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KURT KLOETZEL

O ABC DO
CHARLATAO

EDIÇÕES MANDACARU
São Paulo, 1988
@ Dreitos autorais, 19E8, de Kurt Kloetzel. Direitos de publicação reser-
vados por Edições Mandacaru Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab,
344 04602 São Paulo, Brasil. Telefone: (0il)241-0g58.
-
Capa: Ruth Klotzel.

"Udi,te, udite, o rusti,ci;


Attenti, non fiatate.
Io già suppongo e i,magino
Che al par di rne sappidti
Ch'io sono quel gran rnedico
Dottore enciclope d,ico,
Chiamato Dulcamara,
La cu,i uirtü preclara,
f,, i, portenti
infiniti
Son noti in tutti il mondo - e in
altri siti.
Benefattor degli uomini,
Riparator de'mali
In pocchi giorni, io sgombero,
Io spazzo gli spedali,
E la salute a aend,ere
Per tutto il mondo io ao
C omprat ela, comprat ela,
( Mostrand,o una bottiglia)

Per poco io ae la do!"

( Dulcamara, médico ambulante,


personagem da ópera O Elixir do
Amor, ile Donizetti)
I§BN E5-85148-03-9
Foi feito o depósito legal.
SUMÁRIO

PONTO DE PARTIDA 11

PREDICADOS DO BOM CHARLATÃO t7


Ganância t7
Oportunismo t9
Criatividade 2l
Mistificação 24
Comunicação social 26
Audácia 31
Toleima 32

PORQUE É TÃO FÁCIL SER CHARLATÃO . 35

O que tem que ser, será (a remissão espontânea) 48


Aquele que busca agradar: o efeito-placebo .. 52
O império da não-doença . . . 55

SE BEM NÃO FAZ. 61


A vaca sagrada da ciência 63
As soluções alternativas 67
Mal não pode fazer? 72
Um pequeno parêntese 77
A iatrogenia do espírito 78
Estas e outras 82

CHARLATÃES EM ESTILO GRANDE 85

COMO RECONHECER O CHARLATÃO .. 97


Afinal, o que é um charlatão? . . . 98
Diagnóstico difícil . 101 PONTO DE PARTIDA
O charlatão mentiroso 104
O charlatão sinisko 107
O charlatão pródigo 108 Não, a coisa não é bem esta: não é vaidade, ambição
O charlatão messiânico 110 ou mesmo talento que fazem o escritor. Para escrever
coisa que preste (e, modéstia à parte, é isto que me Pro-
O QUE FAZER? 113 ponho a Íazer) é preciso, antes de mais nada, uma boa
PONTO DE CHEGADA
dose de indignação. Somada, é natural, ao desejo de
119
passá-la adiante ao leitor.
O alvo de minha presente indignação - vocês já
adivinharam - é o charlatão. Mas, para evitar mal-en-
tendidos, é preciso principiar por definilo com bastante
precisão.
Não, vocês estão equivocados: em que Pese o uso Po-
pular, charlatão não é o político desonesto, o escritor
fracassado, o cantor que desafina, o goleiro que deixa
passar a bola fácil - charlatão é coisa inteiramente
diferente. \

Segundo os dicionários (e são eles que ditam as


regras), o charlatão é sempre tm ind,eseiáuel, um im-
postor, intrujõo, trapaceiro, embusteiro ou mesmo
pantomint,ei,ro que, dizendo'se dono de inéditos segre-
dos, explora a boa fé dos outros.
Mas, atenção
- não confundir com similaresl O char-
latão genuíno, o charlatão do dicionário, pode gabar-se

10 11
desmascarar aqueles que buscam Iudibriar a boa fé
de ser um especialista, um trapaceiro que optou por -
exercer seu ofício no campo da medicina - ou algo do público, para tirar proveito da saúde ou da doença'
que o valha. Não é tarefa fácil; para esse fim não existe fita mé-
O modelo original remonta a mil-e-tantos anos atrás, trica, um gabarito caPaz de distinguir charlatão de não-
ao vendedor ambulante que nas praças pírblicas, por charlatão ainda náo foi inventado. Há quem proponha,
todo lugar que encontrasse gente, ganhava o pão de para início de conversa, I'azer uma nítida distinção entre
me dico-charlatão e char tt;':ã.o-me dtco, o diploma univer-
todo dia apregoando, alto e bom som, os xaropes, as
ponradinhas, os elixires que trazía em sua trouxa. Era sitário, compreende-se, servindo de divisor de águas'
o ciarlatano, o homem que charlava além da conta e, Embora a incumbência que me deram se cinja ao
ao Íazê-lo, usava e abusava da mentira. primeiro destes figurantes, não vou perder temPo com
preciosismos. Em verdade eles são indistinguíveis, gê-
Com o passar dos tempos, o personagem evoluiu, o
meos xifópagos, tão similares em forma, espécie e grau,
palco da charlatanice (ou do charlatanismo) deixou de
na linguagem pomposa, na empostação de voz e, sobre-
ser a praça do mercado e foi transferido, armas e baga-
gens, à botica ou drogaria, ao consultório, legítimo ou
tudo, na ambição, que uma arbitragem acertada exigi-
não. A charla dos desonestos, vamos e venhamos, inva- ria uma bola de cristal.
diu a nossa própria sala de estar, membros que somos Eu seria até capaz de jurar que o bom charlatã'o -
do imenso auditório que recebe suas mentiras - agora seja qual for a subespécie - é caracterizado Por uma
ao nível de atacado - através da palavra impressa ou anatomia toda especial, algo parecido com o diagrama
pela voz dos locutores. da página seguinte.
Perdoem-me os eruditos, mas para mim a distinção
Tinha que ser: ao longo do tempo aquela figura de-
senhada pelo dicionário
entre médico-charlatão e charlatão-médico é puro ca-
- humilde, iletrada, digna até suÍsmo. Pois, mesmo sem ser esta a intenção, acabam
de uma certa comiseração
- passou por uma série de me- por admitir que a Passagetl pela universidade pode
tamorfoses; o estereótipo de charlatão adquiriu outra
dimensão e nos clias de hoje ninguém mais se surpreen-
servir de atenuante para a impostura, traPaça, tramPo-
de ao ver um distinto professor universitário, um abas- linagem. Seria bizarro demais.
tado empresário ou mesmo um ocasionai ministro de Outras tentativas de classificação existem, Por exem-
Estado ocupando posicão de destaque dentro da classe. pIo, aquela que nos é servida Por uma velha revista
portuguesa:
Tão bem disfarçados estão, que é difícil chamá-los "São muitas as variedades de medicos charla-
peio nome. No entanto, como minha indignação é gran-
tães. Hâ médico charlatão por fome, médico
rle, é precisamente isto que me proponho a fazer, doa
a quem doer. O charlatão moderno, agora que pode por vaidade, médico charlatão Por Sosto e mé-
charlatão por fim de ambiôção, médico charlatáo
dispor de uma alentada tecnologia, ganhou enormemen-
dico charlatão por toleima."
te em periculosidade, tornando-se assim imperioso - (Eclesiaste médico, junho de 1869,)
uma questão de vida e morte, pala dizer a verdade
1)
12
Bastante pitoresco, convenhamos. Mas acoutece que
os apetites acima aludidos não se excluem uns aos
outros, de resto temos que reconhecer que se muita
gente boa, entre cles, eu e você, tem vaidade, tem ambi-
ção e por vezes fome ou toleima, nem por isso conta
com talento para a charlatanice.
Reparem que a toleima não está sequer esboçada no
mapa anatômico que tracei, visto que na ocasião falta-
va-me coragem para contrariar o estereótipo. Segundo
I'É=--' secular tradição, o charlatáo seria tudo, menos um tolo.
í Agora, porém, depois de muito pensar e repensar,
cheguei à seguinte conclusão: para ser um bom char-
latáo basta ser urn tolo honesto.
Já que a posse de um diploma não garante um de-
sempenho profissional satisfatório, e o mesmo vale no
caso das intenções, sejam elas boas ou péssimas, que
recursos nos restam em mãos a fim de desrnascarar o
trapaceiro da medicina? ;

Como derradeira tábua de salvação resta-nos apenas


o lugar-comum: e pelos resultados que se conhece o
charlatão. E é assim que terá que ficar. . . por enquanto.
Figura I
Fica assim definido
- é verdade que de maneira bem
pouco convencional - o alvo de minha indignação tão
sentida.

14
15
PREDICADOS DO BOM CHARLATÃO

f)e uma coisa estou certo: não se pode aprender a ser


um bom charlatão; se porventura escolas de charlata-
nismo houvesse - ou meros cursos por correspondência
-é ninguém aprenderia coisíssima alguma. Tampouco
possível pegar o boi pelos chifres, querer ser charla-
ráo; tanto isso é verdade que aqueles pobres-coitados
que, por força de muitas privações, um dia decidem que
basta de sofrer, que daí para a frente também eles dei-
xarão de lado os escrúpulos, para tratar da própria
vida, infalivelmente vêm dar com os burros na água.
O bom charlatão já nasce feito.
Na Antiguidade o destino dos homens era lido no
firmamento, nos dias de hoje, porém, as atenções mais
abalizadas voltam-se todas para os cromossomos, De sorte
que me atrevo a afirmar que o bom charlatão é uma
criatura geneticamente pré-programada, dotada de re-
llexos e instintos certeiros, de uma série de predicados
que lhe asseguram sucesso em suas trapaÇas.
Vamos examiná-los:

Ganânci,a

A oportunidade, como se sabe, faz o ladráo. Assim,


se é verdade que a grande maioria dos homens carrega

17
,." I

dentro de si o germe da ganância, para que este venha para sempre de suas amígdalas, porque tantos apêndices
a vingar é preciso proporcionar-lhe batstantes oportu- de todo inocentes se viram sacrificados na mesa de ci-
nidades. Mas, para grande felicidade do charlatáo, o rurgia etc. etc. sem contar a inflação de custos nas áreas
campo da saúde (e da doença) dáJhe espaço de sobra. da clínica médica, do laboratório.
A comparação deve-se a Gentile de Mello: Calculem
- No meio desta orgia de medicali,zaçã,o, o comprador
como seria - dizia ele - se o corpo de bombeiros fosse só excepcionalmente estará em condições de escolher
remunerado em razío direta ao tamanho do incêndio. aqueles serviços que efetivamente se mostrarão benéfi-
E vocês acreditam que nessas condições o bombeiro cos para sua saúde.
ainda estaria interessado em preuenir incêndios, em Porém a ganância, embora necessaria, de modo algum
combater as chamas enquanto modestas? E acrescenta- é suficiente. Por sorte o bom charlatão foi contemPlado
va: - Garanto que todos logo virariam piromaníacos, com uma série de outros predicados, capazes de com-
pondo-se a fomentar foguinhos a torto e a direito. pletáJa de forma harmoniosa.
Pelo que entendo dizer, o salário dos bombeiros
independe da quantidarle de serviços prestados. Ainda
que quisessem faturar um pouco mais, não encontra- Oportuni,smo
riam oportunidades pela frente. É uma profissão que
não se presta para a trapaça. A oportunidade, quando chega, é preciso grudar-lhe
Enquanto isso, á. Medicina brinda o profissional com no braço antes que suma de vista. Nisso, o charlatão é
tentações mil, especialmente quando, como no Brasil, um mestre consumado.
foi "socializada" apenas pela metade. Entende-se assim Antes de qualquer outra providência, tem que avaliar
a falta de entusiasmo do charlatão pela Medicina Pre- as condições financeiras do paciente; feito isso, põe-se
ventiva, a sua relutância em servir de advogado das a "descobrir a que ponto chega a sua credulidade. (Em-
condutas sóbrias, conservadoras: quanto maior a quan- bora em matéria de saúde todos nós sejamos uns crédu-
tidade de serviços prestados (mesmo que foriados, in- los, ainda existem os supercrédulos, Presas fáceis de
ventados na hora), mais ganha, Nessas condições, a ga- toda sorte de charlatão.)
nância dispara em frentei pior de tudo. o cliente é Para que o sucesso lhe sorria, é necessário que o
sempre o írltimo a saber. charlatão esteja sempre muito bem informado, ainda
Os fatos aí estão, como o triste festival de cesarianas, que se trate de cultura de jornal, de porta de botequim.
por exemplo que, de norte a sul, assolou o país na Quanto à cultura científica, esta só uma elite pode
década dos 60, por aí. (A tal ponto chegou que, nos dias ostentar; esta costuma assinar revistas técnicas, volta-e-
de hoje, raro o profissional, raríssimo o cliente, um meia está de viagem ao exterior, mamando na própria
pouco mais abastado, que não entenda o parto natural Íonte, sempre um excelente investimento.
como algo de ligeiramente obsoleto.) Fica claro, tam- .|á se foi a hora e a yez da hipnose, das pulseiras de
bém, por que gerações inteiras tiveram que despedir-se cobre, sem falar no enxerto de glândulas de macaco. O

18 19
rnercado para a acupuntura, paÍa a homeopatia, por feito, também para o charlatão a medicina consiste de
outro lado, já está próximo da saturação. Para o char- urna sucessão de lançamentos, tal qual aquele modista
Iatão isso e sinal de que chegou o lnomento das ino- qlre a cada estação é obrigado a comparecer corl unla
vações. linha inédita. Assim, se no ano passado a emagricina
E assim folheia suas revistinhas, percorre as manche- era a solução sonhada das pacientes obesas, na presente
tes, dá tratos à bola, por fim adota um novo macete, estação o último grito é a dieta rica em fibras vegetais.
ainda virgem de uso. Faz saber, por exemplo, que agora (Diga-se apenas de passagetn que terão clue ser Prove-
é especialista no "treinamento autógeno" (a Írltima sen- nientes da alcachofra e dos brócolis, visto que o farelo
sação no tratamento da hipertensão), passa a anunciar de trigo ou de arroz jâ faz muito que foram ul[ra-
que o ZK-\, de tão fabulosos resultados nos sanatórios passados.)
da Bulgária, especialmente nos velhos e no terreno do O mundo gira, o charlatão se renova, seja ele grande
desempenho sexual, também é encontrável em sua clí' ou pequeno. No que diz respeito ao primeiro, o charla-
nica privada. tão de nomeada, este faz tudo em estilo grandioso: é
Um ou[ro charlatáo teve notícia de que a anfoterici- ele o responsável pelo recém-fundado Centro de Hipno-
na-M, apresentada num dos últimos congressos da Sué- logia do Apetite, o Serviço de Infectologia Geriátrica,
cia, fora festejada como ansiada solução de um certo tipo a Clínica de Reparação Sexual, onde se pratica, com
raro e exótico de pneumonia. Daí para a extrapolação cntusiasmo e total dedicação, o implante de um clitóris
foi um passo só: não é que a gripe de inverno que está cle plástico, solução definitiva Para a frigidez feminina.
por aí grassando faz igualmente jus ao título de "doença (Falei metaforicamente, compreenda-se. mas para o bom
dos pulmões"? entendedor meia palavra basta.)
E foi assim que ele, que há tempos aguardava uma De maneira geral, o bom charlatão vive com antenas
táo promissora oportunidade, ato contínuo passou a dar estendidas ao ar, de bandeira desfraldada. para melhor
entrevistas a respeito da recente epidemia, cuja gravi- reconhecer rle que lado vem o vento. Suponho que seja
dade não se cansava de ressaltar, e logo rnais f icou este o motivo por que se dá tão bem na política.
conhecido como "pioneiro da 'anfotericinoterapia' em
nosso estado".
Sensível como só ele ao estado de espírito do público, Criatiuidade
o charlatão é perito em identificar o momento preciso
para entrar em cena, nem cedo demais, nem tarde. A O bom charlatão sabe tirar água de pedra. Se para
exemplo do born costureiro, que aguarda a primavera este gênero de coisa hout,esse um torneio anual, o gran-
para o lançamento de seus novos modelos de verão, de prêmio decerto seria outorgado àquele charlatão
também o médico charlatão escolhe o instante certo patrício que teve a primazia da amigdalectomia "a dois
para a exibição de srra nova linha de charlatanices. tempos", e persuadiu o público de que, em vista de
Quem já ná.o ouviu dizer que "Remédio novo tem possíveis complicacões cirirrgicas, o mais prudente seria
que se usar logo, antes que perca os efeitos"? Dito e extirpar uma amígdala por vez. (I-amentavelmente,
2A 21
depois que a Previdência Social enxergou que estava mente se lhe aPresentam, e não há porque duvidar que
pagando duas unidades de serviço em troca de um ser- um ponto de tinha no dedo gordo do pé esquerdo' por
viço só, a prática ficou restrita aos pacientes parti- exemplo, surtirá efeitos idênticos (quero crer que tam-
culares.) bém à raio la-,,'r, atualmente tão falado, encerra incon-
táveis oportunidades. . .).
Vez por outra, também a medicina tem pela frente
o seu ano de vacas magras. O progresso parece que O pudor é um vício desconhecido ao charlatão' Para
estancou, faz tempo que nada de novo tem pintado no multiplicar os pães, ou melhorr para fazer com que
horizonte da tecnologia, nenhuma droga "milagrosa", uq,r"tà paciente'lhe renda, ao invés de uma consulta
nenhum tratamento inovador, nenhuma doença de só, quatro ou cinco delas, caPaz de recorrer aos mais
nome, nunca dantes descoberta. Em tais momentos, a originais expedientes:
criatividade é uma tábua de salvação: já que a ciência Com doenças mais graves náo pode contar' já que
mostrou-se tão avarenta de novidades, a solução é in- elas são raras - 2%, \fo no máximo' Terá que-con-
ventá-las! tentar-se com o banál, o irivial, o prosaico' e cuidar-se
anleaça-
Tendo verificado qlre o farelo de trigo ou de arÍoz, para que aos olhos do paciente tomem asPecto
fibras vegetais que no ano passado ainda estavam na àor. Pu.^ isso não the faltam Pretextos' entre eles os
crista da onda, passaram a ser mal aceitos pelos obesos, cinco, seis ou sete resfriadinhos ao ano, inevitáveis mes-
diabéticos ou constipados, um de nossos charlatães mo na criança sadia'
associou-se a um cunhado, repçistrou sua própria firma, A elas o charlatão reserva um carinho todo especial'
passou a fabricar o FIBROGEL, produto vendido nos tem com elas mil cuidados, pois t'ir"ter e perigoso' Cada
sabores baunilha, morango e pistácia. Nesta mesma resfriado leva um nome próprio, que jamais será repe-
especialidade (isto é, a exploração de gordos e obesos), tido: ora é uma "umerçã de broncopneumonia"' ora
"esPasmo brônqui-
mil r,ariantes restam virtualmente inexploradas. Uma trata-se de um "início de asma", uln
vez que as gorcluras, os carboidratos já deram o que .o", qriçá uma "infiltração puhnonar"' O receituário'
tinham que dar - assim como o regime dos cinco litros é .rutrr"i, terá que ficar à aliura da preocupa.çáo susci-
diários de água mineral, moda da írltima estação - o tada por aquele caso clínico, e desde já é preciso. tornar
que impede que seiamos criativos, introduzindo em seu .lrro'q,r. medidas caseiras tais como o rePouso de leito'
lugar uma dieta da casca de batata, só para dar um os tíquidos em abundância e uma ocasional aspirina-
exemplo, ou o mingau de bagaço de cana, a infusão de zinha são absolutamente contra-indicados'
rnanjericão, sei lá o que mais? Também na prescrição é importante ser versátil' ja-
"fanbém o filão do "ponto na orelha" (infalível, mais caindo ,.u ,ep"tiçáo' É preciso evitar a todo custo
como se diz, na hipertensão, no tabagismo, nos comilões que, da próxima vez que houver gripe ou resfriado
e na Í'rigidez sexual) está prestes a esgotar-se, logo é pre-
na família, eles venham ã medicar-se Por conta própria'
ciso partir para outra. Como o bom charlatão é unr Muito pruclentemente, o charlatão iamais 'd"::^:'.y
^se the ficaria difícil'
inspirado, urn grande número de variantes imediata- paciente. o fizesse, a mistificação

2)
22
P-vTtí
Mistificação

Cuidado: aiaer é peri,goso! é a ladainha favorita do


charlatão. No entanto, se o paciente despreocupado
?
o
GÍI
5[A BEN
para ele é um inoportuno, tampouco lhe interessa
lançáJo ao abismo do desespero. Como sabe, melhor e desarranios

que ninguém, que a té já é 90To do caminho andado, De scôrdo


dentição, dê-lhe

jamais esquece de acrescentar à consulta um final feliz, no seu ról


insinuando que "ao confiar em mim e em minha infi-
nita competência, você só tem a ganhar".
Irlor!ló]lo
éumoq
íico de
q doeaÇc ern
AS
sob os gucrs Ê CONTAGIOSA.
Discordo de muitas das proposiçóes defendidas por bem servir à PROBLEMA PESSOAL.
tqmbém, Pqrq o
Ivan Illich, mas não posso deixar de reconhecer que seu rapêutica, eíos
nipulqdas com Prt
libelo contra a "medicalízaçáo" de nossas vidas, u "Pa- portodos de Nova
cientização" da humanidade, vêm muito a propósito ?rn,r,co
desta mistificação de que estou me ocupando.
Não e preciso muita inteligência mas apenas uma
apurada intuição para compreender que há momentos
DOR
Fisura 2
em que a medicalização vem a calhar, quando a doença'
ou a doencinha (pronto! - estão apresentados ao ter-
mo) servem-nos de muletas muito oportunas, pretex-
tos para a falta de realização, desculpas pa1a os grandes
ou pequenos insucessos da vida. A "celulite" tor€a-se
assim responsável pelo desamor - não é mesmo? - a
irritabilidade, a memória fraca, o mau aproveitamento
do escolar correm por conta de uma "disritmia", meus
quilinhos a mais nada têm a ver com a gula pois o cul-
pado são as glândulas endócrinas, o pâncreas, a tiróide,
o hipotálamo, sei lá o que mais. Muito cuidado pois
- uiaer é perigoso!
O médico sério faz da verdade o seu fetiche. Evita
alarmar sem necessidade e, quanto à medicação e aos
exames, mostra-se de uma sobriedade exemplar. Res-
peita o bolso do cliente, esforça-se por tirar-lhe a inquie-
tação
- e isso sem recorrer a promessas extravagantes.
25
24
Como todo bonr cjentista, usa a lógica, busca a objeti_ são construídos de ouro e mármore: um altar de santa
vidade - e assim, forçoso é confessai, por vezes se torna em casa de pau-a-pique carece de credibilidade.)
insosso. Como é notório, quando se trata de atinar com os
O charlatão, em contrapartida, não tem estes escrú_ conhecimentos .to profissional, de avaliar suas habilida-
p.flos, É uma figura eminéntemente prárica, cuja .*p"- des, o público subitamente se vê privado de instrumen-
riência dernonstrou que o grande público e tos. Por outro lado, tem uma extraordinária sensibili-
-r'i,o
chegado a uma .sensação, prefãre o circo à sala de aula. dade pela imagem que lhe é mostrada (e assim a forma
Cor-npreendeu que, em se tratando da saúde, também tern que predominar sobre o conteúdo), o espetáculo
os homens odeiam o vácuo. que lhe montam.
Aos olhos do charlatão o cliente é sempre uma crian_ Querem ver?
ça de cinco anos, incapaz de assimilar j verdade. E a
exemplo da criança que, curiosa em conhecer detalhes
a respeito do sexo, é recebida com evasivas, també,r ao Ricanor Pergolese
cliente serve-se ficção em vez de realidade. Médico
No dicionário do charlatão não existem achaques,
distúrbios passageiros, doenças banais, doencinhas.'Seu dos Amairás 1324 P.es. 333-2222
jargão é outro: nele proliferam o ,.ligeiro aumento 222-3833 Manguinhos
d.o
colesterol", a "ameaça de congestão;, um ,.início dc
nefrite", de dilatação cardíaca, de epilepsia erc. etc.,
tudo isso dentro de um clima de muita pompa e .i.-
cunstância.

Clínica de Infectologia Geriátrica


Comunicação social Filiada à Sociedade Internacional de Infectologia

Comunicar é preciso. Charlar é preciso, senão os de- Prof. f)r. RICANOR PERGOLESE
rnais predicados jamais aringem plêna expressão. Professor Catedrático
A rnedicina não é apenas unt artesnr.tato ntas sobre_ Universidade Federal de Manguinhos
ludo urna arte q:ue, nas rnãos do charlatão, tem como
ponto alto o saber, im,pressionar. (euern é que ignora 1324 - PBX 222-3333 - Manguinhos
que na Grécia antiga, em Roma, as-consukai eruá cla_ atende com hora marcada
das no interior dos templos de Esculápio?) E, pu.u
.,r,rr_
prir tal objetivo, um pouco de exibiciorri.-o, a. pà.,, Viram? Não é verdade que, da próxima vez que um
pa, não faz mal a ninguérn. (O, verdadeiros ter'rplos amigo te perguntar por um bom infectologista para o
26 an
que acostumar-se a ser impontual. Seu expediente habi-
caso do pai ou avô, é ao segundo Pergolese que darás
úalmente começará horas depois do previsto, mas este
preferência? atraso a recepcionista já foi instruída a justificar: t'
Tudo isso o bom charlatão está cansado de saber e soubessern como o douior anda atarefadol Estará igual-
assim, reconhecendo que para ele a rnodéstia é um luxo,
rnente autorizarla a interromPer as consultas ao Ineio'
reserva todo o seu capricho para a imagem. Bem traba-
transferindo-lhe toda sorte de telefonemas, ainda que
lhada, ela se transforma num instrumento de trabalho se trate apenas de amigos ou familiares' (Claro, . tudo
como outro qualquer, igual ao estetoscópio, ao bisturi.
isso tambêm vale Para o caso do charlatão principiante'
Nela vale investir. que por enquanto ainda é obrigado a viver de seu salá-
Para criar uma mística, o mobiliário modernoso, a rio do INAMPS.)
suave mÍrsica-ambiente, o terminal de computador sobre Dado que o esPaço me é muito prccioso, não me alon-
a mesa da recepcionista é perfeitamente dispensável. O gurei em'mais àeialhes, mesmo porque não acredito
investimento em dinheiro mostra-se uma questão se-
cundária: são os detalhes, os pequenos cuidados que [.r. o leitor tenha a intenção de montar seu próprio
alto uma série
ànsultório. Porém não posso Passar por
l'azem toda a diferença, c;ue dão contornos à imagem. voltadas ao
de outras características do charlatão, todas
Mas as credenciais - diplomas, certificailos e atesta- nobre objetivo de imPressionar:
dos de toda sorte
- são de suma importância. Exibidas
ao longo das paredes sem o minimo pudor, ninguém l.Comunicar náo é igual a informar - e o charlatão
prosseguirá ignorando que aquele é unr ternplo de no- sabe disso. Como sabe também que o doente não vem
tório saber. (Quem aventurar-se a examinar rnelhor tais em busca da verdade mas de uma versão mais aceitável'
credenciais descobre que nem sempre procedern de (Só o masoquista quer saber a verdade, só o sádico lha
entidades inteiramente idôneas, e vem a desconfiar qLle oferece.)
eln sua grande maioria não exigiram do homenagearlo
uma dedicação especial. Mas quem vai querer exa-
2. O bom charlatão é sempre um generoso, um pró-
minar?) digo. Não há doencinha que escaPe de uma radiografia,
A série de pranchas anatômicas, estrategicalnente dJsuu meia dÍrzia de exames de laboratório, nenhuma
distribuídas peló consultório. reforça a boa impressão; receita que não contenha quatro, cinco ou mais produ-
de resto, se o charlatão conseguir emprestar algumas tos diferentes.
pcças preservadas em formalina (ainda que para isso
tenha que recorrer à Faculdade de Veterinária), faria 3. Trata-se de uma figura constantemente "atualiza-
muito mal em privar o pirblico de mais esta sensação. da", como o demonstra a marcante preferência pelos
Todo bom charlatão, mesnro quando em início de exames "mais modernos", seu notável conhecimento dos
carreira, terá de cultivar a imagem de um homem últimos lancamentos da indústria farmacêutica' (Mes-
imensamente procurado, de vastissima clientela. Assim,
mo que a fórmu.la do produto seia nossa velha conheci-
para que a sala de espera nunca lhe fique às moscas, da, o nome terá que ser inédito')
ao contrário, tenha gente apinhando-se nos cantos, terá
29
28
Auddcia
4. Seiam qrrais forem as circunstâncias, o bom char-
iatão seLore exibe uma inabalável segurança. Jamais A carga genética do charlatáo compreende também
u,r, ,orrrüro d" incerteza turva-lhe os lábios, ufll ou urna série de predicados menores, por exemplo o mi'
outro ,,talveZ", .ym perdido "quem sabe se. . ", unl rnetisrno social (isto é, a capacidade de tomar a cor do
ocasional ,,naainha opinião.. .". O bom charlatão não
ambiente para, em caso de imperiosa necessidade, nele
tem opiniões fl)as conuicções' Ostenta sempre a firmeza
desaparecer), o niilismo científico (se a verdade absoluta
do gru.rito, urr Predicado que, diga-se, muito lhe invejo'
não passa de uma ilusão, então a diferença entre cien-
tista e não-cientista se torna fictícia), e outras tantas.
Ao chegar à idade madura - e ao inevitável sucesso
_ o .hari, tão pode viver mais tranqüilo, sem o cons- É através da audácia, porém, que a charlatanice atin-
tante autopoliciarnento, uma vez Por outra dar-se ao ge toda a plenitude. Isso dispensaria maiores comentá-
luxo de aleunla pequena imprudência. Agora que tem rios, não tivesse ell uma pitoresca história a contar, que
a fama a trabalhar por ele, o mundo está disposto a con- tão bem ilustra a afirmação feita páginas atrás - que o
ceder_lhe sras excentricidades, sua vaidade, e mesmo bom charlatáo jâ nasce feito:
uma ocasional dernonstração de prepotência. O paciente trabalhava de auxiliar de enfermagem
A essas alturas iá náo se contenta em ser chamado no hospital universitário, e tinha como queixa princi-
por "Dout61" Ílefl1
"Professor" mas faz questão fechada pal uma ocasional mas severíssima dor de cabeça, que
ào ..professor-Dorrtor". Dá. plena liberdade a que o fo- vinha precedida de perturbações visuais extremamente
tosrafem na escada da aeronave, sabendo que no dia penosas, estrelinhas, manchas, imagens luminosas que o
se§uinte irrn drlá,manchete ("Cientista Parte Para con- atormentavam durante pelo menos meia hora. Infor-
g.Érro rro .*1srior")' mou ter-se consultado com um dos médicos do andar
'I'arnbér, se habittr6u a conceder entrevistas sobre de baixo, que diagnosticara uma doença do fígado.
a AIDS (esrá con\ricto, diz ele, que tent como írnica Sem encontrar alívio algum com a medicação, o enfer'
causa u .llrrr"n,ável licenciosidade verificada enrre os meiro buscou socorro com unr segundo médico, que
jovens e os peÍveltidos"), sobre o controle da natalida- desta feit.a não teve a rnenor dificuldade em reconhecer
â", ,.,rru iguahlrerrte moderno, e que deverá ser enca' os sintornas de uma típica, de uma vulgar enxaqueca.
rado .orro" .rrr, problerna prioritário Para a nação, NIaldoso, o paciente retornou ao primeiro médico, e
,.visro
delc depenier :r solução definitiva do grave pro- contou-lhe qual fora o diagnóstico do colega. Mas, ao
blema da aelingüência juvenil". invés de consternação, de ciúme profissional, quiçá um
por essa época é eleito presidente da Sociedade Bra- pouco de vergonha, foi recebido por uma salva de gar-
sileira de Iniectologia Geriátrica (ou outra qualquer), galhadas: - Mas que besteira que lhe disseram! . . .

entidade que, diga'se de passagem, ele mesmo inspirou. Me diga uma coisa: a icterícia também não começa
pelos olhos? E a icterícia por acaso não é sinal de doença
É mesrno u1É legítinro "artista" !
)1
,0
de fígado?. . . Taí g qr. eu te falei _ é
por isso que Sangue humano
estou tratando teu fígadol
Gordura de eunuco
E agora concordam quando lhes digo que a charla- Musgo retirado da caveira de critninosos
tanice não se aprende nts livros?
AcLlsar Paraceho, famosopioneiro da farmacoterapia.
Toleima de tÍampolineiro seria um ato de infâmia, de Pura
heresia. No caso Presente, porém, uma boa dose de
toleinra não lhe pode ser negada.
Bem ao meio da cena III do primeiro aro, Elixir
O Çanha-se assim nova dimensão para a charlatanice,
do.!*oT atinge seu rnomento c;lminanre: Dulcamara,
médico itinerante, em troca de alguns escudos, cede não Prevista Pelos riicionários.
Vivemos cercados dos sósias de Dulcamara: o cirur-
a.
Nernorino o frasquinho que lhe
§arantirá o amor de
Adina. Começa a seguir u-cantorial Eião gue pratica operações-fantasma (longe de olhares
ç,rrlesos, abre e Í'echa a pele, em seguida diz que retirou
Yá, e pense em prazeres, ou consertou este ou aquele órgão), aquele charlatão
Um tesouro eu te dei: da Paulicéia que, para fazer seus diagnósticos, serve-se
Quando arranhã chegar, de unra roleta com luzes coloridas, o impostor que mis-
Todas vão te adorar. 1s12 alguns corantes em sua garagem, depois vende a
rnslcadoria sob disfarce de um "purificador do sangue",
Mas acrescenta-lhe, obviamente ern surd.ina: e daí para a frente.
(N{as amanhã na alvorada Efltretanto - podem crer - ainda mais comum que a.
Bem longe estarei.) p2lifaria é a simples toleima, a ignorância que o pró-
prio interessarlo,desconhece. E não podia ser diferente,
Será esta a única atitude a esperar do charlatão, a iois o nosso país, ao contrário de muitos outros, não
mentira deslavada, o ato de franca impostura? porven_ iequer rlo profissional uma periódica revalidação do
tura não existirão outros possíveis tipoi de charlatão, o diploma'
charlatão por descuido, pàr exemplá, o charlatão mal_ Assim sendo, se ninguem lhes exi.ie ulna Prova de que
grado as boas intenções, o charlatãà tão tolo que se tor_ ssu5 conhecimentos estão em dia, não é de estranhar
na vítima da própria charlatanice? .re rnuitos destes profissionais já perderarn o hábito
Tudo indica que sim. j. 2brir unr livro ou revista méclica. (Segundo <l de-
falar, por exernplo, que um tal ,.pó-da_sim_ lnepst-ra uma estatística norte-alnericana, chegada a
9ly.:.
patia", de uso corriqueiro -nos #culos XV e XVI, era hora de receitar, em torno de sessenta Por cento clos me-
entusiasticamente endossado pelo próprio paracelso, na_ dicos tinhaln como única orientação as bulas e as infor-
da mais, nada menos! Sua .o*poriçaà, rnaÇóes distribtrídas pelo propagandista do laboratório
1o.r1-racêutico !)
)2
t)
O espírito crítico e tão raro entre os profissionais da
saúde corno na população leiga. Têm a mesma credu-
lidade ern face das superstições, o lnesmo inabalár,el
respeito pelas meias-verdades. É uma toleirna que é uura
catástrofe.
Muitos deles simplesmente ignoram que também seu
aparelho de pressão, corno todo e qualquer instrurnento,
periodicarnente deverá ser aferido, daí que certos con- PORqUE É TÃO FÁCIL SER CHARLATÃO
sultórios tão comumente fabricam grupos inteiros de
"hipertensos", ou bandos de coitados que arrastam pela
vida a desgraça de uma "pressáo abaixo do normal". "O charlatanismo começou no dia em que o
Nem é licito duvidar que, a essas alturas, se o médico primeiro patife viu-se frente ao primeiro im-
beci1."
prefere a cesariana ao parto natural, nem sempre o faz Voltaire
por ganância ou comodismo, mas porqlle também foi
condicionacLo a acreditar que com o advento da ciência
Segundo os leigos, o charlatanismo seria apenas relíquia
este último [ornou-se inteiramente obsoleto.
de um passado remoto e assim, distante no temPo, toma
Poderá esta ignorância epidêmica servir de atenuante ares de inofensivo, adquire feições um tanto pitorescas.
ao que ocorre em nossa volta? Empoeiracla relíquia do tempo em que se tanto se te-
Ao que ouvi dizer, todo júri tem especial conside- miam os 'iluidos", "humores" e "miasmas", quando
ração pelo assassino, se o advogado de defesa conseguir o diagnóstico era lido no firmamento ou nas vísceras de
pro\rar (luc o crime foi cometido sob influência da em- ovelhas sacrificadas segundo o ritual, quando os medi-
briaguez ou de tóxicos, além do que a pena reservada camentos mais cobiçaclos tinham como ingredientes o
aos doente-. menrais é particularmente branda. excremento de crocodilo, o pó de mírmia egípcia e uma
Lamento rnuitíssirno, mas corn o proÍ'issional da saú- pitada de raspado de chifre de "unicórnio". Travessu-
de não terei esta sorte de escrúpulo. Ainda que não ras de uma ciência que ainda engatinhava.
exista suspeita de má-fé, o mau médico sempre faz jus Não é bem assim: não é preciso voltar mil anos atrás
ao nome rnaldito: Charlatão! para encontrar-se com o charlatanismo.
Bem no crepúsculo do século passad,o, um certo
Doutor lllock, venerável cirurgião norte-americano, ale-
Sremente proclamou que a melhor solução contra a
masturbação da mulher - esta "lepra moral", como a
denominava
- consistia na radical extirpação do clitó-
ris! Enquanto isso, do outro lado do oceano, o pediatra

i1 35
J. L. Milton, autor de um rexto que alcançou doze res-
peitáveis edições, propunha que aos jovens do sexo mas-
culino se colocasse em volta do pênis um anel dotado
de fortes dentes para que, na eventualidade de uma
ereção noturna, tivessern o sono bruscamente interrom-
pido!
E reparern, por favor, na Figura 3, a barbaridade que
estão fazendo corn estes pobres doentes mentais! E, no
entanto, era este urn dos "tratamentos" mais populares
na famosa Salpêtriere de Paris, celebrizada por Charcot
e pelo jovem Freud, nío faz bem urn século.
Então o leitor replicará: - Sim, mas isso passou-se
há tanto tempo! Nos dias de hoje as coisas são diferen-
tes, a medicina evoluiu muitíssimo.
Na teoria sim, na parte pratica nem tanto.
Por exemplo, ainda no ano passado, o Professor Bar-
nard (aquele do transplante cardíaco) dispôs-se a servir
de garoto-propaganda de um certo "creme rejuvenesce-
dor" (Folha de S. Paulo, 2413186), iniciativa que lhe
custou um bom número de críticas.
Tambem a Zero Hortr, de Porto Alegre comparece ao
anedotário, relatando que um médico naturalista de
Barbacena, Minas Gerais, tornara-se muito conhecido
em razã.o de sua "dieta à base de sopa de minhoca"
(edição de tzl2l87).
Será que na prdti,ca houve noráveis progressos?
A Figura 4 bem que nos faz duvidar, especialmente
quando confrontada com a anterior. Embora o "apare-
lho japonês" não mencione as doenças mentais, seu es-
petro de ação promete ser bastante amplo: começa corn
a incontinência urinária, termina na neurastenia, pas- Fiqura i
sando pela "esclerose', dispepsia, cansaço, hipertensão
etc." - e por cima ainda faz emagrecer!

16
)/
Efetivamente, na teoria o progresso foi indiscutível:
hoje em dia, por exemplo, já existe um processo cirúr- rtr{(Q.olsltr
gico para a cura da miopia que maravilha! Acontece
-
que, quando manipulado pelo charlatão, o bisturi tor-
na-se uma arma branca, conforme foi noticiado, ainda
em 1986, por diversos órgãos da imprensa, que se puse-
ram a denunciar uma série de graves acidentes. O de-
N B['Jf^'l[dfl,'
EMBETEZE llSEU
0 maior segredo da saúde orienta[ agora no Brasil!

poimento de alguns oftalmologistas conhecidos serviu


de confirmação: um grupo de profissionais mal prepa- 'qsF*s;*qà§.à**u-
rados e mal equipados efetivamente andava por aí, pro-
clamando-se "especialistas" neste tipo de operação.
Estes são apenas alguns exemplos, tirados a esmo do
grande festival de charlatanices que prossegue, tão des-
trÁms |[B- PC B{§^$' @srs fr+
carado como sempre foi, não obstante os avanços da Cob. &bçào & AaE.&eebB Cdú..,Et&i
úrlqtuôqir úS+aõr
ciência. d§li§ !iú ô mí ê süIôde ÂptqrÉED M tOE
vfr. gdün ú Íí E[!b 6 dF .96. FaE úm , se
Ali6ol,lle ory d! ryB aaboi r mi
màhó{@ tu rmlF
Agora que você e eu concordamos, sem mais exem-
plos serem precisos, que o charlatanismo tem sete vi-
3ffi 3:ffif o aparehoJaponês que
das, uma pergunta se faz ouvir:
- E por que ainda não
puseram um paradeiro a semelhante estado de coisas?
elmna o cansaço,a hipertensáo
eanda emagrece!

Serd que í/oltaire estaua certo?


As coisas nunca são tão simples assim: o charlata- Fiturt 4

nismo de modo algum tem como causa única a imbeci-


lidade do comprador. O rermo mais apropriado seria
ingenuidade) tJma ingenuidade, uma inocência, uma
infantilidade que o rorna vitima fácil das falsas pro-
messas, dos truques de toda sorte de trampolineiro.
Para ilustrá-lo melhor, mais uma vez teremos que
voltar ao passado, a um dos fenômenos mais curio-
sos da história da Medicina, o assim chamado "rocyre
do rei".

)8 30
Praticado durante seculos a fio pelos reis da França
e Inglaterra, pelo que nos consta foi introduzido por
Eduardo, o Confessor.
I)este toque se contaltr nraravilhas: bastava que o
doente Iosse "tocaclo" pelo soberano, para que lhe fosse
garantida a crlra da epilepsia e da escrofulose (tuber-
culosc ganglionar), a "cloença do rei". (Vê-se que não
se tratava de urna panacéia: a terapêutica tinha indi-
cações precisas.)
Milhares de pessoas eram atraídas por este espeta-
culoso cerirnonial; afirma-se, por exemplo. que nunl
certo donringo de Páscoa Luís XIV fora obrisado a
"tratar" de um total de 1.600 doentes. A encenação
r-'rincipiava corn a bênção dispensada pelo soberano,
sestrindo-se-lhe o toque cla mão real, e por fim, para
reforçar a boa irnpressão, o presente de uma moeda de
ouro, a ser penduracla em volta do pescoÇo do enfermo.
Pacientemente a Europa sujeitou-se a séculos e mais
séculos de obscurantismo, e só a chegada cla Revolução
F-rancesa pôs um finr a toda essa empulhação.
Isso nos traz de volta à pergunta original. Durante
todo este longo período. por que nenhuma autoridadc
uln pouco mais sensata se clispôs a dar um paradeiro ao
"toque do rei", esta tão pitoresca impostura?
A resposta é cornplexa, portarlto terá qne ser des- ,ai':i;;,: 5
dobrada;

l. Pclo (lue nos contanr os livros, os doentes recebidos


pelo soberano eran) previarnentc subnretidos a uma
rigorosa seleção por l)arte dos rnóclicos da corte, o que
rnuito deve ter contribuido, é natural, no sentido de
uma favorável contabilidade dos sucessos.
A técnica usada (a qual, diga-se. tambem faz parte do
arsenal do charlatão moderno) consisre, basicamente,

10
numa simples troca de nornes, nurna mera substituição simples exame de urina, permitiria à própria gestante
de gato por lebre e vice-versa. Os genuínos epilépticos prever o sexo de sua criança. Pena que os empresários
erarn barrados na porta do palácio, enquanto que os desistissem (ou quiçá fossem por alguém obrigados a
histéricos, os crédulos, os faciimente impressionáveis, desistir) pois, com 50o/o de probabilidade de pleno su-
aqueles que sempre saem beneficiados desta ou daquela cesso, o êxit<., comercial estaria garantido. (Tambem
"cura pela I'e", tinharn entrada livre. não se pode esperar que o público conheça Estatística.)

Quanto aos escrofulosos, não tenho dúvidas que seu 4. Para concluir, algumas palavras a respeito do
lugar era tomado por pacientes com amigdalite, com
assirn chamado efeito de prin't,azia só poderão ser opor-
faringite ou outra doença banal qualquer, desde que
capaz. de causar um fugaz aumento dos linfonodos do
tunas. Trata-se de um termo criado por Solomon Asch
e que nada tem de cornplicado, pelo contrário, apenas
Pescoço.
repete o que já e lugar-comum: é a primeira impressão
Sirnples, não?
que conta, a primeira versão que perdura na mernória..
2. Ainda assinr, não se pode supor que o toque reai Aexpectatfua é muito irnportante: uma vez celebri-
sempre se rnostrasse infalível, mesmo em afecções tão zado o toque do rei (ou qualquer outra charlatanice),
benignas, nem que os médicos jamais houvessem bo- e conhecido colno altamente "eficaz", esta impressão se
beado na hora da escolha. Então, no caso daquela mi mostra muito resistente a experiências posteriores, de
noria que, passados dias ou semanas, não mostrasse si- teor negativo.
nal alsum de melhora - não bastaria seu exemplo para
Mas, por que tanto alarido?
desacreditar duma vez o toque do soberano? - - pergunrarão. - Ora,
se o toque do rei bem não faz. mal não pode fazer, náo
Ora, tudo leva a crer que também naqueles bons
é mesmo?
tempos era preciso de muita coragem para sair por ai
afora gritando "Olhem, o rei está nu!" Afinal, quanto De forma alguma posso concordar. No entanto, rnes-
maior a autoridade, menor o risco de ser reconhecido rno que concordasse, resta-nos ainda discutir um pe-
como charlatão. queno detalhe: como explicar a persistência de incon-
táveis práticas declaradamente nociuas à saúd,e que flo-
3. Temos que levar em conta, ainda, o imbatível resceram e ainda florescem, ao arrepio de todo bom
otimismo do gênero humano, err outras palavras, sua senso?
uon,tade de acrerlitar. Os "fracassos" são sempre menos Como explicar, por exemplo, que a tão sinistra san-
falados que os "slrcessos" e, quando falados, geralmente gria, usada com tamanha liberalidade que, mesmo de-
atribuíclos à fatalidade - ou à falta de cooperação do pois de uma hemorragia, o pobre do doente era obriga-
próprio doente. do a suportar o bisturi ou a aplicação de uma dírzia
Alguns anos atrás a imprensa e o rádio anunciaram de sanguessugas, só lá por 1920 viu-se definitivarnente
o iminente lançamento de um À1, que, mediante url proscrita?

.t2 4)
Como explicar que a truulectonti,u (remoçáo cirúr- mercado - algun: elenrcnto regulador, que aceite ape-
gica da úvula - em linguagem popular "carnpainha" nas produtos de boa qualidade e rejeite os maus, capaz,
assim, de punir o desonesto, o mentiroso, o profissional
-, inocente estrutura do palato rnole) prossiga tendo de péssima fe? Depois que o MEMORIOL se revelou
muita popularidade enr populações africanas? Segundo
informa o Foro Mu,ndial rle la Salud (n.o 2 de 1985), ineficaz contrr a perda de memória e o DORFIM in-
esta operação, que faz parte do arsenal da Medicina teiramente incapaz de pôr um fim à enxaqueca, por que
Tradicional e se destina a curar catarros e resfriados, razão ainda são encontrados em todas as prateleiras?
tornou-se responsável por um grande número de óbitos Seremos por acaso inferiores ao carnundongo branco?
entre crianças da Tanzània. Nenhuma dessas perguntas é inédita. Não fui o pri-
Além de imbecis, seremos tambem masoquistas, joga- rneiro a perceber que, conforme disse aquele inglês, a
dores que alegremente arriscam sua saúde na roleta- "medicina é a única mercadoria cuja quaiidade o gran-
-russa do charlatanismo? de pírblico não consegue avaliar". Se o bar the serve
É algo para pensar. Porquanto e bem difícil de acre- bebida falsificada, o restaurante lhe oferece carne de
segunda e a apelida d.e filet-n'tignon, se a seda que lhe
ditar que algurnas das terapêuticas mais populares em
todos os tempos, os medicamentos de cheiro e sabor empurram é um vulgar náilon e a roupa que se diz
replrgnante, as sangrias, os purgantes, os vornitivos, os pré-encolhida depois da primeira lavagem já não entra
mais no corpo - não demora que o embuste seia per-
inevitáveis clisteres, e assim por tliante, {ossem aceitos
cebido, e logo mais o freguês se passa para outro es-
a título de alta recreação. E mesmo a nossa presente
tabelecimento. No campo da saúde não existe nada
população, como sabemos, ainda dá preferência à via
disso - aqui a trapaÇa tem trânsito livre.
intramuscnlar ou endovenosa, acreditando que remédio
por via oral "náo funciona tão bem". Quando se trata de separar o ioio do trigo, mesmo os
especialistas freqüentemente se vêem em apuros: por
Existe aí algum mistério ainda não desvendado. exemplo, segundo um estudo recentemente rlivulgado
Seja qual for o mecanismo ern jogo, da cumplicidade yrela FDA (agência de Administração de Alimentos e
do público não se pode duvidar. Não fosse ele, e o Medicamentos clos E.U.A.), só agora se constatou que
charlatão há tenrpos teria feito cornpanhia aos dinossau- 75% dos medicamentos de venda livre no país se
ros, dele só restando as ossadas. mostravam totalmente ineficazes! (Folha de S. Paulo,
Somos informados que até o modesto camundongo 1214 186.)
branco aprende a pressionar a alavanca que lhe trará Podern crer: é muito fácil ser charlatão.
a comida, digo nrais, que a própria minhoca pocterá Maiores detalhes seguem:
ser condicionada a encontrar seu caminho através do
labirinto. E nós, por que seremos tão refratários à expe- Doenças e doencinhas
riência?
As perguntas se rnultiplicam: Não haverá tambérn - Doutor, desde ontem que me aPareceu uma
no campo da saúde e da doença - esta economia de noaidad,e, uma coisa que não sei bem o que vem a ser.

14 15
lors é, quern de nós tem sairde a ponto de não expe- A experiência destas duas décadas revelou as seguin-
rirnentar uma "novidade" sequer no decorrer das 24 tes intercorrências:
horas? Se no dia de hoje os deuses nos forem especial-
I doença envolvendo risco de vida
rnente host.is, é bem capaz que nos tenham reservado 2A doenças acarretando alguma lirnitação na ati-
rneia dirzia de pequenas atribulações, algo como a pon- vidatic
tada no flanco, o empachamento após o almoço, o ca- 200 "doenças" sem tlualquer limitação e
tarro matinal tão conhecido do fumante, a dorzinha de 1.000 "episódios sintomáticos" (isto e, as doenci-
cabeça e tudo o mais, sem contar a dor lombar, as juntas
nhas).
entrevadas etc. etc. Nosso corpo vive reclamando, sem
que haja nisso más intenções.
Reparetn betn: um distúrbio de saúde a cada seis dias,
Na sua imensa maioria, trata-se apenas de doenci,- e isso eln pessoas relativamente jovens! Menos de um
nhas, furtaça na ausência de incêndio. i'r, rilr rnil envolvia risco maior, donde se conclui que,
Todos nós temos nossos achaques particulares, e cada .rrinal, viver não é táo perigoso como querem fazer-nos
um tem a sua própria maneira de reagir a e1es. Muitas acreditar.
pessoas Íazem pouco caso, recordando que já sentiram Este, no entanto, é um segredo que o charlatão res-
a mesma coisa vezes sem-fim, sem maiores conseqüên- guarda com a própria vida, pois a indiscrição the sairia
cias; outros, rnais impressionáveis, fazem das doencinhas ãara. Ela deitaria tudo a perder, o poder da mistifica-
alvo de todas as atençóes, tornando-se assim presa fácil ção, a facilidade de fomentar inquietações, de semear
de toda sorte de charlatão. tempestades.
Jamais trata de educa,r o paciente. Não lhe
São as doencinhas que lhes proporcionam o pão-de- conta
-todo-dia. As redes já estão armadas, o esquema mon- que a dor lombar pode ser culpa da falta (ou do excesso)
tado, a charla na ponta da língua: - Todo cuidado é de exercícios físicos, que a dor rle cabeça pela manhã
pouco! - adverte o impostor. - Olhe, que viver e poderia ser evitada mudanclo-se o travesseiro, que a
perigosíssimo! (Sua técnica de marhetirzg e primorosa.) iensão emocional pode repercutir em nossa digestão,
Adquirir a capacitação para distinguir entre doença e que a insônia pode correr Por conta de estados depres-
doencinha requer um difícil aprendizado, assim tera sit os, qre há mil-e-uma maneiras de evitar acessos asmâ-
que ficar para outra vez. A essas alturas limito-me a ticos, e daí para a frente.
declarar, alto e born som. que as doencinhas são cem Pródigo em diagnósticos sombrios, em nomes exó-
vezcs mais freqiientes, quÉr a probabilidade das doenças, ticos, é, tarnbém, infatigável na prescrição: vitarninas e
por outro lado, é bem reduzida. Trago na algibeira polivitaminas, pretensos "fortificantes do sangue" e "cle-
uma série de dados bibtiográficos que náo me deixam sintoxicantes do fígado" - e vai por aí afora a ladainha
mentir, entre eles um estudo norte-americano que se do impostor.
preocupou em examinar o perfil de saúde do cicladão Não há resfriadinho que não consiga travestir de
rnédio, na faixa dos vinte aos quarenta anos. grave doença respiratória, que tenha que cair na mira
.t7
-16
de toda uma bateria de antibióticos "de largo esPetro", Para que me entendam melhor, principiarei por
não há calombo ou bereba que não lhe faça recordar uma fábula:
que, já que o seguro morreu de velho, melhor recorrer Segundo ela, Chantecler era um galo compenetrado
a uma radical remoção cirúrgica. demais de suas funções, tanto assim que todas as manhãs
Todo bom charlatão, seja ele patife ou mero igno- fazia questão fechada de acordar bem cedo. Subia então
rante, e rápido no gatilho. Não discrimina entre o acha- ao ponto mais alto do galinheiro e, chegada sua hora,
que trivial e a doença séria, entre uma complicação Iançava aos ares um sonoro manifesto.
. ,* mero efeito colateraL lsso me faz recordar, inci- Era-lhe motivo de incansável satisfação verificar que
dentalmente, a tnultidão de mulheres ainda jovens que, ao cabo de alguns minutos o sol invariavelmente des-
proibidas por ordem do charlatão de tomar a pílula, pontava no horizonte. Que responsabilidade a sua!
escolheram a primeira opção que lhes foi aberta: a Acontece que uma madrugada, por motivos nunca
ligadura das trompas, ainda bastante rendosa. Existirá inteiramente esclarecidos, Chantecler teve o sono pe-
algo mais abominável? sado, passou da hora. E aí, estupefato, o galinheiro
Observa-se, porém, que, não obstante o despreparo todo teve que constatar que na hora da cantoria o
moral e científico, o charlatão irradia segurança: - E astro-rei já estava alto em sua tra'ietória!
não há motivos para preocupação, viu? É o que existe
Também as doencinhas seguem uma evoluçáo na-
cle mais moderno em matéria de tratamento, certo? tural, curam-se sozinhas, à revelia de qualquer provi-
O senhor (ou a senhora) em dois dias, três no máximo, dência médica. E, assim como na fábula, também esta
estará em plena forma, estamos entendidos?
remissão espontânea, que catacteríza oitenta a noventa
E não é que o charlatão se revela um excelente Pro- por cento das queixas do dia-a-dia, pode passar longo
feta? tempo sem ser reconhecida, visto que a vítima, ao me-
Não possui nenhuma bola de cristal, em contraPar- nor sinal de desconforto, e habituada à rotina do com-
tida e profundo conhecedor de uma particularidade primido ou do chazinho. jamais dá tempo ao tempo,
comum às doencinhas: a sua remi,ssã,o espontânea. jamais espera para ver como fica. Vassalos da propa-
ganda, doutrinados a jurar que "Com Dorim toda dor
tern um fim", fazem a fortuna dos empresários e dos
O que tem que ser, será (a remissão espontânea)
charlatães, muito provavelmente até o fim de seus dias
"(...) É privilégio das faculdades encampar ignorem que, se em lugar daquele produto tivessem
todas as coisas boas e saudáveis que a sorte, ingerido suco de groselha ou mesmo água destilada, o
a natureza ou qualquer outro fator (e deles resultado teria sido o mesmo: uma milagrosa cura.
existe número incontável) produz em nós.
(. . . ) Os fatores que curaram a mim, que A síndrome de Chantecler pode ser resumida numa
curaram a mil outros que não se utilizaram frase espirituosa: "A gripe, quando bem tratada, dura
de médico algum, eles usurpam para si." sete dias; se deixada à própria sorte, porém, leva uma
Montaigne, Por volta de 1580 semana para resolver."

48 49
Embora isso seja tão intuitivo, trata-se de um fenô-
mars preocupantes eranl autolimitadas no tempo, dan-
meno ao qual a maioria das pessoas se mostra refratária,
.-cnforme me mostrou uma experiência longa e sofrida.
do ao charlatáo a coragem de aventurar-se também
neste tipo de terreno, sem grande receio de um escor-
Cada vez que, com as melhores intenções do mundo,
regão. John Fry e seguidores mostraram, por exemplo,
busco convencer alguém da ineficácia ou da desnecessi-
que também a asma, ou a epilepsia da infância, na
dade de um determinado "remédio", popular ou pre-
rnaioria dos casos seguia uma evolução benigna e assim,
tensarnente científico, devolvem-rne um olhar perplexo,
decorridos os primeiros anos de vida, freqüentemente
logo mais ouço protestos:
- Ora, doutor, mas funciona entravam em remissão. (Qual não seria o júbilo dos pais
tão bem! se apenas alguém lhes revelasse que, de cada iem
No meu tempo de criança, cada vez que me aparecia crianças tidas como epilépticas na primeira infância,
rrma verruga nos dedos, mamãe me fazia esfregá-la com só cinco ou seis conservam seus sintomas aos dez anos
casca de ovo. O remédio funcionava às mil maravilhas, de idade!)
tanto que, anos seguidos, passei a divulgar a receita
aos amigos que sofriam do mesmo mal. Como tinha
O mesmo se dá com a hérnia umbilical da criança
pequena, "anormalidade" de vida fugaz e que na maio-
que ser, depois que me formei médico, minha conduta
ria dos casos regride sem maiores providências, embora
mudou: a um determinado paciente receitava pomadas, a classe médica (que inclui aquele que vos fala), por
a um ouffo recomendava loções ou um bastão de nitrato
ignorância da história narural, já se houvesse habituàdo
de prata, em casos mais rebeldes chegava mesmo a co- a encarar tais casos com a maior severidade, ora lançan-
gitar o uso da hipnose. Fora uma ou outra exceção, do mão da cirurgia, ora intervindo através de métodos
uns como os outros mostrararn-se eficazes.
menos cruentos.
Eis que, dias atrás, no folhcar de um livro, tive oca- E assim vai, desde a "fimose", pretexto para uma
sião de ler que o l'ar:roso Sir Francis Bacon
já - faz agora orgia de circuncisões (em noventa por cento dos casos
quatro ::éculos - possuía a szrz fórmula predileta inteiramente desnecessárias) até
contra o l'lagelo da verruga vulgar. Recomendava que - pasmem! - o caso
de algumas doenças mentais, finalmente levando-nos a
cla fosse esfregada num gordo pedaço de carne de porco entender as razões pelas quais estes tratamentos contam
que depois, cinco semanas seguidas, tinha que ser pen- com tanta aceitação e eventuais êxitos, embora, como
durado ao relento. (Curiosa coincidência! - não é que se sabe, a psiquiatria se subdivida em mil-e-uma corren-
a vulgar verruga invariavelrnente tem encontro mar- tes ideológicas, a maioria antagônicas a todas as demais.
cado com a remissão espontânea para cinco semanas,
Vê-se que a máe-natureza presenteou o charlatão com
por aí?)
um cheque em branco, um cheque que, oito ou nove
Só em tempos bem recentes, depois que se passou a vezes em cada dez, conta com fundos suficientes em
estudar melhor a história natural das enfermidades, é caixa.
que se pôde constatar que não apenas os pequenos acha-
Logo, não sos surpreende que seja tão fácil ser char-
ques mas também algumas enfermidades um pouco
latão. O mistério a desvendar é outro: saber porque
,0
51
ainda existem profissionais que não aderiram a uma não obstante pode cllrar, ou pelo menos aliviar. Do
especialidade tâo lucratiru . ptuticamente isenta excremento de crocodilo à água destilada, não há pro-
de

riscos. duto que não se preste para placebo, pois o que importa
é rnobilizar uma reação psicológica favorável.
Já que se Lrata de uma cura pela fe, nem mesrno e
Aquele que busctt agraclar: o efeito-placebo preciso dar ao doente uma receita. Muitas são as ma-
neiras de impressionar, a própria presença do médico
(Lamento muito: placeho já é um nome consagrado' (ou do charlatão), o visual, a voz tranqiiila, a segurança
logo náo vale a p"nu vertê-io putu nosso vernáculo') que transrnite. Manipulações as mais diversas, desde o
É notório o caso daquela senhorita que' toda vez "passe" até o ponto de linha no lóbulo da orelha,
que sentia uma tontu.u', ,* "início de enxaqueca"' a acupuntura olr a psicoterapia, com freqüência não
já se acostumara a tomar urna colherinha daquele vidro passam de placebos sob disfarce, além do que - pas-
aqueie
que encontrara perdido na prateleira' Jurava por rnem! - o mesmo efeito foi observado cotn procedi-
remedio, e recomendava-o às amigas' mentos cirírrgicos absolutamente idôneos, entre eles a
Um dia, acabado o frasco, foi à farmácia renova.r a cirurgia das coronárias.
vejo
receita. E aí, para seu profundo desapontamento' Há pouco falei da asma, uma enfennidade que possui
para verml-
a saber que aquele prod.tto era indicado um vasto espero de gravidade. Alguns casos são efeti-
noses de cães e gatos! va[rente graves, exigem do médico Lrma rara devoção,
A partir daquele dia, está visto, o medicamento dei- urna competência exemplar. Felizrnente, porém, a tnaio-
xou de fazer efeito. ria dos casos ainda é benigna: na crianÇa, colno vitnos,
com es.j"t1 o grosso dos casos entra em remissão espontânea, e urn
Todos nós já tivemos experiências parecidas
De sorte que nao outro tanto, criança ou adulto, responde maravilhosa-
e, se não ut iira-ot, ouvimos falar'
mente bern ao efeito-placebo.
preciso reforçar o que todos já sabem: que corPo e
um' 'I-enho ern minha frente urn exernplar cle Puçongaria
àlma sáo irmãos siámeses, que aquilo que afem
Amazônicu, coletânea de receitas populares, devida aos
não deixa de influir no outro'
quer dizer algo parecido esforços de Camillo M. Vianna. Dou urna volta às pá-
Placebo, no latim original,
"agradai" ginas, à busca dc alguma receita para a asrra. Ei-la:
com "que se destina u - e basta substituir
ogrod,oi por impressi,onai pata compreender Porque Vergalho de jabuti seco ao sol, torrado em pe-
,riui* .rr, técnicà de mistificação caiu nas boas
graças
dacinhos, pilado e misturado com chá de folha
dos charlatáes. O efei,to-placebo é para eles
um aiiado
cle algodão e umiri do carnpo. -foma-se várias
tão confiável corno a remissão esPontânea' . vezes ao dia.
este semPre
Quando se trata de um medicamento' Os entusiastas da Medicina Alternativa (ou Palale-
consiste de uma substância inerte, isto é' reconhecida-
mente desprovida de efeitos farmacológicos -
e que Ia) ficarão comovidos: qrre bela coisa que é a sabedoria

51
52
poPular, pura e rústica, mii vezes preferível a todo o respeito mas não consigo endossar), jamais um placebo
arsenal dãs farmácias! É na puçangaria, na garrafada, será usado sem o prévio consentimento do paciente.
na simpatia, rto folclore enfim, na vida natural enfim, Mas a partir do momento em que o paciente souber
9ue se enconÍrariam todas a§ resPostas. que aquilo rlue estão lhe servindo não passa de um pla-
Ernbora a essas alturas fique devendo um comentá' cebo - portanto uma ilusão -, a magia desaparece, e
rio, a questão será retomada logo mais. ele tão logo não voltará.
A cura pela fe remonta ao homem das cavernas e, a Como no caso da senhorita acima aludida.
rigor, nada tenho contra ela. Bem escolhido, sensata-
mente indicado, o placebo mostra-se barato, inofensivo,
bem rnelhor que "remédio de farmácia". Logo, fre- O imperio da não-doença
qüentemenlg tarnbém é usado pelo não-charlatáo'
Vou repetir e frisar: bem escolhido, foi o que falei. Havia urna vez, em São Paulo, um cirurgião muito
Em born português, o uso de um placebo obedecerá a falado, sobretudo nas camadas menos bafejadas pela
uma indiãação precisa, devendo ele ser reservado às sorte. Autoproclamado uma sumidade no tratamento
doencinhas e aos distúrbios predominantemente Psí- do câncer, o do fígado em particular, suas proezas eram
quicos. (Está aí uma distinção que o charlatão costuma ridas como inigualáveis.
deitar cle lado; para ele tanto faz doença grave ou doen- "O poder corrompe, o poder absoluto corrompe ab-
cinha: tudo que lhe cai na rede é peixe.) solutamente" - frase criada com vista aos políticos,
O charlatão por toleima serve-se de urn placebo sem também cabe tal qual uma luva no caso do médico e
saber. l,ogo engana não aPenas o paciente mas a si pró- do charlatão. Como o público não tem em mãos a in-
prio, convencido de que naquele remédio que acabou formação, o salafrário conta com um ilimitado poder de
de usa1, e que tão bons resultados lhe trouxe, finalmen- induzir-lhe toda sorte de não-doença.
te enconrrsu a pedra mâgica, o elixir da longa vida. No dizer daquele charlatão paulista, nada mais co-
O não-challatão, em contrapartida, certamente não rnum que o câncer de fígado. Para ele todo e qualquer
ignora o que está fazendo e, se optou pelo placebo, é sintoma sediado da cintura para baixo fazia jus ao ró-
por saber que os riscos são menores que os benefícios. tulo: dispepsias banais, diarréias ocasionais, gases, cons-
Pena que para isso seja preciso ludibriar o paciente - tipação intestinal etc. Solicitamente ouvia o que lhe
lrâs, qys jeito? (Vai ver que esta é uma das tais "menti- contavam, Íazia de conta que examinava, saía-se depois
ras caridosas" d€ que tanto andaram falando.) com seu soturno pronunciamento: "neoplasia primária
Verdade seja dita, nos últimos tempos muito se tem de fígado".
ouvido falar (mormente nos E.U.A.) a respeito do "con- Contudo, justiça lhe seja feita, jamais esquecia de
sentimento consciente", o sagrado direito de saber a acrescentar ao laudo uma mensagem alentadora: desde
verdade, que a nenhum paciente pode ser negado. De que o doente fosse operado no prazo de vinte e quatro
acordo com esta doutrina essenciahnente moralista (que horas, ele, especialista, garantiria urna cura radical.

54 55
Em face deste ultimato, à família não tinha outra de espaço me impede de reproduzir. Mosrra um edifício
escolha: juntava os tostões que tinha guardado, pedia em estilo moderno, evidentemente construído por gen-
enrprestado o que faltava, no dia seguinte Úazia o doen- te próspera, e afirma que "O Bico-de-Papagaio está
te à arapuca chamada hospital, onde a encenação já corn os dias contados!". Não só o "bico-de-papagaio",
estava preparada. diga-se, mas tan,bém o "reumatismo ciático", a "hérnia
Anestesia geral, sem a presença de "estranhos atr cor- de disco" e outras tantas afecções mais sérias da coluna.
po clínico". O cirurgião pratica uma incisáo na pele, Pacientes não haverá de faltar: quern de nós não tem
o suficiente para uma vistosa cícattiz, fuma um cigar- a sua ocasional dor nas costas, esta doencinha do século
rinho, troca algumas anedotas picantes com a enferma- XX, que vai e volta, que melhora com os mais variados
gem, a seguir costura a incisão e assim, finda a opera- tratarnentos, e vem a piorar sem que the descubramos
os motivos?
ção-fantasma, vai tranqiiilamente ler o seu jornal.
Passada uma hora, autoriza a entrada da família na Entra eln cena o mercadOr de medos. Passa o laço
sala de recuperação, dá-lhe de brinde um sorriso bené- numa inocente orrelhinha, a seguir põe-lhe a pele de
volo, garante que tudo correu às mil maravilhas. (Os lobo: é "hérnia de disco", não tem nem dúvida. Inventa
honorários já embolsou antecipadamente.) bruxas, para depois prontificar-se a caçá-las para nós:
Quero crer que fraudes assim descaradas sejam raras
o "reumatismo infeccioso" tem seus dias contados!
nos dias de hoje. O que não impede que o culto da Mas é forçoso reconhecer que muitas vezes somos nós,
não-doença, em nível mais modesto, mais discreto, seja o grande pÍrblico, que nos prestamos a servir de cúnr-
nm fenômeno corriqueiro. plices do charlatão. Criamos uma demanda, reconhece-
Pouca gente sabe, mas estes jovens que invadiram as mos uma nova necessidade e o charlatão, nada mais na-
ruas e avenidas de nossas principais cidades, e que se tural, se apressa a satisfazê-la. É a lei do mercado, mera
dispõem a "tirar a pressão" de inocentes transeuntes, questão de oferta e procura. O charlatão é um realista:
se não for ele, é o concorrente que se aproveitará.
são perigosos charlatães. Nem eles nem seu instrumen-
tal são dignos de qualquer confiança e, mesmo que o Para cada uma de nossas dorzinhas ou mal-estares
fossem, ao nível de rua as condições para uma fiel lei- exigimos uma explicação, logo um diagnóstico, logo
tura da pressão arterial são as piores possíveis. urna receita de farmácia. Inconformados com o desgas-
É lógico que isso não os impede de diagnosticar te dos anos, o declínio do vigor e do entusiasmo, repu-
"pressão alta", "pressão baixa", "ameaça de congestão" diamos os honestos, aqueles que nos dizem que o elixir
e mesmo, num ou noutro caso suspeito, indagar do ci- da longa vida ainda não foi inventado.
dadão se tern certeza jamais ter sofrido um infarto do Sonhamos com a perfeição, o certinho. A mãe aflige-se
miocárdio. com o filho, com a filha, que rangem os dentes à noite,
São os achaques comuns, as doencinhas, é claro, que que vão mal na escola, espirram quando têm os pés
oferecem os melhores pretextos para a não-doença. Te- molhados, são gordos, são magros, têm insônia, dormêm
nho aqui em mãos um recorte de jornal que só a falta demais. Quanto a ela, a maldita "celulite" é a eterna

56 )/
O olhar do charlatão é igual ao de um lince - nada
pedrinha no seu saPato, faz temPo que não tem coragem
lhe escapa. Está sempre a postos, reconhecendo no ele-
àe exibir-se na práia. Enffemente§, o pai, inconsolado
troencefalograma indícios seguros de uma "disritmia",
com o cabelo ruio, .rmu atrás outra, experimenta todas
no sangue um "princípio de anemia" (vitaminas e sais
as charlatanices que lhe indicam, certo de que, se ainda
de ferro, quem sabe se uma pequena transfusão também
não existe uma cura radical da calvície, falta Pouco'
não faria mal algum), nos inofensivos cristais ou células
Mais dia, menos dia. '.
de descamaçáo da amostra de urina uma "espécie de
Não é o charlatão que vai mostrar-lhes a realidade
nefrite".
da vida. - Vocês estão certos - diz ele -, este tipo de
coisa é anormal. Não faz qualquer concessão à nature-
O público fica comovido com a solicitude do profis-
za: paÍa ele os homens são feito brinquedos de plástico' sional, tão humano, carinhoso, desinteressado! (São os
mesmos que ainda crêem que o Dia das Mães ou o Dia
fabiicados em série, iguaisinhos uns aos outros, em ca-
da detalhe. Ouvindo a charla, tem-se a impressão que dos Namorados são indiscutíveis provas de sentimenta-
aos sessenta o homem merece conservar a mesma agili' lismo por parte do comércio varejista.)
dade física e mental, o mesmo apetite sexual, o mesmo A não-doença carrega em seu bojo a não-terapêutica.
sono de pedra e digestão de avestruz de que .se. gabava Outro dia, ao folhear uma revista, travei conheci-
aos vinte-. De resto, se não for este o caso, já e tempo mento com um procedimento cirúrgico de nome com-
de consultar um entendido. plicado, e para mim inédito: nada mais, nada menos,
E como se arranja o charlatão no caso de não existir que a uueopalati,nofari,ngoplastia! Segundo consta, foi
demanda, se tudo correr bem, sem doença nem sequer originalmente destinada ao tratamento de certos pro-
doencinha a turvar o horizonte? blemas privativos aos cães de raça, mas logo mais adap-
É tão simples: ele então inaenta uma demanda, ora tada à medicina do homem
- adivinhem para que fim.
essa! A ronqueira noturna, fiel leitorl
A melhor maneira paÍa' a promoção da não-doença Ao que relata a revista, os primeiros resultados fo-
é o check-uP, quanto mais "completo" melhor' Aqueles ram assaz animadores. No entanto, como a ciência não
que não podem custeá-lo terão que se satisfazer com pára, logo a seguir vieram a descobrir uma solução me-
im clrech-up de pobre, por assim dizer' uma "revisão nos ag'ressiva, o definítivo medicamento anti-ronco. De
de saúde": meia dúzia de exames de laboratório, uma início não acreditei, embora fosse a Folha de S. Paulo
que outra radiografia, um "eletro". que mo revelasse, lá por meados de 1985. Porém dias
E reparem que rico filão descobrimosl Como o "nor- depois, face a face com os vistosos outdoors que enchiam
mal" não passa de um conceito fictício, como efetiva- a cidade, tive que dar a mão à palmatória: era aquilo
mente rzão somos iguais a brinquedos de plástico, como mesmo.
a margem de erro do laboratório e dos próprios méto- Não é mesmo um circo de cavalinho?
dos laboratoriais é considerável, tanto fulano como si- Nesse passo, onde é que vamos parar? Quem vai nos
crano, ao saírem de uma dessas revisões, contam com socorrer, quem nos orientará, se a cada dia descobrem
noventa por cento de chance de um "desvio" qualquer'

,8 ,9
novos truques Para fazer do superfluo uma necessidade,
da não-doença um preocupante problema de saúde?
Será que só nos resta confiar em nós próprios, nós que
estamos tão perdidos nesta e§cura selva da medicina?
Esperem um pouco. Porventura não existirá por aí
alguma alternativa?

SE BEM NÃO F AZ. , .

Tranqiiilize-se: altcrnativas não faltarn.


G0t0 AUUttR t GURAn  GtSItft

irrll.urraqiio rLr lru('o*r (lur chcrto lorte de antoniaco. podem rr minisrados os se-
l
lona bcrig.r por c{crrrlo Os tlois rcurêdios vegerais guintes chás: efla-tostâo (am-
i'tuulrccirta por cistitc. O sin- rtuu: irli<:rtlos §o: pineuu-de- bm chamada de agara-Pinto,
tonn nuis courtuu é o lrtlot ao glurcho tde manhã e â noite) e ungaraça ou bredo-de-porco),
urirlrr. Ma: .r risrirt. provulr spcrgrrlaria (urtes das relàições). banagem, angelicó, eualiPto e
LU[bOll PU5 ll.l rultll e ulll Panr aliviar o lrdot ao u'irur. quebra-pedra.

Fisura 6

Não quero iançar suspeitas sobre o fascículo do qual


emprestei mais esta figura; seus editoras nern por som-
bra insinuam que estão a oferecer ao leitor a verdade

60 6I
Não desconheço estat. correndo sério risco. E assim,
dos fatos, dizem apenas que, terminada a coleção, ele
para não perder meu prezado leitor (agora que esramos
terá em mãos um "livro bem interessante"' (Não creio,
porém, que -o comprador da revista irá acatar esta ad-
a meio caminho andado), decidi desfilar aiguns pará-
grafos a respeito do método científico.
vertência.)
É quase certo que ele pertencerá à categoria dos sen'
timentais, dos nostálgicos, dos fanáticos do folclore, os A uaca sagrad,a d,a ciência
amantes da natureza. É gente que sente um verdadeiro
fascínio pelas alternatiuas. "(...) a verdade é como o lagarto: ele deixa
Por isio, se alguém se atreve a jogar um balde de a cauda entre teus dedos e se afasta, sabendo
água nesta fervura toda, tem que estar bem preparado que dentro de instantes criará uma cauda
pára enfrentar os protestos que de todos os lados desa- nova"'
t"rrrr - E que mal haverá no bredo-de-porco, numa Turguênev, 185ó

pitada de erva-tostão? Afinal' não custa experimentar'


^O Mesmo gente culta e erudita tem desferido suas far-
qrr. não mata, engorda, se bem náo faz, mal não pode
pas contra a ciência (esta "vaca sagrada", no dizer dum
fazer.
autor norte-americano), e criticado severamente a arro-
Grande e trágico equívoco!
gância e onipotência dos cientistas, colocando em dúvi-
Não sou conhecido por conservador. Por princípio,
da o seu monopólio da "objetividade".
nunca me mostrei refratário às soluções nascidas da
"sabedoria do povo", muito à revelia da ciência "o[i- Alega-se que a verdade é muito relatiau e que, por
mais que o cientista se esforce, jamais conseguirá alcan-
cial". Faz tempà que aprendi, por exemplo, que de fato
os mourões de cerca duram mais quando o eucalipto çá-la ern toda a sua plenitude.
for cortado em lua nova e meses sem erre, como sempre É preciso repudiar semelhante atitude, mesmo que
me diziam os vizinhos de sítio. Também me disponho seja apenas a titulo estratégico, para manter intacta
nossa sanidade física e mental. Estou preparado para
a ouvi-los quando se trata de preparar uma sementeira,
desmamar um bezerro, tratar o berne do gado. Basea-
admitir que a verdade não é feita de concreto armado,
das na experiência concreta, não são questôes que en-
que muda conforme a época, hoje um dogma consagra-
volvam a fé.
do, amanhã no máximo uma pitoresca curiosidade.
Por outro lado, basta reler o capitulo anterior para Também da verdade se pode dizer que é eterna en-
convencer-se de que, no caso particular do campo da,
quanto dura.
sotirle, a verdade é fugidia, o raciocínio lógico freqiien-
O que não quer dizer que num dado momento dtas
temente falho, a experiência tão enganosa que é fácil ou mais verdades possam coexistir, lado a lado. Assim
como no lagarto só cresce uma cauda por vez, também
dar-lhes um conteúdo que não têm.
Daí meu empenho em colocar a saúde, a meclicina, a ciência não admite duas verdades simultâneas. Ape-
nas uma delas se escreve com V maiúsculo, a outra se
em terra firme, longe do terreno traiçoeiro da fé, da
resignará a ser olhada como mero ato de fé. E a fé (ou
crendice, da hipótese.

62 6i)
o relativismo da verdade), perdoem-me, só serve para Sem dar-se conta, tambem você já pensa ,.estatistica_
encorajar o charlatão. mente". Pôs a fé de lado, agora exige uma proua cabal.
E assim concluímos que em face de uma série de ver- Neste passo, daí a pouco, nossa úttima figura lhe
furl
sões, a melhor tâtica é mesmo a de optar por aquela Perguntar:
que no momento pareça a mais "eterna" de todas. .,cistite,'
- se existe nresmo uma única ou se são di_
Podem crer: enquanto filosofiu, a ciência deixa mui- versas, cada qual diferente em gravidade e evolução.
to a desejar, como instru,mento de trabalho porém, ,,cistites,'
- se algumas destas não estarão tantbém
não há melhor. E, às voltas com o dia-a-dia, não é de elas sujeitas à remissão espontânea, com ou sem o be_
um instrumento que necessitamos? Ciência e fé são an- nefício do chá de agarra-pinto.
típodas, embora cada uma tenha sua utilidade, seu mo- Fico contente por você.
mento. A saúde - mais uma vez podem acreditar - é _ O papel da Estatística é o de provar ou desprovar.
domínio da primeira. Formulada há mais de cem anos, ãaí para a frente é a
Logo mais você há de se convencer. Digamos, por ela que se recorre para decidir quai ,.verdades"
das
hipótese, que alguém the conte o caso daquele feiticei- ora em voga é a mais plausível.
ro de tribo, tão eficiente que bastava ter completado o Nada lhe é sagrado, conforme mosrra o episódio a
ritual de danças e encantamentos para que a tão espe- segulr, que tem o sabor de uma boa pilhéria e que,
rada chuva desabasse dos céus. Seria o suficiente para no entanto, nas mãos de Galton, pai legítimo da Estátís_
que, a partir daquele momento, sem mais aquela, você tica moderna, virou respeitável- projéto de pesquisa,
piamente passasse a acreditar nos poderes sobrenaturais Não conheço outro rnais irreverente.
do homem? Em surna, tratava-se. nada mais, nada menos. de in_
Acho que não. Por exemplo, sei que terias a curio- vestigar a eficácia das preces! Corno se sabe, Galton era
sidade de conhecer as condições meteorológicas naquele inglês. e na Inglarerra da época ainda era hábito do
dia, pois é sempre possível que o feiticeiro tenha deli- cidadão, em suas oraÇões diárias, rogar longa vida e o
beradamente escolhido um dia de tempo ameaçador, mais completo bem-estar para o soberano e para toda
mais propício ao cerimonial. a sua corte. Esta comovente solicitude, serviria ela pa_
Está vendo? - Você também já aderiu ao método
ra alquma coisa, teria alguma repercussão sobre u, .r-
tatísticas de mortalidade? Seria ótimo se assim fosse.
científico.
Galton não titubeou, foi calcular a expectativa de
E agora uma outra conjectura lhe corre pela cabeça:
vida de algumas qerações cle reis e nobres, em seguida
mesmo admitindo que o feiticeiro seja igual a Chante-
cornparou os dados com os de classes mais humildes,
cler, isto é, inocente e retilíneo, não é possível que tudo
porém de hábitos de vida semelhantes. por fim, para
não passe de uma simples coincidência? Se estivermos surpresa de muito pouca gente, constatou que o atà de
em época de inverno, por exemplo, e cinco em cada fé coletiva, não obstante carinhoso, invejável, era inca_
sete sejam dias de chuvas torrenciais, o desempenho do
paz de prolongar por um dia sequcr a éxistência nem
feiticeiro da tribo ainda nos deixará boquiabertos? rnesmo do mais enaltecido dos mortais.

64
65
tigador, ainda que ele próprio náo o perceba, inevita-
A exemplo do episódio que acabei de relatar, também
velmente influirá na isenção do experimento.
as "alternãtivas" á medicina oficial terão que cair na
Compreendam-me bem: estou preparado a admitir
mira do método estatístico. Este gênero de investigação
que a "alternativa" de hoje amanhã é possível que faça
é sumamente trabalhoso; dada a freqüência da remis-
parte de meu receituário, que busco manter tão res-
são espontânea, dado o poder do efeito-placebo' um
peitável. Mas sob uma condição: que me tragam as
ensaio terapêutico qualquer consome um temPo consr-
derável, po, u.r., requer o acompanhamento de cen-
prouas de sua eficácia
vra não me basta.
- desculpem, mas a vossa pala-
tenas de pacientes. (E agora entenderão Por que motr-
vos o relátório acima aludido - aquele que termrnou
provando que setenta e cinco Por cento dos medica- As soluções alternatiaas
ir.rrro, eraà ineficazes - levou em volta de vinte anos
para ser ultimado!) Tenho comigo uma alentada coleção de folhetos, de
Uma metodologia cientificamente correta exige- que bulas e de recortes, que a essas alturas já dariam para
o grupo de pacierites sujeitos a uma determinada droga redigir um compêndio das mil-e-uma alternativas que
possa ser comparado .ó* trrtt grupo-controla
que em
correm por aí. Por ora contento-me com um ou outro
iodos os aspe.tos, menos um, lhe seja absolutamente exemplar, escolhido bem a esmo:
idêntico: seus membros não recebem droga alguma - Este foi cortado de uma daquelas revistas de bordo
ou entáo um Placebo qualquer' de avião, salvo engano, a meio caminho entre Salvador
,{o fim do experimento, os resultados são comPa- e Aracaju. Dedica três colunas a "A planta que cura
.udàr; se, Por hipótese, no gruPo experimental os sin- toda espécie de males", alegando que ela "retarda os
[omas d.rápur..êraln num Prazo médio de sete
dias' efeitos do envelhecimento, combate perturbações gás-
enquanto que no segundo gi"po os pacientt' * tricas, alivia manifestações reumáticas, age contra a hi-
::l:"^
ram alívio após r:ma semana, é tranqüilo que a droga pertensão e a prisão de ventre, melhora o desempenho
testada pode ser considerada ineficaz' sexual masculino".
Tarnbém é preciso colocar o ensaio a salvo dos fato- Por muita coincidência, mais ou menos na mesma
,.r-prrurrrente psicológicos, e Para tal recorre-se à téc- época, o Zero Hora de Porto Alegre entrou em sintonia
nica do controle d'uptá N"tte' não só o paciente com sua colega, através de uma crônica que prometia
"g'' inerte' que "Ginseng cura tudo, da calvície à impotência"!
ignora se está recebendo u ãtogu ou um produto
,"tu, o próprio investigador, que- periodicamente exa- (Ao que parece, falavam sério.)
mina e i.rt.t.og^ o doente, não sabe se este Pertence.
ao Meu mosrruário prossegue com uma esfuziante co-
;;;r" A ou d 1. .r*u informação que- tem qu.e ficar luna de A Folha de S. Paulo Ç3lal86), descrevendo
imparcial)' como guatro "xamãs" (pajés), mediante farta aspiração
[or'.or,, de um auxiliar considerado de um "pó preto", confabulações, danças e consumo de
As razões são óbvias: esmndo ele tão interessado em
uma dose de reforço do alucinógeno, se preparavam
proru, a eficácia da nova droga, a exPectativa do inves-
67
66
para proceder ao tratamento de um paciente assaz im' zer, inofensivos, que, a própolis rnal
não pode fazer,
Portante. visto que faz pa*e-.da vida diária das
uU.tt irfru, .,..
Agora ofereço aos interessados a bula do PRÓPO- ._1..,.rrã9 será petulância de minha
parte recusar_lhe
LIS, produto natural elaborado Por oPerosas abelhas, direito de sc meterem a tratar das doenças humanasp o
e cujo repertório parece suPerar mesmo o do ginseng, Deve ser este o raciocínio de muita
gente, senão co_
porquanto serviria até mesmo como antibióticol (Co- rno explicar a enorme popularidade dátas
mo se isso não bastasse, ainda pode ser encontrado sob e de meio
milhão de outras alternativas? Ao investir contra
esta
forma de xampu artesanal e sabonete.) onda de credulidade,.não estaremos, eu
e outros céticos,
O próximo exemplar iá. é um pouco mais antigo efetivamente pregando no deserto?
(IstoÉ,, 2316182) e, fazendo coro com a crendice secu' o mercado paralelo "remédios" obedece a forças
lar, desta vez nos fala das virtudes do alho vulgar. Para -de
tão poderosas que a palavra falada (ou escrita; erconiiu
completar, oferece ao leitor uma letrinha que em 1982 ouvidos moucos. É preciso compreàrd", qr.'para
virou âir popular: boa
parte do público as "arrernativás" não são altãrnativas
mas uma solução, uma tábua de salvação, não
"Você já ouviu falar na pílula de alho? somente
por serem de baixo preço mas por ofeiecerem uma saí-
É uma pílula amarela
da aos desesperados, quando a iituação é grave
Se toma uma daquela e todos
os demais recursos provaram sua ineiicácia.
Nem sabe o que é que sente
Mas a infecção iá era. Esta é a explicação mais óbvia, no entanto não
éa
Eu tive um pus num dente única. IJm outro fenômeno que tem que ser compu_
Tomei algumas delas tado é o uso das alternarivas a iítrlo de
firotesto. É uma
As bichinhas logo agiram
De fato em pouco tempo ;ffi
',::H":lr::,T#, i #;L,:ff :'ã,,': fJ:â:
em que vivem, em particular com a medicina fria, im_
Senti-me melhorado
E os sintomas maus sumiram." pessoal, freqüentemente mercantilista,
":1: a Med,icina ofi-
cial.
E vamos agora ao "digestivo" AMARGOL, comPo§- Um protesto, também, contra o autoritarismo. E co-
to, segundo informações do fabricante, de raiz de angé- mo tal, a volta a uma autêntica Medicina popular, que
lica, raiz de galanga, goma de mirra, raiz de ruibarbo, d,e se.u devido respeito às crenças e opiniões
raiz de genciana, goma de aloés e casca de canela. Trata- à" popritu_
ção, é vista como um proresro - qriçâ um golpe'màrtal
se, como se vê, de um produto essencialmente natural, contra a ditadura. Junte_se_lhe o iato de"que os pro_
merecedor do entusiasmo dos naturgfanáticos' -dutos populares são,.fabricados por laboratório, geirui
E agora? Se levarmos em conta que o uso medicinal namente nacionais (já que as "multinacionais" ião
do alho é antiquíssimo (um argumento dos mais pode- interessam por elas), r percebe-se que estamos em
,.
face
rosos), que os constituintes do Amargol são, a bem di- de uma inequívoca declaração de princípios
políticos.
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69
Também o lado por assim dizer estetico da questão opção de saúde venha a surgir.
Escancarar a janela em
merece nossa simpatia. Compreende uma certa nostal- bula de ar p.l'l: 1,,". ,oüp", i;ü;;;'."J:;i::X, .
gia, as saulades do antigo, do tradicional, as garrafadas, cooper praia, insistir no ãçúcar mascavo,
_de no arroz
os chazinhos, a puçanga. Expressa um anseio pela vida integral e horta]i_Sas isenras a. i.q.otO*icos
tudo legal, a isso não me opor[o.
_ rudo bem,
simples, tranqüila, repousante, o contato com a natu-
reza. rt, uma declaração de repúdio ao artificialismo, à que mal podem, fazer a rur.ru,-u
Também ,.;.
"áátrans_
i9gu, a meditação
degradação do meio ambiente. (Esta geração de que fa- cendental, sei lá o que mais,
desde que não me passem
lamos, como se sabe, tem um vivo interesse pela Ecolo- o sinal vermelho e com rais remend:;-r;;;"p"#"X
gia e seus problemas.) edificar uma Medicina Alternativa, julgáa
Na esteira desse conjunto de atitudes vem todo um lucionar toda sorte de problemas de ;;;;';';"- "
saúde.
estilo d,e uida, tanto no campo da saúde (restaurante N1o nego que tudo- isso possa ..funcionar,,
macrobiótico, a ioga, a recente onda da "musculação" ,
das doencinhas _
no caso
etc.) como fora dele, nas artes, nas vestes, nos passatem- a ser m,as,. a;#11'j'?;j"#l#*..',::i#:,:3T:
pos, na maneira de ver o mundo. coisa mais sérial puru ...., p.i-.iro-J-
Nunca me mostrei indiferente a tais tendências, e prouar, poÍ a mris : 1.r
b. Âc q".-iirntes insuspeitas fi.".im
nos
defendo o seu direito de existir, enquanto fi,losofi,a, venham com tais provas, as ..alternativas,,
enquanto, bem entendido, declaração d,e fe.
;;;;;"
arquivo morro a", pãrrous de bom
1,.^::,:::l _no
cientistas ou meros leigos.
I senio,
- Qual o problema, então?
O problema surge cada vez que estes entusiastas me A essas alturas o que falta é submetê_las
à prova de
saem da órbita que escolheram, onde a ordem do dia ," uma rigoroú investigação científica, p."fra"_
I-o.^to^
é o belo, a harmonia, a paz e o amor e, avançando bas- cra a qual nem seque..u u.rp,.r.tura
tante o sinal, me invadem um campo para onde nin- (que. por enquanto insisto .-
ou h;;p;;i;
" as alterna-
irr.lrr. entre
guém os chamou, para o qual não estão capacitados. tivas) jamais passaram.
Principiam com uma hipótese (que até pode ser razoá- Não faltou quem quisesse dar à
homeopatia feições
vel) mas não se detêm por aí: logo mais ela é travestida mais científicas, mas por enquanto
sem qualquer su-
de probabilidade, a seguir vira certeza - e eis criada cesso. E isso por motivos inteiramente
respeitáveis:
uma nova "escola". como um de seus corolários é o de
Pois ninguém ignora que faz parte daquele estilo to individualizado (,.cada caso é ,rÀ
insisti, ir"rr*.i-
"o op..i-f-ü-
.uro,,),
de vida a construção de uma Medici,na Paralela, uma mente adaptado àquele paciente,
sempre foi i*porri"a
Medicina Alternativa (também denominada Popular, consriruir os tais grupos de pr.iárt"r,
sem os quais um
Tradicional etc.). ensaio científico não-fazsentido.
Para começar, confundem alhos com bugalhos, Me-
.bib.liografia homeopática só constam dois traba_
dicina com Higiene. Porém não basta ter amor pela lhos do tipo controle cego, u.nU",
tados pelos cientistas, loão
-qr. irir.lirr.r.rrte conres_
natureza e apego à simplicidade para que daí uma nova prlti."aor.
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71
"Ausência de prova ainda não constitui prova de Mas agora, ao falarmo s da iatrogenia, as vertentes se
ausência" - responderão. Certo, certíssimo, mas é igual- ullern, e o charlatão volta a seri.a.rtro de minhas
mente irnprudente - ou mais ainda - aproveitar-se do Írtenções.
fato de nada poderlnos provar nem desprovar, para daí Iutrogenia é um amálgama d,e iatros (médico)
corn
concluir que n,ão rustn experimentar. Você se disporia genno,n (provocar); trata_se de um termo universalmen-
a jogar a saúde de sua família em semelhante roleta- tc adotado quando se pretende falar dos prejuízos
de-
russa? correntes do ato médico.
Corno já disse, nutro profunda sirnpatia por aqueles Às vezes é l,ruto da omissão. Mr .
rém, a iatrogenia é conseqiiê".t" J;t:,,:?:'r:51
que protestarn contra nossa sociedade - obstinar-se enr i;*1-
galidade, do excesso de -medicação, de" cirurgiu'r,
ser diferente j:l é unr born começo. O diabo é que o di- ã;
cxarr)es pedidos ao especialisra, ao ..especialóideY,
ferente de hoje amanhã vira rotina, e seln dernora e ou ao
laboratório.
substituído. É assiur que surgem as rnodízs, os modis-
mos, a cada ano urn novo modismo, igual a concurso I9i. u própria evolução da medicina, o progresso rec-
nológico, que levou a isso.
de miss Universo. Se fossem mesmo "alternativas", não
teriam vida tão efêmera. Não devemos lamentá-lo, pretender que se volte aos
velhos bons tempos
Não basta ser rliferente - é preciso ser melhor. A asslm mesmo
- que, de resto, não eram tão bons
-, sabendo que a tecnologia é uma faca
úrnica alternativa, a única resposta à má medicina é uma d.e dois gumes. Pois é bem provável q.ie
boa medicina! .arnprro
Í:inal, e na mão de gente responsável. traga"o mais b'ene-
fícios do que prejuízos.
Não obstante isso. não se pode esquecer os .trrror.
Mal não pode fazer?
Quanto mais afiado o instrumàrrto, -áio.es e mais fre-
cliientes os acidentes: quanto mais refinado o método
Faz tempo que não menciono o charlatão.
diagnóstico, maior o risco daquilo que se chama de
Para isso tenl-ro lâ rninhas razões. O campo das falsos positiaos (a doença fictícia), qrárto mais porente
alternativas, salvo urn por outro exemplo menor, ficou uma droga, rnais severas serão, em geral, suas manifes-
entregue à automedicação, onde o usuário, embora tações secundárias, quanto mais intiicado o instrumen_
inspirado pelos palpites da cotttadre, da vizinha ou do tal, maiores as oportunidades de erro na mão d; .il
balconista de farn-rácia (sem falar na charla do rádio ou mentos pouco qualificados.
da tevê), não está subordinado à autoridade do médico De modo um ranto- qe1al, é possível dizer que a ia-
ou do charlatão. O último, em particular, teme este trogenia não vem da Mediciro rnu, do próprio
méd,ico,
tipo de concorrência, não adere ao emplastro de mas- dando razáo ao famoso ditado: ,.O médico é o
melhoí
truÇo, o chazinho de tnalva, rnuito menos o rabo de remédio, embora pgslser-também a pior
au, ao..r-çur;i
jabuti, que - diga-se de passagem - deve andar escas- Uma pequena fração da iatrogenia infeliz*.r,," .
so. Tem suas próprias maneiras de mistificar.
.inevitável.
Contudo. como ela obàece à fórmul a igno-_

72
/,
rância * irresponsabi,lid,ad,e * d,tsplrcênci,a * azar,lo- Raro o médico gue rem esta oportunidade. Só os
gicamente é mais comum no charlatáo. É ele que faz pesquisadores, só os órgãos gue centralizam todas as
a sua "atualízaçío em terapêutica" pela charla do pro- inforrnações estão capacitados a opinar a respeito da
pagandista de laboratório; é ele que despreocupada- segurança das drogas e de outros procedimentos. Por
mente extirpa os órgãos considerados obsoletos, só por' isso, quando nos falam de uma crescente epidemia de
que fizeram uma ligeira reclamação: apêndices que não iatrogenia, sua voz tem que ser ouvida. Um recente
fizeram mal a ninguém, vesículas biliares, amígdalas, estudo norte-americano, por exemplo, estimou que
úteros, ovários etc.; é ele que não presta atenção ao que quinze a vinte por cento das internações hospitalares
faz, firmemente convencido de que "no fim dá tudo deviam ser atribuídas, unicamente, aos efeitos colate-
certo". Nas mãos do charlatão, remédio vira veneno, o rais dos medicamentos! (De resto, tem-se informações
bisturi, uma arma branca. seguras de que os próprios hospitais contribuem com
Apenas uma minúscula fração da iatrogenia é sufi um quinhão nada desprezível a esta preocupante cifra
cientemente espetaculosa para ocuPar as manchetes; no de iatrogenia.)
seu grosso, é menos dramática - ou, melhor, parece Mas não é disso que eu queria falar. Para dar seqüên-
menos dramática - e dele os órgãos de comunicação cia à minha discussão das "alternativas", tenho que
eln massa não tomam conhecimento. Digo mais: muitas explicar o porquê de meu tão veemente protesto contra
vezes o próprio charlatão nío faz idéia das barbaridades
a filosofia do "Se bem não faz, rrral não pode fazet."
que semeia ao longo do caminho.
É assim que pensa o público. É assim que se defende
É possível que passe anos a cometer as mesmas imbe-
o charlatão. E, pelo visto, também é este o conceito de
cilidades sem se aperceber dos diagnósticos errados, das
nossos órgãos de fiscalização que, quando se trata de
drogas mal indicadas e imprudentemente dosadas. Por
exemplo, é muito comum encontrar profissionais que
decidir entre medicamentos "controlados" e produtos
de venda livre e de propaganda desimpedida, baseiam-
se obstinam em receitar o cloranfenicol, os analgésicos
se única e exclusivamente na composiçã,o.
à base de piramido etc. e, quando advertidos de que em
outros países tais drogas !á foram proscritas como Pre- Falam que se o "medicamento" não contiver ingre-
judiciais à saúde, soberbamente declaram que "Ora. dientes farmacologicamente ativos, se forem compostos
jamais tive um só acidente em toda a minha longa ex- apenas de produtos supostamente inócuos (extratos de
periênciat". plantas "medicinais", algumas gotas de boldo, de gen-
Pudera! Se nunca observaram as conseqüências de ciana, de alcachofra etc. etc.), mal não podem fazer.
seus atos desavisados, é porque o paciente logo mais se Mas que trágica tolice!
muda para outro profissionat. De resto, como iá foi Para começar, a inocuidade é apenas aparente. É uma
dito, para clecidir se determinado procedimento é cor- crença que envolve sérios riscos, que sempre leva a
reto ou incorreto, não basta ter observado um ou dois uma falsa segurança: a tão desejável cautela é posta de
isolados casos, é preciso ter em mãos toda uma longa lado, a dosagem é feita com total despreocupação, por
casuística. parte de quem prescreve, de quem fabrica, de quem
74
75
vende. Sabe-se, por exemplo, que a "banal" vitamina A, plicar-se. E assim tempo ganho vira tempo perdido, às
a "inocente" vitamina D, quando dadas em doses ex- vezes irremediavelmeste perdido.
cessivas, podem ser altamente lesivas à saúde. Ora, se o
próprio leite (décadas atrás usado em doses tão cavala- - Lembre-se do que falou a respeito das "doenci-
nhas", seu doutor!
res no tratamento da Írlcera de estômago ou duodeno) - me cobrarão.
Não est.ru esquecido. Nem poderia esquecê-las, pois
tem a sua patologia própria, é caltaz de determinar o são elas que são o grande perigo, qne conduzem à falsa
aparecimento de cálculos renais, o que dizer de outros segurança, à pseudoterapêutica, à popularidade de mil-
medicamentos, a respeito dos quais muitas vezes ainda e-uma "soluções" abrangentes. São elas que fazem es-
nem existe inforrnação? quecer que "todo caso é um caso".
Mas esta é apenas a ponta do iceberg.
Longe de mim querer assustar o bom leitor, mas é
Vocês me dirão que o placebo de uma mera gota de forçoso mostrar-lhe que mesmo a corriqueira dor de
água, três vezes ao dia, decerto não fará rnal algum, não cabeça, que, em 99,970 dos casos, realmente sumiu
é mesrno? Pois estão redondamente equivocados; uma no dia seguinte (com ou sem auxílio daquele famoso
conduta como esta - e outras
-, é até capaz de mostrar- analgésico), uma vez em mil pode ser grave, urgente.
se desastrosa pois, ao mesmo tempo que leva o paciente
E é este o desafio ao.bom profissional: manter-se vigi
a pensar que todas as providências cabíveis já forarn lante, não obstante estatísticas tão favoráveis.
tomadas. faz com que o profissional relaxe a vigilância,
Em essência, é esta minha grande objeção à Medicina
deixe passar o tempo, enquanto espera para ver "como
Alternativa (ou Popular, Tradicional, Naturalista etc.):
é que fica". (A máxima de dar tempo ao tempo por
ela funciona tão bem no dia-a-dia e se mostra tão desas-
vezes é muito sensata, mas só pode ser empregada de-
trosa nos momentos de maior necessidadel
baixo de muita cautela.)
Médicos ilustres agern de modo comedido, e, ao con-
Tenharn paciência: se bem não faz, só pode fazer mal!
trário do charlatã.o, náo se rnostram "rápidos no gati-
lho", vez por outra utilizam-se de um placebo, e habi-
Urn. pequ.eno paréntese
tualmente fazem do tempo um prestimoso aliado, pois
conhecem o poder da remissão espontânea. Mas a todo
momento se mantêm vigilantes - está aí a diferença! Quero crer que meus esforços em fazer ver que a
automedicação não é recomendável, nem aconselhável
Quando se trata de uma doença um pouco mais séria, aquele entusiasmo tão fácil pelas "alternativas", não
o tempo pode ser precioso. E aí está todo o mal das
ficaram perdidos.
panacéias, dos placebos irrefletidos, do medicamento
popular, isento de "substâncias ativas", portanto intei- Mas a essas alturas vejo que ainda existe um risco de
ramente inocente: faz perder tempo. Enquanto prosse- falarmos por linhas cruzadas, daí o pequeno parêntese:
guem as experiências com algo que se acredita que mal A cautela que acabei de mencionar, dizendo que se
não pode fazer, na esperança de que talvez venha a Íazer tratava de um dos predicados de todo bom médico, nada
o bem, a doença tem oportunidade para progredir, com- tem de comum com a mistificação própria do charla-

76
o profissional sério e bem intencionado, que busca con-
tão. Quando este afirma e a todo instante reafirífl4 9ue
"vivei é perigoso", tem em vista não o |srn-sstar do tornar um alarmismo desnecessário, tem dificuldade em
dosá-la. O que dizer, então, do charlatão, que constan-
doente,
"à"
i sua educação mas a deseduca çáo. P.ara temente taz recordar ao doente como é perigoso viver,
poder brilhar, tem primeiro que impressionaÍ, seJam
e cujos lucros crescem na razáo direta da medicalizaçã,o
quais forem os métodos.
gue conscgue vender?
O bom médico fica de olho na possibilida6. de que
Há anos carrego comigo uma teoria, mas ainda não
viver podeser perigoso; o charlatão, porém, agí t:To
consegui prová-la: que, entre uma informação pessimis-
se por todo lugar só houvesse perigo. A diferenÇ^ e ila'
ta e uma mensagem que lhe é pintada em termos mais
grante: o primeiro guarda seu instrumenta! paro o .*o-
favoráveis, o paciente guarda melhor a primeira, logo
mento em que dele pode efetivamente vir a pÍecrsar'
é mais influenciado por ela.
o segundo, iapidíssirrà no gatilho, dá tiros 7 @rrc e a
Se esta teoria for verdadeira, ela nos explica por que
direito, esbanla os recursos que estão ao alcance e' to
a a mistificação e tão fáciI. Em face do mesmo paciente,
fazê-lo, também é pródigo em iatrogenia, a do coÍPo'
atitudes as mais desencontradas podem ser obseryadas:
que afeta o espírito.
E agora ficou claro? o médico sério provavelmente lhe dirá que, consideran-
do a idade, sua saúde é invejável, e que assim consti-
nuará, desde que modere um pouco o consumo de sal;
Á i,utrogeni,a, ilo espíri,to o charlatão, por outro lado, depois dos ínevitáveis exa-
mes de laboratório, falaút que a pressão arterial está
A iatrogenia do corpo, a iatrogenia física, ,rÍ'bo'^.? "um pouco elevada demais", que é preciso cuidar-se,
que mais dá na vista, é apenas um dos aspectos llegatl- caso contrário estará exposto a "complicações cerebro-
vos da Medicina (com ou sem aspas) . Para c?da caso vasculares".
destes, de danos maiores ou menores feitos ne o-r$anrs- O que é que acham, qual das duas declarações terá
mo, existem dez quem sabe cem - exemplor d,t ".*' maior impacto sobre o paciente e sua família?
-
iatrogenia que escolheu como alvo a esfera pslQulca' Está explicada, ao que me parece, a tão baixa "quali-
É igualmente nociva. dade de vida" das famílias que têm um doente a cuidar,
í rr- risco que surge toda vez que o doente 9e faz de um inválido ou um idoso: colocaram-lhe sobre a cabeça
paciente, pro.üru ,o.ãrr.r-r. com alguém que, por de- uma espada de Dâmocles, dizendo-lhes que a cada mo-
finição, sabe mais do que ele. Este saber, r.ul oú-lT'8'- mento poderá despencar.
nado, automaticamente o transforma em autoyldade, o Informar sem inquietar - é este o desafio enfrentado
exercício desta autoridade criando. de um lado, a arro- pela Medicina Preventiva, que, ao mesmo tempo que
gância, o abuso, de outro, a submissão. deixa claros os riscos futuros, busca demonstrar que,
Nessas circunstâncias a opinião, mesmo 2 *ais chin- com um pouco de cuidado, eles serão facilmente evitá-
frim, vira lei científica, a palavra falada, entáo'_numa veis. Lembro-me bem quando, adolescente ainda, fui
arma branca. com a qual toão cuid.ado é pouco. Mesmo levado a ver uri, exposição de fotos, pranchas e peças

78 7e

.-F
lI-

anatômicas que faziam parte de uma campanha, ao nível recorrer a um exernplo procedente do extcrior, esle
nacional, pata a prevenção do câncer. As fotos e as peças relatado pela T-ime, uma dezena de anos atrás:
me deixaram indifererlte, e no dia seguinte já não me Em volta daquela época, o Departamento de Saride
recordava delas; o que ficou na memória, isso sim, foi clo Estado de Nova York decidiu proceder a um con-
o cartaz que puseram bem ao lado do portão de entrada, trole de qrralidade de seus laboratórios clínicos, uma
e que proclamava, em tom sinistro: "O próximo pode espécie de auditoria científica. Lembro-me, ainda, que
ser você!" (Desconheço se a campanha influiu no obi- os resultados fariam corar a um frade de pedra, espe-
tuário nacional, sei, porém, que a iatrogenia deixada cialmente no que dizia respeito ao "teste da pia", tram-
em seu rastro não foi desprezível.) polinagem que também dos norte-americanos não ficou
Fico em dirvida: talvez o medo seja realmente o único esquecida. Os vidros eram abertos, seu conteúdo lan-
conselheiro a que se dá ouvido, e assim, em que pese
Çado na pia, e ato contínuo o "laudo" laboratorial era
a inevitável iatrogenia do espírito, é a ele que se tem redigido!
clc recorrer quando se trata de doenças potencialmente Não acredito que nos tempos atuais isso possa acon-
evitáveis, no câncer e, sobretudo, nas doenças transmis- tecer, aqui ou no exterior. O que não impede que, na
síveis. Mas se',á igualmente justificável acenar para a nrão de técnicos mal remunerados, inábeis ou displi-
espada de Dâmocles - apenas para mistificar, para centes, mil deslizes menores venham a escamotear a ver-
arrotar erudição - nos casos em que a Medicina ainda dade acerca de saúde ou doença. E no entanto não me
esrá de mãos atadas, e não existe solução à vista? iludo: minhas palavras de advertência pouco valem.
Só porque uma repartição pirblica, uma empresa pri- Pois todos sabemos quanta credibilidade é atribuída,
vada, tiveram a insolência de exigir do candidato a com quanta reverência é olhado o papelzinho que nos
emprego um teste de sangue, famílias inteiras são lan- é entregue no envelope selado - o resultado é expresso
çadas no desespero, embora ainda não exista tratamento em nÍrmeros, reparem só! (Os nÍrmeros, como ninguém
para o mal de Chagas, E já imaginaram a devastadora ignora, tomam foros de lei, como se na Tábua dos Man-
repercussão de um exame positivo para a AIDS, doença damentos estivesse gravada, em letras de fogo, a décima
incurável? primeira: "Não menosprezai os números!").
E se aquele for um falso positizo? Raríssimos proce- De resto, meslno afastadas outras fontes de erro, o
dimentos de laboratório (e outros "exames subsidiá- resultado positivo de um exame nem sempre indica
rios") se mostram cem por cento especificos, assim sua a presença de doença. Isso vale para a AIDS, embora
idoneidade sempre terá que ser cuidadosamente verifi- ainda nos faltem inforrnações sobre o montante das nã,o-
cada. (O exame de sangue para a sífilis, por exemplo, rloenças, vale sobretudo para o mal de Chagas, segundo
pode ser positivo numa série de outras infecções, algu- estudos meus e rle outros pesquisadores. Um resultado
mas delas bastante banais.) positivo indica infecção, indica exposição anterior ao
Acresce que a qualidade dos laboratórios e dos labo- parasito, no entanto ignora se este teve ou não oportu-
ratoristas é extremamente variável. E, para que não me nidade para lesar o organismo. A maioria das p.srout
acusem de atentar contra a boa ética, máis uma vez vou infectadas goza de invejável saÍrde, e leva urna vida nor-

80 s1
:

mal até o dia em que alguém, a mero título de curio- duta tão complicada, tão indecifrável que o menor
- irnproviso fica impossível. O lugar do autocuidado é
sidade, decida pedir-lhes um exame de sangue! (Tomei
conhecimento até mesmo de dois trágicos e inteiramen- tornado pela dependência, como naqueles pacientes que
te absurdos casos de suicídio, depois que a informação entram em pânico cada vez que vêm u sàber q,r. i.r,
fora recebida!) psiquiatra ou seu clínico estão para entrar de férias.
Seja ela fruto da toleima ou de más intenções, a epi- Não é este um efeito diametralmente oposto ao que se
demia de iatrogenia progride a ritmo acelerado. Isso pretende, a libertação da personalidade, a conquiita da
porque a voz do charlatão, agora infinitamente multi- confiança nas próprias forças?
plicada pelas revistas, pelo rádio ou pela tevê, alcança O charlatão cria um hábito: uma vez usado, o pobre
muito mais longe. Dulcamara agora serve-se do micro- do paciente se vicia no uso. Isso dificulta sobremineira
fone. Virott megacharlatão. a tarefa dos médicos sérios, chamados a solucionar os
mil problemas criados, as barbaridades semeadas à pas-
sagem da triste figura. Lembrem-se apenas d,o efeiti d,e
Estas e outra^s primazia, acima mencionado: uma vez levantada a le-
bre do "princípio de angina", o que poderá o não-char-
Illich faz questão de distinguir entre a iatrogenia de- latão contra este espetro? Que efeito ierão suas palavras
corrent(' da ação técnica direta da Medicina e o seu tranqüilizadoras depois que um charlatão, cóm sua
indesejável impacto sobre a vida social, a iatrogenia so- habitual displicência, reconheceu uma inexistente hi.
cial. Este termo tem uma série de comPonentes, com o pertensão arterial?
devidc destaque aos custos reais da medicalização, o Eis um lado ainda inexplorado da iatrogenia, a per-
seu efeito sobre a economia, ao nível de nação e de versão dos cosrumes relativos à saúde. Digam-rne vo.ês,
individuo. que chance terá o médico honesto, portanto comedido,
É algo que não concerne ao presente livro. Náo e por em face de um doente acostumado a que lhe receitem
isso que posso dar por encerrado o capítulo, que bem um antibiótico para uma gripe e um "miorrelaxante',
merece mais algumas observações: para uma prosaica dor lombar, habituado a fazer uma
Como já tive ocasião de frisar, o charlatão jamais radiografia cada vez que rem queimação de estômago
educa seus pacientes, muito pelo contrário. Todo o con- e um exame de sangue à menor erupção cutânea? Con-
ceito de atttocuidado (termo muito ern voga no exterior, tra a avalanche de palavras pomposas e tão sinistras, o
e que mais dia menos dia também a estas praias vai que poderá o sorrisozinho, a palavra amiga, o bom
chegar) é execrado por ele. Para evitar que um dia o senso e o equilíbrio?
doente aprenda a tomar as rédeas na mão, fazer algo Compreendam a minha indignação.
por sua saúde clue seja de iniciativa própria, assumindo
plena responsabilidade por estes atos, o charlatão lhe
pinta uma Medicina reservada a uma minoria de ilumi-
nados, decide-se pela mistificação, implanta uma con-

82 8)
CHARLA'TÃES EM ESTILO GRANDE

Ferreirinha, cantor caipira, aproveita o intervalo para


jurar eterna fidelidade ao HEPATOBELO, que peimi-
te comer e beber até dizer chega, sem maiores conse-
qüências para a saúde. (41ém de proteger, é narural,
contra tod"a sorte de insuficiência hepática.)
Na tevê, porém, que atende a um público mais "di-
ferenciado", Ferreirinha tem que ceder seu lugar ao
Paulo Beltram, aclamado ator de novela, trazendo à
mensagem urrra certa sofisticação:.não é mais tutu com
torresmo que é possível comer impunemente
com laranja, note bem!
- é pato
São raros os ouvintes do Ferreirinha que advinharam
que para ele aquilo é uma fonte de renda, os demais
parecem acreditar que o cantor está aí para um serviço
inteiramente desinteressado. Já o telespectador, menos
ingênuo, sabe que não é assim gue se passam as coisas
neste mundo dos homen§, e assiste ao espetáculo com
um ar superior, ligeiramente diver'ido.
Este gênero de publicidade não diz respeito a ele,
pens4 com os seus trotões. Mas, dias depois, eis que
também ele vai à botica arás do HEPATOBELO, não
necessariamente por acreditar eill §uas virtudes, mas
porque foí cond,ici,onado, foi massi,fi,cad,o.

85
O instrumento desta massificação são os órgãos de profesoados pela coletividade. Se lhes mandam vencler
comunicaçã.o em rnass&, que conhecemos tão bem; seja l)rodutos imprestáveis, é isso que passam a fazer, se a
onde estivermos, deles jamais conseguimos nos safar. r:rrdem do dia for a de mentir, mentirão corn desenvol-
Países há que exercem uma fiscalizaçío mais ou me- tura, por cima sentir-se-ão mais do que honrados ern
nos rigorosa com respeito à publicidade de "remédios" servir a uma tão nobre causa. (Se é este o estilo da Or-
e panacéias; obviamente não é este o caso do Brasil, gmização, tem que estar certo.)
onde a mentira, a mentira desbragada corre à solta. Do modesto ci,arlatano ao moderno supermercado da
Como esta mentira agora se dilui num público enor- saúde a distância é grande. O espírito, porém, este os
me - e ao nível individual vira insignificante menti- séculos não alteraram: "Não pense você que são os lu-
rinha -, os protestos são poucos. E quem se animaria cros que nos atraem. Nãol Nosso único objetivo é o de
a protestar contra o logro de que foi vítima, quando bem servir ao distinto público, oferecendo-lhe as infor-
mações de que carece, de modo honesto, diga-se de pas-
sabe que dezenas de milhares de seus semelhantes foram
igualmente logrados? É feio passar por mesquinho, não sagem, e inteiramente desinteressado. Se vez por outra
é mesmo? fazemos alusão a este ou àquele produto farmacêutico,
é apenas para lembrar-lhe que viver é muito perigoso,
Chegou o momento de falar do charlatão por ataca-
e que a nossa missão sobre a face da terra é zelar por
do, do charlatão em estilo grande, do megacharlatão.
você".
É o derradeiro aspecto da charlatanice; sem ele este
Seja qual for a mercadoria ou o serviço que se busca
livro ficaria incompleto.
impingir ao pobre do público, os engodos são sempre
O charlatão que meu dicionário tão bem soube de- os mesmos: a promessa de um visual atraente
finir e por natureza um solitário; claro que não é este - muito
usado para vender cosméticos ou coisa afim
o caso do megachatlatáo, que pratica uma charlatanice - e a ga-
rantia da eterna saúde.
por assim dizer "grupal". Ainda me ocorre uma outra
diferença: ao contrário do colega que trabalha desa- Quanto ao último, jamais esquecerei um comercial
particularmente asqueroso, que anos atrás marcou pre-
companhado, os homens que compõem o megacharla-
sença em todas as telas de tevê:
tão nada têm de sinistros, muito pelo contrário, são
gente simples e aparentemente inócua, como você e eu. (Um cortejo fúnebre, duas figuras vestidas de luro
acompanhando o caixão. IJma conversa em tom dis-
Mas note a transformação que se opera quando as creto:)
partes se encontram somadas! Igual a um enxarne de
aplicadas abelhas, que renunciam à própria personali- - Perdemos um glande amigo, uma alma nobre.
dade para perder-se dentro da superpersonalidade da - (U- dramático suspiro.) Realmente, uma perda
colméia-mãe, esses homens passam, então, a reger-se por irrecuperável. Tanta vitalidade, tanto amor pela vidal
uma outra orquestra, a rezaÍ por uma Bíblia diferente (Pausa.) No entanto, também ele tinha lá seus defeitos,
daquela que lhes foi ensinada na escola, ato contínuo vamos reconhecer o que é verdade.
trocam seus ideais, seus amores e desamores por aqueles - É fato. Especialmenre a imprudência.
86 B7
- Um imprudente, teimoso, isso ele sempre foi. uma população violentamente medicalizada
rr<1ui está:
Quantas e quantas vezes eu lhe dizia que cuidasse me- (ou pacientizada, se se quiser), condicionada a jurar quc
lhor da saúde, por exemplo, que não deixasse de fazer
o Toda queixa corresponde a uma doença
urn periódico chech-up. (Mais um suspiro.) Se apenas
tivesse seguido mell conselho, as coisas seriam outras.
o toda queixa resulta num diagnóstico, desde que se
recorra aos exames apropriados, e que
- É fato. Para evitar acontecimentos tristes como o toda queixa conta com um remédio específico.
este, nada como urn chech-up de saírde
- mas que seja
eficiente e bem completo!. . . Eu, por outro lado, cui- Isso posto, não fica difícil persuadir-nos de que a res-
do-me bem: de ano em ano, cá. estou eu, no Internatio- saca do dia seguinte é prova segura de "insuficiência
nal Check-Ui: Center, bem na Avenida das Américas, lrepática", que um "check-up eletronicamente compu-
esquina com a Perimetral.* tadorizado" é inadiável, que três drágeas diárias de VE-
Existe algço mais revoltanre do que a manipulação do NORENOV conjuram tudo que é varizes, que MA-
medo, com o finr úrnico e exclusivo de um farto fatu- CHOL renova a potência sexual, e Por aí afora.
ramento? (Pois sabe-se que, embora os homens dêem
pouco valor à saúde, quando a têm o maior obstáculo
-
para uma Medicina verdadeiramente preventiva, diga-
se de passagem
- o espetro da doen,ça deixa a todos
apavorados.) Igual ao seu colega em estilo pequeno, o
iiFI,ARSE!!
?E ESTA ES LA MARCA DE LOS
rnegacharlatáo é, caracteristicamente, uln semeador de
medos. EmBluslos ffEF Dr. [üinlsr
O megacharlatão exerce uma megainfluência. O char-
LOS EMPLASTOS DE RELTRO ROJO DEL IIN tilNM
latão clássico, que se endereça a uma, duas, no máximo
uma dezena de ouvintes, é uma í'igura relativamente c u RA N :'J:Iff ,:;,ãi:,1,ilH:it
inofensiva quando comparado com ele; sem ter acesso à y caderas, reumaüsmot lumbagq ciática, dolores dorsôles
de las Seíoras en sus peíodos mensuales, etc., etc.
cornunicação em massà, mesmo um exército de charla-
tães não causaria estrago igual ao de uma tlnica destas tuDÀ.dd iFIJARSE en la MÂRGÂ del DR. WltlTERl
La mara dal DR. IrlllÍER I lmpr.a. ar l. csbl.dr da c.dr mphato.
empresas que nos clias de hoje detêm em suas mãos o
Pedidh y aisidla o todas lõ Famadil y Doguedar iüüG[0 CUl0lE0 C0ll ]lt mllÀCl0lltE!
comércio cla saírcle e da doença. O resultado é o que
Figura 7
!, agora, muito a contragosto, vejo-me forçado a in-
'F (Não obstante a ojeriza do editor pelos asteriscos e respectivas
ttotas de rodapé, vamos ver se esta escapa ao patrulhamento:) Alguns
cluir na denúncia os próprios ueícu,los de comunicaçã«l
meses depois, tive a oportunidade de passar pela famosa esquina e ver em massa, o que é uma lástima. Pois que, se é verclade
o prédio abandonado, o estacjonamento deserto, e uma faixa de pano que uma vida inteligente seria perfeitaltrente possível
anunciando a venda do imóvel. (Enfim, Alá foi misericordioso!) na ausência de uma indúsrria de propaganda, seln o
88
sabonete das estrelas ou daquele produto que garante bém o conceito do sensacional é coisa muito relativa,
curar a ronqueira noturna, a sociedade que não puder .o*o tudo depende do tom de voz' da escolha correta
clas palavras certa§, não se trata de problema
insuperá'
contar com informações está fadada à extinção.
Lamentavelmente a informaçáo está cada vez mais vel. Emborr requeira uma tecnologia toda especial'
Tomemos como exemplo o nosso jornal de todas
as
suspeita, a todo momento servindo-nos um cardápio de
a lmPunr-
tersões travestidas de aerdade. manhãs: claro que ele não pode contar com
dade de um faÉricante que' ao Pontificar
que o deter-
Enquanto se limitam a ser um mero intermediário
entre o empresário e o público, dando guarida em suas ga"t. x lava mais branco que o dos concorÍentes' a
anos à vida que
páginas ou em seu horário "nobre" ao exagero ou à iiiu-i"u y dá mais vida aos anos e mais qYe distinto
suas semelhantes, está cansado de
saber
mentira do anunciante, ainda são mais ou menos tole- 9.
,ão .rtá'em condições teria disposição
ráveis. Afinal, não se pode esperar que desempenhem prfUfm --11m
o papel de fiscais de uma transação sem a qual seriam efetuar um teste comParatrvo'
Para nem a Rede
obrigados a fechar as portas. Assim sendo, nern a Gazetà d'a Tarde
plena
Não é bem essa a questão: o que me ofende - e de- Recifense de Telecomunicação têm-
certo ofende igualmente a você - é estarem eles a ven- prr, ,..orrer à mentira risonha e franca' à.liberdade
mentrra
despudorada para iin' dt noticiário;
se Porv-entura.lhes
der uma mercadoria própria, um produto que, por não
um terremoto em Bangladesh'
trazer rótulo algum, consegue passar por idôneo, im- ã.ri. cabeia inventar
parcial, e assim facilmente burla a nossa vigilância. Com
",
.o"i"trt ,'..rn irrr,'daçáo no Pantanal ou rePortar a
fosse verdade -'
muito cinismo tazem da matéria-prima informação uma cura definitiva do.âncér - e nada disso
mais que juti
indústria, em seguida põem esta indústria a fabricar o no dia seguinte seus irmáos de profissão'
sensacionalismo; então, em lugar de detergente ou com- losos, farão questáo fechada dJ trazer
o embuste à luz
primidinhos é a sensação que passam a vender, cada do dia.
qual buscando uma charla mais empolgante que a do Pois também um desmentido tem
muito de sensa-
competidor, uma charla cuio sucesso é mediclo através cional.
de um índice denominado IBOPE. Positivamente, a rnentira deslavada
não cai bem'
em
Para impedir que o leitor deite de lado o jornal ou q";;J. praticada Pelos..órgãos de, comunicação
uma
a revista (ao invés de entreter-se com os anúncios), *orru. Ljma cirurgia plástica' porém' Pequena
que o telespectador clê a volta ao botão (com grande manipulaçao .o.*élica' dificilmãt'tt *t fará notar' Eé
um, pouco ali'
prejuízo dos comerciais), é preciso que tenham sempre isso que se Íaz, toaos os dias: encurta-se
à rnão - e aqora muita atenção! - generosíssimas por- alonga-se um tant; acolá" enxerta-se'
transplanta-se até
ções do inédito, do sensaci,onal, do espetacular. consãguir uma boa harmonia'
Ora, se nada disso têm a oferecer, se por infelicidade 'NadamaisfácilPztraoprofissiorralhabilidoso.Para
a última semana foi singularmente pobre em aconte- o pirblico, porém, àuda miis problemático: se é verda-
de que, no tocante ao noticiário Político' ainda é
pos-
cimentos que mereçam maior destaque, vêem-se força-
sível uma leitura das entrelinhas (desde que se
conheça
dos a inventar algo que lhes tome o lugar. Como tam-
91
90
a ideologia esposada pelo megacharlatão), em matéria Um jornaleco menos escrupuloso certamente se sai-
de saúde é impossível anrecipar gue feições a charla ria corn a seguinte nota:
tomará.
Num rromento de muita seriedade (ou quando se vê "A notícia de que extratos de Solanum (ba-
às voltas com espaço ocioso), a imprensa até e capaz de tatiuha-inglesa) se revelaram muito eficazes no
renunciar a todo e qualquer cosmético, oferecendo-nos tratamento da hipertensão arterial empolgou o
algo parecido com a seguinte notícia: XXI Congresso Internacional Preventivo de Es-
tocolmo. Segundo os pesquisadores responsáveis
"Solanum tuberosa testada na hipertensão (suecos), mais de um terço dos pacientes expe-
Segundo informações de nossa sucursal de rimentou uma nítida melhora em seu estado
Estocolmo, recentes ensaios feitos com um pro- de saúde."
duto extraído da batata-inglesa, num grupo de
pacientes portadores de hipertensão arterial, de- Embora nada de novo fosse acrescentado - e, tecni-
monstraram uma redução nos níveis tensionais camente falando, até que não se está longe da verdade
em trinta e um por cento dos casos. -, ainda assim trata-se de uma mentira, a "mentira do
jesuíta", a menti,ra por omi,ssão.
Embora semelhante notícia despertasse o in-
teresse do auditório presente ao XXI Congresso Como a omissão tanto pode servir ao otimismo como
Internacional de Cardiologia Preventiva, a equi- ao seu contrário, a cirurgia plástica conta com múlti-
pe de médicos suecos responsáveis por estes es- plas opções. Da minha parte, não me surpreenderia se
tudos ressaltou que especulações mais definitivas no dia seguinte um terceiro jornal rne viesse com a se-
a respeito do produto ainda eram prematuras. guinte manchete:
Segundo eles, outros quarenta e três por cento ,.BATATA.INGLESA MATA HIPERTENSOS
dos pacientes tiveram sua hipertensão agravada,
sendo que dois deles faleceram na semana se- NA SUÉCIA"
guinte à introdução do novo mérodo terapêu-
tico. " Estou certo que para o bom entendedor estes exem-
plos são mais que suficientes. Daí para a frente, olhando
Duvido muito que algum leitor consiga empolgar-se em sua volta, saberá encontrar seu próprio caminho
com este estilo de noticia salvo se ele próprio for através do submundo das mentiras, negando-se a ser
-
cientista. Compreende-se, assim, a relutância dos veÍ- manipulado pelo megacharlatão.
culos de comunicação de massa em oferecer-nos uma No que se refere à publicidad,e, a receita é uma só:
mercadoria que não tenha sido previamente expurgada, faça igual aos três macaquinhos, que não ouvem, não
podada daquilo que para eles não passa de "redun- vêem, não falam. Se, para ver-se livre de sua mercado-
dâncias". ria, o fabricante é obrigado a ofuscar-nos os olhos, a
92 9)
F-

entupir-nos os ouvidos com suas arengas, de duas uma: Mas a emissora não poderá ser acusada de sectarismo,
ou se trata de algo muito supérfluo ou não presta tanto assim que um mês depois, dando prosseguimento
mesmo! à sua campanha de esclarecimento do povo, reuniu um
O que fazer, porém, no caso da informação, que aca- outro Srupo de homens de notório saber, que conse-
bamos de concordar ser produto de consumo obrigató- guiram provar por e mais b (tirada a média, é natural)
rio de todo cidadão? Decerto não podemos ter, cada um que o DIU era o mais seguro dos contraceptivos, muito
de nós, nossas próprias fontes de noticiário, nem pes- melhor que a pílula, por exemplo, esta sim o inimigo
soalmente verificar a veracidade de tudo que nos dizem público número um!
os jornais, os rádios, as televisões.
Por amor ao IBOPE o megacharlatão não recua dian-
Devo confessar que não tenho em mãos uma solução te de nada.
à prova de todas as águas. A mentira deslavada, esta
não me escapa; mas continuo vulnerável às mentirinhas,
E dane-se o consumidor!
à mentira por omissão, àquela que, para facilitar o con-
sumo da verdade, me serve uma fatia por vez.
A televisão tem uma predileção toda especial por este
tipo de cardápio, muito provavelmente imaginando que
seu pÍrblico não tem estômago para uma refeição mais
generosa. Os resultados, estejam certos, são funestos!
Faz por volta de uns dois anos que uma delas, em seu
horário nobre dos domingos, resolveu intrometer-se no
campo da contracepção (extremamente propício ao
sensacionalismo, diga-se).
Resolveram começar pelo DIU (dispositivo intra-ute-
rino), e para isso contaram com a presença de meia
dúzia de especialistas ou especialistóides mais ou menos
notórios que, tirada a média, lançaram um vigoroso
alerta: o DIU propiciaria infecções, o DIU determina-
ria esterilidade, o DIU isto e aquilo. .
.

Mensagem sinistra que não ficou despercebida do


público, tanto assim que uma muito irlônea clínica uni-
versitária de Porto Alegre, até então muito procurada
por rnulheres pobres, na outra semana viu seu movi-
mento bruscamente declinar. (Fato idêntico deve ter
ocorrido no restante do país.)

94 95
COMO RECONHECER O CHARLATÃO

Creio que você há de concordar: de nada adianta


pintar am d,i,agnósúdco sombrio se não se puder segui-lo
com uma terapêuti,ca, ou pelo menos Íazer uma tenta-
tiva nesse sentido. Se eu ficasse apenas na denúncia,
seria culpado de fomentar.inquietações, uma iatrogenia
pelas avessas; porém meus objetivos são mais amplos e
compreendem mobilizar o leitor à resistência, à defesa,
em seguida para o ataque.
- Eu? perguntará você. - Justo eu?
-
- Sim, você. Não pense que qualquer outro virá
atender o seu acuda, o bispo, a polícia, os senhores mi-
nistros, ou mesmo os conselhos regionais de Medicina,
embora bem intencionados. Quem terá de pegar o touro
à unha será você próprio.
Não desconheço as dificuldades.
Tempos atrás me falaram de um charlatão que se
gabava de ter em mãos o "tratamento de cáIculos bilia-
res sem operação", e faturava grosso em cima deste ori-
ginal macete (que consistia da administração de doses
generosas de azeite, seguidas de um laxante.) O resul-
tado era espetacular: horas depois, o paciente vinha a
eliminar uma série de bolinhas que, aos olhos do leigo,
efetivamente eram bastante sugestivas.

e7
Quem me contou - e caiu vítima da fraude - foi Páginas atrás, falei que era através dos resu,l.turlo.r rlrrc
urna pessoa de cultura acima da média, um advogado se conhecia o charlatão. Mas, pensando bern, vc.i«r «prr.
de seus cinqüenta anos. Sua ingenuidade é perdoável: Íui imprudente, que dei margem a mal-entcndirlos.
afinal, como é que podia saber que, desde que exista Não me referi, senso estrito, aos resultados «rb jt.tivos
uma abundância de gorduras, nosso intestino as trans- cxpel ,rnentados pelo doente, à melhora ciu à pirlra «lr.
forma em esferas de sabão? seus sintomas, pois deve ter ficado claro que, salrt:rrrkr
Quando se trata de questões técnicas, o paciente está usar o cheque em branco que a natureza lhe deu, rrrr
inteiramente à mercê do médico e do charlatão, por rnaior parte das vezes também o charlatão é bem succ-
isso mesmo não se pode esperar que saiba reconhecer dido.
as charlatanices que se pra('icam em sua volta. Disfarça- Em contrapartida, mesmo em caso de insucesso, quan-
das em ciêrtcia, tornam-se irreconhecíveis. (Digo mais, do as queixas não cedem e a doença parece estar-se agra-
muito daquilo que nós, os medicos considerados hones- vando, nem assim o diagnóstico estará selado. Pois, por
tos, praticamos em nossas vidas diárias, freqüentemente l'orça das próprias circunstâncias, mesmo o não-charla-
guarda um distante parentesco com a charlatanice.) tão, o médico plenamente capacitado para suas funções,
Por outro lado, é perfeitamente possível reconhecer por vezes vê-se forçado a reconhecer que a doença é
a figura do charlatão, o que já é meio caminho andado.
rnais forte que ele.
Reaçóes adversas ao uso de merlicamentos podem
E é exatamente isso que me proponho a fazer no pre-
ocorrer mesmo na mão do bom profissional, pois a na-
sente capítulo.
tureza é caprichosa, e é impossível prever como o orga-
Basta de indulgência, chega de apatia face ao char- nismo vai reagir, especialmente em paciente com o qual
latão e os estragos que causa. Nestas páginas pretendo o médico ainda não se familiarizou.
iraçar urn retrato de corpo inteiro do charlatão, dos No entanto, se no caso do não-charlatão a iatrogenia
disfarces -que usa, das mentiras que lhe saem tão fáceis, é um fenômeno ocasional, acidental, quase inevitável,
das trampolinagens que procura vender. Para que você, para o chariatão, que nunca ouviu falar em primum
estirnado lei.tor, se torne capaz de apontar um dedo non nocere (acima de tudo, não prejudicar), tornou-se
acusador para este sinistro personagem e colocá-lo em um hábito de vida.
seu devido lugar. Isso posto, é fácil concluir que um julgamento defini-
tivo é, por assim dizer, uma questão de estatística: ba-
sear-se num exemplo.isolado é uma imorudência.
Afinal, o que e urn charlatão? Fico, pois, com um divisor de águas um pouco dife-
rente: conte ou não conte com um dioloma universi-
"É maior a distância entre o médico bom e o tário, charlatão é aquele que traz pre,iuízos ao doente.
médico mau do que enúe este e médico É nesta definicão (que muito lembra, diqa-se, uma inde-
nenhum."
finição\ que tenho que insistir, pois não existe outra.
Galton Sou obrigado a pescar com uma rede de malha fina,
98
99
rle garantída isenção. f'odos eles são prejudiciais, e sua
visto que o conceito original deixa muito peixe graúdo
cventual pureza de propósiros não os livra da respon-
em liberdade.
sabilidade.
Corn isso, os horizontes da charlatanice se ampliam
bastante: além de incluir o charlatão em estilo grande
(aquele que meu dicionário não previu), todo um largo Diagnóstico d,ifícil
espectro de figuras nele estão compreendidas: o char-
latão espetaculoso, que vez por outra comparece às Nada há de "relativo" na charlatanice. É um estado
telas da tevê, o charlatão universitário, que vai a con- de inteiro comprometirnento, em dedicação exclusiva,
gressos, que redige um trabalho "científico" por mês, em tempo integral. O charlatão é ou não é, igual à
o charlatão de vida pública - que sai de sua toca meio gravidez ou àqueles fenômenos naturais que não têm
ano antes das eleições e a seguir desaparece de vista -, gradientes, apenas opostos, como a geada, o terremoto,
sem esquecer os milhares cle charlatães mais retraídos, o tufão. Seria de esperar, portanto, que fosse fácil dis-
que exercem seu ofício nos consultórios de bairro, e tingui-los, o profissional honesto e o marginal.
uma série de outros figurantes que, Por trazerem Pre- Infelizmente, na prática as coisas não se passam assim.
juízo à saúde fisica ou espiritual, não têm direito de O charlatão não leva impressões digitais que permi-
ofender-se se os apelidamos de charlatão. tam classificá-lo, nem possui urn tipo sanguíneo que
Está visto que o Doutor Ricanor, aquele do qual já lhe seja característico. Passando por ele na rua, não se
lhes falei, é um declarado charlatão, bem como o Dr. lhe pode apontar o dedo, gritar-lhe atrás, para que
P. A. L. que, farejando que a homeopatia estava na todos ouçam: "Charlatão maldito!"
crista da onda, investiu num curso relâmpago Por cor- Embora costume vestir-se melhor que o não-charla-
respondência, o Doutor Teofrásio que se diz dono de tão, mostrar um certo ar de realização, de auto-sufi-
uma fórtnula secreta, à qual nenhuma asma resiste, e ciência, ter uma fala redonda, pomposa, não basta isso
incontáveis outros Personagens, todos segundo o morlelo para firmar o diagnóstico. Não obstante homem bem
estabelecido por Dulcamara. sucedido, que pode dar-se ao lttxo do írltimo modelo
Opal - quase que me esqueci do charlatão bem in- de carro, férias em Bariloche e uma casa (residéncia,
tencionado, o charlatão tocado à toleima. Por exemplo, aliás) com aquecimento central, piscina e quadra de
estes jovens que invadiram as ruas de nossas cidades tênis, o charlatão típico aprendeu a agir de modo dis-
para alertar o público contra os perigos da "pressão creto.
àiltu", e, ato contínuo, sacam do tensiôrnetro Para veri- Até na ecologia procura não destoar de seus colegas.
ficar a quantas ela anda. Sem distinção de cor, sexo, Não possui tm habitaÍ exclusivo, mas vive intimamente
idadc ou titulaÇão acadêmica, são charlatães os balco- misturado ao profissional honesto, de sorte que este, se
nistas de famácia, os médicos que receitam por bula, carecer de informação prévia, chega a desconhecer quem
os pais-de-santo, os divulgadores de uma Medicina Na- é o colega da esquina ôu da sala áo lado. O charlaião é
ttrral (ou Popular) que jamais foi submeticla a um teste encontrável nos mais diversos locais. desde o consultório

t00 101
de luxo na zona dos jardins até a biboca de bairro, a O charlatão moderno sabe quando é preciso ser dis-
universidade ou o postinho da Previdência (onde, por creto; se é bem verdade que tem liberdade para agir
sinal, o gênero predominante é o charlatão por toleima). como bem entende, as aparênci,as é bom que sejam
Mas estou me repetindo. O que queria mesmo dizer mantidas. O "mimetismo social" para ele é muito pre-
é que, embora o charlatão seja um personagem estru- cioso, particularmente nas ocasiões em que comparece
turalmente muito bem definido, que é ou não é, para em pÍrblico: diante de uma platéia, faz o maior empenho
distingui-lo do não-charlatão não existe regra à prova em adaptar-se ao meio. De resto
- embora, como sem-
de fogo. pre, existam as exceções -, o charlatão moderno não é
O raciocínio lógico tem as suas falhas. Vamos tomar nenhum Dulcamara, que proclama aos sete ventos ser
a questão da escrita como exemplo: tudo levaria a crer ele "aquele famoso doutor de Ferrara".
que o charlatão, para melhor mistificar, fosse adepto de Já houve tempos diferentes, em que ainda se podia
uma receita indecifrável, enquanto que o médico bem dar rédeas soltas à canalhice. Como este exemplo que
intencionado, desejoso de evitar acidentes, teria o esmero algum tempo atrás, numa coleção particular de me-
de uma letra legível. Na prática, porém, não é isso que mentos do folclore médico, me chamou a atenção:
acontece.
Esperar-se-ia, a seguir, que paredes de consultório "No Dia de Finados. Reflita bem:
atapetadas de diplomas dessem uma pista segura Para Esta criatura que foi tão querida agora jaz em
a identificação do charlatão. Ledo engano: também o túmulo profundo. Teria isto acontecido se você,
não-charlatão tem suas pequenas vaidades, embora, co- enquanto ainda era tempo, tivesse recorrido ao
mo regra geral, exiba apenas as credenciais que real- Dr. Epifânio?
mente lhe façam honra.
Dr. Epifânio A. Menendez, dias itteis, das 8 às 12
E aí mais uma idéia ocorre ao leitor: observar como
e das 14 até quando preciso for, nos altos da Far-
reage seu novo médico quando lhe mostram a receita
mácia do Povo."
do colega que o precedeu. Se recebê-la com um sorriso
silencioso porém eloqiiente, um sorriso sarcástico mas
Nos dias de hoje, nem o mais enrustido dos charla-
ainda reservado, ou então perder de vez a compostura, teria coragem de distribuir semelhante tipo de vo-
tães
deixando bem claro que em szas mãos semelhante bar- lante na porta dos cemitérios. Pois nenhum conselho
baridade seria impossível, o charlatão estaria desmasca- regional de Medicina ficaria impassível diante de tal
rado. (Pois teria o maior interesse em difamar possíveis escândalo.
concorrentes.) Se, por outro lado - diz o leitor a seus Poucos são os charlatães que ainda se aventuram a
botões -, o profissional fizer questão de preservar a boa anunciar a "cura radical das hemorróidas, sem cirurgia
ética, poderei estar certo de finalmente estar em face de e sem dor", coisa que era comuníssima temoos atrás.
um médico digno de confiança. (O que fazem na intimidade do consultório já é outra
Ora, se é este seu pensamento, ponha-o de lado! conversa.)

102 t0)
Nem sequer faz alarde daquela eficientíssima fórmula graciosamente. (É o que, salvo engano, chamaríamos de
que só ele tem, segredo que a duras penas conseguiu bazófi,a.)
arrancar de um renomado curancleiro dos bororos. De E uma "mensagem do anunciante", uma charla que
uma maneira geral, o charlatão de hoje não está afeito se destina à autopromoção. Espontaneamente, sem que
a vender eiixires ou garrafadas ele prefere vender lhe Íaça qualquer indagação, o charlatão nos comunica
-
seruiços. que acabou de ser "especialmente convidado" para um
Assim, travestido de homem sério, fica ainda mais congresso em Copenhague ou coisa que o valha, ou que
difícit reconhecer o verdadeiro charlatão. Esteja pre- está "assessorando o ministro" num projeto todo espe-
venido, entáo: as regras que abaixo seguem náo sáo cial, quando na verdade - como milhares de outros
feitas de concreto arntado, são apenas pistas, elementos médicos que ainda não foram cadastrados - recebeu
írteis para a suspeita. Tomadas isoladamente, uma a apenas um questionário para preencher. Quanto à pri
uma, não possibilitam um diagnóstico seguro, embora meira aiegação, só o Ieigo ignora que os congressos mé-
dicos estão abertos a quem queira inscrever-se
juntas adquiram maior credibilidade. Para reconhecer - e esteja
ô charlatãà, será preciso adotar o conceito estatístico em condições de custear uma passagem para Copenha-
gue (ou coisa que o valha).
- tomá-las todas em bloco, depois tirar a rnédia.
O perfil que pretendo [raçar pode ser visto sob dis- Quando o charlatão se gaba de ter-se "aprofundado"
tintos ângulos: nesta ou naquela questão, esteja certo de que ele náo
passou de duas páginas do compêndio que lhe restou
da escola (quando não uma simples bula de fabricante).
O charlatão mentiroso E também não se impressione quando ele enche a boca
com a sua "casuís[ica", pois é mais do que seguro que
Um dia ainda hei de escrever um iivrinho sobre a a experiência ficou limitada a um ou dois casos. E daí
anatomia, deveras curiosa, da mentira, mas Por enquan- para a frente.
to tenho que ficar nos asPectos mais gerais' Todos eles De tanto tê-la observado, creio que o seguinte tipo
são facilmãnte observáveis no charlatão - embora ele de mentira é quase privativa do charlatão: aquela que
náo goze de monopólio exclusivo: consiste em apropriar-se da cultura alheia, de aforismos,
Principiemos pelo exagero) a rl,errtira do pescador ditados ou frases meramente espirituosas, ocultanclo aos
que, Por ser aPenas uma mentirinha, também se encon- ouvintes que não foi ele quem as cunhou. O charlatão
tra disseminada entre os não-charlatães. é capaz de repetir que "ciência é dez por cento inspi-
raçáo e noventa por cento perspiração" corlf tamanha
A rigor, seria impossível dete ctárla: afinal, não po- empáfia e convicção, que uma pessoa desavisada juraria
demos todos estar presentes ao ato da Pesca. No char-
laLáo, porém, o exagero tem uma peculiaridade que
que a frase é de sua própria autoria.
muito ài.rau no reconhecimento: Para exagerar ele não Esta, pode-se dizet, é uma forma de mentira por
precisa de pretexto, a mentira vem sem ser solicitada' ornissão, que conta com nurnerosas versões. Em sua

t04 105
torma clássica (de conformidade com a resentatio men- O charlatão sinistro
talis dos jesuítas) toma a seguinte forma: o juiz per-
gunta ao acusado se confessa ter entrado pela porta dos Mistificador que é, aos olhos do charlatão o prognós.
fundos com intenção de assalto à mão armaáa. tico é invariavelmente sombrio, qualquer seja a queixa
- .fa-
mais! jura o ladrão, convicro que não está mentindo. que lhe apresentem. Jamais admitiria a possibilidade dc
- uma doencinha, um distúrbio trivial, sem maiores con-
(Porquanto enffou pela janela dos fundos.)
Com este exemplo em mãos, você facilmente identifi- seqüências.
cará as demais veisões da mentira por omissão. Frente ao paciente, isto só poderá trazer-lhe vanta-
Como todos nós, também o charlatão é uma figura gens: de vez que toda e qualquer queixa passa a ser
muito complexa, cujo retrato falado não é fácil traçar. vista em termos catastróficos, a cura automaticamente
Por vezes tem-se a impressão de que também eles sáo assume proporções de um genuíno milagre.
vítimas da insegurança, percebem que sua credibilidade Para que o quadro se complete
está baixa; em tais momentos empregam uma técnica
- e sua infinita sa-
bedoria salte aos olhos de todos
-, o charlatão vê-se
diametralmente oposta à anterior, uma mentirinha que, obrigado a proibir.
para dizer a verdade, ainda não sei como classificar. A prodigalidade que então exibe sempre me enche
Trata-se do endosso, tâtíca muito empregada em publi de assombro. Dezenas de hábitos até então inofensivos
cidade, que se serve do atleta para vender vitaminas, são terminantemente vedados ao doente, além das proi-
do cantor de rock para divulgar o último modelo de bições já tradicionais, é natural: farinha de mandioca,
jeans.
deitar-se antes de decorridas três horas do jantar, ex-
Ora, para melhor destacar-se da multidão, o charla- por-se à chuva, ao relento, ao sol, ao frio, ao calor, usar
tão teve que aprender a, também ele, utilizar-se do roupa justa (ou folgada demais), lavar cabelos com sa-
endosso. Notem bem que este novo medicamento foi bonete alcalino etc. etc., sem contar o café, as gorduras
unanimemente aclamado por mil cientistas recentemen- de origem animal, os condimentos fortes, o fumo e o
te reunidos em Istambul, que a dieta que ele, char- álcool (exceto o uísque escocês, que é notoriamente
latão, agora está adotando é idêntica à empregada com
inócuo).
tanto sucesso pelos chineses, já no século II de nossa
Existe método nesta aparente loucura. Na eventuali-
era, que o equipamento que acabou de chegar-lhe da
dade rara de um insucesso terapêutico, o charlatáo tem
Suíça, e que mais dias menos dia esrará à disposição
em mãos uma explicação irretocável: não é que o pa-
dos amáveis clientes, custou-lhe a bagatela de trinta e
ciente transgrediu suas recomendações? (Em face de
cinco mil dólares, sem conrar direitos alfandegários.
tanta coisâ proibida, quem poderá evitá-lo?)
(Existirá endosso mais convincente? Duvido.)
Ainda há, é natural, a mentlra por inuençíÍor a meÍI- Natural que também o não-charlatão enfrente oca-
tira deslavada. Infelizmente, de todas esta é a mais di siões em que é obrigado a proibir isto ou aquilo. Mas,
fícil de identificar. humano e ponderado, não abusa do poder de proibir,
Salvo no caso de um charlatão que já nos é conhecido. nâo faz dele uma tática. Sempre em guarda contra a

106 107
*4@

tem que remar a favor da maré, mostrar tlttc l;ttttlrt'tll


iatrog^enia do espírito, procura dourar a pilula amarga,
ele é ãono de um atilado "espírito científico"'
mostrando que a vida continua rica, que uma porção É verdade que semelhante esbanjanrcllto llltlit;rs 'u'r'
de coisas boas não foram proibidas. Busca, sobretudo, zes não leva rnás intenções, já que tenl colllo ciltlsrl;r
explicar, aconselhar o seu paciente. toleima. outras vezes obedece a uln llICCeInistlttl rlttt'
Isso o charlatão jamais faz. Ele nã,o educa, ele dita o Ieigo aincta desconhece mas que para nós outros (1 tlllr
regra,s!
,.gráo que, já que é de Polichinelo, posso- trantliiilrr
Ou já não falei isso em algum lugar? rr.ãrrr. puiru. ãdiárrt., a cada exalne solicirado a, lrtlxr.
ratório de sua escolha, a cada encaminhalnento ao cslx:-
O cha'rlatã,o pród,igo
cialista cle sua preferência, o charlatão leva uma pol
puda comissãol
O charlatão é sempre um extravagante, que tomou E agora é o tnomento oPortuno Para falar-se nest;t
corno lenra o rluanto mais, rnelhor. Serve-se da Medi- subesp?cie que náo chega a ser rara: o cirurgião-char-
cina - ou aquilo que passa por Medicina - com a mes- latão. Hotnem de ação, intervencionista ferrenho (por
"conser-
rna imoderação de um condenado diante de sua irltima isso que abomina as drogas e dernais métodos
refeição. ,oaoi.t";, é adepto cla ';conduta radical e definitiva"'
O charlatão de receituário parcimonioso ainda está Em suas mãos - não e difícil concluir - a iatrogenia
por ser inventado, pois isso contraria sua própria natu- é um esPanto.
reza. Mas não é por acaso que se habituou a uma pres- O .nori-.nto de cirurgias de urn hospital depende
crição quilométrica; não apenas isso lhe vem em bene- em boa parte, é lógico, de sua -reputação bem como
ficio da mistificação, mas lhe serve de "cobertura", um àã, .o"aiçóes tecnicà que pode oferecer ao profissional
Contudo, também t"rtl. ,r,,ito a ver coln o número
de
providencial guarda-chul,a para todas as possíveis tem- clínico' Isso foi
pestades. Só "por via de dúvidas", formula uma receita charlatães que compõem seu corpo
verdadeiramente culinária, com quatro, cinco ou mais muito bem estudado pelos americanos (que' como se
ingredientes por vez. Para o que der e vier. ,ub., ,ao fanáticos pelas estatísticas, alvissareiras ou não)'
Para citar aPenas um dos Pontos de um recente
rela-
Idêntica prodigalidade é revelada no tocante aos
ió.io, pelo qual, ao comPararem o indice das amigda-
exames subsidiários
- embora para o charlatão, que l".to*iu, de dois hospitais praticamente vizinhos' veri-
não acrtdita na ci,ência- os resultadis estejam longe ao
de interessar. "Qnanto mais, melhor!", é este o refrão. ficaram clue um delei fazia vinte e duas operações
Cada dor de cabeça, cada formigamcnto das extremi- anoemcadamilhabitantesdacidade'enquantoque
dades lhe serve de bom pretexto para um eletroence- no estabelecimento colega esta cifra atingia astronômi-
falograma (ou coisa ainda rnais sofisticada), cada dor- cos 165(!), uma difererçá q,t, estejam certos' nada tem
zinha na altura do tórax urna desculpa para um ele- a ver com o acaso.

trocardiograma, sem contar os inevitáveis exames de E apçora, retornando ao íáo Êrutífero exemplo das
sangue, urina e demais fluidos ou sólidos. O charlatão cesáreai, quero me redimir do pecado de até aqui ter-nre

109
108
esquecido da tão hospitaleira Pelotas. Nesta cidade sabendo que sua arma tem um tambor para cem balas,
e nele só puserant uma. Isso explica a imprudência.
- que pode ser tomada de fiel espelho daquilo que
ocorre no resto do país em 1982, 9,77o das parturien- Generoso em tanta coisa, quando se trata de investir
-
tes consideradas l'indigentes" eram submetidas ao parto tempo o charlatão é um sovina. Está aí porque o exame
cirúrgico, ao passo que esta cifra se elevava paru 54/o físico do paciente é tão sucinto, o interrogatório clínico
no caso das pacientes particulares. Mero acaso? Ou seria tão corrido, o bate-papo informal río indispensável, as
mais delicado o estado de saúde do último grupo? Ou explanações, os conselhos uma providência à qual o
porventura ainda haveria outros motivos? charlatão nunca aderiu.
É indiscutível que no campo da saúde a omissão, o Encosta um estetoscópio no tórax do paciente e du-
dei,xar de fazer, uma vez por outra pode ser prejudicial rante alguns segundos fica escutando. Saca de seu apa-
ao cliente. Mas não é por isso que o seu contrário, o relho de pressão, simula compenetrar-se do que este
constante estado de prontidão, o brado de alerta "viver lhe diz - e pronto está o exame Depois vêm as per-
é perigoso!", a intervenção intempestiva deve ser bem- guntas de praxe
- meia dttzia delas -, valendo por uma
-r,inda. O cidadão não pode deixar a casa desprotegida, anamnese. (De resto, todo o bom observador sai com a
é natural, mas nem por isso deve viver em constante impressão que para o charlatão as respostas não têm
sobressalto, em cada transeunte reconhecendo um po- o menor interesse, como se estas informações já as ti-
tencial assaltante, a cada vulto que o pára na calçada vesse de antemão.)
defronte, para amarrar o sapato ou acender o cigarro, Faz parte de seu estilo messiânico fingir-se de ciarivi-
pedindo que a polícia o vá socorrer. dente.
Mas, segundo o charlatâo, é esta a conduta mais sen- Por isso rnesmo não escreve, não registra o que você
sata. lhe diz ou aquilo que encontrou no decorrer do exame
tão perfunctório. (Atenção
- esta é uma pista de muita
importância! Existem charlatães que nem sequer man-
O charlatão messiânico têm um prontuário de seus pacientes.) Não pense você
que sua rnemória é infalivel - e desleixo mesmo!
Já the ofereci uma série de pistas, muito úteis no re- Não obstante a displicência, aos olhos do incauto o
conhecimento do charlatão. Você viu que ele e rápido charlatão facilmente passa por homem de muita expe-
em apertar o gatilho, pródigo com o dinheiro e a tran- riência, talvez por "iluminado", uma impressão que
qüilidade alheios, e aprendeu a classificar as mentiras nã,o faz mal à reputação de ninguém.
llue usa, uma série de coisas mais. Otimista, seguro que tem a estatística a seu favor, o
Posso, portanto, prosseguir. charlatão firmemente confia que "no fim dá tudo cer-
Se o charlatão se expõe a taÍltos riscos, é porque to". Esta confiança lhe é muito invejada, pelos colegas,
pacientes. Estes, depois que o charlatão lhes serviu seus
.sabe que goza de virtual impunidade, exatamente igual
a uma pessoa que não teme brincar de roleta-russa, pronun,ciamentos, tão categóricos que parecem levar

110 111
firma de tabelião juramentado, efetivamente saem do
consultório de cabeça erguida. (Depois do susro inicial
que lhes foi dado, e lógico.)
O messianismo traz erl sua esteira o estereótipo. O
charlatão recusa-se a admitir que "cada caso é um caso",
cada paciente um problema distinto, cada doença ou
doencrnha um desafio à parte. É um "generalista" por
excelência: a prescrição que deu a fulano deve servir
como uma luva para sicrano, o que a sicrano foi proi- o quE FAZER?
bido bem que beltrano também deveria saber evitar.
Quando comparãdo ao charlatão, o profrssional sério
se mostra urna figura apagada, sem carisma nem empol-
eação. E um prudente, conhece as lacunas do conheci-
É comendo a refeição que se conhece o cozinheiro.
Assim tambem ocorre com o charlatão: quem já esteve
mento humano, logo está sempre de sobreaviso contra
em suas mãos é quem o conhece melhor.
possíveis insucessos. Mesmo depois de tomada urna de-
cisão, escolhida uma conduta clínica, ainda assim não
No entanto, corrlo tais experimentos com a saúde não
são nada recomendáveis, mais uma vez e da preuenção
descansa. Recomenda que o paciente the faça chegar
que temos que depender.
periódicas notícias, toda vez que necessário convoca-o
para urna consulta de retorno. O paciente - é muito
Mas a essas alturas o leitor já começou a enxergar
triste - raramente sabe apreciá-lo. os primeiros raios de luz na boca do túnel, já sabe
como se conduzir:
Meu caro leitor, procure repensar o que eu disse:
Depois de muito relutar, por fim compreendeu que
Toda vez que o profissional demonstra uma excessiva não se combate dogma com dogina, que as "alternati-
confiança, é possível ciue se trate de um charlatão; po- vas" - todas elas - terão que ser olhadas com muita
rém, quando diz que a cura é "garantida", aí não pode suspeição, até que surja prova em contrário, que a
mais haver dúr,ida. Se te entrega uma prescrição sem única alternativa à rná Medicina é uma Medicina sa-
acornpanhá-la de conselhos, sem advertir contra a re- neada de excessos, de abusos, de mentiras e de tolices.
mota possibilidade de uma que outra reação colateral, Creio que ficou claro, também, que o megacharlatão
e possível (embora improvável) que se trate de mera é um temível inimigo da educa.ção em saúde, sem cles-
distração; no entanto, se além disso ainda se despede sem
lustrar, é natural, seu eventual valor como fonte de
lnarcar uma data para o retorno, sen) nresmo demons-
inocente diversão.
trar interesse em saber como o caso vai evoluir, sem Para completar, dediquei toclo um capitulo a enu-
pedir quaisquer notícias, está configurado o charlatão, merar,. um por um, os aspectos mais salientes do perl'il
o legítimo, o genuíno.
charlatanesco, os quais, no atacado, permitirão tlllla
Cuidedo com ele. fácil identificação.
112 113
Eu disse "atacado", visto que não aconselho seu uso l)ara upr prinreiro contato, é um rnedico dessc" «1ttc
no uarejo. Pois e claro que em certas ocasiões também llrt' r:gnr,é1r, alguém que náo veja seu organrsrno pela
o não-charlatão vê-se obrigado a pedir roda uma bateria lrrrrcta estreita de sua especialidade.
de exames, em determinados (e raros) momentos tenha Às vezes, corúo, aliás, os demais rnédicos de nrinha
que ser um pollco mais agressivo na terapêutica, sem gct:tçirt,, chego 2 .esQuecer que Para a maioria da popu-
que por isso deva cair sob suspeita. Pode acontecer i,,qL,, o .orrr.rltório particular já se tornou ulna relíquia
mesrrro que uma por outra vez ele não disponha de tkr passado. Não importa: se você é um daqueles ciue
tempo suliciente para lhe dar a merecida atençâo. (Re- ,I.'1ràncle apenas do INAN{PS para assisti-lo, mcsmo lá
pito rnais uma \rez: episódios isolados não contam - o ,l.,r,tro voÉê poderá (e cleverá) reclamar seu direito a
quevaleearnédia!) rrrp rrrédico de sua escolha, de .sua confiança'
Vejo que também o melt tempo está acabando. Por l)iga-se de Passagen que nada- vejo de trágico ncnr
sorte, restaln-rne apenas algumas poucas observações. i,.,.eciruerável na rnedicina estatal - isso acontece llos
Vou até numerá-las: países. Só quern a conhece - e já a crrÍlhe-
',,"lho'.es o quanto nossa Previdência mudou
(:crr
- sabe dizer
1. Para não se arriscar a reviver as amargas expe- nestes írltimos Potlcos anos, embora aincla lhe rest.e um
riências que outros já tiveram, procure basear-se nas Iortgo caminho Pela frente'
informações cle algum parente ou bom amigo. Embora
não se espere que nos dias de hoje saibam recomendar 2. Ainda que seja excelente. seu relacionament.o colll
um gentríno médico de família, um médico de con- 9 prédico. não se entregue passivamente a ele' Nlantenha
sr:rrs direitos de oPinar -otl Pelo. menos de pergtt'ntut '
fiança, pelo menos, já é meio caminho andado.
Palpites como estes, embora nem sempre infalíveis,
(Procure ter enr mente que ningtlém mas rlln-
suém - é rtm poÇo cle sabedoria') Se alguma vez a con-
podern rnostrar-se valiosos. Imaginem se o cidadão es-
.iutu ,1" seu médico Parece. pouco ,v.7ofivel, cara dernais
colher seu médico a esmo - ou pelas páginas amarelas
da lista telefônica - e sair-se com Llm aventureiro (pero
ou por algum 6utro motivo inaceitável, procure dia-
logar.
clue los hay, los hay)!
No pior dos casos, peça uma se,z-unda opinião' (Se por
E não (:orncce pelo especialista, imaginando ter des- fim as suspeitas se revelarem infundadas, sempre está
coberto o tirgão responsávcl pelos seus males: para isso enl tempo para pedir desculpas. O rrredico sensato sa-
é preciso tcr nruita cornpetência. O que você necessita, berá compreender.)
para início de conversa, é de um ntédico geral, esta ave Essa condu ta, a de buscar confirmar colr um segundo
tão rara em nosso meio. No entanto, nestes Írltimos médico, mostrou,se um pocleroso instrumento para co-
anos tão insistenternente tem sido reclarnada a falta do locar 1m {reio às intervenções cirúrgicas Jesneccssárias.
"médico generalist.a" (ou coisa que () valha), que presu- Nos Estados [Jnidos, por exemplo, esta técníca estr'i
rnivelrnente este em breve deixará de ser a proverbial sendo ensinada ao grande público, e tão r-rotáveis loratl
mosca branca. os resultados que apontou conforme o tipo de opera-

li4 115
-lr-' ção, uma redução de naela mais nada menos cinqüenta
a se[enta por cento do movrmento crrúrgrco!
nrolnento de fraqueza, tarnbérn ele sabe scr ittscttsÍvt'1,
()u lnesmo esquecido, distraído, apressado.
[,m caso de necessrdade, faça tambem você esta expe-
riência. Por isso não custa manter uma certa vigilâncirr. l',stt'
tilro Ce autodef esa não deve ser motivo de um cotlll'ottl«r
3. Use a cabeça. Livre-se da dependência. Resista à rrberto - assumindo, isto é, que você esteja etlt [rtxts
mistificação. Antes de ficar inquieto, procure saber se rrrãos. O médico saberá responder a suas driviclas ('
seus ternores realmente têm fundamento. rr)esmo ele, desde que seu amor-próprio seja respeitarlo,
Não seja um nenê-chorão. Aceite como fato consu- rlt:eitará sugestões e ate críticas, sem que o bom relaci<-r-
rnado que as doencinhas são inevitáveis, e que o próprio nalnento se veja rompido.
tenlpo dará conta delas. Não é verdade que você já sabia Sabendo perguntar, ninguem se ofende:
não seria possír'el escrever em letra
que sua coluna tem o costurne de reclamar dos excessos - Diga, doutor,
de fins-de-semana, seu estômago dos abusos do álcool ,,r, po.rão mais legível? Sabe como é, a mim não agrada
e dos condimentos fortes, que até sua enxaqueca ou este r,rcla vez ter que Perguntar ao farmacêutico o que é
ocasional chiado no peito já aprendeu a prever? (lue tenho que fazer.
Assim coillo a machucadura na canela, no dia seguinte Ou então:
doutor, eu bern sei ' ' ' Mas,
à pelada, para você não é molivo de maior preocupação, - Pergunta defoileigo,
a última vez que o senhor rnandou
prerexto para ortopedista ou raios-X, também o pequeno diga-me, quando
desarranjo intestinal em seguida à apetitosa mas suspeita alerir seu aparelho de Pressão?
ernpadinha de camarão, a coceira na pele depois de Falando em pressão, eu sou paciente novo, o senhor
-
urna caminhada na mata, a sensação de nariz entupido ainda nem me conhece. Sendo assim, antes de me man-
no trânsito das grandes cidades não o devem fazer perder dar tomar este montáQ de rernédios, não seria urna boa
o sono, não é fato? idéia esperar mais um pouco, repetir a rnedida num
Estamos em época de gripe e resfriado? Os demais outro dia? Só para confirmar?
a propósito, doutor, se eu faço tantas Per-
nrernbros cle sua família tiveram sintomas idênticos aos - E muitoisso tem 1á suas razões. Desculpe dizer, mas
seus? Então. não precisa ser nenhum Sherlock Holmes guntas tolas,
para daí tirar as conclusões lógicas, dando endereço ão*o vocês médicos não têm por hábito dar explica'
certo à febre, à tosse, ao catarro e ao mal-estar. E o mes- ções aos seus pacientes, é preciso tirar as informações
mo raciocínio vale para uma série de outras afeccções com saca-rolha.
agudas, da conjrrntivite ao sarampo. Se for jeitoso, suas relações com o médico não correm
perigo algum.
4. Você já deve ter percebido que, se neste livro me Boa sorte, meu bom leitor.
esforço em desmascarar o charlatão e suas tramóias, nãc
é por isso que coloco o médico honesto acima de quais-
quer suspeitas, negando que, uma vez por outra. num

1t6 117

,r=
PONTO DE CHEGADA

Este foi um parto difícil demais: no começo, antes


ainda da concepção, houve muita timidez entre o autor
e seu assunto, em seguida uma gestação que se prolon-
gou além do prazo regulamentar - e aindà assim a
criança nasceu com peso aquém do desejado.
Mas, por que timidez?
Talvez discriçã,o seria melhor, escrúpulo ou mesmo
prud,ência. Pois, embora o indignado autor insista em
passar sua indignaçáo ao leitor, a seguinte dúvida nunca
estará afastada: a verdade não lhe fará mal? (Visto que
ela, a exemplo da democracia, vez por outra tem seus
percalços.)
Não é à toa que a bibliografia relativa ao charlata-
nismo é tão escassa, e que os poucos autores que dela
se ocupam se limitam a relatar o que se passou num
remoto passado. E, no entanto, não se pode dizer que
a charlatanice esteja extinta: ela está aí para todos ve-
rem, não e mistério algum para o médico, para o histo-
riador, para o cronista.
Então, por que tanta falta de informação?
A iniciativa deveria partir dos médicos honestos
- que são em número maior do que você pode pensar.

119
Alguns deles (não acredito que sejam muitos) sâo con- A resposta só poderia ser afirmativa.
servadores, formalistas, o seu silêncio visando preservar I)urante anos, minha mensagem ficou confinada às
a boa "ética profissional". sirlas de aula. Até que, repensando a questáo, mais uma
.A. rnaior parte, porém, reconhecendo que estamos vez achei melhor mudar de rumo, enxergando que
pisando por sobre ovos, tem em vista outra sorte de lurnbérn os nossos pacientes devessem ter acesso a este
objetir.o - o de proteger a população de nma verdade tipo de informação. Seria uma Medicina Prevenriva
que supostamente só poderá fazer-lhe mal. voltada para a defesu do consumidor; de posse de todos
Segunclo essa teoria, a verdade traria precedentes pe- os dados, a população teria meios para precaver-se con-
rigosos, abrir-rdo as portas para uma abrangente descon- tra a exploraçáo, saberia desrnascarar a figura do char-
fiança de ttrdo que cheirasse a Medicina, a tudo que latão, reconhecer as mentiras que este lhe servia.
lernbrasse o medico. E ato contínuo o Povo passaria a Seria possível fazer isso sem sujar dernais a irnagem
ver o charlatão até debaixo da cama. da IViedicina, nós que estarnos de rabo tão preso a ela?
Isso e inaceitável, uma vez quetrl encorajaria a auto- Decidi tentar. Acreditem-me, investi neste livro "san-
rnedicação, as mil-e-uma "alternativas", um carnpo já sue, suor e lágrimas", e ficaria desolado se o tiro me
devidamente minado pelos micro e megacharlatães. E saísse pela culatra, e o resultado final da empreitada
não é bem isso o que queremos. krsse a radicalização. Nunca perca de vista, caro leitor,
Mas há também uma minoria que, verdade seja dita, flue para acabar com o carrapato não é preciso matar
pensa igual a Voltaire e. firmemente convencida da rr boi. (É verdade que minhas palavras freqüentemente
imbecilidade do gênero humano, encontra sua guarida 1>odenr sugerir o contrário. Mas, eis que
"a palavra não
no fatalismo. (Segundo eles, escrever este livro não passa pode ser branda quando é grande a í'orça do arnor",
rle uma perda dc tenrpo.) como dizia aquele pensador patrício. E não ser:i a indig-
Durante um lonp;o tempo, fui professor de Medicina nação urna forma de amor?)
Preventiva, tendo rnesmo cometido um modesto texto A c-remplo do que acontece nos países civilizados,
para meus estudantes. Ao longo destes anos, falava-lhes
onde o rnaÇo de cigarro leva uma nítida advertência,
de vacinas e olrtras medidas ttsadas na prevenção das já se propôs que tambem para o médico se adotasse o
doenÇas transrnissíveis, pontificava a respcito das dietas
Ierna "Cuidado! - o rnédico lhe pode ser prejudicial
e dos exercícios íísicos conlo rnelhor rnaneira de con-
jurar as docn-(:as carcliovasculares, da necessidade do à saúde". Mas é urn mero jogo de palavra, urna brin-
atendimento pré-natal, cla conveniência do aleitamento cadeira de gosto duvidoso, da mão rle quenl nunca se
materno, e assirrr por cliante. viu na irninência de uma doença mais séria.
Até riue urn dia srrrgirr urna pergunta até então lne- Não tenhanros qualquer ilusão: bem on mal, a Me-
dita: - E não ser:i igualrnente importante para o me- clicina é r-recessária, sern o médico não podernos [)ass,rr.
dico empenhar-se na prevenção cla iatrogenia, esta Sc acabarenl corn a Medicina, logo rnais nos olcrccerão
doença que cresce a ritmo tão assustador? alternatir''a pior, se enxotarem os rnédicos, no lnes-

120 121
mo instante cairemos nas mãos de um grrru ainda menos
respeitável.
Os chifres do dilema são terríveiÉ: "Acreditar na Me-
dicina seria a maior das loucuras",i proclamou Marcel
-
Proust - "não fosse loucura ainda maior descrer dela."
Servi-lhes uma dose para cavalo, uma refeição de di-
fícil digestão para o iniciante. É bem possível que a essas
alturas a mensagem ainda não esteja inteiramente me-
tabolizada: afinal, hábitos antigos custam a desaparecer.
Mas já me satisfaço em deixar-lhe com uma pulga de-
trás da orelha, com uma sarninha para fazer cócegas.
(Daí para a autodefesa do consumidor é só um pequeno
passo.)
E assim, antes da despedida, peço um grande favor:
quando chegar aí, inteiramente convencido de que sa-
near a Medicina não é tarefa que cabe unicamente ao
especialista, busque divulgar estes seus novos conheci-
mentos. (A palavra escrita, como se sabe, tem alcance
muito limitado.)
Ternos que fazer proselitismo, pois a charlatanice tem
sete vidas, resiste tenazmente quando as farpas que the
atirarn são pouco numerosas.
Contra o charlatão é preciso formar uma frente
unida!

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