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^ül lt1]

7
ÁIvaRo DE CAMPoS II
ou A AGoNTA ERósrRaro PESSoA

[... ] A loucura por que é


Mais sã que a Íalta dela?
Flusro
I
Ter uma obra, uma força, umavontade, uma horta

Uma cousa únda directamente da natureza paramim.


A. or Ceupos

A partir do momento culminante de r9r7, com o [,rltinr,o-


turn, já não haverá para Pessoa mais intercessores que as
suas próprias frcçôes. Chegou o tempo, anunciado desde ffiffiffiffiuffit
r9ro, de relegar para o limbo a literatura dos outros e de
"sonhar os seus próprios sonhos". Alberto Caeiro está
já morto no seu reino sem morte, Reis instalado na sua
"vila" romana de abdicaçâo voluntária para fugir a ela, só
Álvaro de Campos acompanha como gente viva o irónico
e ausente criador. É o mais próximo dos seus "fantas-
mas", como também lhe chamou, e sê-lo-á cada vez mais,
dando-lhe a mâo frenética, um pouco mais calma, sem-
pre que for necessário ostentâr em público os paradoxos
que salvam. Na sua companhia acedemos à mais íntima

IA3
EDUÂf,DO LOUAEI{çO PESSOA REVlSITADO

Iusão davivência quotidiana, da prosa da sua vida sem ela, se fragmentam ou se rePetem numa obsessão de bebedeira

com a preocupaqão metafÍsica em estâdo de pura incan- sarcástica de sonâmlulo:


descência. O milagre raro é que nâo se recebe da poesia
de Álvaro de Campos a impressão de uma metafísica que Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã

se escoâ em imagens. Ao contrário, é da consideração dos Levarei amanhã a pensar em dePois de amanhà,

acontecimentos ou objectos mais banais (constipâção, Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não po§so
aniversário, dobrada à moda do Porto) que a imaginação nunca §er.
ilumina de mâneira insólita, que decorre uma espécie de Só depois de amanha...
meditâção metafísica verti6inosa mas sensivel, e com ela, Tenho sono como o frio de um cão vadio

a mais alta poesia. É a sua descida sem venda nâ almâ âo Tenho muito sono.

goufre baudelairiano conyertido em tonel das Danaides, Amanhã te direi as palar, as' ou depois de âmanhã '
e só não e o seu agónico coeur fiLis a nu porque nem aqui, Sim, talvez só depois de amanhã.-.
onde tão brxtalmente se desvenda, nos dá o direito de o
âssimilar d ,orolidode de Fernando Pessoa. O porvir...
Se pomos de parte o Fouslo, escalpelizâção ou autoü- Sim, o porvir'
vissecação poética sem igual, Campos é o Pessoa mais nu,
deixando correr à solta a torrente de angústia que o sufoca, A expressão cÍuâ, despida mesma da mediâçâo de todo o
fazendo o processo da sua abulia, outorgando lhe uma humor ou jogo âo nível do imaginário, do mesmo com-
dimensâo de fábula, dilacerando-se com um pâtetismo bate da existência irreal pela sua realidade, das polo
e uma raiva dementes, em sumâ, eleyando ao sentimento vros em busca de um sentido mais crivel que aquele que
da sua existência (e da existência em geral) como absurdo the damos. não se encontrâ t Ál't r.o de Campos Pes-
"t ffiffiffiffiffiffiffi1
râdical, a única epopeia que a poesia moderna pode con- soa confiou-o, como dissemos, âo "poema dramático'
ceber, uma epopeia do negativo e da negação. Se alguma Fousto, materialização sem máscara de todos os seus fra
vez o inferno da sújectiúdade, a infelicidade orgânica da cassos, incluindo o dolornr,o submetida à última violência
conscíêncía isolada e solitaia, foi descrita com génio, nos de uma interrogação voluntadâmente situada nos limites
poemas mais desesperados da língua portuguesa (e por- da interrogação humana. Aí arranca todas as máscaras e
ventura do século) o podemos comprovar. Desespero capaz interroga até perder o sentido da própria interro8âqão'
de se ver como desespero, de se transformar no seu pró- O resultado situa se num domínio em que o projecto
prio palhaço, de se assobiar, de se crucifrcar, de se negar, habitual da poesio naufraga. mas sem â compreensâo
sem outro resultado que o de se aprofundar em silêncio até
ür morrer nas palawas que por impotência se suspendem, O. P. p.33t

I84 r85
EDUARDO LOURENçO ?rsso^ REvlslr,{Do

necessáriâ deste naufrágio é o mundo interior de Pes Mâs este "horror" mesmo, exactamente porque como
soa que nos escapa. Esse FausÍo sem outra Margarida que "horror" se manifesta testemunhâ contra si mesmo,
um simples "desdobramento" de si mesmo e de novo suscita a sua própria negaçâo que não é outra coisa em
tocamos aqui, sem dúvida, o fundo da questão, no sentido frgura humana da consciência, do que Pessoa-Rosacruz:
humano do termo é o falso diálogo, desde sempre sem
- o nxúndo como inealid,ad'e orígínal. Uma di{erenqa capital
saÍda, de uma "consciência" confrontada com os dâdos separa, porém,.Fousro de Pessoa-Rosacruz: â perspec-
bnrtos do enigma I por que eriste algo em vez d,e nad,a?: tivâ ocultista é, embora no desmascâÍamento sem fim
çe lhe é prôprio (também a Deus a verdade lhe morreu),
Mais que a existência o que de mais próximo está da fé perdida da sua infân
É um mistério o existir, o ser, o haver ciâ enquanto ambas são forma de Presença (e salvação)
Um ser, uma existência, um existir diante da Transcendência. Mas â consciência de irrea-
Um qualquer que não este, por ser este
- lidade do mundo para lousro não abre pâra esse esPaço
Este é o problema que perturba mais. transfrgurante onde o neófito verifrca que ndo hd morte
O que é existir nào nds ou o mundo eéo tgal terminando assim para ele a pro-
dos deuses,
Mas existir em si?'? vação e a prova. Ao contrário, a supremâ realidade não o
âpavorâ menos que a opâcidade impenetrável do Mundo,
Fausto é o pólo oposto (um dos dois pólos, sendo o outro o seu aparente não-sentido ou a hipótese mesmâ do seu
Pessoa-Rosacruz) de Caeiro, o que quer dizer sem- sentido perfelto. Que o mundo seja ilusão menos o con-
pre, o lugar mesmo do mais profundo diálogo com ele. frange que â hipótese de perdê-la e de se encontrâr um
A'ãusência de Mistério", em cujo horizonte se perfrla o dia face a face corn a suo' Verd,ade. Exactâmente como
rllto silencioso e miticamente calmo de Caeiro. é a forma Ricardo Reis:
suprema do Mistério:
Basta serbreve e transitória a vida
Ah, que diversidade Para ser sonho. A mim, como a quem sonha'
E tudo sendo. O mistério do mundo. E escuramente pesa a certa mágoâ
O íntimo, horroroso, desolado, De ter que despertar- a mim, a moÍte,

Verdadeiro mistério da existência, Mais como o horror de me tirar o sonho


Consiste em haver esse mistério3. E dar-me a realidade, me apavorâ,
Que como morte+.

2 Iàd.. p.43r
3 lóid.. p.43, + lbid.. p.434

ta6 l8?

),
EDUARDO LOÚNTNçO Pf,SSOÂ §EV]SITÂDO

Este temor d,o d,espertar é um dos sintagmas psiquicos Abre me o sonho

mais indiscutiveis do universo de Pessoa qlue no Magní' Para a loucura a tenebrosa Por1a,
treva é menos negra que esta luz
f,co lhe deu uma expressâo admirável. Aquele que como Que a

Álvaro de Campos tão subtilmente entoará a litania da


noite maternal, relúgio supremo de todas as angústias e O terror desvaria me, o terror
De me sentirviver e ter o mundo
bálsamo de toda a insónia do pensamento e da vida, no
Sonlado a laços de compreensào
Frlusro a teme como "consciência em ódio ao incons-
Na minha alma gelada6.
ciente" que é:

Acontece supor-se Deus. A fraternidade com Nietzsche


Pudesse eu, sim, pudesse, eternamente
âtinge âqui a sua expressão mais altâ ("Se Deus existisse
Alheio ao verdadeiro ser do mundo,
como poderia tolerar não ser Deus?"). E como Nietzsche,
Viver sempre este sonho que éa vida!
de razão perdida, âssinâva O Cruciflcad,o, Pessoa-Fausto
escreve no meio dos seus escomblos:
Suave me é o sonho, e avida [...] éo son]ro
Temo a verdade ea verdadeira vida.
Aqualquer modo todo escuridão
Quantas vezes, pesada avida, busco Eu sou supremo. Sou o Cristo negro.
No seio maternal da noite e do erro. o que só sabe
O que não crê, nem ama -
O alivio de sonlar, dormindo; eo sonio O mistério tornado carne -.
Uma perfeita vida me parece -
-.. e porventura Há um orgulho atro que me diz
Porque depressa passa. E assim é avidas. inconscienciando-me
Que sou Deus
Para humano?.
Em parte alguma como no Fausro, no meio das suas fra-
ses truncadas, dos poemas subitamente interrompidos, Ou ainda:
tocâmos com o dedo a essência titanesca e condenada da
empresa de Pessoa. Dela é bem consciente, como o tema Ó sistema mentido do universo,
duplo da Loucura e da impotênciâ râdicâl da linguagem Estrelas nadas, sois irreais,
para dizer o seu tormento o explicita: Oh, com que ódio carnal e estonteante

6 kíd.,p. trzg
S kíd.. 7 kid.

l8a 189

!
?DUARDO LOUNINçO PESSOÂ RXVISIT^DO

Meu ser de desterrado vos odeia! mas tâmbém o já mais próximo de Rimbaud do déràgle
Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro, nxent de tous les sens e o sonho de se converter numa
Pregado na cruz ignea de mim mesmo, "ópera fantástica". Somente o seu deboche libertador
Sou o saber que ignora, não tem lugar ao nível dos "sentidos" nem mesmo das
Sou a insónia da dor e do pensar-.-8 "sensaçôes", como os exegetas do seu "sensacionismo"
tomado demasiado a sério têm tendência a descrevê-lo.
Tal é o limite pâra que tende também a poesia de Alvaro É só um frio deboche do imaginário como já vimos. As
de Campos, iniciada sob o signo lüertador e a paixão pela suas explosões, a sua histeria calculada e verdadeira têm
diversidade das coisas, de Walt Whitman... Felizmente, no próprio poema o seu contrapeso. A energia imitada
Álvaro de Campos eüta este pâroxismo desincarnado por para cantâr certos aspectos da civilizaçáo moderna, apa-
uma espécie de hurnor mais ou menos negro mas real, por rente canto da mão direita de directa ressonância whit-
umâ ironiâ transcendente ou em filigranâ, por uma raiva maniana é corroída na origem pelo acompanhamento
até mas não tão ústracta como no Iousio, elevando assim ao irónico da mão esquerda, eco da fadiga metafÍsica de Pes
seu mais alto pont o a tragrcomédia da íntelígêncta e d,a sen si soa, já de regresso de todâs âs viagens' De regresso de
bilÍdode, a braços com âs contradições da üda e delas mes tudo, na medida em que não é nínguém (sendo superla-
mas. verdadeiramente incompârável. Alraves de Álvaro de tivâmente a consciência disso) e em que ninguém pode I
Campos, Pessoa oferece-se em comédia a tragédia da sua colmatar essa "ausência de realidade" que é a seus pró
prios olhos. Em r9r5 e 16 o que chocou foi a histeriza-
glâcial solitude e em trâgédia a comicidade dolorosa de
uma existência que nâo encontra, em parte alguma nem çào do grito. o delirio das imâgens. e viu
-se num poema
lll
em nada, remédio contÍa â ângústia fria que a devasta. Sob vâsto como o mar uma simples prorocoçrio vanguardista,
a sua primeira manifestação euforizante fora o voto desvai- uma vontade de escândalo e um canto primário de exal
rado e lúcido de "sertudo emtodas as coisas", de com elas se tação da üda moderna. Não se viu, nem era entâo possí
unir até ao delírio para se esquecer de si, esposando num só vel ver nele, a epopeia do fracasso mascarado em viagem
ffiffiffitilffitiffi1
abraço a incrível confusão da üda e todas as suas contradi- imaginária, barco bêbado da só bebedeira da alma. A voz
ções. É em termos de exterior cruzada walt-whitmaniâna- que fala na Ode Marírúrno surge pârtilhada entre a vontade
-marinetista o mais antigo programa de Baudelaire de ser de ser como os ântiSos marinheiros, vidas que crêem no
mundo e se perdem alegre e ferozmente nas suas águâs
La plaie et le couteau profundas e o sonho parado do anónimo correspondente
la çíctine et le bourreau comercial caido do céu da cultura e da adolescência via-
jante e exótica na "capital d'olvido" estagnada em rotinâ
I làid.. p.41o
e pasmo, que é a Lisboa onde Pessoa e seus amigos se

190 t9t
EDÜARDO LOUAENÇO PESSOÂ Rf,VI SITADO

consomem à volta dâ etemâ mesa do câfé. Dos mortos Assim num lento e doloroso refluir, apagando um a um os
sonhos imperiais que navio algum, entrando no porto traços da sua âyentura sentada, se termina a hora da fic-
cheio de sol onde ainda estão as nâus para "os que vêem tícia e funda exaltaçào, para a quâl, "o homem e a hora"
em tudo o que lá não está", pode ressuscitar, só a nostalgia sendo um só, Pessoa havia criado, em toda a sua pleni-
deles feita alma, transmudada em saudade dilacerante do tude, Ávaro de Câmpos. Do espasmo não ficârá mais que
inacessível, encârnâ com uma sorte de absoluta perfeição a ressaca, o mârulhâr glauco de águas represas âtravés
no pequeno naüo que sai a barra da vida, enfrentando do qual Ávaro de Campos se sobreürá a si mesmo como
"humilde e natural" a bruma do destino jamais dissipada "um fósforo frio". Mas é na escuta desse canto de trevas
para aquele que um dia ousou frtá-la: ainda banhado do vento do largo e da sua luz oceânica que
se apercebe em todâ â sua fascinação o negro esplendor
Passa,lento vapor, passa e não fiques da poesia de Fernando Pessoa. Sem cansâço, o câsuâl -
vida inútil no meio de uma Lisboa sem febre de alma se
Perde te no longe, no Longe, bruma de Deus, transfigura em matéria eterna. A medida que envelhece,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me... ou antes, que se afastâ dessa âdolescência vertiginosâ em
Eu quem sou para que chore e interrogue? que se sonhou "todos os Césares", a sua poesia cobre-se
Eu quem sou para que te fale e ame? de sombras, as suas nostalgias tomam a cor da revolta e a
Eu quem sou para que me perturbe ver te? revolta, contra si mesmâ, se quebra em náusea extrema.
iltflflffiffiffiffiffit
Inúteis serâo todos os sursu,nr, corda que a si mesmo ende-
Parte, deüa-me, torna te reça aindâ próximo dessa orlâ marítima do sonho exte-
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido. nuâdo. Mâs eles desvendam e desfibram o último sentido tiffitiffiffiffiffiL
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto, da dispersào hiperbólica de Álvaro de Campos e situâm
Depois ponto vago no hodzonte (ó minla angústia!), na sua luz verdadeira o "sensâcionismo" anedótico que
Ponto cada vez mais vago no horizonte..., ele mesmo, um dia, colou à suâ pele. ffiffiffiffiffiffiffi1
Nada depois, e só eu e a minÀa tristeza, A sua verdade é a de Caeiro às avessas: "ser tudo de
E a grande cidade agora cheia de sol todas as maneiras" como forma de regresso a esse todo
tl Ea hora real e nua como um caisjá sem navios, fabulosamente disperso que Caeiro frnge aceitâr na sua
Eo giro lento do guindaste que, como um compasso que glra, diferença apaziguânte e sem mistério para poder preser-
Traça um semicírculo de não sei que emoção var a sua tranquila e imortal diferenqa. Só a multiplici-
No silêncio comovido da minlalma...9 dade pura é súsistente pârâ Pessoâ-Caeiro. Só a unidade
pura é real para Pessoa-Campos. Na verdade, um e outro
9 lbid.!p.293 vivem do que negam e por essâ negação se identifrcam na

L92 t 93
LoüRnNço PXSSOÂ RXVISITÂDO

diferença que os separa. Não é o desejo de confusão conr


o real visivel na sua'âlucinação extraordinâriamente Sursum cordol Reparo para ti e todo eu sou um hino!
nitida" que -ou" Ávr.o de Campos mas o de união com
aquilo de que esse real é externa manifestaçâo e floresta Tudo o que há dentro de mim tende a voltar ser tudo'
nrmorosa ilusoriamente autónoma. O próprio Avaro d. Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
Campos é, no grande jogo heteronímico, a floresta onde Novasto chão supremo que não está em cima nem em baüo
todos os heterónimos confluem e de onde refluem, por Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
ser o lugar mesmo onde a contradiçâo que os alimenta Poruma obliqua pos§e dos nossos sentidos intelectuais'
se dá simultaneamente o espectáculo de todos eles. Ele é
como Reis a âceitâção e a glosa da vida como ilusão, ele é Sou uma chama ascendendo, mas ascendendo para baüo
como Caeiro aceitação e glosa da aparência e como Rosa- e para cimâ,
cruz aceitação e glosa da irrealidade, porque é simulta- Ascendendo paratodos os lados ao mesmo tempo, souum
neamente cantor do real como aparência e da ilusâo como globo
realidade. Cada uma dessas visões reflexo de um único
éo Das chamas erplosivas buscando Deus e queimando
mistério de informulável expressão: o da intrinseca ina Acrosta dos meus sentidos, o muro da minha lóSica,
cessihilidade do ser que só por manifestaçôes que o traem Aminha inteligência limitadora e gelada''.
nos é presente e nós a ele. E é por ser assim que todas as
manifestações o revelam traindo o: É bem inutilmente e em perpétuo atraso que nós pode-
mos fâzer a autópsia da contradição confessada e viva que
Sursum cordal Erguei as almas! Toda a Matéria é Espirito, é Álvaro de Campos. Ele mesmo se percorreu de nofie a
sul e de oeste â leste com lucidez implacável que jamais
Porque Matéria e Espirito são apenas nomes confusos é suprema senão no domesticado delírio pânico a que
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho entrega suâ alma excedida de si mesma e do mundo Esse
a
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo! concertado e abissal delirio que é o da vida mesma em sua
Sursum cordal Ó Terra, jardim suspenso, berço explosão sem fim conYoca câda alma para a sua festa, mas
Que emlala a Alma dispersa da humanidade sucessiva! mais do que todas, aquela que em si se sâbe morta e sepa-
Mãe verde e florida todos os anos recente, rada do fundo fluxo ütal pelo muro dessa "inteligência
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal, limitadora e gelada". Tudo o que Pessoa pôde cônceber-
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adónis -se e ser-se imaginariâmente de mais exterior ao seu ser
Num riro anlerior a lodas as signihcaçôes,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os valesl
Ibid., pp.375-3?6.

t94 79É
T I I l l

EDUARDO LOUR'NçO ?!SSOÂ RXVISITADO

imobilizado e impotente overte em Alvaro de Campos, na onde habita. É aqui que pela primeiravez se ouve com umâ
tentativâ de antemão gorada de livrar-se de si e de ser o nitidez que não enganâ o antiquíssimo resumo trágico da
"análogo de Deus": experiênciâ humâna, de Esquilo â Job":

Quanto mais eu sinta, quanto mâis eu sinta comovárias Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei
pessoas,
Experimentei mais sensações que todas as sensações que

Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for, senti.


Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo, Porque, pormais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E fora d'EIe há só Ele, e Tudo para Ele é pouco". E avida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu in{eliz.

O inverso d,esta Quête ultima de unidade e unificação com Não sei se avida é pouco ou de mais para mim.
o que não tem nome, já escondida do àmago d.a Ode Tiun- Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei

e da )d,e Marítima, d uma abulia original, massa oceâ Se me falta escúpulo espiritual, ponto-de-âPoio nâ inte-
fal
nica que nenhuma vaga de fundo poderá abolir ou deslocar ligência,
duradoiramente. É já o seu espectro poderoso, mas ainda Consanguin idade com o mlslerio dâs coisâs..
quente de todos os sonhos plausiveis que domina um dos
mais complexos e importantes poemas de Pessoa-Campos, Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz'
A Passogem d,as Horos de 1916. O excesso que a irrupção de
Âvaro de Campos traduz determinou duas reacções anta- Seja o que for, era melhor não ter nascido,

gónicas e simétdcas: Chuva Oblíqua e Passagern d,as Horas. Porque de tão interessânte que é atodos os momentos,
Em Chuva Oblíqua Pessoâ tenta recuperar-se em vão sobre Àvida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a mnger,

Âvaro de Campos emigrando para o mais recente de si Adarvontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão,
esse interseccionismo aplicado de onde, em parte, Cam- de sair
pos nascerá. Em Passagem d,as Horos a ruptura é assumida Para fora de todas as casas, de todas as lógcas e de todas

e é Álvaro de Campos que se deixa invadir pelo Fernando as sacadas.

ir ser selvagem parâ a morte enlre árvores e esqueci '


Pessoa tol qu'en Lui-même o cansaço de mundos pârâ apa- E

nhar um eléctrico o havia feito. Passoge m das Horas é a des- mentos'3.


cida pelas traseiras da casa de um sonho maior que a alma

r: V notaQ nofrmdovolume (p.259)


Iàtd., p.3?S- 13 O. P., pp. 3oo 3or.

196 792

I
]-OURENÇO Pf,SSOÀ RÉVI SITADO
XDUÁRDO

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solicito'


A voz que fala na Pa calari
ssagem d,as Horas nunca mais se
no futuro Ávaro de Campos, deÍ-rnitivamente sem oulro Só humanjtariamente ê que se pode viver'
amando oshomens, as acções' a banalidade dos trabalhos,
futuro que o desta intensâ e intérmina descida ao labi Só

assim- ai de miml só assim se pode viver'


rinto da veleidade, sombra dura no chào da vida criadir Só -
pela sua incapacidade de agir, de se inserir na dinâmicl Só assim, ó noite, e eu nuncapoderei ser assim!

do mundo:
Amei e odiei como toda a gente,

Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo'
E para mim {oi sempre â excepção, o choque' a válrula' o

A sombra melancólica de Cesário triunfa nele sobre a de e§pasmo.

Whitman, defrnitivamente, o Cesário do cair da noite, Vem. ó norte. e âPaga-me. vem e afogamêemli I
dos sonhos imóveis: Ó carinhosa doAlém, senhorâ do luto infinito,
Mágoa externa daTerra, choro silencroso do Mundo

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui se. Mãe suave e anti8a das emoções sem gesto'

Seja de que maneira for é preciso continuar aviver. Irmã mais velha, virgem e triste, das ideiâs sem nexo'

Arde-me a alma como se fosse uma mão, hsicamente Noiva esperando sempre os nossos Propósitos incompletos'
Adirecçào constantemente abandonada do nosso destino'
[...] Eu sou o que sempre quer partir. A nossa incerteza pagà sem aleg a'

E fica sempre, Írca sempre, Írca sempre, Anossa fraqueza cristã sem fé,
Até à noite fica, mesmo que parta, frca, frca, Írca...'5 O nossobudismo inerte, semamorpela§ coisas nemêrtases'
Ànossa febre, a nossapalidez, a nossa impaciência de
E neste mârâsmo mortal que se recorta, como apelo fracos,
ângustiado e inútil, a primeira das suas grandes litanias Anossavida, ó mãe, anossa perdidavida'6
à noite, a essa noite ao mesmo tempo física, moral, meta
física que nele encontrou porventura o mais frlial ado Esta primeira grande aparição da noite não tem o perfrl
rador, a mais âmânte emânâção do seu ser maternâl e sumptuoso e a magnificência cósmica da noite invocada
dissolvente: no inesquecivel "fragmento de Ode", mas nela ressoa a
mesma con{]ssào e se articulam os mesmos temas: noite e
mãe, regresso à inconsciência regeneradorâ e apaziguante,

r4 Ibíd.
'p 30r
16 lbid., p.3o2
r5 tbíd.

198
r99
EDUARDO LOU R»NçO PESSOA RIVISITADO

fuga da vida como dor essencial, remédio mais eficaz que Multipliquei-me, para me sentir'
as plurais fés que outrora foram sangue da alma e já não Para me sentir, precisei sentirtudo,
encontram hoje alma para o antigo sangue que neias cor Transbordei. não hz senão extravasar-me'
ria. É como marginal da üda, como incapaz de ressentir Despi-me, entreguei-me,
çalquer coisa "vinda directamente da natureza" para ele E há em cada canto da minha alÍra um altar a um deus
que implora, criança absoluta, as mãos da úsoluta noite: diferente.

Por isso sê para mim materna, ó noite tranquila... Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente
Tu. que tiras o mundo ao mundo. tu que és a pâ2. feminino.
Tu que nâo existes, que és só a ausência da luz, E eu só de pensar nis§o desmaiei entre músculos supostos'
Tu que não és umâ coisa, um lugar, uma essência, uma vida, Foram dados na minlu boca os beijos de todos os encontros,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão, Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Circe irreal dos febris, dos angustiados aem causa, Todos os chamamentos obscenos de ge§tos e olhares
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos, Batem me em cheio em todo o corpo com sede nos
E sê frescor e aliyio, ó noite, sobre a minha fronte.-.'? centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de parte' todos os
É só por frdelidade ao seu "sensacionismo" de mârca que como que esquecidos,
depois disto emergirá âinda, mas já como uma aventura absolutamente todos (não faltou
E todos os pederastas -
morta, o Álvaro de Campos disposto 'â sentir tudo de nenhum).
todas as maneiras". Nenhuma pirueta, nenhum sarcasmo, funilez çous avermelho e neglo no fundo-inferuo da ililililffi[[ffitffiffi
nenhuma provocação a frio o levantará dessa Noite onde minha alma!
antecipadamente se acolheu e ao abrigo da qual, como (Freddie, eu chamava-te Baby' poÍque tu eras louro, branco
r»rr,a féeríe shakespeariana vai desfrando as suas mais e euamava-te,
indiziveis revelaç ões- É na Passagenr. dos floras que o Eros princesas destronadas
Quantas imperatrizes por reinar e

ambíguo das sua adolescência ousa tomar frgura humana tu foste para miml)
e bem sábio será quem distinguir sob a máscara a reali- Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como
dade da frcção: sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos' quantas
famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos eo meu braço cingindo e a
rZ lbi"d minha consciência incerta,

200 20r
rt tlffit l

EDUAADO LOURENçO PBSSOA REVTSIT DO

más-
combates da sua alma nua, cada vez mais nuâ' sob as
caras. Os muros do labirinto tombam um a um' lica só
a
Mary, eu sou feliz...
arenâ de morte e nela, a um tempo, Teseu e Minotauro'
Freddie. eu sou feliz...'8
a realidade e a ficção, se dilâceram e se transfrguram'
Talvez náo haja nada mais confessional na sua obra toda Imprecação, pirueta, vómito, oração, Iágrimas' sarcasmo'
confessional sob tantâ máscâra que a desvenda, mas já sorriso, compÔem o "ballet" patético de umâ interminá
dissemos o que basta parâ reenviar à totalidade que é vel agonia que a si mesma se contempla e se espia Por
a poesia de Pessoa esta passâgem tão pouco e tâo imen veze; o jogo trágico passa tào perto da aresta mortal que
samente Álvâro de Campos. A máscara de "degenerado toda a vontade de ainda o ver como jogo desaparece e
superior sem arquivos nâ alma" não é, por mais gri- só fica lugar para uma escuta quase obscena do estertor
tânte, de transparência maior que as outras, mas também humano repercutindo sem mediador no nosso próprio e
não o é menos e seria um erro recusar com sinal de ver- anónimo abi.smo:
dade a sua mânifestaçào excessiva e acintosâmente pro-
Se te gueres matar,por que não te queres mâtar?
vocante. Se como ele tão bem o disse "o gue parece não
querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...", Ah, aproveita que eu, que tanto amo a morte e avida'

que não dirá aquilo gue pârece não dizer nada só por Se ousasse matar-me, tanüém me mataria"'

dizer de mais? No centro de Álvaro de Campos, como no Ah, se ousas, ousa!

de Caeiro, Reis ou Pessoa, há essa luz turva do seu mais


Íntimo segredo que tudo contaminâ de vazio e sombra, De que te serve o quadro sucessivo das imagen§ externas

ou a tudo oferece o espelho em mil bocados estilhaçâdo A gue chamamos o mundol

de consciência separada de si mesma por misterioso mas


não menos intenso sentimento de culpa. Talvez, matândo-te, o conheças frnalmente '

Em parte alguma Pessoa se ocultou menos que em Talvez, acabando, comeces...

Campos e em pârte alguma mais de si mesmo se dis- E, de qualquer forma, se te cansa seres'

tanciou, assumindo o mais próximo como diferente e Ah. cansa_te nobremente,

outro. É no espaço desta "falsa diferença", uma vez acal- E não cantes, como eu, a vida porbebedeira'

Não saúdes como eu a morte em literatura!


mado o tumulto e o impulso que durante algum tempo lhe
emprestou o máximo de realidade fictícia, que fatalmente
se tinham de desenrolar os mais agónicos e inexplicáveis Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguem faz falta: não Íazes falra a ninguêm'
Semti correrá tudo sem ti.
18 Iàü.. p.3o4.

203
202

r
EDUARDO I,OURINÇO PESSOA RIVISITADO

Talvez seja pior para outros existires que matares_te... Mesmo que estejas muito mais úvo além..-
Talvez peses mais durando, que deixando de durar. Depois a tráSica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o principio dâ mode dâ tua memóriâ.
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado Há primeiro emtodos um aliúo
De que te chorem? Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido
Descansa: pouco te chorarão... Depois a conversa aligeira se quotidianamente,
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, Ea úda de todos os dias retoma o seu dia...
Quando nâo são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
morte, Se queres matar-te, mata-te... llllllll
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros Não tenhas escúpulos morais, receios de inteligênciâ!
Que escúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Em nenhum poema Pessoa deixou um tâo amargo traço
da sua impiedosa visão da existência, em nenhum arran- Nào vês que não tens imporülcia absolutamente nenhuma?'o
cou com tão implacável lucidez a máscara idealizante
com
que de seus mais fundos terrores nos abrigamos e jamais Bem se compreende por dentro e fora a admiraçâo,
a fraternidade absoluta do seu corâção como nuncâ desmentida, de Pessoa porAntero. Ao seu deses-
coraçáo anó_
nimo dos homens encontrou tão certeiramente o ffitffiIIffitffiIilt
eco pero fundo e nobre, Pessoa âcrescentou â troça de ani-
universal onde, lendo-o, a nós mesmos nos lemos: mal ferido pelo absurdo puro da morte que é uma lógica
divina num universo sem traço dela. Ao menos do nosso
P meiro éa angústia, a surpresa da vinda lado, que é o lado onde estamos. Este esplendor no sar-
Do mistério e da falta da tua úda falada...
t!![!!fl!!!!!ü!!!ü
casmo é um dos pontos altos de Álvaro de Campos e inú
Depois o horror do caixão úsíyel e material. meros poemas lhe emprestam renovadas frguras sem o
E os homens de preto que exercem a profrssão
de estar ali. alterar na substância. Nesse poema de r9z6 não é arbi-
Depois a família a velar, inconsolável e contândo anedotas, trário ouvir mais do que o eco do acontecimento único
l,amentando a pena de teres morrido, que terá sido parâ o terno e magoado "menino de sua
E tu mera causa ocasional daquela carpidação, mãe" â recente morte de quem ocupou no cenário da
Tu verdadeiramentemorto, muito mais morto que calculas... sua vida o lugar capital. Do mesmo ano, o poema hisbon
Muito mais morto aqui que calculas, -&evisiôed ressuma a mesma "derelicção" total, a mesma

r9.làrd.,p.3r8
zo Ibd.,pp.3rB 3r9

204 205
-
ÉDUÀBDO I,OURENçO PISSOÂ REVlSITADO

o#andade metafisicâ de "estrangeiro aqui e em toda a {rgura se converte por uma últimâ metamorfose nâ figura
parte" na "cidade da sua infância payorosamente per- do inevitável e. de algum modo. do aceitável. E a sua tradu -
dida...". Não é senão muito le$timo pensar que é bem Nietzsche, do
ção da fórmula do trágico moderno segundo
menos essa "Lisboa com Tejo e tudo" que the provoca amor fatí, que diz "sim" ao destino antigo para lhe negar a
o sentimento de não ser o meEmo que aí viveu, do que opacidade inumana:
a imagem materna definitivamente perdida e, com ela
e nela, Fiz de mim o que nào soube,

E o que podia fazer de mim nào


-o fi2.
O espelho mágico em que (se) reúa idêntico'?' O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo Por quem não era e não desmenti' e

Averdade é que todos os poemas a partir dessa data têmum perdi me.
lado de sobrevivência e por vezes de agonia de si mesma
Quando quis tirar a máscara
cansada. Deles emerge como resumo mitico de Alvaro de Estava pegada à câra.
Campos, poeta dauniversal ilusão e porisso mesmo dilace-
rantemente âmadâ e interrogada, acaso o mais grandioso e Mas o Dono da Tabacâria chegou à porta e hcou à porta
memorável poema de Pessoa..4 Tabacaria. Todo o Ávaro de
Campos nele se concentra, guardando de todos os excessos Ele morrerá e eu morrerei.
o mais inapagável âroma e construindo com eles o templo Ele deixará a tabuleta. e eu deixarei versos.
sereno da ilusâo pura, unindo assim a estética da violência Acerta alturâ morrerá a tá.buleta tárnbém, e os verso§ taÍüém.
à estéticâ da ordem que nunca deixara de o fascinar. Com
{elicidade suma, Pessoa soube converter a simpática taba- Em outros satélites de outros sistemas qualquel coisa
caria da cidade terrestre e seu humilde dono no simlolo como Sente
mesmo do uniyerso e seu mistério, âo mesmo tempo eei- Continuará fazendo coisas como ver§os e vivendo por
dente e íncompreensível, real e ínacessíyel, conferindo assim baüo de coisas como tâbuletas,
um poder mitico à sua ângústia pessoal e ao mesmo tempo Sempre uma coisa defronte da outra,
ultrapassando-a (na medida do possivel...) por tm último Sempre uma coisa tão inútil como a outra'
sorríso de compreensão e aceitação infrnitas da mesma ilu- Sempre o impossivel tão esúpido como o real'
são. Ao fechar-se sobre si mesma parece abrir se do inte- Sempre o mistério do fundo tão ce.to como o sono de
rior para um espaço sem nome onde o absurdo de que é mistério da superfície,
Sempr" isto ou sempre oulrâ coisa ou nem u má coisa nem
lbid., p.32r outra.

206 202
XDÜÂRDO I,OURENÇO Pf,SSOÂ R'VI SITÁDO

os actos e acções desâguam, o máximo que a ilusâo nos


Mas um homem entrou na Túacaria (para comprar tabaco? ),
-
consente ler é esse sorriso do Dono da Tabacariâ. sorriso
Ea realidade plausível cai de repente em cimâ de mim. da ambiguidade suprema, â mesmâ que move a palavra
Semiergo me enérgico, convencido, humano, poétlca e promete idêntica morte à tabuleta e ao verso que
Evou tencionar escrever estes versos em que digo o con tenta ârrancá la ao nada a que ambos estão destinados.
-
trário. Estamos aqui no ámago da visào de Pessoa. E na sua
relação mais íntima com o poemâ que ele agoniza, é nele
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira que vive a dimensâo autêntica do seu drama que é, em
das calças?). todos os sentidos do termo, o d,a criaçdo. Como crer num
Ah, conàeço-o; é o Esteves sem metafísica. verbo que não vive de outra coisa que da impugnação
(O Dono daTabacaria chegou à porta.) ontológica da criaçâo? Como pode escapar o acto de escre
Como porum instinto diúno o Estevesvoltou seeúu-me. ,er ao processo de desconfrança que nele se instaura a
Acenou me adeus, grltei-lheAd,eus ó Esteçesl, e o universo respeito da "realidade do real"? Este processo de descon-
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, eo Dono da hança nào o é no sentido mallarmeano do termo, o qual
Tabacaria sorriu?2. supôe umâ espécie de ontologia do nada e consequente
poética dos múltiplos "não -seres" (inaníté sonore) que em
Na plenitude da suâ trajectória vemos melhor como e por- cada bibelot o poeta é capaz de perceber. Não há problema
q\ê Lo dlama eieo de Pessoa, Álvaro de Campos é o grande de pdgtna branca em Pessoa, mas de existência nula ou
d,iscípulo de Caeiro. Se Alberto Caeiro é o seu sonho de plena, como em Rimbaud. É o sentimento da sua existên-
ndo ter que suportar como consciência (quer d,ízer, conxo cul- ciâ, ora intoleravelmente nula, ora fabulosamente plena
pabilidad,e), identifrcando-se Natureza por "dentro"
à que articula a sua poesia mas nele se insere de maneira
(isto é sem interior...), Campos é a ficção da hipercons- indissolúvel a dialéctica da "nulidade" ou da "plenitude"
ciência, â suâ extenuação imaginária, o sonho de perder a do própriopoenr,a, enquânto âcto destinâdo justamente a
mesma consciência positiyâmente, ag.undo. Em suma, um conferir-lhe a ú\ica existêncía com sentido a seus olhos:
Caeiro actíço. Todavia é nele que o sentimento de irreali- a de criador.
dade original se aprofunda. pois a sua ocçdo nào e como Toda a sua vida Fernando Pessoa oscilou entre â con
a de Baudelaire la soeur du rêpe Írras a continua e irre- vicção quase delirante do seu génio poético e uma des-
denta supuração d a chaga d,avid,a. Pelo menos, da sua. No conÍrança iguâlmente mórbidâ em relação ao seu poder
estuário da inexistência ou do esquecimento onde todos criador. Todo o Álvaro de Campos é o teatro desse jogo
infernal - dessa interminável agoniâ de criâdor onde
22 /àid., pp.3z6 3:8. de émulo de'Whitman (já bem duvidoso de sê lo) passa

204 209
I
IDUABDO
- LOURENçO PESSOA RI]VI SITADO

a implausÍvel herdeiro de Vir$lio ou Milton, cumprindo abdica. Nas longas vigilias sem sono do mâis exigente dos
no plano da glória almejada o mesmo itinerário de íntimo sonlâdores só brilha a evidência do seu fracasso absoluto,
masoquismo que no plano erótico, o que não é de estra irreparável. De "materna", â noite yolveu-se "terrivel":
nàar, pois o nivel simbólico ecoâ o nível existencial.
A alternância de júbilo a respeito do seu destino poé- Na noite terrível, sústância nâtural de todas as noites,
- tico e de pânico à ideia de o não alcançar com a evidên- Na noite de insónia. substância natural de todas as minhas
tI t]ffi[LmI
cia soberana dos Shakespeare e dos Milton é a mesma das noites,
modulações de Eros na poesia consignadas, dele mesmo
sabidas ou não sabidas, navegando entre â pulsão positiva ReleÍüro, e uma angústia lri,
da sexualidade e o fantasma que desde dentro a rasura. Espalha se por mim todo como um frio do corpo ou um
Porque, no seu caso, Eros é particularmente ambíguo, o medo.
canto que o alude sem cessâr vem marcado desde a ori- O irreparável do meu passado - esse é que é o cadáver!

gem por análoga am-biguidade ao nível da simbolização. Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão"3.
Toda a simbolização tem uma história e, sobre-
A desistência é absoluta, eco algum do antigo "triunfa
ffimmmmmmmmmhililhililil
tudo, uma orientaçâo. À medida que Álvaro de Campos
se inclina pâra o seu fr- (que é o do Poeta) a simloliza- lismo" repercute no monótono balanço de uma existên-
ção perde a sua ambiguidâde aparente, a sua função polé- cia que não assumiu jamais máscarâ âlgumâ sem â colâr
mica. Fica apenas reduzida à sua verdade e nela se lê a à cara nem a retirou sem a deixar em sangue. Só a porta
forma pura de regresso ao enigma da sua vida "yirgemente cerrada parâ o lado de dentro, não do sonho mas do
parada". O humor agónico e sarcástico, ar falsamente Sono sem ele, lhe exige ainda um vago gesto interessâdo.
lúdico de um certo Âvaro de Campos, embora sempre Enquanto Álvaro de Campos a conclusào é "sucâtâ", ou
presentes até frnal, sâo invadidos pela obsessâo regres- em termos grandiosos dignos das antigas efusões da Ode
siva, maternal, dos temas do cansoço, da dnsónio e do sono. Marútima, 'deserto", dentro de si e da vida:
Não há nada de mais doloroso na sua poesia que o último
Álvaro de Campos. O poetâ tem uma consciência aguda do Grandes são os desertos e tudo é deserto
seu espaço humano defrnitivamente bloqueado, mas não
menos bloqueado lhe parece o próprio universo poético, Grandes são os deseúos e as almas desertas e grandes -
outrora ilusoriamente aberto, divergente, renovável. As Desertas porque não passa porelas senão elas mesmas,
suas pálpebras de insoníaco eterno requerem um sono Grandes porque dali se vê tudo e tudo morreu.
que tarda. O ântigo cantor da noite acolhedora e maternal
até dessa imâginária mão da 'tnfermeirâ antiquíssimâ" 23 làid.. p.333.

2 to 2ll
EDUÂRDO IOURENçO PESSOÁ Rf,VI SITÂDO

desesperada e autodestmtiva sem paralelo nos arquivos da


Grandes sào os desertos. minha alma! nossa alma resignada, e os poemas datados de 35, meses
Grandes sâo os desertos"4. apenas antes da sua morte. Só a diferença que há entre a
desesperaqão furiosa e o desespero resignado, nimbado de
Nos retratos imaginários (e todos os são) dos poetas ou
- uma luz póstuma, mais além do desespero. Em suma, a dis-
de toda a gente * umâ irreversível tentação de os dourar tância poucâ que sepâraum poema como:
em frm de aventura e üda aparece sempre. Pessoa-Campos
desencoraja esse tardio e conciliante olhar sobre o seu des- Graças a Deus que estou doido!
tino. Gaspar Simôes supôs que nâ r tima {ase da sua vida a Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
certeza do seu reconhecimento público poÍ parte da gera E, como cuspo atirado ao vento,
çào nova coloriu a sua existência de uma luz-outra, menos Me dispersou pela cara livre!
negra da que ensombrara o seu destino anterior. Exterior-
mente, esse "reconhecimento' teve sem dúvida o condão de Poesia transcendental, já a frz também!
anestesiar, em breves momentos, a lucidez amarga do olhar Grandes raptos liricos, também já por cá passaram!
que sempre pousou sobre si e o mundo. Mas há muito que Aorganização de poemas relativos à vastidão de cada
os dados haviam sido jogados no chão do destino. Nos poe assunto resolvido emvários -
rnâs, que é onde habita a sua única realidade e, em par- Também não é novidade.
ticular, nos mais nus e desarmados de Campos - nenhum
vestígio dessa consolação está presente. Não lhe façamos o
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim... ii
Teúo uma náusea, que se pudesse comer o universo para
consabido golpe de "Na mão de Deus" como a Antero, que o despejar na pia, comia o.
ao menos teve a sua conivência. Os poemas datados do ano Com esforço, mas era para bom fim.
da sua moÍe não deixam frltrar raio algum do gue em lin- Ao menos era para um frm.
guagem humaru se pode chamar "esperânçi'. Só os extre- E assim como sou não ten}lo nem {rm nemvida...15
ffiffiffiffiffiffiffiffi
mos da úolência nâuseante e da auto-acusação aparecem
diluídos. Mas nem isso é certo pois ignoramos se os âtro e o último datado de Álvaro de Campos, mancheia de
zes reptos à sua üda fracassada, a sua litania literalmente terra sobre si mesmo, defrnitivo e misericordioso apelo
agónicâ, pertencem tamlém à sua "ultima fase", expressão ao sono sem frm como possivel termo para uma vida que
que só talvez em cronologia guarda um vâgo sentido. Não bateu sem descanso e sem obter resposta contra o muro
há aliás incoerência alguma entre essas explosões de raiva impenetrável da existência:

z4 lbid.,p.347 25 Iàd., p.3Bo

212 2t3
I

NDUARDO TOURNNçO PTSSOA RTVISITADO

O sono que desce sobre mim, ciâdo ao uno d'esistiu do autêntico (e) é, conformad,amente
0 sono mental que desce Ílsicâmente sobre mim, o que ndo é. Escusado sublinhâr que toda a nossa leitura
O sono universal que desce individualmente sobre mim- supõe a convicçâo oposta. A poesia de Pessoa e mor-
Esse sono mente a sua histriónica e trágicâ (Campos), não enràíza
Parecerá aos outros o sono de dormir. numâ renúncia âo uno glosâda como puro diveflimento,
O sono da vontade de dormir, mas nâ suâ busca fervorosa e demente. Se assim não fosse
O sono de ser sono. em que radicaria o seu impacto inigualável? Campos é só
um canto ou uma contínuâ modulação de visceral angús
Mas é mais, mais de dentro, mais de cima: tia determinada pela ausência misteriosa e inaceitável da
É o sono da soma de todas as desilusõcs, unidade, maneira de buscar o contâcto com um funda-
É o sono da sintese de todas âs desesperangas, mento cuja presença poria frm ao seu sentimento de ine
É o sono de haver mundo comigo 1á dentro xistência, ou talvez melhor, ao seu sentimento de existir
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso26 com um excesso que tudo enegrece à sua volta. o tema
único de Campos é que os nossos sonhos são de deuses
É tentador frxar parâ sempre Pessoa na cruz sem reden- sem que haja em nós possibilidade alguma de cumprir
ção que ele próprio descobriu ou plântou na sua pró o menor de entre eles. Mas não é um tema abstracto: o
pria alma. Em cada heterónimo brilha sempre a verdade sonho "divino" em que não ousa crer é o do seu destino
inteira do seu criâdor e em Campos com um fulgor mais de poeta:
negro e intimo que em nenhum outro. Mas brilha no seu
esfacelamento, particular e absoluta âo mesmo tempo, Génio? Neste momento
mentira se a tomamos como absoluta mas verdade se Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
como pârticulâr â âssumimos. Tem sobrada razão Jacinto Ea história não marcará, quem sabe?, nem um,
do Prado Coelho em escrever que aquilo que ele châma Nemhaverá senão estrume de tantas conguistas futuras.
"o culto do múltiplo" nâo é em Pessoa "sinâl de confiançâ Não, não creio em mim"?.
construtiva". Mas já é menos crucial resumir uma aven-
turâ que se trâduziu nos mâis pungentes poemas da lín- A desconfrança ontológica que brotou nele de inextricá-
gua poÍuguesa falando a seu respeito d.e compensaçdo, veis raízes é antes de tudo desconfiançâ íntima, incapâ
"dívertímento", jogo no çazio. Se lhe chama "doente incu- cidade de aceitar que existe uma passagem entre o seu
rável do absoluto" é para sublinhar que tendo renun- sonho de criador e a sua criâção. O que permite o nobre

26 lhíd., p.366 27 Ibü1.-, p- 32tr-

274 215
E
XDUÂRDO LOUBXNçO

jogo da cultura nele está morto: â tudo o que más-


é a sua
cara, religião,moral, estética, Pessoa exigiu os títulos de
existência e gldria e nào os achou. E no mais simples sen
B
tido da expressão um margínal, um habitante do deserto
que cresce quando as ilusões que permitem viver nau- A EXISTÊNCIA MÍTICA
fragam. É està nud,ez abmpta que muitos âcham intole OU A PORTA ABERTA
rável e puro niilismo grâtuito ou injustifrcável. Mas é por
ela e nela que o amâm os que vêem nessa nudez a forma
0 Segredo do Busca e que nõo se acho.
supremâ e nunca mais ultrapassada em nossas letras da
recusa da frgura do mundo, da história e da existênciâ tâl Flusro

como um homem da primeira metade do nosso século,


profeta e lúcido, a ressentiu em sua carne e seu espirito. Des4o set unl críador d,e mítos, que é o místéio maís
aho qwe pod,e obrar alguém na humanid,ad,e.
Prsso,c.

Mos como, aquí, a porta aberta?


Prsso,r

Nem na ordem estética nem na ordem mais impor-


tânte dâ existência a frcção heteronimica se revelou uma
soluçdo. Têm pois razão os que nela viram como Gaspar
Simôes, Jacinto do Prado Coelho e sobretudo Mário Sacra-
mento mais a maneira de diferir para sempre a di{rculdade
nuclear que a suscitou do que a maneira de lhe pôr termo.
Simplesmente, com o surgimento da heteronimia e a sua
perpetuação essa diÍrculdade mudou de sentido. As qua-
tro clivagens fundamentais da sua existência ideal perma-
necerão para sempre separad,as umas das outras, e é inútil
buscar na sua impossível soma 'ã unidade" que não podem
constituir. Mas essa "sepâraçáo" possui uma lei interna,

2\'.X
216

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