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Vítor Manuel de Aguiar e Silva

Universidade Aberta
l. O Campo dos Estudos Literários
1. 1 Os estudos literários como campo de conhecimento

Um campo de conhecimento constitui um domínio da actividadecognoscitiva


do homem no qual se elaboram, utilizam e difundem conhecimentos respei-
tantes a determinadosobjectosdeestudo, a partir deum conjunto de axiomas
e pressupostos, utilizando um adequado conjunto de métodos e procurando
alcançar certos objectivos.

Os campos de conhecimento sãoheterogéneos, podendo abarcar quer campos


de crenças e convicções como as religiões e as ideologias, quer campos de
investigação como as ciências formais, as ciências da natureza, as ciências da
cultura, etc.

O campo dos estudos literários é um campo de investigaçãoe ensino que tem


como objectos de conhecimento a literatura como sistema semiótico, como
instituiçãoe como campointelectual, tanto numaperspectivadiacrónicacomo
numa perspectiva sincrónica, bem como a descrição, a explicação e a interpre-
tacãodos textos literários, incluindo, logicamente, a elaboraçãodas metalin-
guagens, dos métodos e dos instrumentos necessários à realização destas
operações cognitivas.

O objecto de conhecimento do campo dos estudos literários - a literatura


- só se constitui, como veremos no capítulo 2, na segunda metade do sé-
culo XVIII e apenas desde essa data se instituíram e desenvolveram os estudos
literárioscomo campodeconhecimentos,embora,anteriormente, a poesiae a
eloquência- conceitos que, em grande parte, recobrem o conceito de litera-
tura - tivessem sido objecto de descrição e análise no âmbito de saberes
multisseculares e tão relevantes como a poéticae a retórica.

No desenvolvimento deste campo de conhecimentos, desempenhouum papel


fundamental a institucionalizaçãodos estudos literários nas Universidades.
Desde a primeira metade do século XIX, as Universidades alemãs e francesas
acolheram o ensino e a investigação nos domínios da filologia e da história
literária; as Universidades anglo-saxónicas foram criando, a partir do último
quartel do mesmo século, departamentos de literatura inglesa e de outras
literaturas nacionais. Progressivamente, foram-se constituindo comunidades
universitáriasdeprofessorese investigadoresno âmbitodosestudosliterários,
com bibliotecas e revistas especializadas, organizando-se muitas vezes em
associaçõesnacionais e internacionais, elaborando e difundindo os seus sabe-
rés através de seminários, colóquios, etc. A institucionalizaçãouniversitária
contribuiu de modo decisivo para conferir ao campo dos estudos literários o
estatuto de dignidade científica.

Estecampo deconhecimentosabrangedisciplinascom características episte-


mológicas diferentes, com fundamentação e com metódicas de natureza
diversa, com genealogias e com objectivos distintos. Nas duas últimas déca-
das,tem-seacentuadoa proliferaçãoe a rápidamudançadas«correntes»,das
«orientações»e dos «movimentos» no interior do campo, daí resultando uma

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babelização que retira credibilidade científica ao próprio campo. Abusiva- termo e do conceito de poética ficaram a dever muito a Paul Valéry, que
mente, algumas de tais «correntes», que muitas vezes representam fugazes afirmou, na sua primeira lição do Curso de Poética no Collège de France,
efeitos de modas filosóficas e ideológicas, apresentam-se e são apresentadas proferida a 10 de Dezembro de 1937:
como paradigmas, no sentido queThomas S. Kuhn concedeu a estetermo na
O meu primeiro cuidado deve consistir em explicar esta palavra «Poética»,
suacélebreobraintituladaThe structure ofscientificrevolutions, isto é,como
que restabeleci numa acepçãoprimitiva que nãoé a do uso corrente. Ocorreu-
matrizes disciplinares, como conjunto depressupostos, leis e normas comparti- -me ao espírito e pareceu-me a única adequada para designar o género de
Ihadas duradouramente pêlos membros de uma comunidade científica e que estudo que me proponho desenvolver neste curso.
orientam, regulam e legitimam osprogramas deinvestigação. Segundo Kuhn,
Entende-se habitualmente por este curso qualquer exposição ou compêndio
a proliferação de teorias, o desacordo e o constante debate em torno dos de regras, de convenções ou de preceitos respeitantes à composição dos
fundamentos das teorias caracterizam a pré-ciência ou a ciência imatura, isto
poemas líricos ou dramáticos ou ainda à construção dos versos. Mas pode-se
é, constituem manifestações exactamente opostas aos paradigmas, que são achar que envelheceu bastante nesta acepção, a par com a própria coisa
própriosda ciêncianormal. significada,de modo a dar-lhe outro uso. [...]
Mas, quer o deploremos, quer com isso nos regozijemos, a era de autoridade
nas artes hájá muito tempo que findou, e a palavra «Poética» não desperta
1.2 A poética senão a ideia de prescrições incómodas e envelhecidas. Julguei pois poder
retomá-la num sentido que tem a ver com a etimologia, sem ousar contudo
Em grego, as palavras poiësis ('poesia'), poiëma ('poema') e poiëtës ('poeta')
pronunciá-laPoiética,vocábulode que a fisiologiase serve quando fala de
sãoformadas a partir doverbo poiein, que significa 'fazer', 'fabricar'. A arte funçõeshematopoiéticasou galactopoiéticas.O fazer, opoiein, de que quero
(techne)dacomposiçãopoética,istoé,aquelesabernãoinato,masadquirido, ocupar-me, é aquele que se consuma em qualquer obra e que virei em breve a
composto de teoria e de prática, aquele conjunto de regras e preceitos que restringir àquelegénerode obras que se convencionou denominarobrasdo
ensinam a fazer o poema, denomina-se poética (poiëtikë techne). espírito.
O termo grego poiëtikë,porém, possui igualmente um significado passivo: o Foi, porém, com o formalismo russo e com o estruturalismo checo, nos anos
estudo das obras (erga) resultantes daquela arte. vinte e trinta do presente século, que o termo e o conceito de poética foram
Estesdoissignificados depoética,confluentes emduasobras fundacionais da utilizadosfrequentemente, com um significadotécnico,como equivalentes a
teoria da literatura e a ciência da literatura. Em 1919, foi publicada uma
análise dapoesia, a Poética(Perí poiëtikës) de Aristóteles e a Arte poética (Ars
poética - também conhecida com os títulos de De arte poética e Epistola ad colectânea de estudos de jovens formalistas russos intitulada Poética. Em
Pisones) deHorácio, estãopresentes nasartes poéticas medievais e,sobretudo, 1923,GrigorijVinokur,umimportantelinguistadoformalismorusso,publica
nas artes poéticas que se multiplicaram ao longo do século XVI, após a uma obra intitulada Poética. Linguística. Sociologia. Logo no início da sua
redescoberta da mencionada obra de Aristóteles (a sua traduçãolatina por Teoria da literatura (l. a ed., 1925), Boris Tomasevskij escreve: «Objectivo da
Giorgio Valia foi publicada em 1498 e a primeira ediçãodo seu texto grego poética(ou, noutros termos, dateoriadaarteverbal ou literatura) é o estudo
data de 1508). Por um lado, a poética é entendida como um conjunto de dos modos como sãoconstruídas as obras literárias». Bons M. Ejchenbaum,
no seu famoso ensaio intitulado «A teoria do método formal», aponta como
normas e preceitos queensiname orientam o poetanacriaçãodassuasobras;
uma daslinhas mestras da actividadedesenvolvidapêlosformalistas «arege-
por outro lado, é concebida como um conhecimento teórico e sistemático
sobre a poesia, os génerospoéticos e os poemas. neração da poética que se encontrava num estado de total desuso». Jan
Mukarovsky, o mais importante e influente teorizador literário da chamada
No Neoclassicismo,tornou-sehabituale muito estritaa orientaçãonormati- Escola de Praga, no seu estudo «Sobre a linguagem poética» (1940) utiliza o
vista das poéticas e, por isso mesmo, com o Romantismo, em virtude da termo 'poética' como equivalente de teoria da literatura e veio a coligir, em
liberdade criadora proclamada por este movimento estético e também em trêsvolumes publicados em 1948, grande parte dos seus escritos sob o título de
virtude da relatividade histórica reconhecida a essamesma liberdade, o termo Capítulos sobre a poéticacheca.
e o conceito depoética caíram em descrédito. Seo poeta, qual novo Prometeu,
cria o poema como uma entidade única e radicalmente nova, as poéticas No quadro da tradição formalista e estruturalista dos estudos literários,
normativistas representam para ele apenas um embaraço e um fardo; se o pode-se afirmar que Roman Jakobson consagrou definitivamente o uso do
crítico, no dizer de Novalis, deve descobrir e compreender as «individüalida- termo e do conceito de poética no seu famoso estudo intitulado «Closing
dês artísticas», de nada lhe servem as regras ditadas pelo chamado «bom statements: Linguistics and poetics», publicado em 1960, no qual define a
gosto» e compendiadasnos tratados de poética. poética como aquela disciplina integrante da linguística - entendida esta
como ciênciaglobal das estruturas linguísticas - que responde à pergunta: «O
Após mais deum século de esquecimento, a redescoberta e a reabilitação do que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte?» Alguns anos mais tarde,

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babelizaçãoque retira credibilidade científica ao próprio campo. Abusiva- termo e do conceito de poética ficaram a dever muito a Paul Valéry, que
mente, algumas de tais «correntes», que muitas vezes representam fugazes afirmou, na sua primeira lição do Curso de Poética no Collège de France,
efeitos de modas filosóficase ideológicas,apresentam-se e são apresentadas proferida a 10 de Dezembro de 1937:
como paradigmas,no sentido que Thomas S. Kuhnconcedeua este termo na
sua célebre obra intitulada The structure ofscientiflc revolutions, isto é, como O meu primeiro cuidado deve consistir em explicar esta palavra «Poética»,
matrizesdisciplinares,como conjunto depressupostos,leise normascomparti- que restabeleci numa acepção primitiva que nãoé a do uso corrente. Ocorreu-
Ihadasduradouramente pêlos membros de uma comunidade científica e que -me ao espírito e pareceu-me a únicaadequadapara designar o género de
estudo que me proponho desenvolver neste curso.
orientam, regulame legitimamosprogramasdeinvestigação.SegundoKuhn,
a proliferação de teorias, o desacordo e o constante debate em torno dos Entende-se habitualmente por este curso qualquer exposição ou compêndio
fundamentos das teorias caracterizam a pré-ciência ou a ciência imatura, isto de regras, de convenções ou de preceitos respeitantes à composição dos
é, constituem manifestações exactamente opostas aos paradigmas, que são poemas líricos oudramáticos ouaindaà construção dosversos. Maspode-se
próprios da ciêncianormal. achar que envelheceu bastante nesta acepção, a par com a própria coisa
significada,de modo a dar-lhe outro uso. [...]
Mas, quer o deploremos, quer com isso nos regozijemos, a era de autoridade
1. 2 A poética nas artes hájá muito tempo que findou, e a palavra «Poética» não desperta
senão a ideia de prescrições incómodas e envelhecidas. Julguei pois poder
Em grego, as palavras poiësis('poesia'), poiëma('poema') epoíëtës ('poeta') retomá-lanum sentido que tem a ver com a etimologia, sem ousar contudo
sãoformadasa partir do -verbopoiein, que significa'fazer', 'fabricar'. A arte pronunciá-laPoiétíca, vocábulode que a fisiologiase serve quando fala de
(techne) dacomposiçãopoética,isto é,aquelesabernãoinato,masadquirido, funções hematopoiéticas ou galactopoiéticas. O fazer, opoiein, de que quero
composto de teoria e de prática, aquele conjunto de regras e preceitos que ocupar-me,é aquelequeseconsumaemqualquerobrae quevireiembreve a
ensinam a fazer o poema, denomina-se poética (poiêtikë technë). restringir àquele género de obras que se convencionou denominar obras do
espírito.
O termo gregopoiëtikë,porém, possui igualmente um significadopassivo: o
estudo das obras (erga) resultantes daquela arte.
Foi,porém,com o formalismo russo e com o estruturalismo checo,nosanos
vinte e trinta do presente século, que o termo e o conceito de poética foram
Estes dois significadosdepoética,confluentes em duas obrasfundacionaisda utilizados frequentemente, com um significado técnico, como equivalentes a
análisedapoesia, a Poética(Perï poiëtikës)de Aristóteles e a Arte poética(Ars teoria da literatura e a ciência da literatura. Em 1919, foi publicada uma
poética- também conhecidacom os títulos de De arte poéticae Epistola ad colectânea de estudos de jovens formalistas russos intitulada Poética. Em
Pisones) de Horácio, estão presentes nas artes poéticas medievais e, sobretudo, 1923, Grigorij Vinokur, um importante linguista doformalismo russo, publica
nas artes poéticas que se multiplicaram ao longo do século XVI, após a uma obra intitulada Poética. Linguística. Sociologia. Logo no início da sua
redescoberta da mencionada obra de Aristóteles (a sua tradução latina por Teoria da literatura (l. a ed., 1925), Boris Tomasevskij escreve: «Objectivo da
Giorgio Valia foi publicada em 1498 e a primeira edição do seu texto grego poética(ou, noutros termos, dateoriadaarteverbal ou literatura) é o estudo
data de 1508). Por um lado, a poética é entendida como um conjunto de dos modos como sãoconstruídas as obras literárias». Boris M. Ejchenbaum,
normas e preceitos que ensinam e orientam o poeta na criação das suas obras; no seu famoso ensaio intitulado «A teoria do método formal», aponta como
por outro lado, é concebida como um conhecimento teórico e sistemático uma das linhas mestras da actividade desenvolvida pêlos formalistas «arege-
sobre a poesia, os géneros poéticos e os poemas. neração da poética que se encontrava num estado de total desuso». Jan
Mukarovsky, o mais importante e influente teorizador literário da chamada
No Neoclassicismo, tornou-se habitual e muito estrita a orientação normati-
Escola de Praga, no seu estudo «Sobre a linguagem poética» (1940) utiliza o
vista das poéticas e, por isso mesmo, com o Romantismo, em virtude da
termo 'poética'como equivalente de teoria da literatura e veio a coligir, em
liberdade criadora proclamada por este movimento estético e também em
trêsvolumespublicadosem 1948,grandepartedosseusescritossobo título de
virtude da relatividadehistóricareconhecidaa essamesmaliberdade,o termo
Capítulos sobre a poética checa.
e o conceito de poética caíram em descrédito. Se o poeta, qual novo Prometeu,
cria o poema como uma entidade única e radicalmente nova, as poéticas No quadro da tradição formalista e estruturalista dos estudos literários,
normativistas representam para ele apenas um embaraço e um fardo; se o pode-se afirmar que Roman Jakobson consagrou definitivamente o uso do
crítico, no dizerde Novalis, deve descobrire compreender as «individüalida- termo e do conceito de poética no seu famoso estudo intitulado «Closing
dês artísticas», de nada lhe servem as regras ditadas pelo chamado «bom statements: Linguistics and poetics», publicado em 1960, no qual define a
gosto» e compendiadas nos tratados de poética. poética como aquela disciplina integrante da linguística - entendida esta
como ciênciaglobal dasestruturas linguísticas - queresponde à pergunta: «O
Apósmais de um séculode esquecimento, a redescobertae a reabilitaçãodo
que fazde uma mensagem verbal uma obra de arte?» Alguns anos mais tarde,

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ao reexaminar, em resposta a diversas críticas que lhe haviam sido endereça-
das,o seuconceito defunçãopoética,Jakobsonescreve: «Apoéticapodeser
definidacomo o estudo linguístico dafunçãopoéticano contexto dasmensa-
' Cf. Roman Jakobson, gens verbais em geral e na poesia em particular».
Questíons depoétíque. Paris,
1973, p. 486. Desde o início da décadade setenta, o termo 'poética'aparece como solida-
mente restabelecido no campo dos estudos literários. Figura no título de
revistas novase importantes: a revista francesaPoétique,a revistaholandesa
Poetics, a revista alemã Poética. Diversas obras inïïuentes e relevantes no
domínio dos estudos literários ostentam no título ou no subtítulo a palavra
'poética':Poétiquedelaprose (1971)e Poétique(1973)deTzvetanTodoroy
Questionsdepoétique(1973)deRomanJakobson,Structuralistpoetics(1975)
de Jonathan Culler, Estúdios depoética (1976) de Fernando Lázaro Carreter,
etc.Sóexcepcionalmente seerguemvozesdiscordantesdousodepoéticacomo
equivalente a teoriadaliteratura. Talé o caso,porexemplo, deRenéWellek,
que advoga a denominação de teoria da literatura porque, segundo as suas
palavras,«evitaa possibilidadedeseficarlimitadoaoverso,comoé frequen-
temente o caso em inglês, e também qualquer implicação de poética
2 Cf. RenéWellek, Discrimi- prescritiva».
nations: Further concepts of
criticism. New Haven- Alguns autores distinguem entrea poéticateorética,isto é,o estudo sistemá-
-London, 1970, p. 327. tico, com a fundamentação e o rigor epistemológico deumateoria científica,
da literatura como sistema semiótico e como instituição e do discurso literário
como discurso distinto de outros tipos de discurso, a poéticahistórica, que é a
disciplina queestuda asmudanças ocorridas nosistemaliterário - mudanças
dosgénerose subgénerosliterários,dosperíodos literários,etc.- e a poética
descritiva, ou seja, a disciplina que estuda exaustivamente, numa perspectiva
pancrónica,determinados fenómenosliterários,bemdelimitados, combase
num corpus textual igualmente bem delimitado. Tanto a poética histórica
como a poética descritiva constituem disciplinas subordinadas à poéticateoré-
tica e que a esta fornecem elementos de informação e análise.
O termo e o conceito depoética, todavia, nãosãoestritamente coincidentes, no
uso contemporâneo, com o termo e o conceito de teoria da literatura. A
aplicaçãodaprovadecomutaçãodemonstra,porexemplo,queemexpressões
como «apoéticadosfilmes deJohnFord»ou«apoéticadapinturaímpressio-
nista»o termo poéticanãopodesersubstituído pelotermo teoriadaliteratura.

1. 3 A teoria da literatura

O termo teoriadaliteratura paradesignarumadisciplinadocampodeestudos


literários é relativamente recente. No limiar do prefácio à sua obra Theory of
literature (1949),RenéWelleke AustinWarrendeclaram:«Aescolhadotítulo
a dar a este livro foi excepcionalmente difícil». Com efeito, até ao início da
décadade sessenta, dataem que começaram a serdifundidas no Ocidente as
doutrinasdoformalismonissoe doestruturalismocheco,o conceitodeteoria
da literatura era quase somente conhecido em poucos círculos universitários

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norte-americanos, graças fundamentalmente ao ensino e à investigação de
professores da Europa oriental que então trabalhavam em universidades dos
EstadosUnidos (é o caso de Roman Jakobsone RenéWellek).

' Cf. Roman Jakobson, genïverbais emgerale napoesiaemparticular»/ Numrecentedepoimento sobrea suacontribuiçãoparaos estudosliterários,
RenéWellekescreveu: «Depoisdo meu regressoa Pragaem 1930[apósa sua
Questíons depoétique.Paris,
1973, p. 486. Desd.o iniciod.décadas..^,^^ .^^:^^ estadia de quatro anos em universidades norte-americanas], ingressei no
recentemente fundado Círculo Linguístico, li Ingarden e os Formalistas Rus-
sós e ouvi pela primeira vez a frase «Teoria da Literatura», usada como título

i^sis=ss;s^= do livro de 1926 daautoria de Boris Tomasevskij». A expressão, depois deser


utilizadacomo título destelivro de BorisTomasevskij, adquiriudecerto uma
circulação mais alargada, mas ela era já de uso frequente na obra de outros
' Cf.RenéWellek,«Response»,
in Comparative Literature,
40, l (1988), p. 27.

formalistas.

A publicação, em 1949, da já citada obra de René Wellek e Austin Warren,


Theory ofliterature, contribuiu decisivamentepara a difusão,sobretudo em
meios universitários norte-americanos, do termo e do conceito. De modo
semelhante,a publicação,em 1965,daprimeiragrandeantologiadetextosdos
formalistas russos editada na Europa ocidental, organizada por Tzvetan
Todorov, sob o título de Théorie de la littérature, teve importante papel na
2 Cf. René Wellek, Discrimi- prescntiva».
difusão do termo e do conceito nos meios universitários e intelectuais
natíons: Further concepts of
criticism, New Haven- europeus.
-London, 1970,p. 327.
No âmbitoda língua espanholae da cultura de língua espanhola,devem ser
realçados o pioneirismo e a importância dos estudos do poeta, crítico, pensa-
dor e professor mexicano Alfonso Reyes (1889-1959), em particular do seu
livro El deslinde. Prolegómenos a la teoria literária (1944). Alfonso Reyes,
todavia, diferentemente dos formalistas russos e dos estruturalistas checos
- cujaobranãodeveterconhecido-, separaa teoriadaliteraturadaciência
da literatura, concebendo aquela disciplina como uma «especulação sobre o
fenómeno literário que encontra o seufim apenas no deleite especulativo e que
^^euca^al fo7necem elementos de informação e análise. corresponderiaà Poéticados clássicos,se esta se tivesse limitado à definição
filosófica e não aparecesse mesclada com a Preeeptiva». Cf. Alfonso Reyes, La
experiência literária. Ensayos
O formalismo russo - e, nasuasenda, o estruturalismo da EscoladePraga e sobre experiência, exégesis y
teoria de la literatura. Barce-
todas asorientações estruturalistas posteriores - constituiu a teoria dalitera- lona, 1986, p. 370.
tura oupoéticaou ciênciadaliteratura, como a disciplina que estuda o sistema
ï^p^^^^^^o=^^^ literário, isto é,uma entidade teorética equivalente à langue, que Ferdinand de
Saussure definiu como o objecto formal da ciência linguística. A operação
epistemológicaque permitiu fundamentara existênciada teoria da literatura
1. 3 A teoria da literatura sófoipossível, aliás,graçasaoconhecimento e à assimilaçãopêlosformalistas
russos de algumas ideias expostas no Cours de linguistique générale (1916) de
Ferdinand de Saussure.

A teoria daliteratura assim entendida postula a autonomia e a especificidade


da esfera do fenómeno literário - os formalistas russos designaram com o
termo literariedade essa autonomia e essa especificidade - e assenta no
princípio de que a literatura, como as outras artes, é constituída por signos,
convenções, normas, processos e mecanismos que transformam uma estrutura

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verbal não-estética numa estrutura verbal estética. A teoria daliteratura, por
conseguinte, não tem como objecto formal a obra literária concreta e indivi-
dual - equivalente a parole da linguística saussuriana -, a obra literária de
um autor ou a literatura produzida num determinado período histórico. A
teoria daliteratura, porém, deve elaborar os conceitos, ashipóteses explicati-
vás, os métodos e os instrumentos de descrição e análise que permitirão
conhecer, com rigor sistemático, a obra literária concreta e individual, a obra
de um autor, um período literário, etc. Quer dizer, a teoria da literatura deve
sero fundamento epistemológico e metodológico detodos osramos discipli-
nares do campo dos estudos literários.

1. 4 A ciência da literatura

Desde que as universidades se tornaram nos mais importantes e inïïuentes


centros deinvestigação científica e desde que osestudos literários alcançaram
a sua institucionalização, nos planos do ensino e dainvestigação, nasuniversi-
dades - este processo, variável cronologicamente de país para país,
desenvolveu-se sobretudo a partir da segunda metade do século XIX -.
tornou-se imperioso e urgente estabelecer, fundamentar e caracterizar a natu-
reza científica dos estudos literários, como se todo o saber elaborado e
transmitido nas universidades devesse ser um saber científico.

Na língua alemã, por exemplo, desde o século XIX que se distingue entre
Literaturkritik, isto é, a crítica literária que examina, aprecia e julga obras
literárias contemporâneas e que é publicada em revistas e jornais dirigidos a
um largo público não especializado, e a Literaturwissenschafí, ou seja, a
investigação e a análiseuniversitárias da literatura, orientadas e regidas por
exigências,métodose critériosde ordem científica e destinadasa um circuns-
crito público de especialistas (ou de aspirantes a especialistas). Na língua
inglesa, embora a expressão literary criticism abranja quer a crítica literária
impressionista ejudicativa, publicada em revistas e jornais nãoespecializados
oudifundidapormassmediacomo a rádioe a televisão,quera crítica literária
produzida nas universidades, é largamente utilizada a expressão literary
scholarship, isto é,um saber sobre a literatura que sefunda num ensino e numa
aprendizagem escolarmente organizados e quesedesenvolve emprojectos de
investigação que obedecem a padrões de cientifícidade. Na língua francesa, de
modo semelhante,a expressãocritiquelittéraireuniversitairemarcaumadife-
rençaqualitativa entre osestudosliteráriosrealizados nasuniversidades e por
universitários e a critique littérairepraticadaforadauniversidade e à margem
das exigênciasda cientificidade requeridas por esta instituição.
No campo dos estudos literários, porém, usam-se muitas vezes os termos
'ciência' e 'científico' sem rigor epistemológico e atribuindo-lhes tão-só o
significado genérico de 'QbjectividadeVobjectivo', 'rigorVrigoroso', e.tc.
Outrasvezes,identifica-see confunde-se 'ciência'com 'erudição'. Ora,apurar
rigorosamente, por exemplo, a data de nascimento de um escritor ou a data da
primeira edição de uma obra, aduzir razões para convalidar uma conclusão,

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acumular informações extraídas com objectividade de documentos, etc., não
verbaln>o-.s.étic>
numa .strutu,, v«b,I ».é^.^.^a^l^^^^
cTn^Tmccrm objecto
constitui razão suficiente para atribuir a tais operações de conhecimento o
^gZt formdaob^^^^^^
o estatuto de ciência.
ZÏTeqÏvaÏenteà^r. /.dalinguísticasaussurlan^^^^^^
la ^o7:u':U;»aïu;>ïro7uz;d>^d,.. ^^ Algumasvezes,a expressão'ciêncialiterária'tem designadomanifestaçõesde
^^lÍt^ura;p^ém:deve elaborarosconceitos:^hlp^e^^^ cientismo, isto é, a doutrina segundoa qual os métodosindutivos das ciências
naturais são os únicos instrumentos e as únicas fontes de conhecimento
vaT,xuos"método"s'e'os instrumentos de^literária
descrição ^anál^^Pe;mlt;r^
Zh^ermccoïrigorusLt em^o7aobra md;vidua^a ^a
concreta e verdadeiro de todos os fenómenos humanos e sociais. Aceitando-se o princí-
SÏm^ru ^r^Z^/arQ ^cr^ ^ discipli-
pio - não convalidado e não convalidável - de que todo o real é monista e é
O monismo é a teoria
segundoa qualsóexisteuma
^olanTme^opepi^m'otóg;co metodológico e
de todos os ramos portanto explicávelmonisticamente1, abre-sea portaa umaciêncialiteráriade única realidade constitutiva
da natureza ou do universo.
nares do campo dos estudos literários. tipo cientista - como aconteceu quer com o Positivismo, quer com o Mar-
xismo - que se converte necessariamente numa explicação reducionista dos O reducionismoé a prática
sistemática do processo
fenómenos literários.
1.4 A ciênciada literatura mediante o qual determina-
das espécies de fenómenos
DesdeQueasuniversidades setornaram nosmais^porta. itese^influen^ A ideiade que o conhecimento das artes, em geral, e dapoesia, em particular, ou de entidades são descri-

D^^^^:^^w^:^^^^. constitui um conhecimento científico aparece já formulada no século XVIII, no


quadro das orientações racionalistas do Iluminismo e do Neoclassicismo.
tas, analisadas e explicadas
através de conceitos e pro-
^amstitucionaizaçao,nos planos^^oed^ú^n^w^ ais, Henry Kames, por exemplo, nos seus Elements ofcriticism (1762), concebe a
posições respeitantes a

dad"es"^"este-processo, variável cronologicamente _d^pa^pap fenómenos e entidades de


nível ontológicoe epistemo-
ï:::nvo7, ;u"s.Sobretudoa p.rti, d, '^a_B>e. ad.doj^XJ^ crítica como uma ciência racional («rational science») que proporciona um
lógico distinto.

^'ou^ïmperioso. urgente'. st>bdccer, f»ndamcm.,. c,^^^^^ entendimento rigoroso das belas artes («fine arts»), que solicita o exercita-
^zalïntífic'ado7estuSo7uterários, como setodo ojaber elaborado e mento dafaculdadedojuízo e quemoderae harmonizaosafectose aspaixões.
O fundamento desta ciênciareside na existênciade normas estéticasuniversais
transmitido nasuniversidades devesseserumsabercientitico.
e atemporais e nauniformidade, na natureza humana, dosprincípios gerais do
Na língua alem., «°"Pl°-, dc8íc. o. lc ulo^q^, di:t;Zo1;:
por gosto.
^^^:Ït;é; a crítica literáriaqu.e-^^e^^^
^^^nporâneJequeé Paliçadaemrev^ej^ ^s ^ Pouco tempo após a publicaçãodos Elements ofcriticism de Henry Kames,
mas integrado num quadro cultural, filosófico e estético profundamente
lum^argo*'publico'não especializado, e ^^^^^^'^u;^a;^
^eSç^^^se wSv.^arÍas daUtera.ura,orientadae ^^p^r diverso, Johann Gottfried Herder (1744-1803) contribuiu de modo impor-
^S^^^^^^;I:científicaedestma?asauï;ci^uns; tante para a constituição do que se poderá designar a ciência literária do
^^^a^^:s'dc^^T^^^ Romantismo alemãoe, em geral, da ciêncialiteráriade orientaçãohistórico-
^"^nboraa opressãoUterary criticismabranJaquCT^Cn^a, ";^ -filológica. Herder procura compreender os autores e as suas obras sob um
;XSieo^re j;dS::pubI, cada, evistas^^^^^^^^^^ m, ponto de vista histórico-genético,analisando psicograficamente a personali-
3ÍÏ^po; ^^. comoa rádioe a televisão,quer^a 1^ dade criadora, indagando sobre as suas ligações com o tempo e o mundo que a
°p;orz M">^"uZrs^cs7é'Iarg^ent^^^^^ antecederam, buscandoas suas relaçõescom os rasgos característicos da sua
época,intentandocaptare caracterizaro individualnassuasconexõescom o
S^í, 1stoé;umsabersobrea literaturaquesefundanum^m^uma
ï°^^°^s^°^d::^e^^^^^ universal.

^^ot ^o^d^\ïdrôesd^^^^ Noâmbitocultural delíngua alemã,o conceito deciêncialiterária(Literatur-


'n;rdZm:m:nte7,7xpr.ïo^^/. ^^^^ wissenschaft) tem gozado, ao longo dos séculos XIXe XX, de uma longa e vivaz
^qu^ta^aentreosestudosUteráriosr^izadosn. su.^sid^^^ à margem fortuna, se bem que mantendo frequentemente suspeitas e espúrias relações
lunliyvuerlsÍtáriore cr itique Uttéraire
a
universidade
praticada fora da e

com filosofias e concepções teleológicas da históriae com ideologias políticas


dasexigênciasdacientificidade requeridas porestainstituição. e sociais. Bastará apontar, por exemplo, a incidênciado hegelianismo em
muita da chamada 'ciêncialiterária' alemã.
Nocampodosestudosliterários,porém^usam-s^m^j^^
^n^:T'ïientífíco'-sem rigorepistemológico ^ atnbmndo^^-s^ O projecto de construção deuma crítica científica ganhougrande amplitude,
^^"Ï^ ^^l^ctivSade^o^ectivo', :^'/:ng^)s0;^^ no âmbito do Positivismo, com autores como Hippolyte Taine (1828-1893) e
80eu^LgSc ^e^^fu'nrs. ;.tínJ :com. crud;çio^r^ ci,
como Emile Hennequin (1858-1888). A objectividade científica advogada
0^^^^:^^^:^^^^,
plr^eTal edllçãolde umaïbra, aduzir convalidar conclusão,
razões para uma
pêlospositivistas conduzà buscadascausase determinaçõesqueexplicamas
literárias: «a ciência», nas palavras de Taine, «não proscreve nem

19

18
perdoa:constatae explica».Cadaautorpossuiumafaculdademestra'lsto '
umaformadeespírito originaldequederivamascaracterísticas relevantes da
suaobrae queé determinada pelainteracçãodetrêsordensdefactores: a raça
(conjuntodecondicioaalismosfisiológicose psicológicosdetipohereditáno)'
o meio (conjunto das circunstâncias telúricas, climáticas, sociais, etc.),o
momento (estádio em que seencontra, no devir histórico, um povo ouuma
comunidade). A crítica científica de Taine, por conseguinte, assenta num
determinismo que se arroga a capacidade de explicartodos os fenómenos
psicológicos, sociais e culturais.
Hennequin, na sua obra Lacritique scientifique^ï}, concebe.situa
a critíca
etíre
científica, que denomina estopsicologia, disciplina que
como uma se

Ïrês"ciências- a estética,a psicologiae a sociologia- e comelasmantém


es7reto7reTações e'queprocura,porum_lado, caracterizar o ^íritóin^vi-
ïuaïro "'orgamsmomterior', personalidade do
a
(<<aobra^e arte;'
autor

^sTreveH~ennequin, «éumconjunto designosquerevelaa constituiçãopsic^


'rica do seu autor») e, por outro lado, definir a psicologia, a organização
mSntalTmoral dosleitores,poisque«umaobradearte nãocomovesen^o
de Hennequin acaba
rd e"qure laésigno». A crítica literária científica
numa
asLsÏm'por as palavras deste pensador positivista,
se integrar ;segundo
«imensa antropologia».
O conceito de ciêncialiteráriaocorre com muitafrequêncianaobra^
da
for^allÏta*s r"ussTs7com" significado equivalente d^ poética
ao e teorm

Íto, ;»r7Rom,nJakobson, emp,rtícuto, ^^ ^d.^^


lNum7o'sseus"primeirosestudos,«Anovapoesiarussa»(1921),Jak^bj
deufíne"deste''modo o objectoformaldaciênciadaliteratura: . Assim,o objerto
daciênciadaliteraturanãoé a literatura,masa Uterariedade,istoé,o (
d;umadeterminadaobraumaobraliterária».E BonsEjckenbaum,n^eu
^ns^Íntitulado ^'teoriadométodoformal.literária,
(1927),-blmhaqueo^fo^a-
^tïsdel fendÍamaÏdei'abásica de que ciência
a ciência Uterána,
como

devTa'ter'comoobjecto«ainvestigaçãodaspropriedades específicasdo^mat^
ÏlÍavlTitt erïno7da7propriedades que distinguem este material do
material^de
;énero».O formalismorusso,emconformidadecomoprmc^
puo7pÍstemológico de que cada ciência possui um, obJ^toformalp^o,e
^X^ü^^°^^a^-científi^d^^^^
^ïi^fí^Ïológicos, histórico-cukurais, ^^. sobrealiteratoa,0
objecto'formaldaciêncialiteráriaé a literaturaqualiteratura,ouseja,e a
langue, o sistema da literatura.
O ne^ criticism anglo-americano, concebendo poesia co^pr^
embora a

tói^^veículo d^eriêndase significadosdiferentes,e atéopostos^tiva^


^Z^^sT^ignScad. sdaciên^-ci^ que^n^
mr^La Ïm^acnZde^nc^c7mo^^
cpr^Zs cZÏmu^oulq^^^^^^
^^^mo^^^^c^'rÍ°r°-:^^e, ed;tlso^IÏ!ma^
^^T^^^The verbalicon(1954),um^livros fundamentais
epÏr aevoe cvvoníhe^ml e natol dla7teonasdo-n^ sujeito
criticism, «está à mesma

20
perdoa: constata e explica». Cada autor possui uma faculdade mestra, isto é, verificação que qualquer asserção nalinguística ou na ciênciageral dapsicolo-
umaformadeespírito originaldequederivamascaracterísticas relevantesda gia». Enquanto o formalismo russo, como ficou dito, entende a ciência da
sua obra e que é determinada pela interacção detrês ordens defactores: a raça literatura, emconformidadecom o modelo dalinguística saussuriana,como a
(conjunto decondicionalismos fisiológicose psicológicosdetipo hereditário); ciênciada langue da literatura, o new criticismamericano defendea natureza
o meio (conjunto das circunstâncias telúricas, climáticas, sociais, etc. ); o científica da leitura imanente (close reading) do texto literário concreto e
momento (estádio em que se encontra, no devir histórico, um povo ou uma individual, que corresponde a.parole de Saussure.
comunidade). A crítica científica de Taine, por conseguinte, assenta num
Na sequência lógica do redescobrimento no Ocidente do formalismo russo, o
determinismo que se arroga a capacidade de explicar todos os fenómenos
conceito de ciência da literatura avultou de novo, nos anos sessenta, no
psicológicos, sociais e culturais.
estruturalismo, em particular no chamado «estruturalismo francês». Roland
Hennequin, na sua obra La critique scientifique (1888), concebe a crítica Barthes,no seuensaio Critique etvérité(\966~}, expôso projecto estruturalista
científica, quedenominaestopsicologia,comoumadisciplinaquesesituaentre da ciênciada literatura com clareza modelar. Esta ciência, segundo Barthes
três ciências- a estética, a psicologia e a sociologia - e com elas mantém aindainexistente- e sobrecujaexistênciafutura, é necessáriodizê-lo,Barthes
estreitas relaçõese que procura, por um lado, caracterizaro espírito indivi- exprime dúvidas -, não poderá ser uma ciência dos conteúdos, mas uma
dual, o 'organismo interior', a personalidade do autor («a obra de arte», . ciência das condições do conteúdo, isto é, uma ciência das formas, dos
escreveHennequin,«éum conjunto de signosquerevelaa constituiçãopsico- mecanismosformais,dalógicasignificantequepermite os sentidosengendra-
lógicado seu autor») e, por outro lado, definir a psicologia, a organização dos pelas obras. A ciênciada literatura, cujo modelo deverá ser linguístico
mental e moral dos leitores, pois que «uma obra de arte não comove senão - Barthesapontaexplicitamenteo modelodalinguística gerativadeChomsky
aqueles de que ela é signo». A crítica literáriacientífica de Hennequinacaba -, não terá como objecto de estudo nem autores («não pode haver uma
assim por se integrar, segundo as palavras deste pensador positivista, numa ciênciade Dante, de Shakespeareou de Racine», afirma Barthes), nem obras
«imensa antropologia». concretas, mas sim os signos do discurso literário em geral: por um lado, os
signosinferioresà frase;por outraparte, ossignossuperioresà frase.A ciência
O conceito de ciência literária ocorre com muita frequência na obra dos
da literatura deve procurar construir a gramáticado discurso literário e, por
formalistas russos, com significado equivalente ao de poética e teoria da
conseguinte, proporcionar os fundamentos e as informações indispensáveis
literatura. Roman Jakobson, em particular, utiliza amiúde aquele conceito.
para se alcançar a inteligibilidade da obra concreta, mas não pode fornecer
Num dos seus primeiros estudos, «A nova poesia russa» (1921), Jakobson
instrumentos de análiseque ensinem qual o sentido a atribuir exactamente a
define deste modo o objecto formal da ciênciadaliteratura: «Assim, o objecto
uma dada obra.
da ciênciada literatura nãoé a literatura, mas a literariedade,isto é, o que faz
de uma determinada obra uma obra literária». E Boris Ejckenbaum, no seu A ciência da literatura concebida por Roland Barthes coincide, nos seus
ensaiointitulado«Ateoriado métodoformal» (1927), sublinhaqueosforma- fundamentos e nos seus objectivos, com a poética proposta por Tzvetan
listasdefendiama ideiabásicadequea ciêncialiterária,como ciêncialiterária, Todorov e com a teoria da literatura de matriz formalista e estruturalista.
devia ter como ebjecto «a investigação das propriedades específicas do mate-
rial literário, das propriedades que distinguem este material do material de
qualquer outro género». O formalismo russo, em conformidade com o princí-. 1. 5 A retórica
pio epistemológico de que cada ciência possui um objecto formal próprio e
específico, rejeita por conseguinte a natureza científica dos estudos psicológi- A retóricaé uma técnica(technêrëtorike) ou arte (ars oratória)que se desen-
cos, biográficos, sociológicos, histórico-culturais, etc., sobre a literatura. O volveu, desde o século V a. C., primeiro na Magna Grécia (Sicília) e depois na
objecto formal da ciêncialiterária é a literatura qua literatura, ou seja, é a tica, e que consiste num sistema de normas que ensinam a utilizar adequa-
langue, o sistema da literatura. damente a língua com a finalidade deproduzir textos persuasivos, ou, segundo
a formulação mais rigorosa de Aristóteles, uma técnica cuja função é «ver os
O new crítícísm anglo-americano, concebendo embora a poesia como produ-
meios de persuasão que existem relativamente a cada argumento».
tora e veículo de experiênciase significadosdiferentes, e atéopostos, relativa-
mente às experiênciase aos significados da ciência- ciênciaque os 'novos EmAtenas,a retóricafoicultivadae difundidasobretudopêlossofistas,que a
críticos' americanos denunciam como culturalmente maléfica -, concebe o utilizaramhabilmentecomoinstrumentodoseurelativismognoseológicoe do
poema como um objecto que pode e deve ser analisado cientificamente, de seu cepticismo moral e político.
modo racional, coerente, objectivo e rigoroso. «O que é dito sobre o poema»,
escreve W. K. Wimsatt em The verbal icon (1954), um dos livros fundamentais Platão condenou severamente a retórica e os sofístas, pois que a ciência
para o conhecimento das teorias do new criticism, «está sujeito à mesma (epistëmë), em seu entender, deve predominar sobre a opinião (doxa) e a

20 21
verdade nãodeve sercorrompida por venaisvendedores dealimentos daalma.
A retórica, segundo Platão, não proporciona a compreensão racional da
naturezadascoisas;ela é apenasuma manipulaçãoastutadaspalavras, uma
erística, istoé,umaartedadisputae dacontendamentalqueensinaa atacar e
a defender indiferentemente a mesma tese.

Aristóteles contribuiu poderosamente para reabilitar a retórica, articulando


de modo flexível e matizado as relações entre a epistëmëe a doxa e entre o
verdadeiro e o verosímil e sublinhando que, em muitos domínios e casos, não
se pode ir além da «assumpção do que parece aceitável e que é fundado na
opinião». Aristóteles distancia-se do modelo sofista da retórica concebida
como umasedutora e enganosa ginásticamental, masafasta-setambémdeum
modelo de discurso estritamente lógico e, como hoje se diria, altamente
formalizado. A retórica, segundo Aristóteles, tem uma forte conexão com a
lógica, mas tem de atender igualmente a outros factores - o carácter do
orador, as paixões do auditório, as circunstâncias da comunicação, etc. -,
devepreocupar-se com a forma, masdeveigualmente ocupar-sedeconteúdos
psicológicos, éticos, políticos, etc.
A defesa e a reabilitação aristotélicas da retórica encontraram, na cultura
romana, uma formulaçãoperfeita no pensamento de Cícero.
A retórica, sendo embora uma associação de teoria e prática, é um saber de
naturezaeminentementepragmática,istoé,fundamentalmenteligadoa quem
fala e a quem escuta, um saber que desenvolve e orienta a politropia, ou seja, a
capacidade de elaborar diversas espécies de discurso para diversos tipos de
auditório, que ensina a encontrar e a utilizar eficazmente argumentos e que
ensinaa dizerbem,demodo a conseguira adesãodosinterlocutores à opinião
advogada.
A retórica clássica está dividida em cinco partes, cada uma das quais corres-
ponde a um estádio daconstituição dodiscurso: a inventio oua descoberta dos
argumentos; a dispositio ou a distribuiçãoestrutural dosargumentos; a elocu-
tio ou a elaboração verbal dos argumentos; a memória ou a capacidade de
memorizar, utilizando instrumentos mnemotécnicos, o discurso elaborado; a
actio ou pronuntíatio ou a realização do texto, co-envolvendo elementos
prosódicose a gestualidade.
A retórica, como Aristóteles acentuou, diz respeito a matérias que, de certo
modo, todos os homens devem conhecer. Nãose ocupa, por conseguinte, de
um tipo de discurso com características peculiares como é o discurso da
poesia. A descrição e a análise do discurso poético cabiam, .como vimos, à
poética. A partir do século li, todavia, a retórica foi-se distanciando da
dialéctica,esqueceu-seprogressivamente dasuapreocupaçãoprimordial com
o debatepúblicodasideiase opiniõese com a persuasão e, desvalorizando a
inventio e a dispositio, passou a ocupar-se sobretudo da elocutio e do ornato
estilístico (ornatus verborum).
Este processo de literaturização daretórica e deretorização dapoética, que se
intensificou nos últimos séculos da Idade Média e durante o Renascimento e o

22
verdadenãodevesercorrompidaporvenaisvendedoresdealimentosdaalma. Barroco, conduziua um progressivo afastamento entre a lógicae a filosofia,
A retórica, segundo Platão, não proporciona a compreensão racional da por um lado, e a retórica, por outro, convertendo-se esta última disciplina
natureza das coisas; ela é apenas uma manipulação astuta das palavras, uma quase exclusivamente numa taxinomia e num receituário de figuras depalavras
erístíca, isto é, uma arte da disputa e da contenda mental que ensina a atacar e (figurae elocutionis) efíguras de pensamento (figurae sententiae). A vocação
a defender indiferentemente a mesma tese. pragmática da retórica debüitou-se assim até à exaustão.
Aristóteles contribuiu poderosamente para reabilitar a retórica, articulando Com o Romantismo, a retórica, semelhantemente ao que aconteceu com a
de modo flexível e matizado as relações entre a epistëmë e a doxa e entre o poética,foi identificadacom os aspectosmaisestéreise obsoletosdo normati-
verdadeiro e o verosímil e sublinhando que, em muitos domínios e casos, não vismo neoclássico e desagregou-se irremediavelmente. A exaltação romântica
se pode ir além da «assumpçãodo que parece aceitável e que é fundado na da originalidade criadora e do génio, a valorização do sublime e da expressão
opinião». Aristóteles distancia-se do modelo sofista da retórica concebida da individualidadeprovocaram a dissoluçãodas normas e dos modelos sobre
como uma sedutora e enganosa ginástica mental, mas afasta-se também de um os quais se construía a retóricaclássica.A tópica,isto é,o códigodos lugares-
modelo de discurso estritamente lógico e, como hoje se diria, altamente -comuns(topoi, loci communes), das formas e dos temas consagrados,que os
formalizado. A retórica, segundo Aristóteles, tem uma forte conexão com a oradores e os poetas utilizavam como herança anónima, tornou-se equivalente
lógica, mas tem de atender igualmente a outros factores - o carácter do de artificialismo e vacuidade decorativa.
orador, as paixões do auditório, as circunstâncias da comunicação, etc. -,
devepreocupar-secom a forma, masdeveigualmenteocupar-sedeconteúdos
A reabilitaçãodaretórica,apósmais deum séculode eclipse, começou,logo
nos primeiros anos do século XX, com a estilística, que foi buscar muitos
psicológicos, éticos, políticos, etc.
termos e conceitos à antiga retórica, e continuou, cerca de meados deste
A defesa e a reabilitação aristotélicas da retórica encontraram, na cultura século, com a Escola dos Neo-aristotélicos de Chicago, um grupo de teorizado-
romana, uma formulaçãoperfeita no pensamento de Cícero. rés e críticos - R.S. Grane, Richard McKeon, Elder Olson, etc. - que, em
A retórica, sendo embora uma associação de teoria e prática, é um saber de oposiçãoaonewcriticismanglo-americano,valorizoua capacidadedidáctica e
naturezaeminentementepragmática,isto é,fundamentalmenteligadoa quem a força ética da literatura e chamou a atenção para a importância dos leitores
fala e a quem escuta, um saber que desenvolve e orienta a politropia, ou seja, a na construção do significado do texto, ou seja, introduziu perspectivas retóri-
capacidade de elaborar diversas espécies de discurso para diversos tipos de cãsno estudo do fenómeno literário (ébem elucidativo que Wayne Booth, um
auditório, que ensina a encontrar e a utilizar eficazmente argumentos e que dos mais conhecidos representantes da Escola de Chicago, seja autor de duas
ensina a dizer bem, de modo a conseguir a adesão dos interlocutores à opinião obras intituladas The rhetoric offiction e The rhetoric ofirony).
advogada. A chamada nova retórica ou neo-retórica, porém, teve início com a obra de
A retórica clássica está dividida em cinco partes, cada uma das quais corres- Chaïm Perelman e L. Obrechts-Tyteca, La nouvelle rhétorique. Traité de l'ar-
pondea um estádiodaconstituiçãodo discurso:a inventiooua descobertados gumentation(1958),naqualé elaborada,segundoum modelo neo-aristotélico,
argumentos; a dispositioou a distribuiçãoestrutural dos argumentos; a elocu- uma teoria geral da argumentação e se estudam as técnicasdiscursivas ade-
tio ou a elaboração verbal dos argumentos; a memória ou a capacidade de quadas a provocar e a intensificar a adesãodos espíritos àsteses apresentadas,
memorizar, utilizando instrumentos mnemotécnicos, o discurso elaborado; a prestando especial atençãoàs relações existentes entre a situação comunica-
actio ou pronuntiatio ou a realização do texto, co-envolvendo elementos tiva, os destinatários e o discurso. Esta orientação da neo-retórica confluiu
prosódicos e a gestualidade. com correntes de filosofia da linguagem derivadas do pensamento de Witt-
genstein e que, nos anos sessenta, se manifestaram na teoria dos actos de
A retórica, como Aristóteles acentuou, diz respeito a matérias que, de certo
linguagem, na linguística pragmáticae na teoria do texto.
modo, todos os homens devem conhecer. Não se ocupa, por conseguinte, de
um tipo de discurso com características peculiares como é o discurso da A partir de meados da mesma década de sessenta, observou-se um generali-
poesia. A descrição e a análise do discurso poético cabiam,-como vimos, à zado interesse relativamente à retórica por parte dos teorizadores e críticos
poética. A partir do século li, todavia, a retórica foi-se distanciando da literários classificáveis como estruturalistas (Roland Barthes, Gérard Genette,
dialéctica,esqueceu-seprogressivamentedasuapreocupaçãoprimordialcom Tzvetan Todorov, etc. ). A matriz linguística, nos planos epistemológico e
o debatepúblicodas ideiase opiniõese com a persuasãoe, desvalorizando a metodológico,da teoria e da crítica literáriasestruturalistas orientou logica-
inventio e a dispositio, passou a ocupar-se sobretudo da elocutio e do ornato mente a análise para os mecanismos discursivos do texto literário, mas a
estilístico (prnatus verborum). linguística estruturalista só escassamente proporcionava instrumentos ade-
quados de descriçãoe análisedesses mesmos mecanismos. A retóricapodia
Esteprocesso de literaturizaçãoda retóricae de retorizaçãodapoética,que se
fornecer - e forneceu - termos, noções,esquemas analíticos. Alguns concei-
intensificou nos últimos séculos da Idade Média e durante o Renascimento e o
tos nucleares do estruturalismo e da semióticacomo os conceitos de sistema e

22 23
código,quepostulama impossibilidadedaexistênciadeprocessosdiscursivos
radicalmente livres, subjectivos e originais, reintroduziram na concepção da
cultura, em geral, e na concepção das práticas textuais, em particular, um
princípio denormatividadequeapresentasimilitudescomprincípios clássicos
e neoclássicos como o respeito da tradição e a imitação de modelos e que
contribuiu indubitavelmente para a reabilitação da retórica.
Nalguns casos, mais até do que de reabilitação, poder-se-á falar de uma
recuperação fundamentalista da retórica no domínio dos estudos literários. Em
1960, Heinrich Lausberg deu à estampa uma importante obra intitulada
Manual de retórica literária: Fundamentos da ciênciada literatura (Handbuch
der literarischen Rhetorik: Eine Grundlegung der Literaíurwissenschaft,
München, 1960,2 vols. ), na qual a retóricaé entendidanãoapenascomo um
instrumento adjuvante, útil ou até mesmo imprescindível dos estudos literá-
rios, mas como o seu próprio alicerce. Em 1977, um grupo de linguistas,
semiotícistas e teorizadores literários da Universidade de Liège, conhecido
pela designaçãode Grupo /z, expôs no seu livro Rhétorique de la poésieum
conceito de retórica que coincide com o conceito de poética elaborado por
Roman Jakobson: para o Grupo ju, a retórica é a disciplina linguística «que
engloba o estudo dos processos de linguagem que caracterizam, entre outros
discursos, o discurso literário», ao passo que entendepor poéticaa teoria da
poesia strícto sensu, isto é, a poesia como uma manifestação específica da
literatura.

Devetambémserrealçadaa fortecontribuiçãoquea psicanálisedeFreude de


Jacques Lacan deu para a redescoberta e a valorização da retórica, visto que
estabeleceu estreitas relaçõesentre a estrutura e o funcionamento dedispositi-
vos retóricos e as estruturas infra-conscientes da vida psíquica. Segundo as
palavras de Emile Benveniste

o inconsciente usa uma verdadeira «retórica»que, tal como o estilo, tem as


suas «figuras», e o velho catálogo dos tropos forneceria um inventário aos
doisregistos daexpressão. Encontram-se nos doisladostodos osprocessos de
substituiçãoengendrados pelo tabu: o eufemismo, a alusão, a antífrase, a
preterição,a litotes. A naturezado conteúdofaráaparecertodas asvarieda-
dêsdametáfora,poisqueé deumaconversãometafóricaqueossímbolos do
inconsciente tiram o seu significado e, ao mesmo tempo, a sua dificuldade.
Empregam também o que a velha retórica chama a metonímia (continente
por conteúdo)e a sinédoque(parte pelo todo) e se a «sintaxe»dos encadea-
mentos simbólicosevocaum processo de estilo entre todos, esse é a elipse.

Semsubestimara capacidadedescritivae analítica daretórica,nemdesvalori-


zar o seu contributo para os estudos literários, não aderimos à posição
daqueles que consideram a retórica como o fundamento da ciência da litera-
tura. Na literatura de todos os tempos, háelementos e valores que a retórica
não pode explicar, como sejam a representação (mimesis) do homem e do
mundo, a ficcionalidadedos mundospossíveis construídos pêlos textos literá-
rios, asmacroestruturas formais e semânticas dopoema lírico, datragédia,do
romance, etc.

24
1. 6 A crítica literária
código, que postulam a impossibilidade daexistência deprocessos discursivos
radicalmente livres, subjectivos e originais, reintroduziram na concepção da
cultura, em geral, e na concepção das práticas textuais, em particular, um O termo crítica aparece documentado em francês e em italiano no último
princípio denormatividade queapresentasimilitudes comprincípios clássicos quartel do século XVI.Noutras línguas europeias, a sua aparição e um pouco
e neoclássicos como o respeito da tradição e a imitação de modelos e que mais tardia, datando do século XVII.
contribuiu indubitavelmente para a reabilitaçãoda retórica. Este substantivo, tal como o substantivo e o adjectivo crítico, deriva do verbo
Nalguns casos, mais até do que de reabilitação, poder-se-á falar de uma grego krino, que significa 'separar', 'distinguir', 'julgar'.
recuperaçãofundamentalista daretóricanodomínio dosestudosliterários. Em No léxicodos humanistas do Renascimento, a arte crítica (ars critica) é um
1960, Heinrich Lausberg deu à estampa uma importante obra intitulada saber que, estreitamente ligado à gramática e à filologia, dizrespeito à recons-
Manual de retórica literária: Fundamentos da ciência da literatura (Handbuch tituição, correcção e edição de textos antigos, separando, por exemplo, os
der literarischen Rhelorik: Eine Grundlegung der Literaturwissenschaft, versos interpolados dos versos autênticos, apurando autorias, etc. Deste signí-
München, 1960, 2 vols. ), na qual a retórica é entendida não apenas como um ficado, que equivale, no fundo, a crítica textual ou ecdótica, o vocábulo
instrumento adjuvante, útil ou até mesmo imprescindível dos estudos literá- 'crítica' passoua ter o significadodeapreciaçãoe juízo deumautoroudeuma
rios, mas como o seu próprio alicerce. Em 1977, um grupo de linguistas, obra baseados no bom gosto e na cultura, autonomizando-se progressíva-
semioticistas e teorizadores literários da Universidade de Liège, conhecido mente o seu uso em relação à gramática e à retórica.
pela designação de Grupo ju, expôs no seu livro Rhétorique de la poésie um Os mais autorizados historiadores da génesee do desenvolvimento da crítica
conceito de retórica que coincide com o conceito de poética elaborado por literária como instituição de cultura -e. g., René Wellek e Peter Uwe Hohen-
Roman Jakobson:para o Grupo ju, a retóricaé a disciplinalinguística «que dahl- estãodeacordoemsituaro início dasuahistóricacercademeadosdo
englobao estudo dosprocessosde linguagemquecaracterizam,entre outros século XVIII, quando o sistema do neoclassicismo começa a fracturar-se e se
discursos, o discurso literário», ao passo que entende por poética a teoria da manifestamnovas correntes de sensibilidadee degosto, quando sedesenvol-
poesia stricto sensu, isto é, a poesia como uma manifestação específica da vem novos génerose subgéneros e seconstitui um público alargado e hetero-
literatura.
géneo. A crítica literária desempenhou para este público novo, predominan-
Devetambém serrealçada a forte contribuição que a psicanálise deFreud e de temente de origem burguesa, uma função de esclarecimento e orientação
Jacques Lacan deu para a redescoberta e a valorização da retórica, visto que - umafunçãoimportante nãosósobo ponto devistadaformaçãodogosto e
estabeleceu estreitas relações entre a estrutura e o funcionamento de dispositi- da discriminação de valores estéticos, mas também, indirectamente, sob o
vos retóricos e as estruturas infra-conscientes da vida psíquica. Segundo as ponto de vista da formação e difusão de valores ideológicos, morais e
palavras de Emile Benveniste políticos.
o inconsciente usa uma verdadeira «retórica» que, tal como o estilo, tem as A expressão crítica literária tem apresentado, nas diversas línguas, significa-
suas «figuras», e o velho catálogo dos tropos forneceria um inventário aos dos diversos e até contrapostos, designando tanto a apreciação valorativa e
doisregistos daexpressão. Encontram-se nos doislados todos osprocessos de judicativa, em artigos publicados emrevistas e jornais nãoespecializados, das
substituição engendrados pelo tabu: o eufemismo, a alusão, a antífrase, a obras literárias recentemente aparecidas, como o estudo rigoroso, muitas
preterição,a litotes. A naturezadoconteúdofaráaparecertodasasvarieda- vezes com preocupações e aspirações de rigor científico, de textos literários
dêsdametáfora, pois que é deuma conversão metafórica que os símbolos do
não contemporâneos do crítico.
inconscientetiram o seu significadoe, ao mesmo tempo, a sua dificuldade.
Empregamtambémo que a velharetóricachamaa metonímia (continente Se na língua alemã, como já ficou dito, o termo crítica literária (Literatur-
por conteúdo)e a sinédoque(partepelotodo)e sea «sintaxe»dosencadea- kritik) é utilizado, desde o século XIX, para designar aquela primeira modali-
mentossimbólicosevocaum processo de estilo entre todos, esse é a elipse. dade de crítica, contrapondo-se o seu significado ao do termo Literatur-
wissenschaft, isto é, os estudos literários rigorosos, objectivos, científicos,
Semsubestimar a capacidade descritiva e analítica daretórica, nem desvalori- realizados nas instituições universitárias, já noutras línguas (francês, italiano,
zar o seu contributo para os estudos literários, não aderimos à posição espanhol, português, inglês, etc. ), o mesmo termo abarca tanto a poética como
daqueles que consideram a retórica como o fundamento da ciência da litera- a crítica impressionista, tanto a história literária como a hermenêutica, etc.
tura. Na literatura de todos os tempos, há elementos e valores que a retórica
Pensamos que,nalógicae naeconomia conceptual e terminológica docampo
não pode explicar, como sejam a representação (mimesis) do homem e do dos estudos literários, o conceito de crítica literária deve ser claramente
mundo, a ficcionalidade dos mundos possíveis construídos pêlos textos literá- diferenciado em relação ao conceito de teoria da literatura ou poética e em
rios,asmacroestruturasformaise semânticasdopoemalírico, datragédia,do
romance, etc.

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relação ao conceito dehistórialiterária. A crítica literária é o estudo deum
texto literário concreto ou de um determinado conjunto de obras literárias,
diferentemente dateoriadaliteratura e dahistórialiterária, e podeapresentar
tanto uma orientação diacrónica como uma orientação sincrónica, pode
ocupar-se tanto deaspectos estilísticos e retóricos como deaspectos temáticos
ousemânticos,podeconstituir-se quercomopsicocrítica quercomosociocrí-
tica, etc.

Alguns autores advogam a concepção dacrítica literária como um discurso


obj"ectivo, estritamente descritivo e analítico, sema interferência dasubjecti-
vidadedocrítico e dosseusjuízos e apreciaçõesdevalor. A crítica literária é
assimconcebidacomoumprocesso deconhecimento e comoumdiscursoque
se integram no âmbito da estrita racionalidade científica. Esta é a posição
defendida, por exemplo, por Northrop Frye, um dos mais importantes e
influentes teorizadores e críticos literários contemporâneos.

Uma concepção radicalmente diversa é perfilhada pelo chamado impressio-


nismo crítico, que disfrutou de grande fortuna no final do século XIX e no
começo do século XX, segundo o qual a crítica literária deve exprimir as
impressõesdesencadeadasnasensibilidadedocrítico pêlostextosliterários.
Com distintas fundamentações e modulações diversas, encontra-se similar
entendimentodanaturezadacrítica literáriaemtodasascorrentesqueconce-
bem o acto crítico como a manifestação de uma identificação da alma do
crítico coma almadoescritor e coma obra,numdiálogodeamore admiração
- como em CharlesDuBos(1882-1939)-, como a respostaqueo criticovai
construindo aolongodasuaexperiênciadeleitor- comoemStanleyFish-,
ou como umanegociaçãoou transacçãoentre aspercepções, os afectos e as
associações pessoais do crítico e o texto - como em David Bleich e Norman
Holland.

Umaterceiravia- quanto a nósa maisajustadateoreticamente e também a


mais fecunda - é aquela representada, por exemplo, por RenéWellek. A
teoria da literatura pode constituir-se como uma teoria científica, ou seja,
comoumconjunto sistemático dedefinições, conceitos, proposições e hipóte-
sésque,dependendo deaxiomas,pressupostos e dadosempíricos, é passível de
ser submetido a provas de refutação e descreve e explica um determinado
domínio de fenómenos. A crítica literária pode e deve utilizar elementos e
instrumentos de ordem científica que a teoria da literatura elabora, pode e
deve cultivar a precisão terminológica e conceptual e o rigor metodológico
podee deve,enfim,evitaro radicalrelativismognoseológico,masnãopoderá
nunca constituir-se como um conhecimento estritamente científico, porque o
seuobjecto deestudo- a obraliterária concreta, individual - seeximea tal
tipodeconhecimento. A crítica literária,nasuacompreensãodaobra temde
desenvolver operações interpretativas que co-envolvem a subjectividade, a
historicidadee o universo de valores do crítico-leitor.

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relação ao conceito de história literária. A crítica literária é o estudo de um 1. 7 A história literária
texto literário concreto ou de um determinado conjunto de obras literárias,
diferentemente dateoria daliteratura e dahistórialiterária, e pode apresentar A história literária nasceu e desenvolveu-se no seio do Romantismo alemão,
tanto uma orientação diacrónica como uma orientação sincrónica, pode assimilando e reelaborando ideias e tendências que procediam da segunda
ocupar-setantodeaspectosestilísticos e retóricoscomodeaspectostemáticos metade do século XVIII.
ou semânticos,pode constituir-se quercomo psicocrítica quercomo sociocrí-
tica, etc.
Nos últimos anos de Setecentos, ocorreu uma grande ruptura nas camadas
mais profundas do pensamento europeu, uma mutaçãoradical que transfor-
Alguns autores advogam a concepção da crítica literária como um discurso mou todas as formas do saber: a passagem da Ordem clássicaà História, à
objectivo, estritamente descritivo e analítico, sem a interferência da subjecti- História que, segundo a brilhante análise de Michel Foucault, não é apenas «a
vidade do crítico e dos seus juízos e apreciações de valor. A crítica literária é colecção das sucessões de facto, tais como puderam ser constituídas», mas é
assimconcebidacomoumprocessodeconhecimentoe comoumdiscursoque sobretudo «o modo fundamental de ser das empiricidades, aquilo a partir do
se integram no âmbito da estrita racionalidade científica. Esta é a posição qual elas se afirmam, se apresentam, se dispõem e se repartem no espaço do
defendida, por exemplo, por Northrop Frye, um dos mais importantes e saber para conhecimentos eventuais e para ciências possíveis» (Michel Fou-
influentes teorizadores e críticos literários contemporâneos. cault, Lêsmots et lês choses. Paris, 1966, p. 231).

O Romantismo, desenvolvendo o pensamento de alguns grandes pioneiros


Uma concepçãoradicalmente diversa é perfilhadapelo chamado impressio-
como Viço e Herder, construiu e difundiu uma concepção histórica do homem
nismo crítico, que disfrutou de grande fortuna no final do século XIX e no
e das suas criações culturais, transferindo-os, do teatro universal e atemporal
começo do século XX, segundo o qual a crítica literária deve exprimir as
em que a Ordem clássica os situava, para um espaço e um tempo concretos e
impressões desencadeadas na sensibilidade do crítico pêlos textos literários.
mutáveis.
Com distintas fundamentações e modulações diversas, encontra-se similar
entendimentodanaturezadacrítica literáriaemtodasascorrentesqueconce- O ano da publicação, em 1815, da História da literatura antiga e moderna de
bem o acto crítico como a manifestação de uma identificaçãoda alma do FriedrichSchlegelpodeserescolhidocomo a datasimbólicado nascimentoda
crítico com a alma do escritor e com a obra, num diálogode amor e admiração história literária. Friedrich Schlegel estuda a literatura - então um termo e
- como em CharlesDu Bos(1882-1939)-, como a respostaque o crítico vai um conceito relativamente recentes, como veremos - como expressão e
construindo aolongo dasuaexperiênciadeleitor - como em Stanley Fish-, manifestaçãodas naçõese dos povos, ligadaa outras manifestaçõesda civili-
ou como uma negociação ou transacção entre as percepções, os afectos e as zação e da cultura como a língua, a religião, o folclore, etc. A literatura devia
associações pessoais do crítico e o texto - como em David Bleich e Norman ser estudada no seu desenvolvimento orgânico, nas suas várias épocas,
Holland. procurando-sereconstituira complexainteracçãoexistenteentrea herançae a
criatividade individual e relacionar os autores e as obras com os grandes
Uma terceira via - quanto a nós a mais ajustada teoreticamente e também a movimentos espirituais e culturais da sua época, com os acontecimentos
mais fecunda - é aquela representada, por exemplo, por René Wellek. A políticos do seu tempo, com a sociedade de que faziam parte, etc.
teoria da literatura pode constituir-se como uma teoria científica, ou seja,
como um conjunto sistemático de definições, conceitos, proposições e hipóte- A histórialiteráriacontraiu, logo no período romântico,aliançascom outros
sésque,dependendodeaxiomas,pressupostose dadosempíricos, é passível de saberesquehaveriamdea marcarduradouramente. Porum lado, relacionou-
ser submetido a provas de refutação e descreve e explica um determinado -se com a filologia, ciência então florescente e de fundamental importância
domínio de fenómenos. A crítica literária pode e deve utilizar elementos e para a reconstituição e a compreensão dos textos literários do passado, em
instrumentos de ordem científica que a teoria da literatura elabora, pode e particular dos textos literários medievais; por outro lado, recolheu daerudição
deve cultivar a precisão terminológica e conceptual e o rigor metodológico, do séculoXVIIIo seupendorfactualista. Estefactualismoacentuar-se-ácom o
pode e deve, enfim, evitar o radical relativismo gnoseológico, masnãopoderá positivismo e manifestar-se-á então, em confronto com a crítica literária
nunca constituir-se como um conhecimento estritamente científico, porque o impressionista, como uma exigência capital, nos planos epistemológico e
seu objecto de estudo - a obra literáriaconcreta, individual- se exime a tal metodológico, da história literária: o respeito pêlos factos será entendido e
tipo de conhecimento. A crítica literária, na sua compreensão da obra, tem de apresentado como garantia da objectividade da história literária.
desenvolver operações interpretativas que co-envolvem a subjectividade, a
historicidade e o universo de valores do crítico-leitor. No campo dos estudos literários, b século XIXfoi por excelênciao século da
história literária. A síntese amadurecida da disciplina, tanto na teoria como na
prática, foi elaborada por Gustave Lanson (1857-1934), de tal modo que o

26 27
vocábulo lansonismo passou a designar, especialmente na cultura de língua
francesa, o método histórico-literário.

Desdeasprimeiras décadasdoséculoXX,porém,multiplicaram-se ossinaisde


crise da história literária - uma crise que resultou também dos exageros e
abusos a que deu lugar o método histórico-literário (erudição, factualismo,
biografismo, desatençãorelativamente aoselementos estéticos, etc. ), masque
foi originadasobretudo pela crise do próprio conceito dehistóriaconstruído
pelo Romantismo.

Os grandes movimentos de teoria e crítica literárias da primeira metade do


século - o formalismo russo, o new criticism anglo-americano, a estilística
- subestimarama diacronia,isto é,a perspectivahistórico-evolutivanaaná-
lise dos textos literários e prestaram reduzida atenção ao contexto histórico-
-cultural e à cronologia, valorizando, em contrapartida, a sincronia, isto è, a
perspectiva sistémico-funcional que ignora a história como processo de
^ mudança, o estudo imanente dos textos, ou seja, o estudo dos textos na sua
estrutura formal e semântica, sem recurso a factores intrínsecos (biografia,
intencionalidade autoral, fontes, influências, etc. ).
A crisedahistórialiteráriatem algo a vertambémcom a própriaontologia dos
textos literários e com a resistência que essa ontologia oferece à indagação e à
análisehistóricas.Com efeito, o historiadorliteráriotrabalhacomtextos que,
produzidos num dado tempo histórico e marcados por esse mesmo tempo,
transcendem, enquanto monumentos artísticos, os limites e as características
desse tempo histórico.
Comoacontecemuitasvezes,a criseoriginoua renovaçãodaprópriahistória
literária.O formalismorusso,nasuafasedeamadurecimento,reconheceuque
o conceito de sistema literário não é refractário ao tempo histórico e que se
tornanecessáriosuperara oposiçãoentrediacroniae sincronia, entre a noção
de sistema e a noção de evolução, pois que «cada sistema nos é obrigatona-
mente apresentado como uma evolução e que, por outro lado, a evolução tem
inevitavelmente um carácter sistemático».

A semiótica, ao demonstrar a importância dos sistemas e dos códigos na


produção e na recepção dos textos literários, demarcou um novo território
para o conhecimento do qual se torna indispensável o concurso da história
literária. Como se constituem esses sistemas e códigos, que são entidades
históricas? Como se modificam estas entidades no fluir da história? Qual a
origem e qual a evolução dos processos literários que, numa determinada
época,configuram a literariedade? Quaisasarticulações da semiose literária
com os sistemas de valores ideológicose com o sistema social?
Por outro lado, a história literária, como já Gustave Lanson, aliás, tinha
ensinado, tem de se ocupar dos fenómenos que configuram a literartura como
instituição. Tem de analisar os agentes e os mecanismos daprodução literária
- quem escreve, quem edita, quais oscircuitos dedifusão dostextos, quais as
instâncias dopoder intervenientes nestes processos produtivos - e osagentes

28
e osmecanismos darecepção literária - quem lê,como selê,onde selê,quem
vocábulo lansonismo passou a designar, especialmente na cultura de língua ensina ou orienta a leitura, etc.
francesa, o método histórico-literário.
DesdeasprimeirasdécadasdoséculoXX,porém,multiplicaram-se ossinaisde
crise da história literária - uma crise que resultou também dos exageros e 1. 8 A estilística
abusos a que deu lugar o método histórico-literário (erudição, factualismo,
biografismo, desatençãorelativamente aoselementos estéticos,etc. ), masque O termo estilística, que fez a sua aparição nas. principais línguas europeias
foi originada sobretudo pela crise dopróprio conceito dehistóriaconstruído durante o séculoXIX,sónosprimeiros anosdonossoséculopassoua designar
pelo Romantismo. uma orientação específica de estudo dos textos literários - o estudo do seu
estilo, do modo peculiar como em cada obra está plasmada e utilizada a
Os grandes movimentos de teoria e crítica literárias da primeira metade do linguagem verbal.
século - o formalismo russo, o new criticism anglo-americano, a estilística
- subestimarama diacronia,isto é,a perspectivahistórico-evolutivanaanà- Nãoé de estranhar que a estilística tenha nascido em estreita conexão com a
lise dos textos literários e prestaram reduzida atenção ao contexto histórico- linguística. Um dos seus fundadores foi Charles Bally (1865-1947), linguista
-cultural e à cronologia, valorizando, em contrapartida, a sincronia, isto é, a suíço discípulo deSaussure,queem1909publicouumaobrafamosae delarga
perspectiva sistémico-funcional que ignora a história como processo de influenciados destinos da estilística - o Traité de stylistique française. A
mudança, o estudo imanente dos textos, ouseja, o estudo dos textos na sua linguagem, segundo Bally, constitui um sistema de meios de expressão «que
estrutura formal e semântica, sem recurso a factores intrínsecos (biografia, exteriorizaa parteintelectualdonossoserpensante»;todavia,comoo homem
intencionalidadeautoral, fontes, influências,etc.). estáescravizado pelo seueu, no qual serefracta toda a realidade, a linguagem
exprime não só ideias, mas principalmente sentimentos. A disciplina que
A crisedahistórialiteráriatemalgoa vertambémcoma própriaontologia dos estuda osvalores afectivos dalinguagem deuBally a designaçãodeestilística.
textos literários e com a resistência que essa ontologia oferece à indagação e à Depois dedelimitados e identificados osfactosexpressivos, a estilística anali-
análisehistóricas.Comefeito,o historiadorliteráriotrabalhacomtextosque, sara os seus caracteres afectivos, os meios utilizados pela língua para os
produzidos num dado tempo histórico e marcados por esse mesmo tempo, produzir e, finalmente, o sistema expressivo de que tais factos fazemparte
transcendem, enquanto monumentos artísticos, os limites e as características integrante.
desse tempo histórico.
Charles Bally exclui do âmbito da estilística quer o estudo dos meios de
Como acontece muitas vezes,a criseoriginou a renovaçãodaprópriahistória expressão da linguagem em geral - uma tarefa que, pela sua amplidão, é
literária. O formalismo russo, nasuafase de amadurecimento, reconheceu que impensável -, quer a análise do «sistema de expressão de um indivíduo
o conceito de sistema literário não é refractário ao tempo histórico e que se isolado»,porque tal análiseé muito precáriae mesmo impraticável doponto
torna necessário superar a oposiçãoentre diacronia e sincroma, entre a noção de vista metodológico, sobretudo quando o indivíduo utiliza a língua com
de sistema e a noção de evolução, pois que «cadasistema nos é obrigatoria- umaintençãoestética.Bally afastaexplicitamente dodomínio daestilística a
menteapresentado comoumaevoluçãoe que,poroutro lado,a evoluçãotem linguagem literária,fruto deumesforçovoluntário e deumaintencionalidade
inevitavelmente um carácter sistemático». estética,estabelecendo queo objecto deestudodaestilística deveráserconsti-
A semiótica, ao demonstrar a importância dos sistemas e dos códigos na tuído tão-somente pêlos «factos de expressão de um idioma particular»,
produção e na recepção dos textos literários, demarcou um novo território considerados num determinado estádio da sua história e colhidos na língua
parao conhecimento doqual setorna indispensávelo concurso dahistória faladae espontânea. Querdizer,a estilística deBallyé umadisciplinaestnta-
literária. Como se constituem esses sistemas e códigos, que são entidades mente linguística, deliberadamente alheada dos problemas suscitados pela
históricas? Como se modificam estas entidades no fluir da história? Qual a utilização~estéticadalinguagem:é umaestilística dalíngua e nãoumaestilís-
origem e qual a evolução dos processos literários que, numa determinada tíca da fala, e é uma ciência da norma, isto é, uma disciplina empenhada no
época, configuram a literariedade? Quais asarticulações dasemiose literária estudo das variantes normais que, num dado idioma, possuem valor
com os sistemas de valores ideológicos e com o sistema social? expressivo-afectivo.

Por outro lado, a história literária, como já Gustave Lanson, aliás, tinha A estilística literária, também conhecidapela designaçãodecrítica estilística,
ensinado, tem de se ocupar dos fenómenos que configuram a literatura como constituiu-se noutra atmosfera filosófica e sob diferentes influências. A sua
instituição. Tem deanalisar osagentes e osmecanismos daprodução literária origem encontra-se na linguística idealista de Karl Vossler (1872-1949) e,
- quem escreve, quem edita, quais oscircuitos dedifusão dostextos, quais as indirectamente, no pensamento estético de Benedetto Croce (1866-1952).
instânciasdopoderintervenientes nestesprocessos produtivos - e osagentes

29

28
Na sua Estética come scienza deli'espressione e linguistica generale (1952),
Croce definiu a arte como intuição-expressão e identificou-a com a linguagem,
pois também estaé expressão, criaçãofantásticae individual. Nasuaobrade
maturidade intitulada La poesia (1936), Croce aprofundou e desenvolveu a
ideia, já formulada por Giambattista Viço (1660-1744), de que a poesia e a
linguagem são essencial e primordialmente idênticas, embora nesta obra o
grande pensador italiano admita já a existência de actos linguísticos irredutí-
veis à poesia. Assim, em aberta atitude polémica frente ao positivismo, Croce
apresentava a linguagem como um acto espiritual e criador e, contra asteorias
intelectualistase logicistas,concebiaa linguagemcomoexpressãodafantasia.
Daqui resultou coerentemente outra identificação estabelecida por Croce: a
identificação da estética com a linguística, visto que «asexpressões da lingua-
gem não podem ser interpretadas, apreciadas e julgadas senão como expres-
soes da poesia». Quer dizer, segundo Croce, não existe qualquer realidade
linguística objectiva, de carácter social e comunitário - como a langue de
Saussure -, independentemente dos indivíduos singulares: existem, sim, actos
linguísticos individuais, livres criações do espírito, que apenas podem ser
adequadamente estudados se for tomada em consideração a sua natureza
poética. Correlativamente, o estudo da poesia tem de ser realizado tomando
necessariamente em conta a sua linguagem: «se poesia e linguagem não são
duas,masuma, o estudodapoesianãopodefazer-seprescindindodalingua-
gem do poeta».

Karl Vossler aceitou esta doutrina crociana sobre a natureza profunda da


linguageme dapoesia,concebendoa linguagemcomo«actividadepuramente
teorética,intuitivae individual:portanto,arte.Todoo indivíduo queexprime
uma impressão espiritual, cria intuições, produz formas de linguagem. Cada
uma destas criaçõeslinguísticas tem o seu valor artístico, que pode ser um
valor integral,próprioe perfeito, ou um fragmentodevalor, umaobra-prima
ou uma inépcia». Estas palavras, que se lêem na sua obra Positivismo e
idealismo na ciência da linguagem (1904), revelam como Vossler se situa na
linha de rumo das teorias linguísticas de Viço e de von Humboldt e de outros
pensadores idealistas maisrecentes como Croce, segundo asquaisa linguagem
é energeia,actividadeespirituale criadora,intuiçãoe expressãodo espírito, e
não ergon, um conjunto de materiais, um organismo natural submetido a leis
imutáveise cuja essênciaseimpõedeterministicamenteaoindivíduo. A disci-
plina que estuda a linguagem «enquanto criação teorética individual e artís-
tica», enquanto expressão do espírito e criatividade estética, concedeu Karl
Vossler a designaçãode estilística ou crítica estética.
Por conseguinte, a estilística representa para Vossler o fundamento de toda a
linguística, visto que a linguagem é primordialmente poesia; e constitui igual-
mente o fundamento dos estudos literários, da crítica estético-literáriajá que
a poesia é essencialmente linguagem. Em lugar de estudos biografistas, socio-
lógicos, psicológicos, etc., a obra poética exige o estudo do seu texto, da sua
linguagem e dahistóriado idioma em queestáescrita, porque a língua aparece
comoa matrizquealimentaa potencialidadeartística doescritor, constitui«a

30
Na sua Estética come scienza dell'espressione e linguistica generale (1952), atmosfera espiritual em que forçosamente há-derespirar e crescer e formar-se
Croce definiu a arte como intuição-expressão e identificou-a com a linguagem, o génio artístico individual».
pois também esta é expressão, criaçãofantástica e individual. Na sua obra de Em conclusão: diferentemente da estilística de Charles Bally, a estilística de
maturidade intitulada La poesia (1936), Croce aprofundou e desenvolveu a Vosslertem como objecto deestudoa linguagemcomo criaçãoartística e, mais
ideia, já formulada por Giambattista Viço (1660-1744), de que a poesia e a particularmente, a linguagem literária enquanto criação individual. E uma
linguagem são essencial e primordialmente idênticas, embora nesta obra o estilística da fala, embora em vários dos seus estudos, nos quais são mais
grandepensadoritalianoadmitajá a existênciadeactoslinguísticos irredutí- acentuados os interesses histórico-culturais, Vossler tenha realizado impor-
veisà poesia.Assim, em abertaatitudepolémicafrente aopositivismo, Croce tantes investigaçõesno domínio da estilística da língua.
. apresentavaa linguagemcomoumactoespirituale criadore,contraasteorias
intelectualistas e logicistas, concebia a linguagem como expressão dafantasia. Do pensamento e da obra de Karl Vossler dependem, directa ou indirecta-
Daquiresultou coerentemente outra identificaçãoestabelecidapor Croce: a mente, as mais ricas e frutuosas orientaçõesda estilística literária, dentre as
identificação da estética com a linguística, visto que «as expressões da lingua- quais salientamos as de Leo Spitzer, Helmut Hatzfeld, Amado Alonso e
gem não podem ser interpretadas, apreciadas e julgadas senão como expres- Dámaso Alonso.
soes da poesia». Quer dizer, segundo Croce, não existe qualquer realidade
linguística objectiva, de carácter social e comunitário - como a langue de
Saussure -, independentemente dos indivíduos singulares: existem, sim, actos
1.9 A interdisciplinaridadeno campo dos estudos literários
linguísticos individuais, livres criações do espírito, que apenas podem ser
adequadamente estudados se for tomada em consideração a sua natureza
poética. Correlativamente, o estudo da poesiatem de ser realizadotomando No campo dos estudos literários, como se deduz facilmente de quanto atrás
necessariamente em conta a sua linguagem: «se poesia e linguagem não são ficou exposto, a interdisciplinaridade desempenha um papel extremamente
duas, mas uma, o estudo da poesia não pode fazer-se prescindindo da lingua- importante. As diversas disciplinas do campo buscam com frequência funda-
gem do poeta». mentos, conceitos e instrumentos operatórios, modelos descritivos e analíti-
Karl Vossler aceitou esta doutrina crociana sobre a natureza profunda da
cos, etc., noutrasdisciplinas,estabelecendocom elasumaarticulaçãomaisou
menos profunda. Assim acontece com a linguística, a semiótica, a filosofia, a
linguagem e dapoesia, concebendo a linguagem como «actividade puramente
história das ideias, a sociologia, a psicanálise, etc.
teorética,intuitivae individual:portanto, arte. Todo o indivíduo queexprime
uma impressão espiritual, cria intuições, produz formas de linguagem. Cada Esta interdisciplinaridade é requerida pela natureza plurímoda da própria
uma destas criações linguísticas tem o seu valor artístico, que pode ser um literatura, entendida quer como sistema semiótica, quer como instituição,
valor integral, próprio e perfeito, ou um fragmento de valor, uma obra-prima quer como corpus textual.
ou uma inépcia». Estas palavras, que se lêem na sua obra Positivismo e
idealismo na ciência da linguagem (1904), revelam como Vossler se situa na A interdisciplinaridadesóseráfecunda,todavia,senãodegenerarem 'coloni-
linha de rumo das teorias linguísticas de Viço e de von Humboldt e de outros zação disciplinar'. No fundo, o que está em causa é a própria natureza do
pensadores idealistas mais recentes como Croce, segundo as quais a linguagem objecto formal das várias disciplinas que integram o campo dos estudos
literários.
é energeia,actividadeespirituale criadora,intuiçãoe expressãodo espírito, e
nãoergon,um conjunto demateriais,um organismonatural submetidoa leis
imutáveis e cuja essência se impõe deterministicamente ao indivíduo. A disci-
plina que estuda a linguagem «enquantocriaçãoteoréticaindividuale artís-
tica», enquanto expressão do espírito e criatividade estética, concedeu Karl
Vossler a designaçãode estilística ou crítica estética.
BIBLIOGRAFIA ACONSELHADA
Por conseguinte,a estilística representaparaVosslero fundamentodetoda a
linguística, visto quea linguagemé primordialmentepoesia;e constituiigual- ANGENOT, Maré (eds.) et al, Théorie íittéraire. Paris, PUF, 1989
mente o fundamento dos estudos literários, da crítica estético-literáriajáque
a poesiaé essencialmentelinguagem. Emlugardeestudosbiografistas,socio- DELCROIX, Maurice, HALLYN, Fernando, Méthodes du texte. Introduction aux
lógicos,psicológicos,etc., a obra poéticaexige o estudo do seu texto, da sua eludes littéraires, Paris-Gembloux, Duculot, 1987.
linguagem e da história do idioma em que estáescrita, porque a língua aparece
como a matriz que alimenta a potencialidade artística do escritor, constitui «a DOMINGUEZ CAPARRÓS,José, Crítica literária, Madrid, UNED, 2l989.

30 31
FAYOLLE, Roger, La critique litléraire, Paris, A. Colin, 1978.
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1981.

HOHENDAHL, Peter Uwe, The institution of criticísm, Ithaca-London, Cornell


University Press, 1982.

WELLEK,René,Concepts ofcriticism, NewHaven-London, YaleUniversity Press,


1963.

32

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