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Tudo isso deve parecer bem confuso e incerto.

Sem dúvida in-


certo, pois tudo isso não passa de hipótese. Mas para que fique um
pouco menos confuso, eu gostaria de formular algumas “'proposi-
ções” - no sentido não de coisas aceitas, mas de coisas oferecidas
para experiências ou provas futuras.
Por “verdade”, entender um conjunto de procedimentos regula-
dos para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funciona-
mento dos enunciados.
A *““verdade” está circularmente ligada a sistemas de poder, que
a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a re-
produzem. “Regime” da verdade. '
Esse regime não é simplesmente ideológico ou superestrutural; NIETZSCHE,
IA
foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo. É
ele que, com algumas modificações, funciona na maior parte dos paí-
A GENEALOGIA E A HISTÓR
ses socialistas (deixo em aberto a questão da China, que não conhe-
ço).
O problema político essencial para o intelectual não é criticar os
conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com
que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa;
mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O I
problema não é mudar a “consciência” das pessoas, ou o que elas
têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de sa e pai dc
A genealogia é cinza; ela é meticulo ralh ados , ,
produção da verdade. amin hos emba
Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder - o mentária. Ela trabalha com perg N
jas vezes reescritos.
que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder - ão descrever gtnes &
Nr Rée se engana, como os ingleses, vé da
ória da mora atra
neares, ao ordenar, por exemplo, toda a hist
mas de desvincularo poder da verdade das formas de hegemonia (so-
ciais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no sem
ação com o útil: como se as pal
momento. idéias sua lógica. como se ese
entido, os desejos sua direção, as
Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência tivesse conhecido DS Den:
mundo de coisas ditas e queridas não
alienada ou a ideologia; é a própria verdade. para a genealogia, u age
tas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí,
sing ular idad e dos acontecimentos, longe
sável demorar-se: marcar a
-los lá onde menos se os espe
de toda finalidade monótona; espreitá sent i Dea
uindo história - os
rava e naquilo que é tido como não poss
ntos, apreender seu re omo m o
tos, o amor, a consciência, os insti o
, mas para reenco
para traçar a curva lenta de uma evolução is disti ntos, A ind de
m papé
diferentes cenas onde eles desempenhara eles não acon
o em que
finir o ponto de sua lacuna, o moment grande
em Maomô). um
(Platão em Siracusa não se transformou saber , gr ne
port anto , a minu cia do
A gencalogia exige, Ela deve cons r
ênci a.
número de materiais acumulados, exige paci
14
ir seus “monumentos ciclópicos” ' não a golpes de “grand
es err Um dos textos mais significativos do uso de todas estas palavras
benfazejos” mas de pequenas verdades inapar
. . ..

entes estabelecidas e dos jogos próprios do termo Ursprung é o prefácio de Para Genea-
ê
Os

por um método severo" ?. Em suma, uma certa


obstinação na erudi- logia da Moral. O objeto da pesquisa é definido no início
do texto
ção. A genealogia não se opõe à história como a visão
altiva e pro-
funda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela como a origem dos preconceitos morais, o termo então utilizado é
contrário, ao desdobrament
se opõe, ao Herkunft . Nietzsche volta atrás, fazendo a história deste
Em seguida,
o meta-histórico das significações ideais
das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa e inquérito em sua própria vida; ele se lembra do tempo em que “cali-
da “origem”. fava” a filosofia e em que se perguntava se era preciso atribuir a
Deus a origem do Mal. Questão que agora o faz sorrir e sobre a qual
! - ele diz justamente que era uma pesquisa de Ursprung, mesma palavra
para caracterizar um pouco mais longe o trabalho de Paul Rée'. Em
Encontram-se em Nietzsche dois empregos da seguida, ele evoca as análises propriamente nietzscheanas que começa-
palavra com Humano, Demasiadamente Humano; para caracterizá-las,
Um não é marcado: é encontraem
doalter
: náncia com o fermo En
ram
tehung, Herkun ft, Abkunfi, Geburt. Para Genealogia da Moral por fala de Herkunfihypotesen. Ora, aqui o emprego da palavra Herkunfi
exemplo, fala, a propósito do dever moral ou do não é arbitrário: ela serve para caracterizar vários textos de Humano,
sentimento da falta - Demasiadamente Humano consagrados à origem da moralidade,
da
de ctéstehung ou de Ursprung'. Em 4 Gaia Ciência se
n sa entanto? e do conhecimento, de Ursprung,
trata, a pro- justiça, do castigo. E contudo, em todos estes desenvolvimentos, a
de Entfstehung, ou palavra que tinha sido utilizada então era Ursprung *. Como se na é-
poca de Para Genealogia da Moral, e nessa altura do texto, Nietzsche
O outro emprego da palavra é marcado. Nietzsche o coloca em
quisesse acentuar uma oposição entre Herkunft e Ursprung com a
oposição a um outro termo: o primeiro parágrafo de Humano Dema-
qual ele não trabalhava dez anos antes. Mas, imediatamente depois
siadamente Humano coloca frente a frente a origem miraculosa
da utilização especificada desses dois termos, Nietzsche volta, nos úl-
(Wunder-Ursprung) que a metafísica procura e as análises de uma fi- timos parágrafos do prefácio, a utilizá-los de um modo neutro e equi-
losofia histórica que coloca questões iiber Herkunft und Anfang. Urs- valente”.
prung é também utilizado de uma maneira irônica e depreciativa. Em Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas
que, por exemplo, consiste esse fundamento originário (Ursprung) da ocasiões, a pesquisa da origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a
moral que se procura desde Platão? “Em horríveis pequenas conclu- pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exata
sões: Pudenda origo" *. Ou ainda: onds é preciso procurar essa ori da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamen-
gem da religião (Ursprung) que Schopenhauer situava em um certo te recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é
sentimento do além? Simplesmente em uma invenção (Erfindung), em externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reen-
um passe de mágica, em um artifício (Kunsistiick contrar “'o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma ima-
), em um segredo de
fabricação, , em um procediment o de magiaj negra, gem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripé-
no tr:
Schwarzkuúnsiler *. 8 8 cias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfar-
abalho de
ces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identi-
dade primeira. Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a his-
tória em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que

7 À obra de P. Rée intitula-se Ursprung der moralischen Empfindung.


8 Em H.D.H., o af. 92 se intitula Ursprung der Gerechtigkeis.
9 Mesmo no texto de Para Genealogia da Moral, Ursprung e Herkunfi são emprega-
des várias vezes de maneira mais ou menos equivalente (1, 2; 11, 8, 11, 12, 16, 17):
17
e a
atrás das coisas há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo es- i i uma verdade do discurso que logo a obscurece,
coage a invert er a relaçã o e a
sencial e sem data, mas o segredo que clas são sem essência, ou que co bo eueldade da história que e recent e.
atrás da verda de sempr
sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe a donar a busca “adolescente”: erros. Mas não
prolif
existe a averda
ida, “que
comedmais eração milenar dos
eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu de uma maneira inteira- a rediteemos
aa de permaneça verdadeira quando se
mente “desrazoável” - do acaso 'º. A dedicação à verdade e ao rigor para crer nisto” ". À ver-
dos métodos científicos? Da paixão dos cientistas, de seu ódio reci- lhe arranca o véu; já vivemos bastante
favor o fato de não poder ser re-
proco, de suas discussões fanáticas e sempre retomadas, da necessi- dade, espécie de erro que tem a seu
ento da história a tornou
dade de suprimir a paixão - armas lentamente forjadas ao longo das futada sem dúvida porque o longo cozim de, o direito que ela s€
lutas pessoais ''. E a liberdade, seria ela, na raiz do homem o que o i alterável 1, E além disto a questão da verda maneira pela qual alter-
de se opor à aparên cia, a
liga ao ser e à verdade? De fato, ela é apenas uma “invenção das clas- dá de refutar o erro
depois reservada apenas |aos
ses dominantes” !. O que se encontra no começo histórico das coisas nadamente ela foi acessível aos sábios,
para um mundo fora jedi
não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre homens de piedade, em seguida retirada o papel de consola: dor
cance, onde desempenhou ao mesmo tempo
as coisas, é o disparate. idéia inútil, supérilua, por
de imperativo, rejeitada enfim como
história de um erro
A história ensina também a rir das solenidades da origem. A alta parte contradita - tudo isto não é uma história, a originário tiveram
origem é o “exagero metafísico que reaparece na concepção de que que tem o nome de verdade? A verdade e seu reino
da sombra mais
hora
no começo de todas as coisas se encontra o que há de mais precioso € sua história na história. Mal saímos dela, “na
de mais essencial” ": gosta-se de acreditar que as coisas em seu início parece mais vir do fundo do céu e dos pri-
curta” quando a luz não
se encontravam em estado de perfeição; que elas sairam brilhantes iros momentos do dia ".
do co-
das mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã. A e pazer a gencalogia dos valores, da moral, do ascetismo, jne-
origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo partir em busca de sua orige m
nhecimento não será, portanto, será,
da história,
e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se canta sem- gligenciando como inacessíveis todos 08 episódios
pre uma teogonia. Mas o começo histórico é baixo. Não no sentido ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acaso s dos come-
maldade; espe
ória
de modesto ou de discreto como o passo da pomba, mas de derrisó- ços; prestar uma atenção escrupulosa à sua derris
rio, de irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações. “Procura-se rar vê-los surgir, máscaras enfim retira das, com O rosto do outro;
despertar o sentimento de soberania do homem mostrando seu nasci- não ter pudor de ir procu rá-la s lá onde clas estão , escavando os bas-
ma
mento divino: isto agora se tornou um caminho proibido; pois no seu fond; deixar-lhes o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuita
limiar está o macaco” !*. O homem começou pela careta daquilo em verdade as manteve jamais sob sua guar O
da. genea logis ta necess
que ele ia se tornar; Zaratustra mesmo terá seu macaco que saitará da história para conjurar a quimera da origem, um pouco como o
atrás dele e tirará o pano de sua vestimenta. bom filósofo necessita do médico para conjurar asom ra daama
Enfim, o último postulado da origem, ligado aos dois primeiros: reciso saber reconhecer os acontecimentos istória, seu
ela seria o lugar da verdade. Ponto totalmente recuado e anterior a duas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas, que
todo conhecimento positivo ela tornará possível um saber que contu- dão conta dos atavismos e das hereditariedades; da mesma forma
os de
do a recobre e não deixa, na sua tagarelice, de desconhecê-la; ela es- que é preciso saber diagnosticar as doenças do corpo, os estad
ências para avalia r
taria nesta articulação inevitavelmente perdida onde a verdade das fraqueza e de energia, suas rachaduras € suas resist

10 Aurora,
4 123.
U HD.H.,43. IS Nietzsche contra Wagner, epilogo 4 2.
|2 O Andarilho
e sua Sombra, 49. 16 GC 42656 L0. .
13 O Andarilho
e sua Sombra, 4 3.. 17 O Crepúsculo se tornou enfim uma fábula.
dos Ídolos, “Comoo mundo-verdade
14 Aurora,
6 49.
19
18
o que é um discurso filosófico. A história, com suas intensi quais) eles setor
dades, tos através d os quais (graças aos quais, contra os
seus desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes no tempo para res abele-
febris como suas sincopes, é o próprio corpo do devir.
agitações maram. À ge nealogia não pretende recuar ão do esqueci a
É preciso ser cer uma gran de écontinu idade para além da dispers
metafísico para lhe procurar uma alma na idealidade longinq ainda ei po
ua da to; sua tarefa nã o é a de mostrar que O passado
origem. anim: -o ai segredo,
viva pr a A ercurso uma forma delincada des-
“5 todos Nada que se assemelhasse à evolução de uma espécie,
HI e atino de um povo. Seguir o filão complexo da proveniência
po de mtrário manter o que se passou na dispersão que lhe é pró-
Termos como Entestehung ou Herkunft marcam melhor do que desvios - ou ao contrário as
á ja: é de arcar os acidentes, os ínfimos
Ursprung o objeto próprio da gencologia. São ordinariamente tradu- sã é com letas - os erros, as falhas na apreciação, os maus cál-
zidos por “origem”, mas é preciso tentar a reconstituição
de sua arti- os qui eram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é
culação própria.
so bei ue na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós
Herkunft: é o tronco de uma raça, é a proveniência; é o antigo do ac
Somos - não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade
pertencimento a um grupo - do sangue, da tradição, de ligação entre cur do
dente ''. Eis porque, sem dúvida, toda origem da mora : Ape
aqueles da mesma altura ou da mesma baixeza. Frequentemente
análise da Herkunft põe em jogo a raça ", ou o tipo social '.
a momento em que ela não é venerável - e a Herkunft nunca.
Entre- ca nu
tanto, não se trata de modo algum de reencontrar em um indivídu
o, Perigosa herança, esta que nos é transmitida por uma Poe.
em uma idéia ou um sentimento as características gerais que permi- niência. Nietzsche associa várias vezes os termos Iferkun cao
tem assimilá-los a outros - e de dizer: isto é grego ou isto é inglês; chaft. Mas não nos enganemos, essa herança não é uma aa e o,
mas de descobrir todas as marcas e ar as,
sutis, singulares, subindividuais um bem que se acumula e se solidifica: é antes um conjunto
que podem se entrecruzar nele e formar uma rede difícil de desemba- de fissuras, de camadas heterogêncas que a tornam instável, e, d im
raçar; longe de ser uma categoria da semelhança, tal origem terior ou de baixo, ameaçam o frágil herdeiro: a injustiça € à ins a
permite
ordenar, para colocá-las a parte, todas as marcas diferentes: os ale- bilidade no espírito de alguns homens, sua desordem e sua fa e
mães imaginam ter chegado ao extremo de sua complexidade quando medida são as últimas consequências de inumeráveis inexatidões :
disseram que tinham a alma dupla; eles se enganaram redondamente, gicas, de falta de profundidade, de conclusões apressadas de que seu
ou melhor, eles tentam como podem dominar a confusão das raças ancestrais se tornaram culpados” ”. A pesquisa da proveniência n o
de que são constituídos ”. Lá onde a alma pretende se unificar, funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia iméve, , ç x

onde o Eu inventa para si uma identidade ou uma coerência, o genea- fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do
logista parte em busca do começo - dos começos inumeráveis que se imaginava em conformidade consigo mesmo. Que convices
que
deixam esta suspeita de cor, esta marca quase apagada que não lhe resistiria? Mais ainda, que saber? Façamos um pouco a an jse
sabe-
ria enganar um olho, por pouco histórico que seja; a análise da genealógica dos cientistas - daquele que coleciona € registra cui a .
proveniência permite dissociar o Eu e fazer pulular nos lugares e re- samente os fatos, ou daquele que demonstra ou refuta; sua Herkunft
cantos de sua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos logo revelará a papelada do escrivão ou as defesas do advogado ,pai
.
A proveniência permite também reencontrar sob o aspecto úni- deles - :* em sua atenção aparentemente desinteressada, em sua “pu
co de um caráter ou de um conceito a proliferação dos acontecimen- ra” ligação à objetividade.

21 GM. 11, 17. Abkunft do sentimento depressivo.


18 Por exemplo, G.C. 6 135; PB.M. 5 200, 242,24, GM. 1,65. 23 Aurora, 4 247.
I9 6.C. 4 348 e 349; P.B.M. 6 260. 2 C.I., Razões da Filosofia
20 P.B.M. 6 244. U GC 438 e o.
20 21
Enfim, a proveniência diz respeito ao corpo *. Ela se inscreve no IV
sistema nervoso, no humor, no aparelho digestivo. Má alimentação,
de sur-
má respiração, corpo débil e vergado daqueles cujos ancestrais come- esigna de preferência a emergência, o ponto mes
teram erros; que os pais tomem os efeitos por causas, acreditem na . Entes tehun e e e a lei singu lar de um apare cimen to. Do
rar à prove nién
realidade do além, ou coloquem o valor eterno, é o corpo das crian-
paga d ue se tenta muito freqõentemente procu
ças que sofrerá com isto. A covardia, a hipocrisia, simples rebentos sem inter rupçã o, tamb ém seria errado dar
om ma continuidade tivesse apare-
Como se o olho
do erro; não no sentido socrático, não porque seja preciso se engajar
us a da mergência pelo termo final. se o cas-
para ser malvado, nem também porque alguém se desviou da verda- contemplação, como
o d ade o fundo dos tempos, para à apa-
Esses fins,
O exemplo.
de originária, mas porque o corpo traz consigo, em sua vida e em sua
Pd Jesse sempre sido destinado a dar que o atual episó dio de
morte, em sua força e em sua fraqueza, a sanção de todo erro e de te últimos, não são nada mais do
am
toda verdade como ele traz consigo também e inversamente sua ori- eiramente submetido à caça
na série de submissões: o olho foi prim etido à necessidade de
gem - proveniência. Por que os homens inventaram a vida contem-
a rá: o castigo foi alternadamente subm
plativa? Por que eles atribuíram a esse gênero de existência um valor de se libert ar da vítima, de aterrorl
: ar de excluir o agressor,
supremo? Por que atribuíram verdade absoluta às imaginações que na origem, à metafísica eva a
a os outros. Colocando o presente
nela se formam? “Durante as épocas bárbaras ... se o vigor do indiví- destinação que proc rara va
acreditar no trabalho obscuro de uma
duo diminui, se ele se sente cansado ou doente, melancólico ou sacia- genealogia restabelece
à luz desde o primeiro momento. A
do e, por conseqiência, de uma maneira temporária, sem desejos e a potên cia antecipadora de um senti-
sos sistemas de submissão: não
sem apetites, ele se torna um homem relativamente melhor, quer di- es.
do, mas o jogo casual das dominaçõ
zer, menos perigoso e suas idéias pessimistas se formulam apenas por
estado das
palavras e reflexões. Neste estado de espírito ele se tornará um pensa- A emergência se produz sempre em um determinado
Jogo, à maneira como
dor e anunciador ou então sua imaginação desenvolverá suas supers- forças. A análise da Herkunft deve mostrar seu s-
a circun
tições” **. O corpo - e tudo o que diz respeito ao corpo, a alimenta- elas lutam umas contra as outras, ou seu combate frente
ou ainda a tentat iva que elas fazem - se dividi ndo -
ção, o clima, o solo - é o lugar da Herkunft: sobre o corpo se encon- tâncias adversas,
a partir de seu
tra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele para escapar da degenerescência e recobrar o vigor
espécie
nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se próprio enfraquecimento. Por exemplo, a emergência de uma
e sua solidez são assegu radas por um longo
atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, en- (animal ou humana)
tram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável contra condições constantes € essencialmente desfavorá-
combate
conflito. veis”. De fato “a espécie tem necessidade da espécie enquanto espé-
mi.
O corpo: superficie de inscrição dos acontecimentos (enquanto cie como de qualquer coisa que, graças à sua dureza. à sua unifor
que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissocia- dade, à simpli cidade de sua forma, pode se impor e se tornar duráve
ção do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volu- na luta perpétua com os vizinhos ou os oprimidos em revolta”. Em
me em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da prove- compensação, a emergência das variações individuais se produz em
niência, está portanto mo ponto de articulação do corpo com a histó- um outro estado das forças. quando a espécie triunfou, quando o pe-
ria. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a rigo externo não a ameaça mais. e quando “os egoísmos voltados uns
história arruinando O corpo. contra os outros que brilham de algum modo lutam juntos pelo sol e
pela luz” ”. Acontece também que a força luta contrasi mesma: €
não somente na embriaguez de um excesso que lhe permite se dividir,

25 Ibid.: “Der Mensch aus cinen Auflôsungazeitalters... der dei Erbschaft ciner
vielfiltigere Herkunft im Leibe hat” ($ 200).
26 Aurora, 4 42. 27 PBM. 4262.
23
22
apoderam de coisas
mas no momento em que ela se enfraquece. Contra sua lassidão ela a idéia de liberdade ”; homens se
sim que n asce eles lhes impõem uma du-
reage, extraindo sua força desta lassidão que não deixa então de cres- ais eles têm necessidade para viver, força - céo nasci-
pela
cer, e se voltando em sua direção para abatê-la, ela vai lhe impor li- das qu elas não têm, ou eles as assimilam rela-
ção de domi naçã o é mais uma
mites, suplícios, macerações, fantasiá-la de um alto valor moral e as- ração Vi : lógica ”. Nem a rela isto preci sa-
E é por
sim por sua vez se revigorar. Este é o movimento pelo qual nasce o mero 7 o lugar onde ela se exerce é um lugar. fixa em um
naçã o se
ideal ascético “no instinto de uma vida em degenerescência que ... don em cada momento da história a domi ados os pro-
mente a im de obri gaçõ es e direi tos, ela const itui cuid
luta por sua existência” *. Este também é o movimento pelo qual a
grava lembranças nas coisas e até
Reforma nasceu, onde previamente a Igreja se encontrava menos ritual; : tos Ela estabelece marcas,
as. Universo de regras
corrompida ”; na Alemanha do séc. XV o catolicismo tinha ainda E os; ela se torna responsável pelas dívid
contrário a satisfazer a violên-
muita força para se voltar contra si próprio, castigar seu próprio cor- e do é destinado a adoçar, mas ao
o esquema tradicional, que a
po e sua própria história e se espiritualizar em uma religião pura da da Seria um erro acreditar, segundo
suas próp rias contradições, acaba por
consciência. dura geral, se esgotando em
ria supressão nas leis da paz ei
enunciar à violência e aceita sua próp
inação, é ºsangue Pr me
A emergência é portanto a entrada em cena das forças; é sua in- vil. A regra é o prazer calculado da obst
Jogo da dominaç o ela p e em
terrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro, do. Ela permite reativar sem cessar 0 O desejo a paz, do
same nte repet ida.
cada uma com seu vigor e sua própria juventude. O que Nietzsche cena uma violência meticulo
a da lei, longe de sere a
chama Entéstehungsherd”” do conceito de bom não é exatamente nem qura do compromisso, a aceitação tácit
o que deram nascimen oà
a energia dos fortes nem a reação dos fracos; mas sim-esta cena onde grande conversão moral, ou o útil calculad
prop riam ente falando sua perv e
eles se distribuem uns frente aos outros, uns acima dos outros; é o es- regra, são apenas seu resultado e
deve r têm sua emer gência a ireito ce
paço que os divide e se abre entre eles, o vazio através do qual eles | são: “Falta, consciência, r
o que é grande so re
trocam suas ameaças e suas palavras. Enquanto que a proveniência | obrigação; e em seus começos, como tudo ride enta me
de não prog
designa a qualidade de um instinto, seu grau ou seu desfalecimento, € ra, foi banhado de sangue” *. A humanida
idade universal, em que
a marca que ele deixa em um corpo, a emergência designa um lugar te, de combate em combate, até uma reciproc
de afrontamento; é preciso ainda se impedir de imaginá-la como um as regras substitu iria m para semp re a guerr a, ela instala cada uma de
e assim de domi-
campo fechado onde se desencadearia uma luta, um plano onde os suas violências em um sistema de regras, e prossegu
adversários estariam em igualdade; é de preferência - o exemplo dos o em dominação. D V
violência é vio-
bons e dos malvados o prova - um ''não-lugar"”, uma pura distância, ee justamente à regra que permite que seja feita
outr a domi naçã o poss a dobr ar aque les que omi-
o fato que os adversários não pertencem ao mesmo espaço. Ninguém. lência e que uma
ntas, não finalizadas;
é portanto responsável por uma emergência; ninguém pode se auto- nam. Em si mesmas as regras são vazias, viole
ou quil o; elas pode m ser burl adas ao
glorificar por ela; ela sempre se produz no interstício. elas são feitas para servir a isto
de uns ou de outro s. O gran de jogo da histó ria ser
Em certo sentido, a peça representada nesse teatro sem lugar é sabor da vontade
erar das regra s, de quem toma r O lugar daqu eles que
sempre a mesma: é aquela que repetem indefinidamente os domina- de quem se apod zá-la s ao in-
dores e os dominados. Homens dominam outros homens e é assim as utilizam, de quem se disfarçar para perv ertê -las , utili
, se
que nasce a diferença dos valores ”; classes dominam classes e é as- verso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto: de quem
introduzindo no aparelho complexo, O fizer funcionar de tal modo

28 G.M., MI, 13.


29 G.C. $ 148. É também a uma anemia da vontade que é preciso atribuir a Entes-
tehung do Budismo e do Cristianismo. $ 347.
30 G.M., 1,2.
31 P.B.M., $ 260. Também G.M,, II, 12.
25
24
que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias : -históri etafisica pode retomá-lo por sua conta e,
regras. As diferentes emergências que se podem demarcar não são fi- de visa oécios de uma ciência objetiva, impor-lhe seu pró-
guras sucessivas de uma mesma significação; são efeitos de substitui- io “egipcianismo”.
fixando-o sob às cspée Em compensação,ã o sentido hi:
tido histórico à
escapará
ção, reposição e deslocamento, conquistas disfarçadas, inversões
sis- dá metafísica para tornar-se um instrumento privilegiado da gencalo-
temáticas. Se interpretar era colocar lentamente em foco uma signifi- “a se ele não se apóia sobre nenhum absoluto. Ele deve ter apenas a
cação oculta na origem, apenas a metafísica poderia interpretar o de- ui de de um olhar que distingue, reparte, dispersa, deixa operar
vir da humanidade. Mas se interpretar é se apoderar por violência ou ações e as margens - uma espécie de olhar que dissocia e é ca-
sub-repção, de um sistema de regras que não tem em si significação ar ele mesmo de se dissociar e apagar a unidade deste ser humano
essencial, e lhe impor uma direção, dobrá-lo a uma nova vontade,
fa- que supostamente o dirige soberanamente para seu passado. |
zê-lo entrar em um outro jogo e submetê-lo a novas regras, então o O sentido histórico, e é nisto que ele pratica a Wirkliche Histo-
devir da humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia rie”', reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado imortal no
deve ser a sua história: história das morais, dos ideais, dos conceitos homem. Cremos na perenidade dos sentimentos? Mas todos, € sobre-
metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascética, tudo aqueles que nos parecem os mais nobres e os mais desinteressa-
como emergências de interpretações diferentes. Trata-se de fazê-las dos, têm uma história. Cremos na constância dos instintos e imagina
aparecer como acontecimentos no teatro dos procedimentos. mos que eles estão sempre atuantes aqui € ali, agora como antes. Mas
o saber histórico não tem dificuldade em colocá-los em pedaços - em
mostrar seus avatares, demarcar seus momentos de força e de fraque-
V za, identificar seus reinos alternantes, apreender sua lenta elaboração
e os movimentos pelos quais, se voltando contra eles mesmos, podem
Quais são as relações entre a genealogia definida como pesquisa obstinar-se em sua própria destruição **. Pensamos em todo caso que
de Herkunfi e de Entestehung e o que se chama habitualmente histó- o corpo tem apenas as leis de sua fisiologia, e que ele escapa à histó-
ria? Sabe-se das-apóstrofes célebres de Nietzsche contra a história, e se- ria. Novo erro; ele é formado por uma série de regimes que o cons-
rá preciso voltar a elas agora. Contudo, a genealogia é designada por tróem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é
vezes como “ Wirkliche Historie''; em várias ocasiões ela é caracteri- intoxicado por venenos - alimentos ou valores, hábitos alimentares e
zada pelo “espírito” ou “sentido histórico” *. De fato, o que Nietzs- leis morais simultaneamente; ele cria resistências ”. A história “'efeti-
che não parou de criticar desde a segunda das Considerações Extem- va” se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se
poráâneas é esta forma histórica que reintroduz (e supõe sempre) o apóia em nenhuma constância: nada no homem - nem mesmo seu
ponto de vista supra-histórico: uma história que teria por função re- corpo - é bastante fixo para compreender outros homens € se reco-
colher em uma totalidade bem fechada sobre si mesma a diversidade, nhecer neles. Tudo em que o homem se apóia para se voltar em dire-
enfim reduzida, do tempo; uma história que nos permitiria nos reco- ção à história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite re-
nhecermos em toda parte e dar a todos os deslocamentos passados a traçá-la como um paciente movimento contínuo: trata-se de destruir
forma da reconciliação; uma história que lançaria sobre o que está sistematicamente tudo isto. É preciso despedaçar o que permitia o
atrás dela um olhar de fim de mundo. Essa história dos historiadores Jogo consolante dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histó-
constrói um ponto de apoio fora do tempo; ela pretende tudo julgar rica, não significa “reencontrar” e sobretudo não significa “reencon-
segundo uma objetividade apocalíptica; mas é que ela supôs uma ver- trar-nos”. A história será “efetiva” na medida em que ela reintrodu-
dade eterna, uma alma que não morre, uma consciência sempre idên- zir o descontínuo em nosso próprio ser. Ela dividirá nossos sentimen-
tica a si mesma. Se o sentido histórico se deixa envolver pelo ponto

36 6.C,47.
7GC,57.
35 G.M. - Prefácio -67;€ 1,2. P.B.M., 6 224.
26 27
a pouco, às
cimentos se apagaram para que se mostrem, pouco
tos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá
a si mesmo. Ela não deixará nada abaixo de si que teria a tranqlilidade essenciais, o sentid o final, o valor primei ro e último; é
aco ticas
asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar por ne- açados; ele nos pa-
ar atrário uma miriade de acontecimentos entrel o
ndo, replet
nhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofun-
= tu ie “maravilhosamente colorido e confuso, profu mo
lhe deu
de sentido”: é que uma “multidão de erros e fantasmas”nosso presente
dará aquilo sobre o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará
contra sua pretensa continuidade. É que o saber não é feito para s que
compreender, ele é feito para cortar. vimentos e ainda o povoa em segredo *'. Cremo estáveis; exigimos
bia em intenç ões profu ndas, necess idades
Podem-se apreender a partir de então as características próprias
e historiadores que nos convençam disto. Mas o verdadeiro senti-
do sentido histórico como Nietzsche o entende, e que opõe a referências ou sem coor-
do histórico reconhece que nós vivemos sem os. sui.
“Wirkliche Historie” à história tradicional. Aquela inverte a relação ntos perdid
denadas originárias, em miríades de acontecime
habitualmente estabelecida entre a irrupção do acontecimento e a ne- Ele tem tamb émo poder de interv erter a relaçã o entre Pr a
do pela histór ia tradiciona
cessidade contínua. Há toda uma tradição da história (teleológica ou mo e o longinquo tal como foi estabeleci
racionalista) que tende a dissolver o acontecimento singular em uma metafí sica. Esta de fato E compraz
em sua fidelidade à obediência
continuidade ideal - movimento teleológico ou encadeamento natu- para o longín quo, para as altura s: as épocas ma s
em lançar um olhar
ral. A história “efetiva” faz ressurgir o acontecimento no que ele abstratas, as indivi
nobres, as formas mais elevadas, as idéias mais
imar
pode ter de único e agudo. É preciso entender por acontecimento não dualidades mais puras. E para fazer isto ela procura se aprox
uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma rela- o, coloca r-se aos pés destes cumes em con e
destas coisas ao máxim
das rãs. A hist -
ção de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário ções de ter com relação a elas a famosa perspectiva
retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se ria “efetiva”, em contrapartida, lança seus olhare s ao que está próxi-
enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mo: O corpo, o sistema nervoso, Os alimentos e a digestão, as ener-
a
mascarada. As forças que se encontram em jogo na história não obe- gias; ela perscruta as decadências, e se afronta outras épocas com
decem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da suspeita - não rancorosa, mas alegre - de uma agitaç ão bárbar a e in-
luta ”. Elas não se manifestam como formas sucessivas de uma inten- confessável. Ela não teme olhar embaixo. Mas olha do alto, mergu-
ção primordial; como também não têm o aspecto de um resultado. lhando para apreender as perspectivas, desdobrar as dispersões e as
Elas aparecem sempre na álea singular do acontecimento. À diferen- diferenças, deixar a cada coisa sua medida e sua intensidade. Seu mo-
ça do mundo cristão, universalmente tecido pela aranha divina, con- vimento é o inverso daquele que os historiadores operam sub-repticia-
trariamente ao mundo grego dividido entre o reino da vontade e o da mente: eles fingem olhar para o mais longe de si mesmos, mas de ma-
grande besteira cósmica, o mundo da história “efetiva” conhece ape- neira baixa, rastejando, eles se aproximam deste longínquo promete-
nas um único reino, onde não há nem providência, nem causa final, dor (no que eles são como os metafísicos que vêem, bem acima do
mas somente “as mãos de ferro da necessidade que sacode o copo de mundo, um além apenas para prometê-lo a si mesmosa titulo de re-
dados do acaso” ”. É preciso ainda compreender este acaso não compensa): a história “efetiva” olha para o mais próximo, mas para
como um simples sorteio, mas como o risco sempre renovado da dele se separar bruscamente e se apoderar à distância (olhar seme-
vontade de potência que a todo surgimento do acaso opõe, para con- lhante ao do médico que mergulha para diagnosticar e dizer a dife-
trolá-lo, o risco de um acaso ainda maior *. De modo que o mundo. rença). O sentido histórico está muito mais próximo da medicina do
tai qual nós o conhecemos não € essa figura simples onde todos 08 que da filosofia. Historicamente e fisiologicamente costuma dizer
Nietzsche “. Nada espantoso, uma vez que na idiossincrasia do filó-

38 GM. 2 41 H.DH.,6 6.
39 4.,8 130. 42 CI, “Divagações de um inatual” g
40 G.M., II, 12. , 4.
28 29
sofo se encontra a negação sistemática do corpo e “a falta de sentido
histórico, o ódio contra a idéia do devir, o egipcianismo”, a obstina- é a de não esc olher: ela se coloca no dever de tudo compreender sem
de tudo aceitar, sem fazer diferença. Nada lhe
ção “em colocar no começo o que vem no fim” e em “'situar as coisas distinção de a ltura;
últimas antes das primeiras” “. A história tem mais a fazer do que ser escapar mas também nada deve ser excluído. Os historiadores
serva da filosofia e do que narrar o nascimento necessário da verdade e ue isto é uma prova de tato e discreção: com que direito fa-
passou real-
e do valor; ela tem que ser o conhecimento diferencial das energiase dO atervir seu gosto quando se trata daquilo que se
desfalecimentos, das alturas e desmoronamentos, dos venenos e con- ip ? Mas de fato é uma total ausência de gosto, uma certa grosse-
travenenos. Ela tem que ser a ciência dos remédios “. E rocura tomar, com o que é mais elevado, ares de familiarida-
o PFOCUFA se satisfazer em encontrar o que é baixo. O historia-
Finalmente, última característica desta história efetiva: ela não dor ê insensível a todos os nojos: ou melhor, ele tem
prazer com aqui
teme ser um saber perspectivo. Os historiadores procuram, na medi- e serenidade se
da do possível, apagar o que pode revelar, em seú saber, o lugar de lo mesmo que o coração deveria afastar. Sua aparent
e em reduzir tudo ao mais
obstina em não reconhecer nada de grande
onde eles olham, o momento em que eles estão, o partido que eles to- deve ser mais elevado do que ele. Se ele de-
fraco denominador. Nada
mam - o incontrolável de sua paixão. O sentido histórico, tal como seja tanto saber € tudo saber é para surpree nder os segredo s que re-
Nietzsche o entende, sabe que é perspectivo, e não recusa o sistema ? Da plebe. A
baixam. “Baixa curiosidade”. De onde vem a história
de sua própria injustiça. Ele olha de um determinado ângulo, com o quem se dirige? À plebe. E o discurs o que ele lhe faz parece muito
propósito deliberado de apreciar, de dizer sim ou não, de seguir to- com o do demagogo: “ninguém é maior do que vocês” diz este
dos os traços do veneno, de encontrar o melhor antídoto. Em vez de aquele que tiver a presunção de querer ser superior a vocês -
a vos
fingir um discreto aniquilamento diante do que ele olha, em vez de aí que são bons - é malvado”; e o historiador, que é seu duplo, o imita:
procurar sua lei e a isto submeter cada um de seus movimentos, é um “nenhum passado é maior do que seu presente e tudo o que na hist
olhar que sabe tanto de onde olha quanto o que olha. O sentimento ria pode se apresentar com ar de grandeza, meu saber meticuloso lhes
histórico dá ao saber a possibilidade de fazer, no movimento de seu mostrará a pequenez, a crueldade, e a infelicidade”. O parentesco do
conhecimento, sua genealogia. A “'Wirkliche Historie"' efetua, verti- historiador remonta a Sócrates.
calmente ao lugar em que se encontra, a genealogia da história. Mas esta demagogia deve ser hipócrita. Deve esconder seu sin-
gular rancor sob a máscara do universal. E assim como o demagogo
deve invocar a verdade, a lei das essências e a necessidade eterna, o
VI historiador deve invocar a objetividade, a exatidão dos fatos, o pas-
sado inamovível. O demagogo é levado à negação do corpo para me-
Nesta genealogia da história que esboça em vários momentos, lhor estabelecer a soberania da idéia intemporal, o historiador é le-
Nietzsche liga o sentido histórico à história dos historiadores. Um e vado ao aniquilamento de sua própria individualidade para que Os
outro possuem um único começo, impuro e misturado. Eles saíram, outros entrem em cena e possam tomar a palavra. Ele terá portanto
ao mesmo tempo, de um mesmo signo em que se pode reconhecer que se obstinar contra si mesmo: calar suas preferências e superar O
tanto o sistema de uma doença quanto o germe de uma flor maravi- nojo, embaralhar sua própria perspectiva para lhe substituir uma
lhosa - e é em seguida que eles terão que se distribuir. Sigamos, por- &eometria ficticiamente universal, imitar a morte para entrar no rei-
tanto, sem diferenciá-los ainda, sua comum genealogia. no dos mortos. adquirir uma quase existência sem rosto € sem nome.
A proveniência (Herkunft) do historiador não dá margem a E neste mundo em que ele terá refreado sua vontade individual ele
equívoco: ela é de baixa extração. Uma das características da história poderá mostrar aos outros a lei inevitável de uma vontade superior.
Tendo pretendido apagar de seu próprio saber todos os traços do
querer, ele reencontrará do lado do objeto a conhecer a forma de um
Querer eterno. A objetividade do historiador é a interversão das rela-
43 CI,“A razão na filosofia”, 6 | eg 4.
ções do querer no saber e é ao mesmo tempo a crença necessária na
4 Vs. 5 88. Providência, nas causas finais, e na teologia. O historiador pertence à
30 31
teria podido
familia dos ascetas. “Eu não posso mais suportar estes cunucos con-
de Sócrates. sua crença na imortalidade. Mas Platão
cupiscentes da história, todos os parasitas do ideal ascético; eu não socrát ica, teria podido voltá-l a contra ela
derar-se desta filosofia . Sua
posso mais suportar estes sepulcros caiados que produzem a vida; eu o a fazê-lo
dO mia — e sem dúvida mais de uma vez ele foi tentad
não posso suportar seres fatigados e enfraquecidos que se cobrem de do séc. XIX é não
derrota foi ter conseguido fundá-la. O problema
sabedoria e apresentam um olhar objetivo". “ fazer pelo ascetismo popular dos histor iadore s o que Platão fez pelo
de Sócrates. E precis o desped açá-lo a partir daquil o que ele produziu
Passemos à Entestehung da história; seu lugar é a Europa do séc. -se mestre da his-
e não fundá-lo em uma filosofia da história, tornar
XIX: pátria das misturas e das bastardias, época do homem-mistura. isto é, um uso rigorosamen-
tória para dela fazer um uso genealógico,
Com relação aos momentos de alta civilização ei-nos como bárba- que o sentid o histór ico libert ar-se-á da his-
te antiplatônico. E então
ros: temos diante dos olhos cidades em ruínas e monumentos enig-
tória supra-histórica.
máticos; detemo-nos diante das muralhas abertas; perguntamo-nos
que deuses puderam habitar aqueles templos vazios. As grandes épo-
cas não tinham tais curiosidades nem tão grandes respeitos; elas não Vi
reconheciam predecessores; o classicismo ignorava Shakespeare. A
decadência da Europa nos oferece um espetáculo imenso cujos mo- O sentido histórico comporta três usos que se opõem, palavra
mentos mais fortes são omitidos ou são dispensados. O próprio da r palavra, às três modalidades platônicas da história. Um é o uso
cena em que nos encontramos hoje é representar um teatro; sem mo- paródico e destruidor da realidade que se opõe ao tema da história-
numentos que sejam nossa obra e que nos pertençam, nós vivemos reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo € destrui-
cercados de cenários. Mas há mais: o europeu não sabe quem ele é; dor da identidade que se opõe à história-continuidade ou tradição, o
ele ignora que raças se misturaram nele; ele procura que papel poderia terceiro é o uso sacrificial e destruidor da verdade que se opõe à his-
ter; ele não tem individualidade. Compreende-se então porque o séc. tória-conhecimento. De qualquer modo se trata de fazer da história
XIX é espontaneamente historiador: a anemia de suas forças, as mis- um uso que a liberte para sempre do modelo, ao mesmo tempo, me-
turas que apagaram todas as suas características produzem o mesmo tafísico e antropológico da memória. Trata-se de fazer da história
efeito que as macerações do ascetismo; a impossibilidade em que ele uma contramemória e de desdobrar consequentemente toda uma ou-
se encontra de criar, sua ausência de obra, a obrigação em que ele se tra forma do tempo.
encontra de se apoiar no que foi feito antes e em outros lugares o Em primeiro lugar o uso paródico e burlesco. A esse homem
constrangem à baixa curiosidade do plebeu. confuso e anônimo que é o europeu - e que não sabe mais quem ele é
e que nome deve usar - o historiador oferece identidades sobressalen-
Mas se esta é a genealogia da história. como ela pode se tornar tes aparentemente melhor individualizadas e mais reais do que a sua.
análise genealógica? Como não permanecer um conhecimento dema- Mas o homem do sentido histórico não deve se enganar com este
gógico e religioso? Como pode, nesta mesma cena, mudar de papel? substituto que ele oferece: é apenas um disfarce. Alternadamente, se
A não ser que nos apoderemos dela, que a dominemos e a voltemos ofereceu à Revolução Francesa o modelo romano, ao romantismo a
contra seu nascimento. ISto é de fato o próprio de Entestehung: não é armadura de cavaleiro, à época wagneriana a espada do herói germã-
o surgimento necessário daquilo que durante muito tempo tinha sido nico; mas são ouropéis cuja irrealidade reenvia à nossa própria irreali-
preparado antecipadamente; é a cena em que as forças se arriscam € dade. Deixe-se a alguns a liberdade de venerar essas religiões e de ce-
se afrontam, em que podem triunfar ou ser confiscadas. O lugar de lebrar em Bayreuth a memória desse novo além. Deixe-se a eles se fa-
emergência da metafísica foi a demagogia ateniense, o rancor plebeu zerem algibebes das identidades disponíveis. O bom historiador, o
Bencalogista saberá o que é necessário pensar de toda esta mascara-
da. Não que ele a rechace por espírito de seriedade; pelo contrário,
ele quer levá-la ao extremo: quer colocar em cena um grande carna-
45 GM. ll, 25. val do tempo em que as máscaras reaparecem incessantemente. Em
32 33
FACULDADE DE SÃO BENI!
BIBLIOTECA
DO RIO DE JANCIRO
vez de identificar nossa pálida individualidade às identidades marca- eigi ão tem por fim reencontrar as raízes de nossa identidade,
damente reais do passado, trata-se de nos irrealizar em várias identi- dirigida mário, e obstinar em dissipá-la; ela não pretende demar-
dades reaparecidas: e retomando todas estas máscaras - Frederic de pátria à qual
e território único de onde nós viemos, essa primeira
Hohenstaufen, César, Jesus, Dionísio e talvez Zaratustra - recome
ca metafísicos prometem que nós retornaremos, ela pretende fazer
o. recer todas as descontinuidades que nos atravessam. Essa função
cando a palhaçada da história, nós retomaremos em nossa irrealida-
de a identidade mais irreal do Deus que a traçou, “talvez nós des- ões
RA contrário daquela que queria exercer, segundo as Consideraç
cobriremos aqui o domínio em que a originalidade nos é ainda possí- Tratava-se , então, de reco-
Extemporáneas, à “história-antiquário .
vel, talvez como parodistas da história e como polichinelos de nhecer continuidades nas quais se enraiza nosso presente: continui-
Deus” *. Reconhece-se aqui o duplicador paródico daquilo que a se- -se com
dades do solo, da língua, da cidade; tratava-se, cultivando
gunda Extemporânea chamava de “história monumental”: história uma mão delicada o que sempre existiu, de conservar, para aqueles
que se dava como tarefa restituir os grandes cumes do devir, mantê- que virão, as condições sob as quais se nasceu -* A segunda das
los em presença perpétua, reencontrar às obras, as ações, as criações Considerações Extemporáâneas lhe objetava que ela corre o risco de
segundo omonograma de sua essência Íntima. Mas, em 1874, Nietzs- prevenir toda criação em nome da lei de fidelidade. Um pouco mais
che criticava essa história inteiramente devotada à veneração por tarde - já em Humano, Demasiadamente Humano - Nietzsche retoma
obstruir as intensidades atuais da vida e suas criações. Trata-se, ao a tarefa antiquária, más em direção inteiramente oposta. Se a genea-
contrário, nos últimos textos, de parodiá-la para deixat claro que ela logia coloca, por sua vez, a questão do solo que nos viu nascer, da
é apenas paródia. A genealogia é a história como um carnaval orga- lingua que falamos ou das leis que nos regem, é para clarificar os sis-
nizado. temas heterogêneos que, sob a máscara de nosso eu, nos proíbem
toda identidade.
Outro uso da história: a dissociação sistemática de nossa identi-
dade. Pois esta identidade, bastante fraca contudo, que nós tentamos Terceiro uso da história: o sacrifício do sujeito de conhecimento.
assegurar e reunir sob uma máscara, é apenas uma paródia: o plural Aparentemente, ou melhor, segundo a máscara que ela usa, a cons-
a habita, almas inumeráveis nela disputam; os sistemas se entrecru- ciência histórica é neutra, despojada de toda paixão, apenas obstina-
zam e se dominam uns aos outros. Quando estudamos a história nos da com a verdade. Mas se ela se interroga e se de uma maneira mais
sentimos “felizes, ao contrário dos metafísicos, de abrigar em si não geral interroga toda consciência científica em sua história, ela des-
uma alma imortal mas muitas almas mortais” ”. E, em cada uma cobre, então, as formas e transformações da vontade de saber que é
destas almas, a história não descobrirá uma identidade esquecida, instinto, paixão, obstinação inquisidora, refinamento cruel, malda-
sempre pronta a renascer, mas um sistema complexo de elementos de; ela descobre a violência das opiniões preconcebidas: contra a feli-
múltiplos, distintos, e que nenhum poder de síntese domina: “é um cidade ignorante, contra as ilusões vigorosas através das quais a hu-
signo de cultura superior manter em toda consciência certas fases da manidade se protege, opiniões preconcebidas com relação a tudo
evolução que os homens menores atravessam sem pensar... O primei- aquilo que há de perigoso na pesquisa e de inquietante na descober-
ro resultado é que nós sompreendemos nossos semelhantes como sis- ta.“ A análise histórica deste grande querer-saber que percorre a
temas inteiramente determinados e como representantes de culturas humanidade faz portanto aparecer tanto que todo o conhecimento re-
diversas, quer dizer, como necessários e modificáveis. E em contra- pousa sobre a injustiça (que não há, pois, no conhecimento mesmo
partida: que em nossa própria evolução nós somos capazes de sepa- um direito à verdade ou um fundamento do verdadeiro), quanto que
O instinto de conhecimento é mau (que há nele alguma coisa de assas-
rar pedaços e considerá-los à parte” “ A história, genealogicamente
sino € que ele não pode, que ele não quer fazer nada para a felicidade

46 P.BM. 5 223. % Considerações Extemporáneas, 11, 3.


47 V.S. (opiniões e sentenças misturadas)$ 17. Aurora, & 429 e 6 433; A Gaia Ciência, 4
48 H.D.H.. 6 274. 333; P.B.M., 4 229, 230.
34 35
o problema nunca fo
ne nnum sacrifa ício é grande demais. Esperando,
dos homens). Tomando, como ele o faz hoje, suas maiores dimen.
colocado...
sões, o querer-saber não se aproxima de uma verdade universal; ela
his
não dá ao homem um exato e sereno controle da natureza; ao contrá- As Considerações Extemporáneas falavam do uso critico da
rio, ele não cessa de multiplicar os riscos, ele sempre faz nascer os pe- o passado na justiça, de cortar suas raize:
tória: trat ava-se de colocar
rigos; abate as proteções ilusórias; desfaz a unidade do sujeito; libera a fim de libertar o ho-
com faca, destruir as venerações tradicionais
nele tudo o que se obstina a dissociá-lo e a destruí-lo. Em vez de o sa- origem senão aquela em que ele quer se
mem e não lhe deixar outra nos deshigar
ber se separar, pouco a pouco, de suas raízes empíricas, ou das pri- por
reconhecer. Nietzsche criticava esta história critica movimento da
meiras necessidades que o fizeram nascer, para se tornar pura espe- de todas as nossas fontes reais € sacrific ar o própri o
pouco mais
culação submetida às exigências da razão; em vez de estar ligado, em vida apenas à preocupação com a verdade. Vê-se que, um
seu desenvolvimento, à constituição e à afirmação de um sujeito li- O que ele então recu-
tarde, Nietzsche retoma por sua conta própria
vre, ele traz consigo uma obstinação sempre maior; a violência ing- ade inteira mente diferente:
sava. Ele o retoma, mas com uma finalid
tintiva se acelera nele e cresce; as religiões outrora exigiam o sacrift- passad o em nome de uma verdade
não se trata mais de julgar nosso
r a des-
cio do corpo humano; o saber conclama hoje a experiências sobre que o nosso presente seria O único a deter. Trata-se de arrisca
nte des-
nós mesmos, *' ao sacrifício do sujeito de conhecimento. “O conheci- truição do sujeito de conhecimento na vontade, indefinidame
mento se transformou em nós em uma paixão que não se aterroriza dobrada, de saber.
com nenhum sacrifício, e tem no fundo apenas um único temor, de se
extinguir a si próprio... A paixão do conhecimento talvez até mate Em certo sentido a genealogia retorna às três 110dalidades da
a humanidade... Se a paixão do conhecimento não matar a humani- história que Nietzsche reconhecia em 1874. Retorna a elas, superan-
dade ela morrerá de fraqueza. Que é preferível? Eis a questão princi- do objeções que ele lhes fazia então em nome da vida, de seu poder
pal. Queremos que a humanidade se acabe no fogo e na luz, ou na de afirmar e criar. Mas retorna a elas, metamorfoseando-as: a venera-
areia?” ” É tempo de substituir os dois grandes problemas que divi- ção dos monumentos torna-se paródia; o respeito às antigas conti-
diram o pensamento filosófico do séc. XIX (fundamento recíproco nuidades torna-se dissociação sistemática; a crítica das injustiças do
da verdade e da liberdade, possibilidade de um saber absoluto), os passado pela verdade que o homem detém hoje torna-se destruição
dois temas principais legados por Fichte e Hegel, pelo tema segundo do sujeito de conhecimento pela injustiça própria da vontade de sa-
o qual “'morrer pelo conhecimento absoluto poderia fazer parte do ber.
fundamento do ser “”. O que não quer dizer, no sentido da crítica, que
a vontade de verdade seja limitada pela finitude do conhecimento!
Mas que ela perde todo o limite e toda intenção de verdade no sa-
crifício que deve fazer do sujeito de conhecimento. “E talvez haja
uma única idéia prodigiosa que ainda poderia aniquilar qualquer ou-
tra aspiração, de modo que ela ganharia das mais vitoriosas - eu que-
ro dizer a idéia da humanidade se sacrificando a si própria. Pode-se
jurar que se a constelação dessa idéia aparecesse no horizonte, 0 co-
nhecimento da verdade permaneceria a Única grande meta a que se-
melhante sacrifício seria proporcionado porque para o conhecimento

S1 4.4 501.
S2 4.5 429. MA.
S3 PBM. 439.
37
36

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