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FERNANDO MENDONÇA

Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo


Professor de Literatura Portusuêsa na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras. de Assis

O ROMANCE
PORTUGUÊS
CONTEMpOR aNEO

Capa de Lila Galvão de Figueiredo


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis
1966
“CAPÍTULO IV

. —ARQUÉTIPOS DO ROMANCE ATUAL. :. :


cu dido dao tes

* Como Se poderá ter observado logo no início deste livro,


guiando 1 naa Introdução foram apresentadas. algumas Obras « que

quéceu-sé stibitamente sob diversos aspectos; 'sendo 1 um “desses


aspectos é à variedade dós temas. e das problemáticas. A partir

um nôvo tipo. dé ficção “onde” avúltam, “sobretudo, ó mistério


ou a. dialética das relações humanas, o mito das fraquezas do
romance. português, aliás já muito abalado pela invasão neo-
“realista, “ficou definitivamente enterrado no ;cemitério das
hipóteses |erradas. -
“o, Cabe agora, neste “capítulo, assinalar. aquéles.1 romances
que, por características diversas, deverão ficar como novos
marcos, visto trazerem à ficção portuguêsa algo de nôvo, quer
no que toca à reinvenção dos conteúdos, quer no que toca ao
estilo,à estrutura -ou-ao processo narrativo:. Não se pretende
significar que virão a permanecer na história da literatura
como limites ou pontos de partida (apesar de alguns já esta-
rem irremediávelmente como. tal); mas simplesmente. que, no
momento atual; êles se instituem como “arquétipos; “como “ro-
mances exemplares”, como obras por. enquanto--ímpares, -e,
principalmente, como romances que -nos apresentam. algo. que
jamais fôra visto nas letras portuguêsas. do Del EINE a

= Para esta: “galeria. de. arquétipos, foram selecionados. seis


romances: Estrêla.Polar,
de Vergílio: Ferreira; Rumor.Branco,
126 FERNANDO MENDONÇA

de Almeida Faria; O Mestre, de Ana Hatherly; O Hóspede de


Job, de José Cardoso Pires; Kerazade e os Outros, de Fernan-
da Botelho; Os Quairo Rios, de Agustina Bessa Luís. E assim
distribuidos, segundo os útimos três anos: dois de 1962, dois
de 1963 e dois de 1964. Só por coincidência é que aquêles seis
romances pertencem em número igual a três autores e a irês
autoras. E ainda que isso encerre um significado bem. impor-
tante na história das letras portuguêsas, não será êsse assun-
to aqui ventilado. .

A divergência de problemáticas assinalada na Introdu-


são não fica profundamente evidenciada nestes seis romances,
embora se apresentem poliédricos nos seus temas. O fato é que
êles estão robustamente ligados por um mesmo fio condutor:
o problema das relações humanas. Todos êles equacionam ou
debatem essa área misteriosa de relação — o problema irreso-
lável da não correspondência das ações humanas, que assim
se institui como o enigma da esfinge. As Relações Humanas é,
inclusivamente, o título duma obra cíclica que Agustina Bessa
Luís inagurou com o romance Os Quatro Rios. Desde Estrêla
Polar até aOs Quatro Rios, assistir-se-á ao mistério do homem
diante de si mesmo e diante dos seus semelhantes — à dialé-
tica pungente e dramática da inaptidão do dar e receber sem
preço. o o :

À — UM ENSAIO EM FORMA DE ROMANCE.

O resultado natural a que Vergílio Ferreira chegou de-


pois de Aparição foi Estrêla Polar. Em nota explicativa desta
obra, o Autor confessa que “Estrêla Polar continua, de algum
modo, Aparição”, dado que “à revelação da pessoa humana
(não à física, nem à psíquica, mas à metafísica) sucede agora
“a obsessão de transmitíla a outrem e de a ceder à dêsse ou-
trem”. Mas as coisas não são assim tão simples quanto o Au:
tor no-lo quer fazer acreditar. Estrêla Polar é um resultado.
O Romance PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO 127

Não é a primeira vez que o autor destas linhas faz tal.


afirmação. Já a fez, inclusivamente, ao próprio Vergílio Ferrei-
ra, que não a negou, antes a confirmou. A evolução do pensa-
mento do Autor de Manhã Submersa tem sido coerente eobe-
dece a áreas do pensamento moderno, que tem desenvolvido
na produção de alguns ensaios que ficarão na história do emw-
saísmo português. A sua ficção teria fatalmente de acusar a
presença duma atitude filosófica, e a evolução do romance de
Vergílio Ferreira tem-se efetuado no sentido do axiológico para
. O puramente metafísico, passando pela fenomenologia husser-
liana, de que tem sido um fregiientador e um comentador. É,
todavia, em Heidegger e Sartre que Vergílio Ferreira tem for
talecido (e criado) a sua filosofia, que mergulha profundamen-
te no existencial. Não satisfazem, contudo, ao Autor de Apari:
ção as conclusões teóricas de Husserl-e Sartre, que parecem
deixar-lhe muitas interrogações e muitas angústias. Mas não
se trata agora de explicar Vergílio Ferreira à luz duma filoso-
fia, duma problemática fenomenológico-existencial. Trata-se
sim de analisar uma obra Eterária em têrmos ontológicos, mas
não axiolôgicamente na campo da filosofia.
Como se viu anteriormente, Aparição abordava o pro-
blema direto do eu. “O homem não deve perder-se da sua apa-
rição, pois esta, fantasma de, Elsinore, só raramente surge, '€
quando surge é no encontro casual e milagroso da emoção e
do raciocínio, do sonho e da lucidez (1). Em Estrêla Polar,
essa “abordagem” direta do eu amplia-se ao reconhecimento
do eu através do tu, ou seja, através do diálogo das aparições.
Se para aquém de nós existe um halo fulgurante e, todavia,
só raramente iluminado, que é o sermos metafisicamente, quem
será a testemunha dessa presença de aparições e do seu diálo-
go? Quem a testemunha dêsse encontro? Quem convalidará o
diálogo, a integração perfeita de dois em um? Um tal limite
extremo de interrogações promove o desgaste das relações

1 — Feriando Mendonça, Autenticidade Humana na Ficção Portuguêsa Com- .


temporânea, in Revista de Letras, n.º 4.
128 - FERNANDO MENDONÇA.

humanas, o equivoco, o -malôgro. que estabelecem no“ herói


de
Estrêla Polar uma. loucura que. teremos de chamar metafi.
sica, porgue.. lúcida e consciente. Veja-se como, do
ponto de
vista literário, Vergilio Ferreira. logrou instalar num romanc
e
as interrogações-limite que caberiam num. ensaio. -De- qual.
quer modo, o que surgiu foi um ensaio em-forma de romanc
e.
Usou o Autor dum ésquema muito sagaz no

e (passe a.
pressão) habilmente engendrado para prod
uzir as situações da
história, que quase sem ser história deixa, no enta
nto, essa
perturbação obscura que todos nós
buscamos em qualquer :
romance. Vergílio Ferreira reinventou
três personagens prin-
-cipais, das quais duas se sobrepõem numa
única, a fim de quê
possa conv alidar-se a “situação filosófica”. do romance.
elas: Adalberto São
e Aida/Alda, irmãs hipotêticamente gême
divididas no texto por um traço que desapare as,
ce aos olhos de
Adalberto, que nãoé capaz de “distinguir entr
e uma e outra.
Esta ambi giiidade das duas mulheres proporciona
todo .o es-
quema “operatório” da obra, esquema que conduz a6 amiquiila
mento das relações hiimânas, perd ilariamenté desgastadas na
violência e no excesso da pessoa que” Adal
berto é. O Autor
necessitou, de desdobrarà heroina em' duas pers
onálidades, a
fim de pôr à prova a incapacidade: do heró
i no reduzir a-si
próprio a pessoa que mora em “outrem, porq
ue amaúdo Aida,
casa-se com Alda, que afina] nã éoAlda mas sim Aida, sem que
Adalberto. se aperceba da substituição. Isto é, um tirat
riivés do
qual se pretendia revelar. um. eu; era o:falso
tu, e; todavia, en:
trou temporáriamente rio esquema -vital do eu, Esta “fraude
prova, à evidência, a. impossibilidade. de “osmos
e” das apari

o Mas 6 que é fundamental no romance:


de Vergílio Fer:
reira, e lhe dá forma de arquétipo, não é apenas.a temáti
ca, já
de si tão absorvente e-perturbadora. É-o seu estilo.:Ou
melhor:
a. “quantidade”. estilística, que por si-só institui. a problemáti-
ca e produz o fio condutor da ação. Não se trata
dum estilo
funcionando como adôrno, ou mesmo como suporte da
histó-
ria. De modo algum. No caso de Estrêla Polar, o estilo tem
O Romance PortucuÊs CONTEMPORÂNEO 129

função “operatória”, e sem êle, sem essa quantidade prismáti-


ca ou poliédrica verbal, não seria possível “entender-se” a rea-
lidade metafísica do romance.

No esquema que se segue acha-se uma segiiência de ci-


tações colhidas ao longo do livro, onde se esclarece o verdadei-
ro significado do que foi dito atrás.

(3) — Página 43 — “Será o amor um limite, será a


verdade um limite ou apenas a
procura de um repouso que não
há? Belo é o que se não sabe, o
que se não conquistou, o que se
não conheceu.
Abrir um corpo e a pessoa que lá
"mora. E que só lá mora enquan-
to a procuramos?”

48 — “Teremos então de levar conos-


co tanta coisa acumulada e sem
ninguém para o saber”.

58 — “A vida é demais para mim —


disse eu. Repartila com alguém,
ser comparticipante dela para o
passado e para o futuro. Mas o
passado nunca existiu, o futuro
nunca existirá. Só nós à nossa
face,”

59 — “Olho um homem, uma mulher,


* e nem sempre me é possível ten-
tar sequer abordar-lhe a pessoa
por dentro.”

3 — O egrifado pertence ao autor do livro.


130 FERNANDO MENDONÇA

59 — “Ah, escrever um romance que


-se gerasse nesse ar rarefeito de
nós proprios, do alarme da nossa
própria “pessoa”, na zona incrí-
e “o “o - vel do sobressalto. (...) Um ro-
mance que se fixasse nessa: ilus
" são viva de nós, nessa dimensão
Ofuscante do halo divino de
nós.

65 — “E de súbito reparo que ela não


está nos seus olhos. Quem está
nos clhos é Alda, e Emílio o sou-
be logo, decerto, porque lhe sor-
. = dig todo também no olhar.”

77 — “Sei das palavras trocadas com


“ “quem tem palavras para trocar.
Ce o Mas eu quero mais: a minha pre-
-- Sença em alguém, a minha dura-
são em alguém. .

- 80 — “Mas eu amava Aida 1 porque que-


: . riá ser nela.”

86 — “(...) era a maravilha de eu des-


cobrir um -TU verdadeiro, era
a descoberta de um acesso à ple.
“nitude.. Po
99 — “Falei alto, em clamor, e ambos
ficámos surpresos, como de al.
guém súbito entre nós.”

-93 — “Tinha Aida prêsa à minha bôca,


à transfusão das minhas mãos, à
mastigação dos meus nervos —
mas uma luz viva subia de Aida
em mim,” o “=
. O Romance Português CONTEMPORÂNEO 131

93 — “E então foi como se de mãos da-


das a massa solar que nos quei-
mava nos incendiasse pum incên-
dio único e longo e clamoroso pe-
la noite. Um lume vívido acendia-
-se no limite de nós, uma tensão
máxima estalava-nos de loucura.
* Sós e únicos na unicidade mú-
tua.”

“100 — “ O homem não. ama um corpo,


mas como esquecer essa porta
* de acesso?”

“Fito Aida violentamente, para


he reduzir a presença ao seu li.
“mite.”

227. — “Que significa o meu chôro lá


onde não chegou de mim sequer
o que em mim resiste e me pen-.
sa e me vê?”

— “Ela? olhava-me, para que eu a


ouvisse no olhar, onde as pala-
svras se esclarecem. Eu olhava-a,
para que ela me lesse também.
Estavamos intensamente- perto
“um “do ouiro, como unidos em
defesa contra o. augúrio do - si
- Iêncio.” So os

O que você busca não:é uma


mulher, não é alguém ao pé de
si; é alguém além de si.”
272 — * (...) e no entanto, em momen-
tos raros eu sentia, agora que os
132 0 FERNANDO MENDONÇA

evoco, tocar infinitamente e sub-


tilmente, e angustiadamente,
como num espasmo, o milagre
da minha transfusão a ti.”

2722 — “(...) quem “sabia” do nosso


o : excesso, “perante quem eramos
os dois?” De que servia aquilo?
Um ato que eu realize é “para al-
guém”, para alguma coisa. Leio
para saber, sei para me confron-
tar, falo para que alguém me
ouça. Ser, pois; com alguém é sê
Jo perante outro e outro e ou-
tro, até um limite que resista.
Vejo Alda, Alda vême, quem
““nos” vê? Em instantes infinitos
eu transmitialhe tudo e ela a
mim — mas quem guardaria a
“verdade espantosa dêste encon-
tro? Quem nos vivia depois de
nos vivermos? Que testemunha
imóvel nos recolhia o que tão
* miraculosamente tinhamos cria-.
“do? Quem era o lugar do nos-
so encontro?”

Não é, como se verifica, um processo estilístico “fabri-


cado” para obter ou provocar estados emocionais já rotulados
nos laboratórios da ficção, mas sim um estilo que inaugura es-
tados anímicos no seu fruidor. Não fôra essa “chegada súbita
de palavras-gestos e o leitor seria apenas um espectador tan-
gencial do atos do romance.” (1) Eis como, para além da proble-
mática da obra, que por si só se institui como algo de nôvo no

4 — Femando Mendonça. O Limite da Interrogação, . in Suplemen-


to Literário de “O Estado de São Paulo”, 27/VII/63.
O Romance Português CONTEMPORÂNEO 133

campo da ficção, o processo “operatório” do estilo faz um ro-


mance inteiro, da primeira à última linha. (5)

Em Estrêla Polar os fatos são instituídos com determi.


nadas palavras que se tornam chaves, agrupadas em relações
quase de sentido semiótico, que jamais tinham sido usadas,
crepitantes e ardentes, liberando-se numa chuva luminosa e
cadente, misteriosamente significante na sua curva tangencial.
Todos os significados anteriores dessas palavras; coalhados nos
dicionários (como diria Vergilio Ferreira), inaguram outros
sentidos de riqueza prismática, à qual não resistem os anterio:
res. Expressões como, por exemplo, “estavamos intensamente
perto um do outro”, “contra o augúrio do silêncio”, “na zona
incrível do sobressalto”, ou ainda tantas outras que se encon-
tram no decorrer do livro (“os grandes espaços noturnos, dis-
persam-se a um cismar sem recordações”; “o teu olhar é silen-
cioso como uma ira antiquíssima”; “uma música antiga passa
no ar como um fumo”) são a substância inalienável déste
romance de Vergílio Ferreira. Para se ser exato, não há um
“estilo” em Estrêla Polar: há, e permanentemente em presen-
ça, um reajuste de significações, um nôvo encontro de palavras
com que se produz uma linguagem nova, cheia de visitações
“mais intensas do que nunca.

O que caracteriza, aliás, os seis arquétipos, que ora se


apresentam neste quarto capítulo, é, precisamente, a sua lingua-
gem específica, o seu modo de inaugurar situações, cuja gênese
emocional reside no recontro de palavras que ninguém sonhou
associar, e ofertam os dados essenciais da realidade metafísica.
Eis também porque se deva admitir que Estrêla Polar éz um

t
5 — Em carta particular ao autor dêste livro, escrevia há tempos Vergílio
Ferreira o seguinte: “Eis porque as suas observações sóbre o “estilo” me
parecem particularmente pertinentes. Tal “estilo”, com efeito, tem acima
de tudo uma função operatória e não apenas de “suporte” e muito menos
de “enfeite”. Assim sempre se me afigurou superficial, a propósito dos
escritores “estilistas” — ou ao menos de alguns déles — a afirmação de
que escrevem bem. Porque quem apenas escreve bem —. escreve mal...”
FernaNDO MEDONÇA
OOPS

134
í

ensaio em forma de romance — uma obra que participa da


PO

logicidade absoluta e, ao mesmo tempo, do mistério promovi-


do por uma linguagem também absoluta.
os

'O artifício de separar duas pessoas. diferentes per um


traço (Aida/Alda), traço que se institui como o limite da -inter-
-rogação, ou limiar da loucura consciente, e de alterná-las:na'
vida dum indivíduo (Adalberto) possesso de se apoderar da
substância de outrem, proporciona ao Autor a oportunidade de
-se pôr a caminho do ensaio filosófico. A verdadeé que, tal co-
mo o autor dêste trabalho previa, o caminho imediato que se
oferecia a Vergílio Ferreira para além dêste'romance era o do
ensaio puro, onde pudesse, independentemente de fábulas e
reinvenções da vida, coordenar algumas perplexidades que o
estudo de Heidegger, Husserl e Sartre tem imposto ao roman-
cista. Vergílio Ferreira é o ficcionista português que mais
perto. da filosofia hodiernã tem colocadoa problemática das
suas obras. A isso se deve a sua intensidade vital, a dialética, a
realidade existencial, o reconhecimento dum eu pela mediação
“dum tw, e Como resultado dessa dialética uma situação-limite
que significa um nós. (6)

No jôgo dos equívocos repousa a decisão final da perso-


nagem Adalberto não reconhecer êle próprio a realidade facil-
mente apreensível por outrem. Daí ao assassínio de Aida, só
“diferente de Alda por uma letra, vai apenas um gesto — um
gesto finalmente exercido. Mas tudo regressa, mercê da lou-
cura consciente do herói, à “pealidade mais real”, cuja dimen-
são é a da realidade metafísica, convalidada na desconcertante

6 —“Eu não amava Alda, mas Aida, pórque Aida é que em minha mulher.
era O seu corpo que eu conhecia, era com ela que eu falava, era dela o
seu olhar, Podia, mesmo o seu nome não ser Aida, mas Alda. Alda aliás
estava morta, e era pois como se não tivesse nascido. Mas tinha vivido,
tinha sido, um modo único de ser a habitara, a fôra. E era êsse ser que
eu atingia na minha ilusão. Assim era irredutível como um. “eu” em
cada “nós”, Op. cit., págs. 292-293.
O Romance PorTUGUÊS CONTEMPORÂNEO 135

(mas lógica) ambigiiidade do * 'perpetuum mobile” com que o


romance termina.

- “Depois; quando nada me relembre ao que me relem-


bra ainda talvez, quando tudo se reduzir à perfeição do
meu nada, quando, ao verem-me, eu for realmente uma
“-- — pedra, exato, avulso, nítido, é o universo me perguntar
“quem, tu?” quando tôdas as vozes, -embatendo nas
paredes, desistirem de embater nas paredes, abrir-me-ão
-as portas de nôvo, partirei então para Penalva; -E uma
- cidade fechada, no -alto de um monte. A dez passos há o
vazio: Então, provavelmente, encontrarei Aida. Ela tem
"uma irmã parecida com ela, até no nome. E amarei uma.
“e direi: “tu, ó única” Tudo quanto em mim é demais o
“= sonharei então com ela e o sentirei então nela e tudo em
mim será ainda em excesso e perguntarei ainda: quem?
onde? para quê? E terei conhecido o “globismo” e cla-
mado a sua irredutível verdade. Depois confundirei Aida
com Alda e direi a Aida: “ó única.” Depois Aida dir-me-á:
“não sou quem julgas, mas que admira? Tu nunca aimas-
te ninguém”. Haverá um filho entre os dois e já morto.
E eu matá-la-ei ou dirão que a matei, porque a morte é
- O signo do meu excesso — e serei condenado a vinte
| anos. Abrir-meão as portas depois, se viver ainda. E
“voltarei para Penalva. Então encontrarei decerto Aida
“que tem uma irmã. extraordinariamente parecida com,
= o ela...” (7)
Do romance ao ensaio puro não faltava nem um mílime-
“tro mais. Sob -a designação genérica de Questões preparava
Vergílio Ferreira, em julho de 1964, um conjunto de ensaios
que incluiam-os ensaios Do Mundo Original (aumentado)
“e Carta ao Futuro, e certamente outros no âmbito de Invoca-
ção ao meu Corpo, que será conforme notícias particulares,
um longe ensaio que abrangerá a extensão dum livro. As per-
plexidades de Vergílio Ferreira levá-lo-iam irresistivelmente

“7— Op. cit, pág, 317.


136 FERNANDO MENDONÇA

“para o campo da especulação pura. Não significa isto que o


ED

Autor de Aparição deixe de frequentar a área do romance para


se dedicar exclusivamente ao ensaio. Absolutamente, Seria uma
a

afirmaço temerária, ou mesmo absurda. Significa, sim, que


depois de Estrêla Polar, toda a problemática dêsse tipo não
caberia mais na dimensão dum romance, porque, dentro dos
limites dêste, ela está irreversivelmente esgotada, e cairia
assim na repetição. Mas se essa problemática se instalar na
forma do ensaio ou do discurso filosófico, então os horizontes
continuarão abertos a tôdas as invocações. Na área do romance
terá Vergílio Ferreira de abordar novas experiências, novas
situações, novas secções de clivagem na poliedria da inquieta-
cão e da angustia. Isso certamente acontecerá, pois o Autor de
Manhã Submersa caminha agora em pleno dia, à luz plena das
suas verdades interiores.

2 — ÍMPETO CRIADOR E ANTI-ROMANCE

Em 1962 a Sociedade Portuguêsa de Escritores atribu


ia
“Prêmio Revelação” ao romance de Almeida Faria, Rumor
Branco, Almeida Faria era então um jovem de dezano
ve anos
e publicava um romance que uma parte da crítica ia ignorar
,
outra parte malsinar, e outra ainda ( menor) profetizar como
a chegada dum escritor que, a manter-se nos padrões anuncia-
dos no primeiro romance, viria a ser um grande escritor. A
invulgaridade do seu livro de estréia, a ousadia com que a sua
temática se entrelaçava com um processo estilístico jamais
visto em língua portuguêsa, bem poderiam ter levado a crítica
a denunciar, sem receio, o aparecimento dum escritor cujo gê-
nio se patenteava já no primeiro romance. Mas era o primeiro
romance... À crítica, aquela que fez o elogio da obra, poderia
ter adotado outra atitude: Rumor Branco é, ontolôgicamente,
uma obra de gênio — o que não significa que o seu Autor
venha, de futuro, a manter-se no mesmo plano de genialidade
x

O Romance Português CONTEMPORÂNEO 137

criadora. Pode até muito bem acontecer que êste romance de


Almeida Faria fique como obra única e entre, depois, no decor-
rer dos anos, no rol dos que se esgotaram num único surto da
experiência literária. Não parece provável que isto venha a
suceder, pois o ímpeto criador do Autor de Rumor Branco não
deixa felizmente supor uma tal hipótese.

O romance vem prefaciado por outro grande romancista


atual, Vergílio Ferreira, que também no seu modo pessoal de
inaugurar conceitos ou definições lhe dedica um breve mas'
lúcido estudo em forma de apresentação. O fato de o Autor de
Aparição ter colocado a sua chancela à entrada do livro parece
já significar alguma coisa. Faça-se, pois, uma viagem ao longo
das páginas de Rumor Branco, que é, diga-se desde já, a mais
ousada aventura verbal da ficção portuguêsa dos nossos dias.

| Acha-se o romance dividido em sete partes, que serão


designadas por “tempos”, em vez de capítulos (8). “Tempos”
que nada têm que ver com qualquer segiência cronológica,
mas porque são apenas situações instaladas em períodos de
duração existencial. A seguência dessas situações divide-se em
três partes distintas. Observe-se o seguinte esquema:

TEMPOS

III Im IV V VI VII
A B Cc

Às partes A e B podem sofrer alterações nas suas posi-


ções, isto é, B] Al Cl, por exemplo. Mas ainda que aparente-
mente não exista uma segiiência nos “tempos”, e êstes surjam .

8 — Esta nomenclatura de “tempos” em substituição da de “fragmentos”, uti-


lizada por Vergílio Ferreira no prefácio da obra, já foi sugerida pelo
autor dêste livro, num estudo que oportunamente fez sôbre Rumor
Branco: Romances Exemplares, in Suplemento Literário de “O Estado
de São Paulo”, 25/4/64 e 9/5/64. '
f

“138 . - FERNANDO MENDONÇA

como fragmentos isolados, não:é possível fazer qualquer inver-


são na sua ordem, porque a personagem Daniel João, que en-
contramos
em todos os “tempos”, não é a mesma pessoa. No
“tempo” IV assiste-se a uma nova gênese, a uma recriação que
se-apresenta como antitese daquela a que assistimos no “tem-
po” I e seria uma criação de tese. À parte €, constituída pelo
“tempo” VII, institui-se como conciliação, como resumo — co-
-mo síntese. Encontramo-nos assim em face de três estados que
sé subdividem em situações acrônicas. O Daniel João da parte A;
gerado por uma burguesia atuante, pratica os atos do roman-
“ce com uma perspectiva que omeio e à cultura lhe autorizam.
'O Daniel João da parte B, gerado por um proletariado . não
menos atuante, produz outros atos que irão conciliar-se-com.o
resto do romance na síntese final, que é a parte C. Esse é o
pensamento e a intenção dum Autor de dezanove anos, cujo
vigor intelectual e dimensão filosófica possuem uma idade
muito para além da que se mede por anos. -

“Do ponto de vista da problematização do seu romance,


- Almeida Faria filia-se, sem contestação, no mundo da fenome-
nologia, que lhe abre as portas da sucessão vivencial, existen-
cial, imparável, transbordante, prismática, criadora das mais
inusitadas dimensões humanas, numa iminência permanente
do mistério genesíaco. O -fruidor-da obra acha-se sibitamente
mergulhado numa incursão intersticial ou breve reconhecimen-
to da vida original. Utilizando outros caíninhos, que não os
de Vergílio Ferreira, Almeida Faria instala nó seu romance
com não menor lucidez as situações-limite, a partir das. quais
se entra no mundo da consciência existencial, ou da lucidez
metafísica. Não se pense, contudo, que o leitor menos habitua-
“do a navegar num óceano da literatura cujas ondas lambem a
orla da filosofia, não possa livremente fruir o romance de 'Al.
meida Faria. Pelo contrário. Não sendo,é certo, uma obra
aberta aos quatro ventos' da multidão ledora, êle está em con-
dições de se transferir ao leitor comum de: “obras que fazem
estritamente parte da literatura. .
O Romance PortuGUÊs CONTEMPORÂNEO 139

No “tempo” I, e após a grande explicação genesíaca do


herói, êste começa a movimentar-se numa grande cidade, cujos
limites substantivos são os de.Lisboa. Aí dialógam, não as per-
sonagens, mas as personificações que estabelecem a proporção
“burguesa da parte A. Como o Autor pretende. No “tempo”II
a proporção burguesa alarga-se ainda mais, instalando-se na-
*-quela fatídica província portuguêsa que está inevitavelmente
-na primeira linha quando se torna necessário evidenciar o de-
“sajuste socio-econômico. Como também o Autor pretende. E no
“tempo” III Almeida Faria entendeu que o melhor palco para
desmembrar tôda uma constelação de preconceitos estabeleci-
dos era Paris. Num “caveau” de Paris Daniel João mergulha,
até à sufocação, numa pulverização existencialista que lhe for-
nece as coordenadas da lucidez e o autoriza. a estabelecer ou
esclarecer a evidência das situações-limite, já que tudo se con-
substancia na zona do mistério ou do expériencial. Mas o “tem-
po” IV produz um nôvo Daniel João. Nascido agora numa
“área diferente — a da quase miséria — êsse novo Daniel João
“atravessa o “tempo” V dando ao Autor ensejo de produzir al
- gumas das mais belas páginas) da literatura portuguêsa, e
dentro desta, daquele neo-realismo que se empenha em utilizar
as fórmulas dos males econômicos e sociais. E assim temos no
“tempo” VI o herói Daniel João, que nascera burguês na pri-
meira parte, transformado, depois de renascido em têrmos
proletários, num prisioneiro que se suícida no dia da liberta-
“ção. A sintese de todos os “tempos”, ou seja, de todos os rumo-
res humanos, origina, como a síntese de” tôdas as côres, um
rumor branco. Vo
“Dentro do esquema narrativo, o romance -de Almeida
Faria possui uma estrutura límpida, que pode aparentemente
“ser complexa, não pelo “modus narrandi”, mas pela composi-
ção da sua linguagem. Choca, de súbito, o leitor que inícia a
leitura, O estilo em que o romance está escrito. Chamemos-lhe
- convencionalmente “estilo”, a fim de facilitar as coisas. Por-
“que, tal como em Estrêla Polar, o estilo de Rumor Branco não
é um aspecto que se possa separar do todo. O que existe neste
140 FERNANDO MENDONÇA

romance é uma dimensão expressa em palavras, empenhadas


em fazer evolver as situações no mundo da fenomenologia.
Uma substância lingiiística que vai inagurando sucessivamente
uma série de vivências. Por isso, tôda a estruturação gramati-
cal clássica não tem cabimento nesta obra, já que não se trata
de submeter ao leitor as proporções a que êle está habituado.
a ver reduzidas as sintaxes convencionais. Verbos, substanti-
vos, adjetivos, etc. não servem, no contexto, para estabelecer
antigas relações gramaticais, e formular sentidos lógicos tra-
dicionais. A linguagem de Almeida Faria inventa uma substân-
cia nova, como quem tece um pano cuja utilidade seja para
um uso que não existe ainda. Assim a linguagem cria um
nôvo exercício das palavras, pelo que estas, naturalmente, se
aglomeram em circunstâncias invulgares. Para significações
diferentes houve que usar as palavras de maneira diferente. À
pontuação tradicional é, muitas vêzes, aproveitada pelo Autor
(e aproveitada com o mais peifeito conhecimento dos seus
valores), mas na maior parte das páginas do livro ela desapa-
rece, por desnecessária. A ambivalência das regências, bilate-
ralidade da adjetivação, por exemplo, provocam um desajuste
que é preciso constantemente corrigir até à significação polifór-
mica do texto. O ímpeto verbal é impossível de suster-se /
porque é o caudal turbilionário das palavras em progresso que.
forma os esquemas significantes. Esquemas significantes,
eis o que são os períodos tumultuados de Almeida Faria. É a
sua anti-sintaxe que promove o comunicável, quer em têrmos
de quotidiano, quer de opção em perspectivas infinitas. O te-
cido linguístico do Autor pode, talvez, provocar certa incomu-
nicabilidade, mas o seu ímpeto criador é tal que, passada a
surprêsa da adaptação, o fruidor genuíno entra em perfeita
sintonia, não com as palavras ou o seu modo de fluir no ro-
mance, mas com a nova espécie de tecido significante.

Não é possível explicar completamente o processo ver-


bal de Almeida Faria, do qual resulta o referido ímpeto criador.
Por isso, parece cabível fazer a transcrição de dois trechos que
x
x

O Romance Portucuês CONTEMPORÂNEO 141

ilustrem dois modos dai imposição lingúística de Rumor Branco.


No primeiro, três personagens preparam-se para ouvir música
de Stockhausen; no segundo, Daniel João, a personagem redu-
tora da ação, atravessa os campos do Alentejo e ocasiona um
breve encontro dialogado. -
“(...) Pedro queres que ponha uma bobina de música
eletrônica: sim põe à vontade o que quiseres tanto faz
— estiveram então meditando sôbre a morte: pois já te
disse que a mãe da Graça faleceu o Daniel João ficou
amarfanhado: morri também: não Pedro não digas dis-
parates ouve. mecânico silêncio de encaixe de bobinas
“de premidos botões de movimento inicial. som agudo
intenso breve. de Stockhausen dois eletrônicos estudos.
mundo desesperadamente recriado de silêncios e gritos
e terrores insuportáveis limiares apocalípticos, a memó-
ria te chega dos números das origens da música da
matemática da dança, dozevirgulasete trêsvírgulanove
dozevírguladois vintevírgulasete setevírgulazero trêsvir-
gulatrês dozevírgulatrês umvírgulazero seisvírgulazero
doisvírgulazero onzevirgulaquatro doisvírgulaoito doze-
virgulanove dezoitovírgulaquatro setevírgulazero vintee-
trêsvírgulaoito setevirgulazero dezvirgulaum dezvírgula-
sete quatorzevírguladois, na onda duma atômica melodia
vieram inarmônicos gelados sons sinusoidais quais grá-
ficas representações da função seno vieram rumores
“brancos absolutos filtrados vieram reduzidos impulsos
estalidos, mundo interplanetário e espacial do rumor
branco que em si todos os rumores abrange os mundos
todos. voz do criador pelo homem assumida vária e va-
gamente ou monocórdica até que ao fim de tôdas as.
tormentas ao seio recolha a fonte | umedecida donde
agora sua imagem só que ainda ela sai. voz desintégrada
e aflita- sombra apenas de arquétipo perfeito: (9).

9 — Op» cit. págs. 34-35.


142 us FerxanDo MENDONÇA


ansiosa de madrugada, inte
“(..) na noite recente e m ave s
pertar das que dormia
minável e ansiosa do des -
mais densas € retorcidas árvo
- encolhidas nos ramos das agrestes
a de fôlhas duras,
res daquela amaldiçoada sec .
assustadas à sua passagem
de azinho e sôbro, um pouco movediças, sob res -
lar de pedras
déle pelo caminho irregu mpa-
ntes, que sempre o aco
saltadas, ternas aves, ama a se tor na:
na quando mais cru
nhavam com a natura ple de
mentada e os companheiros
va a lampa solidão experi ntejo,
olhos tão diferentes ale
alentejo, dum visto com e lon gín qua
a e à morte calma
mais se afastavam da rot de frá-
duma vida sempre igual
já esperavam no vazio torturava-o
momentâneos e dêles
geis valentias 'e gozos es-
essem suspeitar, na noite
a condição sem que O pud . quem sabe uma
stas que lhe preparava
fíngica de are l ime-
osc ada atr ás de qua lquer curva imperceptíve
emb João, seja
orados : olha o Daniel
morial de abismos ign passeian-
faz pra estas bandas,
bem apracido : “atão que de pilhar
poi s: a gen te cá vai à porca da vida, temos
do, a noute pas-
cassaltaram Oo mónte
aí uns filhas da mãe
sada. qo)

eida Faria cabe ser feito


O estudo da Wngagam de Alm uística,
stas da gramática, da ling
por uma equipa de especiali a com que se nos
a a poliformi
da estilística e da literatura, dad el ond e se .
tui por- si mesma o pain
apresenta. É ela que consti enta-
sucessivos com que se é viol
vão iluminando os alarmes no
fluir da. leitura.
do no penoso mas, irresistível..
convencionais do romance,
Fugindo assim às “estruturas.
narrativa, e- ainda aos moldes
no que diz respeito ao fluir. da
- gramática, será lícito pergun-
tradicionais da língua: e da. -sua
mar a tal “esquema significan-
tar por que motivo, se deva. cha na
que motivo devemos incluir
te” de ficção, um romance. Por

10 — Op. cit. págs. 56:57


O Romance PortucuÊs CONTEMPORÂNEO 143

área da ficção, cujo ceme tem sido o manejo e remanejo de


situações da natureza humana, uma obra que parece inclinar-
se perigosamente para a elucubração abstrativa, para O discur-
so impetuoso da invenção metafísica, na mais completa desrea-
lização da história e do, seu veículo, :
? ,

Sem: dúvida, uma nomenclatura diferente deve aplicar-


-se ao romance de Almeida Faria, uma nomenclatura que possa
ajustar-se à desrealização impetuosa que, aparentemente caó-
tica, promove a fôrça criadora da obra. Rejeitando do ponto
de vista global a estrutura lógica do romance, contrapondo-se
pela inauguração dum processo lingiiístico próprio à lingua-
gem clássica da dialética romanesca, o livro de Almeida Faria,
não é uma antinomia do romance clássico, mas é o que mo-
dernamente deve chamar-se um anti-romance.

Assinale-se desde já que é urgente eliminar a confusão,


às vêzes estabelecida, das nomenclaturas “anti-romance” e “nô-
vo-romance”, que- são têrmos de significação diferente. Nem o
“nôvo romance”: é abrigatôriamente um anti-romance, nem
êste muito menos será obrigado a participar daquelé. O que
não significa, evidentemente, que ambos não possam coincidir,
já que não parecem ser substâncias inconciliáveis. Se Rumor
Branco participa em algo do “nôvo romance” (e em algo parti
cipa), essa participação é casual e deve-se apenas à desrealiza-
ção das formas convencionais. Dificilmente Rumor Branco po-
deria ser considerado um “romance sob visão” , pois em nada
exclui os mitos da profundidade em benefício da “coisificação”
e da narração pelo método das superfícies. Muito pelo contrá-'
“rio: o significado de espécie, exibido da primeira à última li.
nha, nega frontalmente qualquer tipo de narrativa dos gestos
ou das situações periféricas. Tudo se consubstancia nos mitos -
da abstração e da profundidade, e nada se filia na externalida.
de “objetal” do “nôvo romance”. O mesmo não se pode dizer
em relação ao “anti-romance”, que, repudiando um “status”
estabelecido, se coloca em pontos opostos e diversos no- que
x
144 FerNANDO MENDONÇA

toca à utilização da linguagem, da "temporalização” e da vida


reinventada. Sem se pretender, porque não é do âmbito deste
trabalho, dar uma definição de anti-romance (e haverá uma
definição?), pode, talvez, afirmar-se que êle é o precioso exces-
so do romance, aquilo que não cabe na estratificação do possí-
vel —'e é, todavia, possível. Eis a fórmula a aplicar a Rumor
,
Branco: um livro que não é possível existir como romance
mas cujo “excesso” o instala nos limites circunstanciais do
nosso alarme romanesco, ou melhor e simplificando, ao alcan-
ce da nossa sêde de romance.

3— A ZONA SURREALISTA DA VERDADE

Se Almeida Faria logrou, com Rumor Branco, desreali-


zar o romance tradicional, produzindo, como se viu, um anti-
“romance, também a jovem Ana Hatherly, natural da capital,
nortenha, se propõe com a sua obra O Mestre (1963) atingir
uma nova meta no romance português, escrevendo algo que
se situa na mesma “categoria” literária de Rumor Branco, to-
davia por outros processos e, sobretudo, com outras intenções.
“O Mesire é, na área da ficção, o livro de estréia de Ana Ha-
therly, que já entrara nas letras com três livros de poesia e
um de ensaios. .

A leitura dO Mestre impõe uma inumerável série de in-


terrogações, mais ou menos do teor das que já Rumor Branco
impusera em 1962, no que se refere à validade de tais obras,
cujo conteúdo insólito e desconhecido surpreende e parece des-.
viá-las da nomenclatura de romange. No entanto, são apresen-
tadas ao público como tal. Seria, talvez, preferível dizer, cuja
substância ainda não armazenada nos “laboratórios poéticos”
causa apreensões a quem tem de catologá-las. Porque a maior '
barreira entre O Mestre e o seu público é a “inabituação " de tal

ie
E
à
a
O Romance PortucuÊs CONTEMPORÂNEO 145

essência romanesca, sem história, sem princípio e sem fim, mas


que ao final da leitura deposita em nós essa modificação resi-
dual e subtil que amplia a nossa experiência, sem que saibamos
porquê. Daí dever-se chamar também ao romance de Ana Ha-
therly um anti-romance, porque desrealizando igualmente a
fabulação tradicional e os seus métodos de promover as rela-
ções humanas, coloca em presença do usufruidor a verdade
residual dessas relações. , E

São duas as personagens em movimento, mas pulveriza-


das em infinitas faces e intenções, como se essas duas perso-
nagens — o Mestre e a Discípula — fôssem caminhando ao
longo duma sala de espelhos paralelos. Assim, Mestres e Discí
pulas desdobram-se para além duma única realidade e entram ..
na 'supra-realidade, donde emerge a verdade abissal dissolvida
nas mais inesperadas situações. De tudo isto resulta uma mo-
ralidade que de tão verdadeira e oportuna chega quase a ser
comezinha. .

Afirma o editor na capa do volume que se trata de um


livro de realismo direto, e não, como pode parecer, de uma no-
vela surrealista. Seria preciso primeiro discutir o têrmo “nove-
la”, com que o editor classifica tão arbitrariamente a obra,pois
não se trata, de fato, duma novela. Seja como fôr, não é isso
que está em causa. O que está em causa é a afirmação de que
não se trata duma obra surrealista, mas sim de realismo dire-
to, onde tudo é simbólico: as personagens e a paisagem. Pare-
ce haver uma contradição nestas afirmações do editor, dado
que o realismo ou é direto ou é simbólico, como, por exemplo,
no caso das Aventuras Maravilhosas de João Sem Medo, onde
todo o realismo e simbólico. O que se deve dizer do romance
de Ana Hatherly (chamemos-lhe assim, por convenção), é
que, através dos símbolos que utiliza, logramos nós atingir a
verdade de muitos propósitos e de muitas situações, nos quais
sobrenadam valores e problemas humanos, cujo realismo se
esconde nas dobras do processo surreal utilizado pela Autora
146 FERNANDO MENDONÇA

no seu livro, que não é surrealista na intenção, mas pratica a


técnica surrealista da alucinação e do impeto automático ver-
bal para impor uma relação ou associação de idéias, aparente-
mente. obtusa, mas de que resulta uma verdade convencional.
O processo literário dO Mestre tem uma filiação nitidamente
surrealista. É exatamente a desrealização que promove a nova
realidade, mais lúcida, mais autêntica, mais absoluta, ainda
que mais alucinatória. Isso está obviamente patenteado nas
bruscas e irrelevantes mudanças do discurso, nas associações
mais inesperadas e alheias de relação.

“A Discípula está no Jardim caçando borboletas. Tem


de correr, saltar, subir e descer rapidamente as encostas
do Jardim, para caçar a borboleta azul do outro hemis-
fério que vai ali à frente sempre fugindo.Um pouco mais
e cairá na rêde. O quê? Fugiu-me assim mesmo debaixo
do nariz? Não, está ali. Com jeito... sem ruído... de
súbito... Pronto!

— Bom dia Mestre!

O Mestre lepidóptero debate-se um pouco.

— Ah, como está, estava aqui tão entretido a ver os


cães brincar, gosto imenso de cães...

A Discípula estremece ao ouvir falar de cães (esta


Discípula está sempre a estremecer) mas disfarça
- perguntando:

— Então o Mestre como vai, tem trabalhado muito?


Porém as situações nunca sucedem como a gente espe-
ra. que sucedam. A particularidade mais saliente do real
é a surprêsa. Agora que a Discípula tinha planejado
colocar o Mestre entre as fôlhas de um livro ou reser-
O Romance Português CONTEMPORÂNEO 147

var-lhe as asas para enfeitar um tabuleiro, é que êle


subitamente se transforma noutra forma de ser:

— Está? A Discípula está?

— Está sim, quem fala?

— Sou eu, o Mestre....

— Ah, Mestre!

— Vinha saber como está, querida Discípula, o seu


afastamento do mundo real..
— Mestre! Querido Mestre! Sempre quer vir tocar a
Sonata a Kreutzer comigo?

Glória! Aleluia! Rejoice! Erwach! Deo Gratias! Viva!


Salve! Laudamos-Te!” (11),

Torna-se evidente que Ana Hatherly teve a intenção de


produzir uma sátira, uma sátira a mestres e a discípulos num
sistema universitário obsoleto, onde só a desfocagem das rea-
lidades gera os desajustes que já a “geração de 70” hostilizou,
que de maneira geral os heróis adolescentes do Presencismo
denunciaram, e que Ana Hatherly igualmente patenteia com os
seus símbolos, utilizando para isso o seu anti-romance, cuja
incomunicabilidade é apenas aparente, porquanto o hermetis.
mo de algumas páginas ou períodos faz parte dum todo que
se esclarece. O verdadeiro simbolismo está no malôgro das re-
lações entre mestres e discípulos, dado que essas relações se
processam no plano do equívoco puro. Ana Hatherly usa, para
tal, um estilo jovial e sorridente, do qual se desprende a finae
triste ironia do tema. Estílo multifacetado de surprêsas e des-
concertantes diabruras, cuja atmosfera mozartiana confere
uma boa parte de significado ao conteúdo que nos transfere.
Não será alheia a essa alegre sonoridade, umas vêzes jocosa-

11 — Op. cit., págs. 115-116


148 Fernando MENDONÇA

mente aliciante como um “alegretto”, outras na dialética do


“squerzo”, a formação musical da Autora, cuja carreira artísti-
ca se inclinava inicialmente para a música. Parece lícito afir-
mar que o “andamento” estilístico de Ana Hatherly se víncula
particularmente no vivaz contraponto duma técnica de “racio-
cínio” musical. E, neste caso, uma atmosfera atonal que insta-
la no fruidor o genuíno significado da obra. A destruição das. .
situações convencionais do romance, as personagens neutras,
ainda que atuantes (por isso anti-personagens), a rejeição do
tempo e o uso dum espaço também neutro, como se as pessoas
se movessem sôbre um fundo cinzento, onde escassamente'
surge um ou outro objeto sem significação, emprestam a esta
obra de Ana Hatherly a nomenclatura de anti-romance.

Não é possível pôr em dúvida a sua validade, ainda que


ela fuja às estruturas convencionais. Dos seus diálogos sem
propósito (visível) e desligados do todo, e das situações que
invadem a zona da alucinação surréalista resulta, não uma
verdade epidérmica, mas uma verdade humana e permanente.

Do corruptível e do incorruptível nas relações humanas


entre os arquétipos do Mestree da Discípula (repetidos até ao
infinito em espelhos paralelos), um burlesco mas real e pun-
gente realismo ganha corpo no decorrer das cento e trinta e
oito páginas do livro. E se outra nomenclatura se lhe quisesse
impor, a única possível seria a de “fábula”. A fábula da devo-
ração recíproca dos méstres e dos discípulos, a fábula do lôgro
e da destruição sistemática dos antigos mitos desgastados do
ensinar e do aprender. Leiam-se as últimas páginas do livro:

“(...) O Mestre está deitado, rodeado de todos os seus


troféus: discípulos e discípulos “mortos estão acumula-
dos aos seus pés. Troféus de caça de tôda a espécie e
armas, rêdes, laços, fundas, venenos, repousam ao seu
lado. O Mestre apoia a cabeça numa lira e com a mão
direita segura pelos cabelos a cabeça da Discípula, Tudo
O Romance PorTUGUÊS CONTEMPORÂNEO . 149

imerso em penumbra. A Discípula procurao coração do


Mestre para não falhar o golpe. Aonde é que estará o
coração dêle? Que difícil é descobrir seja o que fôr no
“escuro!. A Discípula com as suas mãos leves como
plumas tateia no escuro à procura do coração do Mestre.
Passa em. revista rápidamente os seus conhecimentos de
anatomia: cabeça, tronco, membros, tórax, costelas,
pulmões, coração, lado esquerdo, um pouco mais para
o meio, não, um pouco mais para a direita, não, um
pouco mais para a esquerda, um pouco mais para baixo,
deve ser por aqui, mas não se ouve nada, 'O coração
dêle estará parado? Não se ouve nem se vê... que
escuridão! O Mestre está a dormir tão profundamente
que bem podemos afoitar-nos mais. Tateemos franca-
mente. Deve ser por aqui, aurícula direita, aurícula
esquerda, ventrículo direito, ventrículo esquerdo, aorta,
um pouco mais para cima; é aqui! A Discípula aponta
o punhal. Recua um pouco. Avança correndo. Enterra
o punhal até ao punho. Nenhuma resistência. Nenhum
ruído. Deve ter sido fulminante.

Bem, agora, já podemos partir. Começa a viagem de


regresso. Outra vez tatear, outra vez rastejar. Outra
vez as pancadas do coração a servirem de bússola. A
saída deve ser por aqui... Cá está! A Discípula começa
a percorrer com infinitas precauções o caminho de
regresso. Quando já tinha percorrido alguns metros,
resolve olhar para trás para ver pela última vez o
Mestre. O Mestre está no centro da câmara rodeado de
troféus, armas e venenos. Apoia a cabeça numa lira e
segura pelos cabelos a cabeça da Discípula. A cabeça da
Discípula está trespassada por um punhal enterrado na
fronte até ao punho.” (12)

12 — Op. cit, págs. 136-137-138


150 : FERNANDO MENDONÇA

. Tudo se passa no mundo do absurdismo simbólico, onde


o leitor necessita de equacionar uma axiologia de símbolos '
oculta nas dobras do insólito, axiologia oculta mas quotidiana.
Nada neste livro é, afinal, tão absurdo que não seja passível
de ser ou acontecer. Só a relação dos atos parece absurda, mas
dela temos que tirar a suà lição de proveito e exemplo. Obra
fundamentalmente de ficção romanesca, que fregienta o
trágico e o grotesco da alma “humana; o seu significado, de
indireto e eficaz realismo, inaugura sob muitos aspectos uma
nova área do romance português. Ela exibe uma forte e perfi-
lada personalidade de arstista, cujos métodos demonstram um
à-vontade sorridente e familiar no manejo da língua, e, sem
prejuizo, um lúcido e temível exercício dos raciocínios pertur-
badores. Algo de nôvo e indefinivelmente perturbador, eis o
que O Mestre traz à ficção portuguêsa dos nossos dias.

4 — NEO-REALISMO E “NÓVO ROMANCE”.

O : romance neo-realista, inciado oficialmente em 1940


com o aparecimento de Gaibéus, de Alves Redol, chega até aos
dias de hoje com uma notável vitalidade, apesar de, evidente-
"mente, ultrapassado na sua atualidade de então e'nos propó-
sitos intervencionistas que trazia à literatura. Viu-se como um
romance de processos neo-realistas alcançou o Prêmio Camilo
- Castelo Branco no ano de 1963, e verifica-se que em 1964 outro
romance de características neo-realistas arrebata novamente o
referido Prêmio. Esse romance é O Hóspede de Job, de José
Cardoso Pires.

Superada, talvez moribunda, mas não ainda morta,


está, por consegiiência a faixa de romance que páginas
tão castiças e de tão intenso significado social e humano
o Romance PorTUGUÊS CONTEMPORÂNEO 151

trouxe às letras portuguêsas. Como uma ponta de lança arre-


messada ao seio das novas tendências da ficção atual, que
mergulha profundamente nas águas conturbadas das relações
humanas, a vocação neo-realista sobrevive e ainda produz
obras que se instalam virilmente com eficácia e beleza. Alves
Redol, de todos os neo-realistas o que sempre se apresentou
com maior fôlego, continua a dar-nos o seu neo-realismo, cujos
quadrantes não alteraram muito o drapejar da bandeira. E
José Cardoso Pires, que não tendo sido nunca um neo-realista
“estandardizado”, fez entrar invariâvelmente nas suas histórias
o inventário da miséria e da esperança. O Anjo Ancorado, que
parece afastar-se da área puramente neo-realista, lá traz êsses
resíduos iniludíveis, e aparentemente acessórios, nas persona-
gens que se agitam perifêricamente, enquanto o anjo repousa
ancorado na praia: o mendigo espertalhão que quer vender o
perdigoto, a mulher que teima em terminar angustiadamente
a sua renda para trocá-la por uns cobres, o dono da taberna
que vende a sua cerveja e o seu sonho. Tudo isto é acessório,
mas afluente à história.
O Hóspede de Job, cuja redação fôra iniciada há dez
anos, segundo informação do Autor, não acrescenta inovação
fundamental no que toca ao manejo de certos valores, de cer-
tos desníveis e desajustes sociais, que foram a fôrça motriz da
ficção trituradora do mal social. Não se pode dizer que se
distingam de outros os tipos apresentados por Cardoso Pires,
tipos que foram selecionados exatamente nos cenários mais
queridos é aproveitados pelas hostes do Neo-Realismo, ou seja,
a árida e ardente charneca que se estende lá pará os lados do
Alentejo. Tôdas as personagens em movimento já as encon-
traramos em outras circunstâncias. Poderia muito bem ter
sido, por exemplo, o Sargento Leandro o astuto Sargento Gil
que perseguiu o Palma de Seara de Vento, de Manuel] da Fon-
seca; a mocinha Floripes, com a sua “ilustração”, poderia
substituir Mariana, a filha do Palma e participante de reuniões
clandestinas; e a velha Casimira dos Sotas não difere muito
em coragem da Amanda Carrusca, sogra do mesmo. Palma. A
fatalidade do João Portela, que perdeu a perna porque queria
FernNaNDO MENDONÇA

trabalho, é um símbolo desgastado na ficção


neo-realista. À
Guarda Republicana está, praticamente, em tôda a parte,
porque é a ela que cabe executar os atos de injust
iça. A escassa
história dO Hóspede de Job desperta uma pungê
ncia igual, e
alerta do mesmo modo a consciência dos que na
cidade ainda
ignoram as misérias do corpo e as misérias da alma
dos que
sobrevivem nas províncias. Não há, realmente, nada
de nôvo
a acrescentar à problemática do Neo-Realismo, probl
emática
observada, nos ângulos mais aceradosno , CapítuloIII deste
livro.
Os jogos antinômicos que se desenvolvem no
romance
possuem, à evidência, intenções de sentido estéti
co e Tabular:'
os. soldados que na taberna jogam os elementos própr
ios do
seu quotidiano; a Guarda que no Pôsto joga a tarefa
de
prender a interrogar; os oficiais que no polígno
de tiro jogam
às guerras; o oficial americano, auto-suficiente, hóspe
de por
ironia em terra pobre .é alheia, que despreza todo
o jôgo, no
qual está por causa doutro jôgo que sobreleva
todos, etc,etc,
enfim, tudo isto cria uma série de “âmbitos”
próprios de que
resultam dois estados. diferentes e antag
ônicos integrados na
problemática neo-realista.
Enumerar, ou mesmo analisar, os sentidos sociais,
humanos e intervencionistas desta obra de
José Cardoso Pires
seria uma repetição, e caberia então inclu
íla no referido
Capítulo III. Mas O Hóspede ide Job
foi selecionado para
figurar numa parte dêste trabalho a que
se deu o nome de.
“Arquétipos do Romance Atual” porque
parece haver uma
razão (e não pouco importante) para
que êle participe da
galeria que em si mesma consubstância
as mais recentes ten-
dências do romance. português. Existe, realm
ente, uma razão :
a de que O Hóspede de Job é um romance
técnicamente mo-
derno, que consegue harmonizar (ou absor
ver) uma temática
antigã num processo narrativo hodierno, o
que significa que
o Neo-Realismo, talvez para sobreviver, está usand
o uma rou-
bagem própria do tempo, roupagem que não
lhe era, sob
certos aspectos, completamente estranha. A técni
ca narrativa
1
t A Aa
O Romance Português (CONTEMPORÂNEO T53

moderna que o romance de Cardoso Pires utiliza é a do “nôvo


romance”. (13)

Sob o ponto de vista da planificação, o esquema da nar-


rativa também não apresenta inovações particulares, salvo a
que resulta duma simplificação de planos simultâneos do que
se passa aô mesmo tempo nos vários lugares da ação. Ésses
retalhos, ou peças do quadro de que sai o conjunto geral da .
história, observam uma segiiência que não é obrigatória, mas,
pela fôrça das circunstâncias, existe, já que não é possível fazer
duas leituras num só tempo. A valiosa qualidade dêste esque-
ma de postergações reside na objetividade das secções dos
planos, na rejeição do acessório por excessivo, no descarnar
pragmático das situações e na cuidadosa observância da
ecologia das personagens. Numa palavra: a depuração e a
seleção dos gestos e das superfícies vão construindo a história
da primeira à última página.
j .
As motivações que o psicologismo presencista e um certo
regionalismo neo-realista tinham emprestado às duas grandes -
“famílias” do romance português, cessam de ter validade nO
Hóspede de Job, como reconhecimento de que isso é um ex-

13 — Tem-se falado neste livro em “nôvo romance” e anti-romance, e afirma-


do que tais nomenclaturas não correspondem a processos idênticos, con-
] tra o. que muitos poderão supor. Por “nôvo romance” entende-se aqui
: aquéle tipo de romance que a França generalizou nos últimos anos &
” tem, possivelmente, o seu teórico e cultivador mais consciente em Alain
Robbe-Grillet. Ou seja, o romance que despreza a narrativa dos estados
ou das modificações íntimas das personagens, é os substitui pelo inven-
tário do que se encontra no campo visual. Daí chamarem-lhe o “romax
du degard”, expressão que o autor deste livro adaptou para “romance sob
visão”. O anti-romance, que não rejeita, de forma alguma, os estados ín-
timos das personagens, em têrmos de conflito ou intriga, caracteriza-se
pela desrealização dos processos convencionais. Isto é: rejeição de tradi-
cionalismos romanescos, imposição das situações por métodos inversos aos
teôricamente estabelecidos. Fique também expresso que esta distinção ora
apresentada não tem, pretensões a fixação de conceitos.
154 FERNANDO MENDONÇA

cesso prejudicial. A violência ou a densidade emocional não


se apoiam em qualquer exploração do “pastiche” de cenas de
,comoção epidérmica, mas no viril e forte significado dos gestos
e dos atos em presença. A densidade da narração consubstan-
cia-se no vísivel e no audível — as arestas, os ângulos, as
superfícies é que definem as circunstâncias do todo pelo
particular. As qualidades da emoção medem-se pelos volumes
enquadrados no campo de visão do narrador-observador. A
escala de valores do conteúdo humano dos estados do romance
é dada pelas medidas volumétricas de coisas e de sons. Narra-
-se o que se vê; da convulsão ou placidez dos 'movimentos
exteriores se infere a violência ou tranquilidade dos estados
interiores. Sem cair na descarnada secura da planificação de
La Jalousie, de Robbe-Grillet, por exemplo, O Hóspede de Job
exerce, todavia, o direito da linearidade, que não empobrece,
de modo algum, a narrativa, antes a revigora duma lucidez
perfilada e dolorosa, pois que tudo exibe nas suas verdadeiras
dimensões, sem estratagemas ou arremedos de “escola”.
Exemplifique-se: a dada altura do romance torna-se necessário
dar ao leitor a notícia da trágica amputação da perna de João
Portela. Notícia que, em moldes convencionais, seria fornecida
com uma dialética de pungências ou crueldades, usando-se
talvez duma articulada explanação ou exibição de miséria e
sofrimento. Tudo isto Cardoso Pires promove no leitor, sem,
contudo usar de qualquer artifício ou (passe a expressão)
exploração do sentimento. A verificação do estado de João
Portela, e a sua gravidade, não é explicitada pelo Autor, mas
pela imposição fria e lúcida dos objetos e dos gestos, dos quais
então resulta a dimensão da tragédia.
“Muito depois, quando os mesmos soldados da bata
- branca regressavam com o ferido ao quartel era quase
manhã. Havia gente, movimento na estrada, rebanhos
que seguem pelo bordão do pastor, carroças que partem
para o dia da lavoura. Mas os dois colegas da bata
vinham tristes, enfiados, porque não conseguiam esque-
“cer a perna inteira, ainda com a bota calçada, que ti-
O Romance Portucuês CONTEMPORÂNEO 455

nham visto no balde da sala de operações. “E agora?”


perguntavam um ao outro, só com os olhos.

Agora têm-no acolá, de nôvo na enfermaria, numa


cama modesta, muito branca. Reparem: está desmem-
brado, um resto de homem; encontra-se alheio a si
mesmo, debaixo da anestesia. | ,

Apareceu o oficial de serviço que perguntou: “O


homem?” Os faxinas da enfermaria levaram-no à cama
e mostraramlhe o côto envolvido em ligaduras. O
oficial regressou ao gabinete.

Veio depois o sargento. A mesma coisa. Veio inclusiva-


mente um alferes e, para terminar, o soldado. da guarda
que, horas antes, fizera companhia ao ferido juntamente
com os dois faxinas e que acabava o seu quarto de
sentinela. Ésse sabia tudo.” (14)

A quantidade emocional que se pretende transferir ao


leitor é dada pelo poder significante dos movimentos e até das
repetições, que impõem rigorosamente a qualidade perturba-
dora do abalo psíquico. Passa-se, assim, da velha profundidade
narrada por uma terminologia específica, para uma explicitação
cujo valor significante se alberga na externalidade das coisas
sob visão, onde arestas, volumes ou movimentos preparam a
dimensão das perturbações a inflingir ao leitor. Isto é, executa
uma narrativa “coisificada”, cujos volumes “objetais” defi-
nem as obscuras modificações que sucessivamente se produ-
zem no espaço anímico do fruidor da obra. Ora é precisamente
êste processo narrativo que José Cardoso Pires utiliza na maior
parte das páginas do seu Hóspede, mas, diga-se novamente,
sem a secura repetitiva e estratificada do que talvez seja o
arquétipo do “roman du regard”, La Jalousie.

14 — Op: cit., págs. 188-189


156 FERNANDO MENDONÇA

José Cardoso Pires é um autor muito atento aos movi-


mentos fundamentais da cultura europeia. Éle próprio diz
que todo o escritor usa “uma certa mitologia do seu tempo”,
mesmo exercida dum ângulo privado dentro do coletivo cir-.
cundante (15). Não deve recusar-se-lhe a influência dos novos
ventos do romance, ventos que, como quase sempre na litera-
tura portuguêsa, sopram do lado da França. Honestamente
inserido num esquema de valores não regionalistas ou de fi-
liação presencista, o Autor de Jogos de Azar não deveria ficar
incólume ao poder exercído pelo “noveau roman” que, ainda
controverso, constitui, porém, uma nova “escola” de ficção.
Alguns críticos portuguêses mencionam, muito pela rama, êste
aspecto dO Hóspede de Job, procurando antes retirar dêle os
símbolos, os mitos, ou a “fábula” que se proporia ser. “História
de proveito e exemplo” lhe chama o Autor, e também “roman-
- ce, no sentido tradicional do têrmo, destinado unicamente a
ilustrar uma legenda, uma moral ou um clima humano, para
lá de qualquer imediatismo de tempo e de lugar histórico”.(16)

Não há dúvida que O Hóspede de Job é essencialmente


isso. O seu tema, a problemática de que se alimenta conferem-
-lhe um poder ilustrativo e de testemunho. Mas se fôsse apenas
isso, seria só mais um romance a catalogar no esquema neo-
-realista, de vez que as suas personagens, os lugares da ação, a
substância da história o filiam irreversivelmente em tal com-
partimento da ficção portuguêsa. No entanto, o romance de
Cardoso Pires é tudo isso e algo mais: além duma obra que
faz duma problemática desgastada a problemática ainda váli-
da dum tempo “em queo Pão e a Inteligência são consentidos,
não fomentados” (17), O Hóspede de Job é um romance
exemplarmente moderno como obra de arte literária.

15 — A minha aprendizagem
"de escritor, in “Diário de Lisboa”, 4/6/64
16 — Op. cit., pág. 255
7 — A minha aprendizagem de escritor,
O Romance PortucuÊs CONTEMPORÂNEO

Irremediâvelmente ligado ao esquema e ao processo


narrativo está o seu processo estilístico, que estabelece nesta
obra um dos mais elevados padrões da língua vernácula. José
Cardoso Pires nunca manifestou uma profunda simpatia pelos
métodos queirosianos, que, duma forma ou doutra, têm im-
pôsto determinadas perspectivas à linguagem de ficção em
Portugal, já que esta tem oferecido mais o seu flanco lingúís-
tico e obliterado a categoria documental. Isso tem produzido”
obras de vigorosa linguagem, mas de débil espírito europeu,
NO Hóspede de Job o estilo é tão-sômente linear e
des-
carnado quanto a linearidade ou a dureza das situaç
ões o
exigem. A sua sobriedade não ostenta pobreza de lingua
gem ou
ausência de vigor nas transferências. Pelo contrário: liberta
de
atritos mediatos e perturbadores, a sua pureza permite as
definições instântaneas (e imediatas), de que resulta um
conteúdo enérgico e atual. É, talvez, mercê do processo estilís-
tico que o livro de Cardoso Pires ganha foros de arquétipo,
uma vez que a sua linearidade colabora inalienàâvelmente no
-perfil dos objetos em presença, e o torna assim numa obra
técnica e perfeitamente moderna. A sua qualidade, ou quanti-
dade, neo-realista deve permanecer em plano secundário. Se
assim não fôsse, teriamos que fazê-lo regressar deu ou quinze
anos atrás. A sua atualidade reside no “modo”. E do seu “mo-
do” resulta uma “desadjetivação” permanente em favor duma
substantivação que o simplificado “objetal” oferece. O lucro
mais expressivo dado à literatura portuguêsa pelo Hóspede de
Job é a concomitância da visualização simples e substantiva,
detida no fabular das situações, com o anti-retoricismo da
linguagem, que descarna essas situações até ao seu significado
medular. Romance que se institui como um todo, porque (e
é êsse o privilégio das genuínas obras de arte) não é possível
separar nêle a substância residual da sua grave problemática
daquilo que no-lo diz que é. Só como exemplo: João Portela
perdeu absurda e estiypidamente a perna. Terá de usar uma
muleta que vai obviamente modificar a capacidade anterior
do seu corpo para qualquer trabalho. Pois bem: ao tentar
158 : FERNANDO MENDONÇA |.

adaptar-se furiosamente, como numa luta com um nôvo


adversário, à sua “parte falsa”, a frase que solta é esta:
“Preciso de me habituar a esta caneta”. Associe-se o significa-
do que em gíria “caneta” tem de perna à significação de algo
que serve para trabalhar, e tirem-se tôdas as ilações em relação
ao que foi dito atrás. Exibindo a diversidade do jôgo dos va-
“lores atuais, na utilização duma linguagem ricamente linear
(passe o paradoxo) com que exerce afinal essa depuração
axiológica, O Hóspede de Job ficará como uma das mais puri-
ficadas expressões literárias do nosso tempo.

5 — AS RELAÇÕES HUMANAS E OS MITOS


DA PROFUNDIDADE.

Parece que, nestes últimos anos de romance em Portu-


gal, cada nova unidade que vem a público se compraz. em
apresentar algo de nôvo, ou no que diz respeito à estrutura,
ou ao processo narrativo, ou ainda ao estilo. Cada romance
pretende ficar valendo “unitariamente”, donde resulta determi-
nada dificuldade em achar para todos um denominador co-
- mum. Das obras apresentadas como arquétipos neste capítulo,
nenhuma se pode agrupar a outra, como aconteceu com o
Presencismo e com o Neo-Realismo. Não é possível formar um
tipo comum de romance com Estrêla Polar, Rumor Branco, O :
Mestre, O Hóspede de Job, salvo no que êles têm de processual
ou dialético no campo das relações humanas. Seria essa a sua
marca comum, mais hermética em Almeida. Faria, e atingindo
um ápice em Vergílio Ferreira, que intensamente se exercita
no diálogo das aparições e das suas testemunhas. .
x

Um dos romances em que o jôgo das relações humanas


a linha mediatriz e condutora dos escassos acontecimentos,
O

o mais recente livro de Fernanda Botelho, Xerazade e os


O

x
O Romance PorTUGUÊS CONTEMPORÂNEO 159

Outros. Seria suficiente o título para explicitar que nas suas


“páginas vamos encontrar um têrmo de relação entre alguém
e os outros — e, de fato, assim é. Xerazade, a personagem
principal, é o modo pelo qual a Autora exerce a demonstração -
de como as relações humanas revelam a imensa, solidão do
homem: de como cada um de nós está só no exercício duma
dialética de uso pessoal e intransmissível, cuja inutilidade é
irremediável; de como tantas vêzes são míticas as fôrças com
que se tenta subjugar os outros; de como cada um de nós
aspira desesperadamente a que nos avaliem com justiça.

Fernanda Botelho é uma escritora que já obteve o Prê-


mio Camilo Castelo Branco, que possui uma experiência lite-
rária muito grande, diga-se mesmo um adestramento nos diá-
logos da alma e do corpo. Todavia, só com Xerazade e os Ou-
tros atinge verdadeiramente uma altura no romance português
que, a não haver recuo, a tornam, com Agustina-Bessa Luís,
uma das mais densas escritoras da literatura portuguêsa. Este
seu romance institui-se, não só pela atualidade do tema, como
principalmente pelo originalissimo processo narrativo, num
arquétipo do romance contemporâneo. As pessoas que nêie
circulam conhecemo-las nós no cenário da cidade onde a fá-
bula ocorre, e ainda que os “problemas” não tenham uma
profundidade perturbadora, o certo é que todos provêm das
mais ocultas dobras da alma humana.

Xerazade e os Outros — Romance (Tragédia em forma


de) não tem história — tem apenas personagens. Já lá vai o
tempo em que um romance se fazia a partir de determinado
núcleo narrativo, donde emanava a intriga de que o leitor
procurava àvidamente a solução final. O romance moderno
derrogou a missão de contar histórias acontecidas, passando
a narrar antes aquilo que acontece às suas personagens. Ora
se um romance português pode ostentar essa emancipação,
essa libertação do transcurso geral da aventura, êsse é Xeraza-
de e os Outros. O próprio processo narrativo colabora na
destruição da história, na pulverização dos acontecimentos,
160 FERNANDO MENDONÇA

que só ganham importância quando no “círculo de giz” de


cada um. O romance acha-se dividido em três partes capitais:
“Côro 1”; “As Personagens”; “As Cenas”. Antes da última cena
“insere-se um “Côro II”, que é executado pela Autora. É eviden-
te que duma estrutura como esta dificilmente sairia uma “his-
tória acontecida”, Usando os pequeninos mundos que as per-
sonagens são, a Autora faz um romance inteiro, jogando ape
nas com os acidentes de relação, construindo com êles um
mundo geral de valores que significa, de fato, o mundo geral
em que vivemos. É nessa dialética de relação que se institui o
conflito permanente do meio circundante com as personagens.
Sigamos a linha mediatriz do romance.

No “Côro I” diversas pessoas, que não são personagens,


porque nada têm que ver com as situações que vão seguir-se,
fazem o comentário “das verdadeiras personagens que, mais
tarde, entrarão em cena. Êste côro é composto de quatro rapa-
zes num “café” (que são os inventores de Xerazade), um
zelador de imóvel, um carteiro, uma mulher a dias, uma em-
“pregada doméstica, duas esteno-dactilógrafas, e dois garotos
“que brincam na rua e cantam a velha e conhecida musiquinha
“Uma velha que tinha um gato”. Tôda esta gente exerce, à sua:
vontade, o comentário das personagens, que no momento são
ainda desconhecidas do leitor, e que por isso começam a en-
trar naquela zona da hipótese romanesca do mesmo leitor.
Apresentam-se então “As Personagens”: Xerazade, o Pobre
Diabo, o Big Boss, o Public Relations, e a Velha que tinha um
gato. Cada um dêles, e à maneira de solilóguio, desenrola a
meada da sua vida, onde os outros estão igualmente enreda-
dos. Isso promove um conhecimento de relação eficaz, dado
que o leitor fica imediatamente de posse da relação dos “acon-
tecimentos” pessoais de cada um. Todos ficam valendo unitã-
“riamente e relativamente. Uma série, portanto. de coisas acon-
tecidas a alguém, que não formam história, mas colocam em
presença do leitor um grupo de atôres que podem dar início
"ao jôgo. Abrem-se seguidamente “As Cenas” e começa a “tra-
gédia em forma de”, ou seja, o diálogo, o jôgo dos sinais e dos
O Romance PorrucuÊs CONTEMPORÂNEO 161

alarmes, a desesperada tentativa das alianças ou dos acôrdos


sem esperança. Cada uma das personagens é retirada com
perfilada exatidão da faixa do quotidiano. Só Xerazade se
movimenta em cena como uma fragância corporizada, uma
música visível, uma presença impuramente bela e verdadeira.
Xerazade é miticamente autêntica na sua beleza.

Fernanda Botelho utiliza em Xarazade e os Qutros os


velhos processos da profundidade anímica, da avaliação dos
atos e dos gestos pela sua explicitação adjetiva. Mas utiliza
simultâneamente os modernos processos da simplificação
substantiva das superfícies ou dos volumes sob visão. Se bem
que, por um lado, o seu romance seja uma revalorização da
versatilidade prismática dos movimentos da alma humana, por
outro lado, determina, em muitas das suas páginas, a imposi
ção do “objetal”. Onirismo e “coisificação”, por natureza pró-
pria incompatíveis como método narrativo, convêm. na mais
perfeita harmonia, sem prejuizo do conteúdo ou do significa-
do das situações. Êsse doseamento, que permite a presença de
substâncias de sinais diferentes, é a arte subtil de Fernanda
Botelho neste seu nôvo e mais recente romance, e o lucro mais
positivo que êle oferece à ficção portuguêsa contemporânea.

Será, talvez, conveniente explicar como utiliza Fernanda


Botelho êsses dois processos diversos de narração, que nem
sempre aí estão com caráter de simultaneidade. De acôrdo
com a espécie de emoção ou estado de coisas a transferir ao
leitor, assim a Autora paira sôbre os abismos do vulcão ou
caminha sôbre as arestas da cratera. Funcionam os mitos da
profundidade nos solilóquios ou nos raciocínios que equacio-
nam os valores invísiveis, funciona a câmara cinematográfica
quando êsses valores se manifestam na periferia dos corpos
ou dos atos. Assim caminham paralelos os valores de teor e
os de superfície. Algumas transcrições, a exemplificar.

Os velhos mitos da profundidade a funcionar:


“Não consigo furtar-me, de cada vez que entro no car:
162 FerxanDO MENDONÇA

ro, a esta energia fora de mim que me leva a olhar à


distância, procurando identificar quem passa, quem me
rodeia, quem acaso me contemple e avalie.” (18)
A narração pelo “coisificado”:

“Enche o peito de ar, expira, agienta, com as mãos es.


palmadas sôbre o colête, o rápido escoar-se da pressão. Des-
caem-lhe os braços ao longo do corpo, as mãos já não abertas,
antes cerradas, mas logo rejeita o esfôrço, abrindo-as, não
espalmadas, apenas abertas sem utilidade e provisóriamente
inexpressivas. Dobra a seguir o cotovêlo em ângulo obtuso,
não tardando, porém, a completar o gesto por falta de apoio
confortável e, assim, enfia o polegar no bôlso do colête. Avan-
ça em diagonal pela sala, até próximo, demasiado próximo, do
busto de bronze, sôbre a coluna-pedestal, aonde não chega a
luz amolecida que vem do candeeiro de pé alto. Já o polegar
direito abondonou o nicho, acompanhando a mão que alisa,
num rítmo irregular, a farta cabeleira cinzenta.” (19)
Os mitos da profundidade e a narração pelo “coisifica-
do”, em utiliação simultânea:

“No restaurante, encomendo uma ligeira omeleta aux


- champignons, enfática mas acre de gôsto; o vinho, no entanto,
é perfeito e quadra-se, a rigor, com os ovos, os cogumelos, o
meu apetite e o ambiente estilo Directório, que me contenta e
apazigua, velado como está, sereno e silente.

Sinto a serenidade e o silêncio. Um requinte, êste cemi-


tério onde nenhum entêrro se efetua, onde os coveiros, de cor-
reta casaca: vermelho-escuro e laço preto, afagam talheres e
pratos, copos e guardanapos, travessas de viandas e garrafas
enregeladas nos baldes. Um primoroso quadro ao sabor dum
Jerome Bosch dos tempos modernos.” (20)

is — Op. cit, pág. 36


19 — Op. cit., pág. 233
20 — Op. cit, pág. 127 o o o,
O Romance Português CONTEMPORÂNEO 163

Xerazade e os Outros não vale apenas pela originalidade


do seu processo narrativo. ainda que êste seja, de fato, um
modo inovador nas letras portuguêsas, e só por si bastante
para o colocar num capítulo de arquétipos. Colaborando inti-
mamente no jôgo das personagens, permite uma melhor ava-
liação dos méritos ou deméritos dos séres humanos em pre-
sença, das suas relações inequívocas, da sua validade à nossa
face, o que, aliás, tem sido a nota dominante da ficção portu-
guêsa atual.

O livro de Fernanda Botelho é o melhor exemplo de


como se faz um bom romance apenas com personagens e sem
história. Desprezando o rumo dos acontecimentos que pudes-
sem estabelecer uma segiiência romanesca, Xerazade e os Ou-
tros demonstra quão pouca importância pode ter num roman-
ce a urdidura da narrativa. A única urdidura de Xerazade
reside exclusivamente na separação técnica do Côro, das Per-
sonagens e das Cenas. Uma estrutura totalmente inédita no
romance português.

6 — A LINGUAGEM DA ESFINGE

Escrever sôbre um romance de Agustina Bessa Luís é


sempre tentar decifrar a linguagem da esfinge. Porque entre a
lucidez da verdade comum e a lucidez da Autora dA Sibila vai
apenas um centímetro de abismo intransponível. Quer dizer:
não é possível reduzir à pobre realidade do nosso quotidiano
a inverossímil realidade do mundo de Agustina Bessa Luís.

Quando A Sibila inaugurou, há mais de dez anos, uma


profética caminhada nos labirintos misteriosos das relações
humanas, não era, talvez, possível prever quanto a sua Auto-
ra iria enriquecer, não apenas o fenômeno literário, mas a
nossa experiência do jôgo infatigável de viver. O seu último
o
E
164 FerNANDO MENDONÇA

romance, Os Quatro Rios, que se anuncia como o primeiro du-


ma série sob o título geral de As Relações Humanas, é o pon-
to mais avançado (e não haverá outro tão cedo) da proximi-
dade do real absoluto, onde a intuição e a profundidade se
desmitificam para recriar êsse real absoluto, que por sê-lo nem
sempre se institui (ou quase nunca) como o real comum da
E ficção, que é, afinal, a parte falsa dessa mesma ficção. Os en-

EE rêdos da novelística, aquêles em cuja excitaçãoo lugar comum |


busca uma realidade perigosamente gratuita, são a parte falsa
NE
to dessa novelística. Agustina Bessa Luís rejeita todo e qualquer
ti
pacto com a realidade comum. A sua intuição não se detém na
14
zona do quotidiano sensível, antes se espraia na imaginação
E enigmática dos sêres, com total irredutibilidâde à penuria do
E
E
real estabelecido.
Hik
UA Quando Agustina Bessa Luís chegou aO Sermão do Fo-
go, o seu processo de profética lucidez tinha ganho a amplitu-
de de uma inteira experiência caudalosa da memória que bus-
ca no mais antigo de todos nós o sabor requintado da subs-
tância verdadeira. Mas Os Quatro Rios, que sintetiza, e con-
tudo amplia a pasmosa e cruel devoração que nA Sibila e nO
Sermão do Fogo homens e mulheres exercem uns dos outros,
é a sua obra capital, a que renova com vigor misterioso as
profecias por que se regem os atos das personagens agustinia-
nas.

Os Quatro Rios narra a história dos membros duma fa-


- mília “nascida nas colinas”, através duma série de operações
psicológicas, série que se. institui como crônica dos labirintos
da personalidade. É êsse diálogo labiríntico, sibilino, de enig-
mática lucidez que constrói o romance inteiro, fazendo dêle
um repositório da pluralidade dos gestos cujo significado fu-
gidío nem sempre é possível entender. Os significados da exis-
tência correm neste romance como rios subterrâneos, como
aquêles quatro rios a que a Autora se refere antes de iniciar a
história:
O Romance PortucuÊs CONTEMPORÂNEO tó5

“No monte de Jupiter nasce uma fonte sagrada, cujo


fogo líguido deve atravessar pelo desfiladeiro da mon-
tanha de Marte. Por êste desfiladeiro passam quatro
rios que se dirigem para os quatro sons da terra: o rio
da infância; o rio da mulher; o rio do homem; o rio da
morte.”
Ora êstes quatro rios fluem através da imaginação ora-
cular duma sibila moderna, cujos romances, e em especial os
três mencionados, são esquemas onde a vida é uma permanen-
te consulta dos oráculos. Agustina Bessa Luís enriqueceu-se
no seu mais recente romance, mas as condições da sua lucidez
intuitiva e fragmentária são as mesmas. Não houve aí enri-
quecimento de espécie, pois que, a partir dA Sibila, estava cria-
do o dédalo de que ia servir-se nos romances posteriores. Fa-
lar dOs Quatro Rios é falar de tôdas as presenças da sua: Au-
tora nas letras portuguêsas, de vez que no seu processo narra-
tivo, que em pouco (ou nada) difere dos outros, ela utiliza o
mesmo modo fragmentário da experiência intuitiva que busca
uma unidade de significação. Mas o modo fragmenitário com
que Bessa Luís vai colocando as peças do seu jôgo não pulve-
riza o romance, ainda que a narrativa se estilhace nos peda-
cos que cada personagem é. Para lograrmos atingir o signifi-
cado final do romance, temos, antes de mais, que atingir o
sentido fragmentado de cada uma das suas personagens, e daí
partirmos então para o entendimento genérico da linguagem
da esfinge, porqueé no cruzamento das linhas projetadas de
cada uma delas que se desenha o esquema da vida profética-
mente imaginada para nós por Agustina Bessa Luís.
2
A lógica humana das suas personagens não é à nossa,
mas temos de assumi-la como real, porque essas personagens
executam em conjunto um modo irrecusável de viver. Um
modo de viver que não coincide com o nosso, que passa na rta
ao lado, e do qual, por conseguinte, escutamos o rumor geral.
Eis, possivelmente, uma chave (uma das muitas necessárias
para se entrar no edifício romanesco da Autora) que nos abre
166 FERNANDO MENDONÇA

mais uma sala da prodigiosa imaginação dOs Quatro Rios: a


vida que transcorre no romance não é a que nos circunda fa-
miliarmente em nossa rua, mas sim uma outra, cujo clamor é
tão inteligível como o da nossa, mas ao qual nos conservamos
surdos — surdos porque tememos ouvi-lo.

Nenhuma situação do romance foge a uma missão mis-


teriosa e irreversível — tudo é profético, com se tudo fôsse
um aviso necessário, um alarme à presença de cada protago-
nista, que é sempre o “cumpridor dum fado quotidiano, de
abusos, de inaptidão (...) da indizível ciência da vida e da
morte,a origem em que se abisma o próprio clarão da alma.”
(21) É como se a Autora se outorgasse essa missão misteriosa
“e divinatoria junto do leitor, propondo-lhe vaticínios com a
autoridade dos oráculos.
pu

“Ninguém quer receber em cheio essa terrível cons-


ciência, a duma realidade dinâmica que projeta o ho-
mem para além da sua infância natural — a vida pen-
sada. E, quando se apercebem disso profundamente,
sem possibilidade de fraude, então começa para aquêle
cuja realidade foi reconhecida, começa para êle uma
prova que, traduzida em linguagem aproximada, se cha-
ma castigo.” (22)

Nos romances de Agustina a verossimilhança é o lado


falso da realidade. Só o inverossímil é capaz de revelar o es-
sencial oculto da existência. A extravagância dos atos não é
para confrontar com a vida que convencionamos ser a real:
êles possuem valor ontológico e, ao mesmo tempo, inaptidão
para serem devolvidos à vida. Tal como as criações de Agusti-
na, que não são também para identificar com o nosso real
quotidiano, ou para devolver à vida. Essas criações inventam
um espaço para si próprias, o espaço literário da Autora —

21 — Op. cit., pág: 66


22 — Op. cit., pág: 91 Ca
O Romance PorrucuÊs CONTEMPORÂNEO 167

espaço literário em que o fantástico e o real se entrelaçam,


sem que possamos afirmar onde um acaba e o outro começa,
ou onde é o lugar do seu encontro. É preciso, no entanto, dei-
xar bem expresso que as criações de Bessa Luís não restam
confinadas num espaço literário. Pelo contrário: vencem-no.
Por intermédio da série de operações psicológicas, já men-
cionadas, a Autora dO Sermão do Fogo logra a prerrogativa
de “realificar” a vida — uma vida germinadora à custa dum
insólito poder divinatório. “Realifica-se”, pois, perante nós,
uma acumulação de situações onde se movem pessoas fabula-
res, mas jamais oníricas, personagens captadas na pluralidade
intencional das suas atitudes. É, aliás, esta pluralidade paras-
sintética que as desrealiza sobremodo, fazendo-as parecer inaá-
dequadas aos atos comuns da vida. São personagens misterio-
samente reais, porém desajustadas do nosso real. Mas o seu
real inverossímil e labiríntico de experiências caprichosas exer-
ce sôbre o leitor uma sedução, um fascínio, que provém de
não .se saber onde está a fronteira do acontecido (ou vivido) e |
-do imaginado.

Falou-se em crônica dos labirintos da personalidade.


Ora Agustina Bessa Luís é, nOs Quatro Rios principalmente,
a cronista do alarme humano, êsse alarme que é feito da mes-
ma substância residual do de Vergílio Ferreira, e cujas cir-
cunvoluções têm origem na memória da Autora, memória lu-
xuriante, profusamente habitada por uma riqueza de gestos
incríveis e despropositados. Memória de atos que alguem pode
agora praticar e que, de fato, as suas personagens praticam. A
extravagância dêstes é tão-sômente um modo de interpretar o
fantástico da vida, porque, para Agustina Bessa Luís, é o fan-
tástico ancestral que inadequa à nossa vida de hoje os seus
protagonistas, que não sendo reais à nossa maneira cumprem,
contudo, a missão de ser reais. Um conto de fadas para exem-
plificar a realidade. Como diria Fernando Pessoa, um conto do
“outrora agora.” A irredutibilidade da vida dos protagonistas
-à nossa instala no romance um tempo diferente do que usamos.
168 FERNANDO MENDONÇA

Um: tempo alheio às cronologias, um


tempo muito velho que:
corre nas veias, um tempo tecido pelas profe
cias. :
Muitos nomes de mulheres que cruzam
as páginas dos
romances de Agustina Bessa Luís têm o desíg
nio de inventar o
mistério, Por exemplo, duas das principais
mulheres dOs Qua-
tro Rios chamam-se Glaura e Barine (esta
última a prostituta
“ redimida Júlia Varina e transformada em Barine para exer-
cer a sua fôrça misteriosa). NO Sermão
do Fogo, Brunilde, Fé-
lia, Drina. Nomes que fogem à nossa utili
zação da realidade,
pertencem a um mundo romanesco cuja
missão permanente é
a destruição dessa realidade aproveitada
só em parte por nós.
Os heróis e, sobretudo, as heroínas dOs Quat
ro Rios (e em ge
ral de todos os romances da Autora) buscam
infatigâvelmente
“a terceira margem do rio ”, e pertencem a uma
memória que é
como um trem repleto de pasageiros seguindo
o mesmo curso,
mas com viagens diferentes. E seria lícito perg
untar: quais são
os seus modelos, ou em que espelhos foram
vistos? — já que
os achamos estrangeiros no nosso tempo, já que o seu
ritual é
intruso no nosso modo?

Agustina Bessa Luís preocupa-se muito com as suas mu-


lheres. Dá-lhes um tratamento avivado a extra
vagante, exer-
cendo com elas um fascínio que nasce dos seus
caprichos “de.
satualizados”, como se a própria Autora estive
sse também fa-
zendo a narração fora de um tempo. Mulheres com temível
poder sôbre os homens que se movem na sua órbita, que. são
seus satélites, ainda que elas se acolham ao seu domínio. Com
isso se instauram como sibilas, como profetizas,
e usam quase
sempre para com êsses homens o enigma da esfing
e. Ameaça é
sedução, eis o que elas praticam sem intermitên
cia. NOs Qua-
tro Rios, Glaura e Barine são sedutoras e proféticas.
Os seus
pronunciamentos, gerados nos meandros do amor
e da cabala,
revelam algo de nôvo e formidável. Por isso fazem
rarear as
palavras: o diálogo é quase inexistente no romance,

Na linguagem agridoce do vaticínio, Agustina


Bessa Luis
,
O Romance Português CONTEMPORÂNEO 169

utiliza ela própria a linguagem da esfinge. Com o seu estilo


nos denuncia as quatro direções dos quatro rios “que se diri-
gem para os quatro sons da terra”. O mundo insólito da infân-
cia (o mais real de todos, afinal) não termina na infância:
continua no mundo das suas mulheres e no mundo dos seus
homens. Por isso, porque já não nos lembramos do mundo
da infância, os achamos inadequados. Mas na sua linguagem
cabalística (no final de contas o seu estilo), Agustina Bessa
Luís pretende reconduzir-nos a êsse mundo original e irreco-
nhecível.

“Quantos subterfúgios, do instinto para a forma hu-


mana defender a sua imagem construída desde a infân-
cia pelas virtudes da terra — a vaidade, o mêdo, a riva-
lidade, o despeito! Quantas dores para chegar ao mais
íntimo do indivíduo, a sua compleição de fogo e de água
o seu amor, se pode dizer, da morte!” (23)

Todo o discurso se transfere, aliás, para um mundo di-


ferente de associações. O seu estilo é-nos tão inadequado quan-
to o são, às vêzes, os gestos dos sêres que êle criou. Veja-se,
por exemplo, uma simples pormenorização de determinada
quantidade de maçãs:

“Havia-as vermelhas, listradas como cetins regência,


com pedúnculos curtos em forma de prego, e havia-as
duma linha oblonga, verdes e mosqueadas, com um per-
fume límpido, de açucena, de madressilva. Umas eram
enormes, ferruginosas, achatadas como velhos budas de
cobre empanado; outras pareciam romper diretamente
do ramo, como se florissem com a sua rósea pele boreal;
e algumas pegavam-se aos ramos em cardumes, enquan-
“to na ponta duma haste pendiam as formosas reinetas
ou aquelas outras de polpa azeitada, com manchas ver-
des de unto misterioso.” (24)

23 — Op. cit., pág: 237


24 — Op. cit., pág: 126
170 FERNANDO MENDONÇA

O estilo de Agustina Bessa Luís enriqueceu-se, em re-


lação aos seus romances anteriores, não de profundidades
maiores mas duma fôrça extraordinâriamente seletiva, e é
mais misterioso, possivelmente, mas, por outro lado, de maior
âmbito significante. Colhem-se em tôdas as páginas frases ou
períodos com intensas significações, clamorosamente inespera-
das ou de pensativo sortilégio, como por exemplo:

— “o imerecido fragor do mar Atlântico” (25)


— “olhos como contas de azeviche compostelanc, dêsse
resinoso brilho em que parece dormir uma lágrima
de morte” (26)

— “pobre como um rato e inteligente como um falso


profeta” (27)

— “parecia pertencer a uma raça que trouxesse consigo


tôda a alma da distância, tôda a graça em vias de ex-
tinção” (28)

— “só um pouco de sono, só esquecer a pele que me


cobre durante o espaço dum palmo medido no pensa-
mento !” (29)

Tem-se utilizado aqui, para definir o complexo literário


de Agustina Bessa Luís, a expressão “a linguagem da esfinge.”
É a expressão que parece adaptar-seà riqueza não completa-
mente revelada das suas palavras. Sentidos ocultos e intensos,
universo misterioso de sinais solidificados em palavras, que é
“preciso decifrar e cuja decifração se faz, não no reduto da in-
teligência, mas no esquema receptivo completo que há em nós.

25 — Op. cit., pág: 171


26 — Op. cit., pág: 184
27 — Op. cit., pág: 194
28 — Op. cit., pág: 194
29 — Op. cit., pág: 254
O Romance Português CONTEMPORÂNEO 171

Entender os avisos da esfinge não é ficar à porta das suas pa-


lavras — é contorná-las totalmente, sofrer o seu brilho polié-
drico, o único que autoriza a utilização dos significados que
não esperavamos. Porque mesmo quando Bessa Luís não pre-
tende retomar a linguagem do mistério, não é ainda o brilho
epidérmico que nos fascina, mas a espécie oculta da substân-
cia do discurso. Repare-se como ela entende o que é o oposto
da solidão:
“Uma serra é muito o contrário da solidão. Pode o ho-
mem andar embarcado num saveiro ou num dóris, ro-
deado de águas cortadas de linhas pesqueiras, e num
momento dado uma náusea comprime-lhe o estômago; .
vê a sua própria face implorativa ou descuidada em
frente do vazio glauco e branco; não tem testemunha
nem reflexo a não ser a movediça forma aquática, o
cardume de vigoroso instinto movente que ora foge,
ora volta, ora perece quase no mesmo instante de so-
brevivência e destruição. Então conhece que está só.
Pode o homem atravessar as cidades, descer aos subter-
-“râneos equipados para transportar multidões, receber
no rosto a luz insinuante das placas e dos semáforos,
dos faróis e dos sinais para esperar e seguir; pode aco-
tovelar-se nas salas de espetáculos, beber na xicara que
. tem ainda marcado o contôrno doutros lábios — e co-:
nhecer que está só. Mas a serra, onde os eremitas se
exilaram com a caveira e as disciplinas, a serra é o con-
trário da solidão. Uma pedra parece esquecida desde
que soprou no mundo a razão de Deus, e assume uma
. realidade confidente, esconde ou revela alguma coisa,
um tesouro, um templo, talvez um homem. As ladeiras
mortas são nuas, rasgadas por caminhos dos raios ce-
lestes, e nelas levantam bandos de perdizes, açodadas
no seu terror, lestas no comando dos vôos fatais ou sal-
vadores. Se pousarmos os olhos com reflexão nas res-
valadiças escarpas, vemos primeiro uma desordem de
estilhaços negros, pedreiras rasgadas donde brotam
172 FERNANDO MENDONÇA

violentos braços de azinheira ou carvalha: mas


depois
distinguimos um trilho, quase um caminho desenhado
na terrae afagado pela fímbria dum manto. Isso é o
o contrário da solidão. o
Abrem-se as nuvens como ventres em trabalhos de par-
to, descobrem-se as choças e as furnas onde se dilata
um borrão de cinzas pretas, a “peneirinha” passa nos
ares como um novelo, uma asa derrubada para resistir
às correntes do vento. Um cachoar na sombra, com o
fresco estalar da água tôda em palmadas sonoras no
encalhe das pedras, distrai o coração; perguntamo-nos
velhas lembranças, datas, nomes, — tudo à fôrça da ser-
ra, na rotina do seu tumulto, envolve numa espécie de
conhecimento, de justiça vertiginosa de que a nossa al
ma é quase excluída. E isso ainda é o oposto da soli-
dão.” (30)
Aqui termina o que devia dizer-se de Agustina Bessa
Luís e do seu romance Os Quatro Rios. Não é possível falar
isoladamente dum livro- desta notável escritora portuguêsa,
porque todos êles fazem parte dum universo atuante, e não
podem desmembrar-se dêle. No entanto, é neste último roman-
ce, dado à estampa em 1964, que parecem estar reunidas com
maior evidência tôdas as virtualidades da Autora, tudo o que
faz dela a mais poderosa e profética prosadora das letras por-
tuguêsas. Tamais nelas uma mulher dominara com igual gênio
o palco das relações humanas, das relações humanas vistas
pelo lado inverossímil dos gestos que revelam o essencial já
esquecido, sempre oposto, nos seus romances, ao falso exerci-
cio da realidade. Caberia, talvez, perguntar a Agustina Bessa
Luís: qual o lado falso da realidade — o que praticamos no
nosso hábito infatigável de viver, ou o que praticam as suas
personagens no ritual insólito da sua existência?
- Eis o enigma a decifrar na linguagem da esfinge.

30 — Op. cit, págs. 186.187

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