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Corpo Editorial
Juliana Ferraci Martone
Luís Fernandes dos Santos Nascimento
Márcio Suzuki
Oliver Tolle
Pedro Fernandes Galé
Vinicius Berlendis de Figueiredo
Mario Spezzapria
ISBN 978-65-00-11005-0
1. Poesia brasileira
CDD: B869.1
CDU: 82-1/49
A Editora Clandestina é uma iniciativa sem fins lucrativos com o propósito de facilitar
a divulgação de obras filosóficas e literárias em formato digital.
sumário bento 5 prado 45 júnior 95
8 9
O jumento Dois Budas sobre a mesa e,
(entre)
e a rosa
intranqüilo e vigilante,
(ano desconhecido) eu mesmo, Bento Prado.
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Le jabouti et Maitre Jabouti sur son arbre perché
un perfide sifflement a écouté:
le serpent – “Quel fin et subtil idéal cachez vous, Maître,
sous vôtre épaisse carapace!”
(ano desconhecido) Aussitôt lui répond, du Maître, la sagesse:
– “Madame, sachez que la flexueuse négativité
finit toujours par se dénier,
sous forme de fétiche, réifiée.
Ne vous figurez jamais pouvoir dire:
finalement, moi, j’ai abouti!”
Cette leçon, avouons-le, sans doute,
vaut bien un prix littéraire.
– M. De la Fontaine
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O trabuco A besta torta, o trabuco insensato,
a idéia estranha em arquitetura
(ano desconhecido) de um edifício canceroso onde proliferam membros,
sem nenhuma idéia primeira, sem coração.
A essência do comentário,
Comentário do comentário,
a seta que não parte, não partirá jamais,
a despeito da requintada construção.
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A tempestade “Quebrou-se a tilha sob uma borrasca
e o que sobrou foi todo o seu silêncio”.
e o copo – Manoel Carlos
(1966)
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Guimarães I
II
III
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Sem título Baixa a noite,
é certo,
(1971) mas talvez mais valha
não acender lume algum.
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Uma tão Tadinho de mim
e de meus amigos.
simpática Ninguém era o Goethe
geração (Schiller paralisado,
diante da máquina de escrever
(1984) ainda inexistente).
Ninguém era o Hegel
(tadinho do Schelling,
tão precoce e insubstancial).
Nem Diderot,
pobrinho do Rousseau.
Quanta saudade
da tesão juvenil.
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Indagações à Corre o rosto da lua
à superfície da água que foge
linha-d’água ou pousa, apenas, e flutua
– pura idéia –
(1986) no elemento instável da matéria?
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Ao Tuxo, criador do conceito
de Abóbora Celeste
A implosão
do ente
(1987)
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Ao Dr. Paulos Arendt Et excrucior Traçar alguns arabescos no ar,
não catar verme, nem cuidar do semelhante,
(1995) na areia leve, que flutua ao vento,
tentar inscrever um brocardo para sempre,
que tivesse efeitos paradoxais.
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Vita e poesia Ma chi è il miglior fabbro?
II mio padre?
(1996) Io stesso?
II figlio mio?
Rimane ritta,
in piede, per tutta la eternità.
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Ipseitas Meu passarinho vem bater,
insistente, a cada instante,
recta aut contra o espelho da janela.
obliqua Lamento e admiro tanto
meu insensato passarinho,
(1997)
que vem bicar, guerreiro,
a própria imagem refletida,
como principal inimigo seu.
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Estar na sala Aqui estou bem, por estar em meu lugar,
Meu lugar de estar,
de estar Mas um fino muro me separa,
Do que está ao seu redor.
(2003) Circunscrevendo o perfil de minha Casa.
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(Objet Trouvé) O único Tropecei, esta noite,
Num verso mais que estranho,
verso Único verso presente em todos os poemas reais
Ou possíveis de todas as línguas do mundo:
(2005) Primeiro hieróglifo, emblema de Hermes Trimegistos.
Verso em si ilegível e vazio embora necessário,
Verso perverso
Que nos condena a retornar, obliquamente,
A todos os poemas escritos até hoje,
E todos os futuros,
Um gonzo fechando,
Por dentro, um cubo hermético-metálico,
Que, mônada, espelha, em seu imo, todo o mundo externo.
Começo e fim de toda poesia,
Ou seu constante recomeçar?
Delirei, esta noite,
Um único verso,
(uni-verso),
que poeta algum jamais escreveu,
Face infinitesimal do Grande Diamante da Poesia ou do Ser,
Acesso a todos os demais versos,
Que se mostram, simul, ao leitor
Que eles próprios, nesse instante, criam.
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Um poema Sempre vagamos,
mas, às vezes, falta a geografia e
vago pode ocultar nossa via,
ser agida como um mau desvio
(2005) de nosso Navio no Oceanomundo.
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prado
Na praia Na praia certamente o sol esplende
em festa e sagra os deuses do momento.
(ano desconhecido) O corpo, sobre a onda, se confunde
com a renda onde a espuma se suspende.
Mas já se esfuma no dorso de um instante
e pouco dura o ouro em que se acende.
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Soneto Num súbito rumor de asas a noite
abriu-se. E ao romper-se atreva espêssa
(ano desconhecido) entrevi na parede uma promessa
de perfil. Era teu rosto (era açoite
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A chama e o Minha febre é calma,
ela não tange
resíduo a fímbria do céu que é todo cinza,
nem corrompe das coisas o perfil.
(1962) Estrêla, ela se esfuma
e sua sombra em meu retrato se consome.
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Sem título É o sono que se esgarça e dêle o sonho
emerge com sua múltipla alimária.
(1964) Vagos bichos de nuvem, fauna vária:
lobomem, leão de cornos, cão medonho.
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A ostra e sua E, no entanto, sempre resta
no seio da calma um núcleo de delírio.
pérola E toda queda guarada, em sua inércia,
uma secreta vontade de ser vôo.
(1965)
No tremor das mãos, o gesto reprimido
procura o seu perdido itinerário.
E se a voz se cala, em seu silêncio
um sopro busca surdamente sua flauta.
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Da boa morte Mortes há de espécie vária,
mas certamente melhor
(1968) é a que é voluntária.
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O recado Os nossos pés roçam a terra,
mas não sabem
da terra
– néscia palma – que palmilham
(1968) chão minado por surda militância:
– os tatus agem em segredo.
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O dente A dor? que côr?
A alma ressente
da dor o mal presente.
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Sem título No coração da raiva, no raivoso dente,
no doloroso e persistente fundo
(1970) do ôlho dessa raiva, trigo, foice
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Cordial Como agüentar uma alma?
Corpo tão friável,
(1970) tão exíguo pulmão.
O vento violento
força porta, válvula, ventrículo,
esgarça o tecido da aorta,
faz tremer os dedos frágeis.
Que ôsso, que couro, que carne,
suporta, pneuma, teu vitríolo?
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Insônia A vigília é talvez
o sonho de um outro sonho,
(1971) sem vigília primeira
que lhe sirva de ombro.
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Cançãozinha Arroz, feijão, farinha,
essa ambrosia;
do exílio não o cognac, a caipirinha,
sem nenhuma teimosia.
(1971)
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Estirpe rara Avô cruel,
pai humanista,
(1972) eu mesmo desastrado
e meu claro rebento:
filho poeta.
Desastre familiar.
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Para o Roberto Schwarz Ressaca A ressaca não é um mal em si.
Pode havê-las boas,
(1994) sem culpa prévia que as justifique.
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(Poema arqui-loco hecho en El prado o el À l’ennemi qui m’assaille,
idioma gallico) au gros chien qui chamaille
neocid mon cheval de bataille,
au faux-ami qui perce ma cotte de maille
(1996) et veut percer mon coeur d’acier,
à tous, je dis, je crie, je hurle: — halte canaille!
Je vivrai pour toujours
Et je vois déjà, au soleil,
pourrir vos cadavres!
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Inevitável Com a idade começa a tomar-se possível
enfrentar a verdade face a face,
divórcio enfrentar o corpo,
alma face a corpo.
(2000)
Dizer a verdade, o estrito caroço,
enfrentar a verdade do osso,
espontânea e naturalmente liberado
de músculos, tecidos, órgãos e epiderme
que se lhe vão desatando
(Ah, que saudades...).
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Diário Toda uma tarde desbaratada
libando e jogando baralho
(2002) no Laboratório de Metafísica Geral.
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Na matéria No coração do coração,
No seu ventrículo esquerdo
do coração Instala-se a angústia
No sentido mais estrito.
(2003)
Não a da alma,
Quando o Mundo se estreita à sua volta,
Não a da arte-martírio ou do sentido inatingível,
Mas a da matéria, da mais que material artéria.
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Le vieil Enfin retrouvé, après m’avoir perdu,
Je baisse ma tête et cache mes larmes.
enfant Par pur hasard ou bonheur j’ai croisé
Moi-même, ego ipse,
(2003)
Ou moi-même au passé, cassant ma gueule
Sur le mur de l’inévitable:
Enfin me voilà vieux,
Devant la limite.
Je suis finalement,
Justement au moment de cesser d’être,
Mon telos, ma forme, ma définition.
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Cirurgia Mais de meio século
de tabagismo e alcoolismo
(2005) não poderia ficar impune:
– instalou-se, afinal, o carcinoma
sob meu maxilar esquerdo,
bem acima de meu esquerdo coração.
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Passamento Passa-me pela mente,
logo após a cirurgia,
no Jahu? a idéia de morrer na terra em que nasci.
Não seria bela ou regular a curva do destino?
(2005)
Retornar ao Princípio,
no fim dos fins,
e gravar para sempre na retina,
sob as pálpebras que se fecham,
a cor-vinho da terra
que outrora tingia as paredes dos edifícios,
as próprias casas, imutáveis no tempo,
desde a mais remota infância,
e o verde! escurobrilhante verde da vegetação
do jardim de cima e do jardim de baixo,
a Igreja Matriz e o garboso Jahu Club,
na esquina Major Prado/Amaral Gurgel,
as estreitas ruas que, nervosas, sobem e descem,
especialmente a Rua Original, Marechal Bitencourt.
Ou – melhor pensamento –
aqui renascer
e retornar, mais vivo,
guardada a nova memória do passado,
para abrir novas rotas pelo mundo afora.
82 83
júnior
Sem título Baleada minha asa esquerda,
como poderia voar?
(ano desconhecido) Grande é a vertigem da queda,
e rude o chão que, rápido, se aproxima,
cheio de pedras angulosas.
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Soneto Trouxe-me Deus d’algum lugar estranho
e um ofício de amor foi-me ensinado
Antepenúltimo – já antes de nascer me fôra dado –,
legado de uma dor desfeita em lanho.
(ano desconhecido)
Roubou-me Deus, porém, o que nao ganho
(e o que não ganho é débito do amado),
por ter perdido o antes de ser nado,
eu que d’êle viera impuro e manho.
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Áspera O que eu não disse
não me abandona e, áspera presença,
presença me devora.
(1965)
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Noite interrompem
o tempo e o cavalo
(1956) o seu galope
para o descanso
e o sereno inventário
do passado
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Na calma Na vertigem da queda
a calma novamente se insinua.
da queda Por que tentei voar se sempre soube
que jamais de meu braço uma asa emerge?
(1965)
Adeus brisa, adeus névoa, adeus altura!
Esse corpo que cai já não é meu,
nem nunca o foi: loucura de um momento.
Eu o contemplo não sei donde e o vejo
através do vidro na distância.
Já nem me importa seu destino
se todo pacto teve, pelo fato,
seus amenos laços decepados.
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Novíssima Canção do Exílio
(1966)
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Sem título A tarde ascende o seu azul mais forte
e o azul fulmina com seu corte
(1970) a curva amena de uma palma.
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Sem título
(1971)
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Arco-Íris Se reúno novamente os membros
dêste corpo disperso e se me lembro
(1971) do antigo verso ardido entre os escombros,
– é no susto do susto, em meu assombro.
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A meu irmão José Murilo A igreja I
II
Ali estou,
não onde se trocam mensagens,
ali estou, no X da cruz.
onde se crucificam as palavras.
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Entre o olho “Escrever foi sempre para mim
ocupação extremamente penosa”
e a mão – Pseudo Jean-Jacques
(1971)
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O Big Bâng “Meus amigos, meus inimigos,
saibam todos que o velho bardo
e eu anda agora, entre mil perigos, comendo, em vez de rosas, cardo...”
– Manuel Bandeira
(1995)
Que fazer?
Mudar o Mundo, justo em seu fim,
Ou, mais custoso ainda, a mim?
108 109
Proust dizia, mais ou menos, La Gran El coraje de escribir,
que escrever literatura la temeridad de ser un hombre,
é escrever numa língua Temeridad de llamarse Yo.
“étrangère et familière”.
(ano desconhecido)
Resolvi tomá-lo ao pé da
letra e escrever em línguas
realmente estrangeiras:
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[S. f. 1. Ato de rebelde; Rebeldia À revelia de todos
rebelião, revolta. 2. Qualidade E de mim mesmo,
de rebelde. 3. Fig. Oposição, (2001) Cuido do que incomoda.
resistência. 4. Teimosia,
obstinação, birra] Digamos,
Que bela palavra,
Rebeldia...
Havia escravos,
Ainda os há.
112 113
Crist(al)ina Tua voz risca
de alto a baixo
(2001) o azul
da abóbada celeste.
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À luz do Simplesmente estar e degustar
A calma transparente da imanência
presente – Presente eterno.
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Sejamos Deuses, não os há,
Mas quem deles carece
assim Entre Céu e Terra?
(2003) Eu e o Outro
Ligamos um e outra
Como um raio ou um trovão.
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Vagabond Vagamundo
(2004) (2004)
Je me suis perdu dans les sens des mots, Perdi-me nos sentidos das palavras,
dans le flux et le reflux ou s’entrecroisent, no fluxo e no refluxo onde se entrecruzam
être et signe, phonèmes et semantèmes. ser e signo, fonemas e semantemas.
Entre veille et rêve, je me demande ce que je dis. Não sei bem o que digo, no limite entre vigília e sonho,
Je n’apperçois que vaguement, par intermittences, só percebo vagamente, por intermitências,
Ce qu’on me dit, parmi tant de bruits. o que me dizem, entre tantos ruídos.
Ne pas exceder, ne pas extravaguer, jamais oser Ia cinrcumnavigation, Não exceder, não extravagar, jamais ousar circunavegar,
Oublier l’Au-délà illusoire ou inexistant, olvidar o Além ilusório ou inexistente,
Flotter, sans horizon, sur ce seul instant. flutuar, sem horizonte, apenas neste instante.
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Estar perto Extremante vulnerável,
Não posso sobreviver sem proteção.
de si
Imaginem muitas Muralhas,
(2004) Mais espessas, altas e compreensivas
Do que as da China.
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Ser ou “What is nobler to the mind...”
não ser?
(2004) Como é possível ser feliz, como eu,
Neste mundo tão horrível?
Não seria alguma culpa minha,
lá no fundo imperscrutável?
Acesso à Eternidade:
antes do Juízo Final que jamais ocorrerá,
cristalizar meu fim, neste puro instante sem tempo,
no hiato que o isola no fluxo do devir voraz.
Negação do Presente
– mesmo que por pura Raiva.
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Preparação de texto Projeto Gráfico
Sofia de Almeida Prado Simanke Editora Clandestina Ltda.
Felipe Luppi Guedes Padua
Revisão Lilian Borges de Galiza
Bento Prado Neto Rebecca Rodrigues Lopes Lyra
Felipe Luppi Guedes Padua Sofia de Almeida Prado Simanke
Lilian Borges de Galiza
Raquel Seixas de Almeida Prado Fotos do arquivo da família
Rebecca Rodrigues Lopes Lyra de Bento Prado Júnior
Sofia de Almeida Prado Simanke
Diagramação
Felipe Luppi Guedes Padua
Lilian Borges de Galiza
Sofia de Almeida Prado Simanke
As tipografias utilizadas são PT Sans, Special Elite (projetada por Astigmatic One
Eye Typographic Institute) e Fira Sans (projetada por Carrois Apostrophe).
Este livro foi produzido por Felipe Luppi, Lilian Galiza, Rebecca Lyra e Sofia
Simanke, para a disciplina de Projeto de Design Editorial Impresso I, no curso de
Especialização em Design Gráfico da UNICAMP, sob orientação dos professores
Andre Novaes de Rezende e Fabiana Grassano.