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J

RICARDO REIS OU
O INACESSÍVEL PAGANISMO

Da Grécía Antigq eê- se o mund,o ínteíru.


A. Mou
Aprecío o, realnlente, e para falar verd,ad,e,

açima de muítos, d,e ÍLuítíssímos.


A. C,qupos

Contrariâmente â Câeiro, Ricardo Reis não lhe aconte-


ceu "de repente", nem do âlto (salvo do alto donde tudo
vem,..). Pessoa descreve com complacência o seu pro-
cesso de nascimento e mesmo de gestação. Não admira,
llllllllllll
Reis não surgiu para o libertar do seu sentimento de
irrealidade, mesmo em frcçâo, mas para redefinir e ade-
!ffi!ru!lffitl
rir a essa irrealidade irredutível, na luz, só flcticiâmente
salvadora e calma de Caeiro. A verdade gue nessa luz de
uul ]llült!
Caeiro se encobre mal, envolta agora na forma sabia-

I
mente arcaizante de Horácio e Vir$lio', deixa filtrar o
triffi ffi ilrt
seu essencial niilismo, mas sempre como voz irreal que
o transÍrgura em canto desencantado e âparentemente
sereno. Pessoa escreveu que na altura da sua eclosão
(mas Ricardo Reis era alguém que já há muito pedia para

r Sobre o género de metamorfose que Reis op€Iâ sobrc Horácio, ler o sempr€
dâ Doutora H€lenâ Rochâ odes de
Conei!, Garyôo e Feflando Pessoa ,2.'ed.. Pono, r95B

nilililtffiffiffitu
59

luuluuuuuluuuu
J
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EDUÁRDO LOUiENÇO PXSSOÂ Àf,VI SITÁDO

nascer...) o arrüncoü ao seu falso paganisÍno. Para quê? convém que sejâmos pârâ, conscientes, ser o que só em
Para o instalar no verdadeiro? Não. O paganismo autên- pura ou flngida inconsciência são o "hruto" e o "sábio"?
tico é o antigo, nâturalmente, que não é desesperado Assumir â necessidâde. transformá-la estoicamente em
desse desespero que em Ricardo Reis terá o pudor de yirtude, encerrar os próprios deuses na armadilha que
se velar. O dado central da visão do Eovo heterónimo nos ofereceram, ou onde eles mesmos estão presos. Em
é sempre o mesmo: ser consciente é ser ínfelí2. Nôs não sumâ, outra sâídâ não existe que â de aderir, esposar,
podemos conhecer nem a heatitude nâtural dos animais extenuâr a nossa infelícíd,ade rad,ícal parâ uma aceitâçào
ü para quem mesmo â morie é morodio, nem atribuir um altiva e desprendida da nossa condiçâo, não só pereciYel,
sentido ao uso útil do nosso pensamento, quer dizer, ô mâs sem cessâr em transe de perecer:
ciêrucia, que não é mais do que uma refrnada forma do
esquecimento: Altivamente donos de nós-mesmos
Usemos a existência

Quanta tristeza e amargura afoga Como avila que os deuses nos concedem
Em confusão a estreita vida! Quanto Para esquecer o estio.
Infortúnio mesquinho
Nos oprime supremo! Não de outra forrna mais apoquentada
Feliz ou o bruto que nos verdes campos Nos vale o esforço usarmos
Pasce, para si mesmo anónimo, e entra Aexistência indecisa e afluente
Na morte como em casa: Fatal do rio escuro.
Ou o sábio que, perdido
Na ciênciâ, a fútil vida austera elevâ Como acima dos deuses o Destino
Além da nossa, como o fumo que ergue É calmo e inexorável.
Braços que se desfazem Acima de nós meamos conatnumos
Aum céu in€xistente2. Um fado voluntário

Que quando nos oprima nós sejâmos


O sábio procede como se ignorasse o morre (esse esqueci- Esse que nos oprime,
mento âctivo da morte, acaso a única rritória sobre ela, é a E quando entremos pela noile denlro
matriz mesma da ciência) mas no homem que se esquece Por nosso pé entremos3.
a morte não se deüa esquecer. Que fazer? Ou antes, que

O. P.. p. zzz B lbíd-,p- zoT

60 6l
v-r
XDUÁÀDO LOUÀXNÇO }ESSOÂ BEVI SITADO

No seu ar deimitar aAntiguidade na sua perfeiçâo ideal de da Natureza, e se como rosâs somos, como elas aceitemos
mármore inscrito, dialogando com ela e na verdade digna o ocâsional florir que aceito se volve ererno;
dela, o que sobressai é um fundo de angústia moderna,
como moderna sob cor antiga é a resposta para a não-res- As rosas amo dosjardins deAdónis,
posta de onde nasce e extrâvâsa. Nós somos úempo e nada Essas vólucres amo, Lídia, rosas,
mais, nós somos como depois de Schopenhauer tantas Que em o dia em gue nascem,
vezes se repetiu, uma breve luz irrompendo sem razâo no Em esse dia morrem.

seio de uma vida desprovida dela e de novo reenviada à Aluz para elas é eterna, porque
pura noite? Pois se assim é, sejâ assim. Aceitemos o jogo Nascem nascido já o sol, e acabam
e joguemo-lo que só nessa aceitação voluntária "o bem Artes que Apolo deüe
consiste". É mesmo a única maneira de ascender ao que é O seu curso visível.

comumahomensedeuses: Assim façamos nossavida um dia,


Inscientes, Lídia, voluntariamente.
Só esta liberdade nos concedem Que há noite antes e após
Os deuses: submetermo-nos O pouco que duramoss.

Ao seu dominio porvontade nossa.


Mais vale assim fazermos É este voto a expressão e o eco de uma antiquíssima sabe-
Porque só na ilusão da liberdade doria, uma muito clássica resposta morte, a
à angústiâ da
Aliberdade existe. de ver no que passa e porque passa o sinal inverso da eter-
nidade. Uma vez gue nâda mâis existe que esta passageira
Nem outro jeito os deuses, sobre quem vida ("Não consentem os deuses mâis que a vida.") esta
O eterno fado pesa, mesma vida passageira e o todo da vida. É de Epicuro.
Usam para seu calmo e possuido solene e amorosamente evocado, que esta difícil e alta
Convencimento antigo sâbedoria, sob dois mil anos de "cristismo" mal soterrada
De que é diúna e livre a sua vida+. se levanta, mas a custo, e trazendo no rosto âs mârcâs do
lenqol sem púrpura do deus morto. E nafcçrio que Pessoa
Desta sabedoria r triste convém fazer um brasão ou a se inventa a festa excessivamente ritual e voluntária que a

-o.d, -rirGã.ros falsa com que as sombras aplacam alma antiga ero sem saber que o era, ou sendo-o de uma
Caronte. Uma vez mais interiorizemos a silenciosa lição maneira que para os que com elâ sem cessar "re sonlâm"

4 tbid, S lbrd. p.2o4

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EDUÂRDO ]-OURENÇO PESSOA RÉVISITADO

(Hrilderlin, Nietzsche, Foucault) permanece inacessível


ou doloroso píncaro. Deste obismo entre as duas almas, E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
abismo que ele mesmo e. como poucos modernos o foram. E apenas desejando
Pessoa Reis não salta como Nietzsche, concretamente, o Num desejo mal tido
intervalo (também aqui as 'nietzschianas asas" para isso Que a abominável onda
lhe faltaram, embebidas na sombra nunca vencida que em O não molhe tão cedo6.
Reis, sob visâo ocultista, tudo envolve). Instala.se nele,
como de costume, vive (e sofre), o mais altiva e o menos A frctícia saúde de Pessoa Caeiro, ao menos dourada de
horacianamente possível, entre as suas paredes abruptas. fora pelo sol, é em Reis incurável doença, transfigurada
As festas imitâdas que se concede, o furtivo e assexuado em saúde de convalescente fictício, inventando os gestos
amor de I.idia que as não pernrrba em excesso 6à0 sd a sua minimos com que não tropece na horrível e implacável
maneira de "esqueí'er. volunlariamenle inscienle. como dureza da realidade. E uma vez e sem pre, escondendo
ele diz, a insistente, a abomíruiçel orudo sempre batendo -se e co mo cria nçâ eternamente mâl amada, no mais
contra aüdraça daVida: abrigado recânto da vida, feliz da felicidade do pobre,
banhado na doçura anónimâ do sol:
Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Não consentem os deuses mâis que a vida.
Que jáviveu na vida, Tudo pois refusemos, que nos alce
Para quemtudo é novo
A irrespiráveis pincaros,
E imarcessível sempre.
Perene sem ter flores.
Só de aceitar tenhamos a ciência,
Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosâs voláteis,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Ele sabe que avida
Nem se engelha connosco
Passa por ele e tanto
O mesmo amor. duremos,
Corta à flor como a ele
Como vidros, às luzes transparentes
De Átropos a tesoura.
E deüando escorrer a chuvâ triste,
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto, Só mornos ao sol quente,

Que o seu sabor orgiaco E reflectindo umpouco?.


Apague o gosto às horas,
Como a umavoz chorando
6 ltid.
O passar das bacantes.
7 kid-,p.2os I

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64 65

llllltrtrl
XDUÂRDO I,OURENÇO ?XSSOA BXVISITÂDO

As variaçôes ou exemplifrcações desta visáo convales- É esse afloramento (capital pela perfeição poética, e capital
cente do mundo sào inúmeras e na suâ monotonia quase pelo aprofundamento e aulodesmâscaramenlo que signi
sempre constantemente admiráveis. Para alcançar essa frca no "interior" do Reis inicial) aquele que úrange os poe-
inçulnerabílídade supremâ que os fados reais não nos mas datados de r9z3 e cuja tonâlidade de "requiem" por si
consentem aceitemo nos como essencial e constante- mesmo, quase masoquista, já não permitirá mais çe volva
mente pereciyeis, a nós e ao universo inteiro, enraizemo- ao poetâ do idearpagonismo para que nascera. Esse "Reis" é
-nos sem remorsos na nossa condição origrnal que sem uma novidade absoluta (em Pessoa sem autêntico sentido
cessar ocultamos para melhor subsistir, com o risco de sempre) mâs uma como que aceleração ou brutal depres-
perder o único benefício e alcanqar o único esplendor são, no sentido "meteorolÓgico' mâs mais certamente exis-
que pode coroar o nosso ruo,do,: ter consciência dele. Isto o tencial que só a distância solene dâ forma suspende. Aqui
diz, em perleita concisão de medalha antiga, um dos mais não há lugar para "o sorrir de nada' com que, numa ode de
pungentes e desolados poemas de Ricardo Reis: r9r8, se deixa frtar pela Natureza sem sentido. O número das
odes que constituem esse maciço (e pequeno
Melhor destino que o de conàecer-se
espaço de easua no tempo (de Setem
Não frui quem mente frui. Antes, sabendo
bro a Dez embro de r9z3) de sobra assinalam a febre, o crise,
Ser nada, que ignorando:
a interrupçâo brutal do grande jogo com o destino (destino
Nada dentro de nada.
daüda nele, e destino ideal de Poeta) que ainda em r92r the
Se nâo houver em mim poder que vença
haüa ditado o provocânte desafio a esse mesmo destino,
As Parcas três e as moles do futuro.
belissimamente conírgurado na famosa ode:
Já me dêem os deuses
O poder de sabê-lo; Seguro assento na coluna frrme
E a beleza, incriável por meu sestro, Dos versos em que fico,
Eu goze externa e dadâ, repetida Nem temo o influxo inúmero futuro
Em meus passivos olhos, Dos lempos e do olvido;
Lagos que a morte seca8. Que a mente, quando, Írxa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Pertence este poema ao núcleo do denso afloramento que
Deles se plasma torna, e à afie o mundo
assinala a incontida irrupção da angústia mal suspensâ no
Cria, que não â mente.
"primeiro" Ricardo Reis, mostrando como dentro da sua
Assim nâ placa o externo in§tante Srava
frcção nascida à somlra de Caeiro a própria frcção se anulâ.
Seu ser, durando nela9

8 làd., p.223 g lhíd.,p.22o

66 67

)
\

PESSOA REVISITADO
EDUÂNDO LOURENçO

Em tom menor, no dia z de Setembro de 1923, em que há


O poeta que transpostamente acenâ a uma loucura que no
a mais perfeita desilusão flousto comparecerá sem horacianas cautelas e a uÍxr Per-
nada menos que sete Poemas - dição que só da autolucidez com que se contemplâ frâ a
da ilusâo se perfila:
improvável ütória sobre o deserto onde agoniza é há muito
Não quero as oíerendas o autor de O Cward,ad,or d,e Rebanhos, da Ode Marítíma'
I
Com que fingis, sinceros, o anterior de Os Possos da Cruz, o das odes dessas precur-
Dar-me os dons que me dais. soras. Súe-o e porisso se pode erguer por momentos sobre
o tempo para lhe ditar a lei. Mas que existênciâ é a sua'
Dais me o que perderei, se

Chorando-o, duas vezes, todo esse universo de poesia mais não é que a solidifrcada
Porvosso e meu, perdido. espuma da sua inexistência? Como tocar na máscara o que
no rosto não se {rxa? O tema da "glória' (imortalidade sub-
Não terei mais des8osto jectiva, no sentido de Comte) entretece-se, e não Por acâso'
Que o contínuo da vida, com este aprofundamento nele da angústia existencial:
Vendo que com os dias
O que foi como um deu§ entre os que cântam' t t
Tarda o que espera, e é nada'o.
O gue do Olimpo as vozes' que chamavam'

É um tom que a solenidade das Odes do mesmo dia, Escutando ouviu' e, ouvindo'

ecoando em sentido oposto um dos mais belos versos de Entendeu' hoje é nada.

Pascoaes, nâo fará senâo acentuar: Tecei embora as, que teceis, Srinaldas'

Quemcoroais náo coroando a ele?

I
Nâo canto a noite porque no meu canto r: Votivas as dePende,
O sol que canto acabará em noite. Fúnebres semter culto.
Não ignoro o que esqueqo. Fique, porém' Iivre da leiva e do Orco,
Canto poresquecê-lo.
I A fama: e tu. que Ulisses erigira
., ,,1"
Tu, em teus sete mont€s'
Pudesse eu suspender, inda que em sonho' -Í
Orgulha-te materna,
OApolíneo curso, e conhecer-me
lgual, desde ele às sete qrre contendem
lnda que louco, gémeo
Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos,
De uma hora imperecivel"
Ou hePtáPilaTebas,
Ogigia mãe de Píndaro'''

ro Iàü., p- ??r.
rr lóid.. pp. ?2r-r?2
e kiÀ...p.224.

IffiUffiffilll

I I
lr "!

f,DUARDO LOÚAf,NçO ?ESSO^ ÀXVISIT^DO

Nunca a decantada (e tão mesquinhamente lida) mega- para Pessoa, inadequados. Mas a intuição é justa e câpital'
lomania de Pessoa passou fronteirâs mâis reâis mas eom De resto, nem de intuição se trata, mas de eco ao que' com
que tríplice (e inútil) máscara: é na mais gongórica das a lucidez implacável que no-lo torna fraterno, Pessoa
odes, em frcticio autor a si mesmo se aludindo em dis- -Ricardo Reis tão cruelmente sublinhou:
curso indirecto, que se atreve a sonhar-se o igual de
Homero. Acrescente-se uma quartâ e mâis segura porta Frutos, dâo-nos as árvores que vivem'
de saída, a do material anonimato do seu íntimo grito de Nâo a iludida mente, que só se orna
alma e imagine-se a que Íerror de não erístir (de não exis- Das flores lívidas
tir como Homero, Safo ou Píndaro existem por cima do Do intimo abismo.
Nodo mesmo...) a desmedida confissão responde. Repe- Quantoa reinos nos seles e nas cousas
tiu-se até à náusea que o drama de Pessoa é o do homem Te não talhâste imaginário! Quantos,
e do absoluto, da consciência e da realidade e tudo isso Com a charrua,
não é senão obsessiva mas abstractamente óbvio. A cons- Sonhos, cidades!
ciência poética de Pessoa, como a de toda a gente, mas Ah, nào consegues contrâ o adverco mundo
nele superlativamente, vive uma relaçâo ancreta, plena, Criar mais que propósitos frustrados!
com certos conteúdos e, tendo-se assinalado uma vocação Abdica e sê

poética, uma relação priülegiada com priülegiados mun- Rei de ti mesmo'3.


dos poéticos. O que aos outros pode passar inadvertido
ao seu demónio interior não escapa. Essâ poesia objectíva Já do "primeiro-Reis" - o de r9r4-16, fundamental-
que ele, crítico sem segundo, reconhece superior a todas, mente conheciamos esta forçada 'ãbdicação", como
-
esse dom de rivalizar com Deus perdendo se por âmor desde o início esteve presente "o deus atroz que os pró-
nas suas criaturas, dom de Homero, de Dante, de Shakes- prios hlhos devora sempre" mas as mesmas imagens'
peare, de Milton, no fundo do seu coração sabe que o não obsessões ou símbolos parece terem-se separado do gue
possui. Só o de frngir até aos limites do verosímil (para os nele é "jogo" sério com Caeiro, acudindo agora nâo ape-
outros e às vezes, sem dúüda para si mesmo) esse dom lhe nas pâra revestir epicurismos ou estoicismos simbóli-
foi concedido, e esse o levará â um grâu de refinâmento cos ou simlolizantes, mas parâ revesti.mento das fundas
raro na história, já bem complicada, das relações entre feridas e acompanhâmento da desilusão nada imaginária
"criador" e 'triatura". O "drama em gente" é isso mesmo, que do Poeta de ry27 1â se apoderara. Náo é certâmente
e o seu conteúdo concreto ê bem o da impotência criad.ora um âcaso se nas poesias desse ano e nos seguintes (com
como sublinharam João Gaspar Simões e Jacinto do Prado
Coelho, embora retraduzindo-o, em seguida, em termos, r3 lóid., pp. zz7 zz8

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f,DU^f,DO LOUTENçO P E SSO A R EV I § I TÂ D O

excepção dos imediatamente anteriores à sua morte, ocul- A ruda imploram tuas mãos já coisas,
tisticamente amparados à "leve tutela de deuses descuido- Nem convencem teus lábiosjá parados,
sos") se encontra o que de mâis friamente descarnado se No abafo subterrâneo
pode conceber para dar corpo ao espaço iluminado e nulo Da húmida imposta terra.
da morte. À "bur"" qr" nào vem senão vazia" soúe sem- Só talvez o sorriso com que amavas
pre Pessoa desenhar com dedada infalível o nulo e anu- Te eobalsama remota, e nas memóÍias
lador peú1. É do crucial de ?3 essa mesma célebre Te ergue qual eras, hoje
"no
imagem e, do mesmo ano ainda, a üüda apropriação ima- Cortiço apodrecido.
ginária dessa hora que só sob a pena de Álvaro de Campos, Eo nome inútil que teu corpo morto
tão gémea da de Reis na sua oposiçâo por fora, encontrará Usou, vivo, na terra, como umâ alma,
mais fulgurante e lírica metamorfose: Nao lemlra. A ode grava,
Alónimo, um sorriso'5.
Olho os campos, Neera,
Campos, campos, e sofro É com justiça célebre esta Ode, onde todos os motivos de
Já o frio da sombra Reis se unem numâ síntese perfeita, e integrada neles a
Em que não terei olhos. substância mesma da sua criação, tentativa de salvar do
 caveira antessinto universâI desastre da vida o gue de anónimo sorriso nela
Que serei não sentindo, pode háver. Em parte alguma se incarna melhor apoátrico
Ou só quanto o que igaoro de Reis, cedo (r9r5) e com ostensiYa gala, enunciada:
Me incógnito ministre.
E menos ao instante O resto passa,
Choro, que a mim futuro, E teme a morte.
Súbdito ausente e nulo Só nada teme ou sofre a üsão clara
Do universal destino'4. E inútil do Universo'ó.

Dessa imaginaçâo, cúmplice e intima da morte, esforçando- Para dar vida a essa aspiração, ou antes, como aspiração
-se por se lilertar dela pelo esvaziâmento da ideia mesma dela, surgu justamente Reis, trazendo colâdo ao rosto,
da morte, poucos poerms de Pessoa nos proporão umâ tão além da insolúvel questão de que é frcticia resposta, uma
profunda e melancólicaüsão como o da Ode de Reis de r9a7:

$ ibid.,p.229.
t+ lbi/l.,p.226 t6 lbsl., p.2t2.

/
7\
EDU^RDO LOUiENçO PESSOA NEVTSITADO

outra menos espectaculâr, mas de não menos imperativâ Com um mído de chocalhos
ur8ência: â de mostrar, por assim dizer, com a prova nas Para além da curva da estrada'

mãos, que poesiâ é mais que destino e deuses. Subme- Os meus pensamentos são contentes'

teram se o tempo e a morte, as únicas "realidades" que Porque, se o não soubesse,


impedem a consciência de se sentiÍ eristente, à estrâtégiâ Emvez de serem contentes e tristes'
de Pessoa, encerrândo se, encJuanto Reis, na forma que Seriam alegres e contentes'?.
âs supera? Nem o esforço para frngir que nada são, nem
o inverso de crer que são tudo e viver, apesar dos deuses, Este frngidominimo de autoconsciência (que por isso é um
como se o não fossem, aboliram o irredutível absurdo de máximo...) converte-se em Reis (o seu volver é Reis) num
que sào feitos. A serenidade voluntâriâmente fictícia de máximo que, enquanto tal, repousa, como a aceitaçâo da
Reis não os supera mais, nem melhor, que a calma frcti- realidade das coisas por Caeiro, em não menos natural e
ciamente natural de Caeiro. Nem uma nem outra são mâis universal experiência: os coisos, e nós com elas e no meio
do que polos de uma mesma angústia. Mas não realmente delas, sáo arrastadas, ou antes,a,hodos no tempo e pelo
simétricas. Mais natural, em sentido próprio, a calma de tempo. O que já é menos natural, embora o seja muito' é
Caeiro, que só de todo o não é pelo excesso a que a força dara essaúvência um papel absoluto ou sufocar sob avisão
o sonho de Pessoa. É natural e óbvio aceitar que as coisos de uma total írreolidode do todo e de tudo, não meramente
sdo reais e é em função dessa quotidiana convicçâo que a interior, mâs por assim dizer "palpável", inscrita na mor-
humanidade existe. Mas já o é menos desejar a realid,ad,e talidade e insubsistência de tudo guanto existe' Não conce
dos coisos como única realíd,ade parase libertar da própria bendo nenhuma saida positiva (e existe?) para esse circulo
e enigmática trrealtd,ad,e e alcançar assim a única felici- traçado à suavolta, e em seu próprio centro instalado' Pes-
dade de que somos capazes. Auma consciência, original- soa aceita à realidadr dessa irrealidade' Se tudo é tempo
mente infeliz por separada de si mesma, e separada de si sejamos tempo, e o tempo terá um sentido'
mesma porque o é das coisas, só o sonho dessa harmonia, A,formo da passagem de Pessoa a Caeiro é a mesma que a
menos a realizar do que já realizada (mas que nós empa- de Pessoa a Reis ma smed.iad,a, como o seu criador o expii-
nâmos e destruímos pensand,o) entre o homem e as flo- cou, pela existência de Caeiro, e mantendo com ela a exacta
res, as árvores, a Nâtureza, pode ofertar a almejada paz. frliação de d'iscíputo. Discipulo da sua serenidade mitica'
Mas Ricardo Reis signi{rca que esse belo sonho, o único levando de algum modo mais longe que Caeiro a vontade de
que vale a pena, é isso mesmo, um sonho, o que Caeiro ser inconsciente, não pela aceitação da opacidade
das coisas

frngia nâo saber, salendo-o, como no primeiro poema de que favorecem essa inconsciência, mas diante do tempo
O Cuardador de Rebanhos está escrito:

r7 Iàid., p t37

z4
7r
EDUARDO LOURTNçO PESSOA ÂiVISITADO

que â nâo consente. Sobretudo, levando a mais longe à ao âmâgo de um sabor quase nauseante de morte' ou se
custa da f cçrio como tal viüda e por isso mesmo reapro a palawa existisse, de "funebridade". Com raiva mal oculta

ximando se do Pessoa de onde Caeiro emergiu. Reis é já, que em Campos se desgrenhará, Reis ernpurra quase com
alegria a realidade inteira pâra â vâla comum:
na realidade em terceiro grâu que representa, uma forma
de regresso a Pessoa, regresso ao mesmo tempo impossí-
Narla hca de nada. Nada somos.
vel e exasperado pela "existência" hipoteticâmente/eriz de
Caeiro. A sua vontade de se assimilar e mesmo de superar Um pouco ao sol e ao ar nos atÍaaamos

o Mestre, reeditando a suâ aventura plácida diante de desa- Da irrespirável treva que nos Pese

fios bem mais temíveis que flores, árvores e rios, tinha de Da humilde terra imPostâ,

passar, como os poemas no-lo mostrâm, de uma proüsória Cadâveres adiados que procÍiam.

e cultivada indiferença diante de amores a gue se fecha os


olhos, até ao terror nu de se ver e süer anulado e deglu- Leis leitâs, estátuasvistas, odes findas -
tido pelo que é insensível a rogos, a lágrimas e astúcias de Tudo tem cova sua. Se nós' carnes

razâo doente: A que um intimo sol dá sangue' temog


Poente, porque não elas?

Lídia, aüda mais vil qntes que a morte, Somo§ conto§ contando contos, nada'9'

Que desconheço, quero'8.


O seu epicurismo desvaneceu-se, o seu estoicrsmo per-
É de ry27 aode qte inclui este "grito", que o é de todas as
-[ deu a generosidade abstracta parâ guardar uma espécie de
vidas e que idêntico, senão nâ forma em sua substância, âgressividade anônimâ, os sinais de fechamento íntimo
encontraremos nas passagens mais nuas e encostadas são visíveis, a escotilha pronta para a descida solitáriâ e
sem artifício algum à sua realidade, em Âvaro de Campos sem regresso, estrangeiro a tudo e a si mesmo pelo desejo
imortal de se unir totalmente a tudo:
e uo Fousúo. É por demais claro que ojogo interior do pri -
meiro Reis está terminâdo, ou só se repete como escon-
juro. Uma tristeza que não busca mascarar-se. a mais Ninguém a outro ama, senão que ama

sombria das melancolias que o tom antigo acentua aindâ, O que de si há nele, ou é suPosto.

devolvendo-nos um efeito inverso daquele para que havia Nada te pese que nâo te amem. Sentem-te

nascido, um furor mal domesticado por externa compos- Quem és e és estrangeiro'".


tura, tal é a atmosfera das últimas Odes penetradas até
ràid.. p.239.
'9
zo lbiÁ., p.239.
r8 Iàid., p. a3o.

7Z
76

b-
,ti
FFr
XDUAÂDO FV]SITÀDO
',OURXNçO

O obscurecimento é perfeito dentro e fora do "súbdito


inútil de astros dominantes" e é com aquela voz a mais Como acima dos gados que há nos campos
próxima nele do silêncio, a voz herdada ou reconhecida O nosso esforço, que eles nào compreendem,
em Camilo Pessanha, que ao invés de Caeiro fecha as Os coage e obriga
janelas de que nào precisa para ver entrâr a noite que já E eles não nos percebem,
nele existe: Nossa vontade e o nosso pensamento
Sào as màos pelas quais outros nos gu iam
Estás só. Ninguém o sabe. Cala e frnge. Para onde eles querem

Mas finge sem frngimento". E nós não desejamos"'.

Dentro de si mesmo, como todos hão-de fazer, o heteró Depois de o terem âssinalado como convinha e a evi-
nimo Reis retira a máscara. Fica só Pessoa, mas Pessoa dência o pedia, não conferiram os seus clássicos exege-
outro, pelo jogo alterado no mais extremo úandono e tâs ao ocultismo de Fernando Pessoa o lugar centrâl que
consciente dele, com as mãos em corredores para o abismo é o seu"3, considerando-o âpenas como uma heteroni
voltados, e que não saltará. Talvez apenas porque esses miâ difusa, vâgâ ou sincerâmente envergonhados de que
'deuses" que, decorativos, balizam o seu itinerário hipo tão extralúcido e soberano espirito se tenha perdido nos
teticamente pagão se lemlraram nele com outrâ espé- suspeitos meandros de um espiritualismo (quando não
cie de presença. Como os primeiros, os ultimos poemas de "espidtismo") de segunda zona'?4. Se em âlguma coisa
Ricardo Reis a eles aludem com insistência, mas escu,lpindo Pessoa consentiu perder-se foi só no iluminado pân
diversa figura da sua consciência e quâse de oposta visâo tano desse ocultismo, reunindo-se aí à coorte numerosâ
nascidos. Nos primeiros poemas desciam de um "cimo' ou dos que desde Swedenborg nele encontraram â resposta
de um oculto lugar, mais abismais que a verdade ("Acima da i.maginal contra a solitude divina do eu do idealismo
verdade estão os deuses"), incarnaçôes da vontade e do pen- moderno. O ocultismo foi a religiâo dos místicos sem elâ
sâmento que nós só reflexa e ilusoriamente somos: (no sentido comum), complexa nebulosa que não con-
vém, para entendimento necessário da odisseia efec-
AIjos ou deuses, sempre nós tivemos, tiva da consciência moderna em busca da ítacâ sempre
Avisão perturbada de que acima
De nós e compelindo nos ?? .llid.. pp.2rr ?r?.
23 P€lo contrário, foi sobrc ele, sobretudo nâ sua fase Politico-mi§tica, que insis-
Agem outras presenças. tiu a suã int€Ípretação de António quâdros, lcemondo Pessoo, ed. Arcádia. E. num
sentido mâis ocuilista, recentemente, Dalila Ferreirâ da Costa, 0 Xsorensno d€ Iàr
nondo Prssoo. ed.lÉ[o€ Irmào, r9?r.
zt lbíd-.p.24t. ?4 Ver nota D no hnal dovolune (p.25o).

7A 't9
!DUABDO LOURXNçO !ESSO^ À!VlSlTÂDO

ausente ou diferida, enviar para o armazém do pitoresco Meu gesto que destrói
insignificante. Nela estão inscritas as aventuras essen- Amole das formigas,
ciais do que Albert Béguin chamou a 'ãlma romântica" e Tomá lo-ão elas por de um ser divino;
seus sóis negros sempre renascentes, de Nerval aYeats e a Mas eu nào sou divino para mim.
Breton. Nâo está mal, nem deslocado, Pessoâ nestâ cons-
telação, mas está a seu inconfundivel modo. Aquele que Assim talvez os deuses
sob tantas formas escreveu: Para si o não sejam,
E só de serem do que nós maiores
Nada deseja Tirem o serem deuses para nós.
Salvo o orgulho de ver sempre claro
Até deixar de ver'1s. Seja quâl for o certo,
Mesmo para com esses
nào podia perder-se naquilo mesmo que aceito o sâlva- Que cremos serem deuses, não sejâúos
ria. E nâo podia perder-se porque o consciêncía é um sol lnteiros numa Ié talvez sem causa"6.
sem noite cuja vígílía ndo mnsente sono. Este dado câpital do
espírito moderno sua essênciâ mesma - só em pseudo- Infelizmente (ou felizmente, é conforme...) Pessoa não
sonho pode transladar a anjos e deuses a liberdade, a corriâ esse risco das "fés inteiras". Hâmlet, sem outro
transcendentalidade de que é manifestaçào. É inútil carre reino nem armas mais que a dos "versos" em que crê com
gar os deuses com o nosso próprio fardo. Esses deuses sâo o mesmo excesso com que descrê, Pessoa não sairá jamais
só o nosso fardo ficticiamente deposto. Assim volvem no da mistura de túmulo e berço, onde se encerrou desde o
ultimo Ricardo Reis, eguivocamente revestidos dos pode- momento em que para si mesmo nasceu. Dessa recusa
res ântigos de serem mais do que nós e nos julgarem na sua de "crescer" e "mudar" (que só podia ser, como ironica-
luz inumana, ou de não serem senão a frgura da consciência mente o diz, "para seu igual") todo o Ricardo Reis, mas
em perpétua fuga diante de si mesma. Desta última possi- particularmente o último, é a suprema petrifrcação. É no
bilidade e exâctâmente com o mesmo gesto que em r9r4 tempo mais anligo de Pe -sqa, nào só o mítico da história.
lhe havia servido para supor deuses que de si o repousem, da ideologiá. da estélica (Grecia-Roma monarquia, ode),
testemunhâ o poema não datado, mas verosimilmente dos mas interior, que Reis existe. Nem de externo pai e mâe
anos frnais em que MariaAliete Galhoz o coloca: precisa para se reconduzir através deles à in{ância, elâ
mesma imaginária, onde se refugia. Abrir os olhos é ver

25 O. P, p.2r2. 26 lbíd..p.247-

a0 8l

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f,DUARDO IOURENçO Pf,SSOA BXVIS'TADO

tempo e mofie. A tudo prefere o sono acordado da vida, em Reis até à náusea e só da esquizofrenia separada pelo
esquecida de um e outra, que o acordarourro, mesmo para gume (equívoco) da sua expressão. A consciência como
melhor, como em uma Ode de r9r7 escreve. Mas mais do actividade ov, acto nad,ificante tem em Reis a sua elegia, a
que tudo teme que esses deuses em que mal crê ou não mais triste e melancólica das elegias que o tom épico da
crê, suspeitando se ser ele mesmo esse "deus" (Ode de ode nâo consegue disfarçar. Desta descida ao inferno, ao
Dezembro de r93r), possam ser o terrífrco espelho, onde mesmo tempo voluntário e involuntário do enclausura-
o que é, sem téus ü sí mesmo se apareça. De todas as possi- mento íntimo, tirou Pessoa o seu monótono e fascinante
bilidades que na sua imaginâção se perfrlam essa é aqui e canto'8. E com ele, para a universal poesia, alguns dos
será em Álvaro de Campos e no Fausto a única realmente poemas mais altos suscitados pelo sentimento da irreali-
íntolerdçel. Que terror de si mesmo escondia, que segredo dade e sua topologia quimérica:
que fosse só dele e não de todos nós submetidos ao tempo
Pessoa enterrava com tão fabuloso artificio, a ponto de Aguardo, equânime, o que não conheço -
pedir aos deuses, como hênção suprema, que o nãn oís Meu futuro e o de tudo.
sem? Sua solidão? Sua infelicidade? Sua impotência, nos No fim tudo será silêncio- salvo
dois sentidos do termo? Mas porquê? e fieitas de gué? Que Onde o mar banha nada'e.
pânico o leva a pedir, a desejar, como prelerível a tudo, o
não sâir do "ergástulo de ser quem é"?:

Quero dos deuses só que me nào lemlrem'7

Criado se acomodar a um universo feitô só de irrea-


ade (ao invés do Caeiro. transbordante dela), nela se
d-e

enraiza e acaba por encontrar um lar onde bebe fria a per


manente ausência de si mesmo onde todas as outras se ali-
rrm possível e só feitâ da
impossibilidade de si mesmo se ausentar. Mas isto mesmo
ele sabe e não o salva. Nào há âcâso na literatura univer
sal, ou pelo menos tão radical e âbstractamente encar-
nado, mais esquizofrénica experiência do que a plasmada

?8 Vernota Eno final dovolume (p. zSD


27 lbid,.. p.246 29 lbid.,p.242.

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