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Universidade Federal Fluminense

Departamento de Psicologia
Profª Drª Giselle Falbo Kosovski
Alune: Filipi Dias de Souza Malta

Resenha do artigo “Psicanálise e arte: uma articulação a partir da não-relação em Louise


Bourgeois: O Retorno do Desejo Proibido”

Desde seu princípio, a relação entre psicanálise e arte vem sendo tematizada por
diversos psicanalistas, e mesmo por Freud, tendo como interesse a sua finalidade para o
sujeito e o próprio ato da criação, e o modo como ela pode expressar o desvelamento do
artista que a produz, permitindo sua análise. Tal concepção de leitura do artista por sua obra -
a chamada psicografia - é amplamente criticada por Lacan em seu ensino, como por exemplo
em seu trabalho Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise (1998[1953]),
onde ele se vê às voltas de realizar três importantes críticas à psicanálise, sendo uma delas ao
insuflamento do imaginário, onde os pós-freudianos estariam negligenciando os estudos da
linguagem. A consequência dessa negligência tem uma importante relação com a questão da
arte, pois essa exagerada importância dada ao campo do imaginário, que provinha fortemente
da psicanálise com crianças a partir da noção de que linguagem coincide com o ato da fala,
permitia uma série de interpretações reducionistas pela noção das fantasias em relação a
constituição do objeto, em outras palavras, trata-se de reduzir a experiência do infante a um
certo horizonte de sentido previamente estabelecido. Lacan fará essa crítica também em seu
Seminário Os Escritos Técnicos de Freud:

Melanie Klein enfia o simbolismo, com a maior brutalidade, no pequeno Dick. Ela
começa jogando imediatamente em cima dele as interpretações maiores. Ela o joga
numa verbalização brutal do mito edípico, quase tão revoltante para nós quanto para
qualquer leitor - Você é o trenzinho, você quer foder a sua mãe. (LACAN, 1996
[1954] p.84, grifo do autor)

No trecho “Ela começa jogando imediatamente em cima dele as interpretações


maiores", temos o ponto central à crítica das psicografias, afinal, a arte se apresenta como
uma operação significante que revela o vazio, próprio da estrutura desejante (KOSOVSKI…).
Por se tratar de uma operação desse tipo, seu sentido só pode se apresentar em relação com
outros significantes, colocando em jogo a temática da criação, e tornando a leitura da obra de
arte irredutível à mera dimensão fantasmática, não podendo ser elucidada somente por ela.
Assim, com relação ao processo criativo, Kosovski (2016) irá ressaltar também, por
outro lado, esse caráter de irredutibilidade à dimensão fantasmática como forma de pensar a
finalidade da arte para o artista, em sua leitura da obra de Louise Bourgeois: “Como a práxis
psicanalítica recorrentemente desvela, não basta haver traumas, obsessões, angústias ou
recalques para se construir obras de arte” (ibid, p. 451). No entanto, não trata-se de descartar a
importância do imaginário neste processo de criação, afinal, o artista não pode prescindir do
véu imaginário ao “elevar um objeto qualquer à dignidade da Coisa” (ibid.).
Mas qual seria, então, a finalidade da arte para o artista? Para essa pergunta, abre-se
um leque de questões, afinal, há uma disjunção entre o campo da psicanálise e da arte, muito
embora ambas sejam formas de tratar com o Real, elas não coincidem. Por isso, o
entendimento de como a arte se traduz para o artista é propriamente uma questão que
responde aos interesses do saber psicanalítico, e sua transposição para o campo das artes
como um saber absoluto é alarmante. A psicanálise, dessa forma, não poderia reivindicar,
então, o estatuto de um entendimento sobre a arte - dado que seria mais interessante colocar
“as artes” devido a sua pluralidade - pois seu saber está atrelado necessariamente ao amor
transferencial, à relação entre paciente e analista, de modo que não é possível nem mesmo
afirmar o inconsciente fora da clínica: “C’est exactement ce que je dis. Nous n’avons pas
moyen de savoir si l’inconscient existe hors de la psychanalyse” (LACAN, 1976, p.25).
Assim, a questão da finalidade da arte para o artista não pode ser explicada pela
psicanálise, porém, o fenômeno da criação da obra de arte tem um caráter muito útil para a
discussão de diversas questões dentro da teoria, como:

aos paradoxos das satisfações humanas; à repetição e criação do novo; ao objeto em


jogo no fascínio e na angústia; à catarse e purgação dos afetos; à estrutura e função
da fantasia; aos problemas postos pela estética, ou seja, pela economia do prazer e da
dor; à edificação do imaginário e do corpo próprio, entre outros tantos assuntos a
serem estudados (KOSOVSKI, 2016, p. 443).

Dessa maneira, uma das discussões mais importantes em relação à finalidade da arte e
o seu aspecto criativo se dão a partir do conceito de sublimação. O artista parece se situar em
uma posição peculiar em relação ao gozo, pois não o contorna como o neurótico, mas pode
gozar por meio de sua obra, sustentando o vazio e a angústia do impossível. Essa
particularidade que a arte possibilita é uma questão fundamental para Lacan, principalmente
em torno do final de seu ensino, no “Seminário 23: O sinthoma”, em que Lacan, ao ler a obra
de James Joyce, começa a teorizar sobre o quarto registro, aquele que sustenta o vínculo entre
os outros 3 (imaginário, simbólico e Real), entendendo que por meio da escrita, Joyce pode
construir um enodamento que permitiu sua estabilização.
A arte tem se mostrado, então, como um elemento essencial para a teoria psicanalítica,
pois permite pensar nesse tratamento direto com a diferença que o artista pode operar, que não
necessariamente se dará por meio de um contorno ao vazio. É justamente por essa estrutura de
pura diferença, não-toda, que se pode pensar também as particularidades da relação entre a
arte e a psicose, já que na clínica estrutural de Lacan se entende que na psicose não há a
inscrição do Nome-do-pai, assim, não havendo o representante da representação, o sujeito não
está inscrito na significação fálica e, portanto, faltosa, marcando um modo singular de existir.
Talvez assim se possa dizer que como a Mulher, como a arte, a psicose é também não-toda.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KOSOVSKI, G. F. Psicanálise e arte: uma articulação a partir da não relação em Louise


Bourgeois: o retorno do desejo proibido. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica [online].
2016, v. 19, n. 3, p. 441-455. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S1516-14982016003006>. ISSN 1809-4414. Acesso em: 24 de abril
de 2022.

LACAN, J. Análise do Discurso e Análise do Eu. In: O Seminário, Livro 1: Os Escritos


Técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996 [1954], p. 77-89.

__________. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Os Escritos. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1998 [1953], p.238-325.

__________. Scilicet 6-7. Paris, Seuil, 1976, p. 25.

__________. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1996 [1976].

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