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ÁIvaRo DE CAMPoS II
ou A AGoNTA ERósrRaro PESSoA
IA3
EDUÂf,DO LOUAEI{çO PESSOA REVlSITADO
Iusão davivência quotidiana, da prosa da sua vida sem ela, se fragmentam ou se rePetem numa obsessão de bebedeira
se escoâ em imagens. Ao contrário, é da consideração dos Levarei amanhã a pensar em dePois de amanhà,
acontecimentos ou objectos mais banais (constipâção, Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não po§so
aniversário, dobrada à moda do Porto) que a imaginação nunca §er.
ilumina de mâneira insólita, que decorre uma espécie de Só depois de amanha...
meditâção metafísica verti6inosa mas sensivel, e com ela, Tenho sono como o frio de um cão vadio
a mais alta poesia. É a sua descida sem venda nâ almâ âo Tenho muito sono.
goufre baudelairiano conyertido em tonel das Danaides, Amanhã te direi as palar, as' ou depois de âmanhã '
e só não e o seu agónico coeur fiLis a nu porque nem aqui, Sim, talvez só depois de amanhã.-.
onde tão brxtalmente se desvenda, nos dá o direito de o
âssimilar d ,orolidode de Fernando Pessoa. O porvir...
Se pomos de parte o Fouslo, escalpelizâção ou autoü- Sim, o porvir'
vissecação poética sem igual, Campos é o Pessoa mais nu,
deixando correr à solta a torrente de angústia que o sufoca, A expressão cÍuâ, despida mesma da mediâçâo de todo o
fazendo o processo da sua abulia, outorgando lhe uma humor ou jogo âo nível do imaginário, do mesmo com-
dimensâo de fábula, dilacerando-se com um pâtetismo bate da existência irreal pela sua realidade, das polo
e uma raiva dementes, em sumâ, eleyando ao sentimento vros em busca de um sentido mais crivel que aquele que
da sua existência (e da existência em geral) como absurdo the damos. não se encontrâ t Ál't r.o de Campos Pes-
"t ffiffiffiffiffiffiffi1
râdical, a única epopeia que a poesia moderna pode con- soa confiou-o, como dissemos, âo "poema dramático'
ceber, uma epopeia do negativo e da negação. Se alguma Fousto, materialização sem máscara de todos os seus fra
vez o inferno da sújectiúdade, a infelicidade orgânica da cassos, incluindo o dolornr,o submetida à última violência
conscíêncía isolada e solitaia, foi descrita com génio, nos de uma interrogação voluntadâmente situada nos limites
poemas mais desesperados da língua portuguesa (e por- da interrogação humana. Aí arranca todas as máscaras e
ventura do século) o podemos comprovar. Desespero capaz interroga até perder o sentido da própria interro8âqão'
de se ver como desespero, de se transformar no seu pró- O resultado situa se num domínio em que o projecto
prio palhaço, de se assobiar, de se crucifrcar, de se negar, habitual da poesio naufraga. mas sem â compreensâo
sem outro resultado que o de se aprofundar em silêncio até
ür morrer nas palawas que por impotência se suspendem, O. P. p.33t
I84 r85
EDUARDO LOURENçO ?rsso^ REvlslr,{Do
necessáriâ deste naufrágio é o mundo interior de Pes Mâs este "horror" mesmo, exactamente porque como
soa que nos escapa. Esse FausÍo sem outra Margarida que "horror" se manifesta testemunhâ contra si mesmo,
um simples "desdobramento" de si mesmo e de novo suscita a sua própria negaçâo que não é outra coisa em
tocamos aqui, sem dúvida, o fundo da questão, no sentido frgura humana da consciência, do que Pessoa-Rosacruz:
humano do termo é o falso diálogo, desde sempre sem
- o nxúndo como inealid,ad'e orígínal. Uma di{erenqa capital
saÍda, de uma "consciência" confrontada com os dâdos separa, porém,.Fousro de Pessoa-Rosacruz: â perspec-
bnrtos do enigma I por que eriste algo em vez d,e nad,a?: tivâ ocultista é, embora no desmascâÍamento sem fim
çe lhe é prôprio (também a Deus a verdade lhe morreu),
Mais que a existência o que de mais próximo está da fé perdida da sua infân
É um mistério o existir, o ser, o haver ciâ enquanto ambas são forma de Presença (e salvação)
Um ser, uma existência, um existir diante da Transcendência. Mas â consciência de irrea-
Um qualquer que não este, por ser este
- lidade do mundo para lousro não abre pâra esse esPaço
Este é o problema que perturba mais. transfrgurante onde o neófito verifrca que ndo hd morte
O que é existir nào nds ou o mundo eéo tgal terminando assim para ele a pro-
dos deuses,
Mas existir em si?'? vação e a prova. Ao contrário, a supremâ realidade não o
âpavorâ menos que a opâcidade impenetrável do Mundo,
Fausto é o pólo oposto (um dos dois pólos, sendo o outro o seu aparente não-sentido ou a hipótese mesmâ do seu
Pessoa-Rosacruz) de Caeiro, o que quer dizer sem- sentido perfelto. Que o mundo seja ilusão menos o con-
pre, o lugar mesmo do mais profundo diálogo com ele. frange que â hipótese de perdê-la e de se encontrâr um
A'ãusência de Mistério", em cujo horizonte se perfrla o dia face a face corn a suo' Verd,ade. Exactâmente como
rllto silencioso e miticamente calmo de Caeiro. é a forma Ricardo Reis:
suprema do Mistério:
Basta serbreve e transitória a vida
Ah, que diversidade Para ser sonho. A mim, como a quem sonha'
E tudo sendo. O mistério do mundo. E escuramente pesa a certa mágoâ
O íntimo, horroroso, desolado, De ter que despertar- a mim, a moÍte,
2 Iàd.. p.43r
3 lóid.. p.43, + lbid.. p.434
ta6 l8?
),
EDUARDO LOÚNTNçO Pf,SSOÂ §EV]SITÂDO
mais indiscutiveis do universo de Pessoa qlue no Magní' Para a loucura a tenebrosa Por1a,
treva é menos negra que esta luz
f,co lhe deu uma expressâo admirável. Aquele que como Que a
6 kíd.,p. trzg
S kíd.. 7 kid.
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!
?DUARDO LOUNINçO PESSOÂ RXVISIT^DO
Meu ser de desterrado vos odeia! mas tâmbém o já mais próximo de Rimbaud do déràgle
Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro, nxent de tous les sens e o sonho de se converter numa
Pregado na cruz ignea de mim mesmo, "ópera fantástica". Somente o seu deboche libertador
Sou o saber que ignora, não tem lugar ao nível dos "sentidos" nem mesmo das
Sou a insónia da dor e do pensar-.-8 "sensaçôes", como os exegetas do seu "sensacionismo"
tomado demasiado a sério têm tendência a descrevê-lo.
Tal é o limite pâra que tende também a poesia de Alvaro É só um frio deboche do imaginário como já vimos. As
de Campos, iniciada sob o signo lüertador e a paixão pela suas explosões, a sua histeria calculada e verdadeira têm
diversidade das coisas, de Walt Whitman... Felizmente, no próprio poema o seu contrapeso. A energia imitada
Álvaro de Campos eüta este pâroxismo desincarnado por para cantâr certos aspectos da civilizaçáo moderna, apa-
uma espécie de hurnor mais ou menos negro mas real, por rente canto da mão direita de directa ressonância whit-
umâ ironiâ transcendente ou em filigranâ, por uma raiva maniana é corroída na origem pelo acompanhamento
até mas não tão ústracta como no Iousio, elevando assim ao irónico da mão esquerda, eco da fadiga metafÍsica de Pes
seu mais alto pont o a tragrcomédia da íntelígêncta e d,a sen si soa, já de regresso de todâs âs viagens' De regresso de
bilÍdode, a braços com âs contradições da üda e delas mes tudo, na medida em que não é nínguém (sendo superla-
mas. verdadeiramente incompârável. Alraves de Álvaro de tivâmente a consciência disso) e em que ninguém pode I
Campos, Pessoa oferece-se em comédia a tragédia da sua colmatar essa "ausência de realidade" que é a seus pró
prios olhos. Em r9r5 e 16 o que chocou foi a histeriza-
glâcial solitude e em trâgédia a comicidade dolorosa de
uma existência que nâo encontra, em parte alguma nem çào do grito. o delirio das imâgens. e viu
-se num poema
lll
em nada, remédio contÍa â ângústia fria que a devasta. Sob vâsto como o mar uma simples prorocoçrio vanguardista,
a sua primeira manifestação euforizante fora o voto desvai- uma vontade de escândalo e um canto primário de exal
rado e lúcido de "sertudo emtodas as coisas", de com elas se tação da üda moderna. Não se viu, nem era entâo possí
unir até ao delírio para se esquecer de si, esposando num só vel ver nele, a epopeia do fracasso mascarado em viagem
ffiffiffitilffitiffi1
abraço a incrível confusão da üda e todas as suas contradi- imaginária, barco bêbado da só bebedeira da alma. A voz
ções. É em termos de exterior cruzada walt-whitmaniâna- que fala na Ode Marírúrno surge pârtilhada entre a vontade
-marinetista o mais antigo programa de Baudelaire de ser de ser como os ântiSos marinheiros, vidas que crêem no
mundo e se perdem alegre e ferozmente nas suas águâs
La plaie et le couteau profundas e o sonho parado do anónimo correspondente
la çíctine et le bourreau comercial caido do céu da cultura e da adolescência via-
jante e exótica na "capital d'olvido" estagnada em rotinâ
I làid.. p.41o
e pasmo, que é a Lisboa onde Pessoa e seus amigos se
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EDÜARDO LOUAENÇO PESSOÂ Rf,VI SITADO
consomem à volta dâ etemâ mesa do câfé. Dos mortos Assim num lento e doloroso refluir, apagando um a um os
sonhos imperiais que navio algum, entrando no porto traços da sua âyentura sentada, se termina a hora da fic-
cheio de sol onde ainda estão as nâus para "os que vêem tícia e funda exaltaçào, para a quâl, "o homem e a hora"
em tudo o que lá não está", pode ressuscitar, só a nostalgia sendo um só, Pessoa havia criado, em toda a sua pleni-
deles feita alma, transmudada em saudade dilacerante do tude, Ávaro de Câmpos. Do espasmo não ficârá mais que
inacessível, encârnâ com uma sorte de absoluta perfeição a ressaca, o mârulhâr glauco de águas represas âtravés
no pequeno naüo que sai a barra da vida, enfrentando do qual Ávaro de Campos se sobreürá a si mesmo como
"humilde e natural" a bruma do destino jamais dissipada "um fósforo frio". Mas é na escuta desse canto de trevas
para aquele que um dia ousou frtá-la: ainda banhado do vento do largo e da sua luz oceânica que
se apercebe em todâ â sua fascinação o negro esplendor
Passa,lento vapor, passa e não fiques da poesia de Fernando Pessoa. Sem cansâço, o câsuâl -
vida inútil no meio de uma Lisboa sem febre de alma se
Perde te no longe, no Longe, bruma de Deus, transfigura em matéria eterna. A medida que envelhece,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me... ou antes, que se afastâ dessa âdolescência vertiginosâ em
Eu quem sou para que chore e interrogue? que se sonhou "todos os Césares", a sua poesia cobre-se
Eu quem sou para que te fale e ame? de sombras, as suas nostalgias tomam a cor da revolta e a
Eu quem sou para que me perturbe ver te? revolta, contra si mesmâ, se quebra em náusea extrema.
iltflflffiffiffiffiffit
Inúteis serâo todos os sursu,nr, corda que a si mesmo ende-
Parte, deüa-me, torna te reça aindâ próximo dessa orlâ marítima do sonho exte-
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido. nuâdo. Mâs eles desvendam e desfibram o último sentido tiffitiffiffiffiffiL
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto, da dispersào hiperbólica de Álvaro de Campos e situâm
Depois ponto vago no hodzonte (ó minla angústia!), na sua luz verdadeira o "sensâcionismo" anedótico que
Ponto cada vez mais vago no horizonte..., ele mesmo, um dia, colou à suâ pele. ffiffiffiffiffiffiffi1
Nada depois, e só eu e a minÀa tristeza, A sua verdade é a de Caeiro às avessas: "ser tudo de
E a grande cidade agora cheia de sol todas as maneiras" como forma de regresso a esse todo
tl Ea hora real e nua como um caisjá sem navios, fabulosamente disperso que Caeiro frnge aceitâr na sua
Eo giro lento do guindaste que, como um compasso que glra, diferença apaziguânte e sem mistério para poder preser-
Traça um semicírculo de não sei que emoção var a sua tranquila e imortal diferenqa. Só a multiplici-
No silêncio comovido da minlalma...9 dade pura é súsistente pârâ Pessoâ-Caeiro. Só a unidade
pura é real para Pessoa-Campos. Na verdade, um e outro
9 lbid.!p.293 vivem do que negam e por essâ negação se identifrcam na
L92 t 93
LoüRnNço PXSSOÂ RXVISITÂDO
t94 79É
T I I l l
imobilizado e impotente overte em Alvaro de Campos, na onde habita. É aqui que pela primeiravez se ouve com umâ
tentativâ de antemão gorada de livrar-se de si e de ser o nitidez que não enganâ o antiquíssimo resumo trágico da
"análogo de Deus": experiênciâ humâna, de Esquilo â Job":
Quanto mais eu sinta, quanto mâis eu sinta comovárias Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei
pessoas,
Experimentei mais sensações que todas as sensações que
O inverso d,esta Quête ultima de unidade e unificação com Não sei se avida é pouco ou de mais para mim.
o que não tem nome, já escondida do àmago d.a Ode Tiun- Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
e da )d,e Marítima, d uma abulia original, massa oceâ Se me falta escúpulo espiritual, ponto-de-âPoio nâ inte-
fal
nica que nenhuma vaga de fundo poderá abolir ou deslocar ligência,
duradoiramente. É já o seu espectro poderoso, mas ainda Consanguin idade com o mlslerio dâs coisâs..
quente de todos os sonhos plausiveis que domina um dos
mais complexos e importantes poemas de Pessoa-Campos, Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz'
A Passogem d,as Horos de 1916. O excesso que a irrupção de
Âvaro de Campos traduz determinou duas reacções anta- Seja o que for, era melhor não ter nascido,
gónicas e simétdcas: Chuva Oblíqua e Passagern d,as Horas. Porque de tão interessânte que é atodos os momentos,
Em Chuva Oblíqua Pessoâ tenta recuperar-se em vão sobre Àvida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a mnger,
Âvaro de Campos emigrando para o mais recente de si Adarvontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão,
esse interseccionismo aplicado de onde, em parte, Cam- de sair
pos nascerá. Em Passagem d,as Horos a ruptura é assumida Para fora de todas as casas, de todas as lógcas e de todas
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I
]-OURENÇO Pf,SSOÀ RÉVI SITADO
XDUÁRDO
do mundo:
Amei e odiei como toda a gente,
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo'
E para mim {oi sempre â excepção, o choque' a válrula' o
Whitman, defrnitivamente, o Cesário do cair da noite, Vem. ó norte. e âPaga-me. vem e afogamêemli I
dos sonhos imóveis: Ó carinhosa doAlém, senhorâ do luto infinito,
Mágoa externa daTerra, choro silencroso do Mundo
Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui se. Mãe suave e anti8a das emoções sem gesto'
Seja de que maneira for é preciso continuar aviver. Irmã mais velha, virgem e triste, das ideiâs sem nexo'
Arde-me a alma como se fosse uma mão, hsicamente Noiva esperando sempre os nossos Propósitos incompletos'
Adirecçào constantemente abandonada do nosso destino'
[...] Eu sou o que sempre quer partir. A nossa incerteza pagà sem aleg a'
E fica sempre, Írca sempre, Írca sempre, Anossa fraqueza cristã sem fé,
Até à noite fica, mesmo que parta, frca, frca, Írca...'5 O nossobudismo inerte, semamorpela§ coisas nemêrtases'
Ànossa febre, a nossapalidez, a nossa impaciência de
E neste mârâsmo mortal que se recorta, como apelo fracos,
ângustiado e inútil, a primeira das suas grandes litanias Anossavida, ó mãe, anossa perdidavida'6
à noite, a essa noite ao mesmo tempo física, moral, meta
física que nele encontrou porventura o mais frlial ado Esta primeira grande aparição da noite não tem o perfrl
rador, a mais âmânte emânâção do seu ser maternâl e sumptuoso e a magnificência cósmica da noite invocada
dissolvente: no inesquecivel "fragmento de Ode", mas nela ressoa a
mesma con{]ssào e se articulam os mesmos temas: noite e
mãe, regresso à inconsciência regeneradorâ e apaziguante,
r4 Ibíd.
'p 30r
16 lbid., p.3o2
r5 tbíd.
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EDUARDO LOU R»NçO PESSOA RIVISITADO
fuga da vida como dor essencial, remédio mais eficaz que Multipliquei-me, para me sentir'
as plurais fés que outrora foram sangue da alma e já não Para me sentir, precisei sentirtudo,
encontram hoje alma para o antigo sangue que neias cor Transbordei. não hz senão extravasar-me'
ria. É como marginal da üda, como incapaz de ressentir Despi-me, entreguei-me,
çalquer coisa "vinda directamente da natureza" para ele E há em cada canto da minha alÍra um altar a um deus
que implora, criança absoluta, as mãos da úsoluta noite: diferente.
Por isso sê para mim materna, ó noite tranquila... Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente
Tu. que tiras o mundo ao mundo. tu que és a pâ2. feminino.
Tu que nâo existes, que és só a ausência da luz, E eu só de pensar nis§o desmaiei entre músculos supostos'
Tu que não és umâ coisa, um lugar, uma essência, uma vida, Foram dados na minlu boca os beijos de todos os encontros,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão, Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Circe irreal dos febris, dos angustiados aem causa, Todos os chamamentos obscenos de ge§tos e olhares
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos, Batem me em cheio em todo o corpo com sede nos
E sê frescor e aliyio, ó noite, sobre a minha fronte.-.'? centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de parte' todos os
É só por frdelidade ao seu "sensacionismo" de mârca que como que esquecidos,
depois disto emergirá âinda, mas já como uma aventura absolutamente todos (não faltou
E todos os pederastas -
morta, o Álvaro de Campos disposto 'â sentir tudo de nenhum).
todas as maneiras". Nenhuma pirueta, nenhum sarcasmo, funilez çous avermelho e neglo no fundo-inferuo da ililililffi[[ffitffiffi
nenhuma provocação a frio o levantará dessa Noite onde minha alma!
antecipadamente se acolheu e ao abrigo da qual, como (Freddie, eu chamava-te Baby' poÍque tu eras louro, branco
r»rr,a féeríe shakespeariana vai desfrando as suas mais e euamava-te,
indiziveis revelaç ões- É na Passagenr. dos floras que o Eros princesas destronadas
Quantas imperatrizes por reinar e
ambíguo das sua adolescência ousa tomar frgura humana tu foste para miml)
e bem sábio será quem distinguir sob a máscara a reali- Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como
dade da frcção: sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos' quantas
famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos eo meu braço cingindo e a
rZ lbi"d minha consciência incerta,
200 20r
rt tlffit l
más-
combates da sua alma nua, cada vez mais nuâ' sob as
caras. Os muros do labirinto tombam um a um' lica só
a
Mary, eu sou feliz...
arenâ de morte e nela, a um tempo, Teseu e Minotauro'
Freddie. eu sou feliz...'8
a realidade e a ficção, se dilâceram e se transfrguram'
Talvez náo haja nada mais confessional na sua obra toda Imprecação, pirueta, vómito, oração, Iágrimas' sarcasmo'
confessional sob tantâ máscâra que a desvenda, mas já sorriso, compÔem o "ballet" patético de umâ interminá
dissemos o que basta parâ reenviar à totalidade que é vel agonia que a si mesma se contempla e se espia Por
a poesia de Pessoa esta passâgem tão pouco e tâo imen veze; o jogo trágico passa tào perto da aresta mortal que
samente Álvâro de Campos. A máscara de "degenerado toda a vontade de ainda o ver como jogo desaparece e
superior sem arquivos nâ alma" não é, por mais gri- só fica lugar para uma escuta quase obscena do estertor
tânte, de transparência maior que as outras, mas também humano repercutindo sem mediador no nosso próprio e
não o é menos e seria um erro recusar com sinal de ver- anónimo abi.smo:
dade a sua mânifestaçào excessiva e acintosâmente pro-
Se te gueres matar,por que não te queres mâtar?
vocante. Se como ele tão bem o disse "o gue parece não
querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...", Ah, aproveita que eu, que tanto amo a morte e avida'
que não dirá aquilo gue pârece não dizer nada só por Se ousasse matar-me, tanüém me mataria"'
Campos e em pârte alguma mais de si mesmo se dis- E, de qualquer forma, se te cansa seres'
outro. É no espaço desta "falsa diferença", uma vez acal- E não cantes, como eu, a vida porbebedeira'
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r
EDUARDO I,OURINÇO PESSOA RIVISITADO
Talvez seja pior para outros existires que matares_te... Mesmo que estejas muito mais úvo além..-
Talvez peses mais durando, que deixando de durar. Depois a tráSica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o principio dâ mode dâ tua memóriâ.
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado Há primeiro emtodos um aliúo
De que te chorem? Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido
Descansa: pouco te chorarão... Depois a conversa aligeira se quotidianamente,
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, Ea úda de todos os dias retoma o seu dia...
Quando nâo são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
morte, Se queres matar-te, mata-te... llllllll
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros Não tenhas escúpulos morais, receios de inteligênciâ!
Que escúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Em nenhum poema Pessoa deixou um tâo amargo traço
da sua impiedosa visão da existência, em nenhum arran- Nào vês que não tens imporülcia absolutamente nenhuma?'o
cou com tão implacável lucidez a máscara idealizante
com
que de seus mais fundos terrores nos abrigamos e jamais Bem se compreende por dentro e fora a admiraçâo,
a fraternidade absoluta do seu corâção como nuncâ desmentida, de Pessoa porAntero. Ao seu deses-
coraçáo anó_
nimo dos homens encontrou tão certeiramente o ffitffiIIffitffiIilt
eco pero fundo e nobre, Pessoa âcrescentou â troça de ani-
universal onde, lendo-o, a nós mesmos nos lemos: mal ferido pelo absurdo puro da morte que é uma lógica
divina num universo sem traço dela. Ao menos do nosso
P meiro éa angústia, a surpresa da vinda lado, que é o lado onde estamos. Este esplendor no sar-
Do mistério e da falta da tua úda falada...
t!![!!fl!!!!!ü!!!ü
casmo é um dos pontos altos de Álvaro de Campos e inú
Depois o horror do caixão úsíyel e material. meros poemas lhe emprestam renovadas frguras sem o
E os homens de preto que exercem a profrssão
de estar ali. alterar na substância. Nesse poema de r9z6 não é arbi-
Depois a família a velar, inconsolável e contândo anedotas, trário ouvir mais do que o eco do acontecimento único
l,amentando a pena de teres morrido, que terá sido parâ o terno e magoado "menino de sua
E tu mera causa ocasional daquela carpidação, mãe" â recente morte de quem ocupou no cenário da
Tu verdadeiramentemorto, muito mais morto que calculas... sua vida o lugar capital. Do mesmo ano, o poema hisbon
Muito mais morto aqui que calculas, -&evisiôed ressuma a mesma "derelicção" total, a mesma
r9.làrd.,p.3r8
zo Ibd.,pp.3rB 3r9
204 205
-
ÉDUÀBDO I,OURENçO PISSOÂ REVlSITADO
o#andade metafisicâ de "estrangeiro aqui e em toda a {rgura se converte por uma últimâ metamorfose nâ figura
parte" na "cidade da sua infância payorosamente per- do inevitável e. de algum modo. do aceitável. E a sua tradu -
dida...". Não é senão muito le$timo pensar que é bem Nietzsche, do
ção da fórmula do trágico moderno segundo
menos essa "Lisboa com Tejo e tudo" que the provoca amor fatí, que diz "sim" ao destino antigo para lhe negar a
o sentimento de não ser o meEmo que aí viveu, do que opacidade inumana:
a imagem materna definitivamente perdida e, com ela
e nela, Fiz de mim o que nào soube,
Averdade é que todos os poemas a partir dessa data têmum perdi me.
lado de sobrevivência e por vezes de agonia de si mesma
Quando quis tirar a máscara
cansada. Deles emerge como resumo mitico de Alvaro de Estava pegada à câra.
Campos, poeta dauniversal ilusão e porisso mesmo dilace-
rantemente âmadâ e interrogada, acaso o mais grandioso e Mas o Dono da Tabacâria chegou à porta e hcou à porta
memorável poema de Pessoa..4 Tabacaria. Todo o Ávaro de
Campos nele se concentra, guardando de todos os excessos Ele morrerá e eu morrerei.
o mais inapagável âroma e construindo com eles o templo Ele deixará a tabuleta. e eu deixarei versos.
sereno da ilusâo pura, unindo assim a estética da violência Acerta alturâ morrerá a tá.buleta tárnbém, e os verso§ taÍüém.
à estéticâ da ordem que nunca deixara de o fascinar. Com
{elicidade suma, Pessoa soube converter a simpática taba- Em outros satélites de outros sistemas qualquel coisa
caria da cidade terrestre e seu humilde dono no simlolo como Sente
mesmo do uniyerso e seu mistério, âo mesmo tempo eei- Continuará fazendo coisas como ver§os e vivendo por
dente e íncompreensível, real e ínacessíyel, conferindo assim baüo de coisas como tâbuletas,
um poder mitico à sua ângústia pessoal e ao mesmo tempo Sempre uma coisa defronte da outra,
ultrapassando-a (na medida do possivel...) por tm último Sempre uma coisa tão inútil como a outra'
sorríso de compreensão e aceitação infrnitas da mesma ilu- Sempre o impossivel tão esúpido como o real'
são. Ao fechar-se sobre si mesma parece abrir se do inte- Sempre o mistério do fundo tão ce.to como o sono de
rior para um espaço sem nome onde o absurdo de que é mistério da superfície,
Sempr" isto ou sempre oulrâ coisa ou nem u má coisa nem
lbid., p.32r outra.
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XDÜÂRDO I,OURENÇO Pf,SSOÂ R'VI SITÁDO
204 209
I
IDUABDO
- LOURENçO PESSOA RI]VI SITADO
a implausÍvel herdeiro de Vir$lio ou Milton, cumprindo abdica. Nas longas vigilias sem sono do mâis exigente dos
no plano da glória almejada o mesmo itinerário de íntimo sonlâdores só brilha a evidência do seu fracasso absoluto,
masoquismo que no plano erótico, o que não é de estra irreparável. De "materna", â noite yolveu-se "terrivel":
nàar, pois o nivel simbólico ecoâ o nível existencial.
A alternância de júbilo a respeito do seu destino poé- Na noite terrível, sústância nâtural de todas as noites,
- tico e de pânico à ideia de o não alcançar com a evidên- Na noite de insónia. substância natural de todas as minhas
tI t]ffi[LmI
cia soberana dos Shakespeare e dos Milton é a mesma das noites,
modulações de Eros na poesia consignadas, dele mesmo
sabidas ou não sabidas, navegando entre â pulsão positiva ReleÍüro, e uma angústia lri,
da sexualidade e o fantasma que desde dentro a rasura. Espalha se por mim todo como um frio do corpo ou um
Porque, no seu caso, Eros é particularmente ambíguo, o medo.
canto que o alude sem cessâr vem marcado desde a ori- O irreparável do meu passado - esse é que é o cadáver!
gem por análoga am-biguidade ao nível da simbolização. Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão"3.
Toda a simbolização tem uma história e, sobre-
A desistência é absoluta, eco algum do antigo "triunfa
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tudo, uma orientaçâo. À medida que Álvaro de Campos
se inclina pâra o seu fr- (que é o do Poeta) a simloliza- lismo" repercute no monótono balanço de uma existên-
ção perde a sua ambiguidâde aparente, a sua função polé- cia que não assumiu jamais máscarâ âlgumâ sem â colâr
mica. Fica apenas reduzida à sua verdade e nela se lê a à cara nem a retirou sem a deixar em sangue. Só a porta
forma pura de regresso ao enigma da sua vida "yirgemente cerrada parâ o lado de dentro, não do sonho mas do
parada". O humor agónico e sarcástico, ar falsamente Sono sem ele, lhe exige ainda um vago gesto interessâdo.
lúdico de um certo Âvaro de Campos, embora sempre Enquanto Álvaro de Campos a conclusào é "sucâtâ", ou
presentes até frnal, sâo invadidos pela obsessâo regres- em termos grandiosos dignos das antigas efusões da Ode
siva, maternal, dos temas do cansoço, da dnsónio e do sono. Marútima, 'deserto", dentro de si e da vida:
Não há nada de mais doloroso na sua poesia que o último
Álvaro de Campos. O poetâ tem uma consciência aguda do Grandes são os desertos e tudo é deserto
seu espaço humano defrnitivamente bloqueado, mas não
menos bloqueado lhe parece o próprio universo poético, Grandes são os deseúos e as almas desertas e grandes -
outrora ilusoriamente aberto, divergente, renovável. As Desertas porque não passa porelas senão elas mesmas,
suas pálpebras de insoníaco eterno requerem um sono Grandes porque dali se vê tudo e tudo morreu.
que tarda. O ântigo cantor da noite acolhedora e maternal
até dessa imâginária mão da 'tnfermeirâ antiquíssimâ" 23 làid.. p.333.
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EDUÂRDO IOURENçO PESSOÁ Rf,VI SITÂDO
212 2t3
I
O sono que desce sobre mim, ciâdo ao uno d'esistiu do autêntico (e) é, conformad,amente
0 sono mental que desce Ílsicâmente sobre mim, o que ndo é. Escusado sublinhâr que toda a nossa leitura
O sono universal que desce individualmente sobre mim- supõe a convicçâo oposta. A poesia de Pessoa e mor-
Esse sono mente a sua histriónica e trágicâ (Campos), não enràíza
Parecerá aos outros o sono de dormir. numâ renúncia âo uno glosâda como puro diveflimento,
O sono da vontade de dormir, mas nâ suâ busca fervorosa e demente. Se assim não fosse
O sono de ser sono. em que radicaria o seu impacto inigualável? Campos é só
um canto ou uma contínuâ modulação de visceral angús
Mas é mais, mais de dentro, mais de cima: tia determinada pela ausência misteriosa e inaceitável da
É o sono da soma de todas as desilusõcs, unidade, maneira de buscar o contâcto com um funda-
É o sono da sintese de todas âs desesperangas, mento cuja presença poria frm ao seu sentimento de ine
É o sono de haver mundo comigo 1á dentro xistência, ou talvez melhor, ao seu sentimento de existir
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso26 com um excesso que tudo enegrece à sua volta. o tema
único de Campos é que os nossos sonhos são de deuses
É tentador frxar parâ sempre Pessoa na cruz sem reden- sem que haja em nós possibilidade alguma de cumprir
ção que ele próprio descobriu ou plântou na sua pró o menor de entre eles. Mas não é um tema abstracto: o
pria alma. Em cada heterónimo brilha sempre a verdade sonho "divino" em que não ousa crer é o do seu destino
inteira do seu criâdor e em Campos com um fulgor mais de poeta:
negro e intimo que em nenhum outro. Mas brilha no seu
esfacelamento, particular e absoluta âo mesmo tempo, Génio? Neste momento
mentira se a tomamos como absoluta mas verdade se Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
como pârticulâr â âssumimos. Tem sobrada razão Jacinto Ea história não marcará, quem sabe?, nem um,
do Prado Coelho em escrever que aquilo que ele châma Nemhaverá senão estrume de tantas conguistas futuras.
"o culto do múltiplo" nâo é em Pessoa "sinâl de confiançâ Não, não creio em mim"?.
construtiva". Mas já é menos crucial resumir uma aven-
turâ que se trâduziu nos mâis pungentes poemas da lín- A desconfrança ontológica que brotou nele de inextricá-
gua poÍuguesa falando a seu respeito d.e compensaçdo, veis raízes é antes de tudo desconfiançâ íntima, incapâ
"dívertímento", jogo no çazio. Se lhe chama "doente incu- cidade de aceitar que existe uma passagem entre o seu
rável do absoluto" é para sublinhar que tendo renun- sonho de criador e a sua criâção. O que permite o nobre
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XDUÂRDO LOUBXNçO
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