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RICARDO REIS OU
O INACESSÍVEL PAGANISMO
I
mente arcaizante de Horácio e Vir$lio', deixa filtrar o
triffi ffi ilrt
seu essencial niilismo, mas sempre como voz irreal que
o transÍrgura em canto desencantado e âparentemente
sereno. Pessoa escreveu que na altura da sua eclosão
(mas Ricardo Reis era alguém que já há muito pedia para
r Sobre o género de metamorfose que Reis op€Iâ sobrc Horácio, ler o sempr€
dâ Doutora H€lenâ Rochâ odes de
Conei!, Garyôo e Feflando Pessoa ,2.'ed.. Pono, r95B
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nascer...) o arrüncoü ao seu falso paganisÍno. Para quê? convém que sejâmos pârâ, conscientes, ser o que só em
Para o instalar no verdadeiro? Não. O paganismo autên- pura ou flngida inconsciência são o "hruto" e o "sábio"?
tico é o antigo, nâturalmente, que não é desesperado Assumir â necessidâde. transformá-la estoicamente em
desse desespero que em Ricardo Reis terá o pudor de yirtude, encerrar os próprios deuses na armadilha que
se velar. O dado central da visão do Eovo heterónimo nos ofereceram, ou onde eles mesmos estão presos. Em
é sempre o mesmo: ser consciente é ser ínfelí2. Nôs não sumâ, outra sâídâ não existe que â de aderir, esposar,
podemos conhecer nem a heatitude nâtural dos animais extenuâr a nossa infelícíd,ade rad,ícal parâ uma aceitâçào
ü para quem mesmo â morie é morodio, nem atribuir um altiva e desprendida da nossa condiçâo, não só pereciYel,
sentido ao uso útil do nosso pensamento, quer dizer, ô mâs sem cessâr em transe de perecer:
ciêrucia, que não é mais do que uma refrnada forma do
esquecimento: Altivamente donos de nós-mesmos
Usemos a existência
Quanta tristeza e amargura afoga Como avila que os deuses nos concedem
Em confusão a estreita vida! Quanto Para esquecer o estio.
Infortúnio mesquinho
Nos oprime supremo! Não de outra forrna mais apoquentada
Feliz ou o bruto que nos verdes campos Nos vale o esforço usarmos
Pasce, para si mesmo anónimo, e entra Aexistência indecisa e afluente
Na morte como em casa: Fatal do rio escuro.
Ou o sábio que, perdido
Na ciênciâ, a fútil vida austera elevâ Como acima dos deuses o Destino
Além da nossa, como o fumo que ergue É calmo e inexorável.
Braços que se desfazem Acima de nós meamos conatnumos
Aum céu in€xistente2. Um fado voluntário
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XDUÁÀDO LOUÀXNÇO }ESSOÂ BEVI SITADO
No seu ar deimitar aAntiguidade na sua perfeiçâo ideal de da Natureza, e se como rosâs somos, como elas aceitemos
mármore inscrito, dialogando com ela e na verdade digna o ocâsional florir que aceito se volve ererno;
dela, o que sobressai é um fundo de angústia moderna,
como moderna sob cor antiga é a resposta para a não-res- As rosas amo dosjardins deAdónis,
posta de onde nasce e extrâvâsa. Nós somos úempo e nada Essas vólucres amo, Lídia, rosas,
mais, nós somos como depois de Schopenhauer tantas Que em o dia em gue nascem,
vezes se repetiu, uma breve luz irrompendo sem razâo no Em esse dia morrem.
seio de uma vida desprovida dela e de novo reenviada à Aluz para elas é eterna, porque
pura noite? Pois se assim é, sejâ assim. Aceitemos o jogo Nascem nascido já o sol, e acabam
e joguemo-lo que só nessa aceitação voluntária "o bem Artes que Apolo deüe
consiste". É mesmo a única maneira de ascender ao que é O seu curso visível.
-o.d, -rirGã.ros falsa com que as sombras aplacam alma antiga ero sem saber que o era, ou sendo-o de uma
Caronte. Uma vez mais interiorizemos a silenciosa lição maneira que para os que com elâ sem cessar "re sonlâm"
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EDUÂRDO ]-OURENÇO PESSOA RÉVISITADO
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XDUÂRDO I,OURENÇO ?XSSOA BXVISITÂDO
As variaçôes ou exemplifrcações desta visáo convales- É esse afloramento (capital pela perfeição poética, e capital
cente do mundo sào inúmeras e na suâ monotonia quase pelo aprofundamento e aulodesmâscaramenlo que signi
sempre constantemente admiráveis. Para alcançar essa frca no "interior" do Reis inicial) aquele que úrange os poe-
inçulnerabílídade supremâ que os fados reais não nos mas datados de r9z3 e cuja tonâlidade de "requiem" por si
consentem aceitemo nos como essencial e constante- mesmo, quase masoquista, já não permitirá mais çe volva
mente pereciyeis, a nós e ao universo inteiro, enraizemo- ao poetâ do idearpagonismo para que nascera. Esse "Reis" é
-nos sem remorsos na nossa condição origrnal que sem uma novidade absoluta (em Pessoa sem autêntico sentido
cessar ocultamos para melhor subsistir, com o risco de sempre) mâs uma como que aceleração ou brutal depres-
perder o único benefício e alcanqar o único esplendor são, no sentido "meteorolÓgico' mâs mais certamente exis-
que pode coroar o nosso ruo,do,: ter consciência dele. Isto o tencial que só a distância solene dâ forma suspende. Aqui
diz, em perleita concisão de medalha antiga, um dos mais não há lugar para "o sorrir de nada' com que, numa ode de
pungentes e desolados poemas de Ricardo Reis: r9r8, se deixa frtar pela Natureza sem sentido. O número das
odes que constituem esse maciço (e pequeno
Melhor destino que o de conàecer-se
espaço de easua no tempo (de Setem
Não frui quem mente frui. Antes, sabendo
bro a Dez embro de r9z3) de sobra assinalam a febre, o crise,
Ser nada, que ignorando:
a interrupçâo brutal do grande jogo com o destino (destino
Nada dentro de nada.
daüda nele, e destino ideal de Poeta) que ainda em r92r the
Se nâo houver em mim poder que vença
haüa ditado o provocânte desafio a esse mesmo destino,
As Parcas três e as moles do futuro.
belissimamente conírgurado na famosa ode:
Já me dêem os deuses
O poder de sabê-lo; Seguro assento na coluna frrme
E a beleza, incriável por meu sestro, Dos versos em que fico,
Eu goze externa e dadâ, repetida Nem temo o influxo inúmero futuro
Em meus passivos olhos, Dos lempos e do olvido;
Lagos que a morte seca8. Que a mente, quando, Írxa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Pertence este poema ao núcleo do denso afloramento que
Deles se plasma torna, e à afie o mundo
assinala a incontida irrupção da angústia mal suspensâ no
Cria, que não â mente.
"primeiro" Ricardo Reis, mostrando como dentro da sua
Assim nâ placa o externo in§tante Srava
frcção nascida à somlra de Caeiro a própria frcção se anulâ.
Seu ser, durando nela9
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PESSOA REVISITADO
EDUÂNDO LOURENçO
Chorando-o, duas vezes, todo esse universo de poesia mais não é que a solidifrcada
Porvosso e meu, perdido. espuma da sua inexistência? Como tocar na máscara o que
no rosto não se {rxa? O tema da "glória' (imortalidade sub-
Não terei mais des8osto jectiva, no sentido de Comte) entretece-se, e não Por acâso'
Que o contínuo da vida, com este aprofundamento nele da angústia existencial:
Vendo que com os dias
O que foi como um deu§ entre os que cântam' t t
Tarda o que espera, e é nada'o.
O gue do Olimpo as vozes' que chamavam'
É um tom que a solenidade das Odes do mesmo dia, Escutando ouviu' e, ouvindo'
ecoando em sentido oposto um dos mais belos versos de Entendeu' hoje é nada.
Pascoaes, nâo fará senâo acentuar: Tecei embora as, que teceis, Srinaldas'
I
Nâo canto a noite porque no meu canto r: Votivas as dePende,
O sol que canto acabará em noite. Fúnebres semter culto.
Não ignoro o que esqueqo. Fique, porém' Iivre da leiva e do Orco,
Canto poresquecê-lo.
I A fama: e tu. que Ulisses erigira
., ,,1"
Tu, em teus sete mont€s'
Pudesse eu suspender, inda que em sonho' -Í
Orgulha-te materna,
OApolíneo curso, e conhecer-me
lgual, desde ele às sete qrre contendem
lnda que louco, gémeo
Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos,
De uma hora imperecivel"
Ou hePtáPilaTebas,
Ogigia mãe de Píndaro'''
ro Iàü., p- ??r.
rr lóid.. pp. ?2r-r?2
e kiÀ...p.224.
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Nunca a decantada (e tão mesquinhamente lida) mega- para Pessoa, inadequados. Mas a intuição é justa e câpital'
lomania de Pessoa passou fronteirâs mâis reâis mas eom De resto, nem de intuição se trata, mas de eco ao que' com
que tríplice (e inútil) máscara: é na mais gongórica das a lucidez implacável que no-lo torna fraterno, Pessoa
odes, em frcticio autor a si mesmo se aludindo em dis- -Ricardo Reis tão cruelmente sublinhou:
curso indirecto, que se atreve a sonhar-se o igual de
Homero. Acrescente-se uma quartâ e mâis segura porta Frutos, dâo-nos as árvores que vivem'
de saída, a do material anonimato do seu íntimo grito de Nâo a iludida mente, que só se orna
alma e imagine-se a que Íerror de não erístir (de não exis- Das flores lívidas
tir como Homero, Safo ou Píndaro existem por cima do Do intimo abismo.
Nodo mesmo...) a desmedida confissão responde. Repe- Quantoa reinos nos seles e nas cousas
tiu-se até à náusea que o drama de Pessoa é o do homem Te não talhâste imaginário! Quantos,
e do absoluto, da consciência e da realidade e tudo isso Com a charrua,
não é senão obsessiva mas abstractamente óbvio. A cons- Sonhos, cidades!
ciência poética de Pessoa, como a de toda a gente, mas Ah, nào consegues contrâ o adverco mundo
nele superlativamente, vive uma relaçâo ancreta, plena, Criar mais que propósitos frustrados!
com certos conteúdos e, tendo-se assinalado uma vocação Abdica e sê
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excepção dos imediatamente anteriores à sua morte, ocul- A ruda imploram tuas mãos já coisas,
tisticamente amparados à "leve tutela de deuses descuido- Nem convencem teus lábiosjá parados,
sos") se encontra o que de mâis friamente descarnado se No abafo subterrâneo
pode conceber para dar corpo ao espaço iluminado e nulo Da húmida imposta terra.
da morte. À "bur"" qr" nào vem senão vazia" soúe sem- Só talvez o sorriso com que amavas
pre Pessoa desenhar com dedada infalível o nulo e anu- Te eobalsama remota, e nas memóÍias
lador peú1. É do crucial de ?3 essa mesma célebre Te ergue qual eras, hoje
"no
imagem e, do mesmo ano ainda, a üüda apropriação ima- Cortiço apodrecido.
ginária dessa hora que só sob a pena de Álvaro de Campos, Eo nome inútil que teu corpo morto
tão gémea da de Reis na sua oposiçâo por fora, encontrará Usou, vivo, na terra, como umâ alma,
mais fulgurante e lírica metamorfose: Nao lemlra. A ode grava,
Alónimo, um sorriso'5.
Olho os campos, Neera,
Campos, campos, e sofro É com justiça célebre esta Ode, onde todos os motivos de
Já o frio da sombra Reis se unem numâ síntese perfeita, e integrada neles a
Em que não terei olhos. substância mesma da sua criação, tentativa de salvar do
 caveira antessinto universâI desastre da vida o gue de anónimo sorriso nela
Que serei não sentindo, pode háver. Em parte alguma se incarna melhor apoátrico
Ou só quanto o que igaoro de Reis, cedo (r9r5) e com ostensiYa gala, enunciada:
Me incógnito ministre.
E menos ao instante O resto passa,
Choro, que a mim futuro, E teme a morte.
Súbdito ausente e nulo Só nada teme ou sofre a üsão clara
Do universal destino'4. E inútil do Universo'ó.
Dessa imaginaçâo, cúmplice e intima da morte, esforçando- Para dar vida a essa aspiração, ou antes, como aspiração
-se por se lilertar dela pelo esvaziâmento da ideia mesma dela, surgu justamente Reis, trazendo colâdo ao rosto,
da morte, poucos poerms de Pessoa nos proporão umâ tão além da insolúvel questão de que é frcticia resposta, uma
profunda e melancólicaüsão como o da Ode de Reis de r9a7:
$ ibid.,p.229.
t+ lbi/l.,p.226 t6 lbsl., p.2t2.
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EDU^RDO LOUiENçO PESSOA NEVTSITADO
outra menos espectaculâr, mas de não menos imperativâ Com um mído de chocalhos
ur8ência: â de mostrar, por assim dizer, com a prova nas Para além da curva da estrada'
mãos, que poesiâ é mais que destino e deuses. Subme- Os meus pensamentos são contentes'
frngia nâo saber, salendo-o, como no primeiro poema de que favorecem essa inconsciência, mas diante do tempo
O Cuardador de Rebanhos está escrito:
r7 Iàid., p t37
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EDUARDO LOURTNçO PESSOA ÂiVISITADO
que â nâo consente. Sobretudo, levando a mais longe à ao âmâgo de um sabor quase nauseante de morte' ou se
custa da f cçrio como tal viüda e por isso mesmo reapro a palawa existisse, de "funebridade". Com raiva mal oculta
ximando se do Pessoa de onde Caeiro emergiu. Reis é já, que em Campos se desgrenhará, Reis ernpurra quase com
alegria a realidade inteira pâra â vâla comum:
na realidade em terceiro grâu que representa, uma forma
de regresso a Pessoa, regresso ao mesmo tempo impossí-
Narla hca de nada. Nada somos.
vel e exasperado pela "existência" hipoteticâmente/eriz de
Caeiro. A sua vontade de se assimilar e mesmo de superar Um pouco ao sol e ao ar nos atÍaaamos
o Mestre, reeditando a suâ aventura plácida diante de desa- Da irrespirável treva que nos Pese
fios bem mais temíveis que flores, árvores e rios, tinha de Da humilde terra imPostâ,
passar, como os poemas no-lo mostrâm, de uma proüsória Cadâveres adiados que procÍiam.
Lídia, aüda mais vil qntes que a morte, Somo§ conto§ contando contos, nada'9'
sombria das melancolias que o tom antigo acentua aindâ, O que de si há nele, ou é suPosto.
devolvendo-nos um efeito inverso daquele para que havia Nada te pese que nâo te amem. Sentem-te
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XDUAÂDO FV]SITÀDO
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Dentro de si mesmo, como todos hão-de fazer, o heteró Depois de o terem âssinalado como convinha e a evi-
nimo Reis retira a máscara. Fica só Pessoa, mas Pessoa dência o pedia, não conferiram os seus clássicos exege-
outro, pelo jogo alterado no mais extremo úandono e tâs ao ocultismo de Fernando Pessoa o lugar centrâl que
consciente dele, com as mãos em corredores para o abismo é o seu"3, considerando-o âpenas como uma heteroni
voltados, e que não saltará. Talvez apenas porque esses miâ difusa, vâgâ ou sincerâmente envergonhados de que
'deuses" que, decorativos, balizam o seu itinerário hipo tão extralúcido e soberano espirito se tenha perdido nos
teticamente pagão se lemlraram nele com outrâ espé- suspeitos meandros de um espiritualismo (quando não
cie de presença. Como os primeiros, os ultimos poemas de "espidtismo") de segunda zona'?4. Se em âlguma coisa
Ricardo Reis a eles aludem com insistência, mas escu,lpindo Pessoa consentiu perder-se foi só no iluminado pân
diversa figura da sua consciência e quâse de oposta visâo tano desse ocultismo, reunindo-se aí à coorte numerosâ
nascidos. Nos primeiros poemas desciam de um "cimo' ou dos que desde Swedenborg nele encontraram â resposta
de um oculto lugar, mais abismais que a verdade ("Acima da i.maginal contra a solitude divina do eu do idealismo
verdade estão os deuses"), incarnaçôes da vontade e do pen- moderno. O ocultismo foi a religiâo dos místicos sem elâ
sâmento que nós só reflexa e ilusoriamente somos: (no sentido comum), complexa nebulosa que não con-
vém, para entendimento necessário da odisseia efec-
AIjos ou deuses, sempre nós tivemos, tiva da consciência moderna em busca da ítacâ sempre
Avisão perturbada de que acima
De nós e compelindo nos ?? .llid.. pp.2rr ?r?.
23 P€lo contrário, foi sobrc ele, sobretudo nâ sua fase Politico-mi§tica, que insis-
Agem outras presenças. tiu a suã int€Ípretação de António quâdros, lcemondo Pessoo, ed. Arcádia. E. num
sentido mâis ocuilista, recentemente, Dalila Ferreirâ da Costa, 0 Xsorensno d€ Iàr
nondo Prssoo. ed.lÉ[o€ Irmào, r9?r.
zt lbíd-.p.24t. ?4 Ver nota D no hnal dovolune (p.25o).
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!DUABDO LOURXNçO !ESSO^ À!VlSlTÂDO
ausente ou diferida, enviar para o armazém do pitoresco Meu gesto que destrói
insignificante. Nela estão inscritas as aventuras essen- Amole das formigas,
ciais do que Albert Béguin chamou a 'ãlma romântica" e Tomá lo-ão elas por de um ser divino;
seus sóis negros sempre renascentes, de Nerval aYeats e a Mas eu nào sou divino para mim.
Breton. Nâo está mal, nem deslocado, Pessoâ nestâ cons-
telação, mas está a seu inconfundivel modo. Aquele que Assim talvez os deuses
sob tantas formas escreveu: Para si o não sejam,
E só de serem do que nós maiores
Nada deseja Tirem o serem deuses para nós.
Salvo o orgulho de ver sempre claro
Até deixar de ver'1s. Seja quâl for o certo,
Mesmo para com esses
nào podia perder-se naquilo mesmo que aceito o sâlva- Que cremos serem deuses, não sejâúos
ria. E nâo podia perder-se porque o consciêncía é um sol lnteiros numa Ié talvez sem causa"6.
sem noite cuja vígílía ndo mnsente sono. Este dado câpital do
espírito moderno sua essênciâ mesma - só em pseudo- Infelizmente (ou felizmente, é conforme...) Pessoa não
sonho pode transladar a anjos e deuses a liberdade, a corriâ esse risco das "fés inteiras". Hâmlet, sem outro
transcendentalidade de que é manifestaçào. É inútil carre reino nem armas mais que a dos "versos" em que crê com
gar os deuses com o nosso próprio fardo. Esses deuses sâo o mesmo excesso com que descrê, Pessoa não sairá jamais
só o nosso fardo ficticiamente deposto. Assim volvem no da mistura de túmulo e berço, onde se encerrou desde o
ultimo Ricardo Reis, eguivocamente revestidos dos pode- momento em que para si mesmo nasceu. Dessa recusa
res ântigos de serem mais do que nós e nos julgarem na sua de "crescer" e "mudar" (que só podia ser, como ironica-
luz inumana, ou de não serem senão a frgura da consciência mente o diz, "para seu igual") todo o Ricardo Reis, mas
em perpétua fuga diante de si mesma. Desta última possi- particularmente o último, é a suprema petrifrcação. É no
bilidade e exâctâmente com o mesmo gesto que em r9r4 tempo mais anligo de Pe -sqa, nào só o mítico da história.
lhe havia servido para supor deuses que de si o repousem, da ideologiá. da estélica (Grecia-Roma monarquia, ode),
testemunhâ o poema não datado, mas verosimilmente dos mas interior, que Reis existe. Nem de externo pai e mâe
anos frnais em que MariaAliete Galhoz o coloca: precisa para se reconduzir através deles à in{ância, elâ
mesma imaginária, onde se refugia. Abrir os olhos é ver
25 O. P, p.2r2. 26 lbíd..p.247-
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!
tempo e mofie. A tudo prefere o sono acordado da vida, em Reis até à náusea e só da esquizofrenia separada pelo
esquecida de um e outra, que o acordarourro, mesmo para gume (equívoco) da sua expressão. A consciência como
melhor, como em uma Ode de r9r7 escreve. Mas mais do actividade ov, acto nad,ificante tem em Reis a sua elegia, a
que tudo teme que esses deuses em que mal crê ou não mais triste e melancólica das elegias que o tom épico da
crê, suspeitando se ser ele mesmo esse "deus" (Ode de ode nâo consegue disfarçar. Desta descida ao inferno, ao
Dezembro de r93r), possam ser o terrífrco espelho, onde mesmo tempo voluntário e involuntário do enclausura-
o que é, sem téus ü sí mesmo se apareça. De todas as possi- mento íntimo, tirou Pessoa o seu monótono e fascinante
bilidades que na sua imaginâção se perfrlam essa é aqui e canto'8. E com ele, para a universal poesia, alguns dos
será em Álvaro de Campos e no Fausto a única realmente poemas mais altos suscitados pelo sentimento da irreali-
íntolerdçel. Que terror de si mesmo escondia, que segredo dade e sua topologia quimérica:
que fosse só dele e não de todos nós submetidos ao tempo
Pessoa enterrava com tão fabuloso artificio, a ponto de Aguardo, equânime, o que não conheço -
pedir aos deuses, como hênção suprema, que o nãn oís Meu futuro e o de tudo.
sem? Sua solidão? Sua infelicidade? Sua impotência, nos No fim tudo será silêncio- salvo
dois sentidos do termo? Mas porquê? e fieitas de gué? Que Onde o mar banha nada'e.
pânico o leva a pedir, a desejar, como prelerível a tudo, o
não sâir do "ergástulo de ser quem é"?:
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