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Q_, ~Ç-uf ck
GIDE GENET MISHIMA
,
de apostar que se poderia, mutatis mutandis, dizer o mesmo de Mishün l1
1
P1
estran~arne~te~ es~es d~is parecem ~alar a mesma !f~g~a. Quanto ao gr:! .
b~rgues de 1nfanc1a m1ma~a demais e ao ex-pres1d1áno da Assistência Pú_
C(l
blica, se, puro acaso, não se encontraram nos bas-fonds, nem por isso de·lXa-
p~ ram de partilh~ o amor pela língua francesa e um~ mesma perversidade et11
d< fazer servir suas belezas ao relato de suas torpezas.
ti~ • Vou res~mir essa comunidad e na estranheza em dois termos, trans-
mutação e polarização , que articularei ao desabono [désaveu] e à clivagem
à
descritos por Freud. Esses dois mecanismo s psíquicos - savoir-faire ou pro-
ll1
cedimentos , como quiserem - encontram seu fundamento primitivo no
que chamarei a erotiza~ão da pulsão de morte. _
--
.
JO Mais que outras, a vida deles foi colocada de imediato, pelo luto ou
ti! pelo abandono, sob o signo de um desejo de morte. Como se, neles, ela
rr tivesse querido se invaginar, reintegrar à força sua origem. Sempre, é verda:
de, mais ou menos, jaz no cerne da vida um tal movimento de retorno: o
deseio pela mãe, aguele com o qual ela catJva o filho e que o r~tém, é antes
e~ de mais nada isso. · ,
p Após Freud, quis-se ver no amor exclusivo demais de uma mãe a
d causa primeira da homossexualidade masculina. O que dizer, pois, de Genet,
J que ao nascer foi separado da sua? E Mishima, que mesmo antes de desma-
mado foi entregue à ayó? Aqui.reina uma estranha equivalência entre o
abandono péla mãe ~o abandono à mãe, que ~alvez ainda esconda o mais
decisivo: a sorte desta, deixad er· ela 8efec ão do ai Pois, talvez,
( seja apenas_no~jo d..sk ue acaba se enraizand o d~Jo de viveµ
A sós, o fi o e a mãe parecem juntos fadado errância e ao endau-
suramento. Gide, Genet, Mishima, os três conhece am aprisioname nto na
"cela", familiar ou carcerária, até mesmo aque~a
.
~u~r!..aj_ternando com o nomadismo , a não ser que el s os conjuguem, como
-
onacal g.,~ a escrita
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-'Y UM TALENTO PERVERSO
e..~
J.t ~ '
Aquele que vai morrer tornou-s~ obieto das fantasias eróticas da pri-
eira infância~ para Gide, a imagem ofeliana de uma criança que se aban- '
-;ona às águas, para Mishima, a do pária, sacrificado a alguma tarefa abjeta
e mortal, Entrelaçando a cadda do erotismo0a trama da perdição, eles
ceceram assim a tela de fundo de suas existências. Aqui nasce o ''talento ,
Perv
erso" deles, conforme as palavras de Mishima, na linha diret âo maso-
1
ª - -
.. sexo dá o tom, fracassando em criar obstáculo ao fatal deslizamento e con-
seguindo apen ~~za r a morte
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-/,;urrvf-0
GIDE GENET MISHIMA ,,.
tiv 1 1
A §"tiz ~fp_u~ã,o 4e m ~ abre aqui a via ara a perve _ 1
p . . • á . e rsao 1
Propriame nte dita, de ue ela constitui
--
a\torma nm na. om efeit
. • d o, ela
1
torna possível ess transmut a ao do horror 1nsp1ra o pela castração
col . . .;~d ...... nu111
(io~u e dele represent a o m~1s perfe1t ;smen ~ O que um taltriunfo
pel . comporta de desafio caractenz a a perversao. ~f
de: • o filho en~ontra, com a ~ei paterna, os i~terditos que pretendem
tiv exigir dele a renúncia ao exercício de uma sexualida de à qual, no entant l
o,
à fi ele deve a sua salvação. ameaç! ~e morte, no cerne do vínculo com a tnãe,
mi
vê-se de hábito comutad a pelo pai em perigo de castração. Ganha-se aí
__ arriscand o a_ partida sem comp_!.91!1:EtÇr twudo.lJas, ao nascer, precisar t; 1
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ficado sem pai para enfrentar sozinho com seu sexo as ameaças oceânicas do
JO
amor de uma mãe, como de seu desamor aliás {aqui, é igual), dispõe pouco
th
a sofrer o jugo de qualquer autoridad e. A Lei é uma aliança que se baseia
m numa troca: protecão por fid~dade : A falta da primeira legitimar á a recusa
da outra. Assim, o desmenti do, que Freud situava no princípio da perver-
ex são, designava, no tempo da cavalaria, a recusa de se reconhec er dependen-
pt te de um senhor. Daí ess iberdade de com ortament o esse lado cavaleiro
C\!
solitário, essa aversão marca a pela vida gregária e por todos· os conformis-
mos, partilhad os por Gide, Genet e Mishima .
Basta rel~r A volta da UR.S.S. ·de Gide, que entrou com tanta fre-
qüência, e sozinho, numa luta obstinada - em particula r após ter sido tes-
m
temunha, no Congo, dos crimes coloniais - contra os poderes mais bem
instituído s. Genet, lembremo s, es~eve ao lado dos Black Panthers e dos
j palestinos, que eram órfãos, como ele, de terra nat~. Mishima , para d~-
- nunciar a traiçãg do imperado r, foi até esta "censura" radical que é, no
Japão, o suicídio.
__ Hoje costuma- se qualificar de "perverso", os canalhas comuns gu~
.., tiram proveito de manipula ções por onde o desejo se vê aviltado e traíd~
Denuncie mos a confusão: os perversos em política não são aqueles que
. . . . . .,P,,,_cnsam,os. Gide, G~net, Mishima , estes@_ eram canal h~ rebel!9-
r--~n)
~O~",...f,. .'
10 I
UM TALENTO PERVERSO
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GIDE GENE T MISHIMA
e mal
Gen et, Mishima são cátaros, que que rem o bem O ao lllesrn O
d pure za: o espí rito dese ncar nad o, a carn e m d telllp0
em to a a sua ~St-~,
à sua et_&içãoO d"'
desejo, o d~sejo sem o amor, cada term o levado
Verbo q e ser sem
mis tura . O que eles recusam é a Enc arna ção ' O ue se faz
querem . carne.
Nisso, eles de fato são heréticos. Em com pen saçã o' unrr esses 61
emos, de tanto r á-los P os
con trár ios fazendo com que se junt em nos extr a1ast d
perf eita soli dão dele s: céu e infe rn ' e
levá-los à inca nde_scên cia da o, exacerb.
ª
dos, vem os que sao os mes mos .
no cam O da ló ica
O rinc í io de não -con trad i ão é o e uivalente,
ica) ou a identidade (vertenr~
. da castração. A uniã o, a fusão (ver tent e míst
o.
lógica) dos con trár ios aqu i servem de desabon
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UM TALENTO PERVERSO
teísr:no q~e não compreendemos m~is. Por uma duplicidade que é aqui a
expressão da honestidade deles, eles não são pérfidos, mas bífidos, suficien-
temente-8 decerto, m:5_ sobretudo bicéf_alos, tão mitológicos quanto
centauros, às vezes tão patet1cos quanto o Minotauro.
E se porventura me perguntarem por que me interessei por tão estra-
nhas criaturas, responderei citando Gide_;_ "Se me interesso pelos bezerros~
, de duas cabeças, é porque eles me ajudam a compreender por que os ijUC
têm uma dela se servem tão mal,,.
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Jj dí~ [1fi11lilfij
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Copyright ~ b y gditions Gallimard
TfTULO ORIGINAL
Gide Genet Mishima: lntelligence de la perversion
Direitos de edição em língua portuguesa adquiridos pela
Eo1toRA CAMPO MATtMtco
Proibida a reprodução total ou parcial
CAPA
Femme à la Corneille, de Picasso
EDJTORAÇÃO ELETRÓNICA
Victoria Rabe/lo
TRADUÇÃO
Procopio Abreu
REvtSÃO
Sandra Regina Felgueiras
EDITOR REsPONSÁVEL
José Nazar.
CoNSELHO EDITORIAL
Bruno PalaZZIJ Nazar
. foslNazar
fosl Mdrio Simi/ Cordeiro
Maria Emília Lobato Lucindo
Te"sa PalaZZIJ Nazar
Ruth Fe"eira Bastos
Rio de Janeiro, 2004
FICHA CATALOGRÁFICA
M595g
Millôt, Catherine. .
[Gide, Genet, Mishima. Português]
Gide, Genet, Mishima: inteligência da perversão / Catherine Millot;
tradução: Procopio Abreu; editor: José Nazar. - Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 2004.
140 p.; 23cm.
CDD-848
C~eur.1ua,
ae, Flt.elld
editora