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Álvrno DE cAMPos r
ou as RuoÁcres rtctÍcrls
DE ERos

0 pavor de uma conscíêrucía alheia


Como um d,eus a espreitar-me!
Prrurrno Flusro

Víl metafísica do horror d,a came


Med,o d,o amor.

Pnrurrno Fr.usro

Talvez muitos dos seus leitores fervorosos não suspei-


tem (bastando-lhe, e já basta, o imediato e melancólico
{ervor que ele lhes comunica) que a adesão profunda ao
universo de Campos é ao mesmo tempo paÍicipâçâo ins-
ciente no mistério que esse mesmo Campos expóe em
plena luz, para melhor se esconder dele. O ponto foi já
tocado, e em primeirâ mão, pelo seu único biógrafo, com
dedos que se estimaram grosseiros, com justifrcação apa-
rente, sem notar a lucidez que os moveu.
Simplesmente, ao "mistério de Eros"', como com pro-
priedade ioâo Gaspar Simôes o nomeou, convém lê-1o
e entendê-lo na Iuz mesma que nos textos claramente o
exprimem e denunciam. E, na medida do possível, sem

Vdà e Obru de Fema,,do P?.ssoa, 2.' vol., p. r SS. D$i8ná - la - emos poÍ v O.

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EDUARDO LOUÂ!NçO PESSOA ÀÉVISITADO

que o
ceder àtentação de suporgue â nossa leitura única inter- éa çar sobre a sua úda para se explicar melhor a obra
pretação indiscutível. Não há razão nenluma (salvo a do intrigava. Gesto supremamente freudiano, dirá o mais
aleatório ou nulo alcance estético dela) para que no escla inadvertido dos analistas, porventura lúcido e certeiro na
recimento de tal mistério se nâo recorra ao conhecimento recusa objectiva da imagem Particular que Caspar Simões
biográfico teltudlrnente controlável. Simplesmente, é raro lhe reenüava, ou do discutivel método de que se serviâ,
çe seja esse o caso das biograhas, sempre mais ou menos mas tipico do temor que um hipotético desvendamento
lacunares. Ora a de Pessoa é, quâse só, mau grado o gene lhe causaria. Mas não estâva no poder de Pessoa escapar
(e
roso esforço do seu exegeta, uma única e contínua lacuna ao império do autodesvendamento de que toda a criação
preenchida com as "informações" dos poemas biografr- toda a linguagem) é efectivo lugar. O seu câso o mostra com
camente lidas, o que é a perfeiçâo da biografia imaginária. um relevo inabituat. O seu entusiâsmo por Walt Whitman
Se a "fatal" biografra de Gaspar Simôes, ao frm e ao calo, não é exclusivo, nem mesmo essencialmente' de ordem
e descontadas as incongn-rências de detalhe que lhe foram Litetó,ría ov estétíca,, em sentido comum' se acâso tâl coisâ
apontadas, crio:u :uma imagem plausivel do Poeta, em volta existe. Foi um enconrro ao nivel mâis secreto, a descoberta
da qual mais ou menos todas se movem, é porque Gaspar de um herói que entre todas as realidades que defronta e
Simôes soube ler n os poeÍwl frngindo que lia na üda, o que canta, inclui a sua de "grande pederasta roçando-se con-
de facto lá está e à vida se reporta, embora comuma equivo- tra a diversidade das coisas". Por demais sabe Pessoa que
cidade e uma ironia de que na sua exegese há poucos traços. um tal exemplo de lüerdade e autolibertação lhe é inaces-
O seu instinto de romancista e crítico (sem falar de motivos sível e inadeçado, que jamais o assumirá na sua púprÍo
de outra ordem) bastou-lhe, nesse capítulo como em outros pessoo. Mas nâ sua inadequaçáo um tal exemplo fascina-o'
decisivos, para discernir a/olha ínnrut, do mundo de Pes- Walt Whitman é o seu Édipo, o gue pronunciou a palavra
soa. Mas nem a ele", nem a outros que dela se aperceberam, de um enigma análogo ao seu e pronunciando-a o con-
o seu conhecimento serviu para iluminar o processo con- dena líteraln'rcnte à. morte, como Édipo à Esfrnge. A esse
creto da produção poéticâ do autor da Ode Maríttrna, com desafro responde Pessoa, não com o desdobramento, seu
tanta eúdência expressa do famoso "mistério de Eros". reflexo hüitual, mâs com a sn hetercním,ía' Passando da
Com um gesto de condescendência, temperado de iro- encenação para uso privado, a pÍocesso de criâção estru-
nia e graça, Pessoa desüou de si o indiscreto olhar que turante súdetermirudo pela urgência espiritual (na ver-
a coberto de um freudismo esquemático, o jovem cri- dade de todas as ordens) de encontrar uma defesa, para
tico Gaspar Simões se atreverâ, nâo sem coragem, a lan- essa revelação çe o destruia tanto como libertava' O que
importa é, pois, apreender o conteúdo objectivo desta
2 Contrâriâmente à opinüo mais generàliada, nÂo é a interprÊtasão àrqrúi.o d€ l
parada que não é o de um heteronimismo indiferenciado,
G. Simõ€s o que há de realmentê disotivel ou inÂceitável na sua obra. Írâ6 06 6€u6 inu.
merávêisporripns de ord€mütiÍ'Ítit oü estüira (v. ítola F no f1m deste volum€, p. a5?) mas preciso e ínequíeoco, como preciso é o impulso mais

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XDUABDO LOUBENçO PX§SO^ ÀEVISITADO

profundo que o orgâniza. Esse impulso é de ordem.


erótíca soa ter la escolhido a metáfora "máquina" parâ através
e sufrcientemente avassalador para dominar o inteiro
sin_ dela plasmar a sua fingida e real exaltâção. A máquina é
tagma imagÍstico dos poemâs em que leva a cabo a
sua liber_ a er,teriorid,ade prrra, a irresponsabilidade pura juntâ à
taçã,o írreal, quer dizer, Campos. Na mole imensa
do cantor efrcácia suprema, o acto ideal sem sujeito (ou de sujeito
da vida liwe, da democracia, do trabalho, pessoa.TÊza_se
totâlmente fora dela...) e, â esse tihrlo, adequada como
(é o exacto termo psicanalítico) num
único ponto, deli_ nenhuma outra realidade âo "transporte" da sua irre-
rantemente fantasmado, e à sua yolta faz girar, em sentido
solução imaginariamente resolvida, forma exemplar de
frgrrrado e próprio, as máquinas poéticâs capitais gue
sâo eoo,r outro sem sair do mesmo sítio. Mas bem se importâ
a Ode Tríunfal, a Ode Maútíma e a Saud,açd,o. Esse ponto, Pessoa com a máquina real como, por exemplo, pode-
escusado será dizê-lo, é o da passiüdade erótica, cujas
mos supor que se importâva "caeiramente" com árvores
figuras sem cessar renovadas inundam esses poemas
até à e flores. A "máquina" esconde, ou está ao serviço de uma
insuportável obsessão. Com uma ingenuidade gue espanta,
outrâ metâforização mais essencial, â da suâ pulsão eró-
repete-se que esse primeiro Álvaro de Campos é o cantor
tica, que através das múltiplas "frguras" do imaginário
da máquina, da electricidade e outras realidades
concretas, mecânico encontra maneira de exprimir na linguagem
encarnâções nâo durridosas do momento. Mais certeiro
e da "pura exterioridade" e "fantasmal irresponsabilidade"
justo seria escrever que é o seu descanror, se a palal.ra exis- que lhe é própria, o seu delirio frio mâs real:
tisse. O carácter intensamente negaÍiuo em relaçâo a toda e
qualquer apropriação autênticâ do modemo, signiÍ.rcado
Ó rodas, ó engrenagens, rr r_r_r_reterno!
pelo triunfo técnico, é anunciado sem amlages no co-eço
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria
mesmo da pseudo -Od,e Triunfal:
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
A dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Terüo febre e escrevo3.

Átomos...
Esta 'abertura" nuncâ mais se desmentirá, se se lê
no Ardam por estas correias de transmissão e porestes
poema o que lá está e não o que o mimetismo whitmâ_
êrüolos e por estes volântes
niano sugere que deviâ estara.. Não é indiferente que pes-
Ru$indo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de caricias ao coÍpo numâ só
3 O. P, p. :6o. carícia à âlma5.
4 ,. do Prado Coclho consratou €ssâ dissonánci a emplÍica dâ Od,e Tnunfal aem
lhe ât.ibui. impoíânciâ d e maior (y. Díeeftid,ade e tffi[[[ffiilffi1
Unid;e €- lq p, 3.. ed.. Eliro ât
Verbo, p.67).
5 O. P, p.260.

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EDUARDO LOURiNçO PESSOA ÂXVISlTÁDO

Com a clariüdência gue o distingue, o próprio Poeta logas passagens Maútíma' poderia dizer-se que
d'a Ode

entrega a chave da sua metaforização "mâguinistâ". E, com haverá poucos exemplos na literaturâ uniYersâl de uma
uma precisão clinicâ, não menos entrega â "orientação' do tlo extrâordinária exploração do polissemismo inde-
seu metaforismo erótico: frnidamente aberto que é próprio da referência sexual'
Mas, naturalmente, convém não Perder de Yista o essen-
Ah, poder exprimir-se todo como um motor se exprime! ciâl: o cârácter possíeo, ou talvez, mais equiYocamente,
Ser completo como uma máquina! âctivo-passivo, das imagens que certos passos do poema
Poder ir na vidatriunlante como um automóvel último elevarão, como naOde Marítimo' a um grâu de autopuni-
-modelo! ção dolorosamente trágico, sob o
voluntário e camufla-
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, dor excesso que as banha:
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me
Eu podia morrertriturado por um motor

I
Passento
Com o sentimento de deliciosa entrega duma múher
Atodos os pefimes de óleos e colares e carwões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! possuida.

Fraternidade com todas as dinâmicas! Atirem me para dentro das fornalhas!


Promíscua fúria de ser poeta-agente Metam-me debaixo dos comboios!

Do rodar férreo e cosmopolita Espanquem-me a bordo de navios!

Dos comboios estrénuos Mâsoquismo através de maquinismos!

Da faina t ransportadora-de-caÍgas dos naüos. Sadismo de nâo sei quê moderno e eu e barulho!

Do Biro lento e lúbrico dos guindastes,


Do tumulto disciplinado das fábricas, Up lá hó jóquei que ganhaste o Der\,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de Morder entre dentes o teu cap de duas cores!
transmissão!6
(Sertão alto que não pudesse entrarpor nenhuma porta!

Cada um dos versos desta desnudada confissào, cada Ah, olhar é em mim uma perversão sexuall)

uma das associações, na sua sucessâo e na mesma queda


no "silêncio ciciante" e "monótono" do espasmo ima- Éh-tá. eh-tá. he-tá, catedrais!

ginário que em imâginação abandona, merecia um Deixai - me partir a cabeça de encontro àsvossâs e6quinas'

comentário. Se não existissem as mais candentes e aná- E serlevantado da rr.a cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
Ó tronr,raoTs, fu niculares' metroPolitanos,
6 lbíd.., pp. z6o - z6r

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I 0li

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EDUARDO LOUÀENçO PESSOÀ I'VISITADO

Roçai-vos por mim até âo espasmo! dade, com uma complacência intima, o seu lado suspeiÍo,
Hilla! hilla hilla hô!? dúbio,a chaga florida, cantando-os como roliosos em ter-
mos que representâriam (e em parte representam), sem a
Na sua relevância imediata, tais passagens são, no fundo, dolorosa referência que mascaram, a irrupçáo do humor
menos probantes do carácter passivo da contínua espiral a frio na poesia portuguesa sob a sua forma mais devasta
d.a ímpotêncía que através dela se desenrola, que âs raras
dora e inquietante:
que activâ e ortodoxamente visam o âcto sexual:

A maravilhosa beleza das corrupçôes políticas,


O fábricas, ó laboratórios, ó music-holls, ó Luna parks, Deliciosos escândalos hnanceiros e diplomáticos,
Agressões politicas nas ruas,
Na minàa mente turbulenta e incandescida E de vez em quando o cometa dum regicídio
Possuo -vos como a uma mulher bela,
Que ilumina de Prodigio e Fanfarra os céus
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!
não se ama8.

Noticias desmentidas dos jornais,


Na sua inorganicidade relativa, a Ode Tríunfal comporta Artigos politicos insinceramente sinceros,
um desenvolvimento claro, musicalmente estruturâdo, à-lo coisse. grandes crimes
Noticiaspossez -
de tempos fortes, histerizados pela interjeição walt- Duas colunas deles passando para a segunda página!e
-whitmaniana, e tempos de repouso, descritivos e enun-
ciâtivos, com uma abrupta d€pressd,o em certo momento,
Quase tudo o que aí se alude ou nomeia é afectado de um
entre parêntesis, marca de fábrica de um Âvaro de Cam epíteto que o destrói (e é esse carácter de âutonegação que
pos que de repente se retira do jogo e que se repetirá nos o entusiasma por duplo dâ suâ almâ): "cafés-oásis de inu-
outros grandes poerr|^as, )d,e Ma,rítíma e Tabacaría. Nào é tilidades ruidosas", "luzes e febris perdas de tempo nos
nosso propósito analisá-lo em detalhe, embora a descida bares, nos hotéis", 'ã graça feminil e falsa dos pederas-
ao seu pântâno extático valha a viagem e antecipe todas tas que passam lentos", 'ãrtigos inúteis que toda a gente
âs outras que em Campos se podem fazer. É com infalível quer comprar",'brçamentos falsifrcados". A electricidade
dedada que o nosso anti-Walt 'Whitman se compraz em mesma, a célebre "fada do século", de progressista evo-
sublinhar e exaltar na civilizaçâo, na cidade e na socie- cação, é apenâs "nervos doentes da matéria". Contudo,
no meio e no centro deste banquete conscientemente
7 Ibid. p 26
I tbíd. P 26 g lliÀ., pp. z6t -262.

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XDUARDO IOURENÇO PESSOA BEVISITADO

organizado pârâ dâr passâgem ao que só através dele Porüelas quase irreais de estreiteza e podridão.
pode manifestar-se, irrompe da exterioridade folclori- Maravilhosa gente humana que vive como os càes,
zânte nietzschiano-futurista, o momento d,e verd,ade em Que está abaüo de todos os sistemas morais.
que como num adágio beethoveniano a voz mais intimâ Para quem nenhuma reli$ião foi feita,
triunfa sobre o diálogo exterior, a exclamação e a enume- Nenhumâ arte criâda,
ração falsamente ditirâmbicas cessam, e surge como uma Nenhuma politica destinada para elesl
consolâção impreüsta o anúncio da poesia mais dolorosa Como euvosamo atodos. porque sois assim.
e lúcida da lingua portuguesa: Nem imorais de tão baüos que sois, nem bons nem maus,
lnatingíveis por todos os progressos,
O multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas, Fauna maravilhosa do fundo do mar davida!'o
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como
quereria! Este momento de virtual assimilação aos "humilhados e
Ah, que vidas complexâs, que coisas lá pelas casas de tudo ofendidos" que a sua consciência infinitamente vulne
isto! rável tântâs vezes fingiu voltar do âvesso, num cinismo
Ah, saber-lhes as údas atodos, as difrculdades de dinheiro, pseudonietzschiano que leitores apressâdos e unilaterais
As dissensôes domésticas, os deboches que não se não lhe perdoaram, vendo nele a marca de um reaccio-
suspeitam, narismo sem desculpa (e que nele existe, mas de outra
Os pensamentos que câdâ um tem a sós consigo no seu maneira...), devolve-o pâra uma outra esfera, a da exis
quarto tência e da verdade que é só sua, mal cobertâ ou obrigâda
E os gestos que faz quando ninguém pode ver! a descobrir-se pela exibição abstractâmente frenética de
Não saber tudo islo e ignorar tudo, d raiva. uma mentira verdadeira:
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Ve põe a magro o rosto e me a$ita às vezes as màos (Na nora do quintal da minha casa
Em crispaçôes absurdas em pleno meio das turbas O burro anda à roda, anda à roda,
Nas ruas cheias de encontrões! Eo mistério do mundo é do tamanho disto.
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesnur, Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente
Que emprega palawôes como palavras usuâis, Aluz do sol úafa o silêncio das esferas
Cujos filhos roúam às ponas das mercearias E havemos todos de morrer,
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai pam casa ,o /àd.. p. ?64.

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f,DUARDO I-OURXNçO

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa exigem. Por importante e decisiva que seja a apreensáo
Do que eu sou hoje...)" imediata dessa nostalgia da infância e do papel que real
mente Ihe cabe, mais reveladora do concreto conteúdo
Este movimento constante e desgarrado de regresso que leva dentro é a forma alravés da qual esse impossivel
à infância e à inocência real ou de sonho que ela confi- regresso se manifestou na sua primeira apariçâo na Ode
gurâ serviu para organizar à sua volta a prímeia e, em ?niunlol. Nessas eyocâções entre parêntesis, Campos não
certo sentido, def,nitivo, imagem de Fernando Pessoa. Foi regressa âpenâs â uma infância plausivel (de Pessoa) mas
obra, como se sabe, mas é bom que se repita, do então â uma infânciâ ersto, outra, cotrr,"r,ota", "burro" e "pinhei-

jovem, audacioso e penetrante crítico Gaspar Simões. rais" inexistentes na verdadeira.


A sua intuição permanece intacta e merece o, não só por- Que espécie de tradução se pode dar a este momento
que, como Freud lho havia ensinado, a infância é o lar decisivo da sua extremada autolibertação em Campos
do enigma que uma vidâ inteira não chega para resolver, ou que Campos é? Como se insere no contexto da Ode de
como pelo facto de ser Pessoa a sua melhor ilustração. que fâz parte e de gue ó o fulcro subdeterminante? Uma
Pouco importa que Gaspar Simões se tenàa poryentura só explicação parece aceitável: qualquer coisa o impede
enganado - ou induzido sem proyâs cabais - na leitura de se apropriar directamente d,o conteúdo dessa infân-
objectiva desse enigma e mais ainda nas singulares con- cia, convertida em Íeahdade intocdeel, no sentido em que
sequências estéticas que dela inferiu, sobretudo mais âs coisâs sagradas sâo "intocáveis". A encarnação mesma
tarde, na monumental biografia. A nostalgia da infância do paraíso da alma (e da
vida) é que a infância não é um
é efectivamente o centro da pulsão poética de Fernando dado sem conteúdo (não existem, nós som,os linguagem...)
Pessoa ou, melhor ainda, a forma mesma como concre- de que, misteriosamente, nos podemos perder. Que rea-
tamente preenche a intransponível distância que de si o lkl,ad,elhe conyerteu a yerdad,eira írfrincío nesse quin
separa. Convém, contudo, descentrá-la da sua freudiana tal ou jardim â que âssoma com tanta precauçáo? Quem
universalidade, ou lê-la na específrca figura que dentro lhe roubou a infância em que só por estratagemâ pene-
dela desenha, e que pode ser iluminada sem a mediação tra na Od,e Triunfal? Ninguém, nâturâlmente: toda a tra-
arquétipa de um Baudelaire ou de qualquer outro dos poe- gédia, como os gregos souberam, é da nossa autoria. Mas
tas dessa nostalgia, por Gaspar Simões invocados. Basta os deuses nela colaboram e a isso os mesmos gregos cha
para isso, segundo cremos, mergulhar um pouco mais maram destino, que "é mais que deuses" como Pessoâ o
fundo na espessura da sua intuição capital. Com a única soube e disse. Gaspar Simôes relacionou, como é sabido,
ajuda dospoenr,as e da auto-iluminação que autorizam ou a qued,a ou a expulsão particular de Pessoa desse paraíso
infantil donde todo o homem tomba, com a morte do pai.
i |bíd..p.264 O acerto desta observâção câpital não parece susceptivel

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.Õ.
TDUARDO LOUÀXNçO P f, S S O A R f, \r I S I TÂ D O

de discussáo. Tal acerlo merece mesmo uma âtençáo observação ocasional do mesmo Gaspar Simões, guardou
maior, em si mesmo e pelas consequências "estéticas" que durante toda a vida na celebérrima mala (que sâo duas),
dele resultaram, do que aquele que o biógrafo lhe concede. 'hmorosamente", a correspondência dos pais e com não
Na verdade embora a ele se re{rra, recobre o, na sua céle- menos piedosa ternura, os crónicas musicais, cuidadosa,
bre explicação, pelo segundo traumâtismo na vida infan- mente coleccionadas (pelo autor delas, sem dúvida) do
til de Pessoa, aquele que designa de ,roiçõo da mãe''. Nâo seu jovem pai critico de música desaparecido no silêncio
há dúvida de que os fantasmas que se podem, com râzoá duplo da ausência e do anonimato. A rasura do pai na sua
vel verosimilhança, supor gerados pelo segundo trauma obra nâo é, pois, ocasional esquecimento ou indiferenqa,
tismo, sào múltiplos e imediatamente discerníveis. Mais mâs trâço da ferida nunca mais sarada para remédio da
difícil é apreender os contornos dâ primeira orrsáncio res- qual pouco a pouco se invenlou quem seria.
sentida e suas ineütáveis transfigurações. Dificil e arris Não ó hipótese arbitrária relacionar com essa ausência
cado, mas a consideração séria do universo poético de o hábito de a preencher com redivivas sombras delâ que
Pessoa todo ele consagrado à glória da ausência como um dia será sua segunda e cultivâda nâtureza e receberá
frgura do mundo - naturalmente inclinâ â supor que é dele o nome de heteronímia. Na verdade é justamente
nessa original aus ência d,o paí q:ue o seu radical sentimento na época imediata à morte do pai, que segundo confissão
de inexistência do eu, do mundo, da vida, se enraíza. própria, lhe nasce o prímeiro heterónimo, "um cerlo ú\r,e
Literal e poeticamente, â âventura espiritual e carnal valier de Pos dos meus seis anos. por quem escrevia car-
de Fernando Pessoa resume-se toda nessa interminável tas dele a mim mesmo e cuja figura, não inteiramente
busca de pâi (e Deus mesmo será para ele aquele a quem vaga, ainda conquistâ aquela par.te da minha afeição que
a Verd,ade morreu..) cujo encontro o restituida d, unid,ad,e confrna com a saudade"'3. Passagem ultraconhecida que
mitica pela sua ausência destruida. Só disso se espantará lembramos para insinuar diferente leitura daquela a
quem mal se conhece ou quem nào se lembrar que Proust que com parcial coerência tem servido de apoio. Pessoa
inventou um dos mâis lâbirinticos mundos de {-rcção para situa, pois, as mais longínquas râízes do seu mitico pen-
recuperar um beijo mâternal e com ele o mistério cruci dor heteronimista, não nas paragens d,a tlilateÍrral traiçd,o
frcante e adorado da sua relação com Eros. Uma preciosa (sempre segundo G. Simôes) mas onres no espâço que só
observâção em que Gaspar Simões não se demora, ilumina a morte do pai ilumina, se tâl metáfora se nos consente.
de singular maneira o per{rl desse traumâtismo: o f,gl ro O que não signifrca que essa suposta "traição" não tenha
d,o paí nõ"o aparece nunca na sua, obra. Assim o esconde (ou constituído um traumâtismo novo
dele se esconde) aquele que na realidade, segundo outra
- e, num certo sen-
tido até, reestmturado e ampliado o choque do primeiro

V nota G no hm dovolume (p. a5r) t3 AntoLogid d.e Pessoo,, por Casâis Monteiro, p. r9Z

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EDUAÀDO LOUÀENçO PESSOÁ AEVISIIADO

- mas tâo só que nem essa trâição, como âcontecimento oportunidade. Teve a mais dolorosa de assumir à força o
existencial, nem a ausência paternâ, importam ou expli- pai desaparecido, de ser de algum modo "o pequeno pai de
cam algumâ coisa como/ocros. Se explicam é na medida em si mesmo'que o não deixârá tocar-se na sua pura reali-
que se tomâram originalmente a maneira como a criança dade de Írlho. A ausência do pai deslalcou-o do superego
Pessoa se leu neles e em çe no fundo nunca mais deixou de que necessitava para afrrmar o seu, e ao mesmo tempo
de ler-se. Imóvel na sua estrutura de compensação, o tea- instalou-o, por pouco tempo mas decisivo, no tempo
tro heteronímico tem umâ hisúório e é a sua decifraçâo que exterior e para sempre sem idade, de uma plenitude de
alre â porta não só do "mistério de Eros" particular de Pes- poderes fatalmente irreal. Pessoa, o pequeno Pessoa, não
soa, mas da concreta heteronímía líteúrin ond.e se mani- foi o "idiota da famílií' flaubertiano que já mereceu a Sar-
festa e oculta, como estamos tentando mostrar. tre quatro mil páginas de exegese, mas durante algum
O cenário da peça merece e tem de ser reconstruido tempo o SaÍre órfão tal como se descreve em "Les Mots",
pârâ conservârmos alguma possibilidade de sair do labi- centro do mundo, seu rei e senhor. A ausência de pai teve
rinto que Pessoa nele seconstmiu e construiu à crí- uma dupla consequência: eliminar a possibilidade de
tica futura, partilhada entre â tentâção de o não tomar a identihcação com o modelo paterno e tornar sem objecto
sério ou de o resolver como Alexandre'+. A ausêncía de pai â inconsciente riyalidade. A solução infantil do desdobra-
é, indubitavelmerte, uma dor de reverberação inÍrnita mento a que alude não vem pois marcada do halo trágico
quanto toma a forma absoluta que num destino de homem característico da futura heteronímta líteniria. Proteg1d,o
pode caber: o não poder localizar de maneira alguma a sua pelo olhar materno (e familiar) essa prime ira manifesta-
frgura, ou por desaparecida, ou por desconhecida. Não é o çã,o
"irrealidade" que a ele
àa írrealíd,ade nele (da parte de
caso de uma criança "normalmente" amada (como foi, sem adere) tem o carácter de uma rêrerie, permite-lhe dominar
dúüda, o de Pessoa) a quem o pai morre aos cinco anos. o seu infantil fantasma e não espanta gue o homem adulto
Muito normal, e classicamente, a criança-Pessoa teve penetrado de toda a angústia do mundo, se lembre desses
tempo de o âmar e ser seu inconsciente rival, O destino momentos com nostalgia, por assim dizer, Ieliz.
não lhe concederá mai.s nada: a morte do pai impedi-lo- É o processo inverso do seu famoso 'butrora agora".
-á de resolver com harmonia, ou com o minimo dela que Sem dúvida, a essa üvência estará ligada uma pârticulâri-
a imita, o normal con{lito entre âmor e ciúme frlial. Nin- dade, mais ou menos empiricamente suspeitâdâ ou entre-
guém sai da infância e sua reâleza imaginária sem matar üsta por alguns, pequeno mistério dentro do mistério geral
o pai de que precisa para sair dela. Pessoa não teve essâ da heteronímia literária. Em rodos os heterónimos (Caeiro,
Reis, Campos), independentemente do grau lüeÍador que
diversâmente â câda um corresponde, há, na primeira fase
r4 HipótescÊ ilustradâsde rnan€iradiversa mas completa pêlâs obras del. G. Si
mões e dê MárioSacramento (v. notâ H no Írm do volme. p. eg). da sua manifestaqão um momento mais sereno, ou antes

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EDUARDO LOURENçO Pf,SSOA REVISITADO

um momento d,e aceítaçó,o (da "tristeza, natural e justa", gaard, tâo seu irmão em vida e alma, nào é ofendê-lo.
em Caeiro, da "placidez de todas as horas", em Reis, da mas tomâr â sério aquilo que é o sangue do seu espírito,
comrlsiva "beleza moderna totâlmente desconhecida os poemas, supor que essa ordem é nele, como em todos
dos antigos", do mais estruturâlmente "infeliz" Campos), os homens, a d,os occulta a que a velha teologia moral se
em seguida repudiada ou agressivamente convertida no refere e que a ele, já como nome, supremamente convém.
primeiro "heteronimismo"
seu contrário. Se nâo é a esse Chegando aqui, quem não se lembrará da solene
onde já magoado pôde sarar em doçura a infantil ferida âdvertênciâ, na sua apârentemente abstractâ indiferença
que tal fenómeno se deve, bem difícil é situar no seu e velada ironia, dirigida a toda a crítica, na pessoa de Gas-
espaço interior esse momento do imaginário pouco dura- par Simões, lembrando-lhe (ou implorando lhe) que não
doiro, pouco consistente, e como dourado desde dentro ponha apressadas e acaso parcialíssimas mãos no mis-
pela presciência ou já inquieta pressão da sua fragilidade, tério da sua vida que não é simples como ele tinha ten-
como parece tê-lo sido na vida. Só ele teria frcado para dência a supô-lo, que nada o é no mundo, onde tudo é de
sempre ao abrigo da decepçâo vital que em vagas sucessi uma forma ou outra abreüação ou reflexo de um único e
vas o afectará: alteração da sua relação privilegiada com a na verdade inomeável mistério? Carta admirável, por
mãe, desenraizamento pátrio, aculturação âcaso excessi- venturâ â mais penetrânte e bela que lhe saiu das mãos,
vamente bem alcançada e, de novo, transplantação a uma mas igualmente a mais grave e de mais intenso e contido
pátria já outra porque ele o era e onde estava destinado a pudor, última mão poisada sobre o que de si e dos outros
uma imobilidade sem emprego certo, só nisso movente, e o defende, mas inutilmente poisada. A carta não nos diz
a um desfasamento cultural intenso e merecido pelo que mais do gue aquilo que nos poemas tão manifesto está,
ele era e os outros eram. Tudo isso compensado ou super como sonhos acordados em figura de gente que são. Di-lo,
compensado por uma mobilidade de inteligência, espí- porém, com uma desarmada e inconsciente candura, atrâ-
rito e alma a nenhuma outra comparável. Em suma, mais vés dos claros arabescos com que o Poeta deseja conven-
do que é necessário, na sua simples e externa realidade cer o seu correspondente e incipiente analista do "pouco
para explicar o desassossego visceral de que cedo se fará que sempre (lhe) interessou a sexualidade, própria ou
cronista. Contudo, parece faltar gualquer coisa de ouúro alheia - a primeira pela pouca importância que sempre
ordem e da ordem do mais inconfessado, daquela que tudo dei a mim mesmo, como ente físico e social, a segunda por
poluirá do interior ou o deixará numa espécie de siderado um melindre (adentro da minha cabeça) de me introme-
e sideral silêncio e de que passará ao largo na sua vida ter, ainda que interpretâtivamente, na yida dos outros,,,s.
regrada, como anónínta e a si indiferente, para explicar
â torrente de lava mais tumultuosa da história do nosso
tS Coía. de Fêiuúd, Pe§roo a loeo Caspar Sinaes, Pubticaçõe6 Eumpà-AméÍica,
inconsciente nacional e privado. E como para Kierke- s. d.,pp.95-96.

t 20 t21

\
EDUARDO !OUT'NçO ?XSSOA Àf,VI§ITADO

É dificil assinalar com mais força o lugar onde se está, seante, a lê-lo na sua linguagem de convençào impiedosa,
dizendo não estar. Aperemptória negação (consciente) do e nâo na daquele que assim é lançado sem precauções nas

se:; ínteresse pela serualíd,ad,e, própría ou alheía deve tomar - suas goelas. O que reprova (e de que se defende), em ter
-se à letra, na sua nudez e verdade imediatas. Mas é justa- mos de transparente pânico, é de ser "interpretado" e

mente esse desúnúeresse (traduzido como qualquer coisa de ainda por cima à sombra da mais hipócritâ tutela, a "cien-
posiÍi9o e por assim dizer,transparente epuro) gue circuns tihca", num sentido degradante e Brasileíra d,o Chiad,o que

creve a realidad,e opoca onde o Poeta diz nem se ver nem nâo hesita em assimilar ao 'ãbsolutamente obsceno".
se falar, e a função capital, na sua própria opacidade, de Situação e perspectiva que não lhe parecem próprias ape
auto- -funda oculüaçõo.
e nas do chiadístico público nacional de quem fala, galho-
A sexualidade humana é uma linguagem que se fala feiramente saloio e inconsequente, mâs do "público"
sozinha. Não precisa do nosso assentimento ou denega- que há em quem público não é, mesmo naquelas per-
sonagens que são pâra ele "exemplares". Se o próprio
ção para ser o que é. Mas o que ela diz é uma relação global
da nossa existência ao mundo (inter-humano e oriSinal- Shakespeare nâo pôde escapar, no espírito de um grande
mente familiar) que o conceito de serual usado fora do poeta (afrm dele mesmo, Pessoa...), como Robert Brow-
sistema inteiro de afectividade onde funciona, em vez ning, a essa leitura "degradada", como poderia escapar-
de realmente iluminar deforma, traduzindo em moeda -lhe ele? O exemplo e os termos em que no-lo comenta
suspeita - e âssim exteriormente circulando - â matriz sáo já de si toda uma confrssão: 'A Robert Browning, não
idealmente dourada de onde se arranca. E o que o pró- só grande poeta, mas poeta intelectual e subtil, referiram
prio Fernando Pessoa diz ou suspeitâ na sua geniâl crítica uma vez o que havia de indiscutível quanto à pederas
de Freud (e sobretudo do freudismo corrente) na mesmâ tia de Shakespeare, tão clarâ e constantemente afirmada
carta de r93r, com intuições simplesmente proféticas nos Soneros. Sabe o que Browning respondeu? 'Então ele
sobre o que mais tarde se chamará "4 crise da psicaná- é menos Shakespearel' ('If so the less Shakespeare he.')
lise". O que ele teme ou o que ele censura na metodologia Assim é o público, meu querido Gaspar Simôes, ainda
critica inspirada no freudismo é o seu carácter r€duror, â quando o público se chama Browning, que nem sequer
tradução da verdade íntimâ em qualquer coisa de ôntico era colectivo"'6.
e eticâmente empobrecido, e nela, a conversão em ob.Jeclo Desse pânico de ser yísro no espelho do fatal e eterno
do que ele chama 'h complexidade indefinida da alma Chiado da exterioridade, nos deu Pessoa-poeta versôes
humana". As reticências que a ela opôe, embora digam inumeráveis (afrnal rodo a sua Poesia é isso mesmo) e dos
respeito ao fundo, com mais signifrcativa e insistente muros que à sua volta colocou para fugrr a esse destino,
reiteraçâo se endereçam à revelação nele no espelho de
um público predisposto pela sua realidade falseada e fal- 16 Conos..., pp.97 98

123
7

xDU^RDO LOúÂENçO PESSOA Rf,VISITADO

teceu um dia um dos mais perfeitos e desconsolados poe- tlcecreve os círculos do florido jardim da sua ingénita e

mas ortónimos: voluntária solidão que nada cria senâo esse misterioso
pânico de ser "fitado" e "rristo", a que no Fausto dera
Cerca de grandes muros quem te sonltâs cxpressão de esquizofrénica desmedida. Mas não é o
Depois, onde éüsível o jardim mundo, nâo é o hipotético medusante público que o frta
Através do portão de grade dada, com esses olhos çe jamais o verão como ele é. E ele
Põe quantas flores são as mais risonhas, -mesmo que a si se não pode fitar e é para se sonhar sem
Para que te conheqam só assim. encontrar aquilo que visto o destruiria que se encerrâ no
Onde ninguem o vir nào ponhas nada. castelo da interioridade, contente com o seu segredo,
plantando-lhe em yolta as flores que bastem (poemas),
Faze canteiros como os que outros têm, destinadas a salvaguardá-lo e a protegê-lo pois é segredo
Onde os olhares possam entrever de impotência e não fabuloso tesouro. Na verdade a sua
O teujardim como lho vais mostrar, questão, a sua única questão, nâo é a de construir esses
Mas onde és tu, e nunca o vê ninguém. muros que ele já de sobrâ ergueu, mâs de transportar pâra
Deixa as Ílores que vêm do chão crescer fora deles, sem que os outros o vejam como ele se çê, esse
E deúâ as ervas naturais medrar. 'segredo" onde agoniza. Toda a estratégia do seu imaginá-
rio se destina a constmir esse espâço de liberdade exte-
Faze de ti um duplo serguardadol riorizada, inverso daquele, câlâfetado, onde ninguém o
E que ninguém, que veja e fite, possa pode atingir, mas onde nõo erisre. Demais sabe Fernando
Saber mais que um jardim de quemtu és Pessoa - e se o nâo soubesse a üda lho ensinaria
- - que só
Um jardimostensivo e reservado, o alheío olhar cotÍere existência, que a "súlime" e prote-

Por detrás do qual a flor nativa roça gida existência que na mitica interioridade nos podemos
A erva tão pobre que nem tu a vês...'? dar é, como o sonho, feita das sobras da realidade. Demais
igualmente se sentiu ele sempre (carâcteristica que atri-
Aquilo que com tântâs preocupâções a palavrâ crítica se buirá à nação inteira) existir no espelho alheio, e numa
esforça por alcânçar, a poesia o é na sua fulgurância de conhecida e trânspârente nota do barão de Teive chega
sonho. O conselho pleonástico que o poeta a si mesmo se ao ponto de escrever que não casou por não poder supor-
endereça sob a forma de auto -enternecimento raiado de tar o peso infernal desse olhar "que despreza", engâno de
masoquismo triste, característico do lirismo ortónimo, diagnóstico, mas signifrcativo e maldito, em sentido pró- mmmilmmm
prio, pois nâ mesmâ página e na mesma ordem de con-
r7 O. P. p. u9 siderações introduz a obsessão do suícíd,io, presente no

t24 r25

)
f,DUARDO IOUBXNÇO PXSSOÂ REVI SITADO

seu hodzonte desde muito cedo'8. Se o enclausuramento  "verdade" não se esquecera dele e nunca se esquece
não foi total, à estratégia de que a heteronímia foi precá rir. Se o tivesse feito seria outro e nào o homem de qua
ria, mas efrcaz solução, o terá devido. Se a sua relâção com Icnta anos apavorado no mâis fundo da sua alma com a
o mundo exterior tomou uma forma tão dolorosamente ldeia que as "pálpebras descidas" sobre o seu segredo
crispada foi só como reflexo do seu próprio olhar culpa- pudessem ainda abrir se. Na parte que lhe era acessí-
bíLizante, irorrivel Dernogorgon em que um dia o transfor vel esse segredo havia sido assumido e ele ousara "vir de
mará num dos poemas mais reveladores do "segundo" e ulmâ nuâ pâra a rua" mas sem o tomar à" suo, conta, prefe-
definitivo Âvaro de Campos: rindo â tudo, incluindo a saída pela loucura ou o suicidio,
o jogo que sem cessâr o alude, em vez da sua revelação.
Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda. Na carta a Gaspar Simões a que já tanto aludimos, Pessoa
Umâ lristezâ cheia de pavor esfria me. aconselha que o género de buscas em que aparentemente
Pressinto um acontecimento do lado de Iá das frontarias e tâmbém estamos empenhados se cerquem "de uma leve
dos movimentos. aura poética de desentendimento" por respeito "à essen-
cial inexplicabilidâde dâ âlma humana". Tudo leva a crer
Não, não, isso nãol
que no seu caso, essa "aura de desentendimento", enten-
Tudo menos saber o que é o Mistériol
dendo por ela a yoluntária abdicaçáo do convencimento
Superficie do Universo, ó Pálpebras Descidas,
de ter penetrado e surpreendido o exacto perfil da díf,cul
Não vos ergais nunca!
d,ad,e d,e ser que no plano erótico o defrniu, ao menos na
O olhar daVerdade Final nào deve poder suportar sel
medida em que está presente nos seus poemâs e os sub-
Deixai - me üver sem saber nada, e morrer sem ir sa.ber nada!
determina, é a que na verdade lhe convém. Nào é de modo
A razão de haver ser, â razão de haver seres, de havertudo, nenhum evidente que as "pálpebras descidas" cubram
Deve trazerumâ loucurâ maior que os espaços nele a espécie de segredo que obrigou Proust a embalá
Entre as almas e entre as estrelas. lo na mais genial das roupâgens. A pederastia prous-
tiana é qualquer corsa d,e "actíço", uma forma de assumir
Nâo, não, a verdade não! Deixai me estas casas e estâ gente; o mundo intra humano real e que lhe exigiu para nela
Assim mesmo, sem mais nadâ, estas casâs e esta gente... se desculpabilizar da imagem negativâ e potente que
Que abafo horrível e frio me toca nos olhos fechados? a sociedâde devolvia então âo que se desmascarava, o
Não os quero abrir deviver! OVerdade, esquece-te de esforço de soerguer esse mesmo mundo, de o submeter
miml'e à luz e à lei do seu injusto sofrimento, como a ostra que
na sua doença segrega a pérola que a redime. A ftgura que
rB làrd., p. xLr dã lntrcdução"
r9 ,'h;d., p. 33o. com mais foros de verdade a sua especial assunçâo da

t26 t27

)
,{- r
ÉDUARDO ],OURNNÇO Pf,SSOA BÍVISTTADO

sexuâlidade desenhou, embora com conotações eüden- "as lágrimas da lembrança empanam"'". Um dia "o virgi-
tes com a de Proust, é de algum modo mais subtilmente liano" pastor solitário será posto no caminho da mulher e
labiríntica, pois sendo não menos agudo sofrimento, tem volver-se-á "pastor amoroso", o que antes e substancial-
um poder de auto-ocultação superior: é essa, da irnpossí mente não era. E por não sê-lo a história de Caeiro em
uel ind,íftrença sexuol, a que com tão desarmada boa- cons- 'hmoroso" pastor é um fracasso úoüol, a que o seu "bió-
ciência Fernando Pessoa alude. Quais foram as concretas grafo" Reis se referirá como um simples "mal-enten
manifestações dela na sua autênticâ údâ de relação nin- dirio". Mas não é menos estranho o "erotismo" de Reis,
guém está habilitado a supô-lâs. Na vida dos poemas, que tem a particularidade de ser imediatamente legí-
que também sua é (e por quem só disse viver) essa espé vel: por pagão que seja o cenário pintado onde evolui, os
cie d.e serualid,ad,e branca aparece sob três formas dis- seus amores com Lidia são os mais castos que imaginar se
tintas e entre si ligadas, aquelâs justamente que os três possam, platónicos-amores, embora bem ensombrados
heterónimos principais encarnam e para encarnaçào das pela litania persistente de que todo o amor é auto-ilusâo,
quais, em última análise, vieram à luz. Nâo é cair no que como nos versos já por nós citâdos:
ele chamou de "franca parânóia de tipo interpretativo",
ver na heteronímia enquanto investimento psiquico Ninguém a outro ama, senão que ama
uma encenação de Eros de que não é dificil apreender O que de si há nele, oú é suposto.
o sentido por tão claro e mânifesto. E naturâlmente em
essencial relação com ele a encenâçâo inversa e comple- Lídia é minino da sua almâ'', que assim parece
um duplo - fe

mentar de Thanatos, a pulsâo de morte que a cada qual dialogar falando só consigo e â quem "o amor" inspira a
corresponde. ode admirável tão conhecida:
Como não verifrcar que Caeiro é o Sero id,ealmente
ousenre, expresso sob a forma mais recalcada que é possí- Não só quem nos odeia ou nos invejâ
yel conceber? Nem presença feminina, nem significativa Nos limita e oprime; quem nos ama
masculina, no horizonte do mestre. É o arquétipo 'ãngé- Não menos nos limita.
lico" o voto supremo do seu criador. Só assim lhe con Que os deuses me concedam que, despido
cede a "paz dâ NatuÍezà sern gente". Só assim a sua morte é De âfectos. teúIa a fria liberdade
como se a não tivesse e pode regressar "a casa" pela mão Dos píncaros sem nada"t.
da "eterna criança" que não é "o menino jesus" onde a
Iusitana mâe nos conserya perpetuamente seus, mas ele 20 "Notas para recordação do meu M€stre Caêirc", inAatolagío de Pessoa, de C

-mesmo, a si mesmo idealmente se bastando. Só neste Monteiro,p.1o3.


2r V notÀ I no flm do Yolume (P.254).
mestre chorârá. pelos olhos de Alvaro de Campos que 2a O. P, p.:3{..

t2a r29

EDUAÀDO PX SSO A À I V 1S I TÂ D O
',OURENçO

Já o sabemos de sobra: nointerior e no círculo destes soa de Antero, as verdadeiras e apavoradas audácias de
amores tão miso8inamente circunscritos, onde um raro Eça, que, como poucâs, permitiriam aos Portugueses ser
aceno âo "prazer" só se faz para aconselhar que o mais por fora o que eram por dentro, necessita de ser objecto
furtivamente se cumpra, reina imperiosa e no már- de uma desinfantilização urgente, paralela e não forço-
more que classicamente lhe compete a senhora Morte. samente distinta da que com mâis constância tem sido
A mesma que histriónica e desgrenhada que se entre- levada a cabo no plano ideológco. É necessário "matar"
laça no Eros, imaginária e provisoriâmente à solta do esses pais da nossa pátria moderna, libertá-los e res-
"primeiro" Âvaro de Campos. Já traçámos com o relevo tituí-los à verdade deles para que ela, por sua vez, nos
suficiente os contornos desse Eros que consente em liberte. Sem "automático rebaixamento" nem 'ãgressão",
]tl falar outra linguagem que a das flores e dos assexuados como Pessoa pediu, que "a mentira" deles não lhes per-
heróis das Odes. Tudo o que neles tão densamente se tence mâs ao momento de consciência que com génio
apaga explode "em derivação" na mais quotidiana, trivial ilustrarâm, como a nós a possÍvel verdade onde esta-
e desarmada das suas faces imaginárias criando no seu mos a outro momento dela pertence e anonimamente
espaço real-ideal o mais perturbante combate que Eros nos tocâ. Nem a retrospectiva clarificaçâo ideológica
e Thanatos travaram na alma de um só. Combate solitá- em que para nos clarificarmos está empenhada actual-
rio no seu tormento intransferível mas herdeiro de todos mente â nossâ mais activâ e militante sociologia literá-
os fantasmas que ao longo de um século haviam povoado ria ou aúistica (Joel Serrão, Costa Dias, Alberto Ferreira,
o subconsciente ocidental e, em particular, o nosso. As Oscar Lopes, Tengarrinha, J. A. França, A. José Saraiva)
dimensôes que assume na Od,e Tnunfal e, sobretudo, na a si mesma se lerá até ao fim sem descer com adequadas
Ode Marítirna, só pelo fulgor do autodesvendamento e o mãos aos limbos dessa outrâ "ocultâção" ou 'revelação"
génio poético a que teve de erguer-se para lhe percorrer que o arabesco do nosso percurso erótico foi constmindo
os abruptos precipícios são diversas das que, lenta mas sob os infernos ou paraísos de superfície. Quando essa
sem cessâr progredindo, foram irrompendo do nosso descida se efectuar, com a seriedade e a penetração de mmmilm!il
inconsciente nacional liberto (?) da securizante prisão que são exemplos os notáveis ensaios de António Coim-
de fogo (sem metáfora) onde alguns séculos de catoli- bra Martins sobre "Eva e Eça" e, sobretudo, os dedicados
cismo o haviam (mal) aferrolhado. Toda a nossa história ao mundo submerso, raiado a ouro e sangue de Gomes
literária moderna (e a outra?), âsséptica de fazer vómi- Leal (já tão próximo do de Pessoa, que dessa proximi-
tos, desde o fatal Garrett âté ao câsto Pascoaes da "Elegia dade foi consciente), ver-se-á melhor que a torrente que
de Amor" passando pelo narcisismo natural do "cego" inunda a Ode Marítima (que ela é) e nela reflui, vinha a
Castilho, o sadismo imaginístico do 'hustero" Herculano caminho há mais de um século (para não dizer desde o
retomado por Oliveira Martins, o hamletismo pré-Pes- nosso "sempre").

130 l3r

/
-ü l
ÉDUÁRDO I,OU RXNÇO PESSOÂ REVtSIl^DO

Com o mesmo movimento que a liberta, Pessoa a de Virginia e mãe do narrador. É seu protagonista Lyt-
detém do interior e uma e outra coisa esculpem a hipér- ton Strachey, uma das ilustres visitas da casa e mais
bole da nossa existência erótica. O mistério dessa blo trrde célebre historiador e ensaísta, citado algures por
cagen'L Lo interior da fantástica libertaqâo e, sobretudo, Pessoa: "A porta abriu-se de súbito e a longa e sinistra
a Íorma literó,ría específica dela, é o mistério mesmo de Íorma de Lltton Strachey apâreceu no limiar. Estendeu
o dedo para uma mancha no vestido branco de Vanessa'

f
Pessoa, o da sua relação pârticular com o ponto cego qlue
não permite outra soluçâo que a dessa viagem sentadâ Esperma? perguntou. Como era possível dizer tal enor-
em yolta do seu recôndito "mar tenebroso". Obstáculo midade? pensei, e todos desâtámos a rir. Com esta única
agravado sem dúvida (porque ele a isso o predispu- palavra todas as barreiras dâ Íeticência e dâ reserva se
nha) peio reflexo institucionalizado em comportamento foram abaixo. Umâ torrente do fluido sagrado pareceu
social e cultural aprendido no frm de mundo vitoriano eubmergir-nos. A sexualidade insinuou-se na nossa
de que foi marginalizado mas não inexistente frequen conversação. A palavra 'pederasta' não andava longe dos
tador. Nenhum traço em Pessoa de nacional - machismo nossos lábios. Discutíamos sobre a copulação com o
mas em contrâpartida o mais clássico e yitoriano dos mesmo ardor e a mesmâ liberdade com que tinhâmos I

puÍitânismos, com a força que bastou para lhe asse- discutido a natureza do bem. É estranho pensar â que
gurar o controle de que se prevalece e de que ninguém ponto, e duÍante quânto tempo, havíamos sido reticen-
tem o direito de duvidar. Não há contradiqào alguma tes, reservados". E o biógrafo termina com o comentário
entre essa espécie de vtrgíndade fria da sua vida real e que mais nos interessa: "Foi um momento importante
tl o transbordamento imaginário do seu erotismo (igual- na história dos mores de Bloomsbury (a casa e círculo
rmenle negatíeo) da Od,e Marítíma, mâs natural e trans de Virginia) e talvez dos da burguesia britânica: mas
pessoal acordo. No mundo social e mental arquétipo, se todo o cllma social de Virginia se modif-rcou a partir
que só obliquamente frequentou, esse duplo registo era desse momento com toda a espécie de consequências
-
como que uma segunda naturezâ. Ele podia ser objecto - libertinas dos seus amigos e as suâs não
as conversas
de um jogo social refinado, falsamente libertador dos tiveram nenhum efeito radical sobre a sua conduta nem'
espartilhos mais intimos, mas náo sem consequências creio, sobre a sua imaginação. Permaneceu profunda-
no plano mais decisivo da sua expressão. Em recente mente virginal e para ela' o grande acontecimento dos
biografia de Virginia Woolf (o que de mais parecido "em anos r9o7- rgo8 foi nào o começo da conversa impudica
mulher" se pode imaginar com Pessoa...) o seu bió de Bloomsbury, mas o nascimento de Melytnbrosia" '
grafo e sobrinho Quentin Bell dá-nos um exemplo desse Aparentemente, Pessoa não teve nenhum Lytton
jogo, pelos anos de r9o7-r9o8, e da sua função "histó- Strachey na sua üda real e o improvável substituto que a
rica". A cena pâssâ-se em casa de Vanessa Woolf, irmâ sociedade portuguesâ, menos puritana no seu fundo mas

t32 133
,}

!DUÁÀDO !OURXNçO PESSOA RXVISITADO

não menos cerrada em relação com o que lhe interessa


ria manifestar, podia ter sido na sua adolescência lusíada O tempo que hei sonhado
recomeçada, já o encontraria fechado no seu mutismo
Quantos anos foi de vidal
inexpugnável,3. Também para ele o importante será â Ah, quanto do meu passado
obra em que indefrnidamente explorará o sofrimento Foi só a vida mentida
de outro modo indizível e o êxtase sem mâtéria que De um luturo imaginado I

desse mutismo decorre. Da circularidade perfeita até à


total confusão de um e outro numa espécie de quadra Aqui à beira do rio
tura do sentimento de ilusão e total irrealidade (tradu- Sossego sem ter razão.

ção da sua simbólica virgindade como lugar rasurado de Este seu colrervazio
toda a referência ao Sexo) nenhum dos seus textos igua Figura, anónimo e frio,
lará jamais o do drama e:xtó,tico ultramaeterlinckiano de Avida vivida em vão.
O Marínheíro. Mais atenuada, a mesma dialéctica desin-
carnada que preside à imobilidade de mar sem água de A'sp'rança que pouco alcançal
O Marínheíro estn.rtura toda a poesia ortónima como Que desejo vale o ensejo?
imagem mais justamente vivencial da recusa imaginá E uma bola de criança
ria do mundo sexual em que viveu o homem Fernando Sobe mais que a minha'sp'rança
Pessoa"a. Desse estádio as trânsposições poéticas são Rola mais que o meu desejo
inumeráveis (todâ a ortonímia, que resiste mesmo ao
corre dâ invenção literária heteronimica) mas rara Ondas do rio, tão leves

mente o Poetâ o terá tão felizmente traduzido. como no Que nào sois ondas sequer,

poema And,aime que é, só por si, todo o romance da sua Horas, dias, anos, breves

"sexualidade branca" sob o modo sonambúlico que lhe Passam-verdutas ou neves

é inerente e â curya impotentemente fechada que vai Que o mesmo sol faz morrer.

traçando:
Gâstei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou,
Ailusão, que me mantinla,
Só no palco era rainha:
23 O seu pudor à,.i,rsh deviã ser conàecido dos amigos parà que um d€Ies âvisasse
os
outros de 'qu€ não d€üam dizer indecênciâs diânre dele, como se lê numâ .urios,
Despiu-se, eo reino acabou
pa8sagemdassuas pagims de Dráno". rqr3. em pogrnG lahmas. fl... p.4?
:4 V notaJ no Êm do volume (p. z5p.

134 r35
I I I liluluüllllllulfl[ I I I I I I
^J )

f,DUARDO LOURXNçO EVISITADO

Leve som das águas lentas, Sem o espelho revelador de Álvaro de Campos jamais este
Gulosas da margem ida, e similares exemplos de recorte e clássico conteúdo de inde-
Que lembrançassonolentas terminada desilusão ou melancolia. se levantâriâ da valâ
De esperanças nevoentas! comuln do "lirismo' onde sem mais formalidades o enter-
Que sonhos o sonho e aüda! ram âqueles pirla quem o "lirismo" (mesmo o de Pessoa) é
só isso mesmo... É destas 'águas lentas", ou dos imóveis lqgos
Que frz de mim? Encontrei-me (outra imagem capital na ortonímia e em Reis) que os suces-
Quando estava já perdido. 6ivos encontros com mundos poéticos susceptíveis de o
Impaciente deüei me libertar do seu rnurisrno, o arrancarão para o mar em excesso
Como a umlouco que teime resplandecente da palawa sexual liberlada da Od,e Marítima.
No que lhe foi desmentido. Esses encontros não são os Lltton Strachey reais da suaüda,
sáo-no só dâ fictíciaa que irão daruma dimensão desconhe-
Som morto das águas mansas cida e onde encontrará, ao frm e ao cabo, o seu olhar resig-
Que correm por ter que ser, nâdo e ausente de Poeta anterior a eles, mais insuportável
Leva não só as lembranças, ainda, convertido sem remédio no mitico Dem,ogorgon. Num
Mas as moÍas esperanças dos seus mais desesperâdos poemâs (se todos não são uma
Monas, porque hão de morrer. polifacetada estátuâ dâ Desesperação) Campos, revoltando-
-se contra tudo quanto inutilmente é, responsüilüâ Caeiro,
Soujá morto futuro. o mestre, por tê-lo arrancado ao mundo onde "se dormia'
Só um sonho me liga a mim parâ uma tarefa superior às suâs forças:
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser muro Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu,
Do meu deserto jardim. triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Que

Ondas passadas, levai me Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Para o olvido do mar! Poeta decadente. estupidamente pretensioso.
Ao que nào serei legai-me, vira agradar,
Que poderia ao menos
Que cerquei com um andaime E nào surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Acasa por fabricar.'zs Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!'6

25 O. P, pp.89-9o 2ó làid.. p.332.

136 l3?

/
t
PESSOÂ ÀErrI § ITADO
EDUAtrDO LOURENçO

lt

Para as almas complexas como a minha


De todos os poemas que Pessoa escreveu, este'ã memória
do seu Mestre Caeiro", é o mais ocultante, e nessa auto- O chamamento confuso das águas'
implicita de todas as coisas do mar'
-ocultação o mais revelador. O lugar para que aponta Avoz inédita e
das traves§ias
não pode ser Caeiro, resposta à necessidade de ser "inu- Dos naufrágios, das viagens longinqua§'

mano" (quer dizer, algo oposto ao que é, e pode ser) que periSosas,
Esse teu Srito inglês, tornado universal
no meu san$re'
ele mesmo já incarna, mas Walt Whitman que obrigou

I
voz'
Pessoa a ser Caeiro e indirectamente o inwnano Campos, Semfeitio de grito, sem forma humana nem
devorado vivo por essa "inumanidade" de que pede que Esse gÍito tremendo que parece soar
é o céu
o libertem. De resto, que Caeiro é "Walt Whitman" em De deútro duma caverna cuja abóbada
E parece narrartodas as sinistras coisa§
nenhum poema é mais explicitamente confessado, não
no Longe' no Mar' pela Noite '
por Pessoa, mas pela sua linguagem, a mesrrua com que Que podem acontecer
Walt é saudado. O sentido do "imlróglio" é claro: como (Fin6ias sempre que eÍa por uma escuna ![ue chamavas'
lado daboca'
todâs as outras, a ocasiâo milagrosa que o encontro com E dizias assim, pondo uma mão de cada
Fazendo porta-voz das Srandes máos
cÚrtidas e escuras
W'alt Whitman lhe proporcionou - e ele na verdade não ffiffiffiffiffiffi1
deixou escapar - não só deüou rrrtacta a s.ua horríçel çir- Ahô-ô-à-à ô-ô-à-ô-ô-ô-ô y y y - y"'
gtnd,ad,e e corr, ela o deserto onde floresce solitário como a Schooner ahà - à- ô-õ- à õ - õ-ô- ô- ô- ô- õ- õ-ô - y -y- ffiffiffiffiffiffit

Herodiade de Mallarmé, mas a aprofundou por ricochete, v-v..)


Escuto-te de aqui' agora' e despeúo a qualquer coisa'
convertendo-a nesse gelo da existência que os mais des-
abre
vairados espasmos da Ode Marítirna em vão contornam Estremece o vento Sobe a manhã O calor

como as ágrras de Tétis ao petri{:cado Adamastor. E é dessa Sinto corarem-me as faces'


petrifrcaçâo pavorosa e indestmtivel que surge das suas Meus olhos conscientes dilatam-se'

entranhas um dos mais trágicos gritos da poesia europeia O êxtase em mimlevanta_se' cresce' avança'

do nosso século, um grito que decerto, não por acaso, é o E com um ruido cego de arruaça acentua se

do marinheiro inglês, Jim Bams, seu amigo, apelo ao mar O giro vivo do volante'
(o mais maternal e antiquíssimo g to do Eros impossível
pela morte), esse grito ampliado às dimensões do uni- Ó clamoroso chamamento

veÍso pela angústia sem fundo que deve preencher: Acujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ân8ias'
todos!
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu âmigo, foste tu Meus próprios tédios tornados dinâmicos'

grito antiquissimo, inglês, Apelo lançado ao meu sangue


Que me ensinaste esse
Dum amor passado, não sei onde' que volve
Que tão venenosamente resume

139
r38
"üI
f,DUÁRDO LOURINÇO ?xsso RtvIslTADo

E ainda tem força para me atrair e puxar, emblemático signo dâ recorrência gue é, voltará exausto à
Que ainda tem força pâra me fazer odiar estavida prisão viva donde nunca saiu, à eterna pdsâo onde, desde
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica Sade, Eros se encerra por destino imposto para celebrar a
Da gente real com que vivo ! sua festa triste e monótona. A da Ode Morítim,o nem é triste.
nem monótona, éâ tristezâ mesmâ, â sua e lusa tristeza ilu-
Ah seja como for, seja por onde for, partir! minada nos recessos mais secretos da sua imemorial pas-
Iargar por ai fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar. sividade, atravessada por sobressaltos de alma e gestos que
Ir para Longe, ir para Fora, para a DistânciaA-bstracta, tocaram para fugir a ela impérios e frns de mundo. Passi
lndefrnidamente, pelas noites misteriosas e fundas, ridade agravada depois gue a onda pâssou e com ela o ina
Levado, como a poeira, piosventos, pios vendavais! tingiyel propósito de alcançar de novo a realidade, gémea
Ir, ir, ir, ir de vez! da que sufoca e não lhe deüa entrever outra saída que a da
maceração, da autoflagelacão erótica mais desorbitada:
Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira,se prà frente! Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
Galgo pla minha imaginação fora em torrentesl Sem coragem para ser gente comviolência e audácia,
Atropelo me, mjo, precipito-me!... Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Estoiram em espumas as minhâs ânsias Ah, os piratas! os piratas!
Ea min}ra carne é uma onda dando de encontro a Aânsia do ilegal unido ao feroz,
rochedos! Aânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Pensando nisto ó raiva! pensando nisto ó furia! Que rói como um cio abstracto os nossos corpos franzinos,
Pensando nesta estreiteza da minàa vida cheia de ânsias, Os nossos nervos femininos e delicados,
Subitamente, tremulamente, extrâorbitadamente, E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!
Com uma oscilação viciosa, vastâ, violenta,
Do volante vivo da minla ima$inação, Obrigai me a ajoelhar diante de vós!
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando, Humilhai-me e batei-mel
O cio somlrio e sádico da estrídulavida maritimar?. Fazei de mim o vosso escravo e avossa coisa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Este volante que agorâ é sangue seu e não de Walt Whitman, Ó meus senhores! ó meus senhores!
como em gnnde paÍe o era o da Ode hiunfaL enquânto Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades

2Z lhid.., pp.27S 276 estiradas!

140 l4l

/
)

f,DUÂRDO LOURf,NçO PESSOÂ ÀEVISIT^DO

Desabai sobre mim, como grandes muros pesados, Íoi iluminando (e com que distraído vagar...) o subcons-
Ó bárbaros do antigo mar! ciente nacional, luz que recebida em plenos olhos não é
Rasgai-me e feri-me! mâis fácil de aceitar que a excessiva que se não aceitou.
De leate â oeste do meu corpo A Ode Marítima (como em geral o primeiro Campos) é o
Riscai de sangue a minha carne! poemâ de uma monstruosâ culpabíLízaçà,o cujo misté-
rio, por nele justamente se esconder em explosões de
Beijai com cutelos de bordo e açoite e raiva sadismo e masoquismo gue ultrapassam o entendimento,
O meu alegre terror carnal de vos pertencer. nâo podia ser per cebido d'e fora- E como o poderia ser, se
A minha ânsia masoquista em me dar à vossa íúria, ao próprio autor era mais do que a ninguém interdito de o
Em ser objecto inene e sentiente dâ vossa omnivora tocar noutÍa espécie àe er;1eiorid,ad,e do que essa, desvai-
crueldade, rada e heteronimica de Campos? E que mistério é esse,
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis! parâ que mesmo em sonho nâo possâ sâir à rla senâo
pegândo fogo à vida ou iluminando-a de maneira a que
O tatuadores da minha imagrnâçâo corpórea! a insuportáyel angústia que dele nasce possâ caber nelâ
Esfoladores amados da minha carnal submissào! sem destruir âté ao cerne aquele onde incarnou?
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
Fazei de mim o poço para o vosso desprezo de domínio!'8

Como a pacata e ingénuâ Lisboa de rgr5 não se sentiria


agredidâ por esta irnrpção insensata de demónios tão
secular e fundâmente a8rilhoâdos nas suas íntimâs mâs
morras... O diagnóstico de "loucura" é exactamente o que
Orpheu, onde aOde se publicavâ, merecia, pâra bem situar
quem o emitia e era objecto dele. Chacoteando ou pedindo
o natural asilo parâ o seu âutor, a cidade anónima perce
bia à sua maneira a eerd,ade illsuportâvel que no poema
brilha, e mais a percebiam aqueles que se defendiam da
sua reâl loucura que os que riam do seu ausente grotesco.
Era pedir muito apreendê-lo numa luz que só lentamente

28 làid., pp.284. ?85

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