística em fricção com o(s) tempo(s) presente(s)

Gessé Almeida Araújo


Universidade Federal da Bahia - UFBA
Email: gessept@hotmail.com

Resumo Abstract
Este artigo parte do pressuposto de que This paper has as main assumption the con-
os tempos históricos condicionam as com- ception according to which the historical times
posições poéticas, mormente as criações ar- regulates the artistic creation of the scenic arts
tísticas do campo das artes do espetáculo no field in the West World. For this theoretical en-
Ocidente. Para tal empreendimento teórico, os terprise, the Aristotelian principles and its con-
princípios aristotélicos e seus conceitos foram cepts were requested and put into dialogue
requisitados e postos em diálogo com alguns with some art philosophers of XX’s century, as
filósofos da arte no século XX, a exemplo de Luigi Pareyson and Gérard Dessons. There-
Luigi Pareyson e Gérard Dessons. Assim, é fore, the purpose of this paper is to cast off the
objetivo deste trabalho arrematar as principais main support that makes it possible to reflect
noções que tornam possível a interpretação on the creative processes as subject of histor-
dos processos criativos como sendo sujeitos ical, political and cultural circumstances in the
às intempéries históricas, políticas e culturais present time. Such reflection is intended to be
do(s) tempo(s) presente(s). Tal reflexão preten- a contribution to the fields of Literary Theory
de ser uma contribuição aos campos da teoria and Theatrical Criticism.
literária e da crítica teatral.

Palavras-chave Keywords
Poéticas. Criação Artística. Processos Criati- Poetics. Artistic Creation. Creative Processes.
vos. Tempo(s) Presente(s). Temporalities.
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Os fundamentos filosóficos do termo “poéti- ma trágico, isto é, a tragédia clássica grega. O


ca”, usados reflexivamente no campo estético, conceito fundamental da poética aristotélica,
datam da antiguidade clássica, cuja referência aqui tomado como salutar, refere-se à “imita-
mais reconhecida é a célebre proposição teó- ção” ou “mímesis”. O ato da reprodução mi-
rica do filósofo grego, Aristóteles, em sua obra mética está intimamente relacionado ao fazer
homônima (Poética, 1991). Apesar das eviden- prático, à execução, à composição artística
tes diferenças entre o que escreveu o men- propriamente dita, e mais do que uma “imita-
cionado estudioso e as demais concepções ção” daquilo que é visto no mundo real, está
em torno do mesmo tema, faz-se importante atrelado a uma recriação ou uma representa-
uma abordagem de sua obra como guião de ção dele, concebida como uma leitura a par-
quase todas as outras proposições historica- tir do olhar do artista. Assim sendo, a poética
mente concebidas. Além do grego, outros te- está necessariamente associada ao aspecto
óricos que se debruçaram sobre o seu estudo, da arte cuja exigência ontológica está calcada
ampliando suas possibilidades interpretativas, no ato da composição, ou seja, na invenção
serão abordados no sentido de melhor com- deliberada do ato criador.
preender o modo como tenho refletido acer- Mais especificamente, acima de tudo quan-
cadas poéticas que vislumbro nas pesquisas do tomamos Aristóteles como ponto de parti-
que desenvolvo cujo viés não se furta a fric- da, o conceito de “poética” liga-se mais dire-
cionar elementos historiográficos e filosóficos tamente àquelas obras cuja matéria-prima é a
na interpretação do fenômeno teatral. Assim, linguagem em forma de palavra artisticamente
as reflexões que compõem este artigo partem escrita, ou ainda, a palavra “imitada” poetica-
de uma aproximação com o universo teórico mente pelo artista em uma representação cê-
em torno desta terminologia, poética, tendo nica. Essa diferenciação é importante de ser
como ponto de partida o referencial histórico pontuada visto que o produto poético não é,
de Aristóteles e autores contemporâneos que necessariamente, fruto da linguagem escrita –
dedicaram estudos ao campo estético, mor- tomada de modo amplo –, mas a linguagem
mentesuas querelas conceituais. Esses co- escrita em uma forma específica, qual seja, a
nhecimentos serão aqui abordados no senti- poeticamente engajada. Desse modo, a po-
do de melhor arrematar a compreensão deste ética vislumbrada por Aristóteles tem como
conceito, principalmente pelo fato de ter sido o material criativo a palavra que, no intento de
mencionado filósofo o primeiro referencial – ao ganhar relevo estético, não se apresenta da
menos no mundo ocidental – a mapear, dentro forma como a linguagem escrita é cotidiana-
da arte produzida no seu tempo, princípios de mente empregada; em outros termos, tem-se
composição poética. na obra de arte escrita o uso da palavra em
Aristóteles resguarda como elemento cru- sua forma poetizada. A diferença primordial
cial do viés interpretativo por ele privilegiado, entre a língua ordinariamente empregada e a
a poesia como prática distinta de composição linguagem poética está na função prática da
artística, compreendida de modo diverso do primeira e na função estetizante da segunda
que hoje conhecemos visto que sua análise se
mantém mais detidamente no estudo do poe-

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[tradução nossa]1 (Valéry apud Aquien; Molinié, ciente ou espontânea, tornando-se evidente o
1996, p.418). Dessa maneira, o objetivo da lin- fato de que as criações artísticas estão inse-
guagem poética atinge o seu fim quando ela é ridas em contextos históricos e políticos que,
preenchida pelo que não pode ser evidenciado também, interferem nas naturezas de compo-
pela linguagem escrita cotidiana. Os elemen- sição.
tos de uma obra, ou de um conjunto delas, por O termo “poética”, dentro de um entendi-
si só não evidenciam a qualidade poética de mento mais amplo, concerne a todas as artes,
uma produção. Nesse sentido, “[...] aquilo que ou melhor, a tudo aquilo que é produzido fa-
determina a natureza literária, ou não, de uma zendo uso deliberado de uma composição es-
dada obra, não são os elementos que a com- tética – e não apenas a poesia dramática, arte
põem, é o modo com que eles são montados, à qual Aristóteles e outros se dedicaram, in-
a função que eles preenchem”2, citando Michel terpretando-a como realização/feitura. Assim,
Pougeoise (2006, p.368). Assim, a formação é possível referir-se à Poética (no sentido aris-
de uma poética não se dá apenas a partir dos totélico) e ao poético. A Poética celebrizou-se
elementos propriamente literários de sua com- na história dos estudos literários como campo
posição, mas, também, elementos que, des- de atividade teórica de obras de artes; por seu
tarte, corroboram o ato criador, influenciando- turno, o poético designa, segundo a proposi-
-o; é o caso, por exemplo, dos fatos históricos ção de Dessons (2000, p.7-8), “[...] o sistema
que confluem com as produções no campo da interno de uma obra, aquilo que faz sua co-
cultura (e no teatro de modo particular). erência e sua diferença”4. O afastamento de
Uma poética, aqui tomada como sendo um ambas as nomenclaturas torna-se infrutífero
ou mais princípios de composição que regem diante do entendimento aqui encaminhado,
uma ou um conjunto de obras torna-se, em uma vez que as poéticas são fruto dos poéti-
certa medida, uma das buscas constantes dos cos e vice-versa. Toda poética é fruto do po-
artistas: “Todo artista [...] busca – consciente- ético presente em sua obra; ambas as noções
mente ou não – a forma ideal na qual fluirá seu se condicionam é isto é frutífero. Dessa forma,
pensamento ou sua meditação”3 (Pougeoise, a Poética pode ser compreendia como a arte
2006, p.7). Nesse sentido, a constituição de e a ciência do poético, ou seja, o fruto da ativi-
uma poética elenca elementos de ordem cons- dade criadora humana: “A Poética cria o poé-
tico”5, como postula Henri Suhamy (1992, p.9).
1 Todas as traduções francês-português foram realizadas Isso se dá, notadamente, pelo fato da arte ser
pelo autor do trabalho, sob revisão de Raísa Bastos.A citação
mais longa, em língua original, diz: “La langue parléeordinai-
re est uninstrument pratique. [...] son office est rempliquand-
chaquephase a étéentierement aboli, annulée, remplacée par 4 O referido autor comenta o uso do termo “poética” no femi-
lesens” (Valéry apud Aquiene Molinié, 1996, p.418). A qual nino; a citação alongada diz: “[...] une poétique. Danscetem-
acrescento a tradução: “A língua falada ordinária é um instru- ploi, lanotion de poétique ne designe plusl’activitétheorique,
mento prático. [...] seu ofício é preenchido quando cada frase metadiscursive, que constituelapoétique – [...] – mais renvoie
foi inteiramente abolida, anulada, recolocada pelo sentido”. a cequ’onpeutnommer, pourfairebref, lesystéme interne d’une
oeuvre, cequi fait sacoherence et sadifference”. Cuja tradução
2 “[...] cequi determine lanaturelitteraire ou non d’une oeuvre- é: “[...] uma poética. Nesse emprego, a noção de poética não
donné, ce ne sontpasleselementsquilacomposent, c’estlafa- designa mais a atividade teórica, metadiscursiva, que consti-
çondontilssontassemblés, lafonctionqu’ilsremplissent”. tui a poética – [...] – mas reenvia a isto que podemos nomear,
para ser breve, o sistema interno de uma obra, isto que faz
3 “[...] tout artiste [...] cherche – consciemment ou non – la sua coerência e sua diferença”.
forme idéaledanslaquelle se coulera as pensée ou as medi-
tation”. 5 “La Poétiquecrée du poétique”.

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dependente da percepção humana para tor- ou instintivas, seu vigor sensorial, em


detrimento de sua métrica, suas esco-
nar-se poética, logo, ela se dá como fruto de
lhas formais e sua temática aparente7.
algum nível de consciência estética da parte
do sujeito criador.
O encaminhamento da noção de poética
As leis que regem uma poética são constru-
que empreendo não separa a formação de
ídas no interior mesmo da obra de arte, logo,
um modo específico de operação artística dos
do objeto poético (Pougeoise, 2006). É o ar-
eventos históricos aos quais ela está vinculada.
tista que, a partir de sua experiência criadora
Desse modo, compreendo que o “simbolismo”
constitui, conscientemente ou não, um modo
da visão de um artista, suas “imagens recor-
de operação em sua obra, assim, ela se apre-
rentes”, seu “vigor sensorial” e mesmo suas
senta como um cosmo que acumula em si de-
“escolhas formais” não estão desligadas do
terminados caracteres poéticos em um espaço
contexto histórico aos quais estão inseridas.
relativamente pequeno (visto que a obra, em
Isso serve para Sófocles, Molière, Shakespe-
geral, não tem duração infinita). O questiona-
are, Brecht, Plínio Marcos, Antônio Araújo ou
mento de Roman Jakobson (apud Pougeoise,
José Celso Martinez Correa; todos os criado-
2006, p.7), torna-se relevante para o debate
res, inevitavelmente, sofreram influência de
aqui estabelecido: “[...] o objeto da poética é,
seu tempo no modo de sua produção poética,
antes de tudo, responder à questão: o que faz
seus desafios e possibilidades.
de uma mensagem verbal uma obra de arte?”6.
Sem desejar, necessariamente, dar uma res-
posta, mas, de modo teoricamente responsá-
A obra em movimento na história
vel, sugerir um rumo reflexivo, acredito que a
percepção estética se dá no momento da frui-
A premissa da compreensão dos fundamen-
ção da obra e deve ser preponderantemente
tos poéticos da obra de arte diz respeitoao seu
esse o imperativo para que a obra de arte seja
entendimento como fruto, também, de uma
percebida como tal: que haja nela algo esteti-
construção histórica específica que a desenha
camente compreensível, tocante, no nível da
e que a constitui. Uma poética é fruto da his-
recepção. Ou seja, que a visão do artista sobre
tória do(s) presente(s) a que se está vinculado.
um determinado objeto, fato ou outro elemento
É o momento histórico e suas possibilidades,
propenso ao olhar poético seja lido como algo
necessidades ou imposições estéticas (e po-
esteticamente viável. Suhamy (apud Dessons,
éticas) que corroboram para a concepção de
2000, p.8) circunscreve em suas reflexões um
um “projeto de formação e de estruturação da
fundamento que desejo explorar:
obra”. A partir disso, uma poética instala um
programa de operação que o artista propõe e
Quando falamos da poética de um au-
tor, designamos o que contribui à co- que se evidencia pelos aspectos estruturais
erência e ao simbolismo de sua visão,
suas imagens recorrentes ou abun-
dantes, suas obsessões elementares
7 “Quand on parle de la poétique d’un auteur, onde designe
ce qui concourt à la cohérence et au symbolisme de sa vision,
6 “[...] l’objet de la poétiquec’est, avanttout, de répondre a ses images récurrentes ou foisonnantes, ses obsessions éle-
la question :qu’est-ce quifaitd’unmessage verbal une oeu- mentales ou pussionnelles, sa vigueur sesorielle, plutôt que
vred’art?”. sa métrique, ses choix formels ou sa thématique apparente”.

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da obra8 (Dessons, 2000, p.8), intenção esta concepção esta que rejeita uma interpretação
que é, necessariamente, estética. Assim, mais romantizada da atividade artística como fruto
do que ler ou ver uma obra pelo viés analítico unicamente do desejo espontâneo do ato cria-
interpretativo convencional, torna-se uma im- dor, levando em consideração fatores externos
portante baliza para o reconhecimento de uma a ele, igualmente importantes na configuração
poética, nos termos abordados, reconhecer os final da obra de arte. A obra em contato com
princípios artísticos e éticos que a obra procu- seu(s) presente(s) é um convite à composição
ra frisar. O modo como uma obra é realizada que, necessariamente, leva a reboque o tem-
do ponto de vista estético representa, em si, po histórico vivido e suas demandas artísticas,
o que é o seu discurso, o seu pertencimen- filosóficas e políticas. Ademais, a percepção
to, o seu significado e, de um ponto de vista dos estímulos embutidos na obra de arte se
mais amplo, carrega em si as marcas da his- faz e se refaz a cada leitura e interpretação que
toriografia do(s) tempo(s) presente(s) vivido(s). se empreenda a partir dela, sendo indiferente
Uma obra de arte e, muito provavelmente, uma em que tempo histórico isso se dê. Isto pos-
poética, são construídas a partir de inúmeros to, refuta-se aqui a perspectiva da obra de arte
elementos dentre os quais o discurso artístico, como sendo fruto unicamente da consciência
o tempo histórico e a político estão intima e estética de um sujeito, cuja fisionomia é prati-
fortemente interligados. camente imutável e marcadamente de cunho
Destarte, a constituição da poética de um pessoal – no sentido da não sujeição às intem-
artista está próxima do ideal de obra de arte péries do tempo. A noção apresentada reforça
em contato deliberado com o seu tempo, com- o argumento de que cada obra é, inevitavel-
preendida a partir de um de seus matizes: a mente, um retrato de uma época.
atividade estética do artista entendida como Foi Luigi Pareyson (2001), como importante
ação que flui juntamente com a história, ou estudioso dos fenômenos estéticos, que lan-
melhor,se desenvolve na necessária fricção çou reflexões que se ligam de modo direto à
dela com o tempo presente à sua concepção. interpretação da(s) poética(s) como propensas
Em outros termos, a obra em movimento leva às “intempéries” do(s) tempo(s) nos quais es-
em consideração o fato de que os sinais do tão inseridas, qual seja, a noção de que a po-
tempo condicionam as necessidades poéticas ética diz respeito à obra em processo, logo, a
do(s) presente(s). A obra e sua poética são, obra no momento mesmo em que o artista a
portanto, regidas por fatores que, a despeito elabora. A poética, desta maneira, diz respeito
do desejo do artista, impõem-se como sen- ao ofício mais diretamente atrelado ao ato cria-
do a poética possível em determinado tempo, dor, à produção artística em si. Ela está, ne-
cessariamente, alinhada à produção, ou seja:
8 O ensaísta promove a sua leitura a partir do que afirma Um- a arte não existe “sem uma poética declarada
berto Eco (2001): “[...] projeto de formação e de estruturação
da obra”, que por seu turno, desenha um “[...] programme- ou implícita” (Pareyson, 2001, p.10-11), coin-
opératoire que l’artistechaquefois se propose”; “[...] à traver- cidindo com o ideário do que se tem como re-
sl’analysedesstructuresdéfinitives de l’objetartistiqueconside-
réescommesignificatives d’une intention de communication”. sultado artístico. Isto se contrapõe, por exem-
Isto é, um: [...] programa operatório que o artista cada vez se
propõe”; “[...]” através da análise das estruturas definitivas do
plo, ao papel que a crítica exerce em função da
objeto artístico considerado como significativos de uma inten- obra de arte: ela se refere quase sempre à obra
ção de comunicação” (Dessons, 2000, p.8).

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já realizada, cujo caráter é avaliativo. ela apresenta-se, nesse caso, em favor da


Pareyson aponta elementos que convergem criação e não necessariamente da especula-
na reflexão que toma a concepção poética da ção do filósofo da arte. Ou melhor, a filosofia
obra de arte como impregnada de elementos especulativa é função do estudioso da estética
do(s) tempo(s) presente(s). Assim, ganha rele- enquanto que a filosofia operativa, dedicada
vo a noção segundo a qual a poética apresen- à composição poética de uma obra, cabe ao
ta em seu bojo uma espécie de “programa de artista. A estética se interessa por todos os as-
arte”, deliberadamente desenhado ou presen- pectos inerentes ao fator artístico e seus des-
te de modo “implícito no próprio exercício da dobramentos:da “experiência do artista, do lei-
atividade artística”, que pode ser acoplada ao tor, do crítico, do historiador, do técnico da arte
fato de que isso se dá de modo deliberado no e daquele que desfruta de qualquer beleza”,
sentido do pertencimento ao(s) presente(s) his- como sugere Pareyson (2001, p. 5). Embora
tórico(s). A dimensão poética de uma obra ex- possua um caráter eminentemente especula-
plicita e traduz – a partir dos princípios operati- tivo, é evidente e necessária a interlocução da
vos nela existentes – “determinado gesto, que, atividade da estética com a experiência artís-
por sua vez, é toda a espiritualidade de uma tica concreta, fato este que não a distancia da
pessoa ou de uma época projetada no cam- filosofia como campo privilegiado de reflexão
po da arte” (Pareyson, 2001, p.11). Esta leitura teórica sobre. Portanto,a natureza da estética
ganha relevo ao refletirmos que, por exemplo, é especulativa e concreta enquanto que a na-
quase todos os movimentos artísticos do tea- tureza da ação do artista é preferencialmente
tro ocidental, bem como suas concepções e ligada à concretude da experiência (Pareyson,
motivações no empreendimento da arte, não 2001, p.8). Compreende-se que o artista pode
existiram sem que houvesse, implícita ou ex- prescindir de um conceito de arte que busca
plicitamente, um ideário de arte que podemos o filósofo, enquanto que a arte não se efetua
chamar de poética. As concepções aqui apre- sem um ideal, isto é, sem um princípio poéti-
sentadas coadunam para uma compreensão co (Pareyson, 2001). O artista não necessaria-
da arte como algo ideologicamente conse- mente pretende conceituar sua obra como o
quente. Destarte, uma poética que se pretende faria um filósofo – e a estética não pretende lhe
como tal, concebe-se a partir de determinados exigir ou prescrever critérios artísticos –; ela
“sentidos”, muitas vezes – para não dizer ne- pretende, antes, criar, elaborar uma determina-
cessariamente –,marcados por determinadas da ação artística tendo ou não um referencial
concepções filosóficas e políticas (Pareyson, filosófico que, em verdade, não passa de um
2001). Consonante a isso, a poética de uma filão que desemboca em um ideário artístico.
obra ou de um conjunto delas carrega impres- É necessário levar em consideração a con-
sa em si e em determinado nível, um “ideal de sequência ideológica da obra de arte, sobretu-
arte” (Pareyson, 2001, p.15-16) em geral impli- do quando se pensa nas concepções poéticas
citamente sugerido. que figuraram nos campos artísticos do sécu-
É importante observar que quando o artista lo XX, em especial as vanguardas de todas as
produz, tendo como fruto de sua concepção, áreas da criação, período caracterizado pela
em alguma medida, alguma noção filosófica, radicalização no campo estético. O entendi-

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mento de que a obra de arte – e suas poéticas Aristóteles (1991, p.256)lança elementos sobre
– traz a reboque um ideário implícita ou expli- tais questões ao considerar que é função do
citamente expostos, leva em consideração a poeta simular o que poderia acontecer, em de-
atividade artística como sendo um empreendi- trimento de narrar o que aconteceu, ou seja,
mento poético e político. Nesse mesmo rumo sua função é representar “o que é possível se-
encaminham-se os “sentidos” da obra de arte, gundo a verossimilhança e a necessidade”. O
isto é, privilegia-se uma abordagem sobre o filósofo aponta ainda que é nisso que reside o
trabalho do artista do século XX como sujeito valor poético da obra de arte, uma vez que ela
e empreendedor ideológico do(s) presente(s) se torna, a partir dessa prerrogativa, algo mais
imediato(s), a ponto de imprimir em sua ativi- elevado do que a Filosofia e a História,na me-
dade artística um “ideal de arte” marcado pe- dida em que retrata o que é próprio dos senti-
los sentidos de seu tempo, suas demandas e mentos universais enquanto estas se detêm ao
possibilidades (Pareyson, 2001, p.16). que é particular (Aristóteles, 1991). Aristóteles,
Nota-se a poética de um artista, dentre ou- portanto, postula em favor da poesia dramáti-
tros elementos, como a convergência da “es- cae, de modo mais amplo, todas as artes nas
piritualidade de uma época” convertida em quais a finalidade é a composição de obras
“expectativa de arte” (Pareyson, 2001, p.17), com fins estéticos, colocando em relativa po-
uma vez que é/sãoo(s) tempo(s) presente(s) o sição de superioridade as obras artísticas em
fator preponderante para definir a aderência e detrimento de outras áreas do conhecimento
eficácia da obra de arte. Isso se dá no caso – e mesmo acima dos registros documentais
do ideário da arte proposto se manifestar em da erudição opostos ao senso comum –, isto
termos “normativos e operativos”, aspectos é, acima dos registros científicos9 (Pougeoise,
estes ligados especificamente à produção po- 2006, p.373).
ética. A busca por um conceito de poética que Tanto as citadas “verossimilhanças” quanto
contemple a obra de um artista é útil no senti- a “necessidade” abordadas pelo filósofo gre-
do de, como defende Pareyson (2001), “colher go estão ligadas ao que é verossímil e neces-
sua espiritualidade no ato de individuar-se” em sário em um determinado período histórico.
sua produção.Isso se caracteriza como sendo Dessa forma, o poeta torna-se o observador
uma tentativa de leitura que considere a liber- e intérprete do seu tempo, como uma espécie
dade do ato de criação em conjunto com a in- de espectador privilegiado que compõe po-
dividualidade do sujeito criador bem como o eticamente o que será fruído pela audiência.
seu tempo. O desafio para o artista está em qualificar seu
A estreita relação entre história e constitui-
ção poética exige do artista a qualidade de
9 O referido autor originalmente afirma: “Le poète (et plus-
atenta leitura do seu tempo. Isso significa dizer generalement, tout artistequicompose une oeuvre) a sansau-
cunedoute une superioritésurl’histoire. [...] ainsi se trouveen-
que o artista deve, no intuito de fazer-se comu- quelque sorte confirmée (dumoinspourAristote) une sorte de
nicar a partir de sua arte, desenvolver uma re- suprématie de l’ouevre d’artsurledocument, si objectif et si
fidélesoit-il”. Cuja tradução é: “O poeta (e mais generalizada-
lação – quase inevitável – com a vida real do(s) mente, todo artista que compõe obras) tem sem nenhuma dú-
vida uma superioridade sobre a história. [...] assim se encon-
presente(s) vivido(s), através de um esforço de tra em qualquer sorte confirmada (ao menos para Aristóteles)
interpretá-lo do modo mais coerente possível. uma sorte de supremacia da obra de arte sobre o documento,
quão objetivo e quão fiel seja ele”.

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olhar para o verossímil, o real e o necessário, poético da arte, compreendido como o lugar
eventos que muitas vezes se impõem à sua no qual se deve dizer “não necessariamente
ação artística em detrimento de apresentar-se o verdadeiro, mas preferencialmente, o ver-
como opção estética. Os fundamentos poéti- dadeiro semelhante, isto é, verossímil”12 (Pou-
cos das produções em arte confluem para um geoise, 2006, p.7). Como fator preponderante
rumo interessante de destacar, segundo as da formação da poética de um artista, está sua
proposições de Pougeoise (2006, p.371/372) função de constituinte da obra de arte: o artis-
para quem ta, como aquele que realiza a obra deve, logo,
reunir os elementos que irão compor sua mani-
O poeta não deve se contentar com festação artística, ou como prefere Pougeoise
a observação superficial do real que
ele se propunha a simplesmente “de- (2006, p.372), transportar “os dados do real”
calcar” (reproduzir). Um difícil trabalho em um conjunto que seja unitário e represen-
de reflexão e de concentração é ne-
cessário à elaboração da obra com- tativo13.
preendida como uma representação A aludida noção de poética se aproxima do
significante sob a forma de um “mi-
crocosmo”, traduzindo a experiência que tenho argumentado: a capacidade da arte
vivida de maneira condensada e ex- de produzir elementos que tenham vida pró-
pressiva. Para alcançar a esta criação
(recriação), o artista, cujo cérebro é pria como obra. Dessa maneira, as poéticas
comparável a um “espelho concêntri- presentes em criações teatrais específicas, fa-
co”, deve fazer “conservar os fenôme-
nos para um centro10. lam por suas próprias vozes tornando-se inde-
pendentes e, ao mesmo tempo, estreitamente
O autor evocado retoma os princípios aristo- ligadas aos seuscriadores sem que, no entan-
télicos anteriormente mencionados que com- to, sejam as suas vozes as que soem, em de-
preendem a obra artística como representação trimento de suas personagens ficcionais, seus
(ou imitação, ou mímesis) a partir do instante enredos e o contexto social e histórico refletido
em que ela deseje “oferecer aos seus destina- em suas obras. Estes são princípios das obras
tários um verdadeiro ‘conhecimento’ do real”11 de arte que pretendam sugerir algum tipo de
(Pougeoise, 2006, p.371-372). Os mecanismos novidade em algum de seus aspectos. Mais
apontados remetem ainda à noção de espaço amplamente: na obra de arte, a função poé-
tica possui a capacidade de, cumprido o seu
fim – bem entendido, emocionar –, imprimir na
10 “Le poète ne doitpas se contenter d’une observationsu- audiência um sentimento que seja capaz de
perficialedureélqu’il se proposeaitsimplement de “décalquer”
(reproduire). Undificiltravail de réflexion et de concentration transformá-la,intimamente, de alguma manei-
est necessaire à l’élaboration de l’ouvrecomprisecomme une
representationsignifiantesousla forme d’un “microcosme”, tra-
duisantl’experiencevécue de manièrecondensée et expressi- 12 Na obra original a reflexão aparece da seguinte forma: “La
ve. Pourparvenir à cettecreation (recréation), l’artiste, dontle- poésiedoitdire non nécessairementelevrai, mais prioritaire-
cerveau est comparable à un “miroirconcentrique”, doitfaire mentelevraisemblable”. Cuja tradução é: “A poesia deve dizer
“conserverlesphenomènesversun centre” (p.371-372). não necessariamente o verdadeiro, mas prioritariamente o
verdadeiro semelhante”.
11 No original o referido autor comenta a teoria de Aristóteles
segundo a qual: “[...] touteoeuvreartistiquedoitêtrenécessai- 13 A referida obra original diz: [O poeta deve]: “agencerles-
remente “representation” (mímesis) si elleveutprocurerà sés faitsensysteme et transposerlesdonnéesbrutesduréelen une
destinataires une veritable “connaissance” duréel”. Cuja tra- totalitéunitaire (action une formantun tout) et representative.
dução é: “[...] toda obra artística deve ser necessariamente Cuja Tradução é: “agenciar os fatos em sistema e transpassar
“representação” (mímesis) se ela quer atingir em seus desti- os dados brutos do real em uma totalidade unitária (ação uma
natários um verdadeiro “conhecimento” do real”. formando um todo) ”.

118 Araújo // Poética(s): a criação artística em fricção com o(s) tempo(s) presente(s)
Rev. Cena, Porto Alegre, n. 23, p. 111-120, set./dez. 2017
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 23

ra. Este tem sido um dos mistérios assegura- aos palcos do(s) seu(s) tempo(s) presente(s),
dos à arte. sob o risco de perder sua vitalidade. O que se
busca refletir a partir das idéias aqui traçadas
é a importância da compreensão do conceito
Conclusão de “poética” como sendo prenhe de aspectos
muitas vezes relegados em sua apreensão:
Tendo abordado princípios básicos relativos a correspondência entre criação artística e o
ao conceito de poética explicitando o modo tempo no qual ela se dá. Desse modo, torna-se
como a interpreto, torna-se importante eviden- possível vislumbrar, do ponto de vista da críti-
ciar que as reflexões que executo aqui trazem ca teatral, que nas práticas artistas os desejos
à tona elementos daquilo que inúmeros teóri- poéticos estão, acima de tudo, submetidos às
cos chamam de poética da linguagem (campo imposições poéticas condicionadas pela his-
da teoria da literatura). Apesar de não me ater tória, isto é, pelo tempo e suas demandas.
aqui apenas a ela, considero importante frisar
sua relevância, uma vez que os materiais his-
Referências
tóricos mais facilmente reconhecíveis do pon-
to de vista da produção teatral são os textos AQUIEN, Michèle. Dictionnaire de poétique.
dramáticos, elemento do campo da linguagem Paris : Le livre de poche, 1993.
escrita. Como corolário do presente artigo é
______; MOLINIÉ, Georges. Dictionnaire de
possível afirmar que as poéticas do campo te- rhétorique et de poétique. Paris: Le livre de
atral não se limitam à materialidade do texto poche/ La Pochothèque, 1996.
dramático, sendo igualmente importantes para
a sua compreensão os aspectos historiográfi- ARISTÓTELES. Poética. Tradução: Eurodo
de Souza. São Paulo: Nova Cultural/Coleção
cos referentes ao contexto em que o criador Pensadores, 1991.
ganhou relevo na cena teatral, a fundamenta-
ção filosófica e política em seu entorno e, até DESSONS, Gérard. Introduction à la poétique
mesmo, elementos biográficos dos artistas. : approche des theories de la litterature. Paris
: NATHAN Université/Lettres Sup., 2000.
Algumas poéticas estritas ao campo das artes
do espetáculo no Ocidente representaram (e ECO, Umberto. Obra aberta. Tradução: Gio-
ainda representam) uma modalidade de escri- vanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2001.
ta e reflexão acerca do próprio papel do teatro
PAREYSON, Luigi. Os Problemas da estética.
frente às demandas do(s) tempo(s) presente(s),
Tradução: Maria Helena Nery Garcez. São
tornando-se motes privilegiados de leitura de Paulo: Martins Fontes, 2001.
determinados aspectos históricos. Considero
que as grandes obras da literatura dramática POUGEOISE, Michel. Dictionnaire de poéti-
que. Paris: Éditions Belin, 2006.
bem como as encenações de forte impacto es-
tético, mantêm sua força mesmo fora do seu SUHAMY, Henri. La Poétique. Colection : Que
tempo circunscrito; por outro lado, sem con- sais-je ?. Paris : Presses Universitaires de
tradição com tal fato, é possível afirmar que France, 1992.
um espetáculo teatral é construído para subir

119 Araújo // Poética(s): a criação artística em fricção com o(s) tempo(s) presente(s)
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Recebido: 16/07/2017
Aprovado: 03/09/2017

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Rev. Cena, Porto Alegre, n. 23, p. 111-120, set./dez. 2017
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena

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