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1
A primeira edição húngara da obra foi publicada em 1910: György Lukács, A lélek és a
formák. Kísérletek (Budapeste, Franklin Társulat, 1910).
2
Rainer Rochlitz, Le Jeune Lukács: théorie de la forme et philosophie de l’histoire (Paris, Payot,
1983), p. 8.
3
György Lukács, A alma e as formas: ensaios (trad. Rainer Patriota, Belo Horizonte, A utêntica,
2015). Cf. Jean-Michel Palmier, Walter Benjamin (Paris, Les Belles Lettres, 2010), p. 47.
por fim, porque nessa obra encontramos os primeiros passos de uma estética
baseada na autonomia da obra, a qual expõe a ambição do filósofo húngaro de
ir além dos impasses tanto das estéticas kantianas e pós-kantianas, pautadas
na natureza, como das estéticas da expressão, circunscritas ao fazer artístico,
como as de Aloïs Riegl ou Konrad Fiedler.
Os ensaios exibem um percurso sinuoso, fragmentado, por meio do qual
Lukács enuncia a crise da forma artística em um fundo trágico, estruturada nos
problemas estéticos que são internos às obras e nos polos da tensão que se esta-
belecem entre a alma e as formas. Dito de outro modo, o problema da forma é
enunciado por meio de uma crítica imanente, caso a caso, com base em indícios
variados, nos quais se verifica a influência recíproca entre a individualidade do
poeta, as exigências da forma e as circunstâncias de seu tempo. Em Theodor
Storm, Stefan George, Paul Ernst, Novalis, Laurence Sterne, Charles-Louis
Philippe, Richard Beer-Hofmann ou Søren Kierkegaard, Lukács examina
como fraturas existenciais são vividas ora como nostalgia e luta pela forma,
acarretando transformações no interior dos gêneros, ora como impossibilidade
formal, provocando o mutismo ou a impossibilidade da comunicação. Ou seja,
Lukács examina como cisões entre subjetividades modernas e o mundo são
vividas na e pela forma, o que faz com que cada ensaio seja, na verdade, um
experimento sobre problemas estéticos, sem respostas definitivas. Se o conjunto
sugere, por vezes, referências platônicas, é apenas precisamente no sentido de
nele operar certa metodologia de contraposição entre ideias e problemas, num
formato próximo à maiêutica antiga, no qual Lukács, uma espécie de Sócrates
moderno, inquire ideias, ironicamente, sem se decidir sobre as teses que expõe.
Ao contrário, há nos ensaios uma particular compreensão histórica das formas,
pois, como afirma com muito acerto Judith Butler na introdução da edição
estadunidense4, as formas nunca são estáticas, afinal estão em movimento, em
flutuação, sempre em conexão com o vivido, entendido como vivência (Erlebnis).
Com os ensaios de A alma e as formas, começa a ser gestado, portanto, o
projeto conceitual da primeira estética lukacsiana: um itinerário que surge
como crítica de arte e como crítica da cultura, mas que aponta em direção a
uma filosofia da arte. Se, nos ensaios, encontramos uma reflexão que reivin-
dica o domínio da filosofia, Lukács, no entanto, afasta-se da filosofia oficial
4
Judith Butler, “Introduction”, em György Lukács, Soul and Form (Nova York, Columbia
University Press, 2010). A introdução foi reproduzida na edição brasileira. Cf. György
Lukács, A alma e as formas, cit., p. 16.
5
Ibidem, p. 59.
diante de algo perdido, é possível articular ainda uma relação de tensão entre
sentido e busca pelo sentido? Como veremos nos próximos capítulos, a teoria
da dissonância, ou do nonsense, está no centro de sua primeira estética, seja nos
ensaios, seja nos manuscritos especulativos. É por meio da obra como lugar
da dissonância que se busca a possibilidade da forma, haja vista que a forma
é “aquela unidade capaz de reunir em si o máximo de forças conflitantes”6.
Lukács procurará fundamentar a obra de arte como dissonância produtiva7,
pois, no sentido rigoroso, a obra nasce da crise da forma como uma resposta
ao sofrimento experimentado no contato com as insuficiências objetivas da
realidade vivida e como suporte para o desejo de utopia do espectador.
Dessa concepção de forma artística decorre sua insistente valorização dos
gêneros literários, entendidos como modos de apresentação e de transmissão
desses paradoxos existenciais, nomeados ora verdade, ora essência, e com-
preendidos não como supérfluos, mas como necessários. “Cada necessidade
verdadeira e profunda de expressão possui sua própria via típica, seu esquema,
sua forma”, assinala Lukács, em carta a Leo Popper8.
AeF recebeu inúmeras resenhas críticas na Hungria, na Alemanha e ainda
na França, como demonstra o excelente livro organizado por Júlia Bendl e
Árpád Tímár, em 1988, e publicado pelo Lukács Archivum, intitulado O
jovem Lukács no espelho da crítica (Der junge Lukács im Spiegel der Kritik)9. Na
Hungria, a publicação de A alma e as formas, em 1910, provocou boa acolhida,
6
Idem.
7
Cf., sobre a teoria da dissonância, György Lukács, Heidelberger Philosophie der Kunst
(Darmstadt, Luchterhand, 1974), p. 48-9.
8
Carta de Lukács a Leo Popper, de 1909, citada em Éva Karádi e Éva Fekete, “La Correspon-
dance de jeunesse de György Lukács”, L’Homme et la Société, n. 43-44, 1977, p. 31.
9
Esse livro, organizado por Júlia Bendl e Árpád Tímár, foi editado pelo trabalho sério e
criterioso do Lukács Archivum, em Budapeste, que funcionou entre os anos 1972 e 2015,
sendo fechado arbitrariamente pela Academia de Ciências da Hungria. No arquivo, que
funcionava no apartamento onde Lukács morou, estavam sua biblioteca, seus manuscritos,
suas cartas, notas, fotos etc. Essa documentação era administrada pelo Instituto de Filosofia
da Academia, de modo independente, seguindo a recomendação do próprio Lukács, antes
de morrer. Nesse volume, de número 9 (Archívumi füzetek IX), são reproduzidas resenhas ou
partes delas, escritas entre 1911 e 1918, sobre a recepção de A alma e as formas. Ao todo, te-
mos 63 resenhas em húngaro, entre elas as de Gyula Juhász, Arnold Hauser, János Horváth,
Leo Popper e outros; 37 escritas em alemão, como as de Karl Mannheim, Paul Ernst, Franz
Baumgarten, Alfred Weber e Siegfried Kracauer; e seis resenhas em francês, entre elas as de
Charles Adler, Henri Albert, Félix Bertaux e outros.
10
Júlia Bendl e Árpád Tímár (orgs.), “Der junge Lukács im Spiegel der Kritik”, em Archívumi
füzetek, v. 9 (Budapeste, Lukács Archivum, 1988), p. 67-9.
11
György Lukács, Acerca de la pobreza de espíritu y otros escritos de juventud (trad. Miguel
Vedda, Gorla, 2015), p. 177-84.
12
Ibidem, p. 73.
(1911), que AeF exibe uma análise repleta de mistificação, haja vista que ela
“não é reflexiva, mas deliberadamente fantasiosa, exibindo, além de tudo, um
desconhecimento das coisas húngaras”13. Janós Horváth, em Budapesti Szemle
(1911), na crítica intitulada “Um volume de ensaios” (Egy kötet tanulmány),
reconhece que o livro é um escrito “substancial sobre arte” e que examina
poetas e intelectuais importantes, mas que Lukács não conseguiu estilizá-lo
em húngaro14. Para o crítico, o estilo da obra é pesado, labiríntico, nebuloso,
sem conseguir encadear os pensamentos ou uma sucessão de ideias. Elemér
Kutasi, na Huszadik Század (1911), publicou uma resenha na qual igualmente
demonstrou perplexidade com a linguagem de Lukács: “Jamais poderíamos
acreditar que nossa língua, a qual é concreta, tangível, cristalina – a língua
clara de János Arany –, pudesse produzir algo tão nebuloso, com um acento
tão ininteligível, como este livro, cheio de abstrações”15.
József Pogány, um crítico menos oficioso, defendeu energicamente o livro
contra Babits no artigo “Polémia”, publicado na revista Renaissance, em 191016,
vendo nele não uma metafísica, mas uma dialética pré-marxista. Leo Popper,
mais rigoroso, escreveu sobre AeF uma resenha em 27 de abril de 1910, desta-
cando a relação entre o crítico e a vida, abordagem a partir da qual os ensaios
permitiam entrever que Lukács se tornaria, em um futuro próximo, um notável
crítico da forma.
Jenö Pintér, historiador da literatura, de modo duríssimo, pontificou que a
crítica de Lukács fracassara e não causaria nenhuma repercussão internacional.
O que não se verificou de modo algum: na Alemanha, por exemplo, várias
resenhas foram escritas no ano da publicação do livro em alemão, realização do
editor Egon Fleischel, em 1911; algumas de críticos conhecidos, como Michael
Josef Eisler, Paul Ernst, Emil Ludwig, Ludwig Stein, entre outros. Destaca-se,
nesse conjunto, o ensaio de Franz Baumgarten, tradutor do livro para o alemão,
publicado na revista de filosofia Logos, em 1912. E a resenha do filósofo Ludwig
Stein, intitulada “O ensaio como obra de arte”, escrita para a Nord und Sud,
em 1912, na qual o autor situa o ensaio de Lukács no contexto de outros recen-
temente publicados, filiando-os às considerações extemporâneas de Nietzsche
e ao Parerga e Paralipomena, de Schopenhauer. Para Stein, o que sobressai no
13
Ibidem, p. 83.
14
Ibidem, p. 85.
15
Ibidem, p. 112.
16
Ibidem, p. 70-2.
17
Ibidem, p. 264.
18
Ibidem, p. 367.