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Não vão nos

matar agora

l)igitali7ado com CamScanner


-

Jota
Mombaca #

Não vão nos


matar agora

(obogó

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---
Sobreoslivrosda Encruzilhada

Se a encruzilhada no Ocidente reaparececomo uma imagem.


metáfora do impasse em seu instante decisório, quando não
reduzida a cruz, tantas vezestomadacomo condenaçãoe con-
dição de uma transcendência redentora, para o pensamento
que nos interessa, a encruzilhadai uma instauração, é chave
para a compreensãodas experiênciasdiaspóricas,na emergên-
cia de temporalidadese lugaresforjadosno trânsito de corpos
e tradições. Do sequestroe tráficode gente,do holocausto na-
turalizado desde o porãode naviose o cemitério atlântico até
o campo aberto da plantação,emergeo aprendizadosobre um
passadoque passoue nãopassou,dandoà noçãode justiçao sen•
tido própriode uma escutaque sefaz trabalhopresente.Encru-
zilhada então resulta de uma confluênciade conhecimentos.
comportando o desafioe a viravolta.saberese sua reinvenção
- mapa de caminhos já transitadose ainda transitáveis,gesto
de uma cena que é escolha e instância de uma ação prevista,
mas não precipitada,em constante tradução.A convivênciade
fusos históricos - que a modernidadeeuropeiatenta dissimu-
lar - faz supor o planeiacomosmdo um complexode mundos
e seus modos de vida.

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A ideia de um fim de mundo, tão cara .tos mundos que
-
aprenderam a se reinventar, quando capturada pela lógica
dcstruti,·a do capitalismo e seu fctichc de um apocalipse final,
ac.1ba por impor a frast-ologia acerca de um planeta que se con­
fundiria comtsse mundo. Aqui a pergunta não pode ser outra:
o que acontece quando nos deparamos com o fim deste mundo
romo o conhtctmosr Um livro, na sua singularidade, certamente
não poderá responder a essa pergunta, mas, nos desvios que en,
saia, talwz. nos permita habitar a encruzilhada que aprendemos
a nomear como presente, e, com isso, vislumbrar outras formas
de conhecer. Na luta antissistema, trata-se de compreender o
que ainda se pode imaginarjunto. Aos sujeitos que conformam
esse junto, talvez reste o trabalho de imaginar modos de fazer
do capitalismo uma cidade fantasma. O antirracismo, os fc.
minismos, o anticolonialismo, e reconfigurações imprevistas
de classes em guerra, momentos de uma teoria crítica em mo­
,imento e outras formas da negação pautam nosso encontro.
Sim, porque uma coleção de livros, na mobilização de ideias e
interrogações, autoras e autores, leitoras e leitores, é também a
ocasião para encontros - quem sabe - perigosos: riscos, como
aqueles de um ponto riscado, mapa que nos leva a lugares que
ainda não são, a partír dessa encruzilhada cm que nos posicio­
namos, reconhecemos e saltamos.

JOSt FERNANDO PEIXOTO OE AZEVEDO


Coorden.ador d.a coleç3o

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Sumário

Carta às que vivem e vibram apesar do Brasil 13

1. Na quebra. Juntas

o. O mundo é meu trauma 27

- 1. A coisa 1.1brancal 35

-2. Para uma greve ontológica 49

-3. Rumo a uma redistribuição desobediente


de gênero e anticolonial da violência ó3

-4. Notas estratégicas quanto aos usos políticos


do conceito de lugar de fala 85

-5. Veio o tempo em que por todos os lados


as luzes desta época foram acendidas 91

-6. Escuro e não representação - sobre NoirBLUE.


de Ana Pi 103

-7. Lauren Olamlna e eu nos portões do fim do mundo 109

-8. Carta cifrada a Castiel Vitorino Brasileiro 113

-9. O nascimento de Urana 117

Carta à escritora de vidas infinitas. por Cintia Guedes 131

Referências biblíogràficas 137

L.......
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Carta às que vivem e
vibram apesar do Brasil

·Euachoqueo SOflhofttund1 a vidae vingaa morte.·


1
CONC[ICÂO(VA,_IST0

É a última vez que falo sobre isso:o mundo tá acabando. De


novo.
Parece contraditório,em meioa todasessasformasde co-
lapso,enunciar o que este titulo enuncia.Não vão nos matar
agora, apesar de que já nos matam. Nãoprecisoretornar aos
cenários.Os nomesnão saemde nossascabeças,apesarde con•
correrem aoscamposde esquecimentoque formama memória
brasileira.Masjá nãoescrevoparadespertara empatiade quem
nos mata. Estelivro,e estacarta,w dedicoàquelasque vibram
e vivemapesarde; na contradiçãoentrea imposiçãode morte
social e as nossasvidasirredutíveisa ela.
Não vão nos matar agoraporqueainda estamosaqui. Com
nossas mortas amontoadas,clamandopor justiça, em becos
infinitos, por todos os lugares.Nósestamosaqui e elas estão

1.ConcciçloE\.'aristo
aniculouew ideiadurantea conversaquenu.nreve
comigoporoasiiodowow - Festivalde Mulheresno Mundo.nodi.J21
deno~mbro de 2018,,-iaYouTube.

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ou\'inJo csu '""""rs.1,. nutrin,lo o apocalip$Cdo
_..,m'-<"'-
continente europeu. Dedentro do condomíniofechadoonde
munJ., Jc \lUCmt\\>smau.
me encontro, olhar o Brasilagora implicJ medir CJdJpJSSO
11 nà,, tcm,,s i.·mr<\ nus sabemos bem que o tempo n,io
dessadi\t.incia. e testemunharde longea dor do territóriocn·
1nJ1 s,\ f'-IUA frente. Nào \'im aqui para cantar a esperança.
quanto da se materialiu no meucorpo:
:--i,>mn,, 1 n~1ti\'idade desta época, porque aprendi com os
Hojeé 21 de novembrode 2020.Depoisde dJr um salto e
de Otnise Ferreirada Silvaque menos com menosdá
c1l..--uk>s
voltar pra casa, perdera casa.cortar .i ba.se,ficarsemb.Jsede
r...iise. r<>rt,mto.
nossasvidasnegativadasse somam e se mul-
novo,conseguienfim voltarà casaprovisóriaondecomeceiJ
!'.piicaml m'\'lia. Entãoeu \'im para cantar à revelia.
escreveresta carta. Nointervalo.tudoe nada mudou.Afúria
Am-dia do mundo.eu as convocoa viverapesarde tudo. Na
e a agoniacondensadasforamtornadas pedra.pedraquente,
ndia.lidadedo impossível.
Aqui,onde todas as portas estão fe-
pedra de lava.Despedaçadapelagrandevelocidadedas idas e
ch.uhs.e por issomesmosomoslevadasa conhecer o mapa das
vindas de dados e luzesna tela.Aindaontem.desdea minha
brec:h.ts.
Aqui,ondea noite infinita já não nos assusta, porque
distância, eu testemunheia proliferaçãode conteúdossobre
nossosolharescomungamcom o escuro e com a indefinição
mais um assassinato- a execuçãopúblicade JoãoAlberto
dls formas.Aqui,onde apenasmorremosquando precisamos
SilveiraFreitaspor um grupo de segurançaschancefadospda
rteriarnossoscorpose vidas.Aqui,onde os cálculos da política
rede francesa de supermercadosCarrefourem PortoAleire.
fallumcmatualizarsuas totalizações.Aqui, onde não somos
Tudo transmitido e comunicado.nestacidadeinfinitae infi-
a promessa,mas o milagre.Aqui,onde não nos cabe salvar o
mundo,o Brasilou o que quer que seja.Onde nossas vidas im- nitamente vigiadaque é a internet.

possÍ\'CÍS
se manifesum umas nas outras e manifestam, com Nãoestoue.xilada.Daposiçãoondemeencontro,possodizer.

sw dissonância,d.imensões
e modalidadesde mundo que nos
não há exílio.Poucosmesesatrás.BrunoCandéfoiass.usinado

recusamosa entregarao poder.Aqui.Aquiainda. em Lisboapor um \'elhoex-combatenteda guerracolonialem

Em21de junho de 2020,eu tentei começar a escrever esta Angola,Evaristo~llrinho. Eeste não é um casoisolado.assim
arta. Nãofizmaisdo que um parágrafo,no qual dizia: como Portugaltamb.:mnio está isoladoem relaçãoà \'iolência
•tnicioesu escritanumacasa provisória,na cidade de Lis· racial que opaa por todosos cantos destecontinentee além.
boa,onde estiveretida ao longo dos últimos três meses cm Tudonos levaa crerqueestamoscercad.is.
queondehi naçãohá
funç.lodu medidasde contençãoda pandemia de covid-19no brutalidade,e onde há brutalidadenôssomoso al\'O.

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Masnós tambémestamosonde a mira não alcança, porque Toda a beleza e todo respiroqueexistemvieram a ser ape•
emboranão haja exfüo,h;\ a fuga.;\ fugapara onde estas pala• sar do Brasíl. Então é para o apesar,para o terreno da força
,·ras rumam. Afugaonde a geme se encontra. que contradiz toda brutalidade,que ems palavrasfogem.Elas
Sintoquecomcctia fugirdo Brasilantes mesmode migrar. fogem para a beleza, mesmoque para issotenham de passar
Sinto que issoé verdadepara muitas de nós. O Brasil,'em sua por campos em chamas.Ameta não é unto o outro lado, mas
autodcscriçàocomopromessautópica de um mundo pós-ra- o aqui, esse aqui para ondeestamosindoe ondejá estamos.O
cial, configura-se,mais bem, como uma distopia antinegra e aqui de onde viemos.
anti-indígena,emqueas figuraçõesde uma liberdadecarnava- Estelivrofoi feitocomouma barricada,para roubartempo.
lizadac.,pressamnãoa ruptura com todas as normas, mas seu É uma compilaçãode críticase de pistas.Críticasaos modossu-

c.,cesso.O Brasil,es..<a
ficçãocoloniiadae recolonial,submissa tis e não tão sutisde atualizaçãoda violênciasistêmicada bran•
quitude e do fundamentalismocisgênero,observadasdesde a
ao imperialismoe imperialista,dominadae dominante, nunca
posiçãocontraditóriaqueocupo,de um corponormativamente
stniu de fatoao propósitodas lutascontfnuas por liberaçàodo
.. territórioe dos corpossubjugadosem sua construção.
classificadocomo pardo,e portantopolitic.amente
negro e in•
diretamenteatravessadopelasmemóriasindígenas(potiguaras
Fugirdo Brasilnãosignifica,necessariamente,migrar, por•
e "tapuias")e seus apagamentosna construçãoda identidade
que os limites territoriais impostos à terra são seu cativeiro
brasileira.Tal posição,atravessadatambémpor privilégiosda
e não sua definição.Brasilé o que acontece quando a milfcia
ordem do colorismo,permitiu-meacessare sustentar a possi-
do presidenteexecutaMarielle,quando a Marinha tenta obs-
bilidade e a passagempor dentro de um sistemaque, embora
truir o direitodo Quilombodo Riodos Macacosàs suas terras, informado por discursossobrejustiçae descolonização,
segue
quandoo Amapátema eletricidadee a dignidaderoubadaspela reproduzindomodosde atualizaçãoantinegrae anti-indígena.
lsolux,quandoa lamada Valesoterra cidades,quando o irmão Não falo de um acessolinear,masarmadilhado.A minha
do grandeherdeiroexplorasuas minas de diamante, quando o caminhadaestá tão informadapeloprivilégiocoloristaquanto
cerradoe a florestaqueimam,quando uma de nós se suicida, pela insuficiênciade tal privilégioemfacedas economiaseco-
quando uma travesti~ assas.sinada, a cada tiro da polícia, de reografias elitistas da suprcmadabram.:a.:
c-i:sgêm:rd.
Nessa con-
qualquerpolícia,públicaou privada.O Brasilé o que asfixiae tradançatensa,contudo,eu pudetestem•Jnhar
oslimitesdaqui•
mata. O Brasilé a chacina. lo que a branquitudee o fundamentalismo
cisgêneronomeiam

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·,n<Ju~,. Qu•tl\k' "l"'('n.li(\)tn Mu~,Mkhdlc Mnttluul mhr(• rode possibilidadesimpossíveis,a manifrstaçjo mi,tcrio5.1da
• ·,nrn1!'l.:,rcl•cxduM,,,1,l...,li<1ud-mc
a cm11laras curv:rse ns existênciado <1uenão existe...
n(>sd<s.<cl""'"'l"SS<'-
:\s.\111
é que p.1rtc1l,1scriticasaqui contidas Tais pistas, portanto. serveme não servem,assim como as
~,,:1 n• J1~.\o ,ksl'c pn,l,km.t,que é a bnrtalidadc da apro- criticascom que estão misturadas.Í: tudo eJCpcrimcnto
na bor-
l'N~ ~ J., nx,i-.,N chJ,\' da bcne\'olência;o problemado uso da das coisas,lá onde estamosprestesa dissolveras ficçõesde
l,ran."\H' d.~~nm,d.1.sc•tcgoriasde justiça socíal para seguir poder que nos matam e aprisionam;1.1,aqui, todas essasgeo·
rcpl,m,J,.i•.snmdiç,iõ de reproduçãoda injustiçasistêmica. grafias onde fomossaqueadas,e nos tornamos mais-do-que·
'.\\~a criticaé uma bússolaviciadaquando se trata de abolir aquilo-que-levaram;onde fomosmachucadas,e nos tornamos
o c::.in.w e-ornoo conhecemosrumo à possibilidade de viver mais do que um efeitoda dor;onde fomosaprisionadas,e nos
cr.r.n::icntc.'Porisso,espalhadaspelaspalavrase forças deste tornamos mais do que o cativeiro;onde fomosbrutalizadas.
t"-ro.cstio pisus mais-do-que-críticas•para a travessiae para e nos tornamos mais do que a brutalidade.Lá,aqui, onde fo.
• fog~ !Sãosão receitas,fórmulas,chaves para abrir grandes mos assassinadas, e nos tornamos mais velhasque a morte.
ponõcs:são,antes,o rascunho de rotas provisórias,o sussur- mais mortas que mortas.'e nessefundo - esse foraque não s6
não está fora comoestá dentro de tudo-, nessecerne em que
fomoscolocadas,fecundamosa vida mais-do-que-viva,
a vida
l ~ i.sc:la!x:,nçõcs:
contidasnotexto·mnribtaucoup,blanco!escri•
o,apcrL-xnto fe<ognlupcrform.ancc,publicadopor ela em 2016,como emaranhada nas coisas.Ou, para ativaro presenteque Cintia
= adcrno da O6cinade ImaginaçãoPolítica(32' Bienalde São Paulo), Guedesme ofereceue está registradotambémaqui,como pos·
0-.1;,cr.frcl
cm: hups://issuu.com/•milcarpacker/docs/merci_beaucoup_
!ilu,m_.c,.ichcllunaL fácio:•a vida infinita."
l. A form:mçio ·o mundocomo o conhecemos·,quese repeteao longo Não vão nos matar agora!
lesu a.ru e do lh•rocomoum todo,t umareferênciaao modo corno
Ocú.w:ferreiri da SilVinomtiao projetoModernoem sua relaçãocom
o muodoKKÍa.l t coma vid.iplanetJria.Assimumbém as articul3çõcs
do •fim•dr ui mundose rrlacionamcom como Ferreirada Silvaapre•
lo(;."':U•o fim do mundo·comoumaprbis. VerFerreira da Silva,Denise.
1'>n uma Poitia N<gu Feminist>:ABusca/Questãoda Negridadepara
o(fundo) Mundo."Disponlvdem:https;//casadopovo.org.br/wp-contcnt/
uplo.d>/2020/01 /a •drvida•Impag,av,l.pd(.
◄• FredMotcn.JCerUalturade""
livroStoltnLlf,, articula a Ideiade um
·c1hki11no
mJi1~do•quc•<rflJa,·
queé como•vercoisas·. S. Refcr~ncl•ao titulo do tr>oolhod, Ligi•Lcwis,d,ada rhan<kad(2020).

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1. Na quebra.Juntas

Salde casa com um vestidopreto comflorc-zinhas


vermelhases•
tampadas,um dos poucosque eu tenho e, certamente,o que eu
mais usei na vida até agora.A certa altura, na área comum do
espaço cultural onde a conferên.ciade que estavaparticipando
acontecia,encontrei uma pessoaconhecidarecentemente,mas
já algoespecial,e e.laelogiouminha roupa,emendando- suave
e cuidadosamente - o seguintecomenúrio: "É preciso ter um
sentido muito forte de si mesmapara simplesmentesair dessa
maneira no mundo,não é?"Meioinquietae intuitivamenteeu,
no entanto, respondi:"Tah·ezseja precisamenteo contrário: é
preciso ter de si um sentidomu.itoquebradopara simplesmente
sair dessa maneira no mundo."J,ntrigada,ela me olhou e pediu
que, caso eu pudesse,falassesobre issomais densamente.Este
texto é, de certa forma, uma tentativa de fazerisso;e, ao mes-
mo tempo, um modo de começara rastrear,na quebra,as forças
que se precipitampara forat alémdosideaisnormativosde
gênero, sujeito e coletividade.
A questão que se projeta sobre o texto pode, portanto, ser
formulada assim: e se,em vezda inteireza,da autoconsciência,
da capacidade de autodeterminaçãoe autoestima,houvesseum

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-
=l1'lo Je <iurl-11
,i11c ,k~l.x-.,,·frth·.1mrnteas 1•nslç1ks
lneo11- e reclaboraç,iodos modos de ser vulnerávelem itrupo. tendo
~l mltri7 rts~"'"'u'. li secs~•sujciç,ioln"mslstcntc, esse cm vista o modo comogordofobia,suprcntaci:ibranca. hcte·
m-"-,Je sn .:j\K\"rl,l.' ,km.tis l"tr-Jtr,tduzir•sccm uma coerên- rotcrrorismo e tran,fobia interatuamna rcproduçàod,1 morte
cü i,knuwil e rcrrc~cntatirJ.qualquer que seja, insinuasse como expectativa de vida de muitas pessoascomoas que nos
um~m uma furma de presença efetivamente desobediente uunimosnessecontexto.
.'k ~-ncro: E se. ls margtns do grande nós universal (huma- Masque tipo de coletividadese p<'"'a operar no encontrode
:'l<"\!-miro. cis~éneroe heteronormativo)a partir do qual se histórias de injustiça contadas desde posiçõestão diferentes.
fc-:--:r.u!J
e cni;cndraum certo projeto de sujeito e identidade, e sempre já assimétricas?O que significa.num contextocomo
cx:rrosmodosde criarcolcth-idadce de estar juntas se precipi• 0 dessa residência(e para alémdela),Insinuarum arranjo. um
= na quebrae atrn-és dela?Eas perguntas não param aí, encontro, uma espéciede n6s cujoefeito não seja o ani<1uila-
se multiplicam:comohabitar uma tal vulnerabilidadee como mento do caráter inassimilávelde cadacorpoe de suas feridas?
c::gcndrar.nesseespaçotenso das vidas quebradas pela vio- E como isso remonta à cena da quebra.à hipótesede que não
lmcil nomulizadora,uma conexãoafetivade outro tipo, uma é na plenitude ontológica,mas na multidãode estilhaços que
amaio que não estejabaseadana integridadedo sujeito, mas se produz a possibilidadede um outro modode existênciacm
e:, sw incontornávelquebra? conjunto?
Estetextotambémestá informadopelo denso processo ex- Para falar sobrea quebra.é precisoimediatamenteescapar
paimental, performativoe políticoque se deu durante a resi- de estruturas lógicasque oposicionamindividuoe coletividade,
dênciaPolitizara Ferida,programada por mim com o apoio independente de que tendênciaessasestruturas demonstrem.
instirucional,afetivoe financeirodo ÁguaVivaConcentrado Nãoé sobrequebrara lógicaneoliberaldoindividualismorumo
Artístico,comoparte de seu projetoTRANSBORDA.
Por uma se- a um mergulho no comumque eu vim falaraqui. Tampouco
mana,um grupo de cercade dez pessoasse encontrou numa é sobre afirmar essa lógica.Tr>ta-se.mais bem,do reconheci·

casapróximaao centrode Curitiba para experimentar modos mento de uma posiçãosempreji aquémdo individual- por•

de pensare fazerperformancedesde corporalidadesinscritas que desmontada por eMto de violênciassistêmicasdesindi-


vidualizantcs - e dt uma coletividadesempre ji aquém do
porferidashistóricae socialmenteconstitutivasdo mundo co·
comum - porque inassimilivd do ponto de vista das lógicas
monosfoidadoconhecer.Assim,mais do que um espaço para
coletivasgeneralizantes.Nemeu nem nóscomoentidadesin-
formaçãoartística,constituiu-seum espaçode exercido ético

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1nn1mcn1crocr.:n1cs.!'aloa11uide uma presença que escapa que lá estavacomo programadora/proponente,foi sem dúvida
ao gcs111
mcsnlllJc apr.:cnsàoa que este texto se gere; folo de um exercícioduro,arriscado,confusoe frequentementeexaus-
um• foi,1 que njo é nem o sujeitoe nem o mundo, mas atra- tivo.Minha metodologia- intuitivae expcrimen1al- foia de
,n.<.ttudo. me apresentar em minha insegurançae vulnerabilidade,pon-
t Pl'O\'i\'cl,aliás,que este texto termine sem oferecer uma do minha própria posiçãoe meus modosde chegar à arte da
dcfiniç.iosuficientementebem articulada quanto ao que aqui performanceem questão a todo tempo.Issopermi1iu,por um
se apresenu como ·a quebra·. Esse talvez seja o modo de a lado,criar uma situaçãoem que todas as pessoasparticipan1cs
quebra- menoscomoentidadeautônomado que como força da residênciapodiam,casoquiseSS<:m
e se manifes1assemnesse
incapturá\'d-definir-se em sua resistênciaà definição.Assim, sentido,assumir minha posição,propondoexercíciose dinâmi-
a quebra seria o que não se define,porém não por heroísmo cas, mastambém gerouuma sensaçãopermanente(pelomenos
pós-moderno,sim, por fracassoe insuficiência.A quebra não para mim)de pontassoltas,arestasmal-aparadas,movimentos
se defineporque não cabe em si mesma,porque quando uma em abertoe exercíciosinconclusivos.
,idraçaambtnta, osestilhaçoscorrempara longe,sem nenhu- Descrita de tal modo pode parecerque a experiência foi,
ma ordenaçãoplausível.Tendocomo exemploessa imagem,e na verdade, um desastre,mas ocorreque. se foi um desastre,
finalmentemeaproximandoo maispossívelde uma definição: não é de um ponto de vista moralque eu agora a considero:
o que aqui chamoquebra não são os estilhaços, mas o movi- não escrevo aqui para diagnos1icaro bem ou o mal de uma
mentoabrupto,erráticoe desordenadodo estilhaçamento. experiência cole1ivadesastrosa,mas para perguntar que for-
Entãose pensadacomoestilhaçamento,comoé possívelin- ças, que densidades, que movimentosde vida,afinal, tal en-
sinuarna quebraum qualquer modo de estar junto? Se a que• contro propicia?Poiscm sua fragilidadee descompasso,essa
bra rompecom um sentido de integridade, como então pode experiência trouxe à tona expressõestanto performativas-
precipitara reuniãode forças,entidadese existências?Se ela é propostas e per formadas ao longoda residência - quan10
o eventodo desmantelamento,apóso qual um corpojá não po- afetivas - excitadase expc:rimen1adas
nos momen1osjuntos,
de ser lído como um corpo próprio,que política da afinidade dentro, fora e para além do espaçoque ocupamos - que se
podeserengendradaaí, apesare atravésda quebra? precipitam sobre as dinâmicaspolí1icas,éticas e estéticas da
Aexperiênciaem Curitiba,ao longodos dias de residência, coletividadecon1ingcntcqueengendramosali comoum modo
de algumamaneira,abriu a cena dessas questões. Para mim, de estar na quebra. Juntas.

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Enada dissoé fácíl,nada dissoé sem dor e desconforto. Ao
O.O mundoé meu trauma
tateara possibilidade
de uma coletividadeforjadano movimen•
to improvável
de um estilhaçamento,vai ser sempre necessário
abrirespaçopara os fluxosde sangue,para as ondas de calor e
paraa pulsaçãoda ferida.Politizara ferida,afinal, é um modo
deestarjuntas na quebrae de encontrar,entre os cacosde uma
vidraçaestilhaçada,um liameimpossível,o indício de uma co- Primeira Nota. Precisonão escreverum manual de ética, mas
letividadeásperae improvável.
Tema ver com habitar espaços rasgar todasas recomendações
que me impedemde aderir à lin·
irrespirâvels,avançarsobre caminhos Instáveis e estar a sós guagem do meu desespero.Nãoé que este afeto rarefeitopossa
comodesconfortode existirem bando,o desconfortode, uma indicara quemquerque sejaa saídade algo,mas não é ao acaso
vezjuntas,tocarmosa quebraumas das outras. que ele me toma e encontraem mim os buracose flechasque
Enquantomeencaminhopara o fimdeste ensaio - tão in• atravessamminha carne,estacarnepolíticafeitadeespeculação
conclusivoquanto pode ser um ensaio feito em torno de per• e memória,de forçae matéria.Precisonão escre\'ersobrecomo
guntas para as quais não há resposta-, me pergunto sobre atravessarum processoperanteo qualme sintoperdida.Preciso
comoissotoca o comentárioda amigaque mencionei no pri- não escreversobreo que fazerquandoestouparalisada.Seposso
meiroparágrafodestetexto.Isto é, quanto essareflexãoadensa arrancar da paralisiae da confusãoum outro modode escrita,
a ideiade que o sentido quebradode si que acompanha o meu precisoescreversem garantiasde que escrevermostraráas saí•
movimentode mundo como corpo monstruoso, de presença das; escrevercomo riscode mergulharem espiralnegativae me
aberrantee desobedientede gênero, marca, enfim, um outro afogar no ar seco da dúvida.Precisonão escrever,mas insisto
modode habitare enfrentaro mundo.Então olho a história do e escrevo.Uma promessae uma dívida:de mesmoem face do
meunome,destecorpo,dosgênerosque por ele passam, e me máximodespojamento,preservarcoma própriavidaesserisco.
percono exercíciopoéticoe políticode dar conta da quebra que SegundaNota.Àquelasde nóscujaexistênciasocialé mati•
meatravessa,desmontae, paradoxalmente,viabiliza. zada peloterror;àquelasde nósparaquema paznunca foi uma
opção;àquelasde nós que fomosfeitasentreapocalipses,filhas
do fim do mundo, herdeirasmalditasde uma guerra forjada
contra e à reveliade nós;àquelasde nóscujasdores confluem

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&:

comoriosa esconder-sena terra: àquelas<lcnós que olhamos O PESSIMISMO t TÃO POTENCIALMENTE TÓXICO QUANTO
de pertoa rachadurado mundo,e nos recusamosa existircomo A CRENÇA NA VERDADE, NO FUTURO E NO BEM.

~ ele não t.i\'CSSC quebrado:eles virãopara nos matar, porque

não sabemque somosimorr(veis.Nãosabemque nossasvidas SE A GENTE AO MENOS SOUBESSE ENFEITIÇAR OS EFEITOS DA

impossh-cis
~manifestam umas nas outras.Sim,elesnos des• ANSIEDADE NOUTRAS DIREÇÕES, PARA APRENDER COM ELES.

péda\ario, porqut não $abémqut, uma vtz 30$pedaço$,n6s


nos espalharemos.Nãocomopovo,mas comopeste: no cerne MAS A GENTE VAI FICANDO DOENTE E SE SENTE DESCARTÁVEL.

mesmodo mundo,e contraele.


ESTAMOS SEMPRE À PORTA OU NA ESQUINA DE QUALQUER COISA.

EU QUIS QUEIMAR A LÍNGUA QUE ME HAVIA SIDO ENSINADA,

EM HOMENAGEM A CONCEIÇÃO EVARISTO, A GENTE

ESSA ÚNGUA NA QUAL TODA ll'ALAVRA ESTÁ MANCOMUNADA COMBINAMOS DE NÃO MORRER. PRECISÁVAMOS TAMBÉM

COM A REPRODUÇÃO DE NOSSA ININTELIGIBILIDADE. QUE ELES TIVESSEM COMBINADO DE NÃO NOS MATAR.

SOMOS SIMULTANEAMENTE TORNADAS INCÓGNITAS EU SEI QUE ELES NÃO ESTÃO A PENAS LÁ FORA. NÃO VI

E LEVADASA LUTAR PELA LINGUAGEM. QUANDO SE INSTALARAM, MAS !EU OS SINTO MEXER BEM

NA ESPINHA DORSALDE TODOS OS MEUS TRAUMAS,

NA PEÇA DE ODETE E BRUNO EU LI UMA FRASE SOBRE

APENAS ····rossu1RMOS .... (ENTRE MUITAS ASPAS) A SÃO ELES QUE MORREM A GENTE,

LINGUAGEM QUE REPRODUZ NOSSA INEXISTÊNCIA, APESAR DO QUE A GENTE COMBINAMOS.

ISSO ESTAVAESCRITO NA ll'AREDE, COM A LINGUAGEM ENTRETANTO O TERAPEUTA, UMA BICHA PRETA - E TENHO

QUE REPRODUZ NOSSA INEXISTÊNCIA. ORGULHO OE DIZER QUE PROCUREI UMA BICHA PRETA COMO

TERAPEUTA PORQUE DE REPENTE SENTI QUE NÃO DAVA MAIS,

QUE NÃO DAVAMAIS, E QUE EU ESTAVA ME AFOGANDO-,


EU TENIIO UMA CENA NA CABEÇA E ELA ME ASSUSTA, HÁ TRÊS
POSTOU UM lllA DESSES: VOCÊ É MAIOR QUE O SEU TRAUMA.
DIAS SINTO QUE NÃO SAIO OE UMA ESPIRAL NEGATIVA,

28 29

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MEU EX•NAMORADO, rANELEIRO (EM rORTUCAL f. ASSIM
MINHA PROFECIA DIZ QUE, ASSIM COMO NÓS, OS NOSSOS
QUE SE DIZ •11CHA•) E RRANCO - QUE NA CONTRADIÇÃO
FANTASMAS VIRÃO COBRAR. QUE JÁESTÃO A CAMINHO.
DOCE E DENS.,, MÁGICA E TENSA DAS INTIMIDADES,

rROrtCIOU COMIGO AFETOS CÜMrLICES ENQUANTO


ESCREVER A FRASE NA PELE DO PAÍS NÃO GARANTE QUE CESSE
OS FANTASMAS DE DÍVIDAS E DORES IRRECONCILIÁVEIS
A LUTA CONTRA A SENSAÇÃO DE QUE SOU EU QUE DEVO.
PEtCOU.IAM OS CÓMODOS DA CASA E SE PENDURAVAM NA

MOBÍLIA-, r0STOU A MESMA COISA NO DIA EM QUE FUI


ISSO NÃO PASSA OE UMA FORMA DE CORTAR O
ACOSSADA r0R UMA SENHORINHA LUSITANA NA RUA,
MUNDO. E O MUNDO t MEU TRAUMA.

ELA CHAMOU A POLÍCIA E EU DISSE: EU SOU MAIOR QUE O MEU TRAUMA. (1)
SR. r0LICI.AL, EU SOU M.AIOR DO QUE VOCÊ.

PORQUE SE O MUNDO, QUE É MEU TRAUMA, NÃO

EU SOU MAIOR DO QUE TODAS AS SENHORINHAS LUSITANAS PARA NUNCA OE FAZERSEU TRABALHO,ENTÃOSER
QUE APRENDERAM A LER MEU CORPO COMO AMEAÇA, MAIOR QUE O MUNDO É MEU CONTRATRABALHO.

EU SOU MAIOR DO QUE AS FLUTUAÇÕES ECONÓMICAS EU ACHEI QUE VINDO AQUI EU IA PODER PECAR O QUE É

E DO QUE O TRABALHO COLAPSADO, MEU, MAS EU NÃO ME VEJOEMABSOLUTAMENTENADA.

SÓ ENCONTRO ESPELHOS BRANCOS E PENDURICALHOS.

A SENSAÇÃO DE QUE DEVO ALCO t TÃO RECORRENTE, NADA DO QUE HÁ AQUI ACERTA A CONTA DESSA

AINDA QUE ISSO JÁ NÃO ME IMPEÇA DE DIZER A ELES DÍVIDA PORQUE ESSA DÍVIDA É IMPAGÁVEL.

- DE NOVO ELES, SEMPRE ELES - QUE NÃO DEVO.

TEM UM TEXTO QUE DIZ QUALQUER COISA SOBRE A

QUEA DIVIDA É A HERANÇA DELES, DÍVIDA IMPAGÁVEi..t DA OENISEFERREIRADA SILVA.

EU ESCREVI A SANGUE NA CALÇADA DOS EU TIVE A OPORTUNIDADE DE TRADUZIR COISAS DA DENISE,

INVASORES: VOCÊS NOS DEVEM, MAS FALHEISISTEMATICAMENTE.UMA VEZATRÁS DA OUTRA.

JO 31

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E MESMO ATf CIIEGAR NESTE TEXTO 6U PGRDI
EU SOU MAIOR QUE O SERVIÇO OE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS.
TANTOS PRAZOS QUANTO ME FORAM DADOS,

MAIOR QUE TODAS AS FRONTEIRAS. MAIOR QUE AS


PERCEBE A RECORRtNCIA, LEITORA
FILAS DE DOCUMENTOS, TELEFONES OCUPADOS,
OCASIONAL DESTE DESABAFO!
OLHARES TORTOS E SAUDAÇÕES À BANDEIRA,

DEACATAR PRAZOS E FAZER PROMESSAS, ISTO EU NÃO


UMA VEZ ELE ME DISSE QUE EU PODIA ENTRAR LÁ COMO UM
PAAO,ASSIM, QUANDO PARO DE TRABALHAR, TENHO
TOURO NUMA LOJA DE PORCELANA. A BICHA ONTEM QUANDO
O TRABALHO DE FRACASSAR PARA DAR CABO,
VIU QUE EU ESTAVATRISTE ME DISSE QUE A TRISTEZA É 0

FUNDAMENTODA BICHA-BOMBA:O PREÇODE DESTRUIRA


E SOU MAIOR QUE ESSE TRABALHO E QUE OS PRAZOS E QUE O
MERDATODAQUE NOS CONSTRANGEf OE~IORARTEMPO DEMAIS
MEDO OE NÃO TER DINHEIRO E DE NÃO FECHAR A CONTA.
ATÉ NOTAR QUE A EXPLOSÃO TAMBÉM TE DEIXA OlSTRUÍOA.

EU SOU MAIOR QUE A AMPULHETA ENTORNANDO. FUI TRAMADAEM EXTREMOSDE FORÇA.E COMOA BICHA

MESMO DISSE: SOMOS EXTERMINADORASE EXTERMINADAS,


ÀS VEZES EU SINTO QUE O VAZIO QUE ME TRAGA

TODAS AS MANHÃS E À NOln É COEXTENSIVO VIDA ÚTIL CURTA. FATALISMO.


AO VAZIO 00 MEU EXTRATO BANCÁRIO.

ESTAMOSSÓS NA DOR DE 1'0SSAS ros,ções.


EU SINTO QUE A PRESSA AUTODESTRUTIVA QUE

ME CONSOME DO MEIO·DIA ATÉ O FIM DA TARDE É SE POR DOIS SEGUNDOS EU PONHO A CABEÇA fORA

INVERSAMENTE PROPORCIONAL À CALMA CRUEL E DA ESrlRAL EMQUE ESTOUAFOGANDO,CHEGOA UMA

ASSASSINA DO SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS, CONCLUSÃO IMEDIATA:OU EU PAROOU ISSO PARACOMIGO.

EU SOU MAIOR QUE ESSA MATEMÁTICA. MAS QUANDO UM CORPO NEGRO PARA OE FUNCIOSAR,

QUEM OU O QUE rODE AMPARÁ·LO!

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t QUANDOA GtNTE QlJEUA, QUE INFRAESTRUTURAS
-1. A coisa tá branca!
st fU<"lrlTAM, AS DO CUIDADO OU DO DESCARTEI

QUANTOTEMPO LEVAPARASERMOSAPACADAS,

DEPOISQUE AS PALAVRAS,
LINCUACENSE OS CESTOS

DEIXAMDE FAZERQUALQUERSENTIDO?

Quando foi inauguradaa estátua do PadreAntônioVieira,ain•


O QUE SOBRADE UM CORPO NEGRO, QUANDO ELE PRÓPRIO da este ano, no largo TrindadeCoelho,em Lisboa,houve uma
CONSENTEPERDERA BATALHACONTRA O MUNDO? pequena comoçãoentre aquelesintelectuaise artistas brancos
cujo trabalho enseja os debatesantirracista e descolonial. Em
Portugal,aparentemente, o tema da negritude e da coloniali•
dade tem tido algum destaque,semque issonecessariamente
configure a abertura dos circuitos àquelescorpos histórica e
socialmenteimplicadospela racializaçãoe pela feridacolonial.
A quantidade de textos a abordaro racismoda sociedade por-
tuguesaparece,curiosamente,ser inversamenteproporcionalà
quantidadede intelectuaise artistas negrasvisíveisno contexto
local. Isso evidentementenão falasobre esca.ssez,mas sobre a
densidadedos regimesde apagamentoque operam ativamente
na constituiçãodos debatescríticosem Portugal.
Na esteira dessesprocessos.os debatesquanto à noção de
"lugar de fala começama emergirde formas mais ou menos
controversas. Se por um lado essa ferramenta aparece como
parte de um escopocriticoantirracistae anticolonialcontem-
porâneo,cujo sentidoé ode abrirespaçopara formas de enun•
dação historicamente desautorizadas pelos regimes de fala

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e <'1'n1U di '"""""A iAhm1c.1e Jo curoccutrl~uw;pur nu1ru, hahilile corpos historicamcnleprivílcgiJdo,pel, racialiuçjo
h• uml-tm unu crhkl ltndcnctalrncntc branca <1uclnslslc e pela colonialidade a não reencenaremo 1eauodc sua domi•
rm llknttfi,,r AS Ath-.1Ç\'.:s
Jcssc concciloà pr.llicade censura, nãncia e protagonismo social.
n• mc,,liJ•cm que os alivismosdo lugar de fala suposlamcnie A estátua do PadreAnrônioVieirar<aP"rece.portanto, co-
Jruu1orium ccr1os corpos (111omeadamenteos brancos. mo fndice simbólícoe material do tipo de rcgisiro no qual a,
cis~.:ncros.heterossexuaisr1',) a falar. Parc,c·me bastante condiçõesde possibilidade
dessadomin:incia
e protagonismo
nidcnle que essascrllicas, na realidade, ressentem nos usos foram forjadas.A reciclagem"pós-colonial•dessapersonagem.
rolitirosdo conceitode lugarde fala o desmonteda possibilida- amparada pelo imaginário.1mplamentedifundido da coloni•
de de uma enunciaçãouniversal,na medidaem que essa ferra- zação portuguesa comobrandae, particularmcnle,do referido
mentaatingede frenleo regimede verdadeque historicamenlc padre como lendo sido umafigurasensívelil humanidadedas
configurouessa posição(o universal)comosendo acessíveltão gentes que viviam nas terr.asdo que hoje chamamos Brasil.
somentedesdelugaresde falamui10espedficos(abranquitude, atesta de maneira contundente a hegemoniado lugar de fala
a curopcidade,a cisgeneridadeetc.). branco-colonial como infraestrutura dos regimesde verdade
Entretantomeu interesse aqui não é voltar a esse tema, o que até hoje determinamas condiçõeson1oepis1cmológicas
de
qual já foitrabalhado por mim em textos como "Pode um cu enunciação.Assim,no limite,as criticasbrancasil instauração
mestiçofalar?"e "Notasestratégicas quanto aos usos políti• da estátua podem, quando deslocadasde uma ética efetiva-
cos do conceito de lugar de fala'"(cap. -4) , ambos acessíveis mente disruptiva da colonialidadee do racismo.ser inscritas
online,assim comoem falas públicascomo "Lugar de Escuta" pela mesma lógicade atribuiç.iode valoràs vozesbrancas que
(cujovldeo está também disponível online), na conferência oferece o solo subjetivono qual a memóriaheroica de Vieira
Vozesdo Sul do Festivaldo Silêncioe na entrevista "Lugar de está assentada.
Falae Relaçõesde Poder"concedida a Carla Fernandes para Essaé a contradiçãofundamentalqueacompanhaas alian-
a RádioAfroLis.O que este text,o enseja é, mais precisamen- ças brancas: a continuidade entre suas posiçõese o sistema
te, inlerrogaros limitesda apropriação branca dos discursos simbólico contra o qual supostamentese articulam. Embora
e prá1icasantirracistas e descoloniais evidenciando o modo não impossibiliteo necessáriotrabalhode colaboraçiodas pes•
como cerlas dinãmicas dessa apropriação tendem a operar soas brancas e historicamenteprivilegiadaspda colonialidade
em descon1inuldadecom uma necessária ética situ:,da, <111c com as lutas <1ueapontam para o desmonted;:ssessistemasde

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rrrn,h1,ào s,X'bl.1alcon1rn,llçlopreencheo espaço lntcrsub- Num contexlo comoo lisboeta.cm queos circuilosintclcc•
~11'" rnlrc ,lianças hrancase as lulas antirracista e anticolo- tuais e artís1ícosparecemoperaraindacom basenum progra•
ni•I mm arm.,dilhascujosefeitoss.iosempre mais destrutivos ma relacionalmaisou menosprogramá1ico.
no qual as possibi·
p.iu Aqurbs pessoas não amparadas pela infraestrutura da (Idadesde acessoa certas instânciasde visibilidadee circulação
branquitudc.Issoevidencianão sóa tenacidadedo capitalismo parecem muito mais evidentementeassociadasà capacidade
mi,I comoregimede dislribuiçãodesigualda violência,mas de cumprir com uma certa expecta1ivasocial (com frequên•
tambémo car.ltcrimprescindívelde uma autocrítica radical da eia matizada por privilégiosde raça.classe e gêncro)do que
branquiiudeque tenha como finalidadeo desmonte do racis- propriamente com os tiposde 1rabalhoards1icoe in1dcc1Ual
mo e da colonialidadenão apenas como índiceestruturante do realizados;um contextoem queas presençasnão hegemónicas
mundo,mascomoespinhadorsal do projetoglobal de subjeti• (de pessoasnegras,migrantese trans, especialmemc)parecem
,;d,de brancae europeiaque lhe é cond.icionante. estar inscritas por dinâmicasex1ra1ivistas
de tokeni.zação,ex·
Nessesentido é que o trabalho políticodesses artistas e in- clusão, trabalho não reconhecidoe exploração,não basta às
telectuaiseurobrancoscujos discursos pretendem desafiar a pessoassituadas em posiçõesde privilégiosocial.ontológicoe
renitênciado racismona cultura portuguesa de hoje deve ne• epistêmico que desejamreivindicarpara si o P3pd de "aliadas·
cessariamenteir alémda criticaà estátua, cuja inscriçãomaciça aprender a falar a linguagemdosantirracismos,da descolonia•
na paisagemlísboetapode tanto hiperevidenciara densidade tidade e, adicionalmente.dos movimen1os1rans.O trabalho
da mentalidadecolonialno presentequanto camuflaros modos polftico dessas pessoasde,·e,necessariamen1e.
operar confor•
mui10mais discretoscomo esta se afirma no tecido relacional me um certo programanegativo.em quedesaprender.desfazer.
da vidaentre o mundodos brancose as pessoassistematicamcn• calar e boicotar deixamde ser mecanismosacionadoscontra
te marginalizadaspor ele.~ na própriadinâmica existencialda pessoasnegras e dissidentesem geralpara converter-senuma
branquitude,ondea infraestruturade seusprivilégiosse afirma, espécie de ética autodestrutivada qual o irabalho de aliança
que o trabalhodeveser feito.Sãoas relaçõesIntimas, os princi• branca depende.
piosde seguridadesociale subjetiva,as dinâmicas de interação O fator condicionante desse trabalho é, precisamcme. o

uns comos ou1rose como mundo,enfim, toda a sériede gestos, reconhecimento de que as assimetriasentre posicionalidades

circuitose processosque dão textura à vida brancacomo norma não consiste numa falha da sociedadeinsti1uída,mas. mais
precisamente, na ma1ériamesmade que tal sociedadeé feita.
socialque devemser postascm xequepelasalianças brancas.

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ls.S<•sisnific•
que o probknu dn subahernidatle niio se resolve
valorização do regime branco de distribuiçãodas'""'º· Isso
por meioM ajustes localiz,lílosnai economia estruturalmente
se deveao fato de que, segundoa economiapolíticadas alian•
dcsigu•I do mundo como o conh~ccmos,mas, isto sim, pela
ças brancas, •dividir privilégio"é sempre,contraditoriamente.
~l>l>liçio
i:lol\il dobináriosubaltcrnidade·dominânçia,
Em uma r6rmula que visa à "multiplicaçãodos privilifgios•e nào
outns p.ibnJs, reposicionaros corpos, subjetividadese vidas
à sua abolição como estrutura fundamental da reprodução
subaltcrniud•s fora da subalternidade é um projeto que só de desigualdades.
pode~r lc\'adoa cabona medidaem que reposicionamostam- No mundo da arte, essa lógicase manifestaobjetivamen-
bcmos corpos,subjetil'idadese vidas privilegiadosfora da do- te por meio da abertura de espaços.articulaçãode programas
min.inci2.Dessaforma,as narrativas benevolentesda aliança de performance e debate, financiadosa partir do trabalhoso·
bnna - fórmulascomo·dar espaço","dar visibilidade","dar eia! das alianças brancas, mascomênfasena produçãonegra.
,-oz•. todas das predicadas no desejo normativo de ajustar o Trata·se de um movimentoambíguo.simultaneamentegera•
mundosoritl - tém comolimite mais evidentea incapacidade dor de novos espaçosde·visibilidadee plataformasde escuta:
dessasmesm~ narrativas em incorporar a dimensão negati• e apropriador do trabalho e das potênciasespeculativasne•
,-adesse trabalho,ou seja: "perder espaço",•perder visibilida- gras como tema e matéria para a atualizaçãodo sistema de
de","perdcrvoz·. arte cujos modosde gestãoesuutural e micropolíticaseguem
A hipótesede "perdero mundo"é indutora de uma an· a inscrever-nosdesigualmente,Todasqueatrawssamosesses
siedade profundamente enraizada nas subjetividades bran- circuitos, como artistas,curadoras,críticas.escritorase agita·
c.u, na medida em que o mundo como nos foi dado conhecer doras negrassomosdesmembradaspor essacontradição.e em
é. precisamente,a infraestrutura da vida branca. Lidar com alguma medidanossotrabalhotemsidoo de ocupare demolir,
c_ssaansiedade é, portanto, parte fundamental do trabalho num só movimento,hab.itandoosescurosdo mundoda supre•
du alianças brancas, sendo que isso frequentemente resulta macia branca para então estudá-lose adivinharsuas brechas.
cm exploraçãodo trabalho afetivo, polftico e intelectual de bordas,gatilhos,camposde e.,plos;io
e implosão.linhasde fuga
pessoasnegras.Assim,quando uma pessoa branca diz "usar e moonlíghtspara outras terras.Masnãoqueroque essaforma
seu privilégio"para "dar voz·a uma pessoanegra, ela o diz na de narrarfaçao processopan::ci:r
menosdenso. porquemate·
condiçãode que essa•vozdada"possa ser posteriormente me· rialmenteo que essetrabalhoengendra,comoefeitode sujciç:io
tabolizadacomo valor sem com isso desmantelar a lógica de negra, tem tambémcust!ossomaticopolíticosbrutais.

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i:~lol"'r mim. <jllf, Jo lonRodos 1ihlmos;111ns, tenho cir-
ria me limitar à problemáticados nomes,tanto do programa
rub,l,1 l"lr c.,.l.twt 111.tis
rspaços de arte hegemOnicossem
quanto do coletivo,que por si sójá evidenciam.tendoem vista
C\'incid.a
qu....'-~o1::'-' fÍCt1\•amcntccom qu:tscnenhuma forma <lc
os contextosem que foramgerados,umcerto recursoà auropa-
1,..,-,_....,
ls infrarstnitum que garantem,do ponto de vista ma,
rodizaçãodas posiçõeshegemõnicasquesó podemesmoadqui•
tnbl. rmocional e simbólico,a vida das pessoas para quem
rir significadona medidaem que produzcontinuidade,e não
c-5p.iços
cs..<c'S furamfeitos- pessoaseis, brancas,hetero•e•ho-
roptura, comos efeitose modosde perpetuaçãodessasposições.
m<'normath·as.
Semeuacessoao mundo da arte está semprejá
Concordo com o que disseGradaKilomba(na fala que fez
condicionado.\retóric.tdas aliançasbrancas, em cuja matriz no espaço Hangar a 3 de novembrode 2017)sobrea relaçãoda
de \'alorminha posiçãode "bichapreta• está codificada como feridacolonialcoma subjetividade
portuguesacontemporânea
sendoportadorade um certo potencialontoepistemológicoe ser de uma profunda negação.Semonumentoscomoo Padrão
político,é justamentena medidaem que eu reencarno a marca dos Descobrimentose a estátua de Vieirasão evidênciasma•
raciale seusefeitosradicalmentealienantesque meu trabalho ciças dessa adesãocoletivaa uma memorialização
da colonia•
se toma \'iávd. Isso tem como efeito mais evidente a reinscri- !idadeabsolutamentedesconectadada tradiçãode violênc,ae
çãodetoda minhaproduçãosimbólica,conceituaie políticano crueldade que forma o núcleodesseprocesso,a ironia de um
marcode uma tradiçãode trabalho negro cuja relação com o coletivochamado PipiColonialnão deixade sê-lotambém.A
,-aloré sempretensionadapor dinâmicasde extração,objetifi- recuperaçãodo termo •colonial"aquinão é menosinofensiva.
caçãoe consumodooutro;e implicatambém que a condiçãode embora seja definitivamentemais escorregadia.Falode um
acessoa essesespaçossejameu consentimentoa operar quase coletivo majoritariamente formadopor mulhereseis, euro-
exclusivamentecomoemblemada minha própria posição,e peias e brancas,amparadaspor leiturasteóricasem torno do
nãocomopessoa. pós-coloniai/descolonial,
do pensamentonegroe do feminis•
Paramantero escopocrítico deste ensaio situado em Lis- mo, supostamenteautoconscientes,cujotrabalhose pretende
boa,ondetenho vividonos últimos meses,gostaria de passar a precisamente constituir afiançastntre a sua branquitude
agoraa um breveestudode caso a respeito de uma iniciativa e o pem:amento feminista negro. entre a sua branquitude e
aniculadaaqui.Trata•sede um programacuratoria.1intitulado o pensamentofeministadescolonial.Entretanto,aoparodizaro
A CoisaEst.iPreta,as1inadopor um coletivopretensamente colonialnum contextocujabranquitudetendea ser profunda-
feministae pós-colonialportuguês,o PipiColonial.Eu po<lc- menteautoindulgentequantoà sua responsabilidade
paracom

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• rn'<lu,,,, e rtpl\,lu, ã.1 ,la frri,la colonial,essecoletivo nfios6
nós. A aparição dessaformulaçãono te,,todc apresentaçãonão
"-~' ,k Íl'111ll,\,k$1rh1a,la
o prMl<'i:iod:i pnlpria posiç.io,como
deixa de ser a passagemde um fantasmacolonial,que monta
rutu'1 uml frri,1.,cuj1extensão não cstil sequer evidente do
a cena para uma novaordemde procedimentosextrativistas,
desm1 pl~tafornrn,
dr ,i~tJ Ja pnlrriac11robranqui111dc
(',."ll:1>
estes de matriz cognitiva,ontoepistemológica,conceituai e
T•ml'<'m,, rcrur.:oao "Pipi",termo usado no contexto local
simbólica:a produtividadeconceituaido pretotorna-se,aqui.
C\>:-:iocuftmismo de ,·agina, para inscrever um certo tipo de
matéria para a atualizaçãodestemundo,do mesmomodoque
;,roittofrministaque dependeda coincidêncianormativaentre
o café, imposto como monoculturanos camposde plantação,
"~~uu
e feminilidade,o que por si só já defineum escopo cis-
serviu à atualização do mundode que as autorasdeste textoe
sêncrofundamentalista(por reproduzir de forma descuidada
desse projeto são herdeiras.
o principiode inexistênciade masculinidadese feminilidades
Afinal,issoé tambémsobreeconomia,e sobreo modocomo
comanatomiasdiversas),evidenciadessecoletivoum autocen-
a políticadas aliançasbrancasno mundodaarte temimplicadoa
tramentotão radicalque não podecoincidircomnenhuma for-
manutenção de um sistemadesigualde distribuiçãode recur-
made implicaçãoafeti,•ae efetivapara com a complexidadee sos, que permite que pessoasbrancas~esclarecidas·
controlem
interseccionalidadc
das lutas que pretendem endereçar. Con- as agendasdo debateracialnessescam.pos,irrigandoos imagi-
tudo o que me interessa destacar mais veementemente aqui nários coletivamenteproduzidospor meiodo sistemade ane
- comoformade marcar uma norma e, concomitantemente, com base na sua ótica e na sua ética iemeiudaspela adesão
contra-atacá-la- é a relaçãodesse coletivocom a produção sempre parcial, e algooportunista,ao projetode aboliçãodo
intelectualdescoloni,a)e negra,tendo como emblemao texto mundo comoo conhecemos.E issoficaespecialmcn1c
evidente
de apresentaçãodo projetoA CoisaEstáPreta. quando se trata de um programaeuratorialemque não há se-
Citoapenasuma frase:"Aprodutividadeconceptualdo pre- quer uma pessoanegra;e. adicionalmente.
emqueumadasati-
to surgeaquicomostgno." vidades tem comosubtitulo·cartabrancaparafalardo preto·.
A produtividadeconceituai do preto surge como signo da Num certo sentido,o programaem questãoé a caricatura
vidaapósa morte da escravidão,e isso significaa reprodução de um processodifundidode formasmuitomaisdiscretase ca-
hhtoricamentccarregadade uma lógicaanacrônica de valor pilares no mundoda arte contemporàneahoje.Tal\'eZporisso
que,entretanto,configurao presente e o futuro das pollticas de apareçaaquicomocasoa serestudado,pelomodocru como
especulativasbrancas - valorcomo aquiloque é roubado de evidenciauma práticae lógicaqueo e·xcedem,
comoemblema

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de um rm,'<'ss<'qur está ,lifumlillue cuja direção precisa ser
da desconfiança que não deveseconíundircoma natur,,liia·
Je!'-lfuJ.,rm to.los ,,s 1.,,1,,s.
,kstk as bonlas e desde tlentrn:
ção de uma separabilidadehil)<rdeterminada
entreas p(Xições.
dn mc-smom.,._l,,l'-\1'('\'<'•me
que o exemplodessecoletivo,pcln
Assumo,por isso,o riscode tcnsionarmuitasdasba<umarcriJis
fat,,Jc prctcnJcr-~cuma plataformade.aliançacom as lutas do
e emocionaisda minha própriavida.comol)<SSOa
neg.rainscritJ
feminismonrsm e l")S·colonial/descolonialdesdea posiçãode
de forma contraditórianoscircuitosde produçãoe reptoduçjo
rnulhcm;cis
hranc.is,
oferece1ambtm,ondiçõcsparapensar-
do privilégiobranco,pois,nolimite,o quepretendiaquin.loíoi
nmscommaiscuidadosobreos limites das alianças e também
enrijecercisões fundamentais.mashabitaro dilemainconror-
~rr os limitesda apropriaçãodo que as autoraschamam "pro-
návelde lidar comas desigualdades
e assimetriascomoprincí•
dutnid.idcconceituaido preto"poragrupamentos,instituições,
pios de constituição do mundo,e nãocomofalhassituadasna
iniciath·ase perspectivastão profundamenteembasadas pelos
matriz.
pri,ilé-giosda supremaciaeurobranca. (Lisboa,nov.20li)
O densotrabalhode articulaçãopolíticade que dependem
a luta continuada pela liberação negra e pela ruptura com a
colonialidadecomoprincípiode reproduçãodo mundo como
o conhecemosprecisaser pensadoenquanto ética abolicionis-
ta - criativa, sim, na forma como excita e conclama outros
princípiosrelacionaise de mútua afetação entre diferentes po•
sicionalidades,mas também destrutiv.ae demolidora das in-
fraestruturasque recondicionamo mundo como cenário para
a captividadentgra e a perpetuação d.o lugar de fala branco
(isw é, o universal)comoreferentedominante de um sistema
de v;ilorem relaçãoao qual nossasvidas negras só importam
na medidaem que são produtivas.
Essetexto,em seumergulhonas linhas de forçalntersubjeti·
vase afetiva,que condicionamas aliançasnegrascom o mundo
dosbranc,x,afirmainequivocamenteuma certa epistcrnoloi:ia

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-2. Paraumagreveontológica

Wt stud lnlo/okmd
EvMwlienwe w,, we gon'fose
(Estamos
relida!emfalaland
Mesmoquandoianhamos,
perdemod
JJ.Y•Z

LMngarlhes~td ofli&ht
Llleo bulfer
I coutdbedeodbythemorning
(Vl-.endo
navelo:idadedaluz
comoumabala
eupode,iaestarmortapelamanhã)

Episódio 1: Morte lenU/Aceleraçào

Eu me lembrode trabalharcomoseestiveSst
correndo.Eusem•
pre tive a impressãode que morreriade repente,acometidade
uma forma qualquer de explosãointernaou arbitrariamente
inscrita nas terríveisestatísticasdepessoaldissidentes
sexuais
e desobedientesdegêneroracializadas
quesãoalvejadas
porbala
ou esfaqueadaspor nada no Brasil,assimcomoemváriasoutras
partes do mundo. Eu me lembrodetrabalharcomoseesti\'esse
correndo. Correndo rumo a umailusãodeconfortoe esubili-

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dade,a tentarsalvar-medecoisasdasquais não posso ser salva.
mcrcantilizaçãoexploramde maneiraparticulara presençade
E cu tambémlembrode traballm comose eu pudessealcançar
corpos trans e dissidentessexuaispretose indígenasdentrodo
a ,·docidadenecessáriaparacruzarpontesainda não erguidas;
mundo da arte. Em outras palavras,comeste textocu quero
comose,correndo,eu pudesseexistirentre mundosassimétricos.
refletir sobre o valor produzidopor nossassensibilidades
eo
O trabalhodentrodo qual eu estavacorrendo, afinal, não
modo como ele é roubadode nós,fornecendoumaredefinição
é o tipo de trabalhoque meu corpo é encorajado a fazer. O de valor na vida-após-a-mortedo colonialismoe da escravi-
mundoda arte não é uma geografiana qual sou autorizada a dão como algo simultaneamenteroubadode e produzidopor
simplesmente
acessar,aindaque eu passepor lá, às vezes,cor- nós. Para isso, seria necessárioredescrevera cisgeneridade
ea
rendo.Escrever,
ler,traduzir,performar,criar, falar, pensar em branquitude como formasde extorsãoontológicae repensara
,-ozalta contraa constanteexpectativade falha e erro, contra integridade do sistema de arte contemporânea
comoum dis·
todaa lógicasocialque institui a brancura e a cisgeneridade, positivoirreparávelvoltadoao consumismo
brancoe cisgénero,
bemcomosua presunçãode subjetividadeautoestabelecida, e à exploraçãodo outro.
comoa maisconfiávelgarantiade acessoaos mundos da arte Como parte da infraestruturado mundocomoo conhece-
e da intelectualidade.Eu poderiafazerdessahistória uma ex- mos,que é a infraestruturada vidabrancae cisgêneraelames·
cepcionalnarrativasobrea luta de uma bichapreta por acesso ma, sistemas de arte não sãoseparadosdosdispositivos
sociais
a essesmundos,mas não estou particularmente interessada que reproduzem a situaçãocríticadasgentesdesobedientes
de
em retratarnenhumatrajetóriarumo ao mundo da arte como gênero e dissidentes sexuaisracializadas.Aocontrário,eles
heroica.Emvezdisso,este texto almeja constituir uma des- estão situados numa posiçãoprivilegiada,
desdea qualé pOS·
criçãodo mundoda arte comosendo uma ficçãonaturalizada síveldeterminar (parcialmente,ao menos)os limitesdoque é
feitaparaquebrarsubjetividadespretas e indígenas na forma pensávele imaginávelnum certoenquadramento
de tempo.A
devalorroubado. emergênciahistoricamentedisruptivadediscursos,práticase
Eu quero falar quanto aos custos de tal jornada, uma vez demandas antirracistas, queer/cuir,feministase descoloniais
que,nodiagramadedispositivosracializantesque representam a partir dos anos 1960,definitivamente
mudouo horizontere-
meucorpocomosendomarcadopor uma ferida,eu não existo presentacional em relaçãoao qualas políticasda visibilidade
em uma formacapazde fazeressajornadasem custos. Eu que- se definem.Ainda assim, não é seguroleresseprocessocomo
ro falarquantoaosmodoscomotendênciascontemporâneasde sendo linear ou transparente,especialmente
seconsideramos
a

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cl.1<1kibJr,lo c,11,i1:1fümo
md,11(blo é, a hnhilldadccm rccon,
A escranha continuidade encreexaustãoe impar;obilid.,<lc
ti_~uw,,s m,xl,-s,k t1pmpri,1çiio
tio lrahalho de comunitlatlcs
opera aqui como um índicedas cenasde sujeiç.ioque esc.iodi<·
r.,dJh1a.bsc,,ncr.,CSMSmesmascomunidades),a oniprcscnça
ponlvcis à.s"outras· do mundobrancoe cisgênerono contnco
Jc ti-m1JS rJd.,li,aJ.,s e gcndcrizadasde aniquilação e as con-
de cenários arcísticoshegemônicos- espccialmence
seconside-
mJi,,\.:s incmm às formasde discribuiçãoda violência como
ramos os modoscomo nossavidaela mesma,incluíntlasua hi•
elementosronslitulivosdesseprocesso. perdeterminaçãopordinâmicases1ru111rais.1endem
;1 tornar-se
l\um certo sentido, o acessoa circuitos artísticos e inte• uma extensão do nossotrabalho.Aimparabilidade
(unsruppabi-
lcccuJispreocupadoscom as assimchamadas "pollticas da di- lity)do trabalho trans racializadoengendraseus produto~.Ali-
,~rsidadc·está predicadona nossa habilidade em reproduzir menta arquivosprivadoscommercadorias
críticas;cria imagens.
- até mesmoromo posiçãocritica- a lógicapor meio da qual textos, ideiase sensaçõesparao consumode audiênciasbrancas
somosmarcadas.Issosignificaque tornar-se uma trabalhadora e ricas em circuitosartísticos:é apropriadoporinsticuiçõcs
como
cultural racializadae desobedientede gênero é um processo sinal de "responsabilidadesocial","diversidadee "inclusão",
semprejá dinamizadopelareconstituiçãoda racialidade como É precisamente na intersecção encre o aparentemencc
um designglobalinescapável,no sentido de que nossa presen- ilimitado, supostamentedesconstrucivocampodas mercado-
ça está condicionadapor uma demanda de auto-objetificação rias críticas, e a experiênciasitiada(hiperdeterminada)de ser
positiva,de acordocom a qual nós devemos sempre endereçar quebrada pelo mundo comoo conhecemosque minha posição
nossadesobediênciasexuale de gênero, assim como nossa ra• aqui se articula. Nemcomooposiçãoaosprojetosde libcração
cialidadecomoo temacentral de nossaexpertise. Esseprocesso do qual descendo, tampouco comocontestaçãoàs tradiç<ics
podee\'entualmentedar-nosuma posiçãodentro do diagrama especulativas emergcncesque estãoproliferandojuncoà noss;i
de privilégiosque constituisociedadesracializadas, mas inevi- presença nessesespaços.Estetextofaz.maisbem.uma recon-
ta,·dmentetambém ressituanossa posiçãono marco das lutas frontação com a presumidaestabilidadedas narrativasde in-
históricascontra a desigualdadeque nos trouxeram até aqui, clusão e sua dimensãopseudoemancipatória;
é um exercidode
dada a nossa inscriçãocontingente em estruturas que foram suspeita radical que, no limite,buscapreservaro espaçosideral
primeiramenteconslruídas contra nós, e que agora estão no de nossa imaginação radicaldo extrativismoamigi\'d que ca-
processode acualizaçàopara "incluir" desigualmente aquelas racteriza a mcrcantilizaçàodosaparacoscríticosdesobedientes
de nós que esciveramtrabalhando como se corressem. sexuais e de i:éncro racializadospelosistemade arte.

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J.l.i_;:('r~. texto - como uma t rabalh;i.
tnq11.111t1ir~.-rc\\irstc
cm curso, o que dispara seu proccs<ocspecul,11i,u
é J con1un-
,l,,r1n1llu1.1Imns (nlc1hlnária) e negra (de pele clara), aind.1 çiio de episódios do presente:tiros e explosões<1uc
se ou,cm
semf"l'<'i~.migm1Jo tlcsdcuma cx-colôniarumo à Fortaleza para lá dos muros; as imagensqueelaprópriacolheu.qu.1ndo
furoj',l (furtrrssEuro['() -, cu me sinto tão movida pelo cha- saiu do bairro com uma comitivapara uma atividadede reco-
mJJo frito ror autorascomo Dcnise Ferreira da Silvacm dire- nhecimento de c.ampo;o assassinatode umacriJnçacomum;1
çio l possi!>ilidadc
de refigurara negritude por meio de uma bala aleatoriamentedisparadacontrao port.iodacomunidade;
cquJç.iodnalor que nos permitiria ir além do texto moderno os pedaços de notíciaquantoà proliferação
de uma novadrO)!J
e de suas gramáticasde morte e captura (e rumo a um outro que transforma a experiênciasensorialde assistira inccndios
mllndo)quanto presana fronteira da violenta socialidade que numa forma de prazer ·mais excitanteque sexo·.É a atuali-
constrangeas ,·idasdissidentessexuais e desobedientes de gê- zação indefinida dessessinaisque.na subjetividadesitiadade
nero raàalizadassob a forçarestritivada determinação moder- Olamina, propiciaa Íormuiaçàode uma futuridadeameaçad.1.
no-colonial.Feridae criativa,produtivae precária, igualmen- perante a qual, no entanto - e essaé a formulaçãoética que
te apodrecidae triunfante em minha rota de fuga, doente de eu quero aqui evidenciar-. nãocabeesperarpassivamente.
desespero,e ainda assim mais segura que aquelas para quem Deus é mudança [God is change]é a premissafundamen-
o acessoao mundoda arte globale à Academiaestá bloqueado tal da teologia experimentalqueOlaminaesti descn"olvendo,
por economiasde poderestruturais:eu não posso senão pensar enquanto, expectante,prepara-separao pior.A operaçãosub-
que a condiçãopara minha inclusão neste mundo é comprar jetiva performada por ela,situadaqueesti pdo sentidode ine-
morte lentacom aceleração. vitabilidade da situaçãoque pre,·ê.fazcoincidirseu mergulho
cru na economia da ameaçacoma articulaçiode uma densa
textura especulati\'a, capazde refundarum possívelmesmo
Episódio 2! Ansiedade/Intuição diante do diagrama maissaturadode impossibilidades.
~loldar
deus é moldar o destino:dobraras condiçci<s.
estudaro tempo.

Quando LaurenOlamina,personagemcentral da série de Pa- a coreografia das forçase operar sobreo destinocomouma

rábolasde Octavia Butler,com cerca de 15 anos e a vivercom escultora que se sabe à partidaaquémda matériasobrea quJI

a famflianuma comunidademurada estadunidense cm 2025, trabalha. Atravésdessapersonagem,e aolongode toda a série,


Butlerdesenha a convergênciadeumaformaradicllmcntcpro·
pressenteo limitedaquelemodo de vida,cm face do apocalipsc

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S4

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!""Silivlde pcssimis1m,rom um otimismo à partida despojado
ansiedade, esta não pode sercircunscritaaodomlnioltomita-
de qual,iucrinwstimcntona esperança.
do do sujeito que a personagemmcarna,comoum problemJ
O DS~l.que furnccea contençãotextual de ansiedade cn-
1
do corpo individuado pela lógicada patologizaçào.
Emoutras
qulnto ~tologiJ, define-acomo·antecipaçãode ameaça futu- palavras, a ansiedade de OlaminaestápredicadanumaformJ
u·. Emfunçlo dessadefinição,a ameaça fundamental posta contundente de engajamentoso<ial.comoprincípiode leitu-
pda lnsicdadcseriaa de ultrapassaro futuro, dada a intensiva ra realista e, sobretudo, comodispositivo
quecondicionasu,
materializaçãode uma futuridadepessimista na experiência sobrevivêncianum períodoposteriormente
apresentado
como
do presente.Emoutras palavras,o risco da antecipação na Thc Apoca/ypst, ou simplesmenteTht Po.r.Isto maisdo que
forma de ansiedadepatologizadaé precisamente a captura fornecer uma versão transparenteda ansiedadecomoforma
da intuiçãona celada imaginaçãocapturada, sua deteriora- insuspeitada de saúde, problematiza
o dispositivo
patoló~ico
ção enquanto intuição liberadaem nome da reprodução da ele mesmo (e, por extensão,o quequerquechamemossaúde).
economiada ameaçacomoforma última de futuridade so- abrindo o código da doençacontraasanalíticascientíficas
he·
cial. Mascomopoderia a intuição (comoansiedade) romper gemônicasque o modulamnosentidoda reprodução
dodiag-
com tal captura,desmantelandoo escopo da patologização, nóstico em detrimento da geraçãodoimprovável
comomatfria
quandoexperimentadadesdea situação interseccional das e força no corpo diagnosticado.
,idas desobedientessexuaise de gênero racializadas - que Neste ponto, é inevitável:comoumafúriano peito,uma
eStãosemprejá inscritas por violência no marco da referi• urgência correndo atravésde minhasveias.comoumcspJsmo
daeconomiada ameaça?E,como isso redescreveria o risco e perpétuo no músculoprincipal.eb viráe durari poragorae PJ·
a dor inevitávelde existir em um mundo que existe contra a ra sempre. Porquejá está aqui:o in.mnteimparável
dJ ansiedJ-
nossaexistência,sem circunscrevercada gesto antecipatório de, o nó ind.issociáveldo desespero.
Umaveze outra.vibrando
numaeconomiado desespero? apesar da imobilidade.Comoumaconvulsão
nomundoquei:.
Assim,se a abordagemdo tempo que Butler escreve para também, uma convulsão<locorpo,docorpocontrao mundo.
Olaminaé profundamentedinamizadapeloque o DSMchama do corpo contra o corpo elemesmo.e docorpocontrao texto.
lt inevitável no sentido em queescreversobreansieJJdecom
ansiedadeé necessariamenteumaformadecscm-.:r
al,!mdaan•
1.DUg,mdca.nd
Sutittka.lManual
of MentalDisorders
- em portugu~s.
M.anualde Diagnóstico e E1tad1tico de Tr•nstornos Mcntáhi. siedlde e contra o texto.

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Estatcnt:i.ti\',,de rrdcscrr\'cra ansiedadecomo um progra-
tia bem. Os pensamen1osvagavam
pormim.semtomarforma,
11\,\ronti•~~ntc
,\intuiç5o,
e consequentemente
aosmodosrc-
perdendo-seamiúdenumespaçoqualquerentrea vcr1e o im-
1.lci,,n.,is
romo mundo(comsuas dinâmicasde poder e diagra-
pulso. Era uma imobilidade
dorida.Falarfoidifícil,masaquele
masJc força),e corpo(comseus ritmos,marcase sensibilidades
era o meu trabalho. Comeceipedindolicençapara gaguejar.
situadas)interagem,é inseparávelda vibraçãoansiosa que me
Entrctanto, houvemomentosdegagueirabastantelúcidos.cm
atra,~s.1. Não escre\'o,contudo,para tentar me s.alvarda an-
especialum que memarcouintensamente.
Quando,já pró,imo
siedade.Antes,escrevopara livrara ansiedadede mim, liberá-la
ao finalda conferência,aotentarprovocarumacriticaà noção
da circunscriçãodemasiadohistórica,demasiadoposicionalda
est.andar.dizada
de fluidezdegêneroquecertasap.ropriaçõcs
do
minha subjetividade,para só então liberar as sensibilidades
cânone queer no contextosul-americano
parecemreproduzir,
quemeatm·essam
doregistrodemasiado
formal,demasiado eu consegui apenasdizerqualquercoisacomo:'O problema
nonnati\'Odapatologia,fazendodelasporoe superfíciede con- conceituaida noçãodefluidezdegêneronumcontex10
de pre-
tágioparaa ansiedadecomointuiçãovoltadapara o limite do cariedadegeneralizada
...é que...meugênero...meugêneronão
mundo,ou melhordizendo:limiteda situação-problematenta- flui...como pode?"
tivamentearticuladaao longodesteensaio,que não é propria- Poucosdiasantesdaquelaconferência,
pelaprimeiravez,eu
mentea opre$sàO
contradissidentesracializadas,mas aquilode haviaenunciado,numconte..iosocialmaisoumenosíntimo,a
queessessistemasde opressãodependem:a inscriçãoarbitrária um grupo grandee irregularde pessoas,
duranteumafesta,a
e cruelda dissidênciasexual,da desobediênciade gênero e da travessiaencorpada,afetivae sensorialemquete-nhoinsistido
racialidadecomoontologias,e não como forças. como programa simultaneamente
autodestrutiwo
e de im·cn·
ção. Poucosdias antesdaqueladeclaração
gaguejantequanto
à não fluidezdo meugêneronummundocontrao qualeu me
Episódio3: Fim do mundo/Transição debato, eu falavasemcontera línguasobreestarem transição.
Transição.Emboraconsigadesenharo marcode:ondeelapar•
Emagostovolteiao Brasilpara uma temporadade vinte dias, te, como movimentofugitivo- da masculinida.de
compulsó-
em queum dos trabalhosque me competiafazerera uma con· ria como projetoarbitráriode inscriçãodofundamentalismo
ferênciapúblicano Riode Janeiro.Cheguei ao espaço pouco cisgênero sobre meu corpoe, logo,doprojetomoderno-colo-
antesde a falacomeçar,e a salajá estavacheia.Eu não me sen· nial-racial de humano-, sigosemcoordenadas
quantoa que

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p

issomt lcv.a- c assimvou aos tropeços, abrindo a textura da


falo em criar formas continuadasde destruição,comoprogra-
minl13\'OZ à gagueiracomopollticada enunciação.
ma denso de refundaçãode todaa superfície
do sentido.Pensar
Assimcomo descolonizar,é possívelque em toda transi-
a transição e a descolonizaçãocmchaveabolicionisuimplica
çãohaja,maisou menos implfcita,
a demandapor um fimde
pensar esse efeitoe deslocar,de maneiracontingente,a questão
mundo,semque issosignifique,senãocomo promessa,a garan-
quanto a tornar-se, abrindoespaçoparaquestõesinteiramente
tia de um mundo a seguir.Articular essa dimensão negativa, outras, como: "Comodesfazero quemetornam·e, a.inda."co-
propriamenteabolicionista,de todo processo que se precipita mo desmontar o imperativode ser."
sobree contra o mundo como nos foi dado conhecer, é parte Quando pensada cm paralelocomas questõesque abrem
do necessiriotrabalhode cuidadoque essesprocessosensejam. este ensaio, quanto à imparabilidade
do trabalhocuir e negro,
Cuidar,aq,ui,não tem uma função reparativa, pois designa, e a reproduçãodo regimeontoepistcmológico
cmque sónossas
maisdiret:amente,um trabalho sobre o limite, para o limite, marcas podem nos dar consistênciaenquantopessoas;,
essecui-
e contraqualquer ideiade cura como retorno e restituição de dado ncgatívoadquireconotaçõespolíticas,poísinter.ageestra-
coesãoao ,corposocial. É possívelque fazer transição, assim tegicamente com espaços,situaçõese contextosquesolicitam,
comodesc,olonizar,
demande uma forma de cuidado que seja muito contundentemente,queocupemosnossassituações-pro-
soh-ente,isto é: que façaa mediaçãodas coisasque deterioram, blema ontológicas(ontologica/
prtdicam,nts)
comocondiçãopa-
acompanhe
a duraçãoda ruína,adensea rachadurado hori, ralutarmoscontraos efeitosbrutalizantes
depoderquedeles
zontce faça assentar em lavao mundo de sentidos, fórmulas, se desdobram. Issoimplicaque,me.smo
quandoparecemoster,
figurase obras do poderque toda transição, assim como toda no marco deste mundo, as ferramentasparainterromperos
descolonização,demandaque queime. ciclosde opressão e violênciaque nosinscre\'em,estas,emvez
Nãose'!ratade uma apologiada destruição,nem meramen• de abrir espaço para outras emergênciasafetivas.s,cnsoriais,
te de uma poéticada "destruiçãocriativa, mas da formulação cognitivas, encarnadas e epistemológicas,
devolvem-nos
inde•
tentativae a.rriscadade uma abertura que comporte o que está finidamcnte ao mesmomundo- à mesmasituação-11>roblema.
aquémde 'toda fórmula,e cuja passagemimplica um trabalho com outra forma de posição.
contra o trabalho do mundo, um trabalho contra as obras do Como,então, cuidardos processosdestruti\'OS,
sempará-los
poderque não consisteem simplesmentedestrui-las para re- em nome dos ideaisde saúde,progresso,moralidad!e.
norma-
criá-lasde outra forma ou noutro lugar. Mais precisamente, lidade e civilização que constituema basedo texto colonial?

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l)igitali7adocom CamScanner
Comocuidar dos processosdestrutivos que destituem o hu-
-3. Rumoa umaredistribuição
mano de seu pódio,como condição para desmontar o racial
desobedientede gênero
comodescritorhierárquico?Comocriar as cond.içõespara uma
e anticolonialda violência
destruiçãosempremaisconsistente dos mecanismos que dão
pesoe densidadeao fundamentalismocisgênero,com sua má-
quina patológicaa capturar e reinscrever tudo que escapa à
normacomocondiçãode emergênciado normal? Finalmente, ~S6porquen!o h4um,guetranJosignilkac:uehajapaz:
comointegrartais processosno aparato dinâmico e intensivo MIST!CAEMX-MCN .4POCAUP5E
12016)
depreservação
dosgermesdas gentesainda sem nome na carne
dasgentescujonomefoi negado;como fazer implicar, em cada
transiçãoqueseanuncia,a ancestralidadedas gentes cuja terra
foiroubada,comopólene sementedas gentes cuja terra ainda Cena 1: Quem policia a polícia?
há de ser feita?
C. morreu asfixiadano porta-malasde umaviaturada Polícia
Militar de São Paulo.A narrativaoficialé a de queela teriaen•
trado lá por vontadeprópria,na intençãode roubaralgoe aca•
1 bara morta. Segundo um portalde notíciasonline,a viatura
foi reparada,limpae voltouàs ruasempoucosdias.Ninguémfoi
responsabifüadoexcetoC.,de 19anosdeidade,quemorreuas-
fixiadae tinha o rosto roxoe as mãossujasdesanguequandoa
encontraram na traseirada viaturamilitar.
Um boletim de ocorrênciafoifeitocontraela.
A políciano Brasilé umadas únicasfacçõescriminosasque
é responsávelpela investigação
de seuspróprioscrimes.

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Cenal: O que~ um crlmet latente em toda emoçãopossí\'dde forjar-sep,,rantees«:regi•


me. Mesmoquandoas m.lquinasdefazerdcspcrcebcr
conflitose
\'erJ MJlaRutidescreveas fantasias absolutistas de controle desigualdadesestruturantesprojetam- semprearbi1rariamtn1e
sociJI<lapol!ciano período posterior à abolição formal da - verdadescujapromessaé a deseremneutras.justase uni"er•
cscmidão no Brasilpara desdobrar daí uma percepção mais salmente aplicáveis,transcendentes,
legais,modernas.sobreo
~uçada do sistemade justiçacriminal hoje. É sobretudo no que significaser um criminoso;o queé segurança;
quantovale
controlesistêmicodo trânsito de pessoas africanas livres e para este mundo a indústriado punitivismo;
que marcadores
afrodescendentes
que a políciavai passar a operar como braço sociais desenham os gráficosdo extermíniosistemático.
con-
doprojetocolonialem suaversãomoderna,garantindo a segu, tinuado e neocolonial;porque há vidasmatáveis;quecorpos
rançadasdite.sbrancase mestiçase o terror das comunidades adornam os projetosde futuro;quemsãoossujeitosdahistória;
empobrecidas
e racializadas.O racismocontra pessoas pretas o que é catástrofe,golpe,crise,extinção
..}
e pobresestá, portanto, no DNAdas policias e das redes de Afinal,o que é um crime,quandoo própriomododefundo·
controlee extermínioque se articulam em torno delas. Mas namento da justiçase fazinseparável
de umprojetode atuali-
nãoteriasidonecessárioouviruma acadêmicabranca para dar- zação perpétua da injustiçacomofantasiadecon1rolt?
O queé
-secontadisso.Nãoé de hojeque movimentospollticos como um crime, quandotudoo queseentendesoboguarda-chuva
da
Mãesde Maioe Reajaou SeráMorta(o),assim como uma série normalidade e legalidadenão cessade reinscrever
a presenp
devozesimplicadasnosativismose organizaçõescomunitárias da morte comoexpectati,.,.devidadecomunidades inteiras,de
pretas,produzemconteúdo,denúnciae articulação para visibi- gentes daqui e de toda a terra,humanase nãohumanas?
lizaro papelefetivodessesgenocídiosracistas e classistas nas
gramáticasda dominaçãoà brasileira.
A presençado racismocomo fantasia colonialindetermina• Cena 3: Ficções de poder e o poderdas ficções
damenteatualizadano marcodo colapsoda colóniaestá exposta
comoferidana paisagemdas cidades,na densidadedos muros, O poder opera por ficções,que nãosãoapenastextuais.mases·
cercase fronteiras.Estáexpostatambémna coreografiadas car· tão materialmenteengajadasnaproduçãodomundo.As ficções
nes,naintensidadedoscortese na ancestralidadedas cicatrizes. de poder proliferamjunto a seusefeitos,numamarchafúnebre
E tudoissoestá bastanteevidente,ainda que mascarado;cs1:i celebrada como avanço.progressoou destinoincontornáveis.

64 65

l)igitali7adocom CamScanner

O monopólioda violênciaé uma ficçãode poderbaseadana sistemas contra os quais escrevem.


O trabalhoincessantede
promessade que é poss(l'dforjarumaposiçãoneutradesdea revelaro maquinário do poder,projetando-o
nofuturoou no
qual medeiam-seos conflitos.O sistemadejustiça,produzido domíniofantástico,coincid~
aícoma tarefaingratadeproduzir
pelamentalidademoderno-colonial
comosistemade poUcia, essasmáquinas, imaginando-as
comoentidades
inescapáveis.
visa neutralizaros conflitossociais,administrandotodas as o poder insuspeitadodasficçõesé o desercimentodomundo,
tensõesno limitede uma redemuitopequenade instituições porque,como propõempensaras coeditoras
dolivroOcravia's
e mitosrepresentadoscomoneutrospelasnarrativashegemô- Brood,Walidah lmarisha e adriennemme brown,"nãopo·
nicas.Alémde uma ficçãode poder,a neutralidadedo siste- demosconstruir o que não podemosimaginar",
demodoque
ma de justiça- que torna morale politicamenteplausível0 tudo o que está construídoprecisou,
antes,serimaginado.
Eaí
monopólioda violência- é um mecanismode alienaçãodos resideo poder das ficções.
conflitos,queisolaas pessoasnelesimplicadas
dos seusproces- Nãoé, portanto,a dimensãoficcional
dopoderquemeinte·
sosde resolução.
Afrase•vamosresolverisso na justiça•está, ressaconfrontar.Sãomaisbemas ficções
depoderespecificas
e
portanto,sitiada,umavezque evocaestritamentea ficçãode os sistemasde valoresqueoperamnofeitiodestemundoeseus
poderdosistemade justiçamoderno-colonial,
desarticulando modosde atualizaçãodominantes.Nessachave,o monopólio
dessamaneiratodasas outrasficçõesdejustiçaque poderiam da violênciatem comopremissagerenciar
nãoapenaso acesso
vir a serconjuradasa partirdessaafirmação. às técnicas,às máquinase aosdispositivos
comquese perfor-
Aficçãocientificaé urnadaslinhasde tensão entre as fic• maa violêncialegítima,mastambémas técnicas,
asmáquinas
çõesde podere o podervisionáriodas ficções.Se considera- e aos dispositivos com que se escm·ea violência,
os limites
moso eixoespeculativocanônico,difundidopela literatura, de sua definição.Essesdoisprocessos
decontroleseimplicam
pelocinemae pelaarte euro-estadunidenseem geral, majo· mutuamentee dão formaa umaguerrapermanente
contraas
ritariamenteformuladodesdeas posiçõesde homem,branco., imaginaçõesvisionáriase d~•ergentes
- istoé:contraa habili-
cisgêneroe heterossexual,
é comumquenos vejamospresasà dadede pressentir,no cati\'eiro,queaparência
têmos mundos
circularidadedo poder,numaespiraldistópicacapazde mo• em que os cativeirosjá não noscomprimem.
Liberaro poder
ver-seapenasdo controlerumoao maiorcontrole.Autorese dasficçõesdo domíniototalizantedasficções
depoderé parte
históriasaparentemente
criticasda sociedadedisciplinare de de um processodenso de rearticulação
peranteas violências
controlepodem, contraditoria.mente,operarna atuali:i3ç.iodos sistêmicas,que requerum trabalhocontinuado
dereimagina-

66 67

- -
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çàodo mundoe das formasde conhecê-lo,e implica também
tipo de crime. Em 2006,o projetoviroulei.Em2013,a taxade
torn,r-sc capazde conceberresistências e linhas de fuga que
crimes contra mulheres em espaçosdomésticoserajá 12,5%
sig3m
deformando
osmodosdopoderatravésdo tempo. maior que em 2006. A lei não pôdeconteraviolênciaporque
forneceu uma soluçãotranscendentalparaumproblemaima-
nente. Apesarde sua dimensãoinstitucional,
a violência
contra
Cena4:O Estadomolecular as mulheres,assim comocontr.acorposdesobedientes
degênc-
ro e dissidentessexuaisemgeral,estáenraiuidanumapolítica
O Estado,assimcomoas polícias,movem-secom e pelodesejo. do desejo que opera aquémda lei. Porisso,aochamara polícia
Quandoo movimentoLGBTIA+
brasileiroluta pelacriminaliza- para intervir em situaçõesdeviolênciasexistae/outransfóbica-
çãoda homofobia,
eleestá lutando,no limite,por esse desejo.O •homofóbica-lesboíóbica-etc.,
é comumqueelesajamemfa\'or
desejode serprotegidopelapolfciae neutralizado pelo Estado do agressor, pois o que organizaas açõesdapolícianãoé a lei,
não importaa que preço.Nãose considera,por exemplo,adi- mas o desejo - que é, nesseca:so,desejodeperpetuaçãodesse
mensãoracistaestruturante do sistemaprisional, cujo maior sistema que garante o direitode gerire performara violência
alvoseguesendoas pessoaspretas e empobrecidas, inclusive não apenas ao Estado,mastambémaohomemcisgênero.
aquelascujasposiçõesde género e sexualidade poderiam ser A masculinidade tóxicacomo projetode poderdeveser
compreendidasno espectroLGBT.A aposta nessas estruturas abordada em qualquerdiscussãosobrea distribuição
socialda
normativascomo fonte de conforto e segurança para as co- violência. A violênciacismasculinaé umaarmatransversal
de
munidadesagrupadasem torno da sigla LGBTIA+
é um sinal normalização de géneroe controlesocial.Elaafetanãoapenas
evidenteda faltade imaginaçãopolítica interseccional desses mulheres eis e corposnãoheterossexuais
e trans.mastambém
ativismos,que estãolimitadosa lutar no interior do projeto de os próprios homenscisgênerosquetêmdealcançaressesgraus
mundodo qualtemossidoreiteradamenteexcluídas. ideais de virilidade a fimde cumprircomaquiloquea norma-
O Estadotemdimensões,
imensas,mas operaatravésde lidaikde g~nero requer.Entretanto,ma distribuiçãodesigual
suasmoléculas.Durante vários anos, parte dos movimentos da violência - que constróicorposcismasculinos
comointrin-
feministasbrasileiroslutoupela LeiMaria da Penha, que tipi- secamente viris - é responsá,·cl,numaescalamicropolítica,
ficaa violênciadomésticacontra mulheres e implementa um pela manutenção do medocomobasedasexperiências
trans.
tratamentomaisrigorosopara comaquelesque cometem esse dissidente sexual e femininaparacomo mundo.

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Arolcth-ap.,raib,maEké- CandombléSound System,nu- machulêncía


ma de suas romposições,relata uma experiênciaque habita o machullncia
imaginirlode bichas,sapatonas,travestise outras criaturas no
espectroradical das desobediênciasde gênero e dissidências Uma bicha,oito machos
sexuaisquanto à possibilidadede agressãono espaço público. rtplttosdt 6dio
A letradiz: contrabichas
viadinhos
ProçadaAl,gria sapatonas
Umabicha,oito machos caminhoneiras
ProçadaAltgria travtStis
Umabicha,oiromachos mulhtrts erans
homensrrans
Voltarprocasa mulhtrts eis
unhapintada o machoquebatt emnósi o mtsmo
shortdt ondnha o machoqut batt emnósi o mtsmo
brincona ortlha
l6pisno olho Ao ouvir essa letra, alguémpodecertamenteobjetarque
umabicha,oitomachos ela reproduz uma imagemessencializada
do homemeis,e que
isso deveser problematizadocomvistaaosavançosdosdeba•
Paulada tes em torno de gênero e sexualidade.Essacrítica- embora
ptdrada possavir a ser embasada- mepareceao mesmotempolançar
cacode vidro uma cortina de fumaçasobreaquiloquea letrade Ekévisaex-
paulada por: a machulência (umdos nomesda masculinidade
tóxica)
tífr>lada como ficçãode poder.·o machoquebateemnósé o mesmo·
pedrada porquea figuradomacho,comoferramtnta
denormaliuçào
empurra,
empurra social, garante às posiçõesde homemcisgêneroo acessoà

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- ..
70

l)igitali7ado com CamScanner


p ..
,·ioltnd• k~ilima - que j:Inlo deveser compreendida, aqui,
marco desse designglobal,a violênciacumpreum programae
romo ,·11,>lfoda
l~~I. mas romo vlol~nclapcns:lvcle plauslvcl
opera em favor de um projclode poderanexadoà hc1cronor·
dcnlf\\ Jo sistema de distribuição da viol~nciano qual esta- matividade, à cissuprcmacia,ao neocolonialismo,
ao racismo,
mos metidas. ao sexismoe à supremaciabrancacomoregimesde tx«çâo.
Da minha própria perspccliva,comouma bicharaciali-
zada, gorda e não binária, oriundada perifrriado Nordeste
Ccn.aS:Pura violfncia como design global brasileiro, i impossivelnegaro impac10dma dimibuiçàoda
violência como ameaça na minhavid,1diária.Simplcsment<
Algumassemanasatrás,um vídeovinha sendocompartilhado andar pelas ruas pode ser um iltOdifícilquandosuas roupas
atra\'ésdaminhart'dcdo Facebook.Nele,uma travestisangrava são consideradas"inapropriadas"
e suapresençamesmaé lidJ
no chio de um hospitalpúblicodepoisde ter sido esfaqueada. como ofensivaapena.spelomodocomovocêagee aparenta.O
Elaesu,·a gritando: "Por favor,não me deixe morrer agora." risco de tornar-se parte das horríveiscs1adsticas
de violência
Xinguéma socorria.Emvez disso,uma outra mulher (eis)lhe antibicha (e antitrans, antinordc.stina,antipretaetc.)é uma
batiana cara enquantoalguémfilmavatudo com uma câmera constante e não é justo que somente nós - que assumimos
de ,ideo. Espancamentospúblicos,omissãomédica, espe1acu- como ética da existênciaa desobediência
à normalidade
social
brizaçãodas mones,naturalizaçãoda extinçãosocial, genocí- ou que simplesmente estamosmal posicionadasno ranking
dios,processosde exclusãoe violênciasistêmicaformam parte dos "direitos humanosdos humanosdireitos·- tenhamosde
da vidadiáriade muitaspessoastrans, assim como sapatonas, lidar com esse risco. Redistribuição
daviolência
é umademan-
bichase outras corpasdissidentessexuais e desobedientesde da prática quando estamosmorrendosozinhase semnenhum
gênero,especialmenteas racializadase empobrecidas. Todas tipo de reparação,sejado Estado,sejada sociedade
organiuda.
essasformasde violênciae brutalizaçãosão de fato parte de um Redistribuiçãoda violênciaé um projetode justiçasocialcm
dõígn global,que visadefiniro que significaser violento,quem plenoestado de emergênciae deveserperformadaporaquebs
tem o poderpara sê-loe contra que tipos de corpo a violência para quem a paz nunca foiumaopção.
podeKr exercidaKm prejuízopara a normalidade social. No
marcodcsK designglobal,a violênciaé gerida para ser morial
para mui1ose lucrativae/ou prazcrosa para uns poucos. No

72 7l

- ..
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p

Cena 6; Rcdbttlbuiçio da ,falência Àspessoasheterossexuais,


cujahcterosscxuaiid.ide,
contlmu
ao regime pollticode homogeneiução
sexual.extermíniodo<
Apmniss~b.lska desta propostaé a de que a violência é so- desejossubnormaise genocídiodascorpor.ilidades
dewiantes,
cblmcntedistribulda,que não há nada de anómalo no modo cu gostaria de dizer:nósvamospenetrarsuasfamíli.u.
b:igunçar
romoelaintervémna sociedade.t tudo parte de um projetode suas genealogiase dar ubo desuasficções
delinhagem.
mundo,deumapollticade extermlnioe normalização,orienta- Paracada pessoacisgêneraqueolhaasi esc,-êcomonorma.
da porprincipiasde diferenciaçãoracistas,sexistas,classistas, e assim olha o mundo e o vêcomoespelho.deixoo seguinte
cissupremacistase
heteronormativas,
paradizer o mlnimo.Re- recado:nós vamosdesnaturalizarsuanatureza,quebrartodas
distribuira violência,nessecontexto,é um gestode confronto, as suas réguase hackearsua informática
dadominação.
mastambémde autocuidado.Nãotem nada a ver com declarar E, finalmente,dirijo-mea todosos ricos.a todas:ugrntes
guerra.Trata-sede afiara lâminapara habitar uma guerra que cuja posiçãode classegaranteacessosprivilegiados
a confortos.
foideclaradaà nossarevelia,uma guerra estruturante da paz comidas,conhecimentos,possibilidades
e estruturasderepro-
destemundoe feitacontranós.Afinal,essascartografiasnecro- dução da injustiçae desigualdade
económica
comoparadigma
politicasdo terrornas quaissomoscapturadas são a condição de organizaçãosocial:vamosinvadirsuascasas,incendiarseus
mesmada segurança(privada,social e ontológica)da ínfima automóveis, apedrejarseusshoppingcenterse suasag,ncils
paredadepessoascomstatusplenamentehumano do mundo. bancárias, praguejarcontrasuapolicia.amaldiçoar
suasegu-
rança, esvaziar sua geladeirae escarnecerde suasilusõesde
conforto ontológico.
6.1.Nomeara norma Nomear a norma é o primeiropassorumoa uma rtdis-
tribuição desobedientede gêneroe anticolonial
da ,•iolência.
Escrevo
agoraparaosbrancos- paraos homens brancos,bem porque a norma é o que não se nomeia.e nissoconsisteseu
comoparatodasas gentesbrancas- cuja brancura é menos privilégio. A não marcaçãoé o quegaranteàs posiçõesprivi-
umacore maisum modode percebera si e organizar a vida, legiadas (normativas)seu princípiode nãoquestionamento,
umainscriçãoparticularmenteprivilegiadana história do p-0· isto é: seu conforto ontológico,sua habilidade
d<percebera
dereumaformadepresença
nomundo:nósvamosnos infiltrar si como norm~ç ~Q mµndocomoespelho.Emoposiçãoa iS$0,
em seussonhose perturbarseu equlllbrio. •o outro• - diagramade imagensdealtcridade
queconformam

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.is dos·sujeitosnormais"- é
nurgmsd,,s 1m,jcm<hlcntilllrios
o monopólio da violência,tornandonãosóimagin3\'CI,
como
hij'fmllf'('ado,in,-cssantcmcntc
traduzidopelasanalíticasdn
também plausfvel,que a violênciapcn1ávcl
sejasempreclalx,,
po<lcre d.1t,Killid.1.!c,
simultaneamenteinvisívelcomosujeito rada desde essa posição.
e cxro>toenquantoobjeto.Nomeara normaé devolveressain- Em função disso, a simplesevocação
imaginativade ou,
terpelaçãoe obri~aro normala confrontar-seconsigopróprio, tras formas de violênciatemjá umefeitodisruptivo
sobrema
exporos regimesque o sustentam, bagunçara lógicade seu gramática que visagarantira estabilidade
da representação
da
prh·ilégio,intmsificarsuascrisese desmontarsua ontologia violênciamasculina a partirde umparalelonegativocomas
dominantee controladora. posiçõesafominadas - de mulhereseis,bichas,travestise ou•
tras corporalidadesmarcadascomoftmininase representadas
comonecessariamentefrágeise passivas
frenteà violéncia.
6.2.Fantasiasde violênciaafeminada Em junho de 2013,eu lancei- sobo nomede MCKa1rina
- uma música chamada"Eusoupassiva,masmetobata·,di•
Umdos efeitosdo monopólioda violência,como tentei de• recionadaaos pastorese fiéisevangélicos
cujaprá1ica
religiosa
monstraranteriormente,
é não apenaso controleefetivosobre implica diretamente a reproduçãodemovimen1os
deódioe
o acessoàs técnicas,ferramentase a dispositivospara perfor- controle de vidas não obedientesà estritamoralproclamada
má•la,mastambémo controlesobreoslimitesde sua definição por suas religiões.De quebra,a músicatambémpropikuma
- queimplica,porexemplo,
a representaçãodas revistascons• representaçãodivergenteda\'iolência,cen1rada
naideiadeque
trangedorase racistasda polícia(baculejos)como questão de uma bicha passivapode e, de fato.resisteàs interpelações
e
~gurançae dascríticascontundentes
de pessoasnegras quan• investidas violentasda cis-heteronormatividade.
Naépoca.o
to ao racismoinstitucionale veladoda branquitude no Brasil deputado-pastor MarcoFeliciano
ha,iapostoempautao pro·
comoagressividade
- e, para alémdisso, sobre os limites do jeto da Cura Gay,ao qual MCKatrinaresponde:
pen~\'elemtermosdeviolência.Dessemodo,é absolutamente
comumque sejamosbombardeadas
com imagense narrativas lnfc/iciano
de violência
performada
porhomenseis,bemcomo muitos dos diz que bichicetem cura
processossociaisde elaboraçãoda masculinidadepassam por masse vitr mecurar
um aprendiz.idode virilidadeque tende a confundir-se com eleé quem l'ai101111,rumacurra

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soupaSSi\'11
6.3,Treinamentos em autodefesa
rioknra
róarmada
Há muitas formas de treinar e de pensaraurodcfcsa.
Numpri-
t mttobala
meiro plano, há o treinamentofísicoe seusimpactossobreo
tSSa é umadec/aroçào
deguerradasbichasdo terceiromundo corpo, mas nem todos os corpostreinamda mesmamaneira.
~ preciso, nesse processode reapropriação
subalrcmadastéc•
N• seq·uênciadessa estrofe, entra um sampler de Pêdra nicasde violência,saber reconheceros modoscomocadacor·
Cosiadeclamandoa frasedas LudditasSexxxuales,"Sino po-
poelaborasua capacidade
deautodefesa.
Partedmr trabalho
demosserviol,nras,
no esnuwra revolución".
Se não pudermos consiste,portanto, numa mudançaradicaldepercepção.
serviolentas,não seremoscapazesde desfazeras prisões e os Somos ensinadas a não reagirà violência
quenos;nterpda
limitesimpostosà nossaexperiênciapor efeitoda distribuição ao mesmo tempo em que somosbombarde>das
porameaçase
socialheteronormativa,branca,sexista e cissupremacista da narrativas de brutalidadecontranós.Nessesentido.o projeto
violência.Se não pudermosser violentas,nossascomunidades de redistribuição da violênciadependedeacreditarmos
nanos-
estarãofadadasao assaltoreiteradode nossas forças, saúdes, sa capacidade de autodefesae,a partirdisso,mudarmosnossa
liberdadese potências.Senão pudermosser violentas,seguire- postura perante o mundo. É fundamentalqueabandonemos
mosassombradaspelapolíticado medoinstituídacomo norma a posição de vítima - mesmoquandoo Esrado,a policia.o
contranós..Senão pudermosserviolentas,concentraremos em branco e o homem eis têm historicamente
demonstradosua
nossoscorpos,afetose coletividadeso peso mortífero da vio- incapacidadede abandonara posiçãodeagressor.
Nãohásaída
lêncianormalizadora.E paraaprendermosa performar nossa senão aceitar de uma vezportodasquefomosinscritasnuma
violência,precisaremostambémser capazesde imaginá-la e de guerra aberta contra a nossaexistência
e a únicaformadeso·
povoá-lacom fantasiasvisionáriasque rejeitemo modo como brevivera ela é lutar ativamentepelavida.
as coisassãoe ousemconjurar,aquie agora,uma presença que Sim, somos potencialmentefrágeis,masissonãodeveser
sejacapazde baterdevoltaem nossosagressores,matar nossos compreendido como uma incapacidade
ou inaptidãoparaau·
assassinose escaparcomvidapara refazero mundo. todefesa.Aprendera defender-serequera elaboração
deoutras
formas de perceber a própriafragilidade.
Háestratégias,
técni•
case ferramentas que somenteumacorporalidade
e umasubjc·

)9
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))igitali7adocom CamScanner
ti\'idadecapazesde habitara fragilidadeconseguemdesenvol-
violência - deve estar comprometida
comumaéticaquepen•
\'Cr.Autodefesa
nãoé só sobrebaterdevolta,mas também sobre
se a justiça como entidade mutante,contextuale provisória,
e
perceberos próprioslimitese desenvolvertáticas de fuga, para aceite de antemão que não há respostaseguraperanteconílitos
quandofugirfor necessário.É tambémsobre aprender a ler as e questões tão paradoxais,complexase improváveis
comoas
coreografiasda violênciae estudar modosde intervir nelas. É com que lidamos.
sobrefuraro medoe lidarcoma condiçãoincontornávelde não Ninguém passa incólumepelaviolência,e todasnósque
ter a pazcomoopção. fomosviolentadase injustiçadasaolongodavidasabemosbem
disso. A violência cria marcas,implicavidas,ela nãoé nunca
um evento simples, é semprecomplexa,multidimensional,
e
6.4.Redistribuição
da violênciacomoautocuidado por isso requer cuidado.Dessemodo,paraquenãoseconfun·
dam com um embrutecimento,é precisoarticularosprocessos
Quetiposde éticadevemoselaborarpara abraçarnossa própria de redistribuição da violênciacomoutrasformasdecuidado,
violênciasem com isso reestruturar o design global de pura partindo do principiode queé tão fundamental
abraçara pró·
violênciacontrao qualnosmobilizamos?Que modalidadesde pria violência quanto tornar-seresponsável
porela,
cuidadopolíticodevemosgerara fimde sanar as feridas que a
violência(contranóse a nossaprópria)produzem nós mesmas?
Perguntascomoessasnão se separamdo processopolítico de Cena 7: O fim do mundo comoo conhecemos
redistribuiçãoda violência,afinal não se trata de clamar por
um merocultivoda forçaque repliquea ignorânciaperante a Na primeira parte do livroOscondenados
daurra,Fanonafir-
própriafragilidadeque caracterizaas performancese ficções ma que a descolonizaçãoé um projetodedesordemtotal,uma
de poderhegemônícas. \leZ que tem comohorizonteradicaladestruição
detodososre•
Tampoucose trata de uma ideia fixade justiçamento, que gimes,estruturas e efeitospolíticosinstaurados
pelacoloniza•
parta sempredos mesmospressupostose estejacalcada numa ção. Não se trata de encontrarumconsenso,
ajustaro mundoe
supostaestabilidadedos conflitose, portanto, das respostas conformar a diferençacolonialnumarranjopacífico.
Asituação
políticasquedamosa eles.A redistribuiçãoda violência- para colonial não permite conciliação,porqueé semprejã assimé-
que não sejaconfundidacomum projetode generalizaçãoda trica; ela se funda na violênciadocolonizador
contraasgentes

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colonizadase se sustenta no estabelecimentoe na manutenção forças reativas do mundo contrao quallutamos.Recusar-se
a
deumahicrarq11ia
fundamental
perantea quala colonizada oferccéralternátivasnàó é,pórtanto,umarecusaà imaginação,
podeapenasexistiraquémdo colonizador.Não há negociação mas um gesto na luta para fazerda imaginaçãonão umavia
ou reformaposslvel,portanto.A luta da descolonizaçãoé sem. para o recentramento do homeme a reestruturaçãodo poder
pre uma luta pela aboliçãodo ponto de vista do colonizador e, universalizador,mas uma forçadescolonial
quelibereo mundo
consequentemente,é uma luta pelofim do mundo - o fimde por vir das armadilhasdo mundoporacabar.
um mundo.Fimdo mundocomoo conhecemos.Como nos foi
dadoconhecer- mundodevastadopeladestruição criativa do
capitalismo,ordenado pelasupremaciabranca, normalizado Posfácio: hto aqui é uma barricada!
pelacisgeneridadecomoidealregulatório,reproduzido pelahe-
teronormatividade,
governadopeloidealmachista de silencia- Não há solução. A redistribuiçãoda violência,iãot capaide
mentodas mulheresedo femininoe atualizado pela coloniali- parar a máquina rnortlferaque sãoas policias,.
as masculini•
dadedo poder;mundo da razão controladora,da distribuição dades tóxicas e todas as ficçõesde poder.É apoenas
uma(das
desigualda violência,do genocídiosistemáticode populações muitas)maneira(s)de lidar como problemasemneutralizá-lo.
racializadas,empobrecidas,indlgenas,transe de outras tantas. A redistribuição da violêncianão é capazde vingaras mortes,
O apocalipsedeste mundopareceser, a esta altura, a única redimir os sofrimentos,viraro jogoe mudaro mundo.Nãohá
demandapolíticarazoável.Contudoé precisosepará-la da an- salvação.Isto aqui é uma barricada!Niioumabíblia.
siedadequantoà possibilidadede prevero que há de sucedê-lo.
É certoque,se há um mundopor vir,ele está em disputa agora,
no entantoé precisoresistirao desejocontrolador de projetar,
desde a ruína deste, aquilo que pode vir a ser o mundo que
vem.Issonão significaabdicarda responsabilidadede imagi·
nar e conjurarforçasque habitemessadisputa e sejam capazes
decruzaroapocalipse
rumoà terraincógnitado futuro,pelo
contrário:resistirao desejoprojetivoé uma aposta na possibili·
dadede e.scaparà captura de nossaimaginaçãovisionária pelas

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...
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-4. Notasestratégicas
quanto
aosusospolíticosdo
conceitodelugarde fala

J. Muito se discute sobrecomoesseconceitotemsidoapropria-


do de modo a conceder,ou não,autoridadeparaquesefalecom
base nas posiçõese marcaspolíticasqueumdeterminado
corpo
ocupa num mundo organizadopor formasdesiguaisde distri-
buição das violênciase dos acessos.O queas criticasquevão
por essa via aparentemente nãoreconhecem
é o fatode quehá
uma política (e uma polícia)da autorizaçãodiscursivaquean•
tecede a quebra promovidapelosativismosdo lugarde fala.
Quero dizer: não são os ativismosdo lugarde falaque insti•
tuem o regime de autorização,pelocontrário.Os regimesde
autorizaçãod.iscursi\13
estãoinsticuidos
contraessesativismos.
de modo que o gesto políticode convidarum homemeiseuro-
branco a calar-se para pensar melhorantesde falarintroduz.
na realídade, uma ruptura no regimede autorizaçôc:s
vigente.
Se o conceito de lugar de falase com·ertcnumaferramentl
de interrupção de vozes hegemônicas.,/ porqueek estl sen-
do operado cm favorda possibilidade de ,·ous
de emef\lénciJs
hlstoricamcnt,: interrompidas.Assim.quanJoosati,•ismosdo

ss

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IH~-u
dr fab ,lc$...nUt\rizam,
eles estão,cm última instância, cJc- de identidade. Se, por um lado,é necessário
pontuarexlimites
s.mt~ri1,rn,loa matriz de autoridade que construiu o mundo da forma identitária - nomeadamente
o fatode queas expe·
c\lnt<'cwnto cpistcmicida;e estão também desautorizando a riencias subjetivas e corporaisfrequentemente
c.«edemos li-
licç:iosegundoa qual partimos todas de uma posição comum mites normalizados por umadeterminadaidentidade,sendo
de acessoà íala e à escuta. impossível englobar num só movimentonarrativoo todode
uma experiência,políticaqualquerque seja;poroutrobdo,ca-
2. Portanto,a discussãonão é sobre"quem•,mas sobre "como". da vez que, a fim de criticar as políticasde marcaçãodolocal
No limite,o que vemsendodesautorizadopelos ativismos do de fala, perde-se de vistaque o que estásendoevidenciado
pela
lugarde falaé um certo modoprivilegiadode enunciar verda, maior parte dos a.tivismosdo localde falanãosãoidentidades.
des.umaformaparticularizadapelosprivilégio:s
epistêmicosda mas, mais precisamente, posições,e queo conceitodeposição.
branquitudee da cisgeneridade
de se comunicar.e de estabelecer talvez diferentemente do conceitode identidade.
incorporajá
regimesde inteligibilidade,
falabilidadee escuta política. Nãoé um certo grau de antiessencializ.ação
estratégica
poisexpres-
quebrancosnão possamfalarde racismo,ou que pessoaseis não sa um certo estado, umacertaformadeestarsituada.
e nãoum3
possamfalarde transfobia,é que elas não poderão falar como verdade absoluta (essencial)sobreumcertosujeito.Assimé que.
pessoaseis brancas,isto é: comosujeitosconstruídos conforme ao marcar a cisgeneridadenumacertaexperiência.
o quese está
uma matrizde produçãode subjetividadeque sanciona a igno- a fazer não é afirmar inequh·ocamente
o encaixepr«isoentre
rância,sacraliz.1
o direitoà fala,secundarizao trabalhoda escuta a experiência de um corpoeis e a suamarcação
categórica,
mas.
e naturalizaa própriaautoridade.Issosignificatambém o fato sim, está se evidenciandoo modocomoa inscrição
deumcerto
paradoxalde queelesnão poderãofalar comose não fossemeis corpo como eis (isrtoé, comoumcorporelativamente
coertnte3
e brancos,isto é: apagandoas marcasda própria racialidadee designação compulsória de gênero)no marcodo fundamenta•
conformidadede gênero,a fim de agir como se os privilégios lismo cisgê:neroposicionaessecorponumarelaçãoinequhua
da branquitudee da cisgeneridadenão fossemcoextensivosaos de poder perante os corposnão inscritosda mc.sma
maneira.
sistemasde opressãodasvidase vozesnão brancas e trans.
4. A noção de sabe·ressituadosprecisacomeçar
a servirp:ir• que
3. Tambémtem sido comumver críticas ao conceito político pessoas brancas se situemquantoà suabranquitude.
pessoaseis
de lugarde fala baseadasnuma crítica pós-identitária à noção quanto à sua cisgencridade,e poraí ,'3i...Querodizer:o modo

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romo..:ssa
catcsoría(sahcrcs
situados)entrouna nossavi<laaca- dida cm que não são marcadasqueessasposições
conseguem
J~mic.1e políticaacaboupor refazeros mecanismosde hipcr- aceder às categoriaspolíticasdepessoae sujeito;é tambémpor
l'isibilizaçào
da c~periênciasubalterna,criando um lastro para meio da não marcaçãoqueas narrativasproduzidas
desdees•
quea posiçiiode politicamenteoprimidofosse,enfim, narrável sas posiçõesalcançamseuefeitodeverdade
e suaaparência
de
romoumaformadeconhecimento.O problemafundamentalé neutralidade. Dessaformaas críticaseise brancasaoconcdto
que.pormeiodossaberessituados,aprendemosa falarde como de lugar de fala são parte de umalutapolíticapelamanuten-
o mundonosfode,decomoas relaçõesde podernos precarizam, ção das estruturas de privilégioe dominação
queconfiguram
masnãoabrimosa possibilidade
desituar-nostambémem nos- essas posiçõescomo legitimamente
humanas,
emdetrimento
sosprivilégios,
cmnossosmodosdeestendera duraçãoda ruína da subalternizaçãode uma multidãodeoutroshipermarcados
queé estemundo.Querodizer: nos últimos anos temos tido a pelas miradas ciscoloniale brancasupremacista.
chancedeaprendera falarsobreos efeitosde subalternidadeque
enl'olvem
nossaexperiência
como mundo,masinfelizmenteesse 6. Finalmente, cumpreresponder
àscríticasquedenunciam
os
trabalhonãofoicoextensivoaode revelaçãodessasposiçõesde ativismos do lugarde falacomoviolentos as
porreproduzirem
podercujosentidodaexistênciaé inseparávelda reproduçãode ferramentas de marcaçãodossujeitos
conforme
suasposições
regimessubalternizantes.
Porissoo conceitodesaberessituados no diagrama socialmenteestabelecido
pelaslógicas
domundo
acabouselimiundoa reproduzira hipervisibilidade
da posição como o conhecemos.Nãome interessa
nessepontoafirmara
subalternacomoobjetodiscursivo,
semcriarcondiçõesparaque, não violência desses ativismos,massituá-laemrelação
à \'iO•
aosituar-se,ossujeitosposicionados
em relaçãode privilégiope- lência primordial a qualelesconfrontam.
Comissoquerodizer
rantea cisnormatividade,
a heterossexualidadee a supremacia que os ativismos do lugarde falaestãooperandoum mol'i•
brancafossemcapazesdeperceberdensamentea própriaposição. mento denso de redistribuição
da,;olência,
oquesignifica
que.
ao marcar o não marcado,estamosfazendocomqueo modo
5.Emgeral,ascríticasaolugarde fala produzidasdesde as po• como a violência foisocialmentedistribuída
sejabagunçado,
siçõesbrancae eissãoefeitosda resistênciapolíticaà marcação projetando sobreas posiçõesatéentãoisentasdessasmarcase.
dessasposiçõesdepoder.Essaresistênciaé coextensivaàs prá- portanto, desigualmenteinscritascomoparteprivilegiada
do
ticasdedominaçãoquedão chãoà cisnormatividadee à supre· mundo como o conhecemos,a responsabilidade
deconfrontar
maciabrancano mundocomoo conhecemos.É justo na me• a violênciaque dá formaa seuconfortoontológico.

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-5. Veioo tempoem que por
todososladosasluzesdesta
épocaforamacendidas

NOTA:Este texto resulta de um exercíciode escutadas me-


mórías do futuro, um trabalhosobreas tendtnciasda polltica
contemporânea, sobre a continuidadee os modosde atua-
lização do genocídio negroao longoda históriamoderno-
-colonial, mas também sobrea dimensãoespiritualde nossa
fugitividade e sobre a forçade nossasfragilidades
integradas.
Resulta, também, de um exercícioespeculativo
comprometido
com um futurismo urgente, que se debruçasobreo futuro
imediato, excitando dispositivospremonitórios
quesirvamà
proliferaçãode narrativasquenospermitamsimultaneamen-
te estudar o terror e conceberformascoletivas
deatravessá-lo.
Finalmente, dedico este texto às minhasirmãspós-apocalíp-
ticas, com quem planejoatravessaro impossível
destalpoca.
e.specíalmenteMichelleMattiuni e PauletLindacelva,
quena
noite do dia 24 de novembrode 2018realizaramuma leitura
pública deste texto no marcodo Botecoda Oi,·ersidade,
no
SescPompeia, em SãoPaulo.

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20 DE NOVEMBRODF.2021 Pensei em respirar fundo, masnãoo fiz.Asbombasemanavam
gases que eu não podia simplesmenterespirar.Aperteifirme
VEIO o rrnro EM QUE POR TODOS os LADOS AS LUZES DESTA aquela mão que ainda não sabiaidentificar
a quempertencia.
trocA FORAM ACENDIDAS. Tudoestá posto,assim como sempre e me senti aliviada por não estar só. Corremosde mãosda-
cstc,·c,mas veio,enfim, o tempo em que por todos os lados das sem conseguir enxergardireitoo caminhoà nossafrcn1e.
já nio hi comonegarque a marcha do terror avança e que o Tropeçávamosnos escombros,caíamose seguíamos
emfrente,
Apocalipseprogramadotomou, de fato, o terreno inteiro da com todos os sentidos cm febre,atordoadaspeladorde tudo.
,·idacomum.Oscaveirõesdas políciasmultiplicados,os grupos Chegou uma altura em queacheiqueestil'esse
desmaiando.
de homenscis•héterosarmados,as sinhás brancas a renovara Não sentia meu corpo nemera capazde articularminhapró•
brancuratotalitária do mundo comoo conhecemos, e assim, pria posição. O mundo à minha\'Oha pareciatersidodesliga-
portodosos lados,veioo tempo em que a primaveratóxica da do e eu via tudo lento. Umsilêncioprofundopercorreutudo.
distopiabrasilis
fezbrotar,no verdeassassinadoda desesperan- Outra vez, senti a firmezadaquelamãoapertandoa minha.
ça, a sua flormaisodiosa. Não estava sozinha e nósestávamosaqui.Ainda.Aqui.Evivas.
Corremos e corremos,mudandodedireçãosemprequeasrotas
se fechavam, e elas se fechavama todotempo.Eraimpossíl'el
1 DE JANEIRODE 2019 fugir, mas justamente por issonósinsistíamos
na fuga.
Então uma rajadade ventocortoua fumaçaà nossafrentee
COMEÇAMOS A CORRER QUANDO soou A PRIMEIRA BOMBA. o ar por um segundo vimosa algunsmetrosdeondeestávamos
um
rarefeitodaqueleano perturbavanossofôlego,e não havia mui- feixe intenso de luz negraseprojetard~deumafendanaterra.
tas rotaspor ondefugir.Tudoestavasitiado e para onde quer Com o coraçãoacelerado,fuipuxadapelamãoemdireçãoa
quevirássemosencontrávamosum muro,um portão trancado, ela, e tive medo. muitomedo,masmedeb:eileV"ar.
Nãoeracomo
umacercaelétricaou uma matilhade cãesde guarda. Asegun· se tivéssemosmuitasopções.Nal'erdade.
basta,,.pensarporum
da bombacortouo ar antes do que esperávamos.Perdio fôlego, segundo sobrea situaçãoemquenosencontrâl'amos
parachegar
e quandoolheipara o ladoconseguiver,através da cortina de à conclusãode que não haviaopçãoalguma.Est.i"amos
condena-
poeirae fumaça,que muitas de nós começávamosa tombar. das a correr indefinidamente,a fugirsempausa,a nosesconder
Tivemedode ficarsozinha,mas alguémsegurou minha mão. de todas as patrulhas, a recusartodososabrigose a desfazer

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t,>dl'sos pact,,srom o mundo.Quantloa primeira bomba soou ~ escuro aqui. Nós muitasvezesperdemos
vistaumasdas
naquele,lia,~ml,çmoshncdiatamcntcquejá havíamosmorrido, outras, por isso nossos sentidosse aguçam.Aprendemosa
queo p.Ktoquesustentava,aindaque prccariamente,cada uma conversar pelo tato, pelo cheiro,pelosomda respiraç.ão,
pela
de nossas,·idls:-eha1iJquebradopara sempre. vibração que atravessanossaspelese reverbera
emcadaumae
em todas. Também assimlemosostúneis.Cadaaspectodessa
geografia insólita fala conosco.A umidade,oscheiros,o som
21 DE 1'OVEMBRODE 2021 das criaturas que tambémestãoaqui,e e.ssaluznegra.quase
roxa, que de quando emquandoemergede umlugarprofundo
PERDEMOSTUDO DE NOVO.~ a terceira vez que isso acontece da terra e inunda tudo,iluminandosemtornarvisível.
Sempre
desdeque veioo tempo.Os dias são longos,quase infinitos. que perdemos tudo, ela veme se encarnaemnossoscorpos.
Dminlumos indefinidamente
pelostúneis,expulsasde todos bem como na estrutura mesmade todosostúneis.
os lugares,sempreà sombra,semprejuntas. Aqui embaixo, a "Perder tudo" é a expressãoqueusamosquandoalgumade
,·ibraçãodo mundopodeser perturbadora. Há aquelas entre nós morre. Paramosde dizer·morrer porque.afinal.estamos
nósqueaindasonhamvoltarà superfície,sonham em retomar todas mortas desde a primeirabomba,e mesmodesdemuito
o mundoe devolvera ele a integridadeque parecia ter antes. antes, do primeiro navionegreiro,quandonossasvidasforam
Hátambém,entrenós,aquelasque zombamdas saudosistas,e todas marcadas comopartede umasómassaindiferenciada
de
insistemqueo mundo,afinal,nuncafoiíntegroe que, de algum morte-em-vida. Comomortas-vivas,
algumasdenósgostamos
modo,nós estivemossempreaqui. de nos identificar comozumbis.Somoszumbisporque,a rigor.
Nósesti,semos
sempreaqui,de fato.Os túneis em que agora não estamos nem vivas nemmonas..masu.mbêmporqutdes·
vivemosforamfeitospelasprimeirasde nós que percorreram cendemos do guerreiro ZumbidosPalmares.
Nashom mais
esteterritório- pessoasescravizadas,fugindo das chibatadas felizes, quando nossoscoraçõesseaquietamumpoucoe pode•
daquelesquepretendiamser seussenhores.Com o passar dos mos sentir pequenas fagulhasdevidaincendiarem
rudodentro
anos,oscaminhosforamse abrindoe multiplicando,como um de nós, gostamos de imaginarquePalmaresé aquie que.no
labirintosubterrâneo,uma infraestruturaancestral cravadana avesso de todo apocalipse,hi umavidapretaqueS< manifesta
terrasobos pésbrancosdaquelesque, pelaforçade suas armas, e vibra e brilha como aquelaluz,queemergedoprofundocadl
seimpuseramcomosenhoresdo mundo. vez que a gente perde tudo.

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28 DE OUTUBRO DE 1911 Estamoscansadas e est.lmostambémfuriosa$.
Uámomen·
tos em que desejamos tão firmemente
a aboliçiodetodasas
QUERIArODER CALARA rROFECIA MALDITADE JOÃO BATISTADE coisas feitas através de nossamort,esocia.l
quesentimos
a tem
difusordo programade extermíniodas vidas negras
LACERDA, estremecer à nossa volta.Entãod.-imos
as mãos,e recusamos
noBrasil.Eledisse,naConferência
Universaldas Raças,m tambémo medo, para desejar,j,mtas,quea tem vibreoapo-
Londres:"Amestiçageme a miséria constituirão, até 2012,0 calipse deles desta vez.
sujeitoidealda distopiabrasi/is:um brancoencardidoforjadoa
partirdo genocídionegroe indígena,capazde reproduzir, nos
trópicos,as ideiasdevida,mundo,sociedade,corpo e civilidade 1 DE JANEIRO DE 2012

do brancoeuropeu."
ELES ESTÃO VINDO. Elesestãovin,do.Acordei
assustadancsta
manhã pois senti a vibraçãodaterramealcrur:elcsestio,fo-
22 OENOVEMBROOE2021 do. Quis gritar, mas não encontreiminha,·oz.S..iassustada
da casa cm que vivo,repetindocomigo,
paranãoesquecer:
eles
ESTAMOS Jánão sabemoscomocontar o tempo pois,
CANSADAS. estão vindo. Esbarrei numa s,nhoraque,oitavadapadaria,
aquiembaixo,nada jamaisamanhece. Estou escrevendoesse apertei firme seus ombrose repeti.umae outra,n: elesestão
diáriodesesperado,
enquantopressionocom a ponta dos dedos vindo, eles estão vindo.Eladeudeombroses,guiu.
minhatêmporaesquerda,procurandoalgum sinal ou even10 Nos congressos da esquerda,nassalasdasuniversidades,
ielepiticoquemepermitatransmitirqualquercoisasobre nós. nas conversasde bar,nas ruasdo meubaino,tnquantoainda
Nãoestoupedindosocorro.A maioriade nós recusa a ideiade há tempo, eu insisto e repito:elesestãovindo.O tempodos
sersalva,poissabemosqueo mundo- ou, pelo menos,o mun• 3$$3SSÍnoschegará novamentea s,u cúmulo.
Asruass,rãoto-
do comoa genteo conhece- não reservanenhuma esperança madas pelas suas marchas,as casasserãoinvadidas
porsuas
paranós.O que busco,quando tento afinar minha mente com polícias, as canções serão cantadasparalouvarsuaordem,a
qualqueroutramentelá decima,é um modode perturbar a paz vida será cortada para caberem suasc.-.ixas,
oscorposserão
quenos soterra,invadira consciênciapacificadadaquelesque formatados nas suas gramáticas,as vozesserãomoduladas
a
vivemacimadenóse estremecê-la
coma dorde que somosfeitas. repetir seus hinos, e assim,portodososlados,elesvirão.

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Elesjá estão vindo.Antes estavam latentes, lentos, não estremecida vibrou para alémdostúneis,e sentimoschegara
propriamenteescondidos,mas certamente acanhados. E são nós as ondas de medo daquelesqueao longodessesanosto·
tantascomoeu que,já há tanto tempo, não cessaram de pres- dos nos fizeram existir no medo.Eraumataque,nósosestáva-
sentirseuspassos,de ouvirseuscochichos.Elestêm um plano mos alcançando. Irradiamosnossafúriadolorida,e sentimos
e o tempoestáchegando.Elestentarão cumprir a promessade que, quanto mais apertávamosa mãoumadaoutra,maisnos
JoãoBatistade Lacerda.O ano hoje é 2012. O ano prometido tornávamos íntimas da terraao nossoredor.
do apocalipseda vida preta e indígenano Brasil. E eles estão Atordoadas pelo nossoprópriopoder,nóst,mbémbalança-
vindo. mos, estremecidas peloestremecimento
queC$távamos
geran-
do no mundo deles,assustadascoma materialidade
do nosso
poder, com a capacidadede afetarassim,tãodiretamente,a
23 DE NOVEMBIO DE 2021 estrutura do mundo deles,a saúdedo mundodeles,a arquitc·
tura e a gramática do mundodeles.Nósestávamosali,atadas
A LUZ NEGRA ILUMINOU DE UMA SÓ VEZ O LABIRINTO DE TÚNEIS por uma força que provinha,precisamente,
da reuniãode nos-
E NÓS, JUNTAS, FIZEMOS TUDO À NOSSA VOLTA VIBRAR. Estamos sas fragilidades. Nósestávamosfracas,partidas,e já tínhamos
cansadasde sempreperdertudo. Será preciso também tomar perdido tudo, tantas, tantas vezes... Ede algumaforma,desde
algo,eonar o mundo. Destavez, foi a guerreira mais velha. aquele labirinto de túneis soba terra,estávamos
operandoum
Elajá andavadoente,resmungandocontra a nossa condição, terremoto contra o mundo deles.Defato,pareceude repente
triste,profundamentetriste, masainda assim altiva na própria que estávamos prestes a partir parasempreo mundodeles.
fúria, à altura da própria raiva. Em homenagem a ela, desta Até que veio uma exaustão e seabateusobrenóse sobre
vez,ao perdertudo,nós fizemossobrar algo, como se a dor do a própria terra. Nossas mãossedesprenderam
e começamos
a
que nos atravessativesse,finalmente,chegado a um ponto de cair, uma a uma. O labirinto de túneispermaneceuintacto.
transbordamento. Por um momento, todas nós nos perguntamos,
emsilêncio,
Demosas mãos e, à volta do corpo adormecido de nossa quanto a onde estávamos.Quãofundo,quãonocernede tudo
vtlha, fizemosvirum grande estremecimento. Algumas sen· tínhamos ido parar?
tiram medode quea terra colapsasse sobre nós, mas no fun·
do todasdesejávamosuma ou outra forma de colapso. A terra

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l9 t>E OUTUBRO DE 2018 a terra.Pouco a pouco, à medidaquenossoscorposfor.immu•
pcrando o acesso às pernas,decidimosnosseparare nosmover
UM SIUSCIO rROFUNDO AFUNDOU A MANHÃ. o último e mais pelo labirinto de túneis, a tentarcaptaras repercussões
dollOS50
c:-;ckntcallrme haviafinalmentesoado.Eleshaviam chegado. ataque e estudar as implicaç&:s
do quehavíamosfeito.
Nósa\'iwnos quedes viriam.Eleshaviam chegado. Enquanto caminhava, me lembreide uma frasequehavia
aprendido pouco antes da manhãde Ide janeirode 2012."que
a vitória recompense os que tiveremfeitoa guerr.isemamá-la".
24 DE NOVEMBRO DE 2021 Senti que a memória ricocheteounasparedesdo túnele vibrou
junto em toda a gente que me acompanhava.
Nadavibroucm
DESEJAMÓS
PROFUNDAMENTEQUE O MUNDO COMO NOS FOI DA• respOSta.Continuamos emsilêncio,estudandoolabirinto.Tu-
oo ACABE.Eesseé um desejoindcstrutlvd.Fomossubmetidasa do parecia estranhamente calmo.Est.ivamos
vivas.
todasas formasde violência,fecundadasno escuro impossível Nós viveríamos.
de todasas formassociais,condenadasa nascer já mortas, e a
,i,tt contratoda formaçio,no cerne opostode toda formação.
Desejamosprofundamenteque o mundo como nos foi dado
acabe.Eque de acabediseretamente,no nível das partículas,
na intimidadecatastróficadeste mundo destituído de mundo,
este mundoqueaté a própriaterra rejeita. Essas palavras cir-
cularamtelepaticamentepor todas as que estávamos ali, não
tanto comoum pensamento,mas como algo vibrando fora do
corpo,na carne do túnel,da nossavelha, da gente: desejamos
profundamentequeo mundo comonos foi dado acabe.
Aluz negra,que havia encarnado cm tudo com toda a in·
tensidade,foiaos poucoseseorregandopor entre os cantos do
labirinto,banhandonossoscorpos e se cravandooutra vezno
profundo.
8tivcmosalipormuitotempo,cozinhandojuntocom

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.,
-6. Escuroe nãorepresentação
- sobreNoirBWE,deAnaPi

Esses t!ni$ brilham porquenio sio fritospmpuarochjo. O


corpo virado do avessoé, na realid.Jde,
umcorpoque1~mde
outra parte. um corpo que existedeoutramaneiranotspaço
e reclama, por isso, uma outraformadtposiçio.
H.ifumaça<
escuridão, há também agudasluusazui>que
seIIIOl~m
diante
dos nossos olhos. Estou assistindoa umaviagemno espaço,
so-
uma aventura cósmica.uma"""'ção deforçasdisruptivas
bre os mundos de dor quecompõema.qu:lo
quecom~ncionou•
= chamar realidade. Estoufilindos<>bre
mágica;
tstoufal.tn•
do sobre coreografiasfugitivas;estoufalu,dos<>bre
futuridide
negra; estou, enfim, falandosobreo solodeAnaPi,NoirBWE.
Ana Pi é bailarina, investigadora,
coreógrafa
e anisu da
imagem. Sua pritica envolveas tradiçxies
incorpor,dasda
diáspora negra e as dançascontemporineas
periféricascm
um movimento simu_ltaneamente
íntimoe coleth'O
\'Oltado
à invenção de exercidos de liberdadetransitórios,
de micro
e múltiplas interrupções nas coreografias
normalizadas
de
captura e violência. Nessesentido,seutrabalhoé umestudo
sobre como estar atenta enquantodança,e a filosofi,política

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cncanudaqueda articulanosforneceum aglomeradode rit- é quem ativaa lista paraque cm seguidao jogocomece.Gra•
mos,batidas,quadri.s
que,ibram, saltos,quadradinhos e sar- dualmcntc,as \'Ozesda audi!nciacomeçama entrar em cena
radaselaboradas
atmis e para além da \'iolência racial; um com mais e mais categoriasde azul.Pi seguebrincandocom
arqun'O
scnsfrcl
degestoscomprometidoscom uma definição as palavras,fingindoe pl'O\'Ocando
mal-entendidos,
maso que
de dançaenquantoatode lutae estratégiade fuga. captura a audiênciano jogoarmadilhadoda caugorízaçãoé
Porsua,..,,adedicatória
aosltlO\imentos#BlackLlvesMatti:r a própria naturalidade do gesto classificatóriono contexto
e ;Jm=NegroVn'O,
nio operasimplesmentecomo a promo- socialcm que o trabalho se apresenta.
çãode umacausa.Maisbem,m assinalaum engajamento da Quando,no finaldo jogo,quasetodos os rótulosforam6-
mista como informecampode forçasque configura a coali- nalmentedispostosno corpo da artista comomarcas,da cor·
üo espiritual
ncgn.NoirlJWEpareceemergirde uma espécie ta o diálogocom a audiênciae correrumo às sombrasde seu
deencruzilhada
cronológica,
tanto comoa atualização de uma palco,dançandofirmementeà medidaqueas luzescncgnxau.
for.-ancestralquantoromoumaoperaçãopremonitória. Su.a Aoevidenciarosrótulosbranoos,a implemmtaçãoda luzn,g)'2
rehçãocomtempoe memória,e seu compromissocom a luta operacomoum dispositivoefiàcnteparaas políticasda opaci-
paraqueas ,idas negrasimportem, intervém na
continuada dadenegra.Eladesmaterializaa negritudecomoum objetodo
dePicomum programaéticodefuúm,amenle
dançacsp«uWiva olharbranco•colorualenquantomarcao brancocomoumob-
cnni,,,JonumattrU fomu de futuridade- uma abordagem jetode suaprópriasujeição.ll quandoo corponegrod,sapar=
dotempoquevisaoperarno futuropor meio de uma
cstrattgica em meioà atmosferaultravioletada luz ncgn queo tral..Jho
domundo,suasrelaçõesfodjdas e as
lcitunpoéticadopresente rcaliu,sua maispoderosafomu de crítica,ao dcsafiu• noç;o
bRdusr,dicaisqueelasoomporwn. mesmade materialidadeque reproduziua branquituckcomo
Numuno momentoda~. Pi propõe à audiência ulll únicae totalitária formade presença.Assim,quandoas hues
jogot,quié imponantertgistrarque,ao dizer •audiência•,ts· enegrecem,0 corpo negrorompesua contençãorumoa wm
toumertl<rindoa umgrupomajoritariamenteeurobranco). formade presençaradicalmenteoutra:tornando-s,,• <SCUrid.lo
Elacru paraa fr<ntedopalcoumbocadode pequenos rótuloS ela mesma.
autocolantes
brancose começaa colá-los ao próprio corpo Ailuminaçãode NoirBLUEé uma p;uttm enttt An.1Pi e
umaum.Enquantoisso,a audiênciaé convidada a enument fean-MarcSégalene é crucialparaa pe\"a,esp«blmcnte por
categorias azul-bebê,azul-piscinaº,Pi
deaaul."Azul•muinho, sua relaçiiocom a sombra,a escuridit\ a luz mgra e• fuma•

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ça.Visibilidade,
aqui.nãoé jamaisconfundida com transpa· cena dos rótulos brancos, a cena do leilãoincidediretamente
rénci'"Em,.., disso,da é reposicionadade acordo com um sobre a automaticidade das respostasd, audiência,instauran•
projeto,isu•I queelaboraa escuridãocomo um campo nio do uma armadilha reveladora da continuidadeentre v,lor e
representacional
ondenãohá um olhar dominante capaz de evento racial,sem, com isso, evidenciartodasas estratégias
recortarcorposcomoobjetos.Se esse é um trabalho sobre críticas lançadas na cena. Essadimensãojocosado trabalhoé,
,isibilid,denegra- e é, bemcomoeste texto, ambos inseri• sem dúvida, uma outra manifestaçãoda opacid>dena poéúca
tosporummundoquenosim·isibilizaenquanto sujeitos e de Ana Pi. Semceder ao imperativod, transparência,Piaposta
crüdomPJl'2 fucr denósumas e objetos hipervislveis -, na dissimulaçãoda densidadecríticado próprioirabalhopara
de o é namedidaemquea ,ist"bilid,de negra ncccssariam<:nle criar uma plataforma sensorialpor meiod, qual irradiaurna
desafiao lugar-comum
do regimede luzes moderno e con.6- poderosaforçaantirracista,queincidesobrea audiênciabranca
apant0smsfrdquenos permite ver através, pensar
guriu_m sem que esta sejacapazde sequerperceberaquilopeloqueestá
desdee existirparaalémdo escuro. sendo tomada.
Jinofuu.l,enquantoAna Pi arou um nO\'Ojogo - dessa vez Para encontrar as forçasacionadaspor Pi,é precisopcrmi·
umleiliodovinilcontendoa trilhasonora original da peça -, tir-seenxergarcomos ouvidos;especularcomos pés;pensar
a audiência
é con..id,daa tomar uma posição no espetáculo com os quadris; e na pele ativar tanto um radar quanto um
do,~lor.Tahua pessoaque,m= o lcil.àona ocasw, em que lócuse,;piritual.Nesseprocesso,a músicaatm-cssaossentidos,
lliistià peça(o renonudoescritor portuguêsValter Hugo Mãe), os significadose a cogniçãoela mesma,comouma forçaque
comprando
o \'inilpormenosde cíquenta euros, acreditt: que faz vibrar tudo na sala,desde o corpode Pi até o movimento
aquehctn.t um simplesmente do disco. E num ar·
da ,'Cl>da intestino de todos os corpose das coisaspresentes.JidehHigh
to scnúdo,sim,aw quandoconsideramoso drama histórico Elementsé o colaboradorconvidadode Ana Pi paraa cri.3çioda
queconectao oorpopretodeAna Pià cena do lei.Ião,temos dt trilha sonora,e suas faixassão,ao mesmotempo,composiçõ<s
confrontar
a 1ioléru:u
increnteà modernaequação do valor.O profundamenteenraizadasnas tradiçõesd, músicaektrônic•
jogo,coniudo,
é dinamiudopcb maneira com que Pi cntP e pretae rotas de fugapara osgestosancestraisde futuridackpre-
saiddc,joglndocomo "alorconua a violénciado valor. ta que compõem NoirBLUE.
NoirBWErüo cessade movero modo como certas ope· 1<,doscs.scselementosrealizamuma.:atmusfrn.,
( nl)ssu-
raçõesnaturaliud>isãofeitas.Assim,do mesmo modoque na gerem que Noirlll.Uli não deve ser lidornm<>11111esp,:riculo.

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mascomoa instau_ração
performali\'a
de um outro mundo. -7. LaurenOlaminae eu nos
·que mundo?·.
a leitorapodeperguntar,cedendo à tentação portões do fim do mundo
do trabalho de Ana Pi
da tnnsparênciLMasumadas bclez.a.s
é,precis.mente,
suacapacidade
de instaurar um mundo sem
tomá-locompl.umcnte
,•isfrel.Criar essa força imagin!ria
que- emfacedomundocomoo conhecemos{o mundo do
capiwismo
raciale seusaparatosextrativistas)- recusa a vi-
$ibilid>decomo é umaformade autoprese,vação
transparência Em The Undercommons,
FredMotene StefanoHa.mcyabr<m
especulativosnegros.Se no meio da
chs,·idase dosprojetos uma brechapara repensarmoso queestudar(IDstudy)significa,
peçaasluzesde<merg<ncU
dapolicia.
iluminamo corpo de Pi, especialmenteo estudo preto (blacksrudy),compreendidoaí
; porque. dosujeitopreto,ainda não se pode ser
desde•posição como•estudosem finalidade",estudoparaa fuga,parao pia.no
massePicontinuaa dançar depois disso,
lhrenestemundo; de fuga, isto é: para a fugasem finalidade,para a fugaindefi-
é porque,
desdeessamesmaposição,ela carrega consigo algo nida em meioà noite preta dos subcomuns.Comoquandonos
(umscgrtdo!I
peloqual\'alea penalutar. damos con1ade que há algo condenadoneste planetae que
não há paraonde fugir senãorumoà própriafuga.ao domínio
opaco,impreciso,mutante e especulativoda fuga.Estudaré
fugir.t estudar para fugir,para habitaro desterro,a catistrofe
e os outros mundospossíveisquese precipitamao fimdeste.
Lauren Olamina, personagemcentraldo livrode Octavia
ButlerParabit of tht Sower,dá-seconta de que o mundocomo
lhe foi dado conhecer está por um fio.Laurcné hiperempata,
isto é: tem 2 habilidadede absorveras dorese intensidadesde
todasas coisasvivasà sua volta,e isso,ao mesmotempocmque
a enfraquece,parecepermitir que elase conectecomas foo,-:is
que a cercamde maneira singular - uma roncx:ioque st ln
pda dor, num espaço afetivocompartilhadoonJt- osefeitos

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...

das,;oléncias,doseventostraumáticos.
ainda que sufocantes, Eu comecei a ler Octavia Butler h~ pouco mais de dois anos.
guardami;,mbémpossibilidadesde aprendiudo. De estudo. Parabl,of the Sower foi o primeiro livro com que tive contato,
Na conversacom sua amiga Joanne, ao ser confrontada e desde então, por diversas vezes, retomei a ele. Minha atitude
quantoà impossibilidade
de ler o futuro, Lauren responde: ·a perante esse livro foi - e tem sido - a mesma de Lauren pe·
assustador,masdepoisque \'OCé atravessa o medo, é fácil• Ler rante os livros velhos da biblioteca de casa: retomo a ele com a
o futuro aqui nio se trata de uma operação miraculosa, mas aposta de aprender; nas linhas e entrdinhas, coisas que possam
de um estudo,umaatençãoaos diagramas de força e às coreo• ajudar a passar pelos tempos que se desenham.
granasdo tempo,e nio se limita à capacidade de fazer maus A grande sacada da ficção especulativa é a de representar do
presságios- Laurcnse recusa a parar por ai. Ler o futuro - futuro aquilo que está já em jogo no presente. Se o mundo em
isto tas forçasque estãoem jogo na produção do futuro - é que estamos não é o mesmo de Lauren Olarnina, ainda assim é
apenaso primeiropassorumo a uma ação cujo sentido é o de possivel perceber as conexões, os encontros e o modo como as
moldá-lo,agirsobreele. forças que operam agora podem levar à situação imaginadapor
Cadacapitulode Parabltof eh, Sow,r inicia com versos de Butler.Afinal, não é difícil olhar para este tempo desde o qwJ
um outro livro,escrito por Lauren e chamado Earthsud: O •u escrevo e reconhecer nele os sinais do 6m de um mundo.
li,Todascoisasque111Tm.' Trata-se de uma teologia cxperl· Digo,conforme aprendi com Lauren: "É assustador, mas depois
menul que rtposicionaDeus e o inscreve como Mudança - que você atravessa o medo, é fácil•
forçatão irrcsistíl'ele incxorá\'elquanto maleável e caótica: Avelocidade de atualização do colapso no presente imtdia-
Godaisuli> bt iJ;ap;J.Existepárástr mõldadó, assim como 10 e $uá ressonância com proéessós nccropolfticos históricos
o futuro. Porisso,para Laurcn, o fim do mundo não é o fim fizeramde mim uma criaturaincontoma,dmcntcpcssimisu
da linha Suaaposu no futuro, no entanto, não deve ser con· peranteo futuro. Ser pessimista. no entanto, não s.ignific.i
fundidacomumotimismo,porque não r,esta dúvida de que as desistir ou aceitar uma imagemfixado apocalipscunivcrul
coius piorarão,
masé justamentea partir dessa consciência como destino último de toda forma de vida. falo de um p<S·
trágicado colapsocm curso que é possível elaborar as row e sim ismo vivo, capaz de rtfazer indefinidamente as pnipriJs
táticas para a fuga canografias da catástrofe, eom atenção aos desloc•mentos uc
forças,aos rcposidonamcntose coreografiasdo pod(r.No li·
1.No origin,J,Thr BooJ:
oftht Uvin9. mitc, f:tlocJ.:urn pessimismo que f nada m.1isquC'um <'>tu<lo..

Ili
110

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no sentidotrazidoaquia partir de Moccne Harney: um pbno -8. Cartacifradaa
de fuga.. CastielVitorinoBrasileiro
ParaLaurcn,olharo abismodo futuro e lidar com as ttali-
que sejam, é determinante paraa
dades,pormaisdevastadoras
sobre-.,j\'ência.
Damesmaforma,gosto de perceber este tempo
em suacrueldadee mistria,cm sua crueza e .seu desencanto,
porquesuspeitoquenãopossamossim plcsmcnte .supera-lo ou
Nãosedeixapara trás o que está por todo lado,
transecndê-lo. 17 DE MARÇO DE 2019

mastambémnãosepodeaceitarque o que está por todo lado


cswi parasempreaqui.Seo futuro está para ser moldado, e o Bicha,
esgotaro queexisteé a condição de abertura
presenteé colapso, A história tem, de fato, nos exigidocrueldade.
dosportõesdoimpossível. A ingenuidadeperante as formasdo podernão é um luxoao
qual nos podemosdar. Nãosesobrevivea uma guerrafingindo
simplesmenteque os canhõesnão estãoapontados,que não há
arame farpado nas ruas e queos cãesdeguardanãoenxergam
sua mira em nossopescoço.
Eusei que vocêsabe do que estoufalando.
Nósouvimoso ruído dasbombasdespencandocéuabaixoe
vimos muita gente desaparecerem muitopoucotempo.
Nós corremos em ,direçãoao apocalipseporquesabíamos
que ele ia nos pegar,de qualquerjeito.
E chega dessa conversade ficarsurpresacada,,:z queo cal•
do entorna. Vocêtem razão: a história tem exigidocruddade.
porque vimos tudo isso vindo.
Eu sei que vocêsabe que a nossaexperiênciado t.·1111><>
- Je
formasm:iisou menosdesastrosas- tro1>l\a«:ntrt'h:mJ}(lr.'11i-

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Jadessempn:muitodistintas,e quepor vezessomosarrastadas Depois de ser esquartejado,umcorpojamaisretornaa seu
por,~lhasoorn:ntcs,tornamo•noshabitantescompulsóriasde estado Integro, de modoqueo nossocorpo- esquartejado
ump.1ss.1do
queseatualiza. intergeracionalmente- é testemunhado fatode quea inte•
Amatérb orgânicado nossocorpo é acostumada a esses gridade se constitui na aliança.Que nossoscorpospartidos
sobressaltos. encontramextensãoe órgãounsnosoutrose nascoisas- nas
Todabichapretavivadeveestar atenta como condiçãode flores,na terra.
csur \'iva.Essaregra nós não inventamos,mas há forças e Jamaisfomoshumanase porissopodemos
serflore merda
saberesquesó poderiamter emergidodo fato de termos sido e sagradas.
submetidasa ela. A saúde elegidapeloimpérioqueregeo mundocomooco·
Háalgono que estamosfazendoque não pode ainda ser nhecemos é o patógeno.
apreendidonempornósmesmasnempelasgentese coisasque Se nós enxergamosa cura,é porquedosnossosolhosforam
noscercam.Porissonão há linguagempara descrevera força arrancadas todas as capasquemascaravam
o mundoe a sua
que mearrasta até o seu trabalho,mas também não há nada integridade.
pordesvendar.Nósouvimosos sussurrose nos dedicamosa Para nós nada é íntegro.Issoé a históriaa exigir•nos
cruel•
montare desmontaro quebra•cabeça. dade.
Ummanjericão
roxoplantadona suagarganta,uma raizcos· Nós enxergamosa cura,e enxergamos
nacurao limitedo
turadacomtintavermelha.Eunãome interessopelosignificado mundo que nos foidado.
dessasimagens,maspelasprofeciasquehá nelas.Emoutras pa• Sabemosque a sementedissoestáparaflorescer
agora.
lavras:nãoé o significado,
maso sussurroque me motiva.O que Somos a Anunciaçãoem cadagesto.
euconsigolernãoé o foco,poisa nossaconversaestá no ilegível. Merdas e sagradas.
Muitointuitivamenteeu diria que posso sentir de longea Aqui foi o Quilombodo PaiFelipe.
vibraçãoqueviajano tempoe se manifesta no seu quarto de
cura.Masporqueos olhosainda doem? Com carinho,
Nósentendemoso recadoe sabemosque vamos testemu• Monstra Errática
nhar uma épocabrutal, mas quais épocas não foram brutais
conosco?

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-9. O nascimentode Urana

Nota: Esta é uma obracm processo.Apremissaesptculath•a


desenvolvidaaqui pode e vai. .a partirde um percursomais
denso de recomposição,passar por alteraçõese desdobra-
mentos. Assim é:queconvido.aleitoraa interagir,
pormtio
deste texto, com um episódioi:maginatirn
cujosentidonio é
o de formular utopiasnas quaisas imposições
do íundamen-
taJismocisgêneroestejamsuspenS3s;
antescontribuirplr.t
a composição de estratégiascoleti1•asde resistência,lutae
contraposição aos modosncfa.stosdeatualizaçãoda violin•
eia distópica contra corporalidadestranse dcsob«licntes
de
gênero. Este texto é tambémum conviteparaa ocupaçãodo
espaço generativo do futuro com ficçõespotencializadoras
de outras formas de existênci.a,corporalidade:,
coleti\'idade
e luta, que interajam de formadensae conmta como rui.
produzindo-o em direçõestendencialmente
d,sviantesdos
projetosiíôrmalizadotésde mundo.

t17

- Digi1ali2adocom CamScanner
o l

,•khoque nasci. A sireneda onda de terrormeacordou


antesdasquatrodama•
Sem perceber bem os contornos, fui explodindo de fora a nhã e um desesperocru percorr,cu
minhacarne.
fora. r<:\'irandoos intestinos do planeta. Primeiro cu era fogo, Quando abri os olhos, meuc,orpocst~vaimobilizado
como
e então gás. Umaprecipitaçãode chuva apressou minha queda se tivesse sido atingido por uma-descarga
elétrica.Antesdepo·
e. sem sequerter olhos, vi u:macordilheirade carne escurase de:rrecapitular o que sonhava,mobilizeitodaminhaconct:n·
materializarnum oco de mundo. tração em desmontar a paralisia.Dalia1é • próximasirene.se
Cadagramado meupesoestavainfundidode memória.Eusa• tivessesorte, seriam oito trêsminutos.e euprccis
..wa depelo

biadasguerras,dascatástrofe$e da morte,podiamedir a extensão menos três paraconseg,uirrecuperar


os movimentos.
do desesperohumano,e o conjuntode feridasdo mundo sobreo A vibração da terra me alerta sobreum• patrulh•de cães
qualcu caiafoitranscritonas,cavidadesma.isíntimas da terraque de combate cumprindo seus ri1uaisdecaçaa poucosquilóme-
euera.Masnão haviatempo,e aquelenão era meu passado,pois, tros daqui. Se algo - ou alguém- correndoperigo1en1asse
quandonasci,aindanadameantecediae eu não antecipavanada. fugir dos arredores da minha localização.
eu tambémesuri3
Então,comouma coceira,,vi uma mata espalhar-se pelapele em risco. O pavoratacoumeuestômago,
e tivededeslocar.1
do planeta.Ascascasdas árvores emergiramprimeiro, junto às atenção dos braços para controlarumimpulsode vómitoque
coresque vi crescerpara fora e para dentro, como camadas de se precipitavapor meustubosinteriores
t ame-aÇJ\"J.
me:.1fogar

informaçãoespessaa cravar,-sefundo, como dedos e punhos, caso se concretizasse.


numapenetraçãoconsentida,a e.scavarna superfíciedo planeta Eu esta"ª deitada decostas,sobreumbancodear<ia.numa
uma profundidadeinsuspeit.ada, região de dunas desérticasentreo ocuno e os restosde umJ
Na minha informidade,sentia tudo e me espalhava por to· antiga reservade MataAtlàntic.a.
da parte. Eu era imensa e destrambelhada, como uma força Depois de conter o ,·õmito,,·olteia concentrar-me
nosbra•
replicante,a multiplicar-me pelas sendas sem sociedade, nos ços, tentando extrair da paralisiJ,primeiro.pequenos
movi•

vãose desvãosdesta terra sem mundo que era meu corpo, cs1c mentos de dedo. Eu sabiaque nãoeracapazdemepôra correr
corpo de carne e terra, de água e minério, cozinhando a toda cedo o suficientepara meafastJrd•liantesdeseratingidape!J
no buchosem fim nem começo do planeta, próximasirene~porissod!i!cidi
c-;t,•ar.
Seeu me.:
csconde-s.se
sob

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a terra,as ondasde terror não fariam mais que atordoar alguns 2

de meussensores.alentandominha capacidadede reação sem,


entretanto,medeixar paralisada. Minha primeira transição se tornou consciente para mim por
Naquelemomento.era a patrulha que me assustava mais, volta de 2017.
porissodeixeique partede meussensores táteis se concentras• Naquela altura, muitas de nóstínhamos a impressãode que
sem na,ibraçàoda terra,enquantoos demais trabalhavam para as coisas mudariam para melhor, embora estivéssemostambém
dC\'Oh'tr
a capacidade
de açãoao meucorpo.Tão logo as mãos e atentas à persistência dos sistemas de controle e do assassina.to
os antebraçosse liberaramda paralisia.comecei a cavar; o resto político que nos eram endereçados.
docorpofoisesoltandoà medidaque eu mergulhavana duna. Era um tempo ambivalente.Ocupávamosespaçoscontradi-
Nãoconteiquanto tempo levouaté que eu soterrasse o cor-
tórios, numa tensão permanente entre as posiçõesde sujeito e
po por inteiro,mas pres'Sentique as sirenes chegariam logo e,
de objeto, entre o acesso e a exclusão,entre a afirmação da vida )
uminstantedepoisde fecharo buraco,ela veio.
e a imposição da morte. Para muitas de nós, a única forma de
Estadurou mais que o habitual.
nascer nesse tempo era ainda travando um pacto com a morte..
Mesmoa10rdoadapelosefeitosda onda, cavei tanto quan-
Eu não saberia prever em que aquilo daria, mas sabia bem
to pude, sem parar, mergulhando fundo no banco de areia,
o ponto de partida: uma fuga desabaladada masculinidade
com esperança de que a minha marca hormonal não fosse
compulsória que o fundamentalismo cisgênero havia inscrito
captadapela patrulha. Eusabiaque, com o corpo em ebuli-
ção pela quantidade extrema de alterações bioquímicas que violentamente sobre meu corpo.

vinha fazendo,minha presençaera detectável de longe pelo A experimentação com hormônios começou somente uns

nO\'O sistemade reconhecimento incorporado recentemente anos mais tarde. Primeiro com um coquetel periódico combi•
pelaspatrulhas. nando estrogênio e bloqueador de testosterona, que pc!rmitil
E aind.aque ali, sob a terra, eu tivesse alguma vantagem, ao meu corpo uma transformação mais radical no nfrd mok-
jamaisseria capazde esapar das eventuais investidas de uma cular, assim como à minha percepçãoe s.,nsibilidade,no nivd
patrulha inteira. No estado de transição em que estava, ainda emocional, uma mudança afetiva e intelectual.
não meera possívelsimplesmentedesmanchare espalhar meu O acesso aos hormônios, contudo, havia se tornJdo mJ.i.sri-
corpopelaterra.Porissoa pressaem chegarmais e mais fundo. gorosamente regulado pelas instânciasde controlebioquin1ico.

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--
Aasce-nsãodoCISTEMA,
noterrenoda políticainstitucional» 3
abriucaminho paraa aprovaçãode leis nefastas, como a da
Destransição
Compulsória
parapessoastrans sem diagnóstico Acordeisem saber que ano é hoje.
ea da Renaturalização,
queimpunhaàs pessoasdiagnosticadas Outra vezsonhei que era um planeta,e um bicode metalde
como"transexuais
,-erdadeiras"
a implantaçãode microchipsre- muitos metros invadia minha carne dorida.Essesnovoshor•
guladoresdecomporumento,
alémdeprocedimentosviolentos môniosdeviamestarme transicionando
muitorápido,e talvez
comoesteriliz.açâo
inroluntária
e instalaçãode marc.ashor• aquelessonhos fossemuma formadealertar meucorposobre
monais pormeiodasquaisas biopolíciaspoderiamconferir se suas novasdinâmicas.
as taxasde hormóniosde umdeterminadocorpoestavam de Já fazia dois dias da última onda de terror.
acordocomas declarações
medicase jurídicasregistradas para Era a primeira vez que eu experimentavauma certa forma
aquelemesmocorpo. de tranquilidade,comose aque.letemposemdescargasde pavor
Corposnão autorizadosa transicionar,ou corpos cujas e desesperome tivessepermitidodescansardarotinaexaustiva
dietashormonaisnãoobedecessem
aos desígniosda medicina que a fuga me impunha.
fundamentalista,
eramconfinadosem instituiçõescarcerárias Decidiarriscar-meum bocadoe sairdaduna.Traceialgumas
ondepassavam
porprocessosbioquimicos
e cirúrgicosde des- coordenadas,com atençãoàs vibraçõesda terrae aoqueelasme
transiçàoforçada
.. diziamem relaçãoà demografiadaquelaárea.Nãoqueriaencon•
Muitasde nósmorremosnas mãosdos soldados da medi· trarninguém que pudesseme pôrem risco,fosseatacandoou
cina fundamentalista,e as que não foram pegas, tivemos de simplesmenteatraindo demasiadaatençãopor descuido.
aprender
a existirnaszonasde inexistênciaimpostaspor e,sse Identifiqueio topo de um monte e, depoisde ter me apro-
regime,hackeando
nossasmarcashormonaiscom substâncias ximadoquanto foi possívelde sua base,comeceia cavarpara
indetectáveis,
ou quaseindetectáveis,descobrindo e experi- o alto. Fui me desviando de algumasrochas,colhendoraízes
mentandonovasformasde transiçãobioquímica, indo além desatadas de suas plantas e perdidasna imensidãode terra e
daquíloquea indústriafarmacêuticado CISTEMA
havia insti• areia daquele monte, subindoaté chegara um lugarondesenti
tuídocomofórmula. que podia sair sem correr perigo.
O contato direto com o ar me encheu os pulmões.produ·
zindo uma forma de prazer tão genulnaquanto ,1111i11h•
$NC.

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As alteraçõesbioquímicasque vinha realizando me permitiam 4
hidrataro corpo sem ter de necessariamente beber água, 01as
minhaboeasentiaa faltado líquidoa escorrerpela língua,den• A furadcira de metal giganteavançoufundo.O filfdobrutóe a
tcse garganta. vibraçãoaguda da extraçãocravavamas ossadasdo planet.a.Eu
Desdea secados rios e·m 2039, era impossível encontrar era o petróleo, a terra invadida, o metal da furadeira. Eestava
água potá\·c1na superfícieda Terra. Com base cm um conhe• atordoada pela dor de tudo.
cimentoKrcnak antigo. ailgumas de nós acreditávamos na De repente senti que a te.rraà minha \ olta fervia,que o fogo
1

hipótesede quecks ha\'iamse escondidosob a superfície da se alastrava por dentro. Deixei-meinundar poraquelasensaçio.
terra: porém,coma intensificaçãodas perfurações em busca O planeta vibravatenso, num contraêxtase ansiosoperante as
de petróleo,minériose também água, começávamos também a investidas do metal contra a terra.

acrtditar na extinçãoiminente dos reservatórios subterrâneos. Aos poucos, apercebi-me que suava. Muito. Senti também
que me secava numa velocidade assustadora.
Então,uma explosãodistante encheu o ambiente de som e
Na medida cm que me reconectei com meu corpo, meus
inquietude.
sensores estavam ainda tão atordoados que podia jurar ter sido
Olheina direçãodo barulho e vi uma das bases marítimas
engolfada por uma onda de terror infinita.Terror e tensão. Não
do CISTEMA
arder.Teriasi.doum acidente?Ou uma ação pro-
conseguia sequer perceber o lugar em que estava. Sentia-me
gramática?
Sealgo- ou alguém- tivessefeito aquilo ... teria
prestt, mas não era capaz de identificar as amarras.
sido uma de nós?Eu queria acreditar que sim! Precisava acre-
Haviaalguéma observar-me?Onde eu estava?Quem,ou o
ditarque sim! Faziatanto ·tempodesde a última vez que senti
quê havia me capturado?
esperança
... Era estranho. Aospoucoscomeceia perceberágua corren·
Masduroupouco.Umanovaonda de terror foi ativada na te à minha volta.Tivesubitamentea impressãode que minha
daexplosão.
sequência localizaçãoera alguresno fundoda terra,depoisda linhaocd·
Stntimeucorpoentortardedor e desespero,achei que fosse nica. Se havia jgua ali, talvez os rios tivessemmesmose ~scon-
morrer,tamanha a intensidadedaquele afeto. Quando recobrei dido sob a superfície...
os sentidos,a paralisiajá tinha passado; mas eu estava detida, Mas como cu havia chegadoaqui? E onde cu esta,·,? Meus
algomecontinha- e eu sequerconseguiaperceber o quê. sensores ainda não respondiam plenamente i minh.\ C(ll\Sd~n-
cia, mas já podia discernir alguns sin:,is.

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-
s cxp.crimcnt:11
e demorou multoatéqueas formasde transição
fizessemsentido.
Sentiacomosecslircssccm iodaparte, ,\o nwsmo tempo era foi cm2033 quço p.rimçiro
ataquedaterraàsba~ doCISTF.-
comose eu nãoestivesseem partealgum1a. MA aconteceu.Um ·tremorderrubouas fundaçõesde um centro

Comtodosossentidospermeadospelaterra, mas sem ainda carcerjrio em construção.Os noticiárioso anunciaramcomo


sercapazde perceber
ondecst,wa.tentavacom todas as forças um fenômenonatural,e nãofoi mesmode imediatoquenósnos
captarsinais,frequências
e informaçõessobre aquela explosão permitimosreconhe-cerqueaquilonãoerameracoincidéncia.
emplenomar, A partir dai, os ataques se multiplicaram.Centrosde deten-
Emplenomar!!!U, ondeas basesdo CISTEMAforam abri- ção,clínicasde destransição forçada,escolasde costume,bases
gar-sedasin,-estidas
daterra.O custoda supostaestabilidade militarese centros financeiros,poucoa pouco,iam sendoder-
dess.as
basestinhasidoprecisamente
a esterilizaçãoradical da rubados, engolfados,implodidos,soterradose cercados.
vidamarinha. Quandodecidiiniciarminhatransiçãorumoà terra,o CIS·
O fundamentalismo
tisgêneroliacomo ameaçatoda form.a TEMA já haviacomeçadoseu processode ocupaçãoe controleda
de \'idaquenãose resumisseao seu projetode mundo. Toda costa,deslocandos:uasbasese, logo,tambémsuascidadespara
a costaha\·iasido,portanto,contaminadadeliberadamente,e espéciesde ilhasflutuantessemcontatodiretocomo continente.
tudoestavaagoratomadopormic-roplásticos
e uma espécie de Também havia multiplicadoas máquinasde extraç.io,con•
fungo,cuj~funçãoeraprecisamente
a de perpetuara morte do troladas remotame:ntedesdeas basesmarítimas,cujafinalidade
ccossistc~ma
marinho. era basicamente empobrecer a terra a fim de torná-la menos
Esseprocessoteveiníciohácercade dez anos, como reação prolíficacm ataques contra o CISTEMA.
às novasformasde transiçãoque passavama circular entre Os assassinatos e destransições seguiam,agora também
gentetranse alémdenós.ES1ávamos
descobrindo mais e mais contra as novasformas de vida 1rans.A perseguiçãoà terr:,cr:,
dispositi\'OS
hormonaisquepermitiamprocessos radicais de feita de maneira ccoextcnsivaà perseguiçãoaos corpos trans,
desmaterialização,
transiçãode espécie e integração com os assim comoa lutados corpostrans,a cadadia,tomava-setam·
clemcn101
daTerra. bfm coex1ensiva
à lutada terra.
Muitasde nósestávamosabrindomão da humanidade em O continente havia se tornadoumn terraÍURitiva,
(trca•
favorda possibilidadede tornarem-seterra. Era um processo da de um mar nssassinadopelo projetode mu11tlo
,lo fund:t•

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mentalismocisgênero.Todosos seresvivosque o habitavam
estavam,de algumamaneira,fugindodas patrulhas do CISTE-
MA, buscando abrigo na terra e t<ntando encontrar modos de
sobrevivere preservar
seussaberese comunidadesapesardas
investidastotalitáriasdo regime.
Como deslocamentoparao mar,tornou-sequase imposs{-
\'elparaa resistênciaatingirconsistentementea infraestrutura
do CISTEMA.Aquie ali, era possÍ\dregistrarataques pontuais
a algumas patrulhas,desmontesdas grandesmáquinas de ex-
tração.masnadaquedanificasse
demaneiraintensivae perma-
nente as basesdo fundamentalismocisgêneroque governava
o mundo.
Casotivessemesmosido frutode um ataque,e não de um
acidente,aquelaexplosãoabriaumanovagama de possibilida-
des de intervençãono regimefundamentalista.
Mascomo?Que novas forçasestavam em jogo? Com que
efeitose comqueriscos?Ecomoi® poderiafazerrecirculara
vidaentre aquelasdentre nós confinadasem prisões materiais
e simbólicasdo CISTEMA?Eu podiasentir a terra vibrar com
cada uma de minhas perguntas,c~mose pensássemosjuntas.
Ou talvezfosseapenaseu a vibraras dúvidas da terra. Ou
ulve2. àquelaaltura.minha transiçãose havia completadn e
eu já eranada.
Eemsendo nada,eu finalmentepodia ser qualquercoisa.
E tudo.
(...)

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.J
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Carta à escritora de vld'as Infinitas

Querida amiga,

Ensaieialgumas respostasparaesseconvite,que,comote dis-


se antes, recebi com muita alegria. Nos rascunhos eu falava
sobre as dimensões políticas do segredo e sobre o contexto
de tuas palavras aterrizando na ficçãobrasilis,tcnsionandoos
limitesdos projetos românticosde libertaçãode 111II1a
esquerda
quese sustenta nas mesmaslógicasde dominaçãoquea.firma
quererminar.
No titubeardessa escrita,VtioJnovamente,o ttmpoem que
portodosos ladosas luzesdessaépocaforamactndidas.2020se
instaloucomo peste e comopossibilidadede testemunhoglobal
da facenecrosada da experiênciacolonial.O ttmpo nãocessará
de chegar, parece-me oportuno que teus escritô!Sganhem cm
abrangênciae circulação,justo porqueelesnão se confinamna
tarefacolonial de oferecerrespostasàs demandas mesquinhas
de nosso presente histórico.
~ neste presente histórico, que cm tudo converge para
interdições e.fronteiras, que tuas elaborações assentam na
formalivrodo ladode cá doAtlântleo,e Isto1orn1 ,vidente

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que este tempo também é frnctal e que hi muito a ser Deixar que cada texto faça o que ele deve fazer, abraçar a
espiral,do. transformação 3.que convocam, sem se prolongar mais do que
Depois de abandonar todas as palavras adequadas, escre• o necessário. Não se trata de adesão total, mas de pregnância
vo-tc transmutada cm pedra. Pedra. Não pela qualidade secu- e movimento.
1,r, afinal nossa tarefa não é sustentar o peso do tempo linear. Notar, também, que teus escritos chegam em meio a tan-
Pedra, sim, embora não seja possível fecharmo•nos em rocha tos outros que insistem nas afirmações das humanidades ou,
contra o mundo. Pedra porque quero oferecer-te, a ti e às tuas quando muito, tomam a não humanidade como tema. Voe-ée.s-
lcítoras. as palavras que escuto quando me dedico ao tempo tá entre aquelas que, dotadas de uma coragem peculiar e nada
da terra. Epedra porque já fui, e logo serei novamente, lava do heroica, escrevem atentas à sua própria condição não humana
fogo que incendeia no agora, desde sempre, o centro da Terra. e criam, assim, uma zona de conta to com aquelas de nós cujas
Para aquelas que s.ãoc.ipazesde escutar, Não ,1ãonosmatar vidas são ditas impossíveis.
agoraé conjuro,anundaçâo.As que buscam rotas de fuga podem Não é exatamente a intenção de ensinar qualquer coisa so-
encontrar pcçu para construçlo de uma bússolaltica, cujas setas bre como atravessar esse tempo que encontro cm tuas palavras,
não indicam nem o norte, nem o sul. mas o rastro dos caminhos embora elas nos digam algo muito precioso sobre a tra\·essia.
das ancestrais- do futuro e das que já vieram, comprometidas Há algo neste livro que podemos chamar política: trata-se da
com o destinodecriarraízesentreas estrtlas. articulação dos movimentos sensíveis, teóricos e poiéticosque
Te perceboa»im, rastreando entre universos, coletando tu- não se encerram no desejo de Ser, mas cr.ansbordam e trans-
do que pode ser utiliz.adopara escapar, estudando túneis ainda tornam o movimento de tornar-se.
por CSC-3\'aJ,mas já muito, muito antigos. O tracejar desse per· Quando te leio também lembro de Denise Ferreira da Sih•a
curso não determina um espaço-tempo aonde se deve chegar, e imagino estrat~gias para uma vida infinita, que cm nada
porque, como feitiços, não ,cm receita. É um caminho sem serve à manutenção das estruturas deste mundo. lnccrt.a e
mapa, que depende da realiiação de uma sequência de gestos impossível. Vida que não pretende ser preservada pelo mun-
precisos.condicionados a posições singulare.s e cambiáveis. do como o conhecemos. Infinita porque implic.ada.com um
Alguns desses textos eu leio em vot alta, para lembrar que mundo vivo. Quando te leio, coleto pistas para uma vida que
palavras são perecíveis, e é quando elas desaparecem cm nós não anseia se prolongar indefinidamente ou a qualquer custo
que ganhamos, com elas, a habilidade de profanar o tempo. pelo tempo linear.

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Se o contrá.rioda vida nãoé a morte,e sim o cativeiro e
a escravidão,a vidainfinitaescorreparafora,além e aquém
do destino que nos foidesign,dopelofuturo branco cis•hete-
ropatriarcal. Percebendoisso,possodizer:explodirem pó de
estrelas e borbulhar em lavasão trabalhosde decomposição
,•ital,maissemelhantesentresi do queas imagensque temos
para elespodem conceber.
Entãoeste livro está comprometido
com umaimaginação
radical contra qualquer possibilidadede recentrar ontologi·
c.amcnteas que.~tõe.s
do Ser.Colabora
paratransmutaros ter·
mos,as posições,os paradigm.s.Ativaoutras sensibilidades.t
um trabalho de elaboraçãode forças,diagramase dispositivos
que e-.stão
comprometidos,emdimensõesvisfveise invisíveis,
como contorno deuma bússolaéticaparaque nos espalhemos
entre a vida das pedrase das estrelas...

Comamor,
Cíntia

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Referências bibliográficas

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l'artcs 1 c 2 disponlvcis,m: <https://radio•frolis.com/2017/10/19/
:audio-166-lugar-dc•fala-e•nlacocs-dc•poder-com• jota•mo:mba-
ca-parte-i/>e <https://rodioafrolis.com/2017/10/26/audio-167-lu-
gar•dc-fala-c-relacoe:s•dc•podcr•com-jota·mombaca-parte-iif>.

Singer,Bryan.X-Men:ApocaU~. Marw.lEntcrtainmcnt,2016.
Mombaça.Jota.Lugarde escuta. Falaproferidano cicloVoz:csdo
Sul do Festivo) do Silêncio em t• out. 2017.Disponívelem: <https://
www.facebook.com/jeferson.isaac/posts/lS6S3863368S7409?pn•
ref.story>.

138

L
lligit-Oli7-0docom C-0mSc-0nne.r
© Editora de 1.,ivrosCobogó, 2021
Coordenador da coleção
José Fernando Peixoto de Azevedo

Editora-chefe
Isabel Diegues

Edição
Aicha Barat

Gerente de produção
Melina Biai

Revisão
final
Eduardo Carneiro

Projeto gráfico e diagramação


Mari Taboada

Capa
Thiago Lacaz

Imagem da capa
Jota Mombaça e Musa Michelle Mattiuzzi. 202111.2019

Nesta edição, foi respeitado o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


de 1990. que entrou em vigor no Brasil em 2009.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ

M743n
Mombaça. Jota. 1991- Não vão nos matar agora/ Jota Mombaça.
- 1. ed. - Rio de Janeiro: Cobogó. 2021.
144 p.: 21 cm. (Encruzilhada)
ISBN978-65-5691-026-0
1. Brasil - Condições sociais. 2. Ensaios brasileiros. 1.Titulo. li. Série.
21-70481 COO: 869.4
CDU: 82-4(81)

Todos os direitos em lfngua portuguesa reservados à

Editora de Livro, Cobogó Ltda.


Rua Gen. Díonlsío. 53. Humaítá
Rio de Janeiro - RJ - Brasil - 22271-060
1,ww.cobogo.com.br

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Não vão nos matar agora
Jota Mombaça

Performances do tempo espira/ar, pofjt/cas do corpo-tela


Leda Maria Martins

Discurso sobre o colonial/smo + A tragfjd/a


do rei Christophe + Uma tempestade
Aimé Césaire

Adinkra: Sabedoria em sfmbolos africanos


Elisa Larkin Nascimento e Luiz Carlos Gâ (orgs.)

Digitalizado com CamScanner

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