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Sob a luz do cinismo: a influência de Diógenes de Laércio no

pensamento nietzschiano
Por Sílvia de Lourdes Lemes Aguiar

Não faltam indícios que comprovam o contato de Nietzsche com Diógenes de


Laércio. Uma rápida consulta aos cadernos de nota do período de Leipzig 1 mostra que
Nietzsche estava familiarizado com Diógenes de Laércio, autor que o jovem estudante
de filologia clássica cita com frequência para confirmar ou refutar hipóteses relativas a
fontes, cronologias, epigrafias, pseudo-epigrafias e filiações. O mesmo ocorre nos
cursos de filosofia grega oferecidos pelo jovem professor na Universidade de Basiléia:
parte importante da doxografia dos filósofos pré-platônicos nos foi transmitida por
Diógenes de Laércio, que ao lado de Aristóteles constitui a principal fonte de Nietzsche,
e pelas obras de Sexto Empírico. 2 Contudo, o objetivo desse trabalho não é apenas
comprovar o contato de Nietzsche com Diógenes, mas sim como ele incorporou parte de
seus pensamentos, sobretudo a filosofia cínica em suas obras.

Em O viajante e sua sombra, no aforismo intitulado: “O moderno Diógenes’’,


Nietzsche diz: “Antes de procurar o homem, deve-se achar a lanterna. Terá de ser a
lanterna do cínico?”3. Essa passagem é uma referência à anedota narrada por
Diógenes Laércio em sua Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres (livro VI), segundo a
qual o “discípulo” de Antístenes teria andado durante o dia com uma lanterna acesa
gritando: “Procuro um homem!”4. No entanto, não é apenas nessa obra em que
Nietzsche faz referência a essa passagem, na Gaia Ciência, ele a utiliza novamente em
5
um aforismo denominado “O Louco”. Em ambas as obras, a passagem de Diógenes
atravessa o pensamento Nietzschiano apresentando diferentes sentidos.

Não obstante, Nietzsche vai além do uso instrumentalizado das passagem de


Diógenes. Em obras posteriores, parece não apenas utilizar de elementos da obra de
Laércio como também a incorporar aspectos do cinismo em sua própria filosofia.
Podemos observar um aspecto marcante dessa influência no aforismo 3 de Ecce Homo

1
Trata-se do período de 1865 à 1868, quando estudava na Universidade de Leipzig, na Alemanha.
2
Cf: LOPES, Rogério. Ceticismo e Vida contemplativa em Nietzsche. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
3
NIETZSCHE, 2007, P 30.
4
Cf. LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Ed.UnB, 2008, p.162.
5
FW/GC, § 125,480-482.
em que ele diz, anunciando o cinismo como expressão de grandeza: “Não existe em
absoluto, espécie mais orgulhosa e mais refinada de livros – eles alcançam aqui e ali o
mais elevado que se pode alcançar na terra, o cinismo; é preciso conquistá-los com os
dedos mais ternos, e com os punhos mais bravos”. Segundo CARVALHO 6, Nietzsche
demonstra um genuíno interesse pelo cinismo, um interesse que ultrapassa a mera
curiosidade pelo seu passado e singularidade histórica. Nietzsche, segundo o autor,
teria pensado sobre quais as possibilidades que o cinismo poderia lhe oferecer:
enquanto modo de vida; enquanto possibilidade moral, especialmente a
“problematização e a crítica da moral”.

Ademais, quando pensamos na questão da crítica aos valores, Nietzsche


encontra em Diógenes e portanto no cinismo, um importante aliado. Em Vidas e
Doutrinas, Diógenes conta um episódio em que teria vivido no exílio por ter adulterado
a moeda corrente do Estado.7 Na visão de Nietzsche tal prática de Diógenes configuraria
como uma contestação da moral vigente, conquistando então ainda mais a sua simpatia.
Há ainda diversas passagem em Vidas e Doutrinas nas quais Diógenes apresenta uma
postura crítica as instituições sociais e à moral vigente em sua época.

Além disso ambos também apresentam pensamentos parecidos em relação a


Platão, o que teria sido mais um ponto decisivo para a aproximação definitiva de
Nietzsche com o cinismo. Apesar disso, Nietzsche ainda se distanciava de Diógenes.
Em Vidas e Doutrinas, relata-se que Diógenes costumava afirmar que os discursos de
Platão eram perda de tempo8. Nietzsche porém enxergava as consequências mais
devastadoras do pensamento platônico. Isso porque, em sua visão Platão tentou instituir
uma verdade a priori que decidisse como o organismo irá experimentar o mundo e nesse
sentido, colocou a verdade de ponta cabeça, condenando aquilo que é subjetivo e
experimental, o que mais tarde o cristianismo teria convertido em uma completa
decadência para o futuro da humanidade. Mais tarde, quando se opôs ao pessimismo
schopenhaueriano, Nietzsche também estava sob a luz do cinismo quando refletiu sobre
as condições da felicidade em uma perspectiva cínica e a sua luta contra os sofrimentos
da vida.

6
Cf. CARVALHO, p. 6, 2012.
7
Cf. LAÊRTIOS, Diógenes. Op. cit., p.157.
8
Cf. LAÊRTIOS, Diógenes, Op.cit., p. 158.
Enumerar todas as passagens em que o cinismo de Diógenes de Laércio
aparecem nas obras Nietzschianas, seria uma tarefa árdua que ocuparia um grande
espaço geográfico. A realidade é que Nietzsche era um profundo conhecedor e
admirador da vida e obra de Diógenes de Laércio. Tamanha sua influência que o
acompanhou desde seus escritos de juventude até suas obras de maturidade. O cinismo
de Diógenes não representa para Nietzsche apenas uma forma de pensamento, mas o vê
como um exemplo de filosofia prática por meio da qual tece sua filosofia enquanto
modo de vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, F, D. Nietzsche e a Lanterna de Diógenes. ArteFilosofia, Ouro Preto,


n.13, p.3-16, 2012.

LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília, Ed.UnB, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich W. Além do bem e do mal (JGB/BM). Trad. Paulo César de


Souza. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

_____________________. A Gaia ciência (FW/GC). Trad. Paulo César de Souza. São


Paulo: Companhia das Letras, 2001.

_____________________. Ecce homo (EH/EH). Trad. Paulo César de Souza. 2a ed.


São Paulo: Companhia das Letras, 1995

_____________________. O Viajante e Sua Sombra. São Paulo – Editora Escala, 2007.

Rogério. Ceticismo e Vida contemplativa em Nietzsche. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

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