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Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e

Principais Tendências Estéticas da Literatura


Brasileira

Ana Maria Saldanha

Instituto Politécnico de Macau


"Meu povo, meu poema"

Meu povo e meu poema crescem juntos


como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo


como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro


como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema


se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo


menos como quem canta
do que planta

Ferreira Gullar
"O cântico da terra"

Eu sou a terra, eu sou a vida.


Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.


Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.

Sou a razão de tua vida.


De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.

Eu sou a grande Mãe Universal.


Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.


Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante


a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.

Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.

Cora Coralina
ÍNDICE

Prefácio 7
Introdução 11

I. O que é a Literatura? 19
1. O conceito de Literatura 19
2. Literatura e Sociedade: comunicação e interdependência 27
3. A origem da Literatura 32
4. Características da Literatura 36

II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra 49
1.O Brasil-Colónia: a terra como substrato das desigualdades sociais 49
1.1. A estética do período colonial 61
2. O Império colonial africano português e a independência do Brasil 70
3. O Brasil-Império: o fim do sistema escravista e a imigração europeia 75
3.1. A estética do Brasil-Império 79
3.2. A estética do fim do Império e do início da República Velha.90

III. O século XX: o nascimento do Modernismo 103


1. O Brasil-República pós-1930: a industrialização do campo 103
1.1. Pré-Modernismo: periodização estética e histórico-literária..109
1.1.2. Autores mais representativos 114
1.2. Primeira fase do Modernismo: periodização estética e histórico-
-literária 129
1.2.1. Autores mais representativos 139
1.3. Segunda fase do Modernismo: periodização estética e histórico-
-literária 163
1.3.1. Autores mais representativos 169
1.4. Terceira fase do Modernismo e o surgimento de uma nova
literatura intimista 185
1.4.1. Autores mais representativos 195

v
IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 217
1. A ditadura militar (1964-1985): repressão, censura e violência 217
1.1. A poesia, a canção e o cinema no período da ditadura
militar 228
1.2. Seleção de composições musicais 235
1.3. As artes plásticas e o cinema 244
2. O Brasil pós-ditadura militar (1985 - atualidade): processo de
democratização e dependência externa 254
2.1. A literatura e o quotidiano brasileiro 258
2.1.2 Autores mais representativos 263

Conclusão 271
Anexo 277
Bibliografia 281

vi
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

PREFÁCIO

Pindorama, terra da palmeira sagrada, o pindó que Nhanderu deu


aos guarani. Brasil, a ilha sonhada pelos celtas. Ilha de Vera Cruz, Terra
Nova, Terra dos Papagaios, Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, como
nomeada inicialmente pelos portugueses. Ibira-ciri, pau eriçado dos tupi,
talvez tenha dado nome ao pau-brasil. Terra Santa Cruz do Brasil, Terra do
Brasil, Brasil... A terra de Luzia, o mais antigo fóssil humano achado na
América. As entranhas do continente preservaram o tesouro por treze mil
anos. Foi desenterrada em 1975 e desaparecida no incêndio do Museu
Nacional em 2 de setembro de 2018. Luzia, recuperada ontem por mãos
amorosas entre escombros e cinzas, conserva um segredo mais antigo ainda,
talvez de mais de cinquenta mil anos, segundo a arqueóloga Niede Guidon.
Como desvelar o enigma desta terra se sua boca está calada e seus
contemporâneos nada deixaram escrito?
Os segredos ainda não desvendados dessa terra acaso estejam
guardados nas entrelinhas de sua literatura. Tesouro aprisionado nas
camadas geológicas da escrita. Sim, a literatura é também um método de
conhecimento. E é com essa chave que Ana Saldanha abre a porta do Brasil
para os lusófonos. A literatura como registro da realidade pensada e também
como campo de batalha para impor uma perspectiva de mundo. É disso que
a autora de Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais
Tendências Estéticas da Literatura Brasileira nos fala.
Para esta tarefa, o caminho das pedras que Ana nos entrega é a
tradição brasileira da sociologia da literatura, com Antonio Cândido à
cabeça, que a autora enraíza na profusa produção europeia dessa disciplina.
Mas não por isso este trabalho se furta de nos apresentar com rigor as obras
e os autores do repertório brasileiro, estudando as suas características, o
contexto de produção, a recepção e as tensões dentro do repertório literário
brasileiro. Assim, a autora alicerça a periodização da historiografia literária
no solo firme da história social do Brasil. Não numa articulação mecânica, e
sim na complexidade da relação entre literatura e história, sendo a literatura
um espaço não apenas de registro do que é, mas também do seu avesso, das

| Prefácio 7
Ana Maria Saldanha

aspirações da sociedade, irrompendo em formas que sugerem subverter o


que está dado.
Às vezes, essas contradições apresentam-se no viés da captura de
vozes sociais ausentes da escrita culta: “Sá dona tá”. No arrazoado que
precisa uma variante linguística dos de baixo para se expressar, aparece a
afirmação guarani “tá” junto ao “Sá dona” de respeito e reverência, porém, a
frase serve, já na forma, para introduzir a contradição. Toda a frase em seu
contexto, a maneira de negar afirmando, revela não apenas o que é dito, mas
as relações de sociabilidade implícitas na comunicação. A marca da
escravidão e de uma integração necessariamente incompleta ao
assalariamento estão plasmadas nessa frase de três palavras.
Outras vezes, a respiração do texto, seu ritmo, convoca a memória
comum, local e universal, das emoções. Ela comunica, pela sua forma, às
vezes até pela sua contradição com o conteúdo, a peleja silenciosa do que
quer ser e não é, numa ironia própria de um momento histórico. Como no
poema de João Cabral de Melo Neto selecionado, Morte e Vida Severina:

- Essa cova em que estás,


com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.

- É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
deste latifúndio.

A autora problematiza a apropriação das formas europeias no


contexto desta particular colonialidade. Iluminando as alterações de tais
formas, nos fala também da história e da sociedade brasileiras. Vejamos,
senão, um trecho selecionado do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis:

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para


cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira,

8 Prefácio |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

nem provavelmente consternará, é se este outro livro não tiver os


cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando
muito, dez... Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma
obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um
Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas
rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a
com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil
antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente
grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo
que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí
fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são
as duas colunas máximas da opinião.

Uma pergunta que provavelmente se fará o leitor ao ler este livro é a


do lugar da literatura. Ela antecipa-se à história e à teoria. Oferece uma
forma que registra, não o que é, mas a maneira de pensar o que é e das
aspirações a propósito do que ainda não é senão como possibilidade.
Este livro pode ser lido por quem quer se debruçar sobre a
literatura, mas também por quem quer se aproximar à história e à sociedade
brasileira. Ana Saldanha abre a porta e nos convida.
Avante!

Sílvia Beatriz Adoue


Professora Doutora do Departamento de Letras Modernas e do
Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial da América
Latina e do Caribe
Faculdade de Ciências e Letras (FCLAr) - Universidade Estadual de
São Paulo (UNESP)

São Paulo, 19 de outubro de 2018

| Prefácio 9
Mapa de Juan de la Cosa (1500 - 1508)

"Este mapa é um dos mais preciosos da época dos descobrimentos. Foi elaborado pelo navegador e cosmógrafo
espanhol Juan de la Cosa (1460-1510), que participou da primeira (1492) e da segunda expedição de Colombo, bem
como da expedição de Alonso de Ojeda, em 1499. Em 1500, após o seu regresso, iniciou a elaboração do seu famoso
mapa-múndi".
(texto (adaptado) e imagem: http://www.mapas-historicos.com/juan-dela-cosa.htm)
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

INTRODUÇÃO

Esta publicação pretende apresentar uma síntese dos principais


períodos estéticos da Literatura Brasileira, estabelecendo uma ponte e
diálogo constante com os movimentos da sociedade1.
Esperamos ir ao encontro das necessidades dos estudantes de
Macau, em geral, e dos estudantes da Escola Superior de Línguas e
Tradução (ESLT), do Instituto Politécnico de Macau (IPM), em particular.
Neste sentido, procurámos criar uma obra que possa ser útil quer para os
estudantes do primeiro ciclo, quer para os estudantes dos segundo e terceiro
ciclos de estudos universitários.
Apesar desta configuração, cremos que o presente trabalho se
afigura, igualmente, útil a todos aqueles que se interessam pelo mundo de
língua portuguesa, não apenas no interior do espaço académico, mas também
no seu exterior, sobretudo para quem pretende aprofundar conhecimentos
sobre o maior país da América do Sul.
Este livro não é, nem pretende ser, uma obra original, antes
sistematizando conhecimentos e contributos de estudiosos, críticos e
teóricos que, no âmbito dos Estudos Literários, assim como de outros
domínios de conhecimento das Ciências Sociais e Humanas, publicaram
algumas das mais importantes obras sobre a formação e história crítica da
Literatura Brasileira.
Pela facilidade de compreensão e de leitura que proporciona,
optámos por uma abordagem cronológica, pelo que a síntese estético-
literária que a seguir se apresenta tem como ponto de partida o ano de 1500,
quando os portugueses aportam, pela primeira vez, no território brasileiro.

1
Todas as citações que se encontram na presente publicação estão conforme o original.

| Introdução 11
Ana Maria Saldanha

É de referir que, tal como o processo que levou à sua construção


enquanto Estado-nação independente, também a literatura do Brasil foi
sendo edificada através dos ensinamentos do Velho Mundo que
exploradores e colonos portugueses foram trazendo. As origens da literatura
brasileira remontam, por esta razão, a escritos de autores portugueses
desembarcados no novo continente, tendo sido necessário esperar que
chegassem os séculos XVIII e XIX para que novas gerações de escritores
construíssem as bases de uma identidade cultural, de facto, brasileira e,
assim, permitissem a autonomização de expressões estético-literárias
brasileiras daquelas que eram produzidas na (ex-)metrópole, e no
Continente, que havia colonizado o território brasileiro. Este processo de
afirmação de uma brasilidade atingiria o seu paroxismo com o advento do
Modernismo, no século XX.
Nesse sentido, apoiar-nos-emos nos textos literários compostos em
língua portuguesa, no Brasil, desde o século XVI até aos nossos dias, "por
escritores nascidos ou amadurecidos dentro das coordenadas culturais
brasileiras" (Stegagno-Picchio, 2004, p. 20).
Iniciaremos, deste modo, este trabalho, com o primeiro texto
conhecido sobre o Brasil. Referimo-nos à Carta de Pêro Vaz de Caminha,
enviada pelo então escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, ao rei
português, D. Manuel I, dando-lhe conta (numa perspectiva já reveladora do
centralismo do Eu-Ocidental que subjaz à estrutura sociopolítica da
colonização portuguesa) das novas terras e das novas gentes que, pela
primeira vez, os portugueses viam e tocavam.
Do Brasil pré-colonial ao Brasil-Colónia, passando pelo Brasil-
Império e, depois, pelo Brasil-República, configurámos a presente obra
tendo em consideração o constante diálogo que a literatura estabelece com a
materialidade que a cerca, compreendendo os elementos sociais, económicos
e históricos como elementos integrantes (fatores internos) de qualquer
composição literária, e, consequentemente, como um fator que não pode ser
ignorado numa qualquer análise literária que se pretenda levar a cabo.

12 Introdução |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Cada um dos períodos históricos do Brasil é, assim, apresentado


como um elemento configurador das narrativas literárias, pelo que buscámos
fazer uma necessária primeira abordagem aos elementos socioeconómicos
que lhes subjazem, para, finalmente, num mesmo plano analítico, fazer
confluir os movimentos da sociedade com a matéria literária. Neste sentido,
construímos a nossa reflexão na esteira dos estudos empreendidos por
António Cândido, para quem a literatura constitui um sistema de obras
ligadas por denominadores comuns, os quais se referem quer a características
internas (língua, temas, imagens), quer a elementos de natureza social e
psíquica que "se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto
orgânico da civilização" (2017, p. 25). É assim que produtores literários,
receptores (público) e linguagem (transmissor) se interligam para dar origem
a uma comunicação inter-humana - a literatura -, a qual emerge como um
sistema simbólico do qual resultam interpretações das diferentes esferas da
realidade. A literatura assume-se, neste contexto, como um fenómeno de
cultura.
Consideramos que nenhuma atividade humana pode ser desligada
do carácter contraditório que regula as nossas sociedades, pelo que, no
Brasil, dificilmente poderíamos compreender a produção literária aqui
produzida sem a compreensão daquela contradição, a qual, remontando à
colonização portuguesa das terras que viriam a conformar o Estado-nação
brasileiro, o marcaria, indelevelmente, até à atualidade.
Com efeito, o Brasil constrói-se, numa primeira etapa, com base no
trabalho escravo em larga escala, com o objetivo de alimentar uma economia
açucareira cujo produto final tinha como destino a metrópole portuguesa. O
modo de produção colonial e escravista sobre o qual se construiriam as bases
socioeconómicas do Brasil encontra-se, assim, baseado no sistema de
monocultivo em larga escala, em áreas de grande extensão, o que já anuncia,
de resto, a predominância do grande latifúndio, o qual conformaria uma
desigualdade social histórica que se estenderia até aos dias de hoje.

| Introdução 13
Ana Maria Saldanha

A questão agrária configura-se, neste contexto, como assinala


Octavio Iani (1984), como um elemento central para a compreensão da
atual desigualdade social existente no Brasil, tendo marcado, acrescentamos
nós, não apenas a evolução do país, mas as próprias formas de expressão
artísticas. Aquela problemática assume-se, por isso, como um elemento
fundamental para a compreensão da sociedade, economia e História do
Brasil e, consequentemente, para a compreensão e análise dos principais
momentos que conformaram a história das ideias, as estéticas e ideologias de
um determinado período histórico.
O primeiro capítulo conforma uma reflexão introdutória sobre a
literatura, a sua análise e crítica. Centramo-nos, sobretudo, na problemática
da interdependência literatura-sociedade, tema sobre o qual se posicionaram,
ao longo do século XX, diferentes abordagens no âmbito da crítica e dos
estudos literários, mormente as abordagens marxistas, ou aquelas que destas
se encontravam próximas, as quais subjazeram à criação de uma nova
disciplina, a sociologia da literatura. Sendo que construímos este guia tendo
em consideração a matéria social como um fator interno conformador de
uma criação literária (não podendo, por isso, desta ser dissociada),
decidimos apresentar uma pequena visão daquelas perspectivas, a qual,
mesmo que limitada, parece-nos constituir matéria de reflexão e de menção
necessária num trabalho que, como o nosso, se fundamenta na acepção de
que um conjunto de determinantes, seja em que matéria de conhecimento
for, configura necessariamente uma totalidade, a qual, sem a comunicação e
interdependência daquelas, apenas conseguirá ser parcial, e, por isso,
incompletamente apreendida.
No segundo capítulo, dedicamo-nos aos períodos históricos do
Brasil-Colónia e do Brasil-Império.
Stegagno-Picchio (2004), para construir a sua História da
Literatura Brasileira, recorre a variados acontecimentos históricos, sejam eles
de ordem política ou de ordem cultural, fazendo um panorama sobre os
factos de cada época, para logo depois referir autores e obras.

14 Introdução |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

É com esta perspectiva que iniciamos este segundo capítulo. Assim


sendo, começamos por realizar uma síntese socioeconómica e histórica, na
esteira dos trabalhos desenvolvidos por Octavio Ianni, Florestan Fernandes,
Celso Furtado, Caio Prado Júnior ou João Pedro Stédile, tendo como fio
condutor a referida problemática agrária. Os períodos estético-literários (e,
portanto, a história das ideias que deles se depreende) são compreendidos
numa relação constante com o movimento global da sociedade brasileira,
sendo apresentados, ao longo do capítulo, excertos de obras que pensamos
melhor refletirem sobre as problemáticas e elementos literários mencionados.
Estética e historicamente, seguimos os trabalhos do já referido
António Cândido (ainda que não adotemos a sua consideração de que a
literatura brasileira apenas inicia a sua conformação no século XVIII, pois
tal obrigar-nos-ia à apresentação e compreensão de uma discussão teórica,
no campo da crítica literária, que nos distanciaria dos objetivos do presente
trabalho), assim como de Alfredo Bosi, Luiz Ricardo Leitão, Massaud
Moisés, Flora Süssekind ou Luciana Stegagno-Picchio. A crítica e teórica
italiana alerta, aliás, para o facto de, aquando da elaboração da sua História
da Literatura Brasileira, a maior dificuldade ter sido a que se relaciona com a
definição do objeto de estudo, já que a concepção de Literatura brasileira
deve estar intimamente ligada com o estabelecimento de uma entidade
cultural autónoma que se constrói sobre duas vertentes: "a que delimita a
civilização brasileira das civilizações americanas e latino-americanas, e a que
isola uma cultura brasileira no âmbito das culturas produzidas por povos de
expressão portuguesa" (Stegagno-Picchio, 2004, p. 18).
Devido aos limites que um livro deste tipo nos impõe, é-nos
impossível apresentar a totalidade das obras literárias que, seja neste capítulo
ou nos seguintes, vamos mencionando e citando. Todas as obras literárias
encontram-se, no entanto, na bibliografia que se apresenta no final do livro,
pelo que ,caso tenha interesse em aceder à(s) obra(s) citada(s), remetemos o
leitor para as referências bibliográficas ali apresentadas.

| Introdução 15
Ana Maria Saldanha

No segundo e no terceiro capítulos, seguimos a metodologia


mencionada no anterior capítulo, desta feita aplicando a nossa análise e
periodização estética ao período modernista e ao período pós-modernista
(leia-se, neste caso, o pós-modernismo de uma forma cronológica, e não
ideológica), acompanhando o século XX até à atualidade.
Porém, tendo em consideração a importância que as obras do
Modernismo têm para os Estudos Literários brasileiros, em geral, e para as
disciplinas literárias, em Macau e na Instituição na qual lecionamos, em
particular, considerámos que um destaque particular dever-lhe-ia ser
consagrado.
Neste sentido, no final da caracterização de cada uma das fases
modernistas, apresentámos uma biobibliografia dos autores mais
representativos de cada uma delas, assim como excertos de algumas das suas
obras. Tal não invalidou, no entanto, que, ao longo do capítulo, fossem
apresentados alguns excertos de uma seleção de obras literárias. Fizemo-lo
sempre que considerámos que a citação de determinado excerto pudesse
ajudar na interpretação e na análise crítica de determinada fase estética, de
uma passagem ou de um momento específicos do corpo do texto principal.
Há, ainda, um aspecto que pretendemos salientar, uma vez que o
leitor com aquele será frequentemente confrontado.
Com efeito, ao longo da evolução sócio-histórica de uma
determinada sociedade, verificamos uma contínua comunicação intra e inter
fases, períodos e manifestações estéticos, pelo que a literatura, enquanto
manifestação criativa, sempre estabeleceu um constante diálogo com outras
formas de expressão artísticas. O diálogo e a interdependência estabelecidos
entre os movimentos da sociedade e a literatura não podem, por isso, ser
completamente apreendidos sem a inclusão e a abordagem de outras
disciplinas e domínios de conhecimento.
Foi neste sentido que procurámos alargar a interdisciplinaridade
deste trabalho, estabelecendo uma ponte, não apenas entre a literatura e

16 Introdução |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

outras ciências sociais e humanas, mas, igualmente, entre a literatura e outras


formas de expressão artística, nomeadamente a canção e o cinema.
Incluímos, por esta razão, neste trabalho, fotografias e reproduções que
exemplificam, e são representativas, de outras expressões artísticas, como a
pintura ou a instalação, assim como links e/ou fotogramas, disponibilizados
gratuitamente na internet, de filmes, de documentários e/ou de músicas
(cujos conteúdos estão livres de direitos de autor).
Apresentamos, em conclusão, uma obra que busca uma abordagem
interdisciplinar, a qual acreditamos promover e aprofundar o conhecimento
do maior e mais populoso país de língua portuguesa.

| Introdução 17
Planisfério Português Anónimo /
Planisfério de Cantino (1502)

"Alberto Cantino, um comerciante italiano de cavalos, em


Lisboa, trabalhou secretamente para o Duque de Ferrara, da
Itália. Cantino cooptou um cartógrafo português que
elaborou um planisfério, provavelmente com base na carta
padrão d'El Rei. Acredita-se que o mapa foi encomendado
em outubro de 1501, concluído na segunda metade de
1502, e enviado para a Itália, possivelmente, em outubro
desse ano. O planisfério incorporou alguns dados da
primeira expedição exploratória ao Brasil (1501-1502), mas,
ao que tudo indica, como uma adição posterior, sem a
qualidade original".

(texto (adaptado) e imagem: http://www.mapas-


historicos.com/cantino.htm)
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

I. O QUE É A LITERAT URA?

1. O CONCEITO DE LITERATURA

O que é a literatura? Por que razão se escreve e para quem se


escreve? O que é um escritor?
Na segunda metade do século XVIII, em pleno Século das Luzes,
Voltaire caracteriza a literatura como uma forma específica de conhecimento
que implica valores estéticos e uma estreita relação com as letras. Porém, foi,
sobretudo, no fim do século XIX e na primeira metade do século XX, que
filósofos, críticos literários, escritores, linguistas refletiram sobre as questões
acima colocadas, procurando definir quer as funções da literatura (como o
faria, por exemplo, Jean-Paul Sartre), quer a sua natureza (como a reflexão
sobre a escrita e a leitura, feita por Roland Barthes, ou, no plano linguístico,
aquela que foi levada a cabo por Roman Jakobson).
É a partir do século XIX que românticos alemães, positivistas ou
socialistas utópicos vão refletir sobre o futuro das artes e sobre a missão da
arte e da literatura, razão pela qual se conformam, então, as primeiras
sistematizações que relacionam o trabalho artístico com a sociedade em que
aquelas haviam sido criadas. Estas sistematizações pretendiam exaltar os
valores nacionais, de forma a que a obra literária estivesse em consonância
com uma determinada alma nacional, essência de um dado Estado-nação
independente. Neste contexto, apesar de o positivismo, o darwinismo social
e o determinismo predominarem, concepções de autores e pensadores como
Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869) ou Anatole France (1844-
1924) vão advogar a predominância da sensibilidade estética, contrariando o
cientificismo positivista e darwinista.
O século XIX vai, deste modo, assistir à divisão da análise literária
em dois campos fundamentais: o primeiro pretende analisar a literatura a
partir das influências que as diferentes literaturas exerceram entre si; o

| I. O que é a Literatura? 19
Capítulo I

segundo lança a ideia de uma literatura geral, independente dos contextos


históricos, culturais e sociogeográficos, considerando que as condições de
desenvolvimento de determinados temas e géneros devem ser estudados sem
a compreensão e interpretação de fatores culturais ou históricos.
Na continuidade da segunda proposta, três correntes/movimentos
de teoria e crítica literária vão propor, na primeira metade do século XX,
um conceito de literatura, em oposição ao positivismo dominante até ao
início do século: o Formalismo Russo, o New Criticism americano e a
Estilística, os três confluindo na acepção geral de que a estrutura de um
texto literário se construía graças a especificidades que o distanciavam de um
texto não literário. O formalismo considera a literatura como uma
linguagem (não instrumental, como assinalaria Tzvetan Todorov (1987))
cujo valor residiria em si própria; o New Criticism (John Crowe Ransom,
William K. Wimsatt, Allen Tate, Richard Palmer Blackmur, entre outros)
rejeita a análise literária com base em contextos sociais ou culturais e em
investigações de tipo biográfico ou histórico, considerando, apenas, a
informação que se encontra contida no próprio texto; a Estilística dedica-se
ao estudo das operações internas do texto literário, recorrendo a várias
outras disciplinas, como a gramática, a retórica ou a semiótica.
Inspirado pelo modelo da linguística, e fortemente influenciado
pelos formalistas, vai surgir, na segunda metade do século XX, o
Estruturalismo, o qual vai propor a valorização do discurso, em detrimento,
uma vez mais, do contexto literário:

Seria exagerado afirmar que o estruturalismo linguístico


tomou suas ideias emprestadas ao formalismo, pois os
campos de estudo e os objetivos das duas escolas não são os
mesmos; encontram-se, entretanto, nos estruturalistas,
marcas de uma influência 'formalista', tanto nos princípios
gerais quanto em certas técnicas de análise. Eis por que é
natural e necessário lembrar hoje, quando o interesse pelo

20 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

estudo estrutural da literatura renasce, as principais


aquisições metodológicas devidas aos formalistas, e
compará-las com as da linguística contemporânea"
(Todorov, 2003, p. 28).

Considera-se, neste contexto, a literatura como um universo fechado


de estudo em função das suas estruturas internas.
Nesse sentido, Roland Barthes (1970), apesar de não negar a
possibilidade de uma síntese entre estrutura e História, considera que a
análise estrutural, enquanto simples instrumento de análise, deve considerar
a literatura como uma problemática da linguagem.
Enquanto problemática que se insere nos estudos da linguagem,
Barthes considera que o texto literário é passível de várias interpretações pelo
leitor, já que aquele é não apenas polissémico, mas também plural,
constituindo-se enquanto galáxia de significantes (signifiants), e não como
estrutura de significados (signifiés). A estrutura de um texto não seria,
portanto, linear, ou seja, não constituiria uma mera sucessão de palavras e de
frases, sendo que ao eixo linear da linguagem escrita se contraporia outro
eixo, o qual atribuiria a cada significante (signifiant) um, ou mais, valores de
significados (signifiés). A partir da análise do discurso estruturalista, a
compreensão da leitura deixa, por conseguinte, de assumir uma dimensão
linear, avocando, ao invés, uma multitude de dimensões. O leitor, no sentido
barthesiano, não é, portanto, uma mera máquina passiva que absorve uma
determinada informação que lhe é fornecida, ou seja, não é um mero
consumidor, revelando-se, também ele, um produtor. É neste sentido que
Roland Barthes advoga A morte do autor (1967), considerando que o autor
e a sua biografia não fazem parte da obra, uma vez que deveremos, apenas,
ter em consideração o que se encontra, de facto, no texto escrito.
Todorov (1984; 2003), partindo do quadro histórico sobre a noção
de literatura, afirma que esta definição é recente e que data, como já

| I. O que é a Literatura? 21
Capítulo I

mencionámos, do século XIX. Afirma, contudo, que tal não impede que
tenham existido produções literárias, dos mais variados géneros, que não se
refiram, concretamente, à palavra literatura, até porque, segundo assinala,
existem línguas nas quais esta palavra é inexistente. Todorov define a
literatura, na esteira dos estudos estruturalistas barthesianos, como uma
imitação do real que é realizada através da linguagem, assim como a pintura
é a imitação de uma imagem e, em termos gerais, como toda e qualquer arte
é imitação. Todorov alerta, porém, que não se trata de uma qualquer
imitação, mas antes da imitação de coisas fictícias, não reais por natureza,
cuja pré-existência não seria obrigatória. Para o semiólogo, historiador,
filósofo, ensaísta e linguista de origem búlgara, a literatura é uma entidade
que pode ser quer funcional, quer estrutural, pelo que a passagem de uma a
outra é sempre possível, ainda que ambas, conclui, devam ser rigorosamente
distinguidas. A literatura, sendo uma entidade, funcionaria por meio das
relações sociais e da cultura.
A responsabilidade extrema da forma no que toca à análise de um
texto literário, partilhada (ainda que partindo de abordagens diversificadas)
pelo formalismo, pelo New Criticism, pela estilística e pelo estruturalismo,
no decurso do século XX, encontra-se ausente entre aqueles que, não
partilhando das bases sobre as quais aqueles domínios de reflexão e de
conhecimento se apoiam, inter-relacionam uma obra literária com a
sociedade1.
Existencialista, Jean-Paul Sartre (1948), partindo da reflexão do que
foi a Segunda Guerra Mundial e da traumática e violenta experiência que

1
A cultura e os fatores socioeconómicos e históricos não podem, contudo, ser colocados em
patamares de desigualdade nos estudos interpretativos e de análise literários. Assim, por
exemplo, em Portugal, durante a Idade Média, as cantigas de amor, de amigo, de escárnio e
maldizer (poesias recitadas e/ou cantadas nas feiras para um público, maioritariamente,
analfabeto) surgem num período (século XII) que se caracteriza por fortes relações
comerciais com diferentes povos e por um aumento do crescimento económico, assim como
pela conquista de uma independência nacional, fatores estes que transformarão a cultura e a
sua ressonância, cuja manifestação estética é marcada pelo trovadorismo.

22 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

esta representou, considerou que um artista (e, portanto, um escritor) se


deveria implicar, de forma militante, nas problemáticas do tempo que lhe
coube viver. Sartre diferencia, contudo, a literatura das outras artes, como a
pintura ou a música, afirmando que quer a forma, quer o material
distinguem estas diferentes expressões artísticas: "Uma coisa é trabalharmos
com cores e sons, outra é expressarmo-nos através de palavras "pois um
"pintor não procura criar signos nas suas obras", antes "pretende criar uma
coisa", razão pela qual ele é, portanto, "mudo" (p. 12). O escritor, segundo
Sartre, ao contrário de todos os outros artistas, encontra-se intimamente
ligado às significações (significations): "O império dos signos é a prosa" (p.
16). Neste sentido, Sartre coloca a poesia em paralelo com as outras artes,
mas não o texto narrativo, uma vez que este, segundo o filósofo, escritor e
crítico francês, deveria ter como objetivo a transmissão de uma mensagem
("a alma tornado objeto" (p. 44)), pelo que nela o prazer estético se tornaria
secundário, face a este objetivo primeiro.
Sartre enfatiza o facto de que, com a exceção do ato de escrever, ou
seja, de traçar letras, o poeta e o escritor de prosa não teriam nada em
comum, pelo que a verdade de um não seria a verdade do outro. A prosa
seria, essencialmente, utilitária, e um escritor de prosa um Homem que
recorreria ao uso de palavras: falar seria, portanto, agir; a linguagem torna-se,
por conseguinte, num modo de atuar na sociedade. O escritor seria alguém
que escolheu um modo secundário de ação, razão pela qual, aliás, seria
legítimo questioná-lo sobre o aspecto do mundo que ele pretende revelar e
sobre a mudança que pretende trazer ao mundo através dessa revelação.
O estilo é, em suma, colocado em plano de fundo, não devendo
nunca preceder a transmissão da mensagem. São, portanto, as circunstâncias
e o tema que se desejam tratar que, segundo Sartre, levam o escritor a buscar
novos meios de expressão, uma nova linguagem, e não o contrário.
Com efeito, se as cores e formas são o material de um pintor, se os
volumes são o material de um escultor, se os sons, ritmos e harmonias são o

| I. O que é a Literatura? 23
Capítulo I

material de um músico, a palavra é, por sua vez, o material de um escritor.


Sendo o signo criado por um grupo organizado no curso das relações sociais
que estabelece, quer no interior de um grupo, quer com outros grupos
organizados, a palavra é o instrumento privilegiado da comunicação humana
- e, como tal, é o material por excelência que subjaz a uma criação literária.
É, por conseguinte, através da palavra que a consciência adquire e ganha
forma, e que, portanto, adquire e ganha uma existência própria.
A linguagem e, consequentemente, a literatura, é, neste sentido, um
produto social, razão pela qual a análise e a leitura de uma obra literária não
devem excluir o contexto socio-histórico no qual a obra se insere, e sobre o
qual se constrói. Assim sendo, consideramos que, através de uma criação
literária, podemos ter contato quer com a História, quer com o modo de
organização social e económico que lhe está subjacente, quer com os
movimentos da sociedade com os quais a literatura se inter-relaciona.
Seguimos, por conseguinte, a proposta de Antônio Cândido (2014), para
quem o texto artístico e a realidade estabelecem uma relação dialética, pelo
que a literatura “depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na
obra literária em graus diversos de sublimação, produzindo sobre os
indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de
mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais” (p.30).
Compartilhamos, ainda, a proposta de Mikhaïl Bakhtine (1985;
1988), segundo a qual o crítico literário nunca deve separar forma e
conteúdo. Segundo o teórico búlgaro da literatura, o principal objetivo da
pesquisa literária não deveria ser, como nota Todorov (1984), "o material,
mas o arquitetónico, ou a construção, ou a estrutura da obra, entendida
como um lugar de encontro e interação entre material, forma e conteúdo"
(p. 86). Esta abordagem (contrária e oposta ao formalismo russo) fez com
que Bakhtine propusesse novos conceitos, como, por exemplo, o cronotopo,
utilizado para descrever o funcionamento do texto literário como um
processo extremamente complexo durante o qual a produção de significado
resulta da interação entre forma e conteúdo ideológico. Tendo em

24 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

consideração que Bakhtine concebe todo e qualquer discurso, em particular


o discurso literário, como um meio dinâmico, o autor tende, ainda, a
enfatizar a multiplicidade de relações que as diferentes linguagens tecem, no
interior de um mesmo texto, a qual designa de polifonia.
Antônio Cândido (1977; 2002; 2014; 2017), por seu lado, refere
que, sociologicamente, a arte é um sistema simbólico de comunicação inter-
humana, no qual o comunicante é o artista e o comunicando é o público a
que se dirige a obra. Contudo, mais que transmissão de noções e conceitos, a
arte é a "expressão de realidades profundamente radicadas no artista" (2014,
p. 31), consideração esta que se estende, obviamente, à criação literária. A
palavra é, ainda segundo Cândido, forma e conteúdo, uma vez que a poesia,
por exemplo, é um "tipo de linguagem, que manifesta o seu conteúdo na
medida em que é forma" (2014, p. 32), razão pela qual o autor considera
que os domínios de conhecimento abrangidos pela estética e pela linguística
não devem ser dissociados, aquando da realização de uma análise
interpretativa ou crítica da literatura. Para Cândido, cuja visão materialista
dos costumes e tradições (não tradicionalista) se materializa nas suas obras, a
literatura existe porque existe um sistema literario. É, por esta razão, que o
crítico brasileiro afirma que a formação da literatura brasileira se inicia no
período de consolidação do nacionalismo, excluindo, portanto, o período
Barroco da periodização literária nacional.
Segundo a teorização de Cândido de sistema literário, a literatura
não constitui um mero conjunto de textos caracterizados pelos seus aspectos
internos, sendo identificada e contextualizada em função dos eixos autor,
leitor e público. Estes três eixos configuram, assim, um sistema articulado, e
não aleatório, numa análise que nos remete para a intertextualidade e para
um diálogo entre o público e a obra que apenas se pode materializar através
de uma obra literária: a obra imbrica-se, em suma, com os fatores sociais.
Não se trata, por conseguinte, de reduzir a literatura a um simples
episódio de investigação da sociedade, tomando as obras como documentos,

| I. O que é a Literatura? 25
Capítulo I

ou seja, como sintomas de uma determinada realidade social; tampouco se


trata de considerá-la, como o haviam feito os formalistas, como um universo
autónomo e suficiente. Trata-se, ao contrário, de apreender a totalidade do
fenómeno literário, quer averiguando o sentido de um dado contexto
cultural, quer estudando e compreendendo a estética enquanto fator que
implica o conhecimento da realidade humana que dá vida às obras.

26 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

2. LITERATURA E SOCIEDADE: COMUNICAÇÃO E


INTERDEPENDÊNCIA

Com este livro, pretendemos mostrar a correlação entre literatura e


sociedade, não, como Antônio Cândido (1977; 2002; 2014; 2017) alerta,
de um mero ponto de vista paralelístico, mas antes como interpenetração
entre os aspectos sociais e a obra literária. Contrariamos, desta forma, a visão
estruturalista, na qual uma obra se assume como um universo fechado, que
se explica a si mesmo, desprezando, por exemplo, a fundamental dimensão
histórica para qualquer tipo de análise interpretativa que se pretenda realizar.
Com efeito, como nota Cândido (1977; 2002; 2014; 2017), a
realidade transforma-se em componente da estrutura literária, cujo
conhecimento, por sua vez, permite compreender a função exercida pela
obra. A obra literária não se pode, assim, abstrair da realidade, devendo a sua
análise abarcar quer considerações de ordem estética, quer as relações que
aquela estabelece com os condicionamentos sociais. A interpretação de uma
obra literária é, neste sentido, entendida como uma totalidade de uma série
de determinantes, o que implica que se funda "texto e contexto numa
interpretação dialeticamente íntegra" (Cândido, 2014, p. 13), na qual os
fatores externos (sociais) constituem um elemento estrutural da obra
(tornando-se, portanto, internos).
Penetrar no significado de uma obra implica, por conseguinte,
apontar dimensões sociais (lugares, modos, costumes) que a caracterizem,
mas também compreender o assunto como algo que repousa sobre aquelas
dimensões. Uma obra literária é, simultaneamente, social e simbólica, "pois é
ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na
época" (Cândido, 2014, p. 15). Na esteira do crítico brasileiro,
consideramos que o social constitui um fator intrínseco à própria construção
literária, sendo um vetor de explicação, e não de ilustração, que vai para além
da simples expressão de uma certa época ou de um simples enquadramento

| I. O que é a Literatura? 27
Capítulo I

histórico. Chegamos, neste sentido, a uma interpretação estética que


considera o vetor social como fator integrante, e nunca desligado, do fator
artístico.
Assim sendo, uma análise interpretativa de uma obra literária deve
compreender quer a influência exercida pelo meio social na obra, quer o
inverso. Ultrapassando uma mera abordagem mecanicista, chegamos,
finalmente, à necessidade óbvia de uma interpretação dialética, em que a
literatura surge quer como refletor social, quer como um produto da
sociedade. O ponto de vista histórico é, aliás, um dos modos que legitimam
o estudo da literatura, uma vez que há uma articulação das obras no tempo,
aquelas encontrando-se sempre ligadas à sociedade e ao meio material em
que foram criadas.
Uma interpretação coerente de uma obra literária implica, nesse
sentido, uma análise crítica que agrupe as dimensões sociológica, psicológica
e linguística, ainda que uma ou outra dimensão possa, em determinado
momento, e segundo a percepção e análise de um autor, ser favorecida, em
detrimento das restantes. Não se trata, portanto, de tudo explicar por meio
dos fatores sociais, mas antes de os incorporar como elemento formador da
estética de uma criação imaginativa. Como refere Stegnano-Picchio (2004),
ainda que a literatura envolva características atemporais e universais, ela
encontra-se, fatalmente, ligada a um determinado lugar e a um determinado
tempo.
Da confluência entre o social e a literatura, nasce, na segunda
metade do século XX, a disciplina sociologia da literatura, a qual foi
teorizada por autores como Antônio Cândido, no Brasil, ou Lucien
Goldman, filósofo e sociólogo marxista de origem romena, radicado em
França.
O paradigma marxista foi, ademais, aquele que mais se debruçou
sobre a dialética literatura-sociedade.

28 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Estas abordagens afirmam a submissão dos fatores sociais – e,


portanto, da literatura – a uma racionalidade socio-histórica cuja
conceptualização assenta na compreensão de uma evolução histórica baseada
numa luta classista, fruto das desiguais relações de produção que se
estabelecem no interior de um determinado modo de produção (ou seja,
fruto das relações necessárias à sobrevivência do Homem, na produção social
da sua vida, que são independentes da sua vontade e que correspondem a
uma determinada etapa de desenvolvimento das forças produtivas materiais).
É neste sentido que Gyorgy Lukács 2 (2000) atribui às produções
estéticas um papel socio-histórico da máxima importância. No centro da sua
reflexão, encontramos a categoria marxista de totalidade, considerada como
uma unidade dialética do mundo histórico real, através da qual se revelam as
contradições essenciais da evolução humana (e não as contradições
aparentes). Segundo Lukács, esta categoria deve estar no centro de uma obra
realista, a única que considera esteticamente válida, pois apenas ela
constituiria, para o filósofo húngaro, uma totalidade globalizante da vida.
Lukács estabelece, desta forma, a dialética do geral e do particular, a qual
engendra o personagem típico, ou seja, o personagem problemático que, em
si mesmo, incorpora quer as contradições da essência, quer o próprio
movimento histórico (o qual não deve ser confundido com uma
representação de um tipo de uma determinada categorial social, como
acontece no naturalismo).
A partir de 1923, um grupo de intelectuais agrupa-se naquela que,
posteriormente, ficaria conhecida como a Escola de Frankfurt. Retendo
elementos quer da filosofia marxista, quer de um certo ideário iluminista, os
intelectuais que se haviam agrupado no Instituto de Pesquisa Social alemão
consideram que a filosofia deve assumir-se criticamente perante o modo de
produção seu contemporâneo, numa perspectiva transformadora, e não
conservadora e legitimadora da ordem socioeconómica preponderante.

2
Gyorgy Lukács (1875-1881).

| I. O que é a Literatura? 29
Capítulo I

Dois dos intelectuais que a formaram, Teodor Adorno (1903-


1969) e Walter Benjamin (1892-1940), formularam concepções estéticas
que, ainda hoje, são de fundamental importância para os estudos estéticos e
literários.
Adorno surge, primeiramente, como sociólogo da música (ou
musicólogo). As suas reflexões e análises sobre música evidenciam, desde
logo, uma visão que Adorno (1964; 2009) manterá durante toda a sua obra:
a arte autêntica não representa, nem deve refletir, a realidade social alienada,
considerando, ao contrário de Lukács, que a arte é uma forma de
preservação de um espaço onde vive uma sensibilidade emancipada, uma
transcendência criativa e crítica, negação de normas e de estereótipos.
Adorno vai, ainda, criticar a mercantilização que se opera na sociedade nossa
contemporânea, em particular a produção massiva estética, a qual considera
reforçar a conformidade dos indivíduos com o sistema em que vivem.
Esta crítica severa à mercantilização estética – e que conforma a
indústria cultural – será, igualmente, objeto de crítica por parte de Walter
Benjamin e por parte de outro filósofo de Frankfurt, Herbert Marcuse
(1898-1979). É neste sentido que Walter Benjamin (2000) opõe um
trabalho único (não reproduzível) - que ele considera a experiência estética,
de facto, autêntica - aos produtos artísticos multiplicados pelos meios
modernos de reprodução. Quanto ao texto literário, Benjamin considera-o
como um enigma a ser desvendado, segundo uma hermenêutica que não
possui, a priori, um determinado modo de interpretação.
Lucien Goldmann (1986) 3 , também na sequência da tradição
marxista, continua a busca de homologias de estrutura entre a sociedade e o
texto literário. Na sua recolha Pour une sociologie du roman, obra publicada
em 1964, Goldmann, inspirando-se em Lukács, considera a estrutura
narrativa de um romance, na era burguesa, como uma história irónica de
uma busca demoníaca de valores autênticos, numa sociedade degradada.

3
Lucien Goldmann (1913-1970).

30 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

O crítico marxista inglês Raymond Williams (1977) 4, por seu lado,


interessa-se quer pela análise de factos retóricos ou prosódicos, quer pela
história dos géneros literários, quer pela lexicologia histórica, afirmando que
uma série literária (no sentido que lhe deram os formalistas russos) deve ser
compreendida como totalidade de uma determinada cultura em evolução, no
interior de uma dada sociedade.
Na sequência das diversas correntes marxistas, desenvolve-se, já mais
recentemente, nos Estados Unidos da América, nas décadas de 1970 e 1980,
uma crítica literária vinculada a estudos de política cultural – Cultural
Studies -, a qual, partindo, em parte, da obra de Lukács e da escola de
Frankfurt, se opõe ao estruturalismo da década de 1960 e ao
desconstrutivismo pós-modernista dos anos 1980, debruçando-se sobre a
cultura de massas. É neste sentido que o crítico literário palestino Edward
Said (2000) 5 aborda a literatura, considerando-a, tal como outros discursos
sociais, um dos elementos produzidos por uma ideologia dominante.
Paralelamente, no seguimento dos trabalhos desenvolvidos em França,
sobretudo por Michel Foucault (1966) 6 , novas críticas literárias,
nomeadamente estadunidenses, denunciam a literatura cânone, ou seja, a
literatura nacionalmente consagrada, considerando-a como um instrumento
de dominação, seja dos diferentes povos por um imperialismo, seja das
culturas e minorias nacionais por um cânone imposto pelo Homem branco,
seja das mulheres pelo ideário patriarcal dominante na escrita realizada por
homens.

4
Raymond Williams (1921-1988).
5
Edward Said (1935-2003).
6
Michel Foucault (1926-1984).

| I. O que é a Literatura? 31
Capítulo I

3. A ORIGEM DA LITERATURA

A origem latina da palavra Literatura relaciona-a com a língua


escrita :7

literatura > littera (letra)


(letra = sinal gráfico que representa os sons da fala)

Porém, apesar desta origem etimológica, as diversas literaturas do


mundo nascem da oralidade.
Com efeito, as primeiras civilizações preencheram a ausência de uma
escrita através do recurso à oralidade, sendo que os intérpretes da literatura
oral eram os garantes da transmissão de regras e valores do
grupo/comunidade, assumindo a função quer de educadores, quer de
conservadores de uma memória e hábitos coletivos. Enquanto pertenceu à
oralidade, a literatura possuía as mesmas características que as outras artes,
como a dança e a música, obedecendo a um determinado ritmo e dicção.
É assim que as mais antigas línguas escritas vão ter como matéria
primordial os temas fundadores da literatura oral. A Epopeia de Guilgamesh
(epopeia que é considerada a mais antiga da Humanidade) inspira-se em
narrações sumérias compostas, aproximadamente, no século III a.c., e coloca-
nos perante problemáticas semelhantes a outras narrações míticas, escritas
em espaços sociogeográficos diferentes do seu, como é o caso das epopeias
Ilíada e Odisseia, atribuídas a Homero (Quem escreveu? Os factos narrados
são reais ou imaginários? Onde se encontra a ficção e a realidade?). De
qualquer forma, o recurso à grafia iria transformar as narrações, as quais se
tornariam, cada vez mais, individuais. Esta individualização vai aprofundar-
se após a invenção da imprensa, a qual ocorre na Idade Moderna, no
decorrer do século XV.

7
Segundo Vítor Manuel de Aguiar e Silva (2004), o lexema “litteratura”, em
português, aparecenum texto datado de 1510.

32 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Com a invenção da escrita, a cultura letrada vai, gradualmente,


impor-se face à cultura oral, privilegiando a escrita culta e atribuindo um
papel secundário à tradição oral e popular.
Segundo Roger Chartier (2001), a cultura letrada define-se pela
transmissão de qualquer tipo de informação por meio da escrita, graças ao
estabelecimento de normas e de restrições (instrução). Neste sentido, a
imposição de uma cultura tem como consequência a exclusão de variantes
populares da língua.
No caso da língua portuguesa, no Brasil, aquelas variantes populares,
sobretudo de origem camponesa ou africana, foram, não apenas
marginalizadas, mas, igualmente, objeto de troça.
A valorização das variantes populares brasileiras vê a luz do dia,
apenas, no dealbar do século XX, ainda que o processo evolutivo de cada
uma delas não tenha sido concomitante. Com efeito, aquela valorização
efetiva-se, primeiramente, durante o Romantismo, relativamente às línguas
indígenas, e só posteriormente, com o advento do Modernismo brasileiro, as
variantes camponesas e africanas atingiriam o estatuto que o indianismo já
havia conseguido alcançar com o Romantismo. A valorização das línguas
indígenas, no período romântico, relaciona-se com o facto de, naquele
momento, muitos autores se terem centrado numa perspectiva
tendencialmente nacional, em contraposição a um eurocentrismo que, até
então, havia imperado nas letras brasileiras.
É neste contexto que o romântico José de Alencar defende o
estabelecimento de uma língua brasileira, em detrimento do português
europeu, buscando, para tal, a valorização de termos indígenas, como em O
Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Os termos caipiras ou
africanos continuavam, contudo, no contexto histórico do Romantismo,
social e linguisticamente marginalizados e desvalorizados, inclusivamente na
obra de Alencar.

| I. O que é a Literatura? 33
Capítulo I

Foi, assim, preciso chegar ao século XX, para que, no Brasil, a


diversidade da cultura oral - ainda hoje fonte de uma riqueza linguística
incomensurável - fosse incluída na literatura nacionalmente consagrada.
A supressão desta barreira linguística ocorre no início do século XX
(ainda no pré-Modernismo) e revela-se na sua plenitude com o advento do
Modernismo, quando autores como Manuel Bandeira ou Guimarães Rosa
passam a incorporar regionalismos e/ou formas de expressão oral populares
na sua prosa. Esta inclusão revela, por outro lado, um valor ideológico que
viria agrupar os autores do Modernismo num projeto estético-ideológico
comum: a atribuição de uma voz a quem sempre havia sido socialmente
excluído e secundarizado (e, consequentemente, linguisticamente
marginalizado).
A literatura não configura, portanto, um material estanque
linguisticamente, antes revelando e incorporando variantes nacionais e
regionais, assim como diversos registos de língua.
Vejamos, neste caso, o exemplo de Triste Fim de Policarpo
Quaresma, de Lima Barreto:
Lima Barreto
Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911)
- Você por que não planta para você?
- « Quá sá dona »! O que é que a gente come?
- O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.
- « Sá dona tá » pensando uma cousa e a cousa é outra. Enquanto planta
cresce, e então? « Quá sá dona », não é assim.
Deu uma machadada; o tronco escapou; colocou-o melhor no picador e,
antes de desferir o machado, ainda disse:
- Terra não é nossa„ E « frumiga »? Nós não tem ferramenta„ isso é bom
para italiano ou « alamão », que governo dá tudo„ Governo não gosta de nós„
Lima Barreto. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São José da Costa Rica: ALLCA XX/UCR, 1997,
pp. 139-140.

34 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Comentário:

◊ apesar das aspas, apenas o falar da roça dá a conhecer a verdade do


campo, ao contrário do que acontece com a rapariga da cidade, que, apesar de uma
oralidade que revela uma cultura letrada, desconhece a realidade do campo brasileiro
e crê que os trabalhadores agrícolas são preguiçosos e maus trabalhadores;

◊ a fala da roça serve para denunciar quer o abandono do campo pelo


homem, quer um modo de organização social que privilegia o latifúndio, o colono
estrangeiro e a monocultura de exportação.

Para o crítico português Carlos Reis (2001), a literatura, enquanto


domínio específico, relaciona-se quer com a linguagem literária, quer com a
possibilidade de valorização da "componente institucional do fenómeno
literário" (2008, p. 23). Neste sentido, o fenómeno literário relaciona-se
com três âmbitos autónomos:
•a dimensão sociocultural, decorrente da importância que, ao longo
do tempo, "ela tem tido nas sociedades que a reconheciam (e reconhecem)
como prática ilustrativa de uma certa consciência coletiva dessas sociedades"
(p. 24);
•a dimensão histórica, a qual permite acentuar a capacidade da
literatura "para testemunhar o devir da História e do Homem e os
incidentes de percurso que balizam esse devir" (p. 24);
• a dimensão estética, a qual implica uma linguagem literária.

Carlos Reis alerta, contudo, para o facto de cada uma destas


dimensões não poder ser lida isoladamente, devendo, por essa razão, ser
devidamente compreendida quando em interação com as duas restantes,
numa relação de complementaridade que, necessariamente, se estabelece
entre as três.

| I. O que é a Literatura? 35
Capítulo I

4. CARACTERÍSTICAS DA LITERATURA

Perante o que anteriormente foi exposto, podemos sistematizar


algumas das características próprias e individualizadoras da manifestação
estética que é a literatura. Tendo em consideração o âmbito do presente
trabalho, fá-lo-emos recorrendo, sobretudo, a exemplos estético-literários da
Literatura Brasileira.
Uma das características da literatura consiste na inclusão de
diferentes variantes linguísticas (nacionais e regionais) e de diferentes
registos de língua.
Vejamos os exemplos seguintes:

Tomás Antônio Gonzaga – Marília de Zé da Luz - Ai! Se sesse!...


Dirceu (1792) (1936)8

Lira XXXVII Se um dia nós se gostasse;


Se um dia nós se queresse;
Meu sonoro passarinho, Se nós dois impariasse;
Se sabes do meu tormento, Se juntin nós dois vivesse!
E buscas dar-me, cantando, Se juntin nós dois morasse;
Um doce contentamento, Se juntim nós dois drumisse;
Se juntin nós dois morresse!
Ah! não cantes mais, não cantes, Se pro céu nós assubisse?
Se me queres ser propício; Mas, porém, se acontecesse
Eu te dou em que me faças qui São Pedro não abrisse
Muito maior benefício: as portas do céu e fosse

8
Zé da Luz, assim foi chamado Severino de Andrade Silva, poeta nordestino, nascido em
Itabaiana, no dia 29 de março de 1904. Era alfaiate de profissão, mas notabilizou-se pelos
seus versos, nos quais retratava, com fidelidade, a alma dos nordestinos. Faleceu no dia 12
de fevereiro de 1965, no Rio de Janeiro, cidade onde vivera desde 1951. O seu livro Brasil
Caboclo (1936) foi prefaciado por José Lins do Rego.

36 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Ergue o corpo, os ares rompe, Te dizer quarqué tolice?


Procura o Porto da Estrela, E se eu me arriminasse
Sobe à serra e, se cansares, e tu cum eu insistisse,
Descansa num tronco dela. pra qui eu me arresorvesse
e a minha faca puxasse,
Toma de Minas a estrada e, e o bucho do céu furasse?
Suas faces cor-de-rosa, Tarvez qui nós dois ficasse
Numa palavra, a que vires Tarvez qui nós dois caísse
Entre todas mais formosa. e o céu furado arriasse
e as virge todas fugisse!!!
Chega então ao seu ouvido,
Dize que sou quem te mando,
Que vivo nesta masmorra,
Mas sem alívio penando.

Comentário:

Enquanto Tomás Antônio Gonzaga (século XVIII) trata o tema da paixão de


uma forma refinada, através da perfeição formal da linguagem, Zé da Luz (século
XX) transgride a norma culta, trazendo para a poesia os traços da oralidade e da
linguagem popular9. Ambos, no entanto, são criativos, fazendo apelo quer à forma
poética da linguagem, quer à sua forma emotiva.

Podemos, de resto, verificar que as variantes sociais e de modalidade


linguística atestam a presença de desigualdades numa determinada sociedade.
Neste sentido, apesar de a norma culta constituir um recurso privilegiado da
linguagem literária, e de a mesma atestar a escolaridade elevada dos seus
falantes (maioritariamente membros das classes mais favorecidas) e criadores
literários, aquela não constitui, contudo, a única aplicação possível da
palavra a um contexto literário.

9
A oralidade tem sido, aliás, uma forma de as classes mais desfavorecidas darem voz à sua
exclusão da cultura letrada.

| I. O que é a Literatura? 37
Capítulo I

Primeira característica da Literatura:

- inclusão de diferentes variantes linguísticas.

A segunda característica da literatura prende-se com o facto de a


Literatura poder descrever quer uma realidade, quer um mundo imaginário,
quer ambos.
Assim sendo, realistas e naturalistas brasileiros, por exemplo, à
imagem dos realistas e naturalistas europeus, nos séculos XIX e XX,
optaram por realizar uma correspondência entre uma obra literária e o
mundo real. Nesse sentido, procuraram documentar a realidade objetiva que
os cercava, ainda que, para atingir este objetivo, se valessem de personagens
ficcionais. Foi, ademais, este fenómeno que permitiu que o mundo
imaginário deixasse, definitivamente, de estar circunscrito aos contos de
fadas, lendas e mitos cosmogónicos.
Euclides da Cunha - Os sertões (1911)
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos
mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário.
Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das
organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto
a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e
sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura
normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de
humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro
umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras
com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da
sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme.
Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço
geométrico os meandros das trilhas sertanejas. (...)
É o homem permanentemente fatigado.

38 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra


remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das
modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela
organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o
aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias
adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos,
novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros
possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa
descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e
da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador
de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e
agilidade extraordinárias.

Euclides da Cunha. Os Sertões. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. p. 207-208.

Comentário:

Euclides da Cunha (1866-1909), na sua obra Os sertões (1902), descreve a


luta de resistência dos sertanejos de Canudos, sob a direção de Antônio Conselheiro,
face ao assalto militar das tropas brasileiras. Concomitantemente, revela as duras
condições de vida do homem nordestino e caracteriza-o como o fruto do meio em que
o homem nordestino se vê obrigado a sobreviver.

Segunda característica da Literatura:

- uma obra literária descreve o mundo real e/ou o mundo imaginário.

| I. O que é a Literatura? 39
Capítulo I

A terceira característica da literatura prende-se com o facto de esta


tratar não apenas temas universais, mas também regionais.
Para compreender essa característica, recorreremos ao exemplo
proporcionado pelo regionalismo brasileiro.
O regionalismo na literatura brasileira surge no já referido período
modernista, num momento em que a questão que se colocou relativamente
ao facto de a literatura dever tratar temas regionais, ou universais, ter sido
extremamente polémica.
Quando Monteiro Lobato criou a sua personagem Jeca Tatu, em
1914, ainda que posteriormente (em 1924 e 1947) esta imagem tenha sido
modificada, aquela é, primeiramente, apresentada como um símbolo do
atraso e da ignorância do homem do campo. Ora, ainda que esta primeira
imagem do caipira estivesse em conformidade com a cultura letrada e
citadina dominante, o facto de o autor ter escolhido como personagem um
camponês fez com que Monteiro Lobato fosse acusado de provincianismo
pelos seus contemporâneos, os quais preferiam temas cosmopolitas,
importados das vanguardas europeias.
O predomínio, na Europa de então, de temas cosmopolitas,
justificava-se, de resto, pelo facto de que nesse momento se levava avante
uma expansão acelerada dos centros urbanos e se verificava um exponencial
progresso dos meios de comunicação e de transporte.
Apesar de o Brasil não se encontrar no mesmo nível de
desenvolvimento da Europa, o cosmopolitismo era um tema literário do
agrado das elites letradas e urbanas de inícios do século XX.
Não obstante este facto, a literatura da América latina (e não apenas
brasileira) vai, gradualmente, adicionar aos elementos cosmopolitas,
elementos regionais, os quais farão com que uma reflexão sobre o
Continente seja feita, não apenas a partir do cosmopolitismo que afetava
alguns grupos e classes sociais, mas, sobretudo, a partir das múltiplas

40 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

componentes sociais, culturais e linguísticas sul-americanas, por vezes tão


distintas umas das outras, dentro de um mesmo território nacional.
No Brasil, este processo combinatório – que permite uma reflexão
sobre os problemas universais, partindo de problemas regionais – acelera-se
nas duas primeiras décadas do século XX, quando os autores, ainda que
abordando temas relativos a determinadas regiões do país (como Monteiro
Lobato ou Euclides da Cunha), mantêm um ideário cosmopolita, ainda
fortemente marcado pelas vanguardas europeias. Porém, é precisamente este
ideário fortemente europeísta, mas que reflete sobre realidades locais, que vai
ajudar a construir um imaginário coletivo e uma identidade nacional.
REGIONALISMO
Monteiro Lobato – Urupês (1914)
Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé.
Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários
filhinhos pálidos e tristes.
Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem
ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva,
mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto um ribeirão, onde ele
pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.
Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que
significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a
espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só.
Todos que passavam por ali murmuravam:
- Que grandíssimo preguiçoso!
Jeca Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que parecia
brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso.
- Por que não traz de uma vez um feixe grande? - perguntaram-lhe um dia.
Jeca Tatu coçou a barbicha rala e respondeu:
- Não paga a pena.
Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer
uma horta, nem plantar árvores de fruta, nem remendar a roupa.

José Bento Monteiro Lobato. "Jeca Tatu". In: LOBATO, José Bento Monteiro. Problema Vital, Jeca
Tatu e outros textos. São Paulo: Editora Globo, 2010. pp. 102-103.

| I. O que é a Literatura? 41
Capítulo I

Comentário:

No seguimento das ideias pretensamente científicas prevalecentes no seu


tempo, Monteiro Lobato tentava, em 1914, no conto Urupês, confirmar a teoria da
desigualdade das raças e da degeneração social, a qual se considerava ser
consequência da miscigenação. A personagem servia, desta forma, para demonstrar o
atraso brasileiro relativamente às nações então consideradas civilizadas, traduzindo a
consciência da elite brasileira em relação à grande maioria do povo brasileiro. Apesar
disso, o elemento regionalista da sua literatura foi rejeitado por grande parte dos
autores contemporâneos brasileiros.

Terceira característica da Literatura:

- é regional e é universal.

A quarta característica da Literatura diz respeito ao facto de uma


obra literária trabalhar quer a forma, quer o conteúdo.
Assim sendo, ainda que ambas possam sofrer um tratamento
literário, houve fases estético-literárias que privilegiaram uma, em detrimento
da outra.
No Brasil, por exemplo, os parnasianos (o parnasianismo foi
inaugurado, no Brasil, em 1882) – como Olavo Bilac (1865-1918),
Raimundo Correia (1859-1911) ou Alberto Oliveira (1857-1937) –
defenderam a arte pela arte, dando preferência a temas descritivos (como,
por exemplo, cavalgadas noturnas ou a descrição de um vaso chinês), em
detrimento de temas sociais. Já os autores da segunda fase modernista (1930
- 1945) – como Graciliano Ramos (1892-1953), Jorge Amado (1912-
2001) ou Érico Veríssimo (1905-1975) – preferiram o conteúdo à forma,
denunciando as contradições sociais de um país social e fortemente
polarizado, como era, e ainda o é, o Brasil. Muitos destes autores tiveram,
aliás, uma militância ativa: Graciliano Ramos foi preso em 1935

42 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

(experiência que descreve em Memórias do Cárcere), enquanto Jorge Amado


foi eleito deputado do Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1945, tendo-
se exilado na Europa depois da ilegalização desse mesmo Partido, ocorrida
em1947.
Alberto de Oliveira – "Vaso Chinês" (1886)
Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,
Casualmente, uma vez, de um perfumado
Contador sobre o mármore luzidio,
Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,


Nele pusera o coração doentio
Em rubras flores de um sutil lavrado,
Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,


Quem o sabe?... de um velho mandarim
Também lá estava a singular figura.

Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a,


Sentia um não sei quê com aquele chim
De olhos cortados à feição de amêndoa.

Comentário:

Em relação à métrica, este soneto revela, desde logo, uma preferência


tipicamente parnasiana: a preferência por versos alexandrinos e decassilábicos (dez
sílabas métricas). Predominam, por outro lado, elementos descritivos, em detrimento
de elementos narrativos, pelo que o vaso é descrito rigorosa e objetivamente.
Mestre do parnasianismo, uma das maiores preocupações de Alberto de
Oliveira prende-se com a precisão das palavras, resultado de um intenso trabalho que
busca adequar a forma ao conteúdo, nomeadamente em estruturas como o soneto.

| I. O que é a Literatura? 43
Capítulo I

Quarta característica da literatura:

- trabalha a forma e o conteúdo.

Como quinta, e última, característica, queremos salientar um aspecto


fundamental da literatura: a sua linguagem.
A linguagem literária distingue-se da linguagem científica e da
linguagem jornalística, situando-se na esfera da estética. Neste sentido, a
linguagem literária enuncia de forma criativa e sedutora um determinado
conteúdo, buscando o interesse e a obtenção de prazer por parte de quem lê.
Uma obra literária valoriza, portanto, o sentido conotativo das
palavras, ao contrário de textos científicos ou jornalísticos, os quais,
aplicando uma linguagem não-literária, valorizam o sentido denotativo
daquelas. No que diz respeito às propriedades semânticas do discurso
literário, afirma Carlos Reis (2008): “Se o discurso literário é um discurso
de natureza verbal, é natural que ele possa ser afetado, como em qualquer
outro discurso verbal acontece, pelo fenómeno da polissemia” (2008, p.
125), sendo a polissemia entendida como um fator de enriquecimento
semântico.
O estudo dos campos significativos das palavras, ou seja, o estudo
das diferentes formas possíveis de utilizar as palavras com sentido
conotativo, é a matéria das disciplinas de Semântica e de Estilística.
Através destas disciplinas, diversas figuras da linguagem, ou recursos
estilísticos, permitem-nos compreender a polissemia das palavras e, portanto,
os seus variados sentidos. Desses recursos estilísticos, salientamos os
seguintes:

44 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1 - Anáfora: repetição de palavras no início de um verso ou frase.


Exemplo: Ela trabalha, ela estuda, ela é mãe, ela é pai, ela é tudo!

2 - Antítese: aproximação de ideias, palavras ou expressões de sentidos opostos.


Exemplo: Os bobos e os espertos convivem no mesmo espaço.

3 - Apóstrofe ou invocação: invocação ou interpelação do ouvinte ou do leitor, de


seres reais ou imaginários, de presentes ou ausentes.
Exemplos:
Homem, venha aqui!
Oh meu Deus! Mereço tanto sofrimento?

4 - Comparação ou símile: aproximação de dois elementos, realçando a sua


semelhança.
Utilização de conectores comparativos: como, feito, que nem...
Exemplo: Aquela criança era delicada como uma flor.

5 - Eufemismo: atenuação de algum facto ou expressão com o objetivo de amenizar


uma verdade triste, chocante ou desagradável.
Exemplo: Ele foi desta para melhor.
(evitando dizer: Ele morreu.)

6 - Hipérbole: exagero propositado.


Exemplo:
Mas, se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca
(Vinicius de Moraes, Chega de Saudade)

7 - Ironia: forma intencional de dizer o contrário da ideia que se pretendia exprimir.


O irónico pode ser sarcástico ou depreciativo.
Exemplo: Que belo presente de aniversário! A minha casa foi assaltada.

| I. O que é a Literatura? 45
Capítulo I

8 - Metáfora: é um tipo de comparação em que o segundo termo é usado com o valor


do primeiro.
Exemplo: Aquela criança é (como) uma flor.

9 - Metonímia: uso de uma palavra no lugar de outra que tem com ela alguma
proximidade de sentido.
Exemplo:
a) o autor pela obra;
Ex.: Nas horas vagas, lê Machado.
(a obra de Machado)

b) a parte pelo todo;


Ex.: Deparei-me com dois lindos pezinhos chegando.
(Não eram apenas os pés, mas a pessoa como um todo)

10 - Onomatopeia: uso de palavras que imitam sons ou ruídos.


Exemplo: Psiu! Venha aqui!

11 - Personificação, prosopopeia ou animismo: atribuição de características


humanas a seres inanimados, imaginários ou irracionais.
Exemplo: A vida ensinou o gato a ser humilde.

12 - Pleonasmo ou redundância: repetição da mesma ideia com objetivo de realce.


A redundância pode ser positiva ou negativa.
Exemplo: Posso afirmar que escutei com os meus próprios ouvidos aquela
declaração fatal.

Quinta característica da Literatura:

- a linguagem literária.

46 I. O que é a Literatura? |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

A LINGUAGEM LITERÁRIA:

◊ seleciona e combina signos (ou seja, palavras);


◊ privilegia a função poética e a função emotiva da linguagem;
◊ valoriza o sentido conotativo das palavras e a sua polissemia;
◊ emprega diferentes recursos estilísticos;
◊ pode ser enunciada em verso ou em prosa.

Um texto literário engloba, portanto, os seguintes princípios:

“(1) Tradicionalmente, o de uma linguagem) e diferente de


texto literário distingue-se do texto todos (pela procura de uma forma e
das ciências da história, da filosofia, estrutura peculiares); é ao mesmo
da psicologia, sociologia, etc. tempo igual a todos os outros (em
Contudo, caracteriza-o um campo de termos de forma e estrutura e uso da
ação criativa tal que pode ir buscar a linguagem) e diferente de todos (em
todos os outros campos os termos que termos de forma e estrutura e uso
hão de ajudar a construir a sua da linguagem).
especificidade. (. . . )
(2) O texto literário é ao (3) O texto literário não é
mesmo tempo igual a todos os um registo linguístico efémero, pois
outros (em termos de forma e tem por objetivo ser preservado na
estrutura) e diferente de todos (pela tradição oral e/ou escrita. Neste
linguagem); é ao mesmo tempo igual sentido, é intemporal”
a todos os outros (em termos de uso

(E-Dicionário de Termos Linguísticos, URL: http://edtl.fcsh.unl.pt/)

| I. O que é a Literatura? 47
Atlas Português de 1519

"Mais conhecido como Atlas Miller, nome do seu último dono particular. Inclui
algumas cartas náuticas do cosmógrafo português Lopo Homem, com ilustrações de
Antonio de Holanda. Este Atlas, de grande qualidade artística, foi mandado fazer pelo
Rei D. Manuel. Acredita-se que seria um presente, mas não se sabe para quem".

(texto (adaptado) e imagem: http://www.mapas-historicos.com/atlas-miller.htm)


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

II. DO BRAS IL-COLÓNIA AO BRASIL-IMPÉRIO:


SÍNTESE SOC IOECONÓMICA E ESTÉTICO-
IDEOLÓGICA DO BRASIL, ATRAVÉS DA POSSE OU
DESAPOSSAMENTO DA TE RRA
1. O BRASIL-COLÓNIA: A TERRA COMO
SUBSTRATO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS

Na atualidade, o Brasil é uma sociedade cujo modelo económico


assenta na exportação de matérias-primas, sendo, ademais, um dos países
com os maiores índices de desigualdade do mundo.
Tendo em consideração os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística) 1, publicados em 20172, e aplicando os parâmetros
do Banco Mundial, 52 milhões de brasileiros viviam abaixo do limiar da
pobreza, em 2016. A maioria das situações de pobreza extrema verificava-se
no Norte e no Nordeste, onde mais de 40% da população se situava naquela
situação.
Deste modo, a pesquisa levada a cabo pelos indicadores sociais
brasileiros revela uma realidade inexorável: o Brasil é um país profundamente
desigual, onde a renda per capita dos 20% que mais rendimentos recebem
chega a ser superior, 18 vezes, ao rendimento médio daqueles que têm
rendimentos mais baixos3. Se considerarmos a massa do rendimento mensal
real domiciliar per capita - R$ 255,1 bilhões -, verificamos que, em 2016,
10% da população com maiores rendimentos concentrou, naquele ano,
43.4% desse total, enquanto a parcela daqueles que se incluíam nos 10%

1
Ver: https://www.ibge.gov.br/
2
Ver: https://www.ibge.gov.br/
3
Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/ibge-brasil-tem-14-
de-sua-populacao-vivendo-na-linha-de-pobreza
| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 49
ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

com menores rendimentos ficaram, apenas, com 0.8% 4 . Por outro lado,
25% da população rural do Brasil vivia, em 2016, em situação de pobreza
extrema, ou seja, um em cada quatro habitantes das zonas rurais, sendo que a
maioria destes se situava nas já referidas regiões Norte e Nordeste5.

Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2018/03/com-o-aumento-da-extrema-
pobreza-brasil-retrocede-dez-anos-em-dois

4
Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2018/03/com-o-aumento-da-
extrema-pobreza-brasil-retrocede-dez-anos-em-dois
5
Fontes: http://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2011/12/cerca-de-25-
da-populacao-rural-vive-em-situacao-de-pobreza-extrema.html;
http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/ibge-brasil-tem-14-de-sua-
populacao-vivendo-na-linha-de-pobreza
50 II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-ideológica
do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Ainda segundo os dados estatísticos do IBGE, publicados em 2017,


e ignorando os parâmetros propostos pelo Banco Mundial, o número de
pessoas em extrema pobreza aumentou, entre 2014 e 2016, 204% na região
centro-oeste, mais do que o dobro da média nacional brasileira. Por outro
lado, no Sudeste e no Sul, o quadro tampouco se mostrou alentador, com
uma ampliação, respectivamente, de 140% e de 189% no número de casos
de extrema pobreza. A evolução desta, no Rio de Janeiro, foi, aliás, das mais
intensas: entre 2014 e 2016, aumentou cerca de 2.3 vezes6.
Ora, o aumento da pobreza e a expansão do agronegócio têm tido,
no caso brasileiro, um crescimento concomitante.
Para compreender este facto, é preciso considerar que a sociedade
brasileira se constituiu, desde o início da colonização portuguesa, com uma
estrutura fundiária extremamente desigual, em que poucos proprietários
rurais possuem grandes extensões de terra, sendo sobre esta arcaica estrutura
fundiária que se vêm desenvolvendo, desde a década de 1980, as modernas
produções do agronegócio, resultando num aumento da concentração da
propriedade da terra no Brasil (IBGE, 2017): neste país, apenas 1% dos
proprietários (47 mil grandes empresas/famílias) domina praticamente
metade das terras do território. Por outro lado, 2.4 milhões de camponeses
pobres, possuem, apenas, 2% do território, com propriedades inferiores a 10
hectares7.
O conceito de agronegócio ou complexo agroindustrial (CAI)
compreende as matérias-primas e máquinas, a agropecuária, a agroindústria e
a distribuição de alimentos, seja interna, seja externamente ao território
brasileiro.

6
Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2018/03/com-o-aumento-da-
extrema-pobreza-brasil-retrocede-dez-anos-em-dois
7
Fonte: http://ilaese.org.br/wp-content/uploads/2017/10/2013-Riqueza-e-pobreza-
no-campo-brasileiro-em-pleno-s%C3%A9culo-XXI.pdf
| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 51
ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

É nas décadas de 1980 e de 1990 que este novo segmento de grupos


agroindustriais - o agronegócio - se institui como uma força hegemónica no
quadro socioeconómico brasileiro. Não é, deste modo, um acaso, que date
de 1993 a criação da Associação Brasileira de Agribusiness, num momento
em que o agronegócio se "organizaria e instrumentalizaria (n)um poderoso
complexo de cunho muito mais comercial e financeiro, cuja importância não
deve ser aquilatada apenas por seu desempenho econômico, mas, sobretudo,
por sua influencia política" (Mendonça, 2011, p. 35). Neste novo quadro, a
agricultura "tornou-se avalista de um sistema produtivo amplo e intrincado,
diante do qual urgia criar-se uma mega-agremiação dotada de poder político
proporcional à sua importancia, embora nenhuma das entidades pré-
existentes fosse desaparecer" (Mendonça, 2011, p. 35).
Os dados da balança comercial do agronegócio, divulgados em
2018 , mostram, aliás, a importância e influência do sector: a agroindústria
8

obteve um superávit de US$ 81 bilhões, em 2017, tendo aumentado as suas


exportações em 13%: os produtos que mais contribuíram para o aumento
das exportações foram a soja, os produtos florestais, a carne, os cereais, as
farinhas e o complexo sucro-alcooleiro9. Segundo pesquisadores do Cepea
(Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada / Universidade de
São Paulo)10, a participação do agronegócio nas exportações totais do Brasil,
em 2017, foi de 44%, ou seja, quase metade do total das exportações
brasileiras.
Compreender o porquê da desigualdade socioeconómica, no Brasil
de hoje, implica, em vista dos dados referidos, que conheçamos a sua

8
Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-01/com-us-96-bilhoes-
exportacoes-do-agronegocio-tem-aumento-de-13-em-2017
9
Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-01/com-us-96-bilhoes-
exportacoes-do-agronegocio-tem-aumento-de-13-em-2017
10
Ver: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/releases/export-cepea-exportacao-agro-em-
2017-e-recorde-e-faturamento-volta-a-crescer.aspx
52 II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-ideológica
do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

história, mormente a que nos permite compreender a razão que subjaz


àquela desigualdade: a distribuição inequitativa da terra.
Para tal, teremos de remontar ao período de colonização portuguesa,
o qual nos dá respostas relativamente à concentração atual de terras, acima
referida, assente numa estrutura de monopólio e num quadro económico
dependente das exportações.
A compreensão da questão agrária brasileira é, por conseguinte,
fundamental para compreender quer a evolução socioeconómica brasileira,
quer o atual estágio de domínio do modelo agroexportador, uma vez que
aquela problemática atravessa os momentos mais importantes da história do
Brasil (Ianni, 1984), prolongando-se, além do mais, na atualidade. Sendo
que a arte não pode ser desligada do movimento real da sociedade, aquela
influência manifesta-se, igualmente, na criação de uma obra literária. O tema
agrário é, aliás, de importância fulcral para a literatura brasileira, tendo sido
um tema predominante durante o período modernista.
Remontemos, então, à chegada da esquadra de Pedro Álvares
Cabral, ao Brasil, em 1500.
Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil a 22 de Abril de 1500,
capitaneando uma frota que transportava, aproximadamente, 1.500
homens11. A viagem de Cabral durou 492 dias (1 ano e 4 meses), tendo
estacionado, no Brasil, apenas, 10 dias. A esquadra dirigia-se para a Índia,
onde permaneceu cinco meses, tendo como objetivo garantir as trocas
comerciais daquele país com Portugal. As embarcações da esquadra de Pedro
Álvares Cabral implicavam, na época, um elevado grau de sofisticação
tecnológica, possuindo uma tecnologia propulsora que proporcionava
rápidas manobras em mar alto. Para além disso, equipamentos de navegação

11
Chegará, contudo, a Portugal, a 23 de Julho de 1501, comandando, apenas, 6 navios e
500 homens.

| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 53


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

como a bússola ou o astrolábio permitiam a orientação dos portugueses,


longe das costas.
Das embarcações que chegaram ao Brasil, uma voltou para Portugal
com uma carta do escrivão da frota, Pêro Vaz de Caminha (que, aliás,
morre, a caminho de Calecute, na Índia), a qual descrevia a terra que os
portugueses viam pela primeira vez.
A Carta que o escrivão Pêro Vaz de Caminha envia ao Rei
português, D. Manuel I, é considerada como o primeiro texto histórico (e,
também, literário) sobre o Brasil. Inaugura, desta forma, o que
convencionalmente se chama de literatura quinhentista, ou seja, o conjunto
das manifestações literárias produzidas no Brasil (ou, como no caso da Carta
de Pêro Vaz de Caminha, sobre o Brasil), durante o século XVI. Incluem-se,
neste tipo de literatura, a literatura informativa dos viajantes, assim como a
literatura catequética, realizada por membros da Companhia de Jesus. O
nome mais conhecido deste tipo de literatura é o do padre jesuíta José de
Anchieta, cuja visão teocêntrica do mundo fez com que a religiosidade e a
moral constituíssem uma temática transversal e comum aos seu autos,
diálogos e pregações.
Carta de Pêro Vaz de Caminha
(https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4185836
Fonte: Toore do Tombo

54 II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-ideológica


do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Pêro Vaz de Caminha – Carta a El-Rei D. Manuel I (1500)

Senhor,

Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães


escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta
navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza,
assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior
que todos fazer.
(...)
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e
bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de
cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o
rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e
verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão,
agudos na ponta como um furador. Metem- nos pela parte de dentro do beiço; e a
parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali
encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no
beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais
que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles
trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de
penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui
cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e
pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a
cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e na o fazia míngua mais
lavagem para a levantar.
(texto adaptado)

Pero Vaz de Caminha. Carta a El Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil.


Lisboa: Parque Expo 98/Publicações Europa-América, 1997, pp. 5; 14-15.

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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

Comentário:

A Carta foi escrita no dia 1 de Maio de 1500, em Porto Seguro, na Bahia. É


uma epístola dirigida ao rei português, D. Manuel I, a quem Vaz de Caminha presta
reverência. Nela, relata as terras brasileiras e os seus habitantes, descrevendo os
ameríndios, o seu estilo e as suas maneiras, a sua nudez, pacifismo e submissão,
apresentando características que nos reenviam para o mito renascentista do bom
selvagem e para a cosmovisão de um povo que seria facilmente catequizado.

José de Anchieta – "Compaixão da Virgem na morte do filho" (1563)

Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,


e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,
ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado
o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio
retalha do Senhor a meiga carne a frio. (...)

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Comentário:

José de Anchieta nasceu em 19 de Março de 1534. Foi um missionário jesuíta


espanhol e um dos fundadores da cidade de São Paulo. Escreveu cartas, sermões,
poesia e teatro, escrevendo, por vezes, o mesmo texto em diferentes línguas (o que
revela que a mesma mensagem se dirigia a distintas comunidades). Ora, enquanto os
cronistas se debruçavam sobre a terra e o nativo, os missionários da Companhia de
Jesus buscavam a conversão dos ameríndios. Os autos (pastorais) de Anchieta são, por
esta razão, lidos em determinadas cerimónias litúrgicas, e buscavam a edificação do
índio e do branco; os poemas, por seu lado, já contêm fortes elementos literários,
valendo, por esta razão, enquanto estruturas literárias autónomas, neles se
manifestando, tal como acontece com as suas cartas, sermões e autos, uma cosmovisão
que ainda é alheia ao Renascimento, num alinhamento cultural e religioso com a época
sua contemporânea.

Ainda no que diz respeito à utilização de diferentes línguas pelos


jesuítas, há que ressaltar o trabalho destes na produção de dramas
plurilingues, o que revela a tentativa jesuítica de atingir um público vasto e
variado, entre nativos, colonos, marinheiros e seminaristas. Esta não
uniformidade justificaria, deste modo, as produções em tupi, espanhol e
português (cf. Stegagno-Picchio, 2004).
Aquando da chegada da esquadra do capitão português em terras
guaranis, e até 1532, o interesse da metrópole portuguesa centrava-se no
comércio com as Índias, pelo que os portugueses vão, numa primeira etapa,
explorar, apenas, o pau-brasil - o qual batizaria, aliás, as terras que então
paulatinamente se ocupavam.
O período que se estende de 1500 a 1532 é denominado de
período pré-colonial.

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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

A exploração do pau-brasil configurou a base económica das


primeiras três décadas da ocupação portuguesa do Brasil, tendo sido, depois,
suplantada pelo surgimento de uma nova economia que faria com que o
interesse da metrópole se virasse para o Ocidente, em detrimento do
Oriente: o açúcar.
Inicia-se, então, um novo período na História do Brasil – o período
colonial – o qual se estenderia até à sua independência, em 1822.
É, desta forma, a partir de 1532, que a metrópole portuguesa inicia
a ocupação do litoral brasileiro através de grandes plantações de cana-de-
açúcar. Esta expansão superou, aliás, as próprias práticas mediterrânicas -
onde predominava o pequeno engenho movido a força humana ou a força
animal -, impondo um modo de produção que, pela sua intensidade,
necessitou de recorrer a uma abundante força de trabalho escrava. O período
de predomínio das plantações de cana-de-açúcar é, por esta razão,
socioeconomicamente designado como modo de produção escravista
colonial (Gorender, 2016).
Este modo de produção baseia-se na monocultura em grande escala,
de forma a que a colónia produzisse géneros comerciais em grandes
quantidades, destinados ao mercado mundial, empregava trabalho escravo e
predominou, não apenas no Brasil, mas em parte da América latina
(Gorender, 2016).
A implantação dos engenhos de açúcar é concomitante com a
instituição de um novo sistema de distribuição e controlo fundiário: a
metrópole portuguesa, pela mão de D. João III (1502-1557), institui o
sistema das capitanias hereditárias, depois substituídas pelas capitanias reais
(inspirando-se do modelo já instituído no arquipélago da Madeira e no
arquipélago dos Açores), e o sistema de sesmarias. A Coroa garantia, desta
forma, quer a colonização do novo território, quer novas fontes de renda.

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A instituição destas duas instituições típicas - as capitanias


hereditárias e as sesmarias12 - constituem, deste modo, os elementos centrais,
caracterizadores do período Brasil-colónia.
O sistema de sesmarias13foi um instrumento jurídico português que
normatizou a distribuição de terras destinadas à produção: o Estado recém-
formado, sem capacidade para organizar a produção de alimentos, decide
legar a particulares essa função, entregando a senhores portugueses grandes
extensões de terras, sob a forma legal de capitanias (primeiro, em 1534,
hereditárias, depois, reais). Este sistema surgira em Portugal durante o século
XIV, com a lei das sesmarias de 1375, tendo sido criado com o objetivo de
combater a crise agrícola e económica que atingira o país e a Europa (e que a
peste negra agravara). Quando a conquista do território brasileiro se
efetivou, a metrópole decidiu utilizar aquele sistema sesmarial no novo
território, ainda que com algumas adaptações.
Esta ocupação do território implicava, contudo, no caso brasileiro, a
expulsão das populações ameríndias autóctones dos seus territórios seculares,
pelo que o sistema de sesmarias precedeu, e instaurou, as bases do grande
latifúndio brasileiro (Vinhas, 1968).
Ao longo dos séculos XV, XVI e XVII atribuíram-se ao capitão-
donatário, e aos seus sucessores, poderes e privilégios extraordinários, muitas
vezes em detrimento dos poderes reais. A Coroa via-se, aliás, obrigada a
abdicar de alguns direitos que lhe estavam consagrados, de forma a que se
realizasse o povoamento e a exploração das novas terras da América do sul.
Os donatários podiam, por sua vez, entregar sesmarias a quem assim

12
Refira-se, no entanto, que, apesar de os donatários portugueses se enquadrarem no direito
feudal, não recebiam nenhum poder legislativo e se encontravam sujeitos à centralizadora
monarquia absoluta. Segundo Gorender (2016), as capitanias hereditárias devem ser vistas
como a manifestação de um tipo específico de colonização, da época do mercantilismo
13
As sesmarias, que, em Portugal, haviam quebrado a antiga tradição feudal, e haviam
impulsionado a colonização de territórios incultos, raramente foram respeitadas no
território brasileiro, pelo que a desigual estrutura fundiária marcou o próprio nascimento do
Brasil colonial e da sociedade latifundiária e exportadora.
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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

decidissem, sob a condição de os sesmeiros pagarem, anualmente, um foro


pelo estabelecimento de um engenho ou um tributo sobre a produção de
açúcar (Borges, 1958).
O não cumprimento da lei das sesmarias (os donatários, apesar de
terem a obrigação de distribuir 80% das terras a título gratuito de sesmarias
- cujos beneficiários se encontravam isentos de qualquer espécie de
dependência pessoal -, não cumpriam este postulado) permitiu que a posse
sesmeira da terra garantisse o domínio latifundiário da propriedade, a qual
passa a constituir a base material para a exploração da mão-de-obra escrava
(Maestri, 2003).
O modelo de produção brasileiro encontrou-se, assim, submetido
ao modelo de produção português, servindo para o abastecimento constante
da metrópole e instituindo um modelo agroexportador.
Fonte: https://ensinarhistoriajoelza.com.br/para-colorir-fazenda-de-cana-do-
brasil-colonia/

Casa-grande de taipa (detalhe), Frans Post, séc. XVII

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1.1. A ESTÉTICA DO PERÍODO COLONIAL

Esteticamente, o período colonial pode ser dividido em dois


períodos: o Barroco e o Arcadismo.
O Barroco foi um estilo que se notabilizou, sobretudo, na Europa
latina, fruto da "madura cultura urbana em alguns centros italianos desde o
princípio do século XV" (Bosi, 2015, p. 29). É, aliás, no interior da
nobreza e do clero espanhol, português e italiano que o Barroco se
desenvolve, em íntima conexão com a vida jesuíta, num momento em que o
mundo se defendia do protestantismo e do racionalismo inglês, holandês e
francês. Há, portanto, "um nexo entre o barroco-hispânico-romano e toda
uma realidade social e cultural que se inflecte sobre si mesma ante a agressão
da modernidade burguesa, científica e leiga" (Bosi, 2015, p. 30).
Na poesia, o Barroco insiste num rebuscamento abstrato, que os
poetas arcádicos posteriores tentariam contrariar. A extravagância e o
exagero dos detalhes faziam com que, quer a literatura, quer a arte barrocas
se enquadrassem num "estilo voltado para a alusão (e não para a cópia) e
para a ilusão enquanto fuga da realidade convencional" (Bosi, 2015, p. 33).
Assim, se, na arquitetura, predominam formas geométricas, curvas e dobras
extravagantes, muros que se torcem, tetos arqueados e torres que se afinam,
escadarias que se assemelham a cascatas e espirais que rodeiam altares, na
literatura predominam as figuras sonoras (aliteração, assonância,
onomatopeia), sintáticas (elipse, anacoluto, silepse) e semânticas (metáfora,
metonímia, antítese). No entanto, como assinala Bosi (2015), é necessário
compreender o estilo barroco no seu presente histórico, para então
vislumbrar em toda a sua retórica e exegese uma "crise defensiva da Europa
pré-industrial, aristocrática e jesuítica, perante o avanço do racionalismo
burguês" (p. 34) e compreender, desta forma, o porquê da angústia, do
desejo de fuga e do excessivo subjetivismo presente na sua poética.

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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

No Brasil, a poesia barroca distinguiu-se pela voz de Gregório de


Matos (1636-1696) e de Botelho de Oliveira (1636-1711), sendo que na
música a sua realização cultural apenas se efetiva mais tardiamente, quando a
exploração das minas de ouro em Minas Gerais, no final do século XVII,
permitiu o florescimento de núcleos como Vila Rica (hoje, Ouro Preto),
Mariana ou Diamantina, em Minas Gerais.
Atentemos, como exemplo da poesia barroca, nos seguintes poemas
de Gregório de Matos e de Manoel Botelho de Oliveira:
Gregório de Matos - "Soneto a Jesus Cristo Nosso Senhor" (século XVII)

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,


Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinquido
Vos tem a perdoar mais empenhado.

Se basta a voz irar tanto pecado,


A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada


Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história.

Eu sou, Senhor a ovelha desgarrada,


Recobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

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Comentário:

Este soneto constitui um exemplo maior da poesia sacro-religiosa de


Gregório de Matos, no qual a dualidade culpa / perdão nos remete para a angústia
e preocupação do eu lírico. Na primeira estrofe, o eu lírico invoca o Senhor,
referindo que quanto mais peca, mais se aproxima daquele, pois é por via do
pecado que Deus exerce o seu divino perdão; na segunda estrofe, demonstra, não
obstante, arrependimento perante tantos pecados cometidos. Nas terceira e quarta
estrofes, o eu lírico caracteriza-se como uma ovelha fora do rebanho, apelando à
necessária ação de Deus para que este o reponha no caminho de onde nunca
deveria ter-se afastado. O cultismo barroco evidencia-se através da linguagem
rebuscada, das parábolas e das metáforas, numa composição onde predomina o
formalismo e a regularidade métrica e rítmica.

Manoel Botelho de Oliveira - A Morte do Padre Vieira (século XVIII)


Fostes, Vieira, engenho tão subido,
Tão singular, e tão avantajado,
Que nunca sereis mais de outro imitado
Bem que sejais de todos aplaudido.

Nas sacras Escrituras embebido,


Qual Agostinho, fostes celebrado;
Ele de África assombro venerado,
ós da Europa portento esclarecido.

Morrestes; porém não; que ao mundo atroa


Vossa pena, que aplausos multiplica,
Com que de eterna vida vos coroa;

E quando imortalmente se publica,


Em cada rasgo seu a fama voa,
Em cada seu, uma alma fica

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Capítulo II

Comentário:

Contemporâneo de Gregório de Matos, Manoel Botelho de Oliveira foi,


igualmente, um cultor da poesia barroca. Neste poema, manifesta a sua tristeza
perante a morte do padre jesuíta, António Vieira, em 1697, que fora um dos
responsáveis pelo desenvolvimento da prosa barroca. Vieira escreveu cerca de
duzentos sermões, privilegiando a retórica e o encadeamento lógico de ideias e
conceitos, os quais, formalmente, se dividem em três componentes: o intróito ou
exórdio (introdução do tema a tratar), o desenvolvimento ou argumento (defesa de
uma ideia com base numa cuidada argumentação) e a peroração (conclusão).

Até ao início do século XVIII, as manifestações culturais do Brasil-


colónia pareciam desconectadas entre si, uma vez que os centros urbanos
ainda não ofereciam condições à sociabilização de fenómenos literários.
Porém, o surgimento da economia do ouro vai reanimar centros urbanos
como a Bahia, o Rio de Janeiro ou cidades de Minas Gerais, criando as
condições para o estabelecimento de grémios eruditos e literários.
Sucedem-se, em consequência, ao longo do século XVIII, vários
atos académicos e sessões literárias, o que comprova a efetivação de uma
"razoável consistência grupal" (Bosi, 2015, p. 52) da sociedade do Brasil de
então. Ainda que a sua inspiração e influência venham da Europa, os autores
nutriam-se, gradualmente, da história e geografia locais, debruçando-se, por
exemplo, sobre as lutas com os holandeses 14 , no Nordeste, ou sobre as
bandeiras15 e a mineração no Centro e no Sul.

14
Desde a Revolta Holandesa (1568-1548), frente a Espanha, que os holandeses lutaram
pela independência. Tal permitiu que os holandeses tivessem um grande crescimento
económico, mormente devido ao comércio ultramarino. Apesar de conflitos entre
protestantes e católicos, os holandeses sempre desenvolveram relações comerciais com os
portugueses, especialmente no que toca ao açúcar brasileiro. Entre 1580 e 1640, Portugal,
contudo, ficou submetido à Coroa espanhola, o que teve como consequência o desgaste das
relações com os holandeses. De forma a evitar prejuízos relativamente comércio açucareiro,
os holandeses optam por invadir as possessões portuguesas, no continente americano, como
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Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

De seguida, apresentamos, sinteticamente, as principais


características da poesia barroca:

Principais características do Barroco literário:

◊ conflito ideológico entre o teocentrismo e o antropocentrismo, entre


a religiosidade e o racionalismo científico;
◊ valorização da transitoriedade de tudo o que é terreno e humano;
◊ subjetivismo;
◊ linguagem extravagante e rebuscada;
◊ emprego de antíteses e paradoxos;
◊ cultismo (formalismo exuberante) e conceptismo (jogos de
raciocínio e retóricos que tinham como objetivo a explicação do conflito entre
opostos).

Na segunda metade do século XVIII prefiguram-se, contudo,


tendências estéticas características do Arcadismo, "como a busca do natural
e do simples e a adoção de esquemas rítmicos mais graciosos, entendendo-se
por graça uma forma específica e menor de beleza" (Bosi, 2015, p. 57).

no continente africano. Em 1624, os holandeses invadem a Bahia, aqui se estabelecendo até


1625. Em 1630, tentam invadir Pernambuco, conquistando diversas capitanias litorais
nortenhas: Paraíba (1634), Rio Grande do Norte (1634), Capitania Real do Ceará (1637)
e São Luís, capital do Estado do Maranhão (1641).
15
As bandeiras eram expedições particulares, organizadas, sobretudo, por paulistas, que
percorriam, durante meses (e, por vezes, anos), o interior do Brasil. As expedições de
bandeirantes tiveram como consequência a expansão territorial do Brasil-colónia, já que os
bandeirantes avançavam pelo interior do Brasil. No fim do século XVII foi graças a uma
expedição de bandeirantes que se descobriram as reservas de ouro, na região de Minas
Gerais.
| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 65
ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

No plano literário, ainda que alguns poetas incorporem nas suas


obras o cultismo barroco, já predominam, deste modo, as características do
Neoclassicismo europeu. Ora, se, poeticamente, o artista se reencontra com a
Natureza, com os afectos e emoções humanos e com o classicismo que era
considerado como digno de imitação, no plano ideológico, porém, o
Arcadismo resulta de uma crítica "da burguesia culta aos abusos da nobreza
e do clero (Ilustração)" (Bosi, 2015, p. 57).
Enquanto na poesia Barroca prevalecia o livre-arbítrio do criador -
que, numa aproximação com a música, podia jogar com os signos
indefinidamente -, no Arcadismo as imagens e o ritmo não valem por si
mesmos. Segundo Alfredo Bosi (2015) e Antônio Cândido (2017), os
ambientes e as figuras bucólicas que os poetas representam encontram a sua
génese na burguesia, razão pela qual o tema da poesia pastoral se encontraria
intimamente ligado com a cultura urbana (a qual, impondo uma barreira
entre campo e cidade, faz com que o campo se transforme num bem perdido
"que encarna facilmente os sentimentos de frustração" (Cândido, 2017, p.
60)). O campo surge, por conseguinte, como revelador de uma euforia e de
uma alegria perdidas, cuja evocação se ajusta ao tema da angústia e permite
relembrar os mitos que reenviam o Homem para uma hipotética passada
Idade de Ouro. Aliás, como relembra Alfredo Bosi (2015), a poesia bucólica
vingou, historicamente, em ambientes de cultura urbana, tendo constituído
"o ameno artifício que permitiu ao poeta fechado na corte abrir janelas para
um cenário idílico onde pudesse cantar, liberto das constrições da etiqueta,
os seus sentimentos de amor e de abandono ao fluxo da existência" (p. 60).
O Iluminismo assume-se, neste contexto, como a luta da Razão e da
Natureza, ou seja, surge como sistema de pensamento do burguês culto,
contra a aristocracia de sangue. Em França, Voltaire (1694-1778)
representa os meios urbanos contra os preconceitos vindos de uma velha e
decadente aristocracia e de um clero que sempre a havia sustentado
ideologicamente, enquanto Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é "quem
abre as estradas largas do pensamento democrático, da pedagogia intuitiva,
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da religiosidade natural" (Bosi, 2015, p. 60). Ambos se revoltam contra o


absolutismo nobre e clerical, apelando, para tal, à Natureza e à Razão. É
neste contexto ideológico que tanto o campo como a cidade surgem
carregados de conotações ideológicas e classistas, com o burguês olhando
para o campo como um espaço sociogeográfico inacessível e idílico. Não
obstante, uma vez as Revoluções Industrial (século XVIII) e Francesa
(1789) triunfantes, será "a vez de o nobre ressentido cantar a paz do mundo
não maculado pela indústria e pela vulgaridade do comércio" (Bosi, 2015, p.
62), num novo momento estético-literário que prefigurará o pré-
romantismo.
As características pré-românticas sentem-se, no entanto, muito
pouco no Arcadismo brasileiro, predominando os temas associados ao eu
lírico assumido como pastor, à idealização de um ambiente bucólico, aos
mitos do bom selvagem e do homem natural, e, por vezes, a um tom satírico
relativamente aos abusos de alguns servidores das instituições públicas, o
qual foi utilizado pelos intelectuais que participaram na Conjuração (ou
Inconfidência) Mineira (o poeta Antônio Gonzaga (1744-1810) foi, aliás,
preso). Tendo em consideração que a Inconfidência Mineira consistiu numa
colisão de interesses distintos entre, por um lado, as elites coloniais, e, por
outro, as elites metropolitanas, as primeiras encontraram no Iluminismo, em
particular na poesia do Arcadismo, a sua inspiração e influência, à imagem
do que sucedera com os movimentos separatistas americanos durante os
séculos XVIII e XIX.
Como exemplo da poesia árcade, vejamos o seguinte poema de
Tomás António Gonzaga:

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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

Tomás António Gonzaga - "Marília de Dirceu" (1792)


Lira I
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte,


Dos anos inda não está cortado:
Os pastores, que habitam este monte,
Respeitam o poder do meu cajado:
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha,
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
(...)
Lira IX
Chegou-se o dia mais triste
que o dia da morte feia;
caí do trono, Dircéia,
do trono dos braços teus,
Ah! não posso, não, não posso
dizer-te, meu bem, adeus!

Ímpio Fado, que não pôde


os doces laços quebrar-me,
por vingança quer levar-me
distante dos olhos teus.
Ah! não posso, não, não posso
dizer-te, meu bem, adeus!

68 II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-ideológica


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Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Apesar disso, a poesia árcade brasileira incorpora traços quer do


Barroco, quer do Renascimento, ao ponto de Sérgio Buarque de Holanda
considerar que o poeta árcade Cláudio Manuel da Costa pertenceria, ainda, à
era barroca. As suas formas arcádicas, ou que se supunham arcádicas e
modernas, representariam, assim, um mero “disfarce externo" (Holanda,
1991, p. 227).
De qualquer forma, a poesia brasileira árcade expressa, já então,
sentimentos próprios, distintos dos seus contemporâneos ibéricos, e
perspectivas autonomistas, as quais seriam aprofundadas e defendidas pelos
seus sucessores Românticos, que valorizariam as cores nacionais, linguagens
e brasileirismos.
De seguida, apresentamos, sinteticamente, as principais
características do Arcadismo:

Principais características do Arcadismo:

◊ reação à estética subjetiva, hiperbólica e retorcida do Barroco, com


vista a encontrar clareza e equilíbrio;
◊ retomada dos valores Renascentistas;
◊ bucolismo;
◊ expressão do eu lírico como pastor;
◊ racionalismo e anticlericalismo, em conformidade com os ideais
iluministas;
◊ revalorização da linguagem clássica;
◊ fidelidade aos ideais iluministas da burguesia.

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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

2. O IMPÉRIO COLONIAL AFRICANO PORTUGUÊS


E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

No século XIX, a África central e meridional sofre o impacto da


expansão e da colonização europeias (Saldanha, 2018).
Portugal segue o movimento europeu de expansão territorial e de
colonização do Continente africano, através das suas colónias em Angola e
Moçambique. Ora, tal opção colonizadora fazia-se num momento em que
várias potências ocidentais possuíam pretensões sobre os territórios
coloniais, historicamente ocupados por Portugal. Esta expansão revelava-se,
por conseguinte, como uma forma de Portugal afirmar a sua soberania em
África (Saldanha, 2018).
A situação anterior ao século XIX não se revestira, todavia, desta
importância expansionista. Até então, a Coroa portuguesa (com a exceção de
Angola) nunca se preocupara com a exploração do território, mas antes com
a proteção das feitorias existentes. Tal justificava-se pelo papel económico
que representava África, o qual se reduzia, no fundo, ao tráfico de escravos,
contrariamente ao que se passava no Brasil. A conquista de Angola, de
Moçambique e da Guiné havia sido, portanto, uma forma de Portugal se
impor como um soberano colonial, sendo que as vantagens económicas não
representavam um fator preponderante na escolha da política portuguesa. Os
colonos portugueses foram, por isso, pouco numerosos, preferindo instalar-
se no continente americano (Brasil ou EUA)16 (Saldanha, 2018).
Entre 1500 e 1700, aproximadamente 100 mil portugueses
deslocaram-se para o Brasil; a maioria destes imigrantes fazia parte da
iniciativa privada que colonizou o Brasil: grandes fazendeiros ou empresários
falidos em Portugal que, através da distribuição de sesmarias, tentavam
enriquecer-se facilmente. Dedicaram-se à agricultura – especialmente à

16
A verdadeira expansão desenvolve-se, sobretudo, a partir do século XIX, quando Portugal
necessitará de se defender das incursões expansionistas inglesas, francesas e alemãs.
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do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

produção de açúcar -, utilizando, para tal, a força de trabalho escrava:


primeiro, de indígenas, depois, de escravos africanos.
No final do século XVII, uma nova economia vai, contudo, fazer
florescer a colónia e vai trazer um novo interesse sobre o Brasil: a descoberta
de minas de ouro, na região de Minas Gerais.
É assim que se inicia uma nova vaga de imigração para o Brasil, a
qual se prolongaria ao longo do século XVIII. Chegam, então, ao Brasil,
aproximadamente, 600 mil portugueses, desta vez atraídos pelo ouro, os
quais se dedicaram, sobretudo, à exploração daquele minério e ao comércio.
O século XVIII vai, por outro lado, trazer novas configurações no
plano europeu, o que tem como consequência a alteração da relação da
metrópole portuguesa com a sua colónia brasileira.
Com efeito, em Agosto de 1807, Portugal estava prestes a ser
invadido pelas tropas francesas, sob ordem de Napoleão Bonaparte. Sem
condições militares para enfrentar os franceses, o príncipe regente de
Portugal, D. João, resolve transferir a corte portuguesa para a sua colónia
mais importante, o Brasil, para tal contando com a ajuda dos aliados
ingleses.
O embarque da família real, acompanhada por cerca de 12.000
súbditos, foi efetuado na manhã de 27 de Novembro. A esquadra
portuguesa era composta por 18 navios de guerra e 25 navios mercantes.
Um esquadrão britânico, comandado por Sir William Sidney Smith, e
composto por 13 navios, fazia o bloqueio do Tejo, por determinação do
Ministro Canning, em retaliação às medidas decretadas por Napoleão
Bonaparte. A este esquadrão caberia escoltar as naus portuguesas na sua
viagem para o Brasil. Nos barcos viajavam funcionários, criados, assessores e
elementos ligados à corte portuguesa, e transportavam-se obras de arte,
livros, bens pessoais e muitos objetos de valor.
Em Março de 1808, a corte portuguesa chegou ao Rio de Janeiro e
aqui se instalou.
Uma das principais medidas tomadas por D. João foi decretar a
abertura dos portos brasileiros à Inglaterra: os produtos ingleses chegavam
| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 71
ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

ao Brasil com impostos de 15%, enquanto os de outros países pagavam


24%.
Apesar disso, D. João incentivou o estabelecimento de indústrias,
promoveu a construção de estradas, criou o Banco do Brasil e instalou a
Junta de Comércio, criou o Museu Nacional, a Biblioteca Real, a escola Real
de Artes e o Jardim Botânico.
A burguesia portuguesa ressentia-se, contudo, dos efeitos do
Decreto de abertura dos portos, o qual tivera como consequência deslocar
para o Brasil parte expressiva da vida económica da metrópole. Surge, então,
em Portugal, um movimento liberal que, já sem a preocupação de uma
eventual invasão francesa (as tropas francesas haviam, entretanto, sido
derrotadas, depois de três tentativas de invasão), exige o retorno da corte
para Portugal, para além do estabelecimento de uma monarquia
constitucional e a restauração da exclusividade do comércio de Portugal com
o Brasil.
Neste contexto, D. João volta a Portugal, em 1821, mas deixa o seu
filho, D. Pedro, como regente, no Brasil.
No final de 1821, decretos da corte portuguesa exigem que o Brasil
se submeta às ordens metropolitanas. D. Pedro recebe ordens para voltar
para Portugal, mas, sob pressão de fazendeiros, comerciantes, altos
funcionários públicos e dignitários ingleses, recusa.
No dia 7 de Setembro de 1822, é o próprio D. Pedro quem declara
a independência do Brasil. É coroado Imperador no dia 1 de Dezembro de
1822.
Inicia-se, assim, um novo período da História do Brasil - Brasil-
Império -, o qual se prolongaria até à instauração da República, em 1889.
Portugal perdera, em 1822, a sua colónia mais importante e via-se
obrigado a dar uma maior atenção às colónias que lhe restavam no
Continente africano. Pouco tempo depois, em 1869, pressionado pelas

72 II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-ideológica


do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

potências estrangeiras, sobretudo pela Grã-Bretanha, Portugal 17 proclama a


abolição da escravatura, em todo o Império.
Entretanto, em 1870, a Grã-Bretanha elabora um plano de expansão
colonial que lhe daria um papel de relevo no panorama mundial. A
Alemanha e a França tentam, contudo, limitar esta expansão, sobretudo em
África, propondo um acordo internacional. É, assim, realizada, em 1876,
uma Conferência, em Bruxelas, sob a égide do rei belga Leopoldo II (1835-
1909), a Conferência Geográfica. Desta reunião nasce a Associação
Internacional Africana, a qual se propõe promover a exploração e civilização
do continente africano. Portugal não foi, porém, convidado para esta
Conferência, o que revelava a indiferença das grandes potências ocidentais
relativamente às pretensões colonialistas de Portugal (Saldanha, 2018).
A França e a Bélgica, por seu lado, ganhavam, gradualmente,
território na região do Congo. Este facto colidia, contudo, com os interesses
expansionistas britânicos que, assim, viam ameaçadas as suas pretensões
expansionistas em África. Para preservar os seus interesses, a Grã-Bretanha
efetua um acordo com os portugueses: tendo em consideração o avanço
franco-belga, a Inglaterra reconhece a soberania portuguesa nas duas
margens do Zaire. A França e a Bélgica mostram-se, por seu lado, pouco
interessadas neste acordo, reagindo e impedindo a sua ratificação. A
Alemanha convoca, em consequência, uma nova Conferência Internacional,
em 1885, desta vez com a presença portuguesa. Desta Conferência nasce um
Ato Geral, no qual os direitos históricos sobre os territórios africanos
passam a ser substituídos por uma ocupação efetiva. Ora, Portugal não
possuía nem verbas, nem militares suficientes para assegurar todas as suas
possessões históricas (Oliveira Marques, 2001).

Portugal, todavia, já havia sido coagido, no século XVIII, pela Companhia de Jesus, a
17

abolir a escravatura dos índios, no Brasil: sob o reinado de D. José I (no governo do
Marquês de Pombal), a par da expulsão dos jesuítas (que representavam um forte contra-
poder), decreta-se a liberdade dos índios do Brasil, proibindo-se a sua escravização pelos
colonos. Esta escravatura é, em 1761, igualmente abolida no reino, na metrópole e na Índia.
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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

É neste contexto que, a 11 de janeiro de 1890, o governo inglês


envia um ultimatum 18 a Portugal, exigindo a retirada das forças militares
existentes no território compreendido entre as colónias de Moçambique e
Angola. De forma a evitar um conflito armado com a potência britânica,
Portugal vê-se obrigado a renunciar a parte das suas pretensões territoriais.
A Paz Armada que vingou entre a Inglaterra e a Alemanha, a partir
de 1885, e que se intensificou, sobretudo, a partir de 1906, permitiu,
contudo, reaproximar os interesses ingleses e os interesses portugueses, assim
como garantir, por parte da Grã-Bretanha, a proteção dos interesses
coloniais portugueses. Não obstante este reconhecimento britânico, a posse
das colónias africanas portuguesas era periclitante nas vésperas da Primeira
Grande Guerra (1914-1918). A Alemanha manifestava, então, o seu
interesse pelas possessões ultramarinas portuguesas.
A eclosão da primeira Guerra Mundial veio, porém, salvar o que
restava do império português africano, mercê do posicionamento de
Portugal ao lado dos Aliados (Oliveira Marques, 2001).
-cor-de-rosa/
http://knoow.net/historia/historiaportug/mapa
Fonte:

Mapa cor-de-rosa

18
Como reação ao Ultimatum britânico, Alfredo Keil (1850-1907) compôs a melodia que
viria a ser consagrada como o Hino Nacional Português, após a Revolução de 5 de outubro
de 1910.
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do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

3. O BRASIL-IMPÉRIO: O FIM DO SISTEMA


ESCRAVISTA E A IMIGRAÇÃO EUROPEIA

Como referimos, o Brasil torna-se independente em 1822. É


instituído, a partir de então, um regime monárquico-imperial, dirigido,
primeiro, pelo Imperador Pedro I (filho do rei português, D. João VI), e,
depois, pelo seu filho, o Imperador Pedro II (neto do rei português, D. João
VI).
Nos últimos quinze anos do século XVIII, entra em decadência a
exploração aurífera, num momento em que a Inglaterra já havia entrado na
Revolução Industrial. Ora, para que se efetivasse o escoamento das
mercadorias manufaturadas inglesas, era necessário o abandono gradual do
protecionismo estatal.
À Inglaterra interessava, então, que os mercados europeus,
americanos e asiáticos se abrissem para os seus produtos manufaturados,
pelo que o protecionismo mercantilista, que havia prevalecido, teria de ter
um fim.
Nesta revolução em curso na Inglaterra, o escravo teria de deixar de
o ser, para assumir uma nova posição social no modo de produção que então
se aprofundava e expandia, sob a égide da burguesia inglesa. O Império
inglês pressionou, desta forma, as diferentes nações europeias que ainda
utilizavam a escravatura como forma de exploração da força de trabalho, no
sentido de aquelas substituírem esta mão-de-obra escrava por mão-de-obra
assalariada. A esta necessidade económica juntaram-se quer fatores
ideológicos que sustinham a nova necessidade económica, quer movimentos
crescentes de revolta de escravos, muitos deles organizados em quilombos, o
que anunciava o fim próximo da escravidão no Brasil (Saldanha, 2018).
É neste contexto que o Império brasileiro (fortemente dependente -
à imagem da ex-metrópole - de capitais ingleses), preparando o fim da
escravatura, decide promulgar, pela primeira vez no Brasil, pela mão de D.
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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

Pedro II, uma Lei de Terras. Promulgada em 1850, esta lei surge como um
marco jurídico que busca adequar o sistema económico para a crise que se
adivinhava com o fim próximo da escravatura. A terra deixa, a partir de
então, de constituir um bem da natureza para se tornar numa mercadoria:
"Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não
seja o da compra" (Lei de Terras n° 601, art. 1).
Vedava-se, definitivamente, a possibilidade de aquisição de terras
pelas classes mais desfavorecidas, inclusivamente por aquelas que
trabalhavam no campo, enquanto se perpetuava a preservação da estrutura
latifundiária brasileira (Gorender, 2016). Foram, então, os fazendeiros,
muitos deles usufruindo do direito de concessão outorgado pela então
Coroa portuguesa, que compraram estas terras, participando e acelerando
(n)o processo de consolidação da propriedade privada de grandes extensões
de terra19.
O ano de aprovação da Lei de Terras coincide com o ano em que a
Inglaterra impõe a proibição do tráfico negreiro, ameaçando apropriar-se de
toda e qualquer embarcação que transportasse escravos africanos para outros
continentes.
A pressão económica inglesa, as ideias abolicionistas, assim como os
diferentes movimentos de revolta da população escrava, fizeram com que,
em 1888, fosse, definitiva e juridicamente, abolido o trabalho escravo, no
Brasil.
Sem qualquer bem, os agora ex-escravos migram para as cidades,
onde as melhores terras, já então, eram propriedade de uma elite. Instalam-
se, assim, nos morros, constituindo as bases das atuais favelas: "A lei de
terras é também a mãe das favelas brasileiras" (Stédile, 2011, p. 24).
Contudo, se a transformação do trabalho escravo em trabalho livre deveria

19
Apesar de, juridicamente, o monopólio da terra, no Brasil, ser um fenómeno relativamente
recente, o mesmo não poderemos afirmar das relações capitalistas, que, já então, eram
predominantes no campo brasileiro.
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resultar na transformação dos escravos em trabalhadores assalariados, tal não


se efetivou. Esta não concretização socioeconómica encontra resposta,
segundo Nelson Werneck Sodré (1962), na pesada herança colonial, a qual
teria impedido a preparação e aceitação do vasto e livre estabelecimento do
trabalho assalariado.
Com a fuga da mão-de-obra ex-escrava para a cidade, o modelo
agrícola açucareiro, até então prevalecente, entra, definitivamente, em crise.
O gradual fim daquele modelo (que atingirá o seu paroxismo no
decurso da Primeira Guerra Mundial, quando as relações comerciais entre as
Américas e as suas antigas metrópoles se interromperão), vai ter duas
consequências fundamentais: por um lado, o mercado interno desenvolve-se,
por outro, é feito um apelo à mão-de-obra pobre europeia para se instalar no
Brasil e substituir, assim, a mão-de-obra escrava.
Uma vasta massa de camponeses pobres europeus vai, deste modo,
instalar-se no Brasil, sobretudo a partir de 1875, num fenómeno migratório
que se prolongará até à eclosão da Primeira Guerra Mundial. A maioria
daqueles camponeses instala-se no sul do país, onde recebe um lote de terras,
enquanto outra parte se instala ou em São Paulo, ou no Rio de Janeiro, onde
trabalhará nas fazendas de café sob a forma de colonato (os camponeses
recebiam uma lavoura de café, uma moradia e o direito de cultivar uma
determinada área). Em geral, o pagamento era feito em produto (Saldanha,
2018).
O governo imperial assume, a partir de 1870, os custos do
transporte dos imigrantes que iriam trabalhar nos cafezais. Ao fazendeiro,
por seu lado, cabia cobrir os gastos do imigrante durante o seu primeiro ano
de atividade, colocando à disposição do novo colono terras em que aquele
pudesse cultivar géneros essenciais à sua sobrevivência e à da sua família.
Este conjunto de medidas vai favorizar uma corrente migratória europeia
para a América do sul, com o objetivo de trabalhar em grandes plantações
agrícolas (cf. Saldanha, 2018).

| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 77


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

Altera-se, em consequência, o quadro social brasileiro,


nomeadamente na área central e sul do país, num momento em que o poder
económico e político, fruto das transformações em curso, passa a estar
ligado a uma nova oligarquia: os barões do café. São Paulo torna-se, então,
no paradigma do novo modelo agrícola. Os imigrantes europeus eram, na
sua maioria, pequenos campesinos, com pouca ou nenhuma terra, que na
Europa estariam destinados a sofrer um profundo processo de
proletarização (Saldanha, 2018).
Nasce, então, no Brasil, uma nova classe camponesa, composta, por
um lado, por migrantes camponeses pobres europeus, e, por outro, por
populações mestiças, oriundas do processo de miscigenação entre escravos,
europeus e ameríndios. Não tendo sido escravos, estas populações mestiças
não deixavam, apesar disso, de ser trabalhadores empobrecidos e, portanto,
também eles incapazes de aceder à propriedade da terra. Estes trabalhadores
pobres vão encetar um processo migratório interno, instalando-se nas zonas
áridas do sertão (Saldanha, 2018).
Ora, a crise do modelo açucareiro vai ter consequências, não apenas
económicas, mas também políticas e institucionais, acarretando consigo o
fim do Império e o estabelecimento de um modelo político republicano (de
cuja implementação esteve ausente a grande maioria da população).
Posteriormente, a eclosão do primeiro conflito mundial, e a crise de
1929 que se lhe segue, vão interromper o fornecimento de mão-de-obra
pobre para o Brasil, abrindo caminho para que, a partir de 1930, se inicie
um novo período na história económica do país.

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3.1. A ESTÉTICA DO BRASIL-IMPÉRIO

Na Europa, o Romantismo surge na primeira metade do século


XIX sob o signo da insatisfação de camadas da pequena-burguesia e de
sectores da nobreza, incapazes de fazer frente às transformações que, então,
se operavam na sociedade depois da vitória da Revolução Industrial e da
Revolução Francesa, as quais levaram a burguesia ao poder de Estado. A
velha aristocracia, destituída dos privilégios de que usufruíra, expressa, então,
a sua nostalgia em relação ao modo socioeconómico em que fora dominante,
dando origem a uma nova escola estético-literária.
É neste período que se definem com clareza as modernas classes
sociais: a nobreza, agora destituída de poder, a grande e a pequena burguesia,
o campesinato e o operariado nascente. Na sequência da interpretação de
Karl Mannheim (1959), que considera que o Romantismo medievista,
sentimental e voltado para a busca de um refúgio, é uma reação contra os
esquemas culturais da burguesia ascendente, Alfredo Bosi (2015) considera
que "o Romantismo expressa os sentimentos dos descontentes com as novas
estruturas: a nobreza, que já caiu, e a pequena burguesia que ainda não subiu:
de onde, as atitudes saudosistas ou reivindicatórias que pontuam todo o
movimento" (p. 95).
Ora, também o século XIX, no Brasil, vai ser um tempo de
expressões de esperança e, contraditoriamente, de desilusão.
Em 1808, a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro
provocou mudanças e metamorfoses, não apenas na cidade do Rio de
Janeiro (onde a família real se instalara), mas, igualmente, em todo o
território brasileiro (apesar de estar sob a influência e dependência militar e
económica do reino britânico, o príncipe regente D. João VI conseguiu
garantir a unidade do reino luso e, ainda, da sua principal colónia, o Brasil).

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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

A posterior independência brasileira, em 1822, apesar de ter


ocorrido sem qualquer episódio de guerra civil, não traz, contudo, nenhuma
mudança importante. Ainda que o processo de acumulação de capital se
centre, nesse momento, internamente, graças à unificação do eixo político (a
independência) com o eixo económico (as divisas, lucros e impostos já não
são enviados para a metrópole), as contradições e desigualdades classistas
mantêm-se: os latifundiários continuam a dedicar-se à monocultura para
exportação, enquanto a burguesia urbana envia as matérias-primas para o
mercado europeu, importando produtos manufaturados que os centros
industriais (nomeadamente, ingleses) produziam em grandes quantidades.
A produção e a exploração de matérias-primas continuavam, assim, a
centrar-se no território brasileiro, enquanto a sua circulação seguia
dependente dos mercados externos europeus. As classes dominantes
continuavam, desta forma, numa perspectiva estético-ideológica, a olhar com
deslumbre para o exterior – o que, aliás, seria caricaturado por Mário de
Andrade, na sua obra modernista Macunaíma (publicada em 1928).
Com uma elite dedicada à mono-exportação, herança do Brasil-
colónia, persistiam relações sociais atrasadas, como o emprego de uma força
de trabalho maioritariamente escrava, e minoritariamente de trabalhadores
assalariados livres. Persistiam, assim, as relações impostas por um regime em
que latifúndio, escravismo e agroexportação haviam construído um país de
capitalismo dependente e periférico.
Por outro lado, a inexistência de centros académicos, durante o
século XIX, impulsionou, ainda mais, o olhar deslumbrado com que os
intelectuais brasileiros olhavam para o Velho Mundo. Refira-se o facto de
os maiores nomes da inteligência brasileira, como referiu Bosi (2015), serem
originários de famílias abastadas do campo que recebiam "instrução jurídica
nas cidades de São Paulo, Recife e Rio de Janeiro (Macedo, Alencar, Álvares
de Azevedo, Fagundes Varela, Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Pedro
Luís)" (p. 96), ou de comerciantes luso-brasileiros e de profissionais liberais

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do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

"que definiam, grosso modo, a alta classe média do país (Pereira da Silva,
Gonçalves Dias, Joaquim Norberto, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Sílvio
Romero)" (p. 96). Os padrões culturais europeus imperavam, desta forma,
nesta geração de intelectuais, que, assim, ia conformando "configurações
mentais paralelas às respostas que a inteligência europeia dava a seus
conflitos ideológicos" (p. 97).
É assim que nasce, entre aquela geração brasileira, o desejo de
encontrar um passado mítico que respondesse à necessidade de criar uma
identidade nacional própria, baseada numa suposta nobreza nacional, à
imagem do que Walter Scott (1771-1832) ou Chateaubriand (1768-1848)
haviam feito, respectivamente, na Inglaterra e em França, buscando heróis no
feudalismo medieval e contrastando-os com os valores burgueses seus
contemporâneos. É neste contexto que surge o romance regionalista de José
de Alencar, quem contrapõe a coragem e verdade do sertanejo à vilania dos
homens urbanos20.
A independência brasileira exigia, aliás, que se criasse um projeto de
busca e de documentação da nacionalidade brasileira, capaz de encontrar e
valorizar características e elementos autóctones, em detrimento de tudo o
que relevasse do passado colonial. O Romantismo brasileiro valoriza, deste
modo, tudo aquilo que remetesse para o regionalismo e brasileirismos, desde
os ambientes exóticos e tropicais, ao indianismo (este último tendo
constituído um motivo central da produção literária de então).
Considera-se que o marco inicial do Romantismo é dado em 1836,
com a publicação de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves Magalhães
(1811-1882).
A busca de uma identidade nacional e de uma cor local encontra-se,
aliás, perfeitamente exposta no poema lírico Canção do Exílio, escrito pelo
poeta e dramaturgo Gonçalves Dias (1823-1864), em 1843, no qual Dias

20
Cf. Capítulo I, secção 3, do presente livro: "A origem da literatura".

| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 81


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

expõe o ufanismo nacionalista do eu lírico, o subjetivismo e a identificação


com a Natureza, a nostalgia e a saudade. Segundo Bosi (2015), Gonçalves
Dias foi "o primeiro poeta autêntico a emergir em nosso Romantismo" (p.
109), sendo que na sua obra o mito do bom selvagem, constante desde os
árcades "acabou por fazer-se verdade artística" (p. 110). As características
expostas no poema Canção do Exílio seriam, contudo, posteriormente, já no
decurso do Modernismo, parodiadas por autores deste período, como
Oswald de Andrade, Murilo Mendes ou Carlos Drummond de Andrade.
Para além de Gonçalves Dias, há também que destacar o já referido
indianismo de José de Alencar, quem também tinha como perspectiva a
refundação de um passado mítico que inspirasse a grandiosidade nacional. O
abandono, contudo, do negro como fundador de uma pretensa nação
brasileira seria fortemente criticada, posteriormente, por alguns cientistas
sociais e historiadores, como Nelson Werneck Sodré (1911-1999). Sodré
(1976) refere, aliás, que o indianismo da primeira geração romântica havia-
se mantido no estrito quadro do litoral urbano, cujos autores apenas
pretenderiam "diferenciar o ambiente pelo que existe de exótico no quadro
físico – pela exuberância da natureza, pelo grandioso dos cenários, pela
pompa dos quadros naturais. Isto é o Brasil, pretendem dizer. E não aquilo
que se passa no ambiente urbano, que copia o exemplo exterior, que se
submete às influências distantes" (p. 323-324).
paulista-da-usp-por-nossos-fotografos
http://www.mp.usp.br/chamadas/museu-
Fonte:

Independência ou Morte,
1888 (Museu Paulista)
Pedro Américo,

82 II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-ideológica


do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Vejamos, como exemplo, o seguinte poema de Gonçalves Dias:

Poesia lírica

Gonçalves Dias - "Canção do Exílio" (1843)

Minha terra tem palmeiras,


Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,


Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar sozinho, à noite
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,


Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o sabiá.

| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 83


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

Comentário:

Neste poema composto por cinco estrofes (três quartetos e dois sextetos)
- um dos mais emblemáticos da fase inicial do Romantismo - o nacionalismo
ufanista expressa-se através de uma clara exaltação da Natureza. Escrito quando
Gonçalves Dias era estudante de Direito, na Universidade de Coimbra, em
Portugal, o eu lírico expressa a saudade do seu país, manifestando um forte
sentimento de exílio e o desejo de regresso ao Brasil. É de referir que dois dos
versos da Canção do Exílio são mencionados no Hino Nacional Brasileiro,
composto em 1822: “Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida, (no teu seio)
mais amores”.

O nacionalismo e o ufanismo, a exaltação à Natureza e à pátria, o


índio como herói nacional e o sentimentalismo são, pois, características
desta primeira geração romântica (geração romântica indianista) (Gonçalves
de Magalhães, Gonçalves Dias, José de Alencar), que, gradualmente, foi
pendendo para o conservadorismo.
Entretanto, na segunda metade do século XIX, o imperialismo
britânico consolida-se e a necessidade de mercados para os seus produtos
manufaturados é, como já afirmámos, crescente. A pressão internacional
britânica pela abertura de mercados nas antigas colónias latino-americanas
acaba, assim, por criar as condições para o fim da escravatura. No mesmo
momento, nos EUA, a Guerra da Secessão (1861-1865) - na qual o Norte
industrializado subjuga o sul (esclavagista e agrário) e promove o
aceleramento do ritmo de acumulação de capitais - anuncia, paulatinamente,
o surgimento de um novo Império no plano mundial. Enquanto isso, na
Europa, a Alemanha unifica-se sob o ímpeto do ministro
do Rei da Prússia, Bismarck21, e a Itália segue o mesmo caminho, graças ao
esforço de Garibaldi22.

Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen (1815-1898) - nobre, diplomata e


21

político prussiano - foi o estadista mais importante da Alemanha do século XIX.


84 II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-ideológica
do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

O governo imperial brasileiro, por seu lado, encontra-se cada vez


mais enfraquecido, fruto das crises que o modelo agroexportador foi
sofrendo.
A burguesia comercial e sectores latifundistas consideraram, então,
que o modelo estatal centralizado não correspondia às necessidades das
oligarquias locais (mesmo se a aprovação da Lei de Terras, que referimos
anteriormente, não tenha alterado em nada o sistema fundiário brasileiro). É
neste contexto que os senhores do café advogam uma República federativa,
na qual os poderes seriam distribuídos pelas oligarquias locais, nas diversas
regiões do país.
Entretanto, a campanha abolicionista não contará com o apoio de
todos os oligarcas. Os senhores de engenho açucareiro do Nordeste, em
clara e acelerada decadência, tentam resistir ao fim do que consideravam ser
parte do seu património (os escravos), isto apesar de os capitais ingleses já
terem inundado a região do Nordeste, mormente através da implantação de
várias indústrias têxteis.
O poeta Castro Alves (1847-1871), os políticos e intelectuais
Tobias Barreto (1839-1889) e Joaquim Nabuco (1849-1910) serão os
porta-vozes da abolição, cuja inspiração se encontra no exterior, em figuras
emblemáticas como o escritor francês Vítor Hugo (1802-1885). Estes
poetas conformarão a terceira geração romântica ou geração romântica
abolicionista.
Entre a geração romântica indianista e a geração romântica
abolicionista, considera-se, ademais, a existência de uma geração ultra-
romântica ou condoreira, cuja produção intelectual é feita por autores que
levavam uma existência mundana e boémia. Os prazeres da bebida e das
drogas mesclam-se na vida, como na poesia, pelo que nesta se destacam as

22
Giuseppe Garibaldi (1807-1882) lutou, na Lombardia, contra o exército austríaco e
iniciou a luta pela unificação italiana.

| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 85


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

temáticas que nos reenviam para uma fuga da realidade e para o sonho, para
uma introspecção e para a idealização da mulher (Álvares de Azevedo
(1831-1852), Casimiro de Abreu (1839-1860), Junqueiro Freire (1832-
1855) e Fagundes Varela (1841-1875)). Esta segunda geração romântica
impõe-se no panorama literário brasileiro através da exposição, ao extremo,
do subjetivismo, numa clara importação do sentir e linguagem de Lord
Byron (1788-1824) ou de Alfred de Musset (1810-1857). Articula-se,
então, uma nova linguagem e estilos literários que tendem para o sentimento
de evasão, o sonho, os aspectos mórbidos da existência, a complexa
convivência entre o eros e o thanatos e o centralismo no eu emissor.
Em suma, enquanto na década de 1840 se impõe uma literatura
nacionalista, nos anos seguintes vai predominar uma literatura que cai no
subjetivismo extremo, na esteira das obras dos ultra-românticos europeus.
Predominam temáticas contraditórias, como as que se referem ao amor e à
morte, à dúvida e à ironia, ao entusiasmo e ao tédio.
Magalhães e Gonçalves Dias (primeira geração romântica)
buscavam, para além de si, um passado mítico brasileiro que justificasse a
sua mitologia poética, ao passo que Álvares de Azevedo, Junqueira Freire ou
Fagundes Varela (segunda geração romântica) vão dissolver as hierarquias
sociais e culturais (o Estado brasileiro, a instituição religiosa, as tradições e
costumes) em meros estados de alma subjetivos. O sujeito centra-se em si
próprio e nas suas próprias emoções, dando voz ao devaneio, ao erotismo, à
melancolia, ao tédio, à depressão, à morte; estes são, pois, os temas que uma
geração romântica e burguesa, estagnada, adota como visão literária.
Aquele complexo psicológico, articulado numa linguagem e estilo
novos, não se cingiu à época que o viu nascer, tendo, contudo, sobrevivido
até à atualidade, ainda que "esgarçado e anêmico" (Bosi, 2015, p. 116) no
mundo da "subcultura e das letras provincianas" (Bosi, 2015, p. 116).
Vejamos, de seguida, um exemplo de um poema da segunda geração
romântica:

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Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Segunda geração romântica

(geração ultra-romântica ou condoreira)

Casimiro de Abreu - "A uma plateia" (1858)

O cedro foi planta um dia,


Viço e força o arbusto cria,
Da vergôntea nasce o galho;
E a flor p'ra ter mais vida,
Para ser - rosa querida -
Carece as gotas de orvalho.

Com o talento é o mesmo


Quando tímido ele adeja
- Qual ave que se espaneja –
Como a flor, também precisa
Em vez do sopro da brisa
O sopro da simpatia
Que lhe adoce os amargores,
Para em horas de cansaço
Na estrada que vai trilhando
Encontrar de quando em quando
Por entre os espinhos - flores.

E vós que acabais de ouvi-lo


A suspirar nesse trilo
No seu gorjeio primeiro;
Vós, que viste o seu começo.
Dai-lhe essas palmas de apreço
Que é artista e... brasileiro!

| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 87


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

Comentário:

Casimiro José Marques de Abreu (1839-1860) foi um poeta brasileiro


da segunda geração romântica (geração ultra-romântica). Morou em Portugal
durante quatro anos, tendo-se tornado num dos poetas mais populares do
Romantismo brasileiro. No poema "A uma plateia", Casimiro de Abreu
apresenta-nos o desabrochar de um artista, comparando-o ao processo de
nascimento e de maturação de uma planta. A forte musicalidade, simplicidade e
aparente espontaneidade formal dos seus poemas, assim como a recorrência a
temáticas universais (a saudade da terra natal, das paisagens da infância e da
família), fazem com que um público mais amplo e menos erudito se tenha
aproximado da sua poesia.

Em suma, três gerações românticas perduraram, durante quatro


décadas, no Brasil oitocentista, sendo que as suas atitudes estéticas e
ideológicas se centraram na questão da autonomia e cores locais, por vezes
manifestando um nacionalismo exacerbado: "De Magalhães e Varnhagen a
Castro Alves e Sousândrade, dos indianistas e sertanistas aos condoreiros,
transmite-se o mito da terra-mãe, orgulhosa do passado e dos filhos,
esperançosa do futuro" (Bosi, 2015, p. 163). Estabeleceram-se constantes
antinomias e oposições - corte/província, poder central/poder local,
campo/cidade, senhor rural/estratos médios urbanos, trabalho
escravo/trabalho livre –, as quais revelam fraturas sociais cuja exposição
seria explorada literariamente pelas gerações seguintes.
De seguida, apresentamos, sinteticamente, as principais
características do Romantismo:

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Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Principais características do Romantismo:

◊ subjetivismo exagerado;
◊ misticismo e sentimentalismo (opondo-se ao racionalismo
neoclassicista precedente);
◊ prevalência de sentimentos amorosos e emotivos face à Razão;
◊ sublimação da figura feminina amada;
◊ fuga ao mundo objetivo exterior e centralidade no eu emissor;
◊ preferência por temas noturnos e que relevam para a solidão;
◊ costumbrismo (fixação de costumes e recriação de lendas e
narrativas nacionais);
◊ busca de um passado indígena como símbolo distintivo da
nacionalidade (no caso brasileiro);
◊ liberdade formal (rompendo com a tradição clássica)
◊ afirmação de um novo género literário: o romance.

spintorese-obras-do-romantismo.html
http://romantismonobrasil2emb.blogspot.com/2015/07/artista
Fonte:

Iracema, José Maria de Medeiros, 1881 (Romantismo)


| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 89
ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

3.2. A ESTÉTICA DO FIM DO IMPÉRIO E DO INÍCIO DA


REPÚBLICA VELHA

O período que abarca o fim do Romantismo e que se alonga até ao


período que se convencionou designar de pré-modernismo mescla algumas
das principais escolas europeias.
Entre 1870 e 1890, a inteligência nacional vai assumir as ideias
liberais, abolicionistas e republicanas, dando voz aos anseios e ideário de
classes letradas urbanas, mormente de estratos médios e superiores,
influenciadas pelas estéticas que provinham da Europa, como a filosofia
positivista e o evolucionismo. Porém, com a extinção da nobreza feudal
como classe, e com a gradual adaptação do clero à laicização que se seguira à
Revolução Francesa, os suportes do Romantismo passadista,
paulatinamente, desapareciam.
É neste contexto de desaparecimento das causas socioeconómicas
que haviam justificado o Romantismo que surge, em contraponto àquele
passadismo romântico, uma nova oposição ideológica: por um lado, o
conservadorismo burguês (que havia sido radical face à tradição da nobreza
de sangue) e, por outro, matizes liberais e socialistas.
Tendo em consideração que a década de 1860 já havia marcado
uma ruptura com o ideário e a mentalidade esclavagista (e,
consequentemente, havia entrado em conflito com as instituições que os
sustinham), as duas décadas seguintes buscariam na democraticidade
burguesa dos novos modelos e modo de organização socioeconómicos
europeus a inspiração para a realidade brasileira.
É assim que o estudo dos processos sociais brasileiros vai
desencadear uma literatura realista.
Esta nova literatura distingue-se, no imediato, pela distância quer do
misticismo romântico, quer da idealização de mitos e exageros nacionalistas,
90 II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-ideológica
do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

ou seja, impõe-se como crítica ao ideário idealista-emotivo que havia


prevalecido nas quatro décadas de Romantismo. Em simultâneo, busca uma
objetividade que respondesse aos avanços científicos que desembocariam no
darwinismo social e na filosofia de Auguste Comte.
Essa objetividade, na Europa, tem os seus porta-vozes, no romance
de ficção, em Gustave Flaubert (1821-1880), Guy de Maupassant (1850-
1893), Émile Zola (1840-1902) ou Anatole France (1844-1924),
assumindo-se, em Portugal, pela voz de jovens autores - como Eça de
Queirós (1845-1900), Ramalho Ortigão (1836-1915) ou Antero de
Quental (1842-1891) - que, com a questão coimbrã23, lançariam uma nova
forma de escrever e ler a realidade portuguesa.
Se o Realismo, na Literatura, se manifesta na prosa, o Parnasianismo
vai, por seu lado, caracterizar a poesia de então.
O romance social, psicológico e de tese constitui a principal forma
de expressão da ficção realista, pelo que a prosa se assume, já não como mera
distração das camadas letradas da sociedade, mas como um vetor de crítica
às instituições burguesas e à própria Igreja católica. A linguagem clarifica-se
e torna-se menos redundante, buscando, no caso brasileiro, temas como a
sexualidade, a escravidão e o preconceito racial.
De seguida, apresentamos quer as principais características do
Realismo, quer as principais características do Romantismo:

23
Polémica literária que marcaria o nascimento do Realismo português.
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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

Realismo:

◊ oposição ao Romantismo;
◊ racionalismo;
◊ objetividade;
◊ universalismo;
◊ crítica social (nomeadamente à burguesia e à Igreja);
◊ formalismo;
◊ romance de tese;
◊ personagens tipificadas (preferência pelas camadas altas da
sociedade).

naturalismo/
Fonte: https://pinturasemtela.com.br/almeida-junior-pintor-brasileiro-do-realismo-e-

Caipira fumando fumo, Almeida Júnior, 1893


(Realismo)

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do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Realismo: Romantismo:

◊ distanciamento do narrador; ‡ narrador na primeira pessoa;


◊ crítica e objetividade; ‡ sentimentalismo exacerbado;
◊ tentativa de representação ‡ idealização e perfeição das
da sociedade; imagens literárias;
◊ aversão ao amor platónico. ‡ idealização do amor platónico.

A radicalização do Realismo vai, por seu lado, dar origem ao


Naturalismo, quando personagens e enredos se submetem ao destino
impiedoso da Natureza e das suas leis, que o Parnasianismo configurará
num estilo poético de perfeição técnica. A literatura naturalista crê no
determinismo da vida (seja qual for a sua manifestação: raça, meio ou
temperamento), enquanto, a um nível meramente estético, busca a criação de
um objeto estético novo, resistente às pressões e determinismos sociais que
se encontram na exegese.
O Naturalismo, baseando-se, tal como o Realismo, na observação
da realidade e na experiência, considera, em suma, que um ser humano é
fruto do ambiente material que o cerca e da hereditariedade. Esta escola
estético-literária trouxe, deste modo, para a literatura, o pensamento
evolutivo darwinista, o qual se encontra plasmado naquela que é considerada
a primeira obra naturalista brasileira – O mulato (1881), de Aluísio de
Azevedo (1857-1913). Foi, de resto, este mesmo autor que criou uma das
obras-marco da literatura brasileira: O cortiço (1890).
Bosi (2015) considera que, no Brasil, a geração de prosadores que se
opôs ao Romantismo abraçou, de uma só vez, o Realismo, o Naturalismo e
o Parnasianismo. Bosi refere-se a autores como Aluísio de Azevedo (1857-
1913), Raul Pompéia (1863-1895), Adolfo Caminha(1867-1897) ou
Machado de Assis (1839-1908), ainda que atribua a este último um génio

| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 93


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

particular. Neste sentido, considera que os autores realistas, ao incorporarem


elementos do Naturalismo na sua prosa, estariam, apenas, a revelar a
incomodidade da sua situação perante as mudanças da sociedade pós-
Revolução Industrial, quando o escritor, perante a sua impotência, se
submete ao determinismo fatal da realidade que o cerca.
Com o Realismo e o Naturalismo, desagregam-se, definitivamente,
as esperanças que haviam conduzido a burguesia à situação de dominância
no panorama socioeconómico europeu e latino-americano, pondo-se a nu a
mediocridade da sua vida íntima e a incapacidade de praticar o que
teoricamente havia defendido para atingir a posição que lhe dera um lugar
de relevo, nas sociedades pós-Revolução Industrial. As causas da sua
mediocridade, oportunismo, luxo e ostentação buscam-se, então, em causas
naturais (raça, clima) ou culturais (educação). O Homem estaria, em
conclusão, preso à fatalidade das leis naturais e do seu destino.
Do Romantismo ao Realismo houve, em suma, uma passagem do
"vago ao típico, do idealizante ao fatual" (Bosi, 2015, p. 183), pelo que os
narradores realistas-naturalistas brasileiros procuraram ser fiéis à
objetividade dos ambientes ou à estrutura moral dos personagens, ainda que,
por vezes, não tenham conseguido distanciar-se de rasgos românticos que,
por vezes, os fizeram descair para um certo dramatismo.

Naturalismo:
◊ visão determinista da vida;
◊ preferência pelas camadas mais pobres da sociedade;
◊ deturpações físicas e psíquicas;
◊ composição de tipos estáticos, submetidos às imposições do seu
meio, em detrimento da complexidade e do dinamismo;
◊ darwinismo social;
◊ adesão aos princípios do positivismo comtiano;
◊ recurso a fortes imagens sensoriais.

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A voz que melhor representa a ficção realista (ainda que com


matizes naturalistas e parnasianas) é o escritor Joaquim Maria Machado de
Assis (1839-1908), cuja objetividade (que defendera ao afirmar que aceitava
a realidade tal e qual esta se lhe apresentava) transparece nas suas narrativas
através de um veio humorístico e cínico, nem sempre respeitador da
cronologia (a qual, para clássicos e românticos, era linear).
A sua obra Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) é
considerado o romance introdutor do Realismo brasileiro. Vejamos, de
seguida, um excerto desta obra:

Machado de Assis - Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)


AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER
DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS

Ao leitor

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é
que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará, é se este outro
livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez...
Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se
adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas
rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta
da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente
grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não
achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos
frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir
a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as
diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário
que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria
curioso, mas nimiamente extenso, aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si
mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um
piparote, e adeus.

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ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

CAPÍTULO 1

Óbito do Autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto
é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja
começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a
primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem
a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.
Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical
entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de
1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos,
era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze
amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia —
peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um
daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira
de minha cova: — "Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a
natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem
honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que
cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as
mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado."
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi
assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o
undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas
pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir
umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim,
— a filha, um lírio-do-vale, — e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a
terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu
mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se
deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um
solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os
elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era
aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste
senhora mal podia crer na minha extinção.

— Morto! morto! dizia consigo.

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É a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o


vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação
dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África
juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros
anos. Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as
falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som
estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-
lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto
em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga
marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-
se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que
uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e
todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. In: Obra Completa. Vol. I. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1997, pp. 513-516.

Comentário:

Memórias póstumas de Brás Cubas é uma narração cujo narrador é um autor


defunto ou defunto autor que se reveste de um cinismo e sarcasmo desconhecido do
Romantismo. O narrador já se encontra morto quando narra as suas peripécias,
mostrando-se, dessa forma, livre dos convencionalismos e barreiras impostos pela
sociedade sua contemporânea, revelando as contradições estruturais do Brasil do fim
do Império. As elites – cínicas, oportunistas, em que a práxis contrariava a teoria de
um discurso humanista e progressista – traçam-nos o retrato de uma classe dominante
finissecular inescrupulosa, preocupada, apenas, pelo contínuo processo de
acumulação de riqueza.

| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 97


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

Seria Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) quem faria a


ponte entre o realismo-naturalismo e os caminhos modernistas, os quais,
durante o período que precedeu esta nova manifestação estético-ideológica
do século XX, se foram desenhando.
O Parnasianismo, por seu lado, ainda que contemporâneo do
Realismo e do Naturalismo, foi um movimento literário, essencialmente
poético, cujo nascimento remonta à França da segunda metade do século
XVIII. Advogava a arte pela arte, a poesia descritiva e o tecnicismo e
formalismo clássicos, buscando temas à mitologia greco-romana. Dos poetas
brasileiros parnasianos destacam-se os nomes, já referidos, de Olavo Bilac
(1865-1918), Alberto de Oliveira (1857-1937), Raimundo Correia (1859-
1911) e Vicente de Carvalho (1866-1924).
Também contemporâneo do Realismo e do Naturalismo foi, ainda,
outro movimento literário: o Simbolismo.
No Brasil, a publicação, em 1883, das obras Missal, livro de prosa, e
Broquéis, livro de poesia, de João da Cruz e Sousa (1861-1898) marca o
nascimento deste movimento literário que considera o uso da palavra de um
ponto de vista sugestivo ou evocativo, ou seja, como um símbolo que iria
para além do seu mero conteúdo. Os mistérios da vida e da morte, a religião
e Deus, o misticismo e o sobrenatural, a solidão e a ilusão, são os temas
preferidos dos simbolistas, cujos recursos prediletos se encontram nas
onomatopeias, nos vocábulos sonoros, no sentido conotativo e polissémico
das palavras, e na ambiguidade dos sentidos.
Buscando compreender o imo do ser humano, os autores simbolistas
exaltam a realidade subjetiva24. O Simbolismo opunha-se, deste modo, ao
Realismo e ao Naturalismo, valorizando o eu, em detrimento dos fatores e
movimentos materiais exteriores ao Homem. Afasta-se do positivismo e do

24
Tendo em conta a sua origem, o Simbolismo manifestou-se, sobretudo, na poesia, já que a
prosa se prendia mais aos padrões da verosimilhança e do real. Não obstante, existe,
igualmente, uma prosa simbolista.
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darwinismo social, sendo a sua principal inspiração As flores do mal, do


francês Charles Baudelaire25 (1821-1967), obra publicada em 1857.
O símbolo é, então, considerado uma "categoria fundamental da
fala humana e originariamente preso a contextos religiosos", razão pela qual
as correntes simbolistas assumem "a função-chave de vincular as partes ao
Todo Universal que, por sua vez, confere a cada uma o seu verdadeiro
sentido" (Bosi, 2015, p. 279).
O autor que melhor exemplifica o Simbolismo brasileiro é Cruz e
Sousa (1861-1898), filho de escravos cujos estudos haviam sido
patrocinados por uma família da elite brasileira. Apesar de as suas primeiras
obras terem como objeto central a dor e o sofrimento de um homem negro,
de origem humilde, a sua obra evolui num sentido universalista, abarcando
temas que se prendem com o sofrimento e a angústia do Homem.
João Cruz e Sousa - "Na luz" (1905)
De soluço em soluço a alma gravita,
De soluço em soluço a alma estremece,
Anseia, sonha, se recorda, esquece
E no centro da Luz dorme contrita.

Dorme na paz sacramental, bendita,


Onde tudo mais puro resplandece,
Onde a Imortalidade refloresce
Em tudo, e tudo em cânticos palpita.

Sereia celestial entre as sereias,


Ela só quer despedaçar cadeias,
De soluço em soluço, a alma nervosa.

Ela só quer despedaçar algemas


E respirar nas amplidões supremas,
Respirar, respirar na Luz radiosa.

25
Em França, destacam-se, ainda, os escritores Paul Verlaine (1844-1896), Arthur
Rimbaud (1854-1891) e Stéphane Mallarmé (1842-1898).
| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 99
ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Capítulo II

Comentário:

João da Cruz e Sousa tinha a alcunha de Dante Negro ou Cisne Negro, tendo
sido um dos precursores do simbolismo, no Brasil. Fortemente influenciado pelo
simbolismo europeu, apresenta inovações importantes na poesia brasileira, seja no
campo temático, seja no campo formal. No poema citado, destacam-se a linguagem
litúrgica e os episódios rituais, utilizados como recursos literários de conotação com o
transcendente, assim como fortes influências exteriores, quer do positivismo
filosófico (Comte, Taine, Littré), quer do evolucionismo e do monismo (Herbert
Spencer, Charles Darwin, Ernst Haeckel, Fritz Müller). O objecto da arte, para o
autor, visaria revelar o que está oculto e transcendente nas coisas (este é, aliás, o
conceito simbolista da arte, o qual se encontrará, mais tarde, na filosofia da arte de
uma das maiores referências do pensamento moderno no Ocidente: Martin
Heidegger).

Vejamos, de seguida, as principais características simbolistas:

Simbolismo:

◊ negação dos valores realistas e naturalistas;


◊ misticismo, religiosidade e sublimação;
◊ não-racionalidade;
◊ subjetivismo, individualismo e imaginação;
◊ espiritualidade e transcendentalidade;
◊ subconsciente e inconsciente;
◊ linguagem musical, aproximando-se da poesia e da música;
◊ figuras de linguagem: sinestesia, aliteração, assonância.

100 II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético-ideológica


do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra|
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

A década de 1870 trouxe, em conclusão, um antirromantismo que,


na ficção, se afirmou, primeiro, como realista, depois como naturalista, na
poesia, como parnasiana, na filosofia, como positivista e materialista.
Afirma-se, então, uma nova concepção crítica que se prolongaria pelo século
XX.
Foi neste ambiente crítico, e esteticamente inovador, que cresceriam
futuros autores das letras brasileiras, como Euclides da Cunha ou Manuel
Bonfim, os quais iriam transcender aquela cultura crítica e conformariam um
período esteticamente eclético que seria o predecessor imediato do
Modernismo.

A Providência Guia Cabral [Pedro Álvares Cabral guiado pela


Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3841/simbolismo

Providência] , Eliseu Visconti, 1899

| II. Do Brasil-Colónia ao Brasil-Império: síntese socioeconómica e estético- 101


ideológica do Brasil, através da posse ou desapossamento da Terra
Carta Universal de Diego Ribero (1529)

"Carta Universal do cosmógrafo português Diego Ribero (Diogo


Ribeiro), de 1529. Título original: Carta universal en que se
contiene todo lo que del mundo se ha descubierto fasta agora
[material cartográfico] la qual se divide en dos partes conforme a la
capitulacion que hizieron los catholicos Reyes de españa [et] el Rey
Don Juan de Portugal en la villa de Tordesillas: Año: de 1494 /
hizola Diego Ribero cosmographo de su magestad, ano de 1529,
e[n] Sevilla".

(texto (adaptado): http://www.mapas-historicos.com/diego-ribero.htm.


Imagem:
http://bibliotecadigital.rah.es/dgbrah/es/consulta/registro.cmd?id=61150)
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

III. O SÉCULO XX: O NASCIMENTO DO


MODERNISMO

1. O BRASIL-REPÚBLICA PÓS-1930:
A INDUSTRIALIZAÇÃO DO CAMPO

A República, no Brasil, é instaurada em 1889, e dividir-se-á em


cinco períodos: a República Velha (1889-1930), a Era Vargas (ou Segunda
e Terceira Repúblicas1) (1930-1945), a Quarta República2 (1945-1964), a
ditadura militar (1964-1985) e a Nova República (1985-atualidade).
A Primeira República estende-se, assim, de 1889 a 1930, e
corresponde a um período da História do Brasil de domínio da oligarquia
pecuária (Minas Gerais) e, sobretudo, da oligarquia ligada à produção de
café (São Paulo). Este período é, por isso, vulgarmente conhecido como
República café com leite.
O domínio das oligarquias do café e da pecuária vai, contudo,
terminar no final da década de 1920. Com efeito, a crise económica da Bolsa
de Valores de Nova York, em 1929, traz com ela o repatriamento dos
capitais norte-americanos no exterior, o que faz com que as importações
estadunidenses, necessariamente, diminuam. Esta situação atingiu quer os
países europeus, quer os países cuja economia assentava na exportação de
matérias-primas e de produtos agrícolas. O Brasil foi, por isso, fortemente
afetado, uma vez que o café representava mais de 70% das exportações
brasileiras, constituindo, os Estados Unidos, o principal país destinatário

1
A Era Vargas divide-se em dois períodos: a Segunda República estende-se de 1930 a 1937,
enquanto a Terceira República (ditadura do Estado Novo) se estende de 1937 a 1945.
2
Os Presidentes da República deste período foram os seguintes: Eurico Gaspar Dutra
(1946-1951); Getúlio Vargas (1951-1954); Café Filho (1954-1955); Carlos Luz (1955);
Nereu Ramos (1955-56); Juscelino Kubitschek (1956-1961); Jânio Quadros (1961);
Ranieri Mazzilli (1961); João Goulart (1961-1964).

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 103


Capítulo III

dessas exportações3.
É assim que, em 1930, sob a liderança política de Getúlio Vargas, a
indústria vai subordinar a agricultura, impondo um modelo económico que
passa a estar assente numa maior industrialização. A cidade vai, então,
hegemonizar o espaço rural.
Assim sendo, se, até 1930, o modelo agroexportador favorecia os
grandes proprietários exportadores (enquanto a grande maioria dos
trabalhadores exercia a sua atividade económica na agricultura), a partir
daquela data, a indústria passa a constituir a atividade económica por
excelência.
A industrialização que se inicia em 1930 marca, igualmente, um
novo período da República brasileira – a Era Vargas -, o qual, dividindo-se
em dois períodos distintos (a Segunda República - 1930-1937 - e a
Terceira República - 1937-1945), terminará em 1945. Ambos os períodos
são marcados pela Presidência de Getúlio Vargas, quem, a partir de 1937, e
até 1945, impõe um regime autoritário: o Estado Novo.
O desenvolvimento industrial, iniciado na década de 1930, teve
como consequência o aumento da população urbana, colocando a
necessidade de novas demandas: alimentos para uma população urbana em
crescimento e matérias-primas para a indústria nascente. Surge, assim, a
necessidade de modernizar a agricultura e de colmatar a necessidade de mais
matérias-primas e de mais alimentos.
Devido à forte necessidade de inserção da indústria no novo quadro
socioeconómico brasileiro, a oligarquia do café com leite deixa de ser
dominante.

3
Os preços do café caiem, então, vertiginosamente. Sendo o café o maior gerador de divisas
para o país, até então, Vargas ainda tenta financiar estoques através de empréstimos
contraídos no exterior, trocando parte do café excedente por trigo norte-americano; teve,
porém, de mandar queimar uma grande quantidade de café de forma a garantir o seu preço
no mercado mundial.

104 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Enquanto a contração do comércio exterior que se seguiu ao crack


de 1929 (e que teve um forte impacto nas exportações de café, como já
referimos) foi parcialmente controlada graças à compra dos estoques
cafeeiros pelo Governo, as dificuldades de importação tiveram como
consequência o estímulo de investimentos industriais, os quais se tornaram,
então, no sustentáculo da economia, fazendo com que o produto total caísse
menos de 10% nos anos iniciais da depressão.
Foram, assim, as políticas económicas internas favoráveis que
reforçaram os fatores internos de desenvolvimento, pelo que a indústria
assume, gradualmente, o papel de líder do novo processo económico (o
mercado interno torna-se, portanto, mais atraente do que o mercado
externo).
Segundo Celso Furtado (1979), este processo de industrialização
implicou três mudanças fundamentais no modelo socioeconómico brasileiro:
por um lado, a estruturação de uma economia semi-industrial, por outro,
uma migração do espaço rural para a área urbana, e, finalmente, a criação de
um Estado central técnico e mais burocratizado, necessário para romper com
o tradicional regime oligárquico. Apesar disso, considera o mesmo autor, a
participação da antiga oligarquia nas instituições estatais continuava, pelo
seu peso económico, a ser fundamental neste processo transicional (ainda
que deixasse de ser dominante). Relembre-se que quando a República é
instaurada no Brasil, em 1889, a estrutura socioeconómica brasileira
mantivera-se a mesma que havia prevalecido durante o período do Brasil-
colónia. As relações socioeconómicas que haviam dominado durante a era
açucareira, e durante o domínio das oligarquias do período café com leite,
permaneceram, assim, as mesmas, aquando da transição do Brasil-Império
para o Brasil-República, pelo que dificilmente poderiam desaparecer no
decurso do novo período de industrialização.
Ora, aquele poder compartilhado por dois sectores sociais – a
oligarquia rural e a nova burguesia industrial em formação - pode ser
compreendido, uma vez mais, graças ao estudo e leitura da questão agrária.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 105


Capítulo III

Com efeito, apesar de o poder político passar a ser detido pela nova
elite, detentora da indústria, a propriedade da terra não muda de mãos, pelo
que a tradicional oligarquia rural continua proprietária das suas imensas e
extensíssimas propriedades agrícolas. Não deixa, tampouco, de produzir para
exportação, ainda que se verifique uma diminuição dos produtos exportados.
Assistimos, deste modo, a uma necessária conciliação de interesses que se
materializará num pato classista, entre, por um lado, a burguesia industrial e,
por outro, a oligarquia rural, ambas trabalhando para a implementação de
um modelo industrial dependente, só possível, aliás, através da manutenção
das exportações agrícolas (Stédile, 2011). Aprofunda-se, consequentemente,
uma forte dependência, desta vez ligada ao desenvolvimento de um novo
sector industrial, que prevalecerá até à atualidade: a agroindústria.
A crise de 1929, a subsequente crise cafeeira, e a necessidade de o
Brasil se concentrar, sobretudo, numa produção virada para o seu interior
(em detrimento de culturas para exportação), vão impulsionar um processo
de diversificação de culturas que estimulam uma produção agrícola menos
dependente do mercado externo.
Neste contexto, uma burguesia agrária de grandes proprietários vai
optar, na década de 1930, pela modernização das explorações agrícolas, de
forma a se dedicar ao mercado interno brasileiro. Este processo vai implicar
uma aceleração das forças produtivas das grandes propriedades rurais, assim
como impulsionar um novo movimento de concentração de terras. Os
camponeses vêm-se, então, obrigados a integrar-se na indústria, sofrendo,
como assinalou Ianni (1971; 1984), um processo de proletarização, em que,
gradualmente, o camponês se insere nas regras do mercado, transformando-
se em assalariado industrial (agrícola), produzindo ou alimentos para a
cidade, ou matérias-primas agrícolas para o sector industrial.
Porém, se o começo do desenvolvimento industrial é favorecido pela
crise das economias industrializadas nos anos 30, assim como pela Segunda
Guerra Mundial, este contexto altera-se a partir de 1945, num momento em
que o fim da guerra vai impulsionar a competição internacional.

106 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Esta alteração do contexto internacional implicará uma alteração do


contexto interno. É assim que, em 1945, o Estado Novo, e, consigo, a Era
Vargas, tem fim.
A competição internacional que se segue à Segunda Guerra Mundial
vai obrigar o Brasil a encetar um novo e acelerado processo de modernização
da agricultura, o qual se intensifica, sobretudo, a partir da década de 1950.
É nesse sentido que, em 1953, são lançadas medidas extremamente
favoráveis ao capital estrangeiro. Esta política é reforçada pelo então
Presidente da República, Juscelino Kubitschek 4 , quem estabelece taxas de
câmbio preferenciais para remessas de lucros, uma legislação favorável para
registo de capital e o direito de importação de bens de capital, sem cobertura
cambial pelas autoridades, reduções ou isenções tarifárias, assim como
vantagens de crédito e de tributação.
Juscelino Kubitschek vai, deste modo, criar condições de
investimento extremamente atraentes para investidores externos, as quais se
concentrarão em grandes empreendimentos industriais, especialmente na
automobilística, nos estaleiros, na mecânica pesada e nas siderúrgicas.
O plano de desenvolvimento industrial de Juscelino Kubitschek
favoreceu, portanto, investimentos privados, definindo um novo modelo de
desenvolvimento económico baseado numa forte participação de capital
externo, com as suas consequentes, e naturais, pressões. Segundo Motta
(2004), esta subserviência às pressões e capitais externos revelava a
incapacidade da burguesia brasileira de assumir uma posição hegemónica no
processo de industrialização.
Configura-se, neste contexto, um modelo desenvolvimentista.
Porém, como os investimentos se realizaram de "forma especulativa
e não atingiram igualmente todos os setores produtivos, o maior crescimento

4
O seu mandato presidencial teve início a 31 de janeiro de 1956 e terminou a 31 de janeiro
de 1961.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 107


Capítulo III

promovido pelo novo modelo de desenvolvimento nacional foi o da


centralização de capitais por alguns setores multinacionais (construção,
especulação imobiliária), e a estagnação dos demais" (Motta, 2004, p.
28). Optando por um modelo desenvolvimentista, nem sempre em
coadunação com as exigências de um extra-soberano Fundo Monetário
Internacional (FMI), Juscelino, em 1959, rompe com aquele, num gesto que
foi então considerado de defesa da soberania nacional brasileira.
João Goulart (conhecido como Jango) 5 vai ampliar e aprofundar as
medidas desenvolvimentistas de Juscelino, as quais, contudo, não travam as
já fortes contradições sociais brasileiras. Apesar disso, várias são as políticas
postas em prática, quer favoráveis aos trabalhadores, quer sustentadoras da
soberania e independência nacionais. As suas reformas mobilizam, então,
parte de sectores progressistas e reformistas, assim como as estruturas
sindicais brasileiras.
Porém, entre a elite agrária crescia o temor de uma reforma agrária
que alterasse o estatuto da terra, enquanto entre elementos ligados ao
comércio e à financeirização da economia crescia a oposição e o medo ao
modelo comunista, sobretudo, no contexto externo, depois da vitória da
Revolução cubana, em 1959, e, no contexto interno, à aproximação de Jango
a sectores progressistas e trabalhistas.
É neste contexto que se dá o golpe militar de 1964.
A subordinação da agricultura à indústria, contudo, não se altera,
perdurando até aos anos 80 e acompanhando o período de ditadura militar,
num momento em que a exploração no campo, como na cidade, se
agudizará, materializando-se em conflitos e lutas que desembocarão na
formação de movimentos e agrupações contra o regime militar que se
impusera em 1964 e que perduraria até 1985.

5
O seu mandato presidencial teve início a 1 de fevereiro de 1991 e terminou com o golpe
de Estado militar, em 31 de março de 1964.

108 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1.1. PRÉ-MODERNISMO: PERIODIZAÇÃO ESTÉTICA E


HISTÓRICO-LITERÁRIA

O Pré-Modernismo (início do século XX) não constitui uma escola


literária com um programa e estética comuns, antes agrupando todos aqueles
autores e obras que, mesclando características, ideias, formas e conteúdos de
escolas europeias (como o Realismo, o Realismo-Naturalismo ou o
Simbolismo), anunciam o Modernismo dos anos 20 e 30.
Os romancistas realistas-naturalistas, como Machado de Assis ou
Aluísio Azevedo, haviam fixado as suas obras em ambientes urbanos,
ignorando quer cenários periféricos, quer os dilemas das áreas rurais do
Brasil. É precisamente esta ausência literária que vai ser colmatada por
autores como Euclides da Cunha, Monteiro Lobato ou Lima Barreto.
Enquanto, até ao século XIX, a literatura brasileira, na prosa de ficção,
praticamente se limita ao pequeno tecido urbano das camadas burguesas
médias, Lima Barreto, por exemplo, transita por aqueles espaços periféricos,
até então ausentes do espaço literário brasileiro, denunciando a fraca
produção do latifúndio ou desconstruindo preconceitos tipicamente
urbanos.
O termo Pré-Modernismo tem, de resto, um fundador: Tristão de
Ataíde, pseudónimo de Alceu Amoroso Lima, que o empregou pela primeira
vez em 1932. No seu Quadro sintético da literatura brasileira (1958), o
criador associa, igualmente, ao termo, a denominação de Período Eclético,
situando-o entre 1900 e 1920: ―Eclético, porque o trecho que vai entre o
Simbolismo e o Modernismo se caracteriza, acima de tudo, por não poder
ser resumido numa escola dominante e, ao contrário, compreender a
coexistência de simbolistas, realistas e parnasianos, até mesmo os da geração
que, em 1920, iriam desencadear o Modernismo. Foi o Pré-Modernismo‖
(p. 58). Alfredo Bosi (1966), por sua vez, em O Pré-Modernismo, começa
por admitir que o termo deve ser compreendido de duas formas, as quais,

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 109


Capítulo III

segundo o próprio, nem sempre são coincidentes: ―1º) dando ao prefixo


"pré" uma conotação meramente temporal de anterioridade; 2º) dando ao
mesmo elemento um sentido forte de precedência temática e formal em
relação à literatura modernista‖ (p. 11).
Apesar das dificuldades que o termo encerra, o Pré-Modernismo é
um período eclético que agrupa obras de autores que, em muitos casos,
participarão da Semana de Arte Moderna de 1922, momento a partir do
qual muitas das obras desses mesmos autores se incluirão no movimento
modernista. Pré-Modernismo agruparia, assim, todos aqueles autores que
problematizariam a realidade social, política, económica e cultural do Brasil.
Com a proclamação da República, em 1889, as províncias tornam-
se Estados e ganham maior autonomia, indo ao encontro dos interesses das
oligarquias regionais e fortalecendo grupos economicamente dominantes,
como aqueles sediados em São Paulo (produtores de café) e em Minas
Gerais (dedicados à pecuária)6. O domínio político e económico daqueles
que possuíam grandes extensões de terra tem como consequência o
aprofundamento de fortes contradições materiais entre os proprietários de
terra e aqueles que, não a possuindo, (n)ela trabalham. Boris Fausto (2005)
realça neste período a associação da política com a economia,
nomeadamente com os grandes grupos financeiros estrangeiros, já que a
casa Rothischild é um dos financiadores da República brasileira.
A República Velha assentou, assim, a sua hegemonia, numa
formulação socioeconómica cuja importância política se encontrava
dependente da lavoura cafeeira e da pecuária. Apesar disso, outras classes e
estratos, inclusivamente socialmente próximos da classe económica e
politicamente dominante (burguesia industrial incipiente em São Paulo e no
Rio de Janeiro, profissionais liberais e elementos do Exército), conviviam no

6
Vários grupos, contudo, principalmente de São Paulo (SP), de Minas Gerais (MG) e de
Rio Grande do Sul (RS), disputavam a dominância na nova República, destacando-se,
aindan, nesta luta, o Exército (fortemente ligado à nova organização sociopolítica) e a
Marinha (com históricas ligações à Monarquia).

110 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

quadro geral da sociedade brasileira finissecular. Os processos de


urbanização e a chegada de imigrantes (nomeadamente na área centro-sul), a
marginalização dos antigos escravos, o engrossamento das fileiras da
pequena burguesia e do proletariado, vão, por seu lado, anunciando novas
correlações de forças e, portanto, conflitos futuros.
Neste contexto, diferentes ideologias entram em confronto, uma vez
que o tradicionalismo agrário não se adapta às estruturas mentais das classes
letradas urbanas, as quais configuravam quer ideários que mesclavam uma
visão do mundo estática e, frequentemente, saudosista, quer um liberalismo
que indiciava alguns traços próximos do anarquismo, quer, por vezes,
atitudes ora revolucionárias, ora reformistas.
Esta diversidade ideológica revelava, aliás, a coexistência, no Brasil
de então, de diferentes níveis de consciência, os quais consubstanciavam
ritmos e cosmovisões diversas.
As contradições sociais deste período tiveram como consequência
diferentes revoltas e conflitos sociais, como a Guerra dos Canudos, descrita
por Euclydes da Cunha, na já referida obra Os Sertões (1902), de que
apresentamos um excerto:
Euclydes da Cunha - Os Sertões (1902)

Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas as armas e munições de


guerra, os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos.
Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da
estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o
caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de
fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes,
mantas, cantis e mochilas („) A caatinga mirrada e nua, apareceu repentinamente
desabrochando numa florescência extravagantemente colorida no vermelho forte das
divisas, no azul desmaiado dos dólmãs e nos brilhos vivos das chapas dos talins e
estribos oscilantes.
Euclides da Cunha. Os Sertões. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. p. 492.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 111


Capítulo III

Comentário:

O movimento de Canudos surgiu em 1896 e tinha como figura principal


Antônio Conselheiro, pregador e líder beato, seguido com devoção pelas populações
do sertão baiano. Antônio Conselheiro havia começado a pregar cerca de 1870, tendo
sido fortemente criticado pela Igreja Católica. Depois da proclamação da República,
em 1889, fez críticas ferozes à República. Em 1893, animou uma rebelião contra a
cobrança de impostos, tendo-se posteriormente fixado, juntamente com milhares de
sertanejos, no arraial de Canudos, no vale do rio Vaza-Barris. Cria-se, a partir de
então, uma comunidade autónoma que produzia os próprios meios de subsistência.
Associado às péssimas condições de vida que existiam na região nordeste, desde o
final do Império, o movimento colidia com os interesses de grandes latifúndios (de
baixa produtividade) que dominavam a área e com uma oligarquia política arcaica
que condenava à miséria uma grande massa de excluídos, muitos dos quais ora se
juntavam a beatos (como Antônio Conselheiro), ora optavam pela vida do cangaço.

No ano de 1896, quando Canudos contava com uma população estimada


entre 10 mil e 25 mil habitantes, o governo da Bahia envia duas expedições armadas
contra os beatos. A primeira, com cerca de uma centena de homens, e a segunda, com
cerca de 500 homens; ambas as expedições foram derrotadas. Face à derrota, o
governo baiano envia uma nova expedição, que é, de novo, derrotada. O governo
federal envia, então, aquela que seria a última expedição (sob a Presidência de
Prudente Morais), a qual, cercando e bombardeando Canudos, aniquilaria a
comunidade, em Outubro de 1897. O cadáver de Antônio Conselheiro foi exumado e
a sua cabeça decepada.

É neste contexto que a literatura finissecular, tornando-se cada vez


mais atenta às transformações da sociedade e aos movimentos nela
engendrados, vai ser influenciada pelo Realismo e pelo Realismo-
Naturalismo, notando-se já uma inclinação dos autores para preocupações
de índole social. A coluna de Luís Carlos Prestes (1925-1927) marca,
igualmente, este período de fortes convulsões sociais que, no plano da arte e
da cultura, desembocaria na busca de uma identidade brasileira autónoma.

112 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Os autores aproximam-se da realidade brasileira e, ao fazê-lo, também a


linguagem dela se aproxima, tornando-se, assim, mais simples, coloquial e
próxima da cultura oral.
Num período em que diferentes escolas europeias marcam o
panorama literário brasileiro, alguns escritores revelam, desta forma, as
tensões que movem a vida brasileira, desde a desintegração do Império, até
aos primeiros anos republicanos.
As literaturas que precederam a Semana de Arte Moderna de São
Paulo (que iniciaria, por sua vez, uma nova escola de vanguarda, o
Modernismo), têm, ainda, em comum, o facto de se assumirem criticamente
perante neoparnasianos, neossimbolistas e neorromânticos. Neste contexto,
caberia "ao romance de Lima Barreto e de Graça Aranha, ao largo ensaísmo
social de Euclides, Alberto Torres, Oliveira Viana e Manuel Bonfim, e à
vivência brasileira de Monteiro Lobato, o papel histórico de mover as águas
estagnadas da belle époque" revelando, antes dos modernistas, "as tensões
que sofria a vida nacional" (Bosi, 2015, p. 327).

de-pintura-moderna-anita-malfatti-1917-sao-paulo-sp
Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento238102/exposicao-

Anita Malfatti, A estudante russa, 1915

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 113


Capítulo III

1.1.2. AUTORES MAIS REPRESENTATIVOS

1. Euclides da Cunha depois de 1889, O Estado de São


(1866-1909) Paulo).
Proclamada a República, voltou
Euclides Rodrigues Pimenta da à carreira militar, a qual abandonou
Cunha foi, sobretudo, um estudioso em 1895, tornando-se engenheiro
do Brasil. Foi o seu testemunho civil. Dividia, então, o seu tempo,
sobre Canudos, sobre a Amazónia e entre a superintendência de obras do
sobre outras partes do Brasil que Estado e as colaborações regulares
permitiu a outros escritores, como para o jornal O Estado de S. Paulo.
Monteiro Lobato ou Lima Barreto, Um facto, porém, viria a alterar a
reavaliar e aprofundar a dualidade rotina do estudioso e funcionário
urbano–agrário. Euclides.
Passou parte importante da Os jornais do dia 7 de Março de
infância e a adolescência sob o 1897 noticiam a derrota de uma
cuidado dos seus tios, em diferentes tropa formada por 1300 soldados,
cidades do interior do Rio de em luta com jagunços
Janeiro. Ingressou na Escola Militar, entrincheirados em Canudos, um
aqui recebendo formação positivista vilarejo do sertão norte da Bahia. A
(e, portanto, antimonárquica), e notícia anunciava, ainda, a morte do
onde, num gesto de indisciplina e de Coronel Moreira César, líder da ala
crítica à monarquia, durante uma florianista do Exército.
comemoração, atiraria ao chão o O episódio foi nacionalmente
sabre que deveria apresentar interpretado como uma fase de uma
aquando da passagem do Ministro luta armada em prol da restauração
da Guerra. Foi, depois deste do regime monárquico. Euclides,
episódio, expulso da escola, republicano desde a juventude,
instalando-se em São Paulo, onde aceitou, inicialmente, a interpretação
passou a escrever no jornal A que os jornais haviam dado. Em
Província de S. Paulo (rebatizado, dois artigos publicados em O

114 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Estado de São Paulo, sob o título A cuja interpretação proporia, em Os


Nossa Vendéia (a 14/03/1897 e a Sertões, em termos de mestiçagem e
14/07/1897), também aproxima em termos de influência do meio.
os acontecimentos de Canudos a Junto ao arraial de Canudos,
uma crise política em que o regime e Euclides conheceria, ainda, a
o Exército estariam envolvidos. magnificência da resistência dos
Em 1897, é convidado a viajar sertanejos a tropas tão numerosas e
até à Bahia, como correspondente de tão bem equipadas, reconhecendo o
O Estado, para relatar os absurdo de luta tão desigual.
acontecimentos sobre Canudos. Os A tónica que Euclides coloca
seus relatos e as suas inúmeras sobre o elemento racial compreende-
pesquisas posteriores servir-lhe-iam se quando se analisa a cosmovisão e
de base para escrever, entre 1891 e mente positivista que permeou a
1902, Os Sertões. Graças a esta cultura euclidiana, uma vez que o
obra, Euclides foi eleito para a autor foi engenheiro e militar num
Academia Brasileira de Letras e para país que, na segunda metade do
o Instituto Histórico e Geográfico século XIX, se encontrava
Brasileiro. culturalmente próximo da França.
A obra-prima de Euclides da Em Euclides, como assinala Bosi
Cunha, Os Sertões, publicada em (2015), as raças não se configuram
1902, é o livro pioneiro do como realidades estáticas. Com
modernismo brasileiro. efeito, as diferentes espécies da
O contato direto com as Natureza vivem num determinado
condições físicas e morais dos meio físico, no qual interagem e
sertanejos permitiu que Euclides convivem com outras espécies. É
compreendesse que o pressuposto de neste sentido que Euclides considera
que Canudos era um foco ambas as variáveis: o sertanejo e o
monarquista constituía um erro gaúcho constituem tipos brasileiros
interpretativo. Desfeito este que resultam não apenas da
equívoco, Euclides examinou sob mestiçagem, mas igualmente da
um novo olhar aquela sociedade, interação que o Homem estabelece
simultaneamente rude e complexa, com a Natureza, da mesma forma

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 115


Capítulo III

que as diferentes espécies de plantas Principais obras (romances,


e de animais devem a sua anatomia e ensaios, artigo): A Guerra no Sertão
fisiologia tanto à herança genética, (1899); As Secas do Norte (1900);
quanto aos esforços seculares de O Brasil no Século XIX (1901); Os
adaptação ao meio e aos outros Sertões (1902); Civilização (1904);
organismos vivos. Contrastes e Confrontos (190);
Euclides falece a 15 de Agosto Perú versus Bolívia (1907); Castro
de 1909, assassinado pelo amante Alves e o Seu Tempo (1908); A
da sua esposa. Margem da História (1909).

Euclides da Cunha – Os Sertões (1902)


Trincheiras dos jagunços
Aquilo era uma armadilha singularmente caprichosa. Quem percorresse
mais tarde as encostas da Favela avaliava-a. Estavam minadas. A cada passo uma
cava circular e rasa, protegida de tosco espaldão de pedras, demarcava uma trincheira.
Eram inúmeras; e volvendo todas para a estrada os planos de fogo quase à flor da
terra, indicavam-se adrede dispostas para um cruzamento sobre aquela. Explicavam-
se, assim, os ataques ligeiros, feitos em caminho e a insistência, a partir do Angico,
do inofensivo tiroteio em que os sertanejos, salteando e correndo, tinham evidente
intuito de atrair a expedição segundo um rumo certo, impedindo-lhe a escolta de
qualquer atalho entre tantos que dali por diante levam ao arraial. Triunfara-lhes o
ardil. Os expedicionários, sob o estímulo da ânsia perseguidora contra o antagonista
disperso na frente, em fuga, haviam imprudentemente enveredado, sem uma
exploração preparatória, pela paragem desconhecida, acompanhando, sem o saberem,
um guia ardiloso e terrível, com que contavam - Pajeú.
E tombaram na tocaia com aquele aprumo de triunfadores. Mas a breve
trecho o perderam, num tumultuar de fileiras retorcidas, quando, em réplica ao
bombardeio que tempesteava a um lado, correu vertiginoso, de extremo e de alto a
baixo, nas encostas, incendiando-as, um relampaguear de descargas terríveis e
fulminantes, rompendo de centenares de trincheiras, explodindo debaixo do chão
como fogaças.
Euclides da Cunha. Os Sertões. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, pp. 538-539.

116 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Comentário:
Considerada uma das obras-primas da literatura brasileira, a obra Os Sertões
descreve as batalhas em que se enfrentaram os homens liderados por Antônio
Conselheiro e o exército brasileiro. Com um apurado estilo, no qual a linguagem
jornalística se funde com um carácter épico, Euclides da Cunha traça um retrato dos
elementos que, a seu ver, são imprescindíveis para a compreensão da guerra de
Canudos: a Terra, o Homem e a Guerra.

2. José Monteiro Lobato nunca foi bem aceite pelos primeiros


(1882-1848) modernistas, ainda que todos
compartilhassem um claro
José Bento Monteiro Lobato antiparnasianismo.
nasceu em Taubaté, no interior Apesar de Monteiro Lobato se
Paulista. Fazendeiro, Monteiro destacar graças à produção infantil
Lobato pretendia revelar os (que constitui a maioria, e a parte
encantos do campo aos seus amigos mais conhecida, da sua obra), a sua
e colegas da cidade, o que faria vida cruza-se, contudo, com a vida
alegoricamente no conto infantil O literária de uma personagem que
sítio do pica-pau amarelo. Neste viria a fazer parte do imaginário
conto, as aventuras de Pedrinho – o brasileiro adulto: Jeca Tatu.
neto de Dona Benta que vive na Jeca Tatu, personagem de contos
cidade e que chega de férias, vindo para adultos, teve três representações
da capital – tornam-se mais literárias, cada uma delas
emocionantes quando aquele se manifestando as visões não apenas
incorpora no grupo de Narizinho, distintas, mas sobretudo
de Emília e do Visconde de contraditórias, que Monteiro
Sabugosa. Apesar da combinação Lobato teria, ao longo da vida,
telúrica com o folclorismo e o relativamente ao homem do campo.
universalismo, o seu regionalismo Acompanhar a evolução literária de

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 117


Capítulo III

Jeca Tatu implica, por conseguinte, personagem Jeca Tatu, através da


acompanhar o processo de vida qual Monteiro Lobato pretendia
material e de consciência do autor. simbolizar, num tom caricatural, o
Em 1911, Lobato torna-se num trabalhador rural do interior.
grande proprietário rural, após a
morte do seu avô, quem lhe deixa
como herança uma fazenda. Os seus Monteiro Lobato – Urupês (1914)
esforços e projetos para tornar
rendosa a fazenda foram mal O vigor das raças humanas está na
razão direta da hostilidade ambiente. Se
sucedidos, o que fez com que
a poder de estacas e diques o holandês
Lobato tivesse graves problemas
extraiu de um brejo salgado a Holanda,
financeiros. O autor entrou, essa jóia do esforço, é que ali nada o
igualmente, em conflito com o seu favorecia. Se a Inglaterra brotou das
administrador, com quem silhas nevoentas da Caledônia, é que lá
discordava dos métodos empregados não medrava a mandioca. Medrasse, e
na agricultura. É durante este talvez os víssemos hoje, os ingleses,
conflito que surge Jeca Tatu, tolhiços, de pé no chão, amarelentos,
nascido num quadro teórico mariscando de peneira no Tâmisa. Há
positivista de idealização das bens que vêm para males.
(...)
minorias, numa legitimação de um
O caboclo é soturno.
determinado projeto político. Não canta senão rezas lúgubres.
Então colaborador de jornais de Não dança senão o cateretê
São Paulo e do Rio de Janeiro, aladainhado.
Monteiro Lobato publica, assim, em Não esculpe o cabo da faca, como o
1914, no jornal O Estado de São cabila.
Paulo, os artigos Velha Praga e Não compõe a sua canção, como o
Urupês7. É neste último que surge a felá do Egito.

José Monteiro Lobato. Urupês. São Paulo:


Editora Globo, 2009, p. 177.
7
Urupês seria, aliás, o título que seria dado
a uma compilação de textos, publicada pela
primeira vez em 1918, onde Monteiro mencionados, assim como uma série de
Lobato reuniria os dois artigos outros contos da sua autoria.

118 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Comentário:

O caipira do vale Paraíba é apresentado como um trabalhador preguiçoso,


ignorante, sem ambição e sem sentido crítico. No seguimento das ideias
pretensamente científicas prevalecentes no seu tempo, Monteiro Lobato tentava, em
1914, confirmar a teoria da desigualdade das raças e da degeneração social, a qual se
considerava ser consequência da miscigenação. A personagem servia, desta forma,
para demonstrar o atraso brasileiro relativamente às nações então consideradas
civilizadas, traduzindo a consciência da elite brasileira em relação à grande maioria
do povo brasileiro.

Monteiro Lobato, Jeca Tatu (1924)

Jeca Tatu era tão fraco que quando ia


lenhar vinha com um feixinho que parecia
brincadeira. E vinha arcado, como se
Em 1924, Monteiro Lobato estivesse carregando um enorme peso.
volta a pôr em ação a mesma - Por que não traz de uma vez um feixe
personagem no conto Jeca Tatu grande? – perguntaram-lhe um dia.
(vulgarmente conhecido como Jeca Jeca Tatu coçou a barbicha rala e
respondeu:
Tatuzinho), desta feita - Não paga a pena.
considerando que é a Tudo para ele não pagava a pena. Não
impossibilidade de Jeca Tatu aceder pagava a pena consertar a casa, nem fazer
à saúde pública que o mantém na uma horta, nem plantar árvores de fruto,
miséria e no atraso. nem remendar a roupa.
Só pagava beber pinga.
- Por que você bebe, Jeca? – diziam-lhe.
- Bebo para esquecer.
- Esquecer o quê?
- Esquecer as desgraças da vida.

José Monteiro Lobato. Problema Vital, Jeca


Tatu e outros textos. São Paulo: Editora Globo,
2010, pp. 102-103.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 119


Capítulo III

Comentário:
Cândido Fontoura, amigo de Monteiro Lobato, recebe este Jeca Tatuzinho
para promover um produto fabricado pelo seu laboratório – o biotônico Fontoura -, o
qual, surgindo em folheto ilustrado, chegaria, em 1982, a 100 milhões de exemplares.

Jeca Tatu tornar-se-ia, deste modo, na peça publicitária que mais


sucesso alcançaria na história da propaganda brasileira8.

Capa da edição de Zé Brasil, ilustrada por Cândido Portinari (1947)

Fonte: http://www.babelleiloes.com.br/peca.asp?ID=2768427

8
Mais tarde, em 1941, preso em São Paulo, durante o Estado Novo de Vargas, Monteiro
Lobato escreveria Conto Industrial, onde, mais uma vez, faria a apologia do biotónico
Fontoura: ―Quando um homem de grandes realizações chega a esse estádio "do não fazer
nada" é que está fazendo a coisa suprema: de mão no pulso na empresa, como médico, a ver
se os dois movimentos estão bem harmônicos – o da "conservação do já criado" e o dos
"novos desenvolvimentos em marcha". Porque é nisso que as instituições se distinguem dos
simples negócios: crescem sempre, evoluem como árvores de crescimento e engalhamento
indefinidos‖. Ao contrário das ideias socialistas que se patentearão, seis anos mais tarde, no
conto Zé Brasil, Monteiro Lobato felicita o seu amigo Fontoura pela sua subida na
hierarquia social, lisonjeando-lhe a riqueza e a ascensão social.

120 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Monteiro Lobato - Zé Brasil (1947)

- Ah, estas formigas me matam! –


dizia o Zé com cara de desânimo. –
Em 1947, no conto Zé Brasil, o Comem tudo que a gente planta.
problema de Jeca Tatu passa a estar E se alguém da cidade, desses que
diretamente ligado com o facto de não entendem de nada desta vida, vinha
aquele não possuir terras. Há, desta com histórias de "matar formiga" Zé
forma, uma evolução na consciência dizia:
do autor, a qual se materializa na - Matar formiga!... Elas é que matam
construção da personagem: visto, em a gente. Isso de matar formiga só para os
1914, como um ser ignorante, o seu ricos, e muito ricos. O formicida está
atraso e ignorância serão, em 1947, pela hora da morte – e cada vez pior,
justificados pelas condições
mais falsificado. (...) Suponha que eu
materiais do meio que o envolve.
vendo a alma, compro uma lata de
Jeca Tatu passa, assim, a constituir o
formicida e mato aquele formigueiro ali
arquétipo do trabalhador explorado,
num país também ele submetido à do pastinho. Que adianta? As formigas
exploração e ditames de países do Chico Vira, que é o meu vizinho
estrangeiros. deste lado, vêm alegrinhas visitar as
minhas plantas.

Monteiro Lobato. Problema Vital, Jeca Tatu


e outros textos. São Paulo: Editora Globo, 2010.
p. 117.

Comentário:

Zé Brasil surge como uma crítica do maduro Lobato ao jovem Lobato que,
em 1914, como administrador de uma grande propriedade rural, não compreendera a
dimensão económica do projeto agrário brasileiro. Na última versão do Jeca, este já
surge, por isso, como um camponês sem-terra, expropriado, cuja única salvação
reside em Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 121


Capítulo III

Em 1948, Cândido Portinari Principais obras: Urupês (1918);


ilustraria uma das versões de Zé O Saci (1921); Narizinho
Brasil, finalizando, assim, o ciclo Arrebitado (1921); Fábulas (1922);
evolutivo do camponês caipira Jeca O Marquês de Rabicó (1922); As
Tatu. O processo de transformação Aventuras de Hans Staden (1927);
da cosmovisão do autor encerrar-se- Peter Pan (1930); Reinações de
ia, igualmente, com o fim deste Narizinho (1931); Caçadas de
longo ciclo simbólico: Monteiro Pedrinho (1933); Emília no País da
Lobato faleceria em São Paulo, em Gramática (1934); Geografia de
28 de julho de 1848. Dona Benta (1935); Dom Quixote
das Crianças (1936); Histórias de
Tia Nastácia (1937); O Poço do
Visconde (1937); O Picapau
Amarelo (1939).

3. Lima Barreto Politécnica do Rio de Janeiro, onde


(1881-1992) iniciou o curso de Engenharia.
Em 1903, quando estava no
Afonso Henriques de Lima terceiro ano, foi obrigado a
Barreto nasceu no Rio de Janeiro, a abandonar o curso, pois o seu pai
13 de maio de 1881. Filho de um havia enlouquecido e os seus três
tipógrafo e de uma professora irmãos dependiam, nesse momento,
primária, ambos mestiços e pobres, de si. Em 1905, ingressou no
Lima Barreto foi, ao longo da sua jornalismo graças a uma série de
vida, ostracizado devido à sua reportagens que escreveu para o
ascendência escrava. Apesar disso, Correio da Manhã, tendo fundado,
uma vez que era afilhado do em 1907, a revista Floreal.
Visconde de Ouro Preto, pôde Morre aos 41 anos, fruto de um
seguir o ensino secundário e problema cardíaco e com um largo
superior, tendo ingressado na Escola passado de alcoolismo.

122 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Ora, através da biografia de Lima Apesar disso, a sua consciência é


Barreto podemos compreender o a consciência das suas personagens.
substrato ideológico da sua obra. É assim que na personagem do
Com efeito, Lima Barreto tem Major Policarpo Quaresma afloram
uma origem humilde, é mestiço, as revoltas do brasileiro
tendo tido uma vida atribulada marginalizado, o que manifesta a
enquanto jornalista, o que terá própria consciência do romancista
motivado, segundo Bosi (2015), o "de que o caminho ufanista é
seu "socialismo maximalista, tão veleitário e impotente" (Bosi, 2015,
emotivo nas raízes quanto p. 339). O estilo de Lima Barreto
penetrante nas análises" (p. 339). entrava, por conseguinte, em
Antônio Cândido (1997), por seu confronto com o estilo de autores
lado, considera que a obra literária como Coelho Neto ou Rui Barbosa,
de Lima Barreto "de um lado razão pela qual, aliás, "as cenas de
favoreceu nele a expressão escrita da rua ou os encontros e desencontros
personalidade", de outro pode ter domésticos se acham narrados como
contribuído para atrapalhar a uma animação tão simples e
"realização plena do ficcionista" (p. discreta, que as frases jamais brilham
549). Ressaltando o valor da por si mesmas, isoladas e insólitas
inteligência de Lima Barreto, (como resultava da linguagem
"voltada com lucidez para o parnasiana)" (Bosi, 2015, p. 340).
desmascaramento da sociedade e a Carlos Nelson Coutinho (1974)
análise das próprias emoções" (p. evidencia a falta de avaliação
549), acrescenta, porém, que Lima crítica do significado da obra de
Barreto não teria conseguido atingir Lima Barreto "no fortalecimento e
a sua plenitude enquanto narrador, aprofundamento de uma tradição
pois fora "menos bem realizado", realista autenticamente nacional" (p.
"sacudido entre altos e baixos" e, 2), considerando este autor como
frequentemente,"incapaz de "um dos maiores representantes da
transformar o sentimento e a ideia linha humanista e democrático-
em algo propriamente criativo" (p. popular na literatura brasileira"
549). (p.2), situando-o, por conseguinte,

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 123


Capítulo III

não no quadro do Pré-Modernismo, discurso político e o discurso


mas antes no interior da escola literário, ambos estabelecendo um
realista. jogo de tensão que subjaz ao
Já o escritor e crítico Osman processo ficcional. Neste processo
Lins (1976) evidencia a importância criativo, a comicidade e a sátira são
do espaço na narrativa, ressaltando mecanismos utilizados quer pelos
as várias funções que este elemento detentores do poder, quer por
assume no romance de Lima aqueles que ameaçam a ordem
Barreto, seja na obra Triste Fim de social, sendo as contradições sociais
Policarpo Quaresma, seja na obra reveladas através do relacionamento
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de que as personagens estabelecem
Sá (na qual, ademais, se centra a sua entre elas, assim como com o
argumentação). Osman Lins mundo circundante.
considera que, na obra deste autor, Principais obras (romances,
as personagens demonstram uma sátira e conto): Recordações do
"consciência da miséria, mas não Escrivão Isaías Caminha (1909);
consciência de classe" (p. 23), Triste Fim de Policarpo Quaresma
acrescentando que algumas de suas (1915); Numa e a Ninfa (1915);
personagens "aparecem como Vida e Morte de M. J. Gonzaga de
figuras intermediárias, como é o Sá (1919); Clara dos Anjos (1948);
caso de Lucrécio Barba-de-Bode" Os Bruzundangas (1923); Coisas do
(p. 24). Reino do Jambom (1953); História
Em Lima Barreto parecem, deste e Sonhos (1920).
modo, inter-atuar dois discursos, o

Lima Barreto – Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá (1919)


Dona Dulce, moça de Botafogo em Petrópolis, que se casa com o doutor Frederico.
O comendador seu pai não quer, porque o tal doutor Frederico apesar de doutor, não tem
emprego. Dulce vai à superiora do colégio das irmãs. Esta escreve à mulher do ministro,
antiga aluna do colégio, que arranja o emprego para o rapaz. Está acabada a história... Está aí
o grande drama em nossas letras, e o tema de seu ciclo literário.
Lima Barreto. Obras Completas. Vol. 4. São Paulo: Editora Brasiliense, p. 134.

124 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Comentário:

Augusto Machado, o narrador, faz a biografia do amigo Gonzaga, cuja morte


nos é, desde logo, anunciada. Gonzaga foi um funcionário público, culto e sábio, que,
tendo recusado uma vida familiar, se refugiou, ao longo da vida, na sua sabedoria,
isolando-se da ignorância e da mesquinhez dos demais. A narrativa constrói-se
através de uma sucessão de diálogos entre Gonzaga e Machado, em passeios pelo Rio
de Janeiro, onde, para além da sátira à burocracia e ao pedantismo, se revela o olhar
agudo de Gonzaga face às contradições das novas tendências que, numa grande
cidade, entravam em choque com as tradições. É, por conseguinte, feita uma reflexão
sobre o surgimento de um novo mundo em que a alienação humana, cada vez mais, se
acentuava. Discute-se aristocracia, democracia, feminismo, racismo, patriotismo e até
linhas topográficas cariocas.
O livro foi editado por Monteiro Lobato, em 1919, pouco antes da morte do
autor.
A Academia Brasileira de Letras, que havia impedido a entrada de Lima
Barreto para esta Academia, em 1919, premiou Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá
com uma menção honrosa, no ano seguinte ao da sua morte.

4. Graça Aranha Tem, contudo, uma origem


(1968-1931) social e uma existência oposta às de
Lima Barreto.
Juntamente com Lima Barreto, José Pereira Graça Aranha nasceu
Graça Aranha foi o vulto mais em Recife, em 1868. Depois de
importante do Pré-Modernismo, terminar o curso de Direito, na
estando ambos os autores Faculdade do Recife, em 1886,
impregnados de um forte muda-se para o Rio de Janeiro, onde
sentimento nacional que se afirma exerceu o cargo de juiz. Mais tarde,
numa atitude antipassadista, foi, também, juiz no Estado do
preconizando, de resto, a revolução Espírito Santo.
literária que o Modernismo iria Foi discípulo de Tobias Barreto
iniciar. (que lhe incutiu a filosofia
naturalista e elementos materialistas)

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 125


Capítulo III

e serviu como diplomata em Maestri (2003) assinalou, a


diferentes cidades europeias. Viajou, sociedade camponesa "substituiu
por esta razão, por vários países da apenas nos poros de uma sociedade
Europa, tendo estas viagens sido de classes que manteve em forma
essenciais para que Graça Aranha hegemônica o caráter latifundiário
viesse a aderir ao movimento da apropriação da terra" (p. 253).
modernista que despontava no Assim, no contexto sócio-histórico
Brasil, o que o tornaria num dos de Canaã, ainda que uma mudança
organizadores da Semana Moderna política tenha sido realizada, com o
de 1922. fim do Brasil-Império, as classes
Foi um dos fundadores da subalternizadas continuavam
Academia Brasileira de Letras, em afastadas de qualquer tipo de
1897, tendo sido titular da cadeira participação institucional.
número 38, cujo patrono fora Em Canaã, os colonos produzem
Tobias Barreto. em pequenos lotes de terra,
Morre em 1961. originando uma classe campesina
Das suas obras, destaca-se a que atua em regiões até então não
emblemática Canaã, publicada em exploradas: "Ali o Guandu, acolá
1922, uma das mais importantes Santa Teresa, duas regiões sombrias,
obras do Pré-Modernismo. que os colonos vão arrancando do
Alfredo Bosi (1994) destaca o silêncio misterioso da solidão"
romance Canaã como antecipador (Canaã, 2005, p. 27). Graças a este
do movimento de 1922, uma vez campesinato imigrante, o Estado
que nele já se esboçava a procura de procurava abastecer as capitais e os
um reconhecimento nacional, latifúndios com alimentos, criar
elemento este que se tornaria homens livres para o Exército,
evidente nos escritores modernistas consolidar a ocupação do território
que posteriormente se firmaram no nacional e desenvolver uma
plano literário brasileiro. população livre de pequenos
O romance é publicado treze proprietários (cf. Maestri, 2003).
anos depois da implantação da Milkau, uma das duas personagens
República, na qual, conforme principais do romance, originário da

126 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

cidade alemã de Heidelberg, terá um seus braços" (cit. por Ianni, 1984,
lote de terra através do sistema a p. 16).
prazo. Segundo este sistema de O imigrante torna-se, desta
colonato, o Estado concede uma forma, um colono.
terra ao colono, que fica obrigado a O colono, para além da
pagar uma quantia anual, em monocultura que o sustentava,
numerário ou em género. exercia, numa parte da parcela do
Tal como as personagens Milkau seu lote, a policultura. Esta
e Lentz, em Canaã, os colonos que permitia-lhe suprir parte das
buscavam chegar ao Brasil partiam, necessidades da família, sendo que,
de barco, das suas terras de origem. muitas vezes, os filhos mais jovens
Os barcos chegavam aos portos se viam obrigados a trabalhar fora
provinciais, a partir de onde os da unidade colonial. Aplicavam-se,
imigrantes eram enviados para assim, os desígnios formulados no
barracões nas diferentes colónias. relatório do Ministério da
Caso as glebas já se encontrassem Agricultura de 1901: a colónia
delimitadas, o colono escolhia o seu constituía quer uma fonte de
lote (e, a partir de 1850, muitos alimentos (dentro da zona cafeeira),
passaram a assinar um contrato de quer uma fonte de mão-de-obra
compra). O objetivo, então, não era para o latifúndio, quer um viveiro de
apenas a colonização de áreas que mão-de-obra de reserva (cf. Ianni,
necessitavam de uma mão-de-obra 1984).
crescente, mas igualmente ter mão- Na perspectiva de
de-obra acessível para o grande desenvolvimento agrícola de
latifúndio. No relatório do territórios virgens, os colonatos
Ministério da Agricultura de 1901 situavam-se, na maioria das vezes,
(ano anterior à publicação de em regiões inóspitas e sem
Canaã), afirma-se: "é preciso infraestruturas. O colono teria, desta
prender o imigrante ao solo... mas é forma, não apenas de se dedicar ao
preciso fazer isso de modo a deixá- trabalho agrícola, mas igualmente à
lo à disposição da grande cultura criação de meios de comunicação
para quando tenha necessidade dos com os povoados mais próximos.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 127


Capítulo III

Sem este labor, aliás, o colono não Machado de Assis e Joaquim


poderia nem escoar o seu excedente, Nabuco (1923); Espírito Moderno
nem adquirir os bens de que (1925); A Viagem Maravilhosa
necessitava. (1929); O Meu Próprio Romance
Principais obras: Canaã (1902); (1931); O Manifesto dos Mundos
Malazarte (1914); A Estética da Sociais (1935).
Vida (1921); Correspondência de

Graça Aranha – Canaã (1902)


Os viajantes margeavam, ora o cafezal plantado na encosta da colina, ora a roça de
mandioca na baixada. A terra era cansada e a plantação medíocre; ao cafezal faltava o matiz
verde-humbo, tradução da força da seiva, e coloria-se de um verde-claro, brilhando aos tons
dourados da luz; os pés de mandioca, finos, delgados, oscilavam, como se lhes faltassem
raízes e pudessem ser levados pelo vento.
(...)
E não há quadro mais doloroso do que este em que a ação do tempo, a força da
destruição não se limita somente às tradições e aos inanimados, mas envolvendo no
descalabro as pessoas, e as paralisa e fulmina, fazendo delas o eixo central da morte e
aumentando a sensação desoladora de uma melancolia infinita.
Graça Aranha. Canaã. São Paulo: Martin Clarinet, 2007, p. 67.

Comentário:

Fundindo ideais materialistas e naturalistas e aplicando à linguagem literária topoi


realistas, impressionistas e simbolistas, Canaã é, também, um romance regionalista. Paralela,
e aparentemente de forma contraditória, Graça Aranha não abandona, contudo, o excesso de
formalismo academicista parnasiano, presente, sobretudo, nas longas e excessivas descrições
de ambientes. Apesar disso, Graça Aranha apresenta preocupações com as contradições da
realidade brasileira e com a desumanização e violência da sociedade, emanando da sua obra
alguns traços ideológicos do materialismo histórico e dialético.
Tratando do tema da imigração alemã no Brasil, no estado de Espírito Santo, Canaã
aborda a questão da sujeição do colono às violentas imposições da administração pública
brasileira.

128 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1.2. PRIMEIRA FASE DO MODERNISMO: PERIODIZAÇÃO


ESTÉTICA E HISTÓRICO-LITERÁRIA

A mentalidade tradicionalista agrária tem dificuldades em adaptar-se


às novas mentalidades emergentes dos centros urbanos, os quais, pela sua
posição sociogeográfica, se encontram perante uma maior permeabilidade a
ideias e ideários vindos do exterior, fossem eles estadunidenses ou europeus.
Os níveis de consciência manifestavam-se, igualmente, em ritmos diversos,
pelo que conflitos surgiram em tempos e lugares distintos e, muitas vezes,
distantes - Canudos, o fenómeno do Cangaço, o caso do Padre Cícero, os
movimentos operários paulistas durante a primeira Guerra Mundial, as
intentonas militares, a coluna de Carlos Prestes – o que testemunhava "o
estado geral de uma nação que se desenvolvia à custa de graves
desequilíbrios" (Bosi, 2015, p. 325).
Nas leituras das classes letradas, sobretudo urbanas, surgem os
futuristas italianos, os dadaístas e os surrealistas franceses, ouve-se Claude
Debussy (1862-1918) e Darius Millaud (1892-1974), vai-se ao cinema,
olha-se com admiração para os quadros de Pablo Picasso (1881-1973),
estuda-se a psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), o relativismo de
Albert Einstein (1879-1955), ouvem-se os ecos da Revolução Russa, do
anarquismo ibérico e do fascismo italiano.
O início do século XX foi, aliás, um período de fortes
transformações no mundo. Em 1914, deflagra a Primeira Guerra Mundial
(que o historiador Eric Hobsbawm (1995) considera ser o marco inicial da
história do século XX), enquanto em 1917 eclode a Revolução dos Sovietes,
a qual termina com o regime czarista russo. No seguimento da Revolução de
1917, e já na proximidade da segunda metade do século, surge a Revolução
chinesa, em 1949, e, em 1959, a Revolução cubana.
Após 1929, quando a violenta crise cíclica do modo de organização
socioeconómico dominante conduz à quebra da bolsa de valores de Nova

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 129


Capítulo III

Iorque e à retração da economia e do comércio nos grandes centros


ocidentais, o isolamento a que a América latina se viu votada fez com que,
neste continente, se vivesse um acelerado processo de industrialização.
No Brasil (sob a presidência de Getúlio Vargas), assim como na
Argentina (sob a presidência de Juan Domingo Perón), assumem a
Presidência da República personalidades que apresentam um perfil nacional-
populista, os quais, enquanto cooptam o movimento sindical, promovem
reformas laborais e ampliam, numa perspectiva massificadora, a rede de
ensino (ainda que tal resulte de uma resposta do Estado a reivindicações de
sectores progressistas e trabalhistas). No Brasil, surgem as editoras Globo,
José Olympo e a Companhia Editora Nacional.
Apesar de o olhar continuar a virar-se para as antigas metrópoles e
para a nascente indústria cultural estadunidense (desde o cinema, aos novos
ritmos musicais), o Brasil olha, cada vez mais, para o seu interior, numa
crescente vida introspectiva que reflete sobre a identidade nacional e a
procura de uma brasilidade.
Neste contexto, exprimem-se tendências "evasionistas que
permearam toda a fase dita heróica do Modernismo (de 22 a 30)" (Bosi,
2015, p. 326): antropofagia, pau-brasil, anta, entre outras. Houve, então,
uma tentativa de síntese de movimentos, muitas vezes opostos e
contraditórios, que, apesar de terem representado uma tentativa de libertação
do movimento eurocentrista, não o foram capazes de fazer, deixando-se
influenciar pelas vanguardas europeias suas contemporâneas. Encetou-se,
neste sentido, um movimento semelhante ao que havia acontecido durante o
Romantismo, em que a matéria-prima brasileira, as suas cores e costumes, se
acomodam em fórmulas e modelos europeus.

130 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

"Os homens de 22 (Mário, Oswald, Bandeira, Paulo Prado, Cândido Motta Filho,
Menotti, Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida...) e os que de perto os seguiram, no tempo ou
no espírito (Drummond, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto freyre, Tristão de Ataíde,
Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Alcântara Machado...), enfim, alguns escritores mais tensos e
intuitivos que os precederam (Euclides, Oliveira Viana, Lima Barreto, Graça Aranha,
Monteiro Lobato...) viveram com maior ou menor dramaticidade uma consciência
dividida entre entre a sedução da cultura ocidental e as exigências do seu povo, múltiplo
nas raízes históricas e na dispersão geográfica".

(Alfredo Bosi, História concisa da Literatura Brasileira, São Paulo: Cultrix, 2015, p. 326)

Do ponto de vista da historiografia do Modernismo, a Semana de


Arte Moderna, ocorrida na cidade de São Paulo, em 1922, constitui-se
como o momento que marcou a irrupção da cultura modernista no Brasil.
São Paulo registava, então, um crescimento urbano vertiginoso, decorrente,
sobretudo, da lavoura cafeeira, o que havia transformado profundamente a
paisagem urbana, revelando traços de uma nova vida moderna em que
hábitos, ideias e comportamentos se vão impondo.
O rápido crescimento populacional da cidade encontra-se, por
conseguinte, relacionado com a expansão da monocultura do café. A política
de imigração criou uma grande oferta de trabalho, o que teve uma influência
decisiva na expansão demográfica paulistana. A chegada constante de
população estrangeira, num curto espaço de tempo, e num ritmo acelerado,
fez, ademais, com que se operasse uma metamorfose nos quadros da
composição social, com a presença, na cidade, de uma grande população
proletária de imigrantes.
Para além desta população estrangeira, São Paulo também acolheu
correntes migratórias internas, o que forçou grupos heterogéneos, social,
regional e culturalmente, a conviverem sob um clima de mudança brusca do
espaço urbano, criando, em simultâneo, uma nova definição identitária.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 131


Capítulo III

O Modernismo surge, assim, numa cidade onde se operava uma


mudança entre dois momentos históricos: a cidade colonial do século XIX e
a cidade industrial do século XX. Enquanto novas classes e camadas sociais
emergiam (como a burguesia, o proletariado, os imigrantes estrangeiros),
impunha-se uma nova cultura de produção de massas: a modernidade.
São Paulo oferecia, neste contexto, imagens de mudanças bruscas,
num momento em que, no plano internacional, crises de identidade haviam
sido despoletadas por uma Guerra Mundial, cujo término se afigurava,
então, ainda recente.
O Modernismo que culmina na cidade de São Paulo é, por isso,
fruto, e representação, do cenário de transformações que envolve o seu
universo urbano. As imagens da máquina, da indústria, dos trabalhadores
industriais e da burguesia, das ruas agitadas e repletas de gente, fazem de São
Paulo o centro cultural do Brasil e o foco de uma visão artística que
desembocaria no Modernismo.
A primeira fase do Modernismo tem uma duração efémera,
terminando oito anos depois. É, apesar disso, um período de intensa
atividade artística, no qual se publicaram vários manifestos e revistas. Os
grupos que então se formaram, buscavam uma definição e autonomia
estéticas, pelo que diferentes e variadas foram as linguagens e perspectivas
estético-literárias. O teatro e, sobretudo, a poesia, foram os géneros literários
mais desenvolvidos, nos quais os autores pretendiam buscar uma identidade
artística brasileira que se distanciasse da identidade europeia. Nessa busca -
apesar de as vanguardas europeias de então (cubismo, futurismo,
expressionismo, dadaísmo, surrealismo) serem assimiladas -, a arte e a
literatura brasileiras ganharam uma nova forma e características próprias
(Saldanha, 2018).
Segundo Alfredo Bosi (2015), ―a Semana de Arte Moderna foi, ao
mesmo tempo, o ponto de encontro das várias tendências que desde a I
Guerra vinham se firmando em São Paulo e no Rio, e a plataforma que

132 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

permitiu a consolidação de grupos, a publicação de livros, revistas e


manifestos, numa palavra, o seu desdobrar-se em viva realidade cultural‖ (p.
340). A necessidade de consolidar a nova estética, de definir rumos próprios
e de romper com os padrões literários do passado conferiu ao Modernismo
da primeira fase, segundo Bosi, um alto grau de radicalismo.
A dualidade campo-cidade perdura no imaginário, assim como nas
letras, sobretudo através da relação de complementaridade que a indústria e
o latifúndio manterão, numa articulação que mantém o modelo
agroexportador como um sector predominante da economia brasileira.
É, ainda, neste período, que se publicam obras dedicadas à busca de
uma profunda nacionalidade, como é o caso de Casa Grande e Senzala
(1933), de Gilberto Freyre (1900-1987), e de Raízes do Brasil (1936), de
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).
Segundo Antônio Cândido (2014), a literatura tem assumido, no
contexto brasileiro, um papel superior ao da filosofia e das ciências
humanas, tendo-se tornado no fenómeno central da vida do espírito.
Neste sentido, a literatura segue, de perto, as restantes ciências
sociais e humanas, em particular a sociologia. É assim que a análise
sociológica de Gilberto Freyre, tal como a de Euclides da Cunha, aparece
mais como "ponto de vista do que como pesquisa objetiva da realidade
presente" (p. 137). Neste sentido, a literatura interferia, em Euclides da
Cunha como em Gilberto Freyre, na tendência sociológica, dando origem a
um género misto de ensaio em que confluem diferentes disciplinas, da
história à economia ou da filosofia à arte, que é, de resto, "uma forma bem
brasileira de investigação e descoberta do Brasil" (p. 137). Neste género de
ensaio, Cândido inclui, ainda, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
Holanda.
Atentemos, de seguida, nos excertos de Casa Grande e Senzala, de
Gilberto Freyre, e de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda:

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 133


Capítulo III

Gilberto Freyre – Casa Grande e Senzala (1933)

A verdade é que em torno dos senhores de engenho criou-se o tipo de


civilização mais estável na América hispânica; e esse tipo de civilização, ilustra-o a
arquitetura gorda, horizontal, das casas-grandes. Cozinhas enormes; vastas salas de
jantar; numerosos quartos para filhos e hóspedes; capela; puxadas para acomodação
dos filhos casados; camarinhas no centro para a reclusão quase monástica das moças
solteiras; gineceu; copiar; senzala. O estilo das casas-grandes - estilo no sentido
spengleriano - pode ter sido de empréstimo; sua arquitetura, porém, foi honesta e
autêntica. Brasileirinha da Silva. Teve alma. Foi expressão sincera das necessidades,
dos interesses, do largo ritmo de vida patriarcal que os proventos do açúcar e o
trabalho eficiente dos negros tornaram possível.
Essa honestidade, essa largueza sem luxo das casas-grandes, sentiram-na
vários dos viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil colonial. Desde Dampier a
Maria Graham. Maria Graham ficou encantada com as casas de residência dos
arredores do Recife e com as de engenho, do Rio de Janeiro; só a impressionou mal o
número excessivo de gaiolas de papagaio e de passarinho penduradas por toda parte.
Mas estes exageros de gaiolas de papagaio animando a vida de família do que hoje se
chamaria cor local; e os papagaios tão bem-educados, acrescenta Mrs. Graham, que
raramente gritavam ao mesmo tempo. Aliás, em matéria de domesticação patriarcal
de animais, d'Assier observou exemplo ainda mais expressivo: macacos tomando a
bênção aos moleques do mesmo modo que estes aos negros velhos e os negros velhos
aos senhores brancos. A hierarquia das casas-grandes estendendo-se aos papagaios e
aos macacos.
Gilberto Freire. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global Editora, 2003, pp. 43.
https://ensinarhistoriajoelza.com.br/para_color
Ilustração de Gilberto
Freyre / Acervo FGF

ir_engenho_frans_post/
Fonte:

134 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Comentário:

Lançado em 1933, a obra Casa Grande e Senzala foi a mais importante publicação
do autor. A obra considera a sociedade brasileira como extremamente patriarcal e destaca
aspectos do quotidiano do Brasil, enquanto colónia portuguesa (como, por exemplo,
relativamente à inexistência de infraestruturas escolares ou à miscigenação, esta última
revelando ser fruto de uma ausente população feminina, branca, ou, ainda, relativamente à
importância decisiva do escravo, enquanto formador da cultura brasileira). Freyre considera,
igualmente, a existência de uma diferença de estilos e de forma relativamente à colonização
portuguesa, quando comparada, por exemplo, com a colonização espanhola ou inglesa.
Apesar das posteriores fundamentações ideológicas conservadoras de Gilberto Freyre,
inclusivamente relativamente à leitura que fará das características da colonização lusa,
Antônio Cândido ressalta a importância que, na época, a publicação desta obra teve no
panorama literário brasileiro:

"Hoje é difícil a vocês avaliar o impacto dessa publicação. Foi um verdadeiro


terremoto, com reações favoráveis por parte da maioria dos leitores, sobretudo os mais
esclarecidos, inclusive os comunistas. Mas houve muita restrição por parte dos
elementos conservadores e da direita. É preciso vocês esquecerem as críticas posteriores
sobre o corte conservador de muitas posições de Gilberto Freyre, porque numa
perspectiva de história das idéias o livro dele atuou como força radical, devido à sua
grande carga de desmistificação. (...) Talvez valha a pena contar como fiquei
conhecendo o livro, em 1934. Eu tinha dois amigos, os irmãos Antonio Carlos e José
Bonifácio de Andrada e Silva, que eram de esquerda, sendo um da minha idade e outro
um ano mais velho. Como se vê pelo nome, pertenciam a uma família importante de
políticos, uns liberais, outros conservadores, mas o ramo deles era todo de esquerda,
tanto assim que tiveram um tio preso em Santos em 1935 por ocasião do levante
comunista. Esses rapazes influíram muito na minha inclinação progressiva para o
socialismo. Tendo morrido o pai, a mãe deles se mudou em 1933 para Poços de Caldas,
de onde era natural e onde eu morava com minha família. Eles leram Casa-grande &
senzala e me contaram como era o livro, do qual líamos trechos juntos. A primeira
reação que lembro foi do Antonio Carlos, que começou a se olhar no espelho, a puxar os
lábios para engrossá-los, dizendo: “Acho que sou mulato!” Conto isso para indicar que
nós, adolescentes, começamos por aí a tomar consciência da mestiçagem como algo
próximo de nós, não como fato externo, mas como algo de que certamente
participávamos, nós que éramos de famílias antigas, formadas num tempo em que eram
intensas as relações sexuais entre senhores e escravas"
(entrevista a Antônio Cândido, Revista Brasileira de Ciências Sociais)

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 135


Capítulo III

Sérgio Buarque de Holanda – Raízes do Brasil (1933)

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado


de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é,
nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências.
Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas
ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e
hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras
excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à
perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso
trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de
outro clima e de outra paisagem.
Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a
tentativa, caberia averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de
convívio, instituições e ideias de que somos herdeiros.

Sergio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 15.

Engenho de Itamaracá, Frans Post, 1647

Fonte: https://ensinarhistoriajoelza.com.br/para_colorir_engenho_frans_post/

136 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Comentário:

Sérgio Buarque de Holanda foi um dos mais importantes historiadores do


Brasil, para além de crítico literário e jornalista. Em Raízes do Brasil, o autor engloba
diversos capítulos (entre os quais se encontram, respectivamente, Fronteiras da
Europa, Trabalho e Aventura, Herança Rural, O Semeador e o Ladrilhador, O
Homem Cordial, Novos Tempos e Nossa Revolução), levando a cabo uma reflexão
sobre o processo de colonização e sobre as suas diversas consequências para a
formação do povo e da cultura brasileiros. Holanda considera que à herança cultural
do Brasil subjaz uma colonização ibérica, a qual possui uma característica cultural
que iria afetar fortemente o Brasil: o personalismo ou a cultura da personalidade, a
qual desvalorizaria os processos hereditários.
Com o termo híbrido ibéria, o autor situa num mesmo espaço geográfico
Portugal e Espanha, ainda que, pouco depois, os caracterize autonomamente,
considerando, tal como Freyre, as peculiaridades da colonização portuguesa,
afirmando que os portugueses têm uma exclusividade natural para a exploração dos
trópicos. Holanda destaca, igualmente, a centralidade do domínio rural que qualquer
discussão sobre a realidade brasileira exige, focando a importância que teve para a
formação do povo brasileiro o modo de produção escravista.
Os valores do domínio rural e a herança portuguesa teriam, assim, marcado a
formação inicial do Brasil, os quais, no seu presente histórico, Holanda considerava
encontrarem-se em dissolução, ressaltando os novos ventos do americanismo sobre o
país. Holanda procurava, por conseguinte, demonstrar que se operava um processo de
desportuguesamento na sociedade brasileira sua contemporânea, para cujo processo
havia contribuído quer a abolição da escravatura, em 1888, quer a imigração de
diversos povos europeus e asiáticos, quer a construção de novas infraestruturas de
transporte. Todos estes acontecimentos ajudavam, portanto, a aniquilar a herança de
características autoritárias que conservava o direito ao privilégio. Desde as rebeliões
do século XVIII, passando pela chegada da família real portuguesa, em 1808, à
proclamação da independência, em 1822, o Brasil seguia, então, uma evolução
própria e autónoma, cada vez mais distante da ex-metrópole que o colonizara.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 137


Capítulo III

A metáfora freiriana da Casa Grande adapta-se, aliás, perfeitamente,


à situação brasileira de então.
Em 1910, São Paulo ainda era uma pequena capital da província
que via erguer as primeiras mansões e vilas das grandes famílias cuja riqueza
advinha das fazendas de gado ou de café. Até então, os senhores nordestinos,
assim como os novos barões do café do Sudeste, permaneciam a maior parte
do seu tempo nas suas fazendas nordestinas ou do Sudeste. Este facto
exemplifica o quanto a essência da oligarquia rural marca, definitivamente, o
espaço sociogeográfico brasileiro e o caciquismo coronelista, ainda hoje tão
presente, assim como, no plano sociopolítico e imagético, o imaginário
coletivo nacional e as estruturas políticas brasileiras "cujo signo distintivo de
poder será sempre a posse de terras" (Leitão, 2007, p. 182).
Ora, será a ascensão de uma burguesia industrial que vai conferir um
papel de vanguarda intelectual à cidade de São Paulo. Como menciona
Sérgio Miceli (2003), desde a Semana de Arte Moderna de 1922, até à
criação da USP, as iniciativas culturais foram promovidas por uma classe
que pretendia a reforma do sistema oligárquico, sem que tal, contudo,
representasse uma alteração para as camadas trabalhadoras ou para os
estratos médios. É assim que a criação de um projeto reformista cruza,
interfere e dialoga com movimentos de vanguarda literários.
Neste contexto, postos de redação ou de direção de vários
periódicos cabem a autores modernistas. Para além da colaboração na
imprensa escrita, alguns intelectuais modernistas filiam-se em correntes
partidárias, contribuem para a administração de instituições locais ou
federativas ou assumem cátedras de ensino.
São Paulo torna-se, então, no catalisador da modernidade,
encetando-se um processo estético no qual o projeto de renovação da
linguagem poética se inspira, contraditória, mas também harmoniosamente,
nas vanguardas europeias.

138 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1.2.1. AUTORES MAIS REPRESENTATIVOS

1.Manuel Bandeira exemplares, por ele próprio


(1886-1968) custeada, uma obra que ainda
denota traços românticos e
Manuel Carneiro de Sousa simbolistas. Dois anos depois,
Bandeira Filho nasceu no Recife, a publica o seu segundo livro,
19 de abril de 1886. Foi poeta, Carnaval, iniciando-se, então, na
crítico literário e de arte, professor prática do verso livre, e, em 1924,
de literatura e tradutor. Ritmo Dissoluto, o qual já
Em 1904 terminou o curso de incorpora elementos que viriam a ser
Humanidades e instalou-se em São adotados pelo Modernismo: "A
Paulo, onde iniciou o curso de mim parece bastante evidente que o
Arquitetura na Escola Politécnica de Ritmo Dissoluto é um livro de
São Paulo. Viu-se, porém, obrigado transição entre dois momentos da
a interrompê-lo devido à minha poesia. Transição pra quê?
tuberculose. Buscou tratamentos e Para a finação poética dentro da
repouso em Campanha, Teresópolis qual cheguei..." (Bandeira, 1986, p.
e Petrópolis, até que, com a ajuda 71). Segundo Bosi (2015), Bandeira
do pai, é enviado para a Suíça, tendo foi "talvez o mais feliz incorporador
estado internado no Sanatório de de motivos e termos prosaicos à
Clavadel, de junho de 1913 a literatura brasileira" (p. 361)
outubro de 1914, onde conheceu o Em 1935, é nomeado inspetor
poeta francês Paul Éluard (1895- federal do ensino e, em 1936, é
1952). O início da Primeira Guerra publicada uma coletânea de estudos
Mundial faz com que tenha de sobre a sua obra, Homenagem a
voltar ao Brasil e coincide com o Manuel Bandeira, subscrita por
momento em que se inicia na alguns dos mais destacados críticos
literatura. da época, a qual lhe permite aceder à
Publica, em 1917, A Cinza das notoriedade e consagração nacional.
Horas, numa edição de 200 De 1938 a 1943, é professor de

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 139


Capítulo III

literatura no Colégio D. Pedro II, e, servido" (1997, p. 30). Escritos


em 1940, é eleito membro da entre 1924 e1930, "os anos de
Academia Brasileira de Letras. maior força e calor do movimento
Posteriormente, é nomeado modernista" (1997, p. 91),
professor de Literaturas Hispano- Libertinagem encontra-se, como o
Americanas na Faculdade de próprio afirma, entre os seus livros
Filosofia da Universidade do Brasil, "que está mais dentro da técnica é
cargo do qual se aposentou, em estética do modernismo" (1997, p.
1956. 91).
Esteticamente, Manuel Bandeira Manuel Bandeira faleceu no dia
possui um estilo simples e direto, 13 de outubro de 1968, aos 82
abordando temáticas quotidianas, anos.
mas também universais, lidando
com formas que a tradição Principais obras: Poesia: A Cinza
académica, então, desvalorizava. das Horas (1917); Carnaval (1919);
Busca e experimenta constantemente Libertinagem (1930); Estrela da
novos tipos de expressão (inovações Manhã (1936); Lira dos
vocabulares, mudanças rítmicas, Cinquent'anos (1940).
experimentações linguísticas), Prosa: Crônica da Província do
visando aperfeiçoar os seus versos, o Brasil (1936); Guia de Ouro Preto,
que o fez aproximar-se de diversos Rio de Janeiro (1938); Noções de
artistas, seus contemporâneos, com História das Literaturas (1940);
quem trocaria informações e Autoria das Cartas Chilenas (1940);
debateria conhecimentos. Literatura Hispano-Americana
É na obra Libertinagem, (1949); De Poetas e de Poesia -
publicada em 1930, que Manuel Rio de Janeiro (1954); A Flauta de
Bandeira incorpora os valores Papel - Rio de Janeiro (1957);
modernistas: "A partir de Itinerário de Pasárgada (1957);
Libertinagem é que me resignei à Andorinha, Andorinha (1966).
condição de poeta quando Deus é

140 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Manuel da Bandeira – "Os Sapos" (1918)

Enfunando os papos, Urra o sapo-boi:


Saem da penumbra, - "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
Aos pulos, os sapos. - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
A luz os deslumbra.
Brada em um assomo
Em ronco que aterra, O sapo-tanoeiro:
Berra o sapo-boi: - A grande arte é como
- "Meu pai foi à guerra!" Lavor de joalheiro.
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
Ou bem de estatuário.
O sapo-tanoeiro, Tudo quanto é belo,
Parnasiano aguado, Tudo quanto é vário,
Diz: - "Meu cancioneiro Canta no martelo".
É bem martelado.
Outros, sapos-pipas
Vede como primo (Um mal em si cabe),
Em comer os hiatos! Falam pelas tripas,
Que arte! E nunca rimo - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Os termos cognatos.
Longe dessa grita,
O meu verso é bom Lá onde mais densa
Frumento sem joio. A noite infinita
Faço rimas com Veste a sombra imensa;
Consoantes de apoio.
Lá, fugido ao mundo,
Vai por cinquüenta anos
Sem glória, sem fé,
Que lhes dei a norma:
No perau profundo
Reduzi sem danos
E solitário, é
A fôrmas a forma.
Que soluças tu,
Clame a saparia
Transido de frio,
Em críticas céticas:
Não há mais poesia, Sapo-cururu
Mas há artes poéticas..." Da beira do rio...

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 141


Capítulo III

Comentário:

O poema de Manuel da Bandeira, "Os sapos", foi lido, entre apupos, pelo
poeta Ronald de Carvalho, no Teatro Municipal de São Paulo, no segundo dia da
Semana de Arte Moderna de 1922. Podemos verificar a recusa e a afronta aos
parnasianos e aos pós-parnasianos, cujo esteticismo e formalismo são caricaturados
ao longo dos versos. Apesar de “Os sapos” datar de 1918, o poema revela, desde
logo, a recusa dos parâmetros e técnicas perfeccionistas parnasianas, atitude esta que
se viria a manifestar mais tarde, no poema-manifesto Poética.

2. Mário de Andrade ano de 1920 colabora com diversos


(1893-1945) periódicos - A Gazeta, A Cigarra, O
Echo, Papel e Tinta - e frequenta o
Mário Raul de Moraes Andrade estúdio do escultor Victor Brecheret
nasceu em São Paulo, em 1893. Foi (1894 - 1955). Em 1921, escreve
poeta, fotógrafo, cronista, para o Jornal do Comércio a série
romancista, crítico de literatura e de Mestres do Passado, insurgindo-se
arte, musicólogo e pesquisador do contra o parnasianismo, e, no ano
folclore brasileiro. seguinte, colabora com a revista
Conclui o curso de piano pelo Klaxon.
Conservatório Dramático e Musical Em fevereiro de 1922, é um dos
de São Paulo em 1917, no mesmo idealizadores da Semana de Arte
em que, sob o pseudónimo de Moderna, ocasião em que é vaiado,
Mário Sobral, publica o seu quando lê os seus poemas no palco
primeiro livro de versos, Há Uma do Teatro Municipal de São Paulo.
Gota de Sangue em Cada Poema. Data, igualmente, de 1922, o seu
Conhece Oswald de Andrade (1890 segundo livro, Paulicéia Desvairada,
- 1954) e assiste à exposição considerado um marco na literatura
modernista da pintora Anita moderna brasileira.
Malfatti (1889 - 1964). Durante o

142 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Em 1923, compra uma máquina Folclore. É, também, neste ano, que,


fotográfica Kodak e exerce a num entrelaçamento entre Literatura
atividade de fotógrafo até 1931. e música, Mário de Andrade
Em 1924, realiza com Olívia viabiliza o Congresso da língua
Guedes Penteado (1872 - 1934), nacional cantada, com a perspectiva
Oswald de Andrade (1890-1954), de valorização da cultura como uma
Tarsila do Amaral (1886-1973), ferramenta qualitativamente
entre outros, uma viagem às cidades reformadora da sociedade. Funda,
históricas mineiras, mostrando em 1942, juntamente com outros
interior o do país ao poeta franco- intelectuais contrários ao regime
suíço Blaise Cendrars (1887 - ditatorial do Estado Novo, a
1961). Associação Brasileira de Escritores
Em 1927, viaja pela região (Abre), entidade que, então, lutaria
amazónica, e, no ano seguinte, pelo pela redemocratização do país.
Nordeste brasileiro, registando em Colabora com o Diário de S. Paulo
fotografia paisagens urbanas e rurais e com a Folha de S. Paulo, e, ainda
e os seus habitantes. Lança, em nesse mesmo ano, no salão de
1927, o romance Amar, Verbo conferências da Biblioteca do
Intransitivo, momento a partir do Ministério das Relações Exteriores,
qual inicia a sua colaboração no ministraria a célebre conferência O
Diário Nacional, órgão do Partido movimento modernista.
Democrático (PD), ao qual se filia. Com efeito, vinte anos depois da
Em 1928, lança Macunaíma, Herói Semana de Arte Moderna, Mário de
sem Caráter e Ensaio Sobre Música Andrade, assim como Oswald de
Brasileira, e, nos anos subsequentes, Andrade, fizeram revisões críticas
Compêndio da História da Música sobre o Movimento a que deram
(1929), Modinhas Imperiais (1930) origem. A Semana de 22 é, de resto,
e Música, Doce Música (1933). um episódio de relevância extrema
Em 1937, convida o casal Lévi- no quadro da história da arte, da
Strauss para ministrar um curso de cultura e da literatura brasileiras.
etnografia, criando, com Lévi- Analisando a sua trajetória, assim
Strauss, a Sociedade de Etnografia e como as dos restantes modernistas,

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 143


Capítulo III

Mário de Andrade reflete sobre a conceitual, um discurso estético.


amplitude e o alcance do Nele se desenvolvem ou se apontam
movimento, mas também sobre as certos temas que trabalham de longa
suas falhas. Segundo Bosi (Folha de data a consciência artística de Mário
São Paulo, 08/02/1992), é possível de Andrade: problemas de
ler O Movimento Modernista linguagem, de liberdade da pesquisa
graças à articulação de três tipos de formal, de vinculação do escritor
discurso: com as séries social e política".
"1- um discurso narrativo, que Mário de Andrade falece na
vai do autobiográfico ao grupal e cidade de São Paulo, em 1945.
volta deste para aquele: o que dá à
palestra um discreto mas inequívoco Principais obras (romances,
tom de confidência oscilante entre o poesias, críticas, crónicas, ensaios):
puro intimismo e a memória Há uma Gota de Sangue em Cada
polêmica de toda uma geração; Poema (1917); Paulicéia Desvairada
2- um discurso histórico- (1922); A Escrava que não é Isaura
genético, que entende situar o (1925); Primeiro Andar (1926);
movimento em uma dimensão Clã do Jabuti (1927); Amar, Verbo
temporal precisa (o primeiro pós- Intransitivo (1927); Macunaíma
guerra) e proceder à sua (1928); O Aleijadinho de Álvares
interpretação no interior da vida de Azevedo (1935); Poesias (1941);
brasileira. O seu eixo é também O Movimento Modernista (1942);
polêmico: a condição paulista da O Empalhador de Passarinhos
Semana e dos participantes mais (1944); Lira Paulistana (1946);
ligados a Mário; Contos Novos (1947); Poesias
3- um discurso crítico e, nos Completas (1955); O Banquete
momentos de mais alta tensão (1978).

144 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Atentemos, de seguida, num excerto de Amar, Verbo Intransitivo e num


excerto de Macunaíma:

Mário de Andrade – Amar, Verbo Intransitivo (1927)

Laura, Fräulein tem o meu consentimento. Você sabe: hoje esses mocinhos...
é tão perigoso! Podem cair nas mãos de alguma exploradora! A cidade... é uma
invasão de aventureiras agora! Como nunca teve! Como nunca teve, Laura... Depois
isso de principiar... é tão perigoso! Você compreende: uma pessoa especial evita
muitas coisas. E viciadas! Não é só bebida não! Hoje não tem mulher-da-vida que não
seja heterônoma, usam morfina... E os moços imitam! Depois as doenças!„ Você
vive em sua casa, não sabe„ é um horror! Em pouco tempo Carlos estava sifilítico e
outras coisas horríveis, um perdido!

ASSIS, Machado de. Obra completa. Vol. I. São Paulo: Nova Aguilar, 1997.

Comentário:

Desde o final do século XIX, e durante a primeira metade do século XX,


Mário de Andrade vive na cidade, culturalmente efervescente, de São Paulo. Assistiu,
consequentemente, à transformação da burguesia paulista. No primeiro romance de
Mário de Andrade, Amar, Verbo Intransitivo, o autor relata a história de uma família
pecuarista, cujo patriarca abandona a fazenda para morar numa mansão no elitizado
bairro paulista Higienópolis. A preceptora alemã (de origem prussiana) que o
patriarca contrata tem, para além da formação intelectual das três filhas e do filho
Carlos, um papel dirigente na educação sexual deste. Os valores rurais encontram-se
profundamente ancorados no seio desta família pecuarista, cujos ditames dependem
da voz e ação do patriarca. Mário de Andrade utiliza, já então, uma linguagem
moderna, recorrendo a uma sintaxe brasileira, não normativa, modificando a
ortografia de algumas palavras.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 145


Capítulo III

Mário de Andrade - Macunaíma (1928)

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era


preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão
grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma
criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou mais de seis


anos não falando. Sio incitavam a falar exclamava:

— Ai! que preguiça!. . . e não dizia mais nada.

Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho


dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na
força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas
si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também
espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo
do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos
guaimuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã se
aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã
se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos, e freqüentava
com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças
religiosas da tribo.

Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se


esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói
mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando
palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.

Mário de Andrade. Macunaíma, o herói sem nenhum carácter. São Paulo: Secretaria da
Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978, pp. 7-8.

146 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Comentário:
Mário de Andrade, parodiando os primeiros cronistas e viajantes, o Barroco,
e até o parnasianismo, recorre, nesta obra, à estética modernista, a qual, como Oswald
já nos lembrara, preocupa-se com a paródia, e não com a imitação da realidade. Em
Macunaíma, o autor, através da história de um índio que se desloca para a cidade de
São Paulo, explora temáticas que havia abrangido nos seus estudos musicais e
etnográficos, como o afastamento entre a cidade e o campo, a apropriação e
desapropriação cultural, numa aplicação à prosa dos recursos que havia aplicado à
obra poética.
Macunaíma é um herói sem carácter, filho de índios, mas que nasce negro,
no Uraricoera, lugar primitivo e silencioso. Num dado momento da narrativa,
Macunaíma desloca-se, com os irmãos, à cidade de São Paulo, representada como
uma máquina que, interiorizando o progresso, faz surgir uma nova civilização.
Contrapondo o elemento primitivo e o elemento civilizado, Mário de Andrade elabora
uma denúncia dos novos tempos modernos, os quais se encontram focalizados no
ritmo e aceleração frenética das cidades e no consumismo que daqui decorre. O
primitivo corresponderia, neste sentido, a uma liberdade perdida, num mundo em
progresso que tudo absorve e que a si submete mundos, vivências e cosmovisões.
Segundo Bosi (2015), nesta obra, o material folclórico "e o tratamento
literário faz-se via Freud" (p. 376), sendo que a transformação final do herói é, tão
somente, o último ato de uma série de transformações, num estilo narrativo que
mescla a lenda, o épico-livre, a crónica e a paródia, "jogando sabiamente com níveis
de consciência e de comunicação diversos" (p. 378).

O vanguardismo desta obra apenas seria reconhecido posteriormente,


quando, em 1969, Joaquim Pedro de Andrade transpôs a obra para o cinema.
Com efeito, no final da década de 1960, Macunaíma estreou no cinema,
sendo um sucesso de bilheteira. Sob a realização de Joaquim Pedro de Andrade, o
filme vai revolucionar a estética do Cinema Novo. O herói sem carácter, retratado no
quadro de um movimento pouco apelativo para a maioria da população, devido ao
facto de ser percecionado como de difícil compreensão, vai, ao contrário do esperado,
atingir e atrair um número de espectadores surpreendente.

Filme "Macunaíma" (1969)


VER: https://www.youtube.com/watch?v=XoyYFumkOqU

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 147


Capítulo III

3. Oswald de Andrade Em 1922, participa ativamente


(1890-1954) da Semana de Arte Moderna, onde
lê excertos de A Trilogia do Exílio.
José Oswald de Souza Andrade Nesse mesmo ano, integra o grupo
nasceu a 11 de janeiro de 1890, na da revista Klaxon e publica Os
cidade de São Paulo. Filho da condenados, com capa de Anita
burguesia paraense (pelo lado Malfatti, através da editora do seu
materno) e mineira (pelo lado amigo Monteiro Lobato.
paterno), Oswald, ainda estudante Na prosa, o autor estreia-se,
em direito, monta um atelier de portanto, com a Trilogia do Exílio:
pintura em 1909. Os condenados (depois rebatizado
Em 1911, interrompe os estudos Alma) (publicado em 1922), A
de Direito e ruma ao continente Estrela de Absinto (publicado em
europeu. Aqui, conhece a jovem 1927) e A Escada (publicado em
adolescente de 13 anos, Carmen 1934)9.
Lydia, cuja representação literária Crítica ao conservadorismo da
parece surgir em A Escada, na pele pequena-burguesia paulistana, a
da personagem Vitória Agonia, trilogia representa diferentes
jovem de 13 anos com quem o personagens em luta, castigos,
protagonista, Jorge d'Alvelos, mortes, sofrimentos, num libelo
estabelece uma relação. acusatório à família burguesa
Em 1917, cria o primeiro grupo tradicional e às imposições religiosas
modernista, juntamente com Mário que daqui advêm. Representação da
de Andrade, Di Cavalcanti,
Guilherme de Almeida e Ribeiro 9
A trilogia Os Condenados reúne os três
Couto. Um ano depois, em resposta romances que Oswald de Andrade havia
planeado para a inicialmente denominada
à crítica que o amigo Monteiro Trilogia do Exílio: Os Condenados (depois
Lobato havia feito à exposição de rebatizado Alma) (publicado em 1922), A
Estrela de Absinto (publicado em 1927) e
Anita Malfatti, Oswald de Andrade A Escada (publicado em 1934) – que,
defende as novas tendências primeiramente, teve o título A Escada de
artísticas e a arte expressionista de Jacó, depois A Escada Vermelha e,
finalmente, em 1941, o título que guardaria
Anita. até à atualidade, A Escada.

148 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

passagem da década de 1920 para a Apesar de a geração modernista


década de 1930, figura a decadência ainda estar a dar os primeiros
das relações amorosas e da passos, Alma e A Estrela de Absinto
cosmovisão burguesa, num processo já encerram uma crítica à posição
criativo de uma liberdade estilística elitista dos intelectuais
cuja linguagem nos reenvia para o cosmopolitas, oriundos de classes
cinema. sociais que haviam orientado
Constituindo uma novidade no politicamente o Brasil nas primeiras
panorama literário brasileiro, onde três décadas do século 20 (e
se incluem elementos satíricos da alheados das questões sociais que os
realidade do país e representações modernistas de segunda geração irão
críticas da História e sociedade tão habilmente tratar). Contudo,
brasileiras contemporâneas do autor, apesar desta crítica à (e reflexão
a trilogia inova no estilo, na sobre a) elite intelectual brasileira da
estrutura narrativa e na incorporação época do presente da narrativa, o
de uma linguagem informal, Oswald de Alma e de A Estrela de
sobretudo quando se encontram Absinto ainda se centra na
referências aos ambientes de experiência individual das
prostituição. A psicogeografia dos personagens, as quais se encontram
três romances situa-se na cidade de em crise, num mundo em crise,
São Paulo, os quais incorporam, sendo a subjetividade valorizada, em
para além de elementos da realidade detrimento do movimento geral da
e do contexto históricos do presente sociedade.
da narrativa, diferentes experiências Em 1923, une-se à pintora
pessoais do autor. A pequena e modernista Tarsila do Amaral, na
média burguesia do mundo Europa, quando então tem contato
paulistano da arte inspiraram, por com as diversas vanguardas
conseguinte, a burguesia boémia e artísticas. Vive, nesse período, entre
ociosa dos três romances, cuja Paris e São Paulo, viajando
consciência e cosmovisão se opõem constantemente entre as duas
radicalmente à consciência e cidades. Em 1924, juntamente com
cosmovisão das classes populares. o seu amigo, o poeta francês,

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 149


Capítulo III

mutilado de guerra, Blaise Cendrars, Herdeiro de uma fazenda,


e com Mário de Andrade, Tarsila Oswald sofrerá, no plano
do Amaral, Paulo Prado, Goffredo económico, em 1929, com a queda
da Silva Telles e René Thioller, cria da bolsa de valores de Nova Iorque.
a caravana modernista, a qual faz Adere ao movimento comunista, em
uma excursão através das cidades 1931, quando, depois de uma
históricas mineiras com o objetivo viagem ao Uruguai, conhece Luís
de (re)descobrir o Brasil. Carlos Prestes. Três anos depois,
Em 1927, na sequência de uma publica A Escada.
série de crónicas em que critica A sua militância comunista
Plínio Salgado e Menotti Del terminaria em 1945, quando
Pichia, Oswald inicia um processo abandona o Partido Comunista do
de divergências com o grupo verde- Brasil (PCB), em divergência com
amarelo, o qual culminará com uma Luís Carlos Prestes. Em 1948,
cisão entre o grupo modernista que criticará fortemente a geração de
se havia formado em 1922. Um ano escritores de 1945, quando então
depois, recebe de presente de reafirma as conquistas alcançadas,
aniversário um quadro de Tarsila, no âmbito artístico, pela geração
que ambos batizam Abaporu (aquele modernista de 1922.
que come, em língua tupi). Nesse Falece aos 64 anos, com graves
mesmo ano, redige o Manifesto problemas financeiros, no entanto já
Antropófago e funda, juntamente nacionalmente consagrado como um
com Raul Bopp e Antônio de dos grandes escritores brasileiros da
Alcântara Machado, a Revista de sua geração.
Antropofagia. Em 1929, rompe
com os amigos Mário de Andrade (a Principais obras (prosa,
quem, no entanto, prestaria uma dramaturgia, manifestos, ensaios,
homenagem póstuma, em 1946, no memórias e poesia): Os Condenados
II Congresso Brasileiro de (1922); Memórias Sentimentais de
Escritores), Paulo Prado e Antônio João Miramar (1924); Manifesto
de Alcântara Machado. Pau-Brasil (1925); Pau-Brasil
(1925); Estrela de Absinto (1927);

150 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Primeiro Caderno de Poesia do Messiânica (1946); O Rei


Aluno Oswald de Andrade (1927); Floquinhos (1953); Um Homem
Manifesto Antropófago (1928); Sem Profissão (1954).
Serafim Pontes Grande (1933); O
Homem e o Cavalo (1934); O Rei
da Vela (1937); A Morta (1937);
Marco Zero I - A Revolução
Melancólica (1943); Marco Zero II
– Chão (1946); A Crise da Filosofia

Oswald de Andrade – in Canto de


Comentário:
Regresso à Pátria (1925)
O poema, primeiramente
publicado na revista Pau-Brasil, parodia
Minha terra tem palmares
a literatura canónica brasileira, relendo o
Onde gorjeia o mar
poema de Gonçalves Dias à luz das suas
Os passarinhos daqui
debilidades e ambiguidades, trazendo,
Não cantam como os de lá.
para primeiro plano, o urbano, em
detrimento do ruralismo idealizado.
Minha terra tem mais rosas
Oswald de Andrade apropria-se do
E quase que mais amores
nacionalismo ufanista de Gonçalves
Minha terra tem mais ouro
Dias, convertendo-o "em uma espécie de
Minha terra tem mais terra.
provincianismo progressista" (Leitão,
2007, p. 188), transformando-o, por
Ouro terra amor e rosas
conseguinte, numa representação crítica
Eu quero tudo de lá
do ufanismo romântico. O Brasil
Não permita Deus que eu morra
saudoso de Gonçalves Dias transmuta-se
Sem que volte para lá.
na cidade paulistana, num tom
irreverente, polémico e humorístico que
Não permita Deus que eu morra
incorpora elementos do presente, do
Sem que volte pra São Paulo
progresso e da máquina.
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 151


Capítulo III

4. Cassiano Ricardo10 Foi, ainda, o criador das revistas


(1895-1974) Planalto (1930) e Invenção (1962).
Em 1937, juntamente com
Cassiano Ricardo Leite nasceu Menotti del Picchia e com Cândido
em São José dos Campos (Estado de Mota Filho, fundou a Bandeira,
São Paulo), em 26 de julho de movimento político que se
1895. Foi um poeta, jornalista e contrapunha ao Integralismo.
ensaísta literário. Dirigiu, igualmente, o jornal O
Fez os primeiros estudos na sua Anhanguera, que, defendendo a
cidade natal e, aos 16 anos, publicou ideologia da Bandeira, difundia a
o primeiro livro de poesias, Dentro fórmula Por uma democracia social
da noite. Concluiu o curso de brasileira, contra as ideologias
Direito no Rio de Janeiro, em 1917, dissolventes e exóticas.
tendo sido um dos líderes do Em 9 de Setembro de 1937, é
movimento pela Semana de Arte eleito para a Academia Brasileira de
Moderna de 1922. Participou Letras.
ativamente dos grupos Verde Em 1950, foi eleito presidente
Amarelo e Anta, juntamente com do Clube da Poesia em São Paulo
Plínio Salgado, Menotti del Picchia, (tendo sido, posteriormente, várias
Raul Bopp e Cândido Mota Filho. vezes reeleito), instituindo um curso
De 1923 a 1930, foi redator do de Poética e iniciando a publicação
Correio Paulistano e, de 1940 a da coleção Novíssimos, a qual
1944, dirigiu, no Rio de Janeiro, A procurava dar a público uma nova
Manhã. Em 1924, fundou a poesia brasileira.
Novíssima, uma revista literária que Tal como os demais
defendia a causa modernista e o modernistas, antes de aderir a este
intercâmbio cultural pan-americano. movimento, Cassiano Ricardo
aplicou os postulados do
Neossimbolismo e do
10
As informações biográficas de Cassiano Neoparnasianismo, respectivamente,
Ricardo tiveram como fonte primordial as nas suas primeiras manifestações
informações disponibilizadas pela
Academia Brasileira de Letras. poéticas, Dentro da noite e A Frauta

152 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

de Pã. O Brasil tupi e o Brasil como os movimentos da poesia de


colonial surgem, apenas, como fonte vanguarda das décadas de 1950 e de
de inspiração a partir de 1926 1960, sendo Jeremias Sem-Chorar,
quando, então ligado ao movimento obra de 1964, "representativa desta
Verde-amarelismo de Menotti, posição de um poeta experimental
Cândido Motta Filho e Plínio que veio de bem longe em sua
Salgado, se vai inspirar nos estados vivência estética e, nesse livro, está
de alma primitivos (ainda que em pleno domínio das técnicas
ressurja a visão do mito do bom gráfico-visuais vanguardistas"
selvagem). Gradualmente, as (Academia Brasileira de Letras11).
escolhas de Cassiano Ricardo No final da década de 1960, o
foram-se centrando na temática autor continua a modernizar a sua
paulista, desde os bandeirantes (em obra, tendo-se desdobrado "na
1940, Cassiano Ricardo publica atenção dedicada à arte experimental
Marcha para Oeste, livro de que o tem [teve], numa de suas áreas
História que se debruça sobre o (a chamada poesia-práxis) por
movimento dos bandeirantes) à entusiasta e mentor" (Bosi, 2015, p.
vivência cafeeira e, desta, à vivência 392).
moderna da urbe paulista. Faleceu no Rio de Janeiro, em
Em 1943, com a publicação de 14 de janeiro de 1974.
O Sangue das Horas, o autor inicia
uma nova fase, "sensível às novas Principais obras:
correntes do lirismo universalizante" Poesia: Dentro da Noite (1915);
(Bosi, 2015, p. 392), elemento que A Frauta de Pã (1917); Vamos
se vincará com maior profundidade Caçar Papagaios (1926); Martim-
em Um Dia depois do Outro, obra Cererê (1928); Deixa Estar, Jacaré
de 1947, quando abandona, (1931); O Sangue das Horas
definitivamente, "a exploração do (1943); Um Dia Depois do Outro
Brasil primevo e colorido" (Bosi,
2015, p. 392). URL:
11

Acompanhou as experiências do http://www.academia.org.br/academicos/


cassiano-ricardo/biografia
Concretismo e do Praxismo, assim

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 153


Capítulo III

(1947); A Face Perdida (1950); Brasileira (1938); O Negro na


Poemas Murais (1950); Sonetos Bandeira (1938); A Academia e a
(1952); João Torto e a Fábula Poesia Moderna (1939); Marcha
(1956); O Arranha-céu de Vidro para o Oeste (1943); A Academia e
(1956); Poesias Completas (1957); a Língua Brasileira (1943); O
Montanha Russa (1960); A Difícil Tratado de Petrópolis (1954); O
Manhã (1960); Jeremias Sem- Indianismo de Gonçalves Dias
Chorar (1964); Antologia Poética (1964); Poesia, Práxis e 22 (1966);
(1964). Reflexos sobre a Poética de
Prosa: O Brasil no Original Vanguarda (1966).
(1936); Discurso na Academia

Frédéric Manuel - Fotografia do Largo da Sé (São Paulo) (1906)


Fonte: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/bras/1067

154 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

5. Menotti Del Picchia12 A simpatia pelo futurismo


(1892-1988) florentino estender-se-ia para além
desta fase de Del Picchia, tendo
Paulo Menotti Del Picchia merecido a simpatia do grupo
nasceu em São Paulo, em 1892. modernista, depois de 1922. Este
Diplomou-se em Ciências e facto explica-se pelo já referido
Letras em Pouso Alegre - Minas processo de modernização acelerado
Gerais, tendo, posteriormente, que o Brasil, então, sofria, o que
estudado Direito na Faculdade de levaria os artistas a configurarem a
Direito de São Paulo, período épica de uma cidade moderna.
durante o qual publica o seu Cidade ainda provinciana, em
primeiro livro de poesias, Poemas termos literários e artísticos, num
do Vício e da Virtude (1913). país ainda destituído de uma
A partir de 1917 reside em São enraizada tradição cultural, São
Paulo, onde é redator de diversos Paulo surge a Del Picchia e aos
jornais. Fundou o jornal A Noite, e modernistas como o local
dirigiu, juntamente com Cassiano privilegiado para uma experiência
Ricardo, os jornais mensais São estética que rompesse com o
Paulo e Brasil Novo. passado recente e desse vida a uma
Foi o principal divulgador do nova modernidade.
futurismo e do seu ideário estético- Em 1922, redigiria um romance
ideológico, entre 1920 e 1922. Nos "erótico-decadente" (Bosi, 2015, p.
artigos que então escrevia no 393), onde, numa projeção que
Correio Paulistano, denunciava, também se encontra na Trilogia do
deste modo, fortes influências dos Exílio, de Oswald de Andrade, se
manifestos do italiano Marinetti, prefigura a imagem do artista
inserindo motivos nacionalistas nas finissecular procurando o não
suas poesias. possível no reboliço e ritmo
acentuado da modernidade (cf. Bosi,
12
As informações biográficas de Menotti 2015).
del Picchia tiveram como fonte primordial Se na sua juventude conviveu
as informações disponibilizadas pela
Academia Brasileira de Letras. com autores que antecederam o

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 155


Capítulo III

Modernismo, após o fim da Propaganda do Estado de São


Primeira Guerra Mundial, Paulo, renomeado Departamento de
aproximou-se do grupo que levaria Imprensa e Propaganda (DIP). Em
avante a Semana de Arte Moderna 1942, dirige o jornal A Noite e, no
de 1922, da qual participou ano seguinte, integra a Academia
ativamente. Grande divulgador das Brasileira de Letras (ABL). Entre
novas tendências estéticas, Menotti 1926 e 1962, ocupa, por diversas
Del Pichia construiu, segundo Bosi vezes, os cargos de deputado
(2015), uma "obra singular no estadual e federal.
contexto modernista, no sentido de Faleceu em São Paulo a 23 de
uma descida de tom (um maldoso agosto de 1988.
diria: nível) que lhe permitiu
aproximar-se do leitor médio e roçar Principais obras:
pela cultura de massa" (p. 393). Poesia: Poemas do Vício e da
Nos anos que se seguem à Virtude (1913); Moisés (1917);
Semana de Arte Moderna de 1922 Juca Mulato (1917); Máscaras
integra os movimentos Verde- (1920); A Angústia de D. João
amarelo e Anta, com Cassiano (1922); O Amor de Dulcinéia
Ricardo e Plínio Salgado, (1926); República dos Estados
agremiações político-literárias de Unidos do Brasil (1928); O Deus
caráter nacionalista que se opunham sem Rosto (1968); Noturno
ao movimento Pau-brasil de Oswald (1971).
de Andrade, e, em 1936, adere ao
movimento Bandeira, movimento Prosa (romances, contos,
cultural fundado por Cassiano crónicas): Laís (1921); O Pão de
Ricardo, de carácter também Moloch (1921); O Homem e a
nacionalista, e responsável pela Morte (1922); A Mulher que Pecou
edição da revista Anhanguera. (1922); A Outra Perna do Saci
Em 1938 é indicado pelo (1926); Dente de Ouro (1923); A
governador Ademar de Barros República 3000 - 1930 (publicado
(1901 - 1969) para a direção do com o título A Filha do Inca, em
Serviço de Publicidade e 1949); A Tormenta (1932); Kalum,

156 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

o Mistério do Sertão (1936); (1940); O Árbitro (1958).


Kummumká (1938); Salomé

6. Raul Bopp alguns anos depois, conheceria


(1898-1984) inúmeros estados brasileiros e vários
países, primeiro, enquanto Cônsul,
Raul Bopp nasceu na Vila depois, enquanto Embaixador.
Pinhal, no Estado do Rio Grande Dos vários locais que percorreu,
do Sul, a 4 de agosto de 1898. um deixar-lhe-ia uma marca especial
Descendente de imigrantes – a Amazónia, a qual percorreria em
alemães mudou-se com a família, 1921: ―A maior volta ao mundo que
quando ainda tinha, apenas, um ano eu dei foi no Amazonas. Canoa de
de idade, para Tupanciretã. Em vela. Pé no chão ouvindo aquelas
1914, realizou várias viagens pelo 1000 e uma noites tapuias. Febre
Brasil, exercendo diversas profissões: [devido à malária que então
pintor de casas, caixeiro de livraria e contraíra] e cachaça‖ (Bopp, 1998,
jornalista. Em 1917, de volta a p. 197). É desse contato coma selva,
Tupanciretã, dedica-se às letras, com os seus habitantes e narrativas,
fundando os semanários O Lutador que nascerá, em 1931, Cobra
e Mignon. Norato.
Quando tinha, Em 1926, foi para São Paulo,
aproximadamente, dezasseis anos, onde mantém contatos com o
Bopp cruzou, pela primeira vez, a Grupo Verde-Amarelo, de Plínio
fronteira do país, tendo como Salgado, Menotti Del Picchia e
destino o Paraguai. Desde então, Cassiano Ricardo, ocasião em que
várias seriam as viagens que teria ensinado a língua tupi a Plínio
realizaria ao longo da sua vida. Salgado, futuro líder do movimento
Estudou Direito em quatro integralista brasileiro. Em entrevista
cidades diferentes (Porto Alegre, concedida ao Jornal do Brasil, em
Recife, Belém e Rio de Janeiro) e,

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 157


Capítulo III

maio de 1978, Bopp nega, porém, Raul Bopp se apaixonara (fora ele,
tais vinculações. de resto, quem dera a Patrícia
Em 1927, escreveu Buena-dicha Galvão o apelido Pagu), momento
Geográfica, poema em louvor da depois do qual Bopp decide
Coluna Prestes, e, no ano seguinte, abandonar o seu trabalho na
aproximou-se de Oswald de Associação Paulista de Boas
Andrade e de Tarsila do Amaral, Estradas, partindo para a Ásia e para
vindo a integrar o Movimento África. Voltaria, apenas, em 1931,
Antropofágico e a gerir a Revista de para a apresentação da primeira
Antropofagia. edição de Cobra Norato.
Em 1966, Bopp publica uma Cobra Norato inspira-se da
obra dedicada ao movimento viagem que fizera à Amazónia, em
modernista brasileiro (Os 1921, tendo a obra sido,
Movimentos Modernistas (1966)). inicialmente, concebida como um
Aqui, debruça-se sobre o início e o livro infantil. Tornou-se, contudo,
término do grupo antropofágico, numa das mais conhecidas
narrando o itinerário de uma realizações do Movimento
agrupação de que fora participante Antropofágico, na qual a narrativa
ativo, e trazendo a público alguns épico-dramática se centra nas
momentos até então desconhecidos. "aventuras de um jovem na selva
Reconstruindo o itinerário amazônica depois de ter
antropofágico, contribui para o estrangulado a Cobra Norato e ter
conhecimento e para o estudo da entrado no corpo do monstruoso
curta trajetória de um movimento animal" (Bosi, 2015, p. 395). Em
que havia proposto o canibalismo 1933 e 1947 publica,
cultural. Naquela obra estético- respectivamente, Urucungo e
historiográfica e biográfica, ressalta Poesias.
a extinção do núcleo literário É, igualmente, em 1931, durante
antropofágico, em agosto 1929, o uma estadia no Rio de Janeiro, que
qual se verificara, segundo afirma, se torna amigo de Getúlio Vargas,
devido a um changé des dames: quem lhe propõe um posto no
Oswald fugira com Pagu, por quem consulado do Japão, o qual, aceite

158 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

em 1932, marca o início de uma na cidade do Rio de Janeiro no dia


longa carreira diplomática. Durante 2 de junho de 1984, aos 85 anos.
aquela estadia no Rio de Janeiro
tornou-se, igualmente, amigo de um Principais Obras: Poesia: Cobra
jovem escritor da Bahia que, Norato (1931); Urucungo (1933);
recentemente, publicara País do Poesias (1947); Mironga e Outros
Carnaval: Jorge Amado. Poemas (1978). Prosa: Notas de um
Como diplomata (1932-1963), Caderno sobre o Itamaraty (1956);
viveu nos EUA e em diversos países Movimentos Modernistas no Brasil:
da América latina e da Ásia. 1922/1928 (1966); Memórias de
Recebe, em 1977, o prémio um Embaixador (1968); Vida e
Machado de Assis, vindo a falecer Morte da Antropofagia (1977).

7. Alcântara Machado elaboração da primeira constituição


(1901-1935) da República Nova, em 1934).
Trabalhou como redator e
Antônio Castilho de Alcântara colaborador das revistas Terra Roxa
Machado nasceu em São Paulo, em e Outras Terras, da Revista de
1921, no seio de uma família Antropofagia e da Revista Nova.
tradicional. Formado em Direito, Em 1925, viajou para a Europa,
iniciou-se na literatura como crítico onde recolheu impressões que
teatral, no Jornal do Comércio. seriam incluídas no seu livro de
Durante os dez anos em que estreia, Pathé Baby (1926), cujo
exerceu a atividade de escritor e de prefácio haveria de ser feito por
jornalista, experienciou o período Oswald de Andrade. Embora não
preparatório da Revolução de 1930, tivesse participado da Semana de
a fase inicial da sua implantação e o Arte Moderna em 1922,
designado movimento encontrava-se, porém, próximo do
constitucionalista (desde a movimento modernista, insurgindo-
Revolução Paulista (1932), até à se contra uma literatura apegada aos

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 159


Capítulo III

valores estilísticos clássicos tanta secura. E êle então


estritamente europeístas e ao acrescentava poeticamente: ‗Flores
de carne, seios de virgem.‘ Pronto.
convencionalismo literário: As magnólias já não tinham
direito de se queixar (Alcântara
O literato nunca chamava a coisa Machado in Barbosa, 1970, p. 7).
pelo nome. Nunca. Arranjava
sempre um meio de se exprimir Machado brinca, no trecho
indiretamente. Com
circunlóquios, imagens poéticas, apresentado, com o tempo presente,
figuras de retórica, metalepses, com ironia e gozo, ao estilo
metáforas e outras bobagens modernista, recorrendo aos artifícios
complicadíssimas. Abusando. linguísticos tão ao gosto do
Ninguém morria: partia para os
páramos ignotos. Mulher não era movimento modernista.
mulher. Qual o quê. Era flor, Como prosador, trilhou pelos
passarinho, anjo da guarda, doçura caminhos experimentais já traçados
desta vida, bálsamo de bondade, por Mário de Andrade e Oswald de
fada, e, diabo. Mulher é que não.
Depois a mania do sinônimo Andrade, utilizando uma linguagem
difícil. A própria coisa não se leve e bem-humorada, espontânea e
reconhecia nele. Nem mesmo a comunicativa, maestria advinda,
palavra. Palavra. Tudo fora da possivelmente, da sua atividade de
vida, do momento, do ambiente.
A preocupação de embelezar, de jornalista. Como Oswald de
esconder, de colorir. Nada de pão, Andrade, recorreu ao uso da
queijo queijo. Não Senhor. linguagem telegráfica, elíptica e
Escrever assim não é vantagem. cinematográfica, inserindo flashes e
Mas pão epílogo tostado dos
trigais dourados, queijo cortes, facilitando a comunicação
acompanhamento vacum da com o público leitor.
goiabada dulcífica, sim. E bonito. É nos contos de Brás, Bexiga e
Disfarça bem a vulgaridade das Barra Funda que Alcântara
coisas. Canta nos ouvidos. E é
asnático, absolutamente asnático. Machado vai recorrer a uma "ágil
Tem sobretudo esta qualidade. literatura citadina, realista (aqui e ali
(...)O literato não se contentava impressionista), que já não se via
em exclamar: ‗como cheiram as desde os romances e as sátiras
magnólias!‘ Não. As magnólias
eram capazes de se ofender com cariocas de Lima Barreto" (Bosi,

160 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

2015, p. 401), num retrato centrado diferença entre a reprodução


na cidade de São Paulo, em especial caricatural das deformações
fonéticas, no primeiro, e o recurso
nos bairros imigrantes italianos comedido às misturas de
(pese embora o facto de fazer vocabulário e erros de construção
variadas referências aos bairros gramatical no segundo. (...) De
nobres e centrais da cidade- Avenida facto, Alcântara Machado não tem
outro programa: Construir tudo.
Angélica, Higienópolis, Paulista, Até a língua. Principalmente a
Rua Barão de Itapetininga e Largo língua (Carelli, 1985, p. 180).
Santa Cecília). Porém, Alcântara
Machado traz, sobretudo, para a Um elemento fundamental da
narrativa, não os emigrantes obra é a constatação do progresso
italianos ricos da avenida Paulista, metropolitano através da referência
fazendeiros de café, mas antes os a máquinas, símbolos do progresso
ítalo-paulistas dos arrabaldes na década de 1920, pelo que os
pobres, dos bairros operários, meios de transporte têm uma
retratados na simplicidade do seu importância particular, assim como
quotidiano e vida íntima, as suas marcas (Ford, Buick, Lancia,
incorporando na exegese vocábulos Hudson).
e estruturas frasais da língua italiana Alcântara Machado não se ficou
e um olhar "de fora para os novos pela descrição de bairros periféricos
bairros operários e de classe média" e dos estratos médios, então em
(Bosi, 2015, p. 401) que cresciam e crescimento, tendo, igualmente,
se consolidavam na cidade de São descrito o mundo fechado da
Paulo, então em plena mutação: burguesia paulistana, como no
romance (inacabado) Mana Maria"
Em Brás, Bexiga e Barra Funda, em que deu forma convincente a um
Alcântara Machado utiliza a drama familiar" (Bosi, 2015, p.
língua portuguesa tal como é
praticada nos bairros ítalo-
401). A morte prematura, aos 34
paulistas. Mas quando se compara anos, truncar-lhe-ia, porém, "a
a língua macarrônica de um Juó- carreira literária e de homem
Bananère com a de Alcântara público" (Bosi, 2015, p. 400).
Machado, constata-se uma notável

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 161


Capítulo III

Principais obras (contos, (1928); Mana Maria (inacabado);


romance, crónicas e ensaios): Pathé- Cavaquinho e saxofone (1940,
Baby (1926); Brás, Bexiga e Barra publicação póstuma).
Funda (1927); Laranja da China

Tarsila do Amaral, Abaporu (1928) Revista de Antropofagia (1928-1929)


Fonte: https://www.culturagenial.com/abaporu/-itau-extremismos/ Fonte: https://www.select.art.br/acervos

162 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1.3. SEGUNDA FASE DO MODERNISMO: PERIODIZAÇÃO


ESTÉTICA E HISTÓRICO-LITERÁRIA

Considera-se, geralmente, que o segundo ciclo modernista se inicia


em 1928, quando José Américo de Almeida (1887-1980) publica A
bagaceira (no mesmo ano em que Mário de Andrade publica Macunaíma).
A partir deste momento, o eixo social passa a prevalecer, em detrimento do
eixo fisiográfico, revelando o peso do legado agrário no decurso da história
brasileira (Leitão, 2007). Apesar disso, a escrita de José de Almeida ainda
evidencia traços naturalistas, pelo que a publicação de A bagaceira nos
revela, desde logo, duas tendências distintas que sofrerá o Modernismo
brasileiro.
Com efeito, o Modernismo vai pressupor a existência de dois
projetos narrativos distintos, em que um deles se aproxima das vanguardas
europeias (primeira geração modernista), enquanto o outro se vincula com
maior acuidade à tradição realista (segunda geração modernista). Se a
primeira geração modernista executa exercícios de intertextualidade e de
paródia, revelando uma concepção urbano-paulista de modernidade, a
segunda geração impor-se-á no imaginário coletivo nacional como uma
expressão do Brasil profundo.
Os autores da segunda fase do Modernismo, conscientes que estão
quer do subdesenvolvimento agrícola e industrial do país face aos centros
europeus, quer das contradições criadas por uma agricultura mono-
exportadora e por uma industrialização brusca e acelerada, vão criar uma
narrativa de denúncia, centrada na descrição das condições de vida e de
trabalho dos assalariados agrícolas ou industriais, em determinadas regiões
do país (literatura regionalista). O leque temático alarga-se, aprofunda-se a
liberdade de vocabulário e de sintaxe que já se havia manifestado na primeira
fase modernista, predominando uma narrativa regional, onde a denúncia da

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 163


Capítulo III

exploração se expressa, sobretudo, através de topoi 13 neorrealistas.


Verdadeiros documentos que expressam a realidade brasileira, as obras desta
segunda fase modernista (tal como sucede nas outras formas de expressão
artística, como a pintura) incidem a sua temática na exploração, nos
movimentos migratórios forçados pelas duras condições de vida e de
trabalho, na miséria, na seca e na fome.

Cândido Portinari, Criança Morta (1944)

Fonte: https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/crianca-morta-candido-portinari/

13
Topoi (plural de topos): motivo ou temas recorrentes na literatura.

164 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Cândido Portinari, Retirantes (1944)


Fonte: https://www.culturagenial.com/quadro-retirantes-de-candido-portinari/

A década de 1930 foi marcada, não apenas pela chegada de Getúlio


Vargas ao poder, mas igualmente pelo confronto entre diferentes ideologias
e a ascensão ao poder de tendências nazi-fascistas, cujos máximos expoentes
se encontram na Itália, de Benito Mussolini (1883-1945), e na Alemanha,
de Adolf Hitler (1889-1945). No plano cultural, vulgariza-se a rádio e o
cinema14. Os anos que medeiam a chegada à presidência de Vargas e o fim
da Segunda Guerra Mundial (1945) foi conturbado: depressão económica,

14
No cinema, chegavam ao Brasil as produções estrangeiras, como por exemplo Tempos
Modernos (1936) e O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 165


Capítulo III

avanço do nazi-fascismo, crise da política café com leite, ascensão e queda de


Getúlio Vargas.
Esteticamente, a segunda geração modernista acompanha as
mudanças no plano sociopolítico e económico, amadurecendo e
aprofundando as conquistas da geração de 1922. Massaud Moisés (1996)
descreve a segunda geração modernista como pertencendo a um período de
amadurecimento e construção em relação ao primeiro período modernista.
Estabelece que as revoluções de 1930 e de 1932, bem como as irradiações
da Semana de Arte Moderna de 1922 são os acontecimentos mais
importantes desse momento, cuja principal característica seria a ―(re)tomada
de consciência da realidade nacional‖ (p. 162). A ideia de valorização da
cultura nacional, proposta desde a primeira geração do Romantismo, foi
ampliada, surgindo a questão linguística como um elemento cultural central
(tendo sido, portanto, literariamente abordado). Na relação que se estabelece
entre a nova geração e a geração modernista dos anos 1920, Bosi (2005)
destaca que a "prosa de ficção encaminhada para o realismo bruto de Jorge
Amado, de José Lins do Rego, de Érico Veríssimo e, em parte, de
Graciliano Ramos "foi beneficiada pela" descida à linguagem oral, aos
brasileirismos e regionalismos léxicos e sintáticos, que a prosa modernista
tinha preparado" (p. 385).
O ciclo regionalista que se inicia na década de 1930, e que se segue
à derrocada da República Velha e da política do café com leite, surge no
momento em que São Paulo já se tornara no centro da vida artística e
cultural brasileira, no decurso de um processo económico que seria marcado
pela modernização do Brasil. A linguagem regional, a renovação estética e os
temas de interesse nacional (de que é exemplo a narrativa graciliana)
impõem, neste contexto, um novo ritmo à modernidade brasileira.
José Lins do Rego (1901-1957), no seu ciclo de cinco romances
dedicados à economia açucareira (Menino do Engenho (1932), Doidinho
(1933), Bangüe (1934), Usina (1936) e Fogo Morto (1943)), reflete sobre
a decadência da velha ordem dominada por São Paulo e por Minas Gerais,

166 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

antes que o novo ciclo de industrialização das décadas de 1950 e 1960 se


impusesse no quadro nacional brasileiro; precede, igualmente, a prosa de
João Guimarães Rosa e a poesia de João Cabral de Melo Neto, os quais
iriam, já depois de 1945, reinterpretar a dualidade agrário – urbano.
Com os modernistas da segunda geração toma forma, em suma, uma
prosa verdadeiramente regionalista, na qual o carácter documental e realista
predomina e secundariza o tom parodístico da geração anterior. Vanguarda
funde-se, deste modo, com regionalismo, problematizando-se o herói, a
tensão entre o escritor e a sociedade sua contemporânea, o discurso
dialógico, a par da inovação formal e técnica da narrativa.
Sintetizamos, de seguida, as principais características do
Modernismo:

Modernismo:

◊ adoção de uma nova atitude lírica, contrariando quer o excessivo


sentimentalismo romântico, quer o excessivo rigor formal parnasiano;
◊ novas técnicas narrativas e reinvenção da linguagem poética;
◊ inclusão de elementos prosaicos na narrativa;
◊ busca de uma identidade brasileira e de uma linguagem que lhe
subjaza;
◊ experimentalismo linguístico;
◊ emprego da paródia e releitura sarcástica de textos da literatura
nacionalmente consagrada (nomeadamente na primeira geração modernista);
◊ tensão entre cosmopolitismo (primeira geração modernista) e
regionalismo (segunda geração modernista);
◊ compromisso e militância social (segunda geração modernista).

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 167


Capítulo III

Fonte: http://itapemafm.clicrbs.com.br/mundoitapema/

Fotografia com alguns dos nomes mais importantes do Modernismo brasileiro:


Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros

Fonte: https://www.guiadasemana.com.br/arte/noticia/relembre-artistas-e-obras-influentes-da-semana-de-arte-
moderna-de-22

168 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1.3.1. AUTORES MAIS REPRESENTATIVOS

1. José Américo de Almeida humana e, sobretudo, à literatura.


(1887-1980) Atua, igualmente, no meio
intelectual paraibano, estabelecendo
José Américo de Almeida nasceu relações com os novelistas Carlos
no engenho Olho d‘Água, em Areia, Dias Fernandes, Ademar Vidal,
no Estado da Paraíba, no dia 10 de Alcides Bezerra e João Lourenço.
janeiro de 1887, filho de senhor de Publicou o seu primeiro livro,
engenho e pecuarista. Poetas da Abolição, em 1921, e, no
Passou a infância no engenho ano seguinte, lançou Reflexões de
Olho d‘Água, onde aprendeu as uma Cabra. Em 1922, abandonou a
primeiras letras. Com cerca de oito Procuradoria Geral por ter sido
anos de idade, foi morar para a sede nomeado consultor jurídico do
do município, com o seu tio, a fim Estado. Tendo em consideração que
de prosseguir os seus estudos. Dois o exercício do novo cargo não o
anos depois, a família transfere-se, impedia de advogar, passou,
também, para a cidade, mas José de também, a exercer a sua profissão. A
Almeida passaria pouco tempo com pedido do presidente estadual Sólon
esta, uma vez que, em breve, ficaria Barbosa de Lucena (1920-1924),
órfão de pai, voltando a morar com realizou um relatório sobre as
o seu tio. Forma-se em Direito, em dificuldades pelas quais passava o
1908, na Faculdade de Direito do Estado, em consequência das secas,
Recife, sendo, logo depois, nomeado trabalho este que lhe serviria de base
promotor de Justiça, em Sousa, na para a obra A Paraíba e seus
Paraíba, onde permaneceu por um Problemas, publicada em 1923.
ano. Em 1911 é nomeado Em 1928 projetou-se no
procurador do Estado da Paraíba. É domínio da literatura, com o
neste momento que começa a lançamento de A Bagaceira, obra
dedicar-se aos estudos de economia, desde logo elogiada por Alceu
política, sociologia, geografia Amoroso Lima (Tristão de Ataíde),

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 169


Capítulo III

já então um destacado crítico 1956, quando decide dedicar-se à


literário. Marco da literatura social literatura. Entretanto, embora sem
nordestina, Bosi (2015) considera participação ativa, continuaria, até
que tal não se deve, porém, "aos ao final da vida, a ter influência nas
seus méritos intrínsecos" mas antes decisões da política da Paraíba.
por José Américo "ter definido uma Apoiou o golpe político-militar de
direção formal (realista) e um veio Março de 1964, que depôs o
temático: a vida dos engenhos, a Presidente João Goulart,
seca, o retirante, o jagunço" (p. considerando que a quebra da
422). Esta obra foi considerada, na hierarquia militar se encontrava
historiografia literária brasileira, o ameaçada, o que, segundo o mesmo,
ponto de partida do novo romance poderia provocar a eclosão de uma
regional, sendo que, pouco depois guerra civil.
da sua publicação, Gilberto Freire, Eleito por unanimidade de votos
que exerceu grande influência entre membro da Academia Brasileira de
os escritores nordestinos da época, Letras, tomou posse em 1967,
lançava o Manifesto Regionalista. sendo escolhido como o Intelectual
Dedicou-se sempre à atividade do Ano, pela União Brasileira de
política. Foi governador da Paraíba Escritores, em 1977.
(durante o seu mandato foi fundada Faleceu em João Pessoa no dia
a Universidade Federal da Paraíba, 10 de março de 1980.
para a qual foi nomeado seu
primeiro reitor), foi Ministro da Principais obras (romances,
Viação e Obras Públicas (entre ensaios, memórias): Reflexões de
1930 e 1934) e Ministro do Uma Cabra (1922); A Paraíba e
Tribunal de Contas da União (em Seus Problemas (1923); A Bagaceira
1935), durante a Era Vargas, e, dez (1928); O Ciclo Revolucionário no
anos mais tarde, foi eleito Senador, Ministério da Viação (1934); O
pela Paraíba. Em 1951, voltou a Boqueirão (1935); Coiteiros
ocupar o cargo de Ministro da (1935); As Secas no Nordeste
Viação e Obras Públicas, tendo-se (1953); Ocasos de Sangue (1954);
retirado da militância política, em Discursos do Seu Tempo (1964-

170 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1965); O Anjo Negro (1967); (1968); Eu e Eles (1970).


Graça Aranha, O Doutrinador

2. José Lins do Rego conhecida e vivenciada, é a própria


(1901-1957) "consciência literária da casa-grande
e da senzala, dos senhores de
José Lins do Rego Cavalcanti engenho e dos pretos, dos bacharéis
nasceu em 1901, no estado da e dos moleques de todo um mundo
Paraíba. agonizante" (Carpeaux, 2009, p.
Em 1906, em Maceió, insere-se 22): o meio material do autor foi,
num grupo de intelectuais que portanto, fundamental para a
constituirá o seu núcleo de amigos criação da obra literária15.
para o resto da vida: Rachel de Com efeito, o fim do engenho, o
Queiroz, Graciliano Ramos, Aurélio fogo morto, vai dar origem a
Buarque de Holanda, entre outros. transformações sociais que se
É na cidade de Maceió que iniciam com o crash da bolsa de
escreve os três primeiros romances Nova Iorque, em 1929, e que se
do ciclo da cana-de-açúcar (Menino aprofundam com o início da
de engenho (1932), Doidinho
(1933) e Bangüe (1934)), no qual 15
Ora, para além da sua origem social, é de
se inserirão, respectivamente, em assinalar a sua profunda admiração pelo
1936 e 1943, Usina e Fogo Morto: sociólogo pernambucano Gilberto Freyre.
No prefácio que José Lins do Rego escreve
"a história desses livros é bem ao livro Região e Tradição (1968) de
simples - comecei querendo apenas Gilberto Freyre, o escritor paraibano deixa
escrever umas memórias que fossem clara a influência que Freyre exerceu nos
seus romances, afirmando que ele ―é o
as de todos os meninos criados nas revelador de vocação, o animador, posso
casas-grandes dos engenhos dizer sem medo que a ele devo meus
romances‖ (p.18). José Lins do Rego chega
nordestinos" (Pref. Menino de mesmo a afirmar que, quando escreve sobre
Engenho, 2002, p. 17). Gilberto Freyre, praticamente fala de si
Neto de senhor de engenho, Lins mesmo, ―tanto me sinto obra sua, tanta
influência exerceu sobre a minha pobre
do Rego escreve sobre a realidade natureza‖ (p. 18).

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 171


Capítulo III

segunda Guerra Mundial, quando se capítulo precedente, a agricultura em


criam "as condições propícias para indústria, primeiro, sob a forma de
uma transição para um sistema engenhos, depois, de usina. Com a
econômico em que predomina o expansão da agroindústria
sector industrial" (Ianni, 1971, p. açucareira, "a própria indústria vai
129). Fogo Morto retrata, desta ao campo e a agricultura é
forma, a decadência dos engenhos completamente submetida pelo
tradicionais no Nordeste brasileiro, capital" (Ianni, 1984, p. 50). Esta
os quais, gradualmente, cedem lugar expansão terá um novo impulso em
à grande indústria moderna, 1960, quando Cuba perde a sua
operando uma profunda quota de açúcar no mercado interno
transformação do modelo agrícola dos Estados Unidos da América,
herdado do Brasil-colónia. obrigando o Império estadunidense
A transformação do modelo a buscar em outras regiões o açúcar
agrícola vai igualmente abalar os que, anteriormente, até 1959, era
valores e tradições nordestinos, uma fornecido pela neocolónia cubana.
vez que a tradicional sociedade rural Em 1955 foi eleito para a
aristocrata, de rasgos latifundiários e Academia Brasileira de Letras.
escravocrata, é desestruturada. Lins José Lins do Rego morreu no
do Rego descreve, portanto, a Rio de Janeiro, no dia 12 de
desconstrução de uma sociedade que Setembro de 1957.
se havia formado em torno da casa-
grande e da senzala, presa ao velho Principais obras: Menino de
latifúndio patriarcal. Engenho (1932); Doidinho (1933);
Se as ex-metrópoles são, nas Banguê (1934); O Moleque
primeiras três décadas do século Ricardo (1935); Usina (1936);
XX, o centro das indústrias de Pureza (1937); Pedra Bonita
transformação (manufaturas), as (1938); Riacho Doce (1939); Fogo
indústrias de extração vão situar-se Morto (1943); Eurídice (1947);
nas suas periferias e nas antigas Cangaceiros (1953); Gordos e
colónias. Este processo, no Brasil, Magros (1942); Poesia e Vida
vai transformar, como referimos no (1945); Homens, Seres e Coisas

172 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

(1952); A Casa e o Homem O Vulcão e a Fonte (1958); Dias


(1954); Meus Verdes Anos (1956); Idos e Vividos (1981).

3. Graciliano Ramos Amado e Aníbal Machado: Brandão


(1892-1953) entre o mar e o amor.
Filia-se no Partido Comunista
Graciliano Ramos nasceu a 27 do Brasil (PCB) em 1945, ano em
de outubro de 1892 em Alagoas. que publica Infância e Dois dedos.
Filho da pequena-burguesia Sete anos depois, em 1952, viaja
alagoana, cuida, entre 1910 e 1914, com a sua esposa à União das
da casa comercial do pai. Repúblicas Socialistas Soviéticas
A partir de 1919, começa a (URSS), à, então, Checoslováquia, a
colaborar com diferentes periódicos. França e a Portugal, reunindo em
Em 1933, publica Caetés e, um livro as diferentes experiências e
ano depois, S. Bernardo. Em 1936, impressões desta viagem. Enquanto
sob a acusação de ser militante escritor, segundo Bosi (2015),
comunista, é preso, em Maceió, e Graciliano "via em cada personagem
levado para o Rio de Janeiro, onde a face angulosa da opressão e da
fica um ano encarcerado. É na dor" (p. 429).
prisão que escreve Angústia. Morre no ano de 1953, sendo
Quando sai da prisão, em 1937, póstuma a sua obra Memórias do
fica a viver com a família no Rio de Cárcere.
Janeiro, iniciando a publicação de O romance Vidas Secas,
contos no jornal argentino La publicado em 1938, é considerada a
Prensa. Em 1938, publica Vidas obra mais importante do autor.
Secas (onde inclui o texto Baleia, Mantendo-se o mais fiel possível
que havia sido publicado em La à realidade nordestina, Graciliano
Prensa). Em 1942, participa num Ramos analisa social e
romance conjunto, com Rachel de psicologicamente as personagens,
Queiroz, José Lins do Rego, Jorge denunciando a feroz exploração dos

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 173


Capítulo III

nordestinos sem terra, que se confundem ora com o autor,


acompanhando a migração de uma ora com o narrador, ora com o
família através do sertão seco e autor-narrador, vão assim,
agreste. Graciliano aproxima o gradualmente, confundir-se com a
Homem do animal, recorrendo a voz do leitor, que, identificando-se
uma voz narrativa que se confunde com a situação de opressão das
com as próprias personagens, seres personagens, se identifica ora com o
humanos ou animais. autor, ora com o narrador, ora com
Num exercício estético de uma o autor-narrador, o que faz com que
grande liberdade estilística, também o leitor passe a incorporar a
Graciliano Ramos procura superar a história que lê.
alienação a que havia sido Tal como Os Sertões, de
condenada a arte, recorrendo a uma Euclides da Cunha, também o
liberdade de construção narrativa romance Vidas Secas se inicia com a
em que as diferentes vozes, como os descrição física da paisagem
diferentes planos da exegese, se nordestina. Longe, no entanto, da
confundem, se mesclam, podendo descrição longa e minuciosa de Os
ser lidos ora ordenada, ora Sertões, Graciliano utiliza uma breve
desordenadamente. A obra é, neste descrição, para logo a contrapor às
sentido, um conjunto de partes que, personagens principais da obra que
apesar de poderem ser lidas nos são, então, apresentadas: sinhá
autonomamente, apenas podem ser Vitória, Fabiano, o filho mais velho
compreendidas dentro do conjunto (o que pressupõe, apesar da sua
de que fazem parte. omissão nesta apresentação, de um
O autor é, também, o narrador, filho mais novo) e a cachorra Baleia.
voz através da qual as personagens A apresentação dos protagonistas
se exprimem, ora com ele se "na planície avermelhada" (Vidas
confundindo, ora dele se Secas, 2015, p. 9) onde "os
distanciando, num jogo de estilo em juazeiros alargavam duas manchas
que o leitor livremente interpreta a verdes" (Vidas Secas, 2015, p. 9)
voz que pensa e a voz que fala. As surge quando aqueles percorrem, em
diferentes vozes das personagens família, magros, com fome,

174 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

miseráveis, os caminhos do sertão. caminhos da fome pelo sertão,


O leitor vai, gradualmente, quando os corpos acabavam magros,
conhecendo, intimamente, a família bambos, e a esperança se buscava no
de Fabiano e sinhá Vitória, nunca achado lugar "melhor que os
sobretudo através da sua intensa e outros onde tinham estado" (Vidas
viva vida interior, a qual se Secas, 2015, p. 122).
contrapõe à sua silenciosa e difícil
expressão oral, na longa caminhada Principais obras: Caetés (1933);
pela catinga. Expulsos das terras São Bernardo (1934); Angústia
onde trabalhavam pela seca, os (1936); Vidas Secas (1938); A
retirantes de Vidas Secas não têm Terra dos Meninos Pelados (1942);
um destino fixo. História de Alexandre (1944); Dois
Passado, presente e futuro Dedos (1945); Infância (1945);
confundem-se num ciclo repetitivo Histórias Incompletas (1946);
de miséria, de fome e de exploração: Insônia (1947); Memórias do
enquanto trabalhadores, seriam Cárcere (1953); Viagem (1954);
sempre explorados, enquanto Linhas Tortas (1962); Viventes das
retirantes, repetir-se-ia Alagoas (1962).
incessantemente a violência dos

Graciliano Ramos – Vidas Secas (1938)

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os


infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.
Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio
seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra.
A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo
escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a
tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira
no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 175


Capítulo III

O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.


– Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o
pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano
ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não
acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas
brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de
bichos moribundos.
– Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo.
Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A
seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o.
Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha,
e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. Tinham deixado os caminhos, cheios
de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada
que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho
naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja,
irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente
uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a
faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que
se encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera
desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do
mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se,
agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá
Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os
juazeiros invisíveis.

Graciliano Ramos. Vidas Secas. São Paulo: Record, 1980, pp. 9-10.

176 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Comentário:
Vidas Secas descreve a seca, a miséria, a fome.
A família da Fabiano e sinhá Vitória caminha sem rumo, em busca de uma
fazenda onde trabalhar, de um local onde a água e a esperança de achar comida
permita à família sobreviver. É, pois, a esperança que move os corpos magros e
esfomeados pelo sertão. Fabiano, explorado, oprimido, tal como a sua mulher, Sinhá
Vitória, também ela explorada, também ela oprimida, silencia a sua exploração numa
constante reflexão interna, incapaz de produzir um discurso coerente e lógico que
acompanhe as suas dúvidas e problemáticas perante a vida.
A problemática da situação das personagens é, de resto, concomitante com a
problemática da obra. Gradualmente, o leitor aproxima-se da escolha ideológica do
autor, envolvendo-se nas questões que acompanham as personagens e que parecem
prendê-las a uma situação de exploração. O leitor vai assumindo, desta forma, a
posição do autor, conscientizando-se para a necessidade de as personagens serem
capazes de superar o seu estado de opressão e, portanto, de criarem projetos que o
possibilitem.
Graciliano vai utilizar um processo estético-estilístico baseado na
contradição: o Homem explorado sertanejo encontra-se próximo da natureza,
animaliza-se para nela melhor se inserir, no entanto, também dela se encontra
afastado por uma relação de trabalho alienado, que gera uma cosmovisão, também
ela, alienadora. Assim sendo, a ida eventual para a cidade prolongaria, apenas, este
processo de alienação que já distanciava o trabalhador nordestino do fruto do seu
trabalho.

4. Rachel de Queiroz Descende, pelo lado materno,


(1910-2003) dos Alencar, sendo, por conseguinte,
parente do autor de O Guarani.
Rachel de Queiroz nasceu em Em 1917, foi para o Rio de
Fortaleza, no Ceará, em 17 de Janeiro, em companhia dos pais, os
novembro de 1910. quais procuravam fugir da terrível
seca de 1915, tema, de resto, que a

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 177


Capítulo III

romancista iria aproveitar em O presidiria à narrativa social do


Quinze, o seu primeiro livro. A Nordeste. Os períodos são, em geral,
família Queiroz ficou pouco tempo menos literários, breves, colados à
no Rio de Janeiro, viajando, depois, transcrição dos atos e acontecimentos.
E o diálogo é corrente, lembrando, às
para Belém do Pará, onde residiu
vezes, a novelística popular que, mais
por dois anos.
tarde, atrairia a escritora ao passar do
Em 1919, regressou a Fortaleza. romance para o teatro de raízes
Estreou-se em 1927, sob o regionais e folclóricas (Lampião, A
pseudónimo de Rita de Queirós, Beata Maria do Egito) (Bosi, 2015, p.
publicando trabalhos no jornal O 423).
Ceará, do qual se tornaria redatora Em 1932 e 1937, publicou,
efetiva. respectivamente, João Miguel e
Em fins de 1930, publicou o Caminho de Pedras. Em 1939,
romance O Quinze, que teve grande conquistaria o prémio da Sociedade
repercussão nas cidades do Rio de Felipe de Oliveira, com o romance
Janeiro e de São Paulo. Com apenas As três Marias e, em 1950,
vinte anos, Rachel projetava-se na publicaria em folhetins, na revista O
vida literária do país, assumindo um Cruzeiro, o romance O Galo de
romance de fundo social, realista na Ouro.
dramática exposição da luta secular Publicou, ao longo da sua vida,
dos brasileiros nordestinos contra a mais de duas mil crónicas, as quais
miséria e a seca: seriam editadas em livro: A Donzela
e a Moura Torta (100 crónicas
Na esteira do regionalismo, Rachel escolhidas), O Brasileiro Perplexo e
de Queirós compôs dois romances de O Caçador de Tatu.
ambientação cearense, O Quinze e João Passa a residir no Rio de Janeiro
Miguel. Em ambos releva notar uma
a partir de 1939, colaborando com
prosa enxuta e viva que seria depois tão
o Diário de Notícias, O Cruzeiro e
estimável na cronista Raquel de
Queirós. Confrontados com A
O Jornal. Escreveu duas peças de
Bagaceira, esses livros podem dizer-se teatro, Lampião, em 1953, e A
mais próximos do ideal neorrealista que Beata Maria do Egito, em 1958,
para além de O Padrezinho Santo,

178 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

peça para televisão, ainda inédita em Faleceu no Rio de Janeiro, em 4


livro. No campo da literatura de Novembro de 2003.
infantil, publicou O Menino Principais obras (romances,
Mágico, a pedido de Lúcia crónicas, dramaturgia e livros
Benedetti, livro que surgiu a partir infantis): O Quinze (1930); João
de histórias que inventava para os Miguel (1932); Caminho das
netos. Pedras (1937); As três Marias
Em 1977, foi eleita para a (1939); Dôra, Doralina (1975); O
Academia Brasileira de Letras. Galo de Ouro (1986); Memorial de
Foi membro do Conselho Maria Moura (1992); A Donzela e
Federal de Cultura, desde a sua a Moura Morta (1948); Cem
fundação, em 1967, até à sua Crônicas Escolhidas (1958); O
extinção, em 1989. Em 1988, Caçador de Tatu (1967);
iniciou a sua colaboração com os Mapinguari (1964-1976); Lampião
jornais O Estado de São Paulo e o (1956); A Beata Maria do Egito
Diário de Pernambuco. (1957); O Menino Mágico (1983);
Recebeu, ao longo da vida, Cafute e Pena-de-prata (1986);
dezenas de prémios e de distinções. Andira (1992).

5. Jorge Amado Academia dos Rebeldes, a qual


(1912-2001) reivindica uma arte moderna, sem
ser modernista (numa crítica ao
Jorge Amado nasceu a 10 de movimento modernista que, em
agosto de 1912, em Itabuna, no 1922, se criara em torno da Semana
Estado da Bahia. de Arte Moderna de São Paulo).
Em 1928, um ano antes da Na década de 1930, identifica-se
quebra da bolsa de valores de Nova com outro movimento estético-
York que catalisaria o declínio do literário, o Movimento de 30 (de
ciclo de café, Jorge Amado integra a que faziam parte José Américo de

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 179


Capítulo III

Almeida, Rachel de Queiroz e federal do PCB, o seu mandato será


Graciliano Ramos), o qual se cassado em 1947, quando o PCB
preocupava com questões sociais e voltará, novamente, à ilegalidade.
com a valorização de Não obstante, o autor afastar-se-á
particularidades regionais. É nesta do PCB, em 1956, depois do XX
década que Jorge Amado publica os Congresso do Partido Comunista da
seus primeiros livros: O País do União Soviética (PCUS), onde
Carnaval (1931), Cacau (1933), Nikita Kruchiov apresenta um
Suor (1934), Jubiabá (1935), Mar relatório criticando fortemente Josef
Morto (1936) e Capitães da Areia Stálin.
(1937). A publicação, em 1958, de
Em 1936 é preso, pela primeira Gabriela, Cravo e Canela inicia uma
vez, acusado de ter participado na nova etapa da obra do autor, a partir
Intentona Comunista de 1935, e, de então afastada de questões
em 1937, aquando da instalação do socioeconómicas, próxima da
Estado Novo de Getúlio Vargas, é discussão sobre a mestiçagem e o
preso pela segunda vez. Em 1942, sincretismo religioso, representando
depois de uma pesquisa feita na diversos quotidianos e ambientes
Argentina e no Uruguai sobre o brasileiros.
então secretário-geral do PCB, Jorge Tendo em conta a trajetória
Amado publica A Vida de Luís literária de Jorge Amado, Bosi
Carlos Prestes, obra que mais tarde (2015) divide a sua obra em quatro
seria rebatizada como O Cavaleiro momentos: ―romance proletário‖
da Esperança. Depois de terminado (Suor e Cacau); ―depoimentos
este trabalho, volta ao Brasil, onde é líricos, isto é, sentimentais,
preso uma terceira vez. espraiados em torno de rixas e
Em 1946, uma vez finda a amores marinheiros‖ (Jubiabá, Mar
Segunda Guerra Mundial e a Morto, Capitães da Areia); ―escritos
ditadura do Estado Novo, e já então de pregação partidária‖ (O cavaleiro
casado (em segundas núpcias) com da esperança, O Mundo da Paz);
Zélia Gattai, Jorge Amado publica ―frescos da região do cacau,
Seara Vermelha. Então deputado certamente suas invenções mais

180 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

felizes‖ (Terras do Sem Fim, São Rachel de Queiroz‖ (v. 2, p. 280),


Jorge dos ilhéus) e ―crônicas conquanto a segunda abarca a
amaneiradas de costumes produção desde Gabriela, cravo e
provincianos‖ (p. 434). Já Massaud canela (1958) até Tocaia Grande
Moisés (1996) - ressaltando que (1984), da qual realça o picaresco e
Jorge Amado, juntamente com o erotismo como principais
outros prosadores nordestinos da tendências.
década de 1930, exerceu grande Eleito para a Academia Brasileira
influência na literatura portuguesa de Letras, em 1961, Jorge Amado
da época - divide a obra amadiana consagra-se, a partir de então, como
em três fases: a primeira, até São um dos grandes nomes da literatura
Jorge dos ilhéus, giraria em tornos nacional brasileira.
de dois núcleos, chamados de Morre, em 2001, aos 87 anos.
―romances da Bahia‖ e ―ciclo do
cacau‖ (v. 5, p. 201). Nessas Principais obras (romances,
―novelas‖ (para o autor, Amado poesia, biografias, teatro): O País do
nunca havia escrito um romance), ―a Carnaval (1931); Cacau (1933);
ênfase na ação se associa à Suor (1934); Jubiabá (1935); Mar
estereotipia e a divisão maniqueísta Morto (1936); Capitães da Areia
dos caracteres, a simplificação (1937); A Estrada do Mar (1938);
psicológica das situações‖ e ―a ABC de Castro Alves (1941); O
adoção da velha fórmula da novela Cavaleiro da Esperança (1942);
manifesta-se no predomínio da Terras do Sem Fim (1943); São
intriga sobre a análise‖ (v. 5, p. Jorge dos Ilhéus (1944); Bahia de
202). Aderaldo Castello (1999), Todos os Santos (1945); Seara
por seu lado, divide a produção de Vermelha (1946); O Amor do
Jorge Amado em duas fases: a Soldado (1947); Os Subterrâneos
primeira vai de O País do Carnaval da Liberdade (1954); Gabriela,
(1931) até Os Subterrâneos da Cravo e Canela (1958); A Morte de
Liberdade (1954), na qual Quincas Berro d'Água (1961); Os
predomina ―a intencionalidade Velhos Marinheiros ou o Capitão
política e ideológica apontada em de Longo Curso (1961); Os

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 181


Capítulo III

Pastores da Noite (1964); Dona (1977); Farda, Fardão, Camisola de


Flor e seus Dois Maridos (1966); Dormir (1979); Tocaia Grande
Tenda dos Milagres (1969); Teresa (1984); O Sumiço da Santa (1988);
Batista Cansada de Guerra (1972); A Descoberta da América pelos
O Gato Malhado e a Andorinha Turcos (1994).
Sinhá (1976); Tieta do Agreste

6. Érico Veríssimo direciona para o jornalismo literário.


(1905-1975) Passa a conviver, igualmente, com
outros escritores já renomados,
Érico Lopes Veríssimo nasceu como Mario Quintana e
no dia 17 de dezembro de 1905, em Guilhermino César. Em 1932, nessa
Cruz Alta, no Estado do Rio mesma cidade, trabalha como
Grande do Sul, no seio de uma Diretor da Revista do Globo e atua,
família abastada que, no início do igualmente, no departamento
século, se arruinara. Editorial da Livraria do Globo.
Desde muito cedo que se dedica Nesse ano, Érico publica uma
à leitura de autores nacional e coletânea dos seus contos,
internacionalmente consagrados Fantoches, e, em 1933, traduz a
(Aluísio Azevedo, Afrânio Peixoto e obra de Aldous Huxley,
Coelho Neto, mas também Tolstoi Contraponto.
e Dostoievski). Jovem, exerceu De 1933 até ao final do decénio,
"profissões de pequena classe média: Érico compõe os romances
foi ajudante de comércio, bancário, pertencentes ao ciclo Vasco e
lojista de farmácia" (Bosi, 2015, p. Clarissa, os quais se tornariam num
435). êxito nacional.
Em 1930, vai viver para Porto Em 1936, publica os livros
Alegre, momento a partir do qual se infantis As Aventuras do Avião
aproxima de Augusto Meyer, Vermelho e Um Lugar ao Sol e cria
modernista gaúcho, quem o um programa para crianças, Clube

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Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

dos Três Porquinhos, na Rádio Entre 1948 e 1960, o autor


Farroupilha. O Departamento de dedicou-se à elaboração de uma
Imprensa e Propaganda (DIP) do trilogia da vida gaúcha – O Tempo
Estado Novo vai, entretanto, em e o Vento (ciclo em que apresenta
1937, exigir que o autor submeta "portugueses e castelhanos nos
previamente àquele órgão as tempos coloniais; farrapos e
histórias apresentadas no programa imperiais durante as lutas
de rádio. Resistindo à censura separatistas; maragatos e florianistas
prévia, encerra o programa. sob a Revolta da Armada, em
Temendo que a ditadura Vargas 1893" (Bosi, 2015, p. 436)),
lhe viesse a causar danos, assim enquanto, ao longo da década de
como à sua família, aceita o convite 1970, escreve romances nos quais
para lecionar Literatura Brasileira, transparecem as tensões políticas de
na Universidade da Califórnia. então.
Passa o ano de 1945 fazendo O escritor falece no dia 28 de
conferências em diversos estados novembro de 1975, deixando
americanos, retornando, depois, ao inacabadas as suas memórias, além
Brasil. Em 1946, publica A Volta de esboços de um romance que se
do Gato Preto, relatando a sua vida chamaria A Hora do Sétimo Anjo.
nos Estados Unidos. Carlos Drummond de Andrade faria
Assume, em 1953, a convite do homenagem ao amigo, fazendo
governo brasileiro, em Washington, publicar o seguinte poema:
E.U.A., a direção do Departamento
de Assuntos Culturais da União
Pan-Americana, na Secretaria da
Organização dos Estados
Americanos, substituindo Alceu
Amoroso Lima. No ano seguinte, é
agraciado com o prémio Machado
de Assis, concedido pela Academia
Brasileira de Letras, pelo conjunto
da sua obra.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 183


Capítulo III

Principais obras:
Contos: Fantoche (1932); As
Carlos Drummond de Andrade - Mãos de meu Filho (1942); O
"A falta de Érico Veríssimo" Ataque (1958).
Romances: Clarissa (1933);
Falta alguma coisa no Brasil Caminhos Cruzados (1935);
depois da noite de sexta-feira. Música ao Longe (1936); Um
Falta aquele homem no escritório
Lugar ao Sol (1936); Olhai os
a tirar da máquina elétrica
Lírios do Campo (1938); Saga
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.
(1940); O Resto é Silêncio (1943);
O Retrato (1951); O Arquipélago
Falta uma tristeza de menino bom (1961); O Senhor Embaixador
caminhando entre adultos (1965); O Prisioneiro (1967);
na esperança da justiça Incidente em Antares (1971).
que tarda - como tarda! Literatura infanto-juvenil: A
a clarear o mundo. Vida de Joana d‘Arc (1935); As
Aventuras do Avião Vermelho
Falta um boné, aquele jeito manso, (1936); Os Três Porquinhos Pobres
aquela ternura contida, óleo
(1936); Rosa Maria no Castelo
a derramar-se lentamente.
Encantado (1936); Meu ABC
Falta o casal passeando no trigal.
(1936); As Aventuras de Tibicuera
Falta um solo de clarineta. (1937); O Urso com Música na
Barriga (1938); A Vida do Elefante
Basílio (1939).

184 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1.4. TERCEIRA FASE DO MODERNISMO E O SURGIMENTO DE


UMA NOVA LITERATURA INTIMISTA

As duas décadas de relativa liberdade, que medeiam o fim da Era


Vargas e o início da ditadura militar, e o incremento da atividade cultural
coincidem com a aceleração da industrialização do Brasil, mas também com
a penetração crescente de capital vindo do exterior e a consequente
instalação de transnacionais (como a Ford ou a Volkswagen).
A produção literária da década deste período é, neste contexto,
afetada pela rápida massificação da indústria cultural (televisão, cinema,
rádio), revelando novos símbolos relacionados com a urbanidade, numa
estranha ligação (que nessa década ainda não se perdera) com a herança
agrária. Surge, em consequência, um novo processo de idealização do campo,
em contraposição à cidade, passando aquele a remeter para um espaço idílico
e intemporal, que fora afetado quer pela industrialização e consequente
urbanização, quer pela monopolização extrema da terra. Se o tema
desenvolvimentista influi na literatura então criada, renova-se, em paralelo, o
gosto pela arte regional e popular, num fenómeno que encontra um paralelo
quer no Romantismo, quer no Modernismo, que "também se haviam dado à
pesquisa e ao tratamento estético do folclore; agora, porém, graças ao novo
contexto sócio-político, reserva-se toda atenção ao potencial revolucionário
da cultura popular" (Bosi, 2015, p. 413). Dos resultados artísticos deste
processo, salientam-se alguns textos dramáticos de Ariano Suassuna,
Augusto Boal ou Dias Gomes, assim como alguns cenários fílmicos e
algumas letras épicas.
A nova literatura que se desenvolve depois da Segunda Guerra
Mundial abraça, deste modo, uma geração de escritores que é,
frequentemente, caracterizada como terceira geração modernista ou geração
de 1945.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 185


Capítulo III

Paralelamente, assistimos à afirmação gradual do romance


introspectivo, cujos autores são, hoje, nacional e internacionalmente
consagrados. Neste estilo literário, salienta-se a romancista e contista Clarice
Lispector, que, através de uma busca de raras significações, absorve uma
leitura do mundo centrada no eu feminino: "A palavra neutra de Clarice
Lispector articula essa experiência metafísica espiritual valendo-se do verbo
ser e de construções sintáticas anômalas que obrigam o leitor a repensar as
relações convencionais praticadas pela sua própria linguagem" (Bosi, 2005,
p. 454).
Testemunha de uma visão combinatória - renovação formal,
temáticas das vanguardas da primeira geração modernista e denúncia social
dos romancistas das décadas de 1930 e 1940 - é a obra magistral de João
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas (1956), através da qual assistimos
a uma reedição do regionalismo, num processo em que o Brasil surge como
um país cindido e violento. Predomina, tal como na segunda geração
modernista, a voz dos jagunços, num sertão idealizado, sem fronteiras, então
acossado pela grande propriedade de terra.
O regionalismo que dera forma à literatura neorrealista nas décadas
de 1930 e 1940, alcançaria, por conseguinte, o seu apogeu literário, pela
mão de Guimarães Rosa: "A alquimia, operada por João Guimarães Rosa,
tem sido o grande tema da nossa crítica desde o aparecimento dessa obra
espantosa que é Grande Sertão: Veredas" (Bosi, 2005, p. 458).
Com efeito, para Guimarães Rosa, a palavra integra uma série de
significações (é um referente semântico), sendo o signo poético "portador
de sons e de formas que desvendam, fenomenicamente, as relações íntimas
entre o significante e o significado" (Bosi, 2005, p. 458). O autor mescla,
no mesmo plano literário, a lírica e a narrativa, as quais, imbricando-se, se
confundem, transmutando-se num só elemento, revitalizando e
incorporando elementos típicos da expressão poética, enquanto transpõe,
para a narrativa, o ritmo cadenciado e o fraseio popular da coloquialidade da
linguagem sertaneja.

186 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Guimarães Rosa transforma o pitoresco do sertão num espaço


sociogeográfico universal, sem que, contudo, este mundo universalizante seja
dissociado do contexto nacional: um Brasil violento e cindido socialmente.
À imagem dos neorrealistas que o precederam, Guimarães Rosa privilegia a
oralidade, aquela fala popular dos jagunços, de raízes trovadorescas e que
seria retomada pela literatura de cordel, dando, assim, voz a quem
socialmente não a possuía. Por outro lado, através da idealização de um
sertão sem cercas, sem fronteiras, mas assediado pela grande propriedade
latifundiária, Guimarães Rosa apela a um passado mítico sertanejo, hoje
inexistente, mas no qual o devir marca a dialética constante da história dos
homens. Na narrativa, a composição das personagens e a evolução da diegese
obedecem, portanto, a este movimento dialético do devir: nada é perene, e
até o segredo de Diadorim, que o leitor adivinha antecipadamente, não pode
escapar ao seu desvendamento, quando a morte desnudará corpos e silêncios.
Fora do Nordeste, de onde os clássicos do Neorrealismo (que, na
sua literatura ficcional, registaram costumes locais e denunciaram as
condições de pobreza e de miséria em que vivia a maioria dos trabalhadores
nordestinos) originalmente vieram, surgiriam, posteriormente, autores de
outros contextos sociogeográficos que enveredariam por uma literatura
regionalista, não apenas ao longo das décadas de 1930 e 1940, mas também
nas décadas posteriores (1950, 1960 e 1970). Este foi, por exemplo, o caso
do contexto mineiro-goiano (Mário Palmério, Bernardo Élis, Carmo
Bernardes, Antônio Callado), do contexto paulista (João Pacheco, Lourdes
Teixeira, Hernâni Donato) ou do contexto sul (Darci Azambuja, Viana
Moog, Guilhermino César, Guido Wilmar, Luís Antônio de Assis Brasil).
De destacar, na literatura regionalista da década de 1970, o autor paraibano
Ariano Suassuna, que, com A Pedra do Reino, em 1971, e O Rei Degolado,
em 1977, "surpreendeu o público" (Bosi, 2000, p. 457).
Já no campo da literatura intimista situa-se, como referimos, Clarice
Lispector.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 187


Capítulo III

Não atribuindo atenção a questões sócio-espaciais, Clarice Lispector


(1920-1977) apreende a realidade exterior a partir da sua sensibilidade e
experiência afetiva. Esta apreensão é considerada, por alguns teóricos e
críticos literários (Bosi (2005); Leitão (2007); Marilene (2006)), como um
sentido que revela a inquietude do seu tempo, razão pela qual também
Clarice é frequentemente considerada parte daquela terceira geração
modernista.
Até 1944, a produção de Clarice centra-se em temas caros ao
existencialismo sartriano, como a náusea, contudo, a partir daquela data, o
sentido da experiência da náusea transmuta-se numa experiência espiritual
(Nunes, 1973), como acontece na obra A Paixão Segundo G.H. (1964).
Nesta obra, a personagem-narradora, a escultora G.H., vivencia uma
experiência sui generis, provocada pelo esmagamento de uma barata, na
porta de um guarda-roupa. O confronto com o inseto vai marcar um
momento decisivo de ruptura na vida da personagem-narradora, cujo
quotidiano se desestabiliza e desorganiza, até se desmoronar completamente.
A metamorfose exterior que havia marcado a experiência da personagem
kafkiana (Franz Kafka (1883-1924)), em A mosca (1915), torna-se, na
obra de Clarice, interior, num processo narrativo em que a náusea atinge
uma função espiritual mística (Nunes, 1973).
O facto relevante que acontece a escultora é, pois, a visão de uma
barata, a qual lhe provoca asco e fascínio, deflagrando uma profunda crise
pessoal, fazendo com que aquela abandone, temporariamente, a escultura, a
massa e o volume vazios do seu diletantismo, bem como o seu permanente
estado de pré-clímax e de pré-amor, de forma a dedicar-se à escrita da
estranha experiência em que mergulhou. O romance constrói-se, desta
forma, como um longo monólogo interior que mescla fluxos de consciência,
a biografia da personagem-narradora, a confusão das categorias tempo-
espaco e o enredo, numa linguagem rebuscada onde predominam os
paradoxos, as antíteses, os oxímoros, as sinestesias e as metáforas.

188 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

A atmosfera inquietante em que Clarice vive é desvendada,


igualmente, no conto "A Menor Mulher do Mundo", incluído no volume
Laços de Família, publicado em 1960.
Este conto pode ser interpretado como uma denúncia moderna à
insaciável sociedade de consumo que se impõe no mundo ocidental, na
segunda metade do século XX. Num mundo em que tudo é passível de se
transmutar em mercadoria, num império dominado pelos meios de
comunicação massivos, qualquer acontecimento que seja vivenciado pelo
Homem se converte numa imagem ou numa representação, seja no campo
cultural, seja na sua vida íntima. Neste sentido, Marilene Franco (2006)
afirma que, em "A Menor Mulher do Mundo", Clarice esgota a
característica de "apropriação devoradora da mídia que transforma pessoas
em exóticas notícias de jornal ou televisão" (p. 8). Com efeito, a imagem da
personagem Pequena Flor, a menor mulher do mundo, descoberta na África
Equatorial por um francês, há de aparecer estampada nos suplementos dos
jornais do mundo ocidental, suscitando sentimentos de angústia nos seus
leitores.
Ora, numa sociedade em que, quer no plano da superestrutura, quer
no plano da infraestrutura, a aparência se sobrepõe à essência, Clarice expõe
a lógica do consumo e a exploração da imagem e do ser Outro. Neste jogo
de alteridade, a Pequena Flor encontra-se alheia à voracidade mediática,
feroz imposição da pós-modernidade em que vivemos.
Publicado num momento em que fica exposta a essência do milagre
económico, cuja aparência fora tão aplaudida pela ditadura militar, o Brasil
já não consegue esconder a dicotomia contraditória entre, por um lado,
infraestruturas desmesuradas e ineficientes (como a maior rodovia e a ponte
mais extensa do planeta) e, por outro, as gritantes desigualdades sociais.
Entretanto, num ato de salvação ufanística, a ditadura impunha no
imaginário coletivo nacional, por via dos grandes meios de comunicação
social, farsas e febres de números, celebrando "os feitos mais fúteis a fim de

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 189


Capítulo III

dissimular o vazio espiritual da vida contemporânea" (Leitão, 2007, p.


208).
Ainda na década de 1950, outros poetas enveredariam pela
militância social e pela renovação formal, como João Cabral de Melo Neto,
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Vinicius de Moraes (1913-
1980) (cujas poesias mais expressivas desse movimento são A Rosa de
Hiroxima (1954) e Operário em Construção (1959)16) ou Ferreira Gullar
(pseudónimo de José Ribamar Ferreira (1930-2016))17.
Segundo Leitão (2007), é depois de 1945 que a poesia brasileira,
graças à terceira geração modernista que então se conforma, alcança "um
nível de maturidade impressionante" (p. 201). Ainda que aquela poética
assista à criação ora intimista, em que poetas se posicionam próximos da
tradicional forma, ora conteudística, ambas, porém, privilegiam o mundo do
trabalho, da técnica e das tensões tecnológicas, revelando a cultura e a
sociedade em que aquela se manifesta, dando à poesia a " direção da
objetividade" (Bosi, 2005, p. 501).
Apesar de a inserção de um conjunto de poetas numa terceira
geração modernista ser plausível, outros existem cuja classificação num ismo
parece difícil, uma vez que a sua poesia não pode ser, apenas, explicada
através da geração à qual cronologicamente pertencem, nem através da
simples herança estética e ideológica que havia animado o grupo modernista
de 1922. Neste caso, situam-se Ferreira Gullar e João Cabral de Melo Neto,
que Bosi (2005) classifica como autores da "nova objetividade, qualificação
superior a neorrealismo" (p. 502).

16
É durante a sua permanência em Los Angeles (1946-1950) e em Paris (1953-1957) que
Vinicius de Moraes vai escrever os expressivos poemas referidos, A rosa de Hiroxima e
Operário em construção, este último denunciador da alienação do trabalhador que, uma vez
contemplando o fruto do seu trabalho, toma consciência do papel que exerce na sociedade.
17
Alertamos, contudo, para o facto de que a inserção quer de Cabral, quer de Gullar, numa
geração estética precisa é, não apenas difícil, como, ainda hoje, objeto de discussão.

190 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

A poesia de João Cabral de Melo Neto estende-se de 1942 (Pedra


do Sono) a 1966 (Educação pela Pedra). No seguimento dos poetas Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987) e Murilo Mendes (1901-1975), o
poeta procurou excluir das suas poesias tudo o que remetesse para a
sentimentalidade ou para o pitoresco, "ficando-lhe nas mãos a nua intuição
das formas (de onde o geometrismo de alguns poemas seus) e a sensação
aguda dos objetos que delimitam o espaço do homem moderno" (Bosi,
2005, p. 502). Afirmando uma nova dimensão do discurso lírico, Cabral
passou de uma linguagem autocentrada, como em Antiode, para o
tratamento de temas naturais e humanos da província a que pertencia, como
em O Cão Sem Plumas (ou seja, o rio Capibaribe), onde o prosaísmo se
cruza com a polirritmia própria da linguagem coloquial.
Em Morte e Vida Severina, Cabral elabora o seu mais longo poema,
combinando, num equilíbrio magistral, o formalismo com a temática
regionalista, contando o roteiro de Severino, nordestino do Agreste de
Pernambuco que, a caminho do litoral, cruza, frequentemente, nas suas
paragens, a morte - presença sem nome e coletiva -, até que, na paragem
final, lhe chega a notícia do nascimento de um menino, filho de mais um
José Carpinteiro, numa clara referência pagã ao simbólico nascimento de
Jesus.
A esperança, afinal, respira, vive e renasce na Natureza de cada
Homem.
O poema é, pois, uma homenagem à resistência do povo nordestino,
personificado na figura de Severino. Acompanhando Severino pelo sertão,
reconhecemos o mesmo conjunto de privações de Fabiano e de Sinhá
Vitória, de Vidas Secas, e identificamos o latifúndio denunciado por
Graciliano quando Severino, assistindo ao enterro de um trabalhador, ouve o
que dizem da morte, e do morto, os amigos que o enterram:

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 191


Capítulo III

João Cabral de Melo Neto – Morte


e Vida Severina (1956)
- É uma cova grande
- Essa cova em que estás, para teu pouco defunto,
com palmos medida, mas estarás mais ancho
é a conta menor que estavas no mundo.
que tiraste em vida.
- É uma cova grande
- É de bom tamanho, para teu defunto parco,
nem largo nem fundo, porém mais que no mundo
É a parte que te cabe deste te sentirás largo.
latifúndio.
- É uma cova grande
- Não é cova grande, para tua carne pouca,
é cova medida, mas a terra dada
é a terra que querias não se abre a boca.
ver dividida.

Ferreira Gullar, por seu lado, não apenas abre caminho à poesia
concretista, como transpõe temas e ritmos da literatura de cordel (João Boa-
Morte, Cabra Marcado pra Morrer, Quem Matou Aparecida (1962)). Os
poemas de Gullar são, segundo Bosi (2005), sempre participantes, uma vez
que "noticiando a morte de homem quase anônimo ou prateando o fim de
Che Guevara, é sempre a mesma voz que sopra em cada palavra o hálito da
vida" (p. 507). Enquanto em alguns poemas transparecem as tensões sociais
próprias do seu tempo, em outros, como em Poema Sujo, de 1976, Gullar
une a saudade e o desespero à memória, numa poesia aparentemente
desideologizada que não respeita os muros do tempo e vai ao encontro da
musicalidade princeps da poesia.
O segundo livro de poemas de Gullar - A Luta Corporal (1954) -,
ainda que revelando preocupações e tensões sociais contemporâneas do
autor, anuncia, porém, inovações formais que anunciariam e se
consolidariam com o advento da poesia concretista.

192 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

O Concretismo e a Práxis constituirão os dois movimentos de


vanguarda brasileiros, pós-Segunda Guerra Mundial.
O Concretismo corresponde a uma fase estética que valoriza e
incorpora aspectos geométricos nas diferentes manifestações artísticas, seja
na música, na poesia ou nas artes plásticas. O seu marco inicial ocorre em
1952, com a publicação da revista Noigrandes, fundada por Décio Pignatari
(1927-2012), Haroldo de Campos (1929-2003) e Augusto de Campos (n.
1931).
Quatro anos mais tarde, a Exposição Nacional de Arte Concreta, na
cidade de São Paulo, vai consolidar esta nova vertente da literatura brasileira.
A arte concreta opta pelo uso das disponibilidades gráficas que as
palavras permitem, sem que o esteticismo da forma tradicional da poesia seja
uma preocupação. Frequentemente designado de poema-objeto, este tipo de
poesia engloba atributos muito peculiares que o aproximam ora da pintura,
ora da escultura, numa sucessão de polissemias rítmicas que nos reenviam
para o ritmo acelerado da indústria e do espaço urbano.

Augusto de Campos (1962)

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 193


Capítulo III

Vejamos, de seguida, as principais características da poesia concretista:

Características da poesia concretista:

◊ eliminação do verso;
◊ decomposição das palavras;
◊ exploração de aspectos sonoros, visuais e semânticos dos vocábulos;
◊ uso de neologismos;
◊ aproveitamento do espaço em branco da página;
◊ possibilidade de múltiplas leituras.

Décio Pignatari (1957)

194 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1.4.1. AUTORES MAIS REPRESENTATIVOS

1. Guimarães Rosa Conferência da UNESCO, em Paris


(1908-1967) (1948), e delegado do Brasil à IV
Sessão da Conferência Geral da
João Guimarães Rosa nasceu em UNESCO, em Paris (1949). Em
Cordisburgo, no Estado de Minas 1951, de volta ao Brasil, é nomeado
Gerais, em 27 de junho de 1908. chefe de gabinete do ministro João
Foi médico, escritor e diplomata. Neves da Fontoura e, em 1953,
A sua estreia literária deu-se, em chefe da Divisão de Orçamento. Em
1929, com a publicação, na revista 1962, assumiu a chefia do Serviço
O Cruzeiro, do conto O mistério de de Demarcação de Fronteiras.
Highmore Hall, um ano antes de A publicação do livro de contos
terminar o curso de Medicina, pela Sagarana, em 1946, garantiu-lhe um
Faculdade de Medicina da lugar de destaque no panorama
Universidade de Minas Gerais. Em literário brasileiro, graças à
1936, a coletânea de versos Magma linguagem e à estrutura narrativa
recebeu o Prémio Academia inovadoras, assim como à
Brasileira de Letras. incorporação na exegese de uma
Diplomata (passara um concurso importante componente
em 1934), foi cônsul em Hamburgo simbológica: "Do mimetismo entre
(1938-42), secretário de embaixada o culto e o folclórico de Sagarana, o
em Bogotá (1942-44), chefe de escritor soube zarpar para ousadas
gabinete do ministro João Neves da combinações de som e de forma"
Fontoura (1946), primeiro- (Bosi, 2015, p. 459). O
secretário e conselheiro de regionalismo volta, desta forma,
embaixada em Paris (1948-51), com Guimarães Rosa, ao primeiro
secretário da Delegação do Brasil à plano da estética literária brasileira.
Conferência da Paz, em Paris Em 1952, realizou uma longa
(1948), representante do Brasil na excursão ao Mato Grosso e escreveu
Sessão Extraordinária da o conto "Com o vaqueiro

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 195


Capítulo III

Mariano". Esta viagem fez com que regional, reinterpretando


Guimarães Rosa entrasse em diálogo miticamente a realidade através de
com cenários, personagens e símbolos e mitos universais, e
histórias que, mais tarde, recriaria recriando experiências humanas
em Grande sertão: Veredas. É o através de uma inovação formal e
único romance escrito por estilística: "nessa tarefa de
Guimarães Rosa e uma das mais experimentação e recriação da
importantes obras da literatura linguagem, usou de todos os
brasileira: "Após a sua leitura, recursos, desde a invenção de
começou-se a entender de novo uma vocábulos, por vários processos, até
antiga verdade: que os conteúdos arcaísmos e palavras populares,
sociais e psicológicos só entram a invenções semânticas e sintáticas, de
fazer parte da obra quando tudo resultando uma linguagem que
veiculados por um código de arte não se acomoda à realidade, mas que
que lhes potencie a carga musical e se torna um instrumento de
semântica" (Bosi, 2015, p. 458). captação da mesma, ou de sua
Através da personagem recriação, segundo as necessidades
Riobaldo, Guimarães Rosa dá a do "mundo" do escritor"
conhecer uma Minas Gerais que (Academia Brasileira de Letras) 18 .
havia, até então, sido deslocada do Com Guimarães Rosa, o signo
centro da historiografia produzida estético (a palavra) é portador de
sobre o Estado. Guimarães Rosa "sons e de formas que desvendam,
revela o sertão mineiro, território de fenomenicamente, as relações
jagunços, de coronéis, de gado, de íntimas entre o significante e o
campos imensos, de um cerrado significado" (Bosi, 2015, p. 458),
árido e bruto. graças a uma imersão na fala
Grande Sertão: Veredas foi sertaneja e à fixação, por escrito, das
publicado em 1956, no mesmo ano melodias, ritmos, da sintaxe arcaica,
da publicação do ciclo novelesco da cadência e ritmo daquela.
Corpo de baile.
Em ambas as obras, Guimarães
18
URL:
http://www.academia.org.br/academicos/j
Rosa faz uso do material de origem oao-guimaraes-rosa/biografia

196 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Em 1963, é eleito para a (1956) (dividida em três novelas:


Academia Brasileira de Letras. Manuelzão e Miguilim, No
Faleceu no Rio de Janeiro, a 19 Urubuquaquá, No Pinhém e Noites
de novembro de 1967. do Sertão); Grande Sertão: Veredas
(1956); Primeiras Estórias (1962);
Principais obras: Magma (1936); Campo Geral (1964); Noites do
Sagarana (1946); Com o Vaqueiro Sertão (1965).
Mariano (1947); Corpo de Baile

João Guimarães Rosa – Grande Sertão:Veredas (1956)


– Nonada. Tiros que o senhor ouviu ouviu foram de briga de homem não,
Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto.
Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar.
Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com
máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como
nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de
cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem
for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas
risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir,
instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o
sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a
dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de
Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez,
quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-
jesus, arredado do arrocho de autoridade.

João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Nova Aguilar, 1994, p. 3.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 197


Capítulo III

Comentário:

Um simples vaqueiro torna-se chefe de um grupo de jagunços. No final da


vida, volta a uma pacata existência, contando-nos as suas aventuras e desventuras
passadas. Neste recito surge Diadorim, personagem graciliano que representa o
recalque da natureza feminina perante a imposição de uma cultura patriarcal
dominante. Diadorim esconde um profundo segredo, contudo não consegue impedir
que, no porvir, o segredo seja desvendado perante a sua nudez, exposta depois da
morte. É, portanto, apenas depois da sua morte, que a mulher, sempre calada, se pode
assumir como tal: "o mundo é uma encruzilhada de veredas sem fim, que afinam e
desafinam para nos dizer que nada é eterno sobre as várias faces da Terra" (Leitão,
2007, p. 201).

2. Clarice Lispector O seu interesse pela literatura é


(1926-1977) muito precoce: quando tinha,
aproximadamente, 10 anos, escreveu
Clarice Lispector nasceu a 10 de a peça teatral Pobre Menina Rica e
dezembro de 1920, em enviou contos infantis para o Diário
Tchetchelnik, na Ucrânia, com o de Pernambuco.
nome Haia Pinkhasovna Lispector. Cinco anos depois de a família se
Ainda criança, emigrou com a ter mudado para o Recife, no
sua família para o Brasil, a qual fugia Estado do Pernambuco, em 1940,
da Guerra Civil Russa (1918- ficou órfã de mãe. Em 1939, entrou
1921), instalando-se, inicialmente, para a Faculdade Nacional de
em Maceió, e, posteriormente, em Direito da Universidade do Brasil
Recife. Por iniciativa dos seus pais, (atual UFRJ). Entretanto, fez
passou a chamar-se Clarice; uma vez traduções de textos científicos para
completados os 21 anos, revistas e trabalhou como secretária.
naturalizou-se brasileira. Durante a Em 1940, os contos "Triunfo" e
sua infância, estudou inglês, francês "Eu e Jimmy" foram publicados,
e hebraico (Clarice era de origem respectivamente, no semanário Pan e
judaica). na revista Vamos Ler!. Nesse

198 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

mesmo ano inicia, igualmente, a sua É a partir de então que


carreira de jornalista, e, dois anos intensifica a sua produção literária,
depois, com apenas 22 anos, recebeu publicando as suas principais obras:
o seu primeiro registo profissional Laços de Família (1960) - pela qual
como redatora do jornal A Noite. recebeu o Prémio Jabuti -, A Maçã
Em 1943, casou-se com o seu no Escuro (1961), A Legião
colega de faculdade, Maury Gurgel Estrangeira (1964), A Paixão
Valente, e, em dezembro do mesmo Segundo G.H. (1964) ou Água
ano, publicou o seu primeiro Viva (1973). A sua última obra, A
romance, Perto do Coração Hora da Estrela, foi publicada em
Selvagem, um romance urbano e 1971, dois meses antes de falecer,
psicológico que destoava da ficção tendo ganho o Prémio Jabuti, em
regionalista e social dominante na 1978, e uma versão cinematográfica
época. O romance permitiu a em 1985, com realização de Suzana
Clarice vencer o Prémio Graça Amaral. A protagonista do filme, a
Aranha, da Academia Brasileira de atriz Marcélia Cartaxo, conquistou,
Letras (ABL). em 1986, o troféu Urso de Prata,
Em 1944, partiu para o exterior no Festival de Berlim.
para acompanhar o marido, então Como obras póstumas, surgiram:
em início de carreira diplomática, Um Sopro de Vida, A Bela e a Fera
vivendo cerca de 15 anos fora do (contos) e A Descoberta do Mundo.
Brasil. Em 1948, teve o seu primeiro Esta última obra reúne as crónicas
filho, na Suíça, e, cinco anos mais que Clarice escreveu para o Jornal
tarde, o segundo, nos Estados do Brasil, entre agosto de 1967 e
Unidos. Em 1959, cansada da vida dezembro de 1973.
itinerante, separou-se do marido e Grande parte da crítica destaca a
voltou com os filhos para o Rio de influência de autores europeus do
Janeiro. Trabalha, então, como início do século XX (como Virgínia
jornalista no Correio da Manhã e no Woolf, James Joyce, Jean-Paul
Diário da Noite, onde assinou Sartre e Marcel Proust) na obra de
colunas sobre o universo feminino. Clarice. As suas obras mergulham
no seu próprio interior, revelando a

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 199


Capítulo III

sua cosmovisão e dramas, depois de voltar do exterior, para o


abarcando, igualmente, temáticas Brasil.
existenciais e psicológicas,
exploradoras do mundo interior dos Principais obras: Perto do
personagens, as suas sensações, Coração Selvagem (1942); O Lustre
memórias e pensamentos. (1946); A Cidade Sitiada (1949);
A obra de Clarice ganhou Laços de Família (1960); A Maçã
projeção, sobretudo, depois da sua no Escuro (1961); A Legião
morte, especialmente a partir do ano Estrangeira (1964); A Paixão
2000, quando o académico norte- Segundo G. H (1964); O Mistério
americano Benjamin Moser lança do Coelho Pensante (1967); A
uma completa e trabalhada biografia Mulher que Matou os Peixes
da escritora, o que, juntamente com (1968); Uma Aprendizagem ou O
traduções dos seus livros, a tornou Livro dos Prazeres (1969);
conhecida nos Estados Unidos e a Felicidade Clandestina (1971);
um vasto público anglófono. Água Viva (1973); A Imitação da
Em 2016, foi homenageada com Rosa (1973);Via Crucis do Corpo
uma estátua pública feita em bronze, (1974); Onde Estivestes de Noite?
instalada na Praia do Leme, bairro (1974); Visão do Esplendor
onde morou mais de uma década, (1975); A Hora da Estrela (1977).

3. João Cabral de Melo Neto Parte da infância de João Cabral


(1920-1999) foi vivida em engenhos da família,
nos municípios de São Lourenço da
João Cabral de Melo Neto Mata e de Moreno (Estado do
nasceu na cidade do Recife, a 6 de Pernambuco). Aos dez anos, estuda
janeiro de 1920. Era primo, pelo num colégio no Recife, cidade onde,
lado paterno, do poeta Manuel a partir de 1938, já com 18 anos,
Bandeira, e de Gilberto Freyre, pelo frequentaria o conhecido Café
lado materno.

200 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Lafayette, ponto de encontro de o prémio de Melhor Autor Vivo, no


intelectuais pernambucanos. Festival de Nancy. Ganhou diversos
Em 1940, a família transferiu-se outros prémios pelas suas obras, dos
para o Rio de Janeiro, cidade onde quais se destacam o Prémio Camões,
João Cabral conheceu Murilo concedido pelos governos de
Mendes, Carlos Drummond de Portugal e do Brasil e considerado o
Andrade, Jorge de Lima e outros mais importante prémio para
intelectuais da época. Em 1942, escritores de língua portuguesa, e o
publica o seu primeiro livro de Prémio Jabuti.
poemas, Pedra do Sono, edição Em 1968, é eleito para a
custeada pelo próprio. Academia Brasileira de Letras,
No Rio de Janeiro, depois de ter tomando posse em 1969.
sido funcionário público, inscreveu-
se, em 1945, no concurso para a Principais obras: Considerações
carreira de diplomata, iniciando uma sobre o Poeta Dormindo (1941);
peregrinação por diversos países. Em Pedra do Sono (1942); Os Três
1984, é designado para o posto de Mal-Amados (1943); O Engenheiro
cônsul-geral na cidade do Porto (1945); Joan Miró (1950); O Rio
(Portugal). ou Relação da Viagem que faz o
Volta ao Rio de Janeiro em Capibaribe de sua Nascente à
1987, cidade onde viria a falecer, Cidade do Recife (1954); Morte e
aos 79 anos, no dia 9 de outubro de Vida Severina: Auto de Natal
1999. Pernambucano, 1954-1955 (1956);
A atividade literária Quaderna (1960); Dois
acompanhou-o durante todos os Parlamentos (1961); A Educação
anos que passou quer no exterior, pela Pedra (1966); O Arquivo das
quer no Brasil, tendo sido agraciado Índias e o Brasil (1966); Museu de
com diversos prémios. Em 1956, a Tudo (1975); A Escola das Facas,
editora José Olympio lançou a sua Poesias, 1975-1980 (1980); Auto
obra mais conhecida Morte e Vida do Frade (1984); Crime da Calle
Severina: Auto de Natal Relator (1987); Primeiros Poemas
Pernambucano, com a qual recebeu (1990); Sevilha Andando (1990).

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 201


Capítulo III

João Cabral de Melo Neto – Somos muitos Severinos


Morte e Vida Severina: Auto de Natal iguais em tudo na vida:
pernambucano (1954-1955) (1956) na mesma cabeça grande que a custo é que
se equilibra,
O RETIRANTE EXPLICA AO no mesmo ventre crescido
LEITOR sobre as mesmas pernas finas,
QUEM É E A QUE VAI e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
- O meu nome é Severino, E se somos Severinos
como não tenho outro de pia. iguais em tudo na vida,
Como há muitos Severinos, morremos de morte igual,
que é santo de romaria, mesma morte severina:
deram então de me chamar que é a morte de que se morre
Severino de Maria; de velhice antes dos trinta,
como há muitos Severinos de emboscada antes dos vinte,
com mães chamadas Maria, de fome um pouco por dia
fiquei sendo o da Maria (de fraqueza e de doença
do finado Zacarias. é que a morte severina
Mais isso ainda diz pouco: ataca em qualquer idade,
há muitos na freguesia, e até gente não nascida).
por causa de um coronel Somos muitos Severinos
que se chamou Zacarias iguais em tudo e na sina:
e que foi o mais antigo a de tentar despertar
senhor desta sesmaria. terra sempre mais extinta,
Como então dizer quem falo a de querer arrancar
ora a Vossas Senhorias? algum roçado de cinza.
Vejamos: é o Severino Mas, para que me conheçam
da Maria do Zacarias, melhor Vossas Senhoritas
lá da serra da Costela, e melhor possam seguir
limites da Paraíba. a história de minha vida,
Mas isso ainda diz pouco: passo a ser o Severino
se ao menos mais cinco havia que em vossa presença emigra.
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
João Cabral de Melo Neto. Morte e Vida
mulheres de outros tantos,
Severina: Auto de Natal Pernambucano. Rio de
já finados, Zacarias, Janeiro: Alfaguara, 2016, pp. 21-22.
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.

202 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Comentário:
A poesia de João Cabral de Melo Neto é uma complexa construção poética
na qual confluem elementos prosaicos e se recusa "a tradição melódica e vocálica da
nossa língua, por considerá-la entorpecente" (Leitão, 2007, p. 204). O rigorismo
formal da sua poesia não o impede, contudo, de optar por temáticas e preocupações
sociais, como a triste vida e morte do sertanejo nordestino. Morte e Vida Severina é
um hino à resistência e luta pela sobrevivência do nordestino que, deixando a sua
região natal, ruma à capital, de forma a fugir ao assédio da morte severina e ao duro
destino que se adivinhava. No seu percurso é evidente a intertextualidade com
Fabiano e Sinhá Vitória, personagens da obra de Graciliano Ramos, Vidas secas,
movendo-se, em pano de fundo, a secular prepotência e voracidade do latifúndio
brasileiro. A esperança, no entanto, assume-se no nascimento de mais um José
Carpinteiro, numa clara referência pagã ao nascimento de Jesus, esperança de um
mundo novo e sadio.

4. Carlos Drummond de Entretanto, estabelece contato


Andrade com os modernistas de São Paulo,
(1982-1987) publicando, em 1928, na Revista de
Antropofagia, o poema No meio do
Carlos Drummond de Andrade caminho.
nasceu em ltabira, no Estado de Em 1930, assume o cargo de
Minas Gerais, em 1902. oficial de gabinete de Capanema,
Fez os estudos secundários em então secretário do Interior de
Belo Horizonte e em ltabira. Em Minas Gerais. Em 1942, a Editora
1921, começou a colaborar com o Livraria José Olympio publica as
Diário de Minas, diplomando-se, suas Poesias, obra que lhe trará o
quatro anos depois, em farmácia. reconhecimento nacional. Em 1945,
inicia funções na Diretoria do

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 203


Capítulo III

Património Histórico e Artístico Poucos tiveram força para


Nacional (DPHAN), atividade que arrancar a sua obra ao
experimentalismo hedonístico, e
apenas cessará aquando da reforma, se perderam na piada, na
em 1962. virtuosidade e na ação política
Entre 1969 e 1984, assina uma reacionária. (...)
coluna semanal no Jornal do Brasil. Mas veio 30, e com ele, os filhos
espirituais do pessoal de 20. A
Em Julho de 1943, Antônio geração que se situa acima da
Cândido, respondendo a um nossa, e da qual nós dependemos
inquérito realizado por Mário de perto (...)
Neme para O Estado de S. Paulo, Para falar a verdade, com os de 30
é começa a literatura brasileira.
reflete sobre os principais nomes da Surgem os escritores que pouco
literatura brasileira, cujo destaque se devem ao modelo estrangeiro, os
dá no início da década de 1940. O estudiosos que começam a
então jovem crítico da revista Clima, sistematizar o estudo do Brasil e
proceder à análise generalizada
com apenas 25 anos, diz de dos seus problemas (Cândido,
imediato que a síntese da sua 2002, p. 239-240).
reflexão pode ser encontrada num
poeta que vem da geração anterior, Drummond afirma-se, neste
Carlos Drummond de Andrade, sentido, como uma referência para a
referindo que os poemas A Rosa do poesia, já depois do primeiro
Povo são os que melhor expressam o modernismo. Cândido acrescenta
tempo de inquietude e de melancolia que o grande problema da sua
(Cândido, 2002): geração é o medo, pelo que a grande
tarefa que considera, naquele então,
Mas Carlos Drummond de de importância fulcral é ―o combate
Andrade é uma exceção. A sua a todas as formas de pensamento
geração foi uma geração
autoritário‖ (p. 245), elegendo,
sacrificada... por excesso de êxito.
A gente de 22, que é mais ou neste contexto, o poeta mineiro
menos a dele, prestou um grande como o intelectual modelo para a
serviço ao Brasil, tornando sua geração.
possível a liberdade do escritor e
do artista. (...)
No ensaio Inquietudes na Poesia
de Drummond, Cândido (2011)

204 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

reflete sobre a subjetividade na obra também o eu encontrar presença na


do Carlos Drummond: poesia de Drummond, tal presença
seria, no caso deste poeta, "uma
Há nela constante invasão de espécie de pecado poético inevitável,
elementos subjetivos, e seria em que precisa incorrer para criar,
mesmo possível dizer que toda a
sua parte mais significativa mas que o horroriza à medida que o
depende das metamorfoses ou das atrai. O constrangimento (que só
projeções em vários rumos de uma poderia tê-lo encurralado no
subjetividade tirânica, não importa silêncio) só é vencido pela
saber até que ponto
autobiográfica. necessidade de tentar a expressão
Tirânica e patética, pois cada grão libertadora, através da matéria
de egocentrismo é comprado pelo indesejada‖ (p. 69).
poeta com uma taxa de remorso e Alfredo Bosi (2015), por seu
incerteza que o leva a querer
escapar do eu, sentir e conhecer o lado, reconhece em Carlos
outro, situar-se no mundo, a fim Drummond de Andrade a captação
de aplacar as vertigens interiores. de um ―hiato entre o parecer e o ser
(…) dos homens e dos fatos que acaba
Trata-se de um problema de
identidade ou de identificação do virando matéria privilegiada de
ser, de que decorre o movimento humor‖, (p. 474), sendo esse,
criador da sua obra na fase ademais, um traço permanente da
apontada, dando-lhe um peso de sua obra poética. Acrescenta, ainda,
inquietude que a faz oscilar entre
o eu, o mundo e a arte, sempre que ―desde Alguma Poesia foi pelo
descontente e contrafeita (p.68). prosaico, pelo irônico, pelo anti-
retórico que Drummond se firmou
Nesta consideração, sintetizam- como poeta congenialmente
se, aliás, os elementos que moderno‖( p. 475).
caracterizam a proposta teórico- Em 1987, doze dias após a
crítica de Cândido: a busca do morte da sua filha, Maria Julieta,
equilíbrio entre o eu, o mundo e a morre também o poeta.
arte, e a crítica a uma atitude
centralizadora egocêntrica do poeta
no seu eu. Contudo, apesar de

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 205


Capítulo III

Principais obras: (1984); Amar se Aprende Amando


Poesia: Alguma Poesia (1930); (1985); O Amor Natural (1992).
Brejo das Almas (1934); Prosa (contos, ensaios e
Sentimento do Mundo (1940); crónicas): Confissões de Minas
Poesias (1942); A Rosa do Povo (1944); Contos de Aprendiz
(1945); Claro Enigma (1951); (1951); Passeios na Ilha (1952);
Viola de Bolso (1952); Fazendeiro Fala, Amendoeira (1957); A Bolsa e
do Ar (1954); A Vida Passada a a Vida (1962); Cadeira de Balanço
Limpo (1959); Lição de Coisas (1970); O Poder Ultrajovem e mais
(1962); Boitempo (1968); As 79 Textos em Prosa e Verso
Impurezas do Branco (1973); A (1972); Boca de Luar (1984);
Paixão Medida (1980); Corpo Tempo Vida Poesia (1986).

Carlos Drummond de Andrade – "A Flor e a Náusea"


(in A Rosa do Povo (1945))

Preso à minha classe e a algumas roupas,


vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:


Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre


fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.


Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar este tédio sobre a cidade.

206 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Quarenta anos e nenhum problema


resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?


Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.


Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.


Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde


e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 207


Capítulo III

Comentário:
Em 1945, Carlos Drmmund publica A Rosa do Povo, obra composta por 55
poemas, nos quais condena a vida mecanizada e desumana do tempo seu
contemporâneo, alertando para a ausência de um mundo pautado pela justiça (que
deveria substituir a falta de solidariedade do mundo em que vive). A poesia de
carácter social assume uma nova dimensão, abordando-se temas como a angústia, o
medo, o tédio e a solidão do homem moderno. O artista preocupa-se, em suma, com a
função da poesia, aliando um conteúdo de temática social com o rigor e a beleza do
discurso lírico.

5. Cecília Meireles Andrade Muricy e outros, a qual


(1901-1964) pugnava pelo universalismo e pela
preservação dos valores tradicionais
Cecília Meireles nasceu no dia 7 da poesia.
de novembro de 1901, no Rio de Ainda em 1922, casa-se com o
Janeiro. ilustrador português, Correia Dias,
O seu pai morrera quando ela pai das suas três filhas, que, em
ainda não tinha nascido e, pouco 1935, se suicidaria; casar-se-ia, cinco
tempo depois, com apenas três anos, anos depois, com o professor e
perderia a sua mãe. A sua infância engenheiro agrónomo, Heitor Grilo.
foi, deste modo, marcada pela Os seus primeiros passos na
orfandade, elemento que poesia estavam a ser dados quando,
influenciaria, igualmente, a sua obra em 1922, nasce o Modernismo.
poética. Porém, a sua obra é, sobretudo,
Em 1919, lançou o seu primeiro marcada pelo simbolismo, na esteira
livro de poemas, Espectros, e, três de Verlaine e de Rimbaud, havendo
anos mais tarde, por ocasião da uma clara recorrência a elementos
Semana de Arte Moderna, espiritualistas ou orientais: "a poesia
participou do grupo da revista Festa, ceciliana caracteriza-se, no plano
juntamente com Tasso da Silveira, formal, pela riqueza de recursos

208 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

estilísticos, em imagens que se Ou Isto ou Aquilo (1965); Poemas


sucediam umas às outras, num Italianos (1968).
crescendo constante, até atingirem a
temática do objetivo colimado. É
mística, espiritual, sentida, quase
musical, lírica, metricamente bem
definida" (Academia Brasileira de
Letras) 19 . Cultivou uma poesia
reflexiva, de fundo filosófico,
abordando temas como a
transitoriedade da vida, o tempo, o
amor, o infinito e a natureza.
Cecília Meireles faleceu no Rio
de Janeiro, no dia 9 de novembro de
1964.

Principais obras (prosa, crónicas,


poesia): Espectros (1919); Nunca
Mais... e Poema dos Poemas
(1923); Baladas Para El-Rei Cecília Meireles, desenho de
(1925); Viagem (1925); Vaga Apard Szènes, 1942
Música (1942); Mar Absoluto
(1945); Evocação Lírica de Lisboa
(1948); Doze Noturnos de Fonte: https://observador.pt/especiais/grande-
cecilia/
Holanda e o Aeronauta (1952);
Pequeno Oratório de Santa Clara
(1955); Giroflê, Giroflá (1956);
Romance de Santa Cecília (1957);
Poemas Escritos na Índia (1962);
19
URL:
http://www.academia.org.br/artigos/cecili
a-meireles-deusa-e-poeta

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 209


Capítulo III

6. Vinicius de Moraes20 de Faria, San Thiago Dantas,


(1913-1980) Américo Lacombe, Hélio Viana,
Plinio Doyle, Chermont de Miranda
Vinicus de Moraes nasceu no dia e Antonio Galloti.
19 de outubro, no Rio de Janeiro, Em 1932, publica, pela primeira
com o nome de batismo Marcus vez, um poema da sua autoria, na
Vinitius da Cruz de Melo Moraes. revista A Ordem. A publicação,
Porém, registará, com apenas 9 anos, editada pelo intelectual católico e
o nome Vinicius de Moraes. crítico literário Tristão de Ataíde,
Em 1922, no ano da Semana de apresenta um jovem e conservador
Arte Moderna em São Paulo, Vinicius, com um poema bíblico de
Vinicius já escreve os primeiros 152 versos intitulado A
versos e poemas, no colégio. Em Transfiguração da Montanha. Neste
1928, compõe as primeiras canções. mesmo ano, os irmãos Tapajós
Com Haroldo Tapajós compõe gravam Loura e Morena e Canção
Loura ou Morena e com Paulo da Noite, composições que haviam
Tapajós compõe Canção da Noite sido feitas, quatro anos antes, com
(um fox-trot brasileiro e uma Vinicius.
berceuse, como diria posteriormente Em 1933, termina o curso de
o próprio Vinicius). Em 1929, Direito e publica o seu primeiro
torna-se Bacharel em Letras, pelo livro de poemas, O Caminho para a
Colégio Santo Inácio. Distância, e, em 1935, publica
Com apenas 17 anos, entra na Forma e Exegese. Em 1938, com a
Faculdade de Direito do Rio de publicação de Novos Poemas,
Janeiro. Aqui, conhece um grupo de Vinicius afirma-se como um dos
intelectuais que marcaria nomes mais importantes da
definitivamente a sua vida: Otávio chamada Geração de 30,
consolidando-se a maturação formal
20
A biografia de Vinicius de Moraes teve e temática da sua poesia.
como fonte privilegiada o site dedicado ao Em 1941, escreve críticas
músico: cinematográficas no jornal A
http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-
br/vida Manhã, dirigido por Múcio Leão e

210 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Cassiano Ricardo. Em 1944, A partir de 1957, sucedem-se os


envereda pela carreira diplomática, lançamentos discográficos de Bossa
assumindo o seu primeiro posto em Nova, movimento no qual
1946, nos EUA, quando então participaria, a partir de 1959, com
mergulha na música e no cinema as suas composições, nomeadamente
estadunidenses. em parceria com João Gilberto e
Em 1950, viaja até o México Tom Jobim. A partir de 1962,
para visitar o seu amigo e cônsul- inicia uma estreita colaboração com
geral do Chile no país, Pablo Baden Powell, cuja plenitude seria
Neruda, que, já então doente, alcançada em 1966, aquando do
lançava o seu aclamado Canto geral. lançamento do disco Os
No país, conhece, igualmente, o Afrosambas. No ano seguinte,
pintor David Siqueiros e reencontra realiza, com Edu Lobo, uma série de
o amigo de juventude, e também canções, como Arrastão e Zambi.
pintor, Di Cavalcanti. No dia 13 de dezembro de
Em 1951, volta ao Brasil. 1968, data da instauração do Ato
Em 1952, fortalece a sua ligação Institucional nº 5, num espetáculo
com o cinema, percorrendo as em Portugal, Vinicius faz no palco,
cidades de Minas Gerais para como forma de protesto, uma leitura
escrever um roteiro para um filme do seu poema Pátria Minha, sendo
sobre o escultor mineiro exonerado, no ano seguinte, das suas
Aleijadinho. Em 1954, a sua peça funções públicas.
Orfeu da Conceição é premiada no Em 1977, participa, juntamente
concurso de teatro do IV com Tom Jobim, Miúcha e
Centenário do Estado de São Paulo Toquinho, de um histórico
e é publicada na revista Anhembi. espetáculo, um sucesso que ficaria
Inicia-se, então, um ciclo de sete meses em cartaz na casa de
trabalhos em redor de Orfeu, o qual espetáculos do Rio de Janeiro,
culminaria, em 1956, no filme Canecão.
Orfeu Negro, com produção de Em 1979, a convite do então
Sacha Gordine. líder sindical do ABC paulista, Luís
Inácio Lula da Silva, lê, numa

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 211


Capítulo III

assembleia, os seus poemas no Distância (1933); Forma e Exegese


Sindicato dos Metalúrgicos de São (1935); Ariana, a Mulher (1936);
Bernardo, entre eles o aclamado O Novos Poemas (1938); Cinco
Operário em Construção. Elegias (1943); Pátria Minha
Faleceu no dia 9 de julho de (1949); Para Viver um Grande
1980. Amor (1962); O Mergulhador
(1968); A Arca de Noé (1970);
Principal obra poética (devido à História Natural de Pablo Neruda
extensão das suas composições — A Elegia que Vem de Longe
musicais, não as incluímos nesta (1974); Breve Momento: Sonetos
seleção): O Caminho para a (1977); O Falso Mendigo (1978).

8. Ferreira Gullar justificassem. Pouco depois, aderiu,


(1930-2016) ele próprio, à poesia modernista,
adotando uma atitude oposta à que
José de Ribamar Ferreira tinha anteriormente. Torna-se,
(Ferreira Gullar) nasceu em São então, num poeta experimental,
Luís do Maranhão, no dia 10 de cultivando uma poesia sem
setembro de 1930. fórmulas, segundo a perspectiva de
Com dezoito anos, começa a que o poema se reinventa a cada
frequentar os bares da Praça João momento.
Lisboa e o Grémio Lítero- Em 1954, publica A Luta
Recreativo, onde, aos domingos, Corporal, obra que o lançaria no
havia leitura de poemas. Descobriu a cenário literário brasileiro. Seria,
poesia moderna aos dezanove anos, ademais, a partir desta obra, que a
quando lê os poemas de Carlos poesia concreta nasceria, tendo
Drummond de Andrade e de Gullar sido um dos seus
Manuel Bandeira. Ficou participantes ativos (para, contudo,
escandalizado com o novo tipo de posteriormente, dele se distanciar,
poesia e procurou ler ensaios que a integrando um grupo de artistas

212 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

plásticos e poetas do Rio de Janeiro: participando na luta contra a


o grupo Neoconcreto). Em 1959, ditadura. Devido à sua militância,
publicou o Manifesto Neoconcreto seria preso em 1968, decidindo,
no Jornal do Brasil. posteriormente, exilar-se. Viveu em
O movimento Neoconcreto Moscovo, Santiago do Chile, Lima e
surgiu em 1959, com um manifesto Buenos Aires. Foi durante o exílio
escrito por Gullar, seguido da em Buenos Aires que Gullar
Teoria do não-objeto. São escreveu Poema Sujo – um longo
expressões da arte neoconcreta as poema que é considerado a sua
obras de Lygia Clark e de Hélio obra-prima.
Oiticica. Voltou para o Brasil em 1977,
Gullar cria, então, o livro-poema, tendo sido preso e torturado.
depois, o poema espacial, e, Libertado graças à pressão
finalmente, o poema enterrado: internacional, voltou a trabalhar na
"Este consiste em uma sala no imprensa do Rio de Janeiro e,
subsolo a que se tem acesso por uma depois, como roteirista de televisão.
escada; após penetrar no poema, Fundou, ainda, com um grupo de
deparamo-nos com um cubo jovens dramaturgos e atores, o
vermelho; ao levantarmos este cubo, Teatro Opinião, o qual exerceu um
encontramos outro, verde, e sob este importante papel na resistência à
ainda outro, branco, que tem escrito ditadura.
numa das faces a palavra Em 2002, foi indicado para o
rejuvenesça" (Academia Brasileira de Prémio Nobel da Literatura.
Letras)21. Faleceu em 4 de dezembro de
Gullar envereda, depois, pela luta 2016, no Rio de Janeiro.
política, entrando, no mesmo ano
do golpe militar, para o PCB, Principais obras (poesia): Um
escrevendo poemas engajados e Pouco Acima do Chão (1949); A
Luta Corporal (1954); Poemas
21
URL: (1958); João Boa-Morte Cabra
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgil Marcado para Morrer (cordel)
ua.exe/sys/start.htm%3Fsid%3D1042/bi
ografia (1962); Quem Matou Aparecida?

| III. O século XX: O nascimento do Modernismo 213


Capítulo III

(cordel) (1962); A Luta Corporal e Progresso (1986); Em Alguma


Novos Poemas (1966); História de Parte Alguma (2010).
um Valente (cordel) (1966); Por
Você por Mim (1968); Dentro da Publicou, igualmente, ensaios,
Noite Veloz (1975); Poema Sujo crónicas, contos, peças de teatro,
(1976); Na Vertigem do Dia memórias, roteiros e literatura
(1980); Crime na Flora ou Ordem e infantil.

Devaneio, Di Cavalcanti (Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo),


1927

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa971/di-cavalcanti

214 III. O século XX: O nascimento do Modernismo |


Planisfério de Rumold Mercator (1587)

"Rumold Mercator (c.1545-1599) era filho do


geógrafo flamengo Gerard Mercator, o criador da
projeção cartográfica que leva o seu nome. Rumold
criou este planisfério com base no mapa do mundo de
1567, feito pelo seu pai".

(texto (adaptado) e imagem: http://www.mapas-


historicos.com/planisferio-mercator.htm)
Mundo de Jodocus Hondius (cerca de 1595)
Hemisfério ocidental

"O cartógrafo Jodocus Hondius (1563-1612) desenhou um


mapa com os dois hemisférios, mostrando as viagens à volta
do mundo de Francis Drake, entre 1577 e 1580, e de
Thomas Cavendish, entre 1586 e 1588. Nascido em
Flandres, Hondius mudou-se para Londres, onde realizou
vários mapas de excelente qualidade".

(texto (adaptado) e imagem: http://www.mapas-


historicos.com/mundo-hondius.htm)
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

IV. DA DITADURA MILI TAR À ATUALIDADE:


SOCIEDADE E ESTÉTICA S CONTEMPORÂNEAS

1. A DITADURA MILITAR (1964-1985):


REPRESSÃO, CENSURA E VIOLÊNCIA

Em 31 de março de 1964, sob os auspícios e com a anuência dos


EUA, um golpe militar é levado a cabo, no Brasil. É, então, afastado da
Presidência da República o Presidente eleito João Goulart, assumindo a
presidência o Marechal Castello Branco1. Instaura-se, a partir de então, uma
ditadura militar, cujo apoio da elite empresarial e agrária faz com que,
frequentemente, se designe de ditadura cívico-militar, a qual se prolongará
durante vinte e um anos (até à eleição de Tancredo Neves, em 1985).
Em termos discursivos, a ditadura recém-instalada, de forma a
justificar o golpe, vai recorrer a uma linguagem anticomunista, anunciando,
desde logo, a sua posição ideológica e as escolhas políticas que faria:

“A perspectiva mais alarmante da situação brasileira funda-se num dado


concreto que não é possível obscurecer. É o fato de que jamais em nossa História, e
até o presente, as esquerdas radicais - nomeadamente o comunismo e suas clássicas
correntes auxiliares - estiveram tão à vontade, desfrutaram tanto prestígio e
aproximaram-se tanto do êxito quanto no momento atual.
Por mais que negaceie, tergiverse e dissimule, o Sr. João Goulart, ninguém
poderá negar - porque está à vista de todos, porque é público e ostensivo - que os
elementos chamados de "formação marxista" não somente conseguiram infiltrar-se
facilmente em todos os postos, como também são os preferidos pelo govêrno para
esses postos, sobretudo os de comando e de direção.

1
O seu mandato presidencial teve início a 15 de abril de 1964 e finalizou em 15 de março
de 1967.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 217


Capítulo IV

Atualmente, no presente governo, que ainda se diz democrata, a ideologia


marxista e mesmo a militância comunista indisfarçada constituem recomendação
especial aos olhos do governo. Como se já estivéssemos em pleno regime "marxista-
leninista", com que sonham os que desejam incluir sua pátria no grande império
soviético, às ordens do Kremlin”.
(Diário de Notícias, 01/04/1964)
Fonte: https://acervo.oglobo.globo.com

“Caminharemos para a frente, com a segurança de que o remédio para os


malefícios da extrema esquerda não será o nascimento de uma direita reacionária,
mas o das reformas que se fizerem necessárias”.
(discurso de tomada de posse como Presidente da República do Marechal Castello Branco,
2
a 15 de abril de 1964)
Fonte: https://acervo.oglobo.globo.com

Poucos dias após a deflagração do golpe, é aprovado, pelo novo


regime, o primeiro de uma série de dezassete atos institucionais3 que serão
publicados ao longo da ditadura: o Ato Institucional número 1 (AI-1) que,
com onze artigos, permitia ao governo anular mandatos e suspender direitos
políticos, modificar a Constituição, anular mandatos legislativos,
interromper direitos políticos, demitir, colocar em disponibilidade ou
aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que se considerasse estar
contra a segurança do país, determinando, ainda, eleições indiretas para a
presidência da República. Foi assim que partidos políticos, sindicatos,
agremiações estudantis e outras organizações representativas da sociedade

2
Discurso em: https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/o-remedio-para-os-maleficios-
da-extrema-esquerda-nao-sera-nascimento-de-uma-direita-reacionaria-mas-das-reformas-
que-se-fizerem-necessarias-21604724
3
Ato Institucional (AI): conjunto de leis promulgado, sem a necessidade de aprovação
popular ou do Congresso Nacional, ou seja, mecanismo ditatorial utilizado pelo poder de
Estado.

218 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

foram suprimidas ou sofreram uma ingerência governamental. O Alto


Comando das Forças Armadas passou, por seu lado, a controlar a sucessão
presidencial, indicando um candidato militar que seria posteriormente
referendado pelo Congresso Nacional.
Castello Branco iniciou, desde logo, uma série de prisões arbitrárias
e de torturas a opositores, tendo muitos governadores perdido o seu
mandato, enquanto várias lideranças e militâncias sindicais e camponesas
foram mortas ou perseguidas.
Relativamente à problemática agrária, a ditadura militar vai ser a
responsável pela legislação de um novo Estatuto da Terra.
Se, até à década de 1960, as comunidades do sul e do centro-sul vão
sofrer uma explosão demográfica, o desenvolvimento demográfico e a
elevação dos preços da terra vai, já no final daquela década, pôr fim "à
abundância relativa de terras" (Maestri, 2005, p. 272), naquela região,
anunciando o fim de um período de "abundância relativa" (Maestri, 2005,
p. 272) - que conduzirá, aliás, a uma baixa da taxa de natalidade.
Esta situação vai dar origem ao surgimento de colonos sem terra, ou
de colonos com terra insuficiente para sustentar o núcleo familiar. É assim
que o Rio Grande do Sul, confrontando-se com uma situação de quase 300
mil famílias exigindo terra, vê nascer, na década de 1960, o primeiro
movimento de camponeses sem terra (cujo método de luta passava pela
ocupação da terra reivindicada) (Saldanha, 2018).
O golpe militar de 1964 vai, contudo, travar a ascensão desta luta
pela terra. Para além de reprimir violentamente os movimentos de
campesinos sem terra que vinham fazendo pressão sobre o Estado, a
ditadura militar procurou dirigir para a Amazónia aquela massa
trabalhadora. É, por esta razão, neste contexto, que a própria ditadura cria o
Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária (INCRA), em
1970, e promulga, logo em Novembro de 1964, o Estatuto da Terra, até
hoje, contraditória e ironicamente, "o mais eficaz instrumento para

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 219


Capítulo IV

desapropriação de terras para fins de reforma agrária" (Maestri, 2005, p.


273), nele encontrando-se legislativamente consagrado o conceito de função
social da terra - que perdura, aliás, na atual Constituição brasileira.
Sob a égide do Estatuto da Terra, e depois sob o impulso do
INCRA, é levado a cabo um alargado processo de colonização do território
brasileiro, num processo que pretendia fomentar a deslocação de populações
rurais para zonas despovoadas.
Em Janeiro de 1967 é imposta uma nova Constituição, a qual,
aumentando o poder do Executivo e limitando a autonomia dos Estados,
justifica legalmente a existência da ditadura.
É, também, em 1967, que assume a Presidência o General Arthur da
Costa e Silva4, cujo governo é marcado por diversos protestos, manifestações
e greves.
Em 21 de Junho de 1968 é organizada a Passeata dos Cem Mil5, a
qual reúne figuras nacional e internacionalmente consagradas nos seus
domínios de atuação (música, teatro, cinema, literatura, jornalismo). O
governo amplia, então, os meios de repressão e promulga, em 13 de
Dezembro de 1968, o AI-5: o Presidente poderia fechar o Congresso
Nacional, anular mandatos de parlamentares, demitir juízes, suspender
garantias do Poder Judicial, legislar por decretos, decretar o estado de sítio,
entre outras prerrogativas repressivas e autoritárias. O AI-5 esteve em vigor
até Dezembro de 1978, tendo produzido uma sucessão de ações arbitrárias.
Com a imposição do AI-5, definem-se claramente os objetivos repressivos e
violentos da ditadura militar, consagrando-se legalmente o poder de exceção
aos governantes, que podiam punir, arbitrariamente, todos aqueles que
fossem considerados inimigos da segurança nacional. No mesmo dia em que

4
O seu mandato presidencial teve início a 15 de Março de 1967 e finalizou em 31 de
Agosto de 1969.
5
Manifestação popular contra a ditadura brasileira, organizada pelo movimento estudantil,
em 26 de junho de 1968, na cidade do Rio de Janeiro. Contou com a participação de
artistas, de intelectuais e de vários outros setores da sociedade brasileira

220 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

é promulgado o AI-5, foi também decretado o recesso do Congresso


Nacional por tempo indeterminado: só em outubro de 1969 o Congresso
seria, aliás, reaberto, desta feita para referendar a escolha do General Emílio
Garrastazu Médici para a Presidência da República.
O impedimento de atuar na legalidade e o endurecimento do regime
fazem com que a luta armada se intensifique a partir de 19686: "A tarefa
estratégica fundamental da guerrilha brasileira é a libertação do Brasil, com a
expulsão do imperialismo dos Estados Unidos. Falando em termos de
guerra, essa tarefa estratégica fundamental consiste em aniquilar as forças do
inimigo, compreendendo-se como tal não só as forças militares do
imperialismo dos Estados Unidos, como as forças militares convencionais
dos gorilas brasileiros" (Marighella, 1967).
Como forma de encobrir o terror quotidiano, o governo propaga,
cada vez mais, a propaganda ufanista 7, com a grande imprensa a silenciar
qualquer notícia sobre a tortura e a violência do regime.
O movimento ufanista brasileiro foi criado logo após a imposição
da ditadura militar com o objetivo de desenvolver, entre os brasileiros, um
sentimento de orgulho nacional que veiculasse uma simpatia pelo regime
ditatorial. Para tal, o governo, sobretudo a partir de 1968, recorreu a uma
forte estratégia de marketing massivo, a qual associava um ideário
conservador e extremista a canções patrióticas populares, a hinos de escolas
de samba ou a cartazes. Pretendia-se que os brasileiros aceitassem as normas

6
O Brasil, durante o período ditatorial, conheceu os seguintes movimentos guerrilheiros:
MR-8 (surgiu em 1964, no meio universitário da cidade de Niterói); Ação Libertadora
Nacional (ALN) (surgiu em 1967, com a saída de Carlos Marighella do PCB, após a sua
participação na conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS),
em Havana); a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) (surgiu em 1966, a partir da
união de dissidentes da Politica Operária (POLOP) com militares vindos do Movimento
Nacionalista Revolucionário (MNR)); a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares
(VAR-PALMARES) (surgiu em julho de 1969, como resultado da fusão do Comando de
Libertação Nacional (COLINA) com parte da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)).
7
O nacionalismo ufanista é a exacerbação do nacionalismo e dos fatores nacionais.

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Capítulo IV

ditatoriais institucionalizadas, convidando-os a abandonar o país em caso de


rejeição daquelas.

Propaganda ufanista

Frase copiada da campanha de Richard Nixon,


em 1968, nos Estados Unidos: America, love it or leave it

Fonte: http://www.jornalgrandebahia.com.br/2014/03/regime-divide-sociedade-com-exilios-e-cassacoes-lideres-da-resistencia-
democratica-se-tornaram-presidentes/brasil-ame-o-ou-deixe-o/

222 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Em 1969, a Junta Militar escolhe o novo presidente, o General


Emílio Garrastazu8 Médici, cujo governo, devido à sua ferocidade e violência
repressivas, ficaria para a história sob a designação anos de chumbo.
Cresce a repressão e a perseguição aos grupos guerrilheiros e cresce
em severidade a política de censura: meios de comunicação social, filmes,
peças de teatro, assim como outras formas de manifestação artísticas são
fortemente censuradas. O DOI-CODI (Destacamento de Operações e
Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) atua como um
centro de investigação e de repressão do governo militar, fazendo aumentar
o número de prisões, de torturas e o número de exilados políticos.
Em 1969, a ditadura consegue assassinar Carlos Marighella (1911-
1969), guerrilheiro urbano com uma larga história de participação e
atividade política (ex-militante e congressista do PCB), e, em 1971, Carlos
Lamarca (1937-1971), guerrilheiro que vinha das fileiras do Exército. O
único movimento guerrilheiro que consegue sobreviver à repressão, morte e
tortura, encetada com ferocidade a partir de 1969, é a Guerrilha do
Araguaia, que apenas seria derrotada em 1975 e cujos integrantes seriam,
praticamente todos, assassinados.
Durante a presidência de Emílio Garrastazu, criam-se grandes obras
de infraestruturas, sobretudo rodoviárias. A sua execução baseava-se,
contudo, em elevados empréstimos feitos no exterior, o que aumentou
consideravelmente a dívida externa brasileira, colocando-a em patamares
excessivamente elevados quando comparada com os valores do PIB. Apesar
disso, a dimensão e a realização de tais obras (ainda que dependentes de
investimentos e empréstimos externos) encetaram um processo económico
que ficaria conhecido como milagre económico.
Em 1974, assume a presidência o General Ernesto Geisel9, que terá
de enfrentar a diminuição dos investimentos estrangeiros no Brasil, fruto da

8
O seu mandato presidencial teve início a 30 de outubro de 1969 e finalizou em 14 de
março de 1974.

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Capítulo IV

crise do petróleo (cujo preço, em 1974, quadriplicara) e da consequente


recessão mundial. A economia brasileira é, assim, fortemente afetada,
sobretudo devido ao facto de o Brasil depender do petróleo importado,
aumentando a desestabilização e descontentamento sociais. É neste contexto
que, em 1978, Geisel extingue o AI-5, assim reduzindo os poderes
discriminatórios do Presidente da República, e acalmando parte das
reivindicações e do descontentamento social.
Se, num primeiro momento, Ernesto Geisel executa medidas que
atenuam a repressão e opressão políticas (o abrandamento da censura à
imprensa, a revogação de parte da legislação repressiva, o restabelecimento
do habeas corpus e a abolição das penas de morte, prisão perpétua e
banimento), com a perspectiva de que tais medidas se aprofundassem no
mandato posterior, tal facto tem origem, não numa vontade democratizante
dos generais (ou do próprio), mas numa pensada estratégia que preparava a
saídas dos militares do governo, salvaguardando a sua posição política, num
possível novo modelo sociopolítico.
As etapas da abertura foram, por isso, várias e cuidadosamente
pensadas. Apesar disso, as cassações de mandatos de parlamentares não
terminaram, o Congresso foi fechado durante 14 dias (em 1977), a censura
à propaganda eleitoral e a manutenção do aparato de segurança e
informações do regime militar continuaram, assim como prosseguiram as
prisões, torturas e assassinatos.
O senador Jarbas Passarinho (1997) considera que o Presidente
Geisel, provavelmente por orientação de Petrônio Portela, se havia baseado
na Constituição espanhola de 1968, a qual garantia uma transição de longa
duração, e sem punições, aos agentes ligados ao franquismo. Por isso, no
Brasil, foi proposta uma emenda constitucional (elaborada por José Sarney)
que estabelecia ações liberalizantes, como o fim dos Atos Institucionais, e
ampliava o leque de medidas de segurança que antes se encontravam

9
O seu mandato presidencial teve início a 15 de março de 1974 e finalizou em 14 de
março de 1979.

224 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

constitucionalmente restritas ao estado de sítio. Evitar punições de militares


envolvidos, por exemplo, em torturas, configurava, neste contexto, uma
proposta relevante para a consecução, por parte da ditadura, de uma abertura
política (Comissão Nacional da Verdade, 2014):

Entretanto, ainda que matizemos as distinções entre os grupos militares,


fato é que Geisel e seu projeto não eram acolhidos com simpatia por
todos os setores da corporação. Desse modo, a primeira linha de
combate do presidente estruturou-se no interior das próprias Forças
Armadas. O governo vivia um importante dilema: “Ou aceitava a pressão
dos „duros‟ e paralisava o processo de abertura ou acatava a pressão da
oposição mais aguerrida e entrava em risco de ser derrubado pelos
primeiros”. Diante desse panorama, nenhuma saída parecia viável ao sucesso
do projeto de Geisel se não promovesse a conciliação dessas duas tendências,
mantendo a repressão aos “duros” e à oposição. Nesse particular, a anistia
configurou-se como tópico particularmente polêmico, pois envolveria
posicionamentos bastante divergentes entre ambas as tendências (Comissão
Nacional da Verdade, 2014, p. 404).

A lei de amnistia seria promulgada durante o governo do General


Figueiredo (ex-ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações do
Presidente Geisel)10, que assume a Presidência da República em 1979. Tal
lei, amnistiando aqueles que haviam cometido "crimes políticos ou conexo
com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos
e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas
ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos
Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com
fundamento em Atos Institucionais e Complementares e outros diplomas
legais" (art. 1°, lei n° 6.683 de 28 de Agosto de 1979), não apenas
amnistiava todos aqueles que haviam sido punidos e perseguidos pela

O seu mandato presidencial teve início a 15 de março de 1979 e finalizou em 15 de


10

março de 1985.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 225


Capítulo IV

ditadura, como protegia todos aqueles que haviam ordenado ou executado


atos de tortura. A ditadura militar protegia, deste modo, os seus agentes, de
eventuais processos de acusação futuros, num regime não militar.
A crise económica, entretanto, continua, cresce a desigualdade na
distribuição da riqueza e surgem dissidências na própria base social que
sustentava o governo militar.
Refira-se, a este propósito, que já a partir de meados da década de
1970 alguns elementos críticos, no interior do quadro político que
sustentava o regime, se começam a destacar - nomeadamente o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) e a Igreja Católica - unindo algumas das suas
propostas àquelas que, desde a instituição da ditadura militar, eram
reivindicadas por sectores da oposição, no exterior do quadro político da
ditadura, cujo exemplo paradigmático é constituído pelo Movimento
Estudantil. Em 1977, depois da prisão de vários estudantes, estes realizam
passeatas e organizam um movimento pela amnistia dos presos políticos.
Porém, o momento-chave que daria uma força social sem
precedentes à oposição à ditadura seria determinado pelo assassinato do
jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), no DOI-CODI de São Paulo, em
24 de outubro de 1975. É, então, que sectores sociais, vindos
nomeadamente dos estratos médios, antes sustentáculo social da ditadura, a
ela se opõem: em 31 de outubro de 1975, a catedral de São Paulo foi
demasiado pequena para albergar as mais de oito mil pessoas que
participaram no culto ecuménico dedicado a Herzog. Apesar deste
descontentamento social visível, em janeiro de 1976, um operário, Manoel
Fiel Filho, é preso, torturado e morto, exatamente no mesmo local e nas
mesmas condições que Vladimir Herzog, o que cria uma situação de
descontentamento crescente.
A amnistia ampla, geral e irrestrita, de 1979, foi, por seu lado, lida
como um avanço para a abertura política, permitindo a volta de figuras
indesejáveis politicamente, como Leonel Brizola (ex-governador do Rio
Grande do Sul), Luís Carlos Prestes (secretário-geral do Partido Comunista

226 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Brasileiro (PCB)), Miguel Arraes (ex-governador de Pernambuco) ou


Francisco Julião (líder das Ligas Camponesas). Além deles, voltariam ao
Brasil, ou abandonariam a clandestinidade, os líderes do movimento
estudantil de 1968 (Vladimir Palmeira, José Dirceu, Luiz Travassos), assim
como sindicalistas, artistas e intelectuais e centenas de militantes de
organizações revolucionárias, que haviam conseguido sobreviver à repressão.
No início de 1983, o Brasil vive sua maior crise desde 1963/64,
num momento em que os confrontos internos e a oposição ao regime militar
se acentuam.
Em 1984, foi apresentada ao Congresso Nacional uma emenda que
instituía a eleição direta para Presidente da República. Entretanto, entre
novembro de 1983 e abril de 1984, são organizadas vastas mobilizações de
massas graças à campanha das Diretas Já!, que envolveu a organização de
vários comícios, entre eles aquele que é considerado o maior comício jamais
realizado no Brasil, com a presença de 1.5 milhões de pessoas, em 16 de
abril de 1984, na cidade de São Paulo.
A eleição de Tancredo Neves, em 15 de janeiro de 1985, pelo
Colégio Eleitoral, assinalou o fim da ditadura. Tancredo Neves morre,
contudo, antes de tomar posse, pelo que a presidência foi assumida pelo seu
vice-Presidente, José Sarney.
Sob a presidência de José Sarney, os chefes militares, assim como
sectores civis que haviam sustentado a ditadura, mantiveram poder e
influência. Foi, contudo, decretada a legalização de partidos políticos que
estavam na clandestinidade, a extinção da censura à imprensa e o
reconhecimento da liberdade sindical.
Em 1987, toma posse uma nova Assembleia Constituinte, a qual
elabora e promulga uma nova Constituição. Finalizava, definitivamente, a
ditadura militar e instituía-se um novo modelo democrático.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 227


Capítulo IV

1.1. A POESIA, A CANÇÃO E O CINEMA NO PERÍODO DA


DITADURA MILITAR

O imaginário é um conjunto de realidades mentais que se manifesta


na linguagem, nas ideias, nas concepções, nas simbologias e nas crenças,
sendo frequentemente considerado, nas ciências sociais e humanas, desligado
da estrutura socioeconómica que a ele se encontra subjacente. Contudo, e no
seguimento do que neste trabalho temos vindo a apresentar, consideramos
que a estrutura mental através da qual determinado imaginário se apresenta
compreende sistemas de valores e ideologias que se expõem em determinada
época e que possuem uma determinada função.
Ora, as artes plásticas, a música e a literatura ajudaram a
desconstruir o imaginário patriarcal, repressivo e violento imposto pela
ditadura militar (e civil). Assim, na contestação ao regime ditatorial e na luta
por outro modelo de organização sócio-político, a desconstrução imagética e
a veiculação de um novo imaginário foram fundamentais para uma alteração
da consciência social.
Assim sendo, durante o período em que esteve vigente a ditadura,
várias foram as linguagens estéticas, geradas no interior da própria ditadura,
que foram "capazes de fundir diferentes horizontes de interpretação e criar
narrativas e alegorias destinadas a opinar sobre o Brasil" (Comissão
Nacional da Verdade, 2014). A história recente do país encontra-se presente
em todas essas linguagens estéticas, criadoras de obras que não apenas
conseguiram estabelecer um diálogo entre arte, política e história, como
manifestaram um ponto de vista artístico repleto de uma inquietude estética
e experimental, fruto das próprias condições de opressão experimentadas,
quotidianamente, pelos artistas.
Durante as duas décadas de autoritarismo militar, Flora Süssekind
refere que "os traços mais característicos da práxis de resistência cultural
brasileira pareciam ser a solidariedade interna antitotalitária, a inserção

228 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

obrigatória na esfera política" (Folha de São Paulo, 23/07/2000), o que


tinha como objetivo a redemocratização das instituições do Estado.
A realidade e as manifestações artísticas estabeleceram um diálogo
permanente, permitindo o surgimento de uma nova arte difundida por
artistas que buscavam expressar esteticamente a liberdade, os direitos
ausentes, o corpo, a natureza, a tecnologia, numa visão que defendia a
necessária democracia política para uma efetiva democratização da arte. Para
atingir este objetivo estético-ideológico, os artistas recorriam ora a um
discurso irónico, ora a um discurso melancólico e triste, ora a uma
democraticidade discursiva que mesclava diferentes tradições estéticas,
diferentes estilos e temas, diferentes e engenhosos suportes.
Como qualquer outro meio de expressão, a literatura brasileira não
se pode desligar de outras formas de expressão artísticas, e alguns dos
maiores poetas brasileiros do século XX fizeram-se conhecer através da
ligação com outra forma artística: a música. Deste modo, dificilmente
poderíamos fazer referência às atuais tendências da literatura brasileira sem
mencionar uma expressão artística que, convivendo intimamente com a
literatura, marcaria profundamente a expressão de uma arte autenticamente
brasileira. Vinicius de Moraes, por exemplo, diplomata e poeta, nacional e
internacionalmente reconhecido, fora fundamental para o aparecimento do
género Bossa Nova, na década de 1950. Autor de mais de 400 canções,
escrevera vários poemas que contribuíram para o nascimento de uma
literatura onírica, especificamente brasileira.
Menos prolixo, mas seguindo a influência de Vinicius, Francisco
Buarque de Holanda assume-se, hoje, não apenas como poeta e intérprete,
mas ainda como romancista.
A canção e a poesia têm, de resto, um papel fundamental durante o
período ditatorial brasileiro (1964-1985).
Com efeito, ao longo dos 21 anos de ditadura militar, a canção seria
fundamental no campo artístico brasileiro, sobretudo pela palavra que

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 229


Capítulo IV

difundia, conseguindo superar os obstáculos criados pela censura e pela


violenta opressão política.
Nesse processo de contestação, diferentes foram os artistas
(escritores, músicos, artistas plásticos, cineastas) que contribuíram para a
desconstrução do imaginário e ideologia impostos entre 1964 e 1985.
No início dos anos 1970, a arte, ainda que timidamente, sai dos
museus e das galerias e impõe-se no espaço público, permitindo àqueles que
nunca haviam tido acesso a expressões culturais que a elas, finalmente,
acedessem. Criam-se, assim, novas simbologias, através de novas imagens,
numa interligação cada vez mais estreita entre arte, público e política.
Contudo, apesar desta tentativa de fazer chegar a arte ao maior número, o
impacto social das artes plásticas11 não foi tão importante como o da música
popular (Saldanha, 2017).
A canção assumiu-se, nesse período histórico, como o meio, por
excelência, de contestação artística. As composições não conformes à
ideologia da ditadura brasileira passaram a veicular uma nova palavra,
transformando-se num importante meio de comunicação e de contestação.
Tal como já ocorrera com a Bossa Nova, poetas e músicos vão estabelecer
uma estreita relação, por vezes fundindo-se ambas as expressões artísticas
num único artista. Torquato Neto (1944-1972) e José Carlos Capinam
(mais conhecido como Capinam ou Capinan) (n. 1941), por exemplo,
compuseram com Gilberto Gil (n. 1942) e com Caetano Veloso (n. 1942),
tendo deixado trabalhos que marcaram diferentes gerações.

11
Apesar disso, não podemos omitir, nem esquecer, os artistas que pintaram a revolta e o
medo, participando ativamente na desconstrução da simbologia ditatorial. Neste sentido,
vários foram aqueles que, através de imagens de angústia e de desalento, contribuíram para a
denúncia e transformação da barbárie imposta pelo regime militar. Assim sendo, Sérgio
Ferro ficou encarcerado durante um ano, enquanto Antonio Benetazzo foi assassinado, após
torturas e agressões atrozes. Outros artistas como Cildo Meireles, Ivan Serpa, Antônio Dias,
Hélio Oiticica e Carlos Vergara têm obras que apenas podem ser compreendidas à luz da
opressão da ditadura.

230 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Apesar de algumas composições, como as de Caetano Veloso, de


Chico Buarque, de Elis Regina ou de Raul Seixas, não serem claramente
contra a ditadura, as imagens cantadas constituíam o substrato de uma nova
forma de pensar e de ler o mundo. Outros compositores, no entanto, como
Geraldo Vandré, cantaram com uma clareza poética uma nova organização
popular, liberta da repressão dos militares.
A censura perseguiu, vetou e puniu diferentes compositores
populares, sem distinguir estilos ou rótulos. Buscando coibir todos aqueles
artistas que, por meio da linguagem musical, pudessem colocar em risco a
tão apregoada segurança nacional ou a moral instituída e os veiculados bons
costumes, a censura cerceava a imaginação criativa e negava a livre expressão
do pensamento (Comissão Nacional da Verdade, 2014).
Os Festivais de Música promovidos por algumas emissoras de
televisão transformaram-se, no contexto do obscurantismo da ditadura, em
formas de evasão e espaços onde a palavra clama a liberdade desejada.
Em 1965, no I Festival de Música Popular Brasileira da TV
Excelsior, realizado em São Paulo, desponta Elis Regina (1945-1982), que
acederia ao podium graças à interpretação de Arrastão, de Edu Lobo e de
Vinicius de Moraes. No ano seguinte, as canções A Banda, de Chico
Buarque, e interpretada por Nara Leão (1942-1989), e Disparada, de
Geraldo Vandré, seriam proclamadas vencedoras.
O mais importante e histórico Festival ocorreu, no entanto, em
1967, quando uma nova geração de artistas surgiria perante um exigente
público politizado. Ganhariam o Festival Edu Lobo e Capinam, graças à
canção Ponteio, a qual trazia inovações estéticas, mesclando o galope
nordestino, com o sururu do Sudoeste. Seria, ainda, neste Festival, que
Chico Buarque apresentaria a sua Roda Viva, que Caetano Veloso (vaiado,
por parte do público, aplaudido por outra parte) apresentaria a já
tropicalizada Alegria, Alegria, que Gilberto Gil e Os Mutantes
apresentariam o também tropicalizado Domingo no Parque (que, com a sua

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 231


Capítulo IV

linguagem eclética de inspiração antropofágica, reedita o experimentalismo


dos primeiros modernistas), e que Roberto Carlos apresentaria Maria,
Carnaval e Cinzas (a única música que não ficaria para a história da Música
Popular Brasileira (MPB) (cf. Soares, Veja, 20/07/2010).
Os sons do tropicalismo, estranhos a um público que, pela primeira
vez, os apreendia, seriam parabenizados pelos concretistas brasileiros, que
viam na música tropicalista uma aproximação à sua arte e linguagem novas.
Entretanto, no Rio de Janeiro, a Rede Globo, recém-formada graças
ao favorecimento do regime militar, organiza, desde 1966, o Festival
Internacional da Canção.
É aqui que, em 1968, Geraldo Vandré apresenta Caminhando (Pra
não dizer que não falei das flores), sendo acompanhado, em uníssono, por
um coro de 20 mil vozes.
No plano literário da década de 1960 há, ainda, que referir o
renascimento da literatura de cordel (género literário popular, geralmente em
verso e com rima, cuja origem remonta a relatos orais). Já não sob a sua
forma tradicional, mas valendo-se de outros meios de divulgação e de
expressão. A literatura de cordel foi, então, transposta para outros suportes
narrativos, como a música, o cinema e a dança, revelando a riqueza cultural
de um corpus tradicional e a sua permanência na cultura brasileira,
mormente nordestina.
Numa relação, que não mais se perderá, entre a literatura e o cinema,
a literatura de cordel estabelecerá um diálogo constante com o Cinema
Novo brasileiro (que, à imagem da Nouvelle Vague francesa, surge na
década de 1960), nomeadamente na obra do cineasta Glauber Rocha.
A trama narrativa de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) tem
como fonte a literatura de cordel, tendo Glauber Rocha pedido a Sérgio
Ricardo para escrever a história dos seus heróis. O destino destes é-nos
contado sob a forma de uma história popular, cantada e contada pela voz de
um velho cego nordestino que percorre o sertão.

232 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Poderíamos, ainda, citar vários outros exemplos de comunicação


entre a literatura de cordel (renascida) e o cinema, como no caso de O país
de São Saruê (1971), de Vladimir Carvalho, de O Homem que virou Suco
(1980), de João Batista de Andrade, de O Baiano Fantasma (1984), de
Denoy de Oliveira, ou de vários documentários realizados depois da década
de 1980. Na literatura, destaca-se o herói da literatura popular João Grilo,
que se tornou num dos personagens principais de O Auto da Compadecida
(1955), de Ariano Suassuna.
A literatura de cordel encontra-se, por conseguinte, presente na obra
de autores consagrados do século XX, como em A Pedra do Reino (1971),
também de Ariano Suassuna, em Jubiabá (1935), de Jorge Amado, ou em
Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa.
Na poesia multifacetada de Cora Coralina 12 (pseudónimo de Ana
Lins dos Guimarães Peixoto Bretas), por seu lado, surge a mulher despojada,
mas dinâmica e sempre trabalhadora, venha aquela da roça ou da cidade,
numa voz feminina, e exterior à cultura letrada dominante, que a literatura
nacionalmente consagrada tendencialmente marginaliza.
Em Cora Coralina, a terra representa um espaço de liberdade e de
inspiração, surgindo não apenas como mera exaltação de um espaço de
tranquilidade, mas também como lugar de luta. É neste sentido que, durante
a ditadura militar, já então manifestando uma forte consciência crítica em

12
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, que adotou o pseudónimo de Cora Coralina,
nasceu a 20 de agosto de 1889, na cidade de Goiás, no Estado de Goiânia. Fez, apenas,
estudos primários. Em 1911, fugiu com o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo
Bretas, para Penápolis, vinte e dois anos mais velho do que ela, casado e separado da
mulher. Casaram-se após a viuvez de Cantídio. Em 1934, Cantídio faleceu. Cora Coralina
muda-se, então, para São Paulo, com os seis filhos. Colaborou no Jornal O Estado de São
Paulo e trabalhou como vendedora da Livraria José Olympio. Em 1938, voltou para
Penápolis e abriu uma Casa de Retalhos. Após quarenta e cinco anos voltou para a sua
cidade natal, para a casa onde nasceu. Trabalhou como doceira e assumiu-se como poetisa.
Publicou o seu primeiro livro, apenas, em 1965, tornando-se, desde então, numa das vozes
femininas mais relevantes da literatura nacional. Recebeu diversos prémios. Faleceu no dia
10 de abril de 1985, em Goiânia.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 233


Capítulo IV

relação à situação dos trabalhadores rurais, Cora Coralina apoia uma


reforma agrária, assim como os posicionamentos de D. Pedro Casaldáglia e
de D. Tomás Balduíno sobre o nascente Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra. Pelo seu comprometimento, foi eleita Símbolo da
Mulher da Trabalhadora Rural pela Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e Alimentação (FAO), em 1984.
No seu primeiro livro, publicado em 1965, Poemas dos Becos de
Goiás, pela editora José Olympio, de São Paulo, a autora retrata a existência
de quem é marginalizado e vive em locais periféricos, lugar de pobres,
lavadeiras, prostitutas, gente humilde e sem voz, marginalizada pela
sociedade e pela literatura, mas, em simultâneo, indispensável para a vida da
própria cidade.
É a partir de 1975 que Cora Coralina recebe a merecida atenção da
cena literária brasileira, recebendo diversos prémios e o título de Doutora
Honoris Causa pela Universidade Federal de Goiás, em 1983.
Lançou o seu segundo livro, Meu Livro de Cordel, em 1976, uma
segunda edição de Poemas dos Becos de Goiás, no ano de 1978, Vintém de
Cobre – meias Confissões de Aninha, em 1984, Estórias da Casa Velha da
Ponte e o livro infantil Os Meninos Verdes, em 1985.
content/uploads/2018/04/cora-coralina.png

Fotografia de Cora Coralina


Fonte: http://www.globaleditora.com.br/blog/wp-

234 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

1.2. SELEÇÃO DE COMPOSIÇÕES MUSICAIS

A censura e cerceamento à criação artística tomaram formas diversas.


A letra de Pra não dizer que não falei das flores, por exemplo, foi, depois do
Festival, integralmente proibida, enquanto outras canções foram
parcialmente censuradas ou retocadas, capas de disco foram proibidas
(Calabar (1973), de Chico Buarque, e Jóia (1975), de Caetano Veloso) e
foram integramente vetados discos (como Banquete dos Mendigos (1974),
de Jards Macalé).
É, apesar disso, durante a ditadura militar, que a Música Popular
Brasileira (MPB) – graças, em grande parte, aos Festivais mencionados - se
estende por vastas massas, dando uma voz crescentes às vozes silenciadas.
Entretanto, a censura à arte institucionaliza-se, tornando-se num
fator inibidor e de amputação artística, sobretudo após o AI-5.
A vincada vertente contra-cultural de Caetano Veloso e de Gilberto
Gil fez com que, na música, fosse inaugurado o movimento tropicalista.
Ambos foram presos em 1968. O regime justificou a prisão dos dois artistas
quer pelo desrespeito do Hino Nacional (que fora cantado, na boate Sucata,
nos moldes do tropicalismo), quer pelo facto de ter sido movida uma ação
por um grupo de fervorosos católicos que haviam ficado ofendidos pela
adaptação do Hino do Senhor do Bonfim (composição religiosa de 1923),
para o álbum Tropicália ou Panis et Circenses, de 1968, quer pela
provocação de Caetano Veloso, na ante-véspera do Natal de 1968, ao cantar
Noite Feliz no programa de televisão Divino Maravilhoso, apontando uma
arma à cabeça.
Depois da prisão, Gilberto Gil e Caetano Veloso exilam-se em
Londres, apenas voltando ao seu país natal em 1972.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 235


Capítulo IV

Capa do álbum Tropicália ou


Fonte: https://www.sescsp.org.br

Panis Et Circensis
Hino Ao Senhor do Bonfim IN:Tropicália ou Panis et Circencis (1968)
OUVIR: https://www.youtube.com/watch?v=7fK7DF8EyDk

A canção de Geraldo Vandré (n. 1935), Caminhando (Pra não


dizer que não falei das flores) (1968), que obtivera um polémico segundo
lugar no terceiro Festival Internacional da Canção, em 1968 (atrás de Sabiá,
de Tom Jobim e de Chico Buarque), tornou-se num hino contra a ditadura
militar, tendo sido proibida a sua execução em todo país. Preso e torturado,
também Geraldo Vandré se viu obrigado ao exílio, entre 1969 e 1973.

236 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Geraldo Vandré - Caminhando (Pra Há soldados armados


não dizer que não falei das flores) Amados ou não
(1968) Quase todos perdidos
De armas na mão
Caminhando e cantando Nos quartéis lhes ensinam
E seguindo a canção Uma antiga lição
Somos todos iguais De morrer pela pátria
Braços dados ou não E viver sem razão
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções (refrão 2X)
Caminhando e cantando
E seguindo a canção Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Vem, vamos embora Somos todos soldados
Que esperar não é saber Armados ou não
Quem sabe faz a hora Caminhando e cantando
Não espera acontecer E seguindo a canção
Somos todos iguais
(refrão 2X) Braços dados ou não

Pelos campos há fome Os amores na mente


Em grandes plantações As flores no chão
Pelas ruas marchando A certeza na frente
Indecisos cordões A história na mão
Ainda fazem da flor Caminhando e cantando
Seu mais forte refrão E seguindo a canção
E acreditam nas flores Aprendendo e ensinando
Vencendo o canhão Uma nova lição

(refrão 2X) (refrão 2X)

OUVIR:
https://www.youtube.com/watch?v=A
_2Gtz-zAz

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 237


Capítulo IV

Chalar da Silva Taiguara (1945-1996), cantor e compositor


brasileiro nascido no Uruguai, viu, em 1973, onze das suas composições
proibidas pela ditadura, tendo-se exilado, nesse mesmo ano, em Londres.
Nesta cidade, gravou o álbum Let the Children Hear the Music (1974,
álbum em inglês), o qual foi proibido de ser lancado, pela EMI, por decisão
da polícia federal brasileira. No total, durante as mais de duas décadas de
governos militares, Taiguara teve mais de sessenta composições interditadas.
http://br320.blogspot.com/2016/08/taiguara-fotografias-

Capa do álbum Que As Crianças


Cantem Livres (1973)
Fonte:

Taiguara, Let the Children Hear the Music (1973)


OUVIR: https://www.youtube.com/watch?v=O6rHdnWuCqw

Chico Buarque (n. 1944) e Taiguara foram os compositores e


cantores mais censurados, tanto nas canções de protesto, quanto nas que
feriam os costumes morais da época. Em 1966, a composição Tamandaré,
de Chico Buarque, incluída no repertório do espetáculo Meu Refrão, com
Odete Lara e MPB-4, é proibida, após estar seis meses em cartaz, por conter
frases consideradas ofensivas ao patrono da Marinha.

238 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Exilado na Itália, de 1969 a 1970, quando, em 1970, recém


chegado do exílio, enviou a composição Apesar de Você para aprovacão da
censura (com a certeza, contudo, de que a música seria vetada), aquela é,
inesperadamente, aprovada, tendo-se tornado num sucesso musical. Ora, já
se tinham vendido mais de 100 mil cópias quando um jornal comentou que
a música se referia ao presidente Médici; revelado o ardil, o Exército
brasileiro apreendeu, então, todos os discos.
Em 1973, a composição Cálice (Chico Buarque – Gilberto Gil) foi
proibida de ser gravada e cantada; apesar disso, Gilberto Gil desafiou a
censura e cantou-a num espetáculo para estudantes, em homenagem ao
estudante de geologia da USP, Alexandre Vanucchi Leme (o Minhoca),
assassinado pela ditadura. A composição Fado Tropical (1973), por seu
lado, teve proibida parte de um texto declamado por Ruy Guerra, alem do
verso além da sífilis, é claro, enquanto Bárbara (1973), um dueto entre as
personagens Ana de Amsterdam e Bárbara, teve cortada a palavra duas, por
tal sugerir um relacionamento homossexual entre ambas. Tanto Mar (1975),
uma homenagem do artista à Revolução dos Cravos, em Portugal, foi vetada;
seria, contudo, autorizada em 1978, mas com uma letra distinta da letra
original.
Fonte: https://vinilrecords.com.br/produto/chico-buarque-2/

Capa do álbum Chico


Buarque (1978)

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 239


Capítulo IV

Hoje você é quem manda Apesar de você


Falou, tá falado Amanhã há de ser
Não tem discussão Outro dia
A minha gente hoje anda Inda pago pra ver
Falando de lado O jardim florescer
E olhando pro chão, viu Qual você não queria
Você que inventou esse estado Você vai se amargar
E inventou de inventar Vendo o dia raiar
Toda a escuridão Sem lhe pedir licença
Você que inventou o pecado E eu vou morrer de rir
Esqueceu-se de inventar Que esse dia há de vir
O perdão Antes do que você pensa

Apesar de você Apesar de você


Amanhã há de ser Amanhã há de ser
Outro dia Outro dia
Eu pergunto a você Você vai ter que ver
Onde vai se esconder A manhã renascer
Da enorme euforia E esbanjar poesia
Como vai proibir Como vai se explicar
Quando o galo insistir Vendo o céu clarear
Em cantar De repente, impunemente
Água nova brotando Como vai abafar
E a gente se amando Nosso coro a cantar
Sem parar Na sua frente

Quando chegar o momento Apesar de você


Esse meu sofrimento Amanhã há de ser
Vou cobrar com juros, juro Outro dia
Todo esse amor reprimido Você vai se dar mal
Esse grito contido Etc. e tal
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza Chico Buarque - Apesar de Você (1970)
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada OUVIR:
Nesse meu penar https://youtu.be/YU547fUsH

240 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Chico Buarque, Tanto Mar Segunda versão


Primeira versão (1975) (1978)

Sei que estás em festa, pá Foi bonita a festa, pá


Fico contente Fiquei contente.
E enquanto estou ausente E ainda guardo, renitente
Guarda um cravo para mim Um velho cravo para mim.

Eu queria estar na festa, pá Já murcharam em tua festa, pá


Com a tua gente Mas certamente
E colher pessoalmente Esqueceram uma semente em algum
Uma flor do teu jardim Canto de jardim.

Sei que há léguas a nos separar Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar Navegar, navegar.

Lá faz primavera, pá Canta a primavera pá


Cá estou doente Cá estou carente
Manda urgentemente Manda novamente algum cheirinho
Algum cheirinho de alecrim De alecrim!

OUVIR: https://www.youtube.com/watch?v=hdvheuHhF2U
(primeira versão, 1975)
OUVIR: https://www.youtube.com/watch?v=ST30-i7cZJk
(segunda versão, 1978)

O ano de 1973 foi o ano em que a censura mais afetou a música


brasileira. Para além de Taiguara e de Chico Buarque, também Milton
Nascimento viu ser mutilado o seu álbum desse ano, Milagre dos Peixes. A
banda Secos & Molhados (que reunia Ney Matogrosso, Gerson Conrad e
João Ricardo) conquista, nesse momento, o país inteiro; as imagens

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 241


Capítulo IV

televisivas de Ney seriam, no entanto, censuradas. Gal Costa, por seu lado,
teve censurada a capa do disco India, por trazer uma imagem da cantora
vestida com uma pequena tanga e por exibir, na contracapa, fotografias da
mesma de seios nus, vestida de índia. Também Raul Seixas, neste ano de
1973, tem músicas censuradas, enquanto Paiol de Pólvora, de Vinicius de
Moraes e de Toquinho, composição feita para a trilha sonora da novela O
Bem-Amado, é proibida de ser o tema de abertura, devido ao verso “estamos
sentados em um paiol de pólvora”, sendo substituída pelo tema O Bem-
Amado, interpretado pelo Coral da Orquestra Som Livre.
Falar de censura no âmbito musical implica não esquecer Belchior,
durante muito tempo considerado um autor marginal. Belchior viu a sua
composição conjunta com Toquinho, Os Doze Pares de Franca, censurada,
porque, para os censores, os autores estariam a vangloriar a Franca, em
detrimento do Brasil.
Toquinho e Belchior, Os Doze Pares Ninguém mais vai precisar
de França (1979) A verdade tem um brilho
Que pôe a terra a rodar
Os doze pares de França Faz nascer mais cedo o milho
Vêm de Belém do Pará E inventa modos de amar
Montando doze rinets Os doze pares de França
Mais brancos do que o luar Cavaleiro olê olá
Vem de França mel e lança Vão levar meu coração
Cavaleiro olê olá Pro outro lado do mar
Cantando uma alô alegre Pro lado de lá da noite
Para as moças do lugar Lá pras bandas da manhã
Tendo a luz dessas espadas Onde o sol bate em meu peito.
Não carece o sol raiar Vermelho como romã.
Nem de rei nem de princesa

OUVIR: https://youtu.be/YU547fUsHqI
(composição cantada por Toquinho)

242 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Belchior, ao contrário do que vulgarmente se assume, foi, ainda que


através do brega, um compositor e músico contestatário. Pequeno Mapa do
Tempo (1977) continha uma crítica implícita ao regime (“eu tenho medo e
medo está por fora e eu tenho medo em que chegue a hora, em que eu
precise entrar no avião”, numa clara alusão ao exílio) enquanto a
composição Apenas um Rapaz Latino-Americano, escrita e lançada em
1976, é uma caracterização irónica do Brasil de então.
A preocupação que a censura dava à canção popular demonstrava o
poder subversivo desta, assim como a capacidade que os compositores e
músicos tinham de abrir espaços criativos e críticos que remetiam para uma
liberdade desejada, mas inexistente, fazendo com que a esperança não se
extinguisse em tempos tão sombrios como aqueles impostos pela ditadura
militar (e civil). O contexto social comunicava com a arte, enquanto a
palavra cantada dizia o proibido, o vetado, o não possível, em novos e
diferentes estilos, para diferentes audiências e estratos sociais, debatendo,
todas elas, os temas nacional e legalmente censurados:

No conjunto, essas são composições criadas para


mobilizar e defender, cada uma a seu modo, os
argumentos que, na análise do compositor, definiam a
justeza do combate político travado contra a ditadura: todas
elas invocaram o direito à resistência e procuraram
fundamentar a possibilidade prática da utilização desse
direito como método de luta pública oposicionista a ser
sustentada pelo campo da imaginação cultural brasileira
(Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 345).

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 243


Capítulo IV

1. 3. AS ARTES PLÁSTICAS E O CINEMA

Pela intrincada relação que as artes e a música estabeleceram no


período ditatorial, não é fácil mencionar uma, excluindo a outra.
Já Flora Süssekind (Folha de São Paulo, 23/07/2010) nos remete,
quando realiza uma análise crítica da literatura brasileira contemporânea,
para a correlação entre o domínio das artes plásticas (que, na atualidade,
deve englobar o vídeo, o cinema, a música ou o design) e a literatura, o qual
conforma um espaço de variações que se estendem desde "trabalhos
bidimensionais que se projetam em direção ao espectador" a "figuras
escultóricas transparentes, abertas, corroídas internamente por fatias, vazias,
parecendo fadadas, por seu turno, à autodestruição, ao despedaçamento"
(Folha de São Paulo, 23/07/2010).
Ora, durante a década de 1950, o concretismo brasileiro revelara um
posicionamento de concordância e de otimismo perante o desenvolvimento
do país. Na literatura, como observámos, acabara a distinção entre forma e
conteúdo e criara-se uma nova linguagem visual que atribuiu ao texto a sua
importância maior; na pintura, a arte estabelecera um diálogo com a
indústria, simbolizando o progresso, o desenvolvimento e a racionalidade,
lendo a democratização da arte através da ideia democratizante que a
indústria albergaria.
A partir de 1964, contudo, a palavra de ordem passa a ser o
rompimento com os padrões do sistema, assumindo, a arte, um discurso
narrativo opositor à ditadura, numa busca de novos modos de produção
artística e de novos modos de ocupação dos circuitos de exposição das
obras, com o intuito de ir para além dos limites impostos pelas galerias e
pelos museus.
As artes plásticas vão, assim, refletir criticamente sobre o contexto
histórico, questionando os seus próprios meios de criação. Neste processo
criativo e imaginativo, experimenta-se a radicalidade de diferentes

244 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

linguagens, de que é exemplo a Nova Figuração que, adaptando a Por Art


estadunidense, tece críticas ao imperialismo, à cultura de massas e ao
autoritarismo. Longe das representações simbólicas do povo como expressão
do puro e autêntico nacional, os trabalhos artísticos da Nova Figuração
escolhem imagens alegóricas e imagens carnavalizadas das massas urbanas e
suburbanas.

Antônio Dias, Glutão (1965)


Fonte: http://www.premiopipa.com/2016/03/opiniao-65-50-anos-depois-reconta-a-historia-da-mostra-que-reuniu-artistas-da-
nova-figuracao-brasileira/

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 245


Capítulo IV

Roberto Magalhães, Obra sem título (1965)


Fonte: http://www.premiopipa.com/2016/03/opiniao-65-50-anos-depois-reconta-a-historia-da-mostra-que-reuniu-artistas-da-
nova-figuracao-brasileira/

Rubens Gershman, Não há vagas (1965)


Fonte: http://memoriasdaditadura.org.br/obras/nao-ha-vagas-1965-de-rubens-gerchman/index.html

246 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Carlos Vergara, Gravura da série 5 problemas para 5 estampas (1967)


Fonte:https://daniname.wordpress.com/2009/11/24/o-imperador-vergara-no-salao-do-mam/

Em 1964, a exposição Mitologias Quotidianas vai definir com


clareza os rumos da Nova Figuração (também denominada Figuration
Narrative), buscando aproximar-se da vida diária, numa linguagem que apela
ao grotesco e ao fantástico. No ano seguinte, entre 12 de agosto e 12 de
setembro, Antônio Dias (n. 1944), Carlos Vergara (n. 1941), Rubens
Gerchman (1942-2008), Roberto Magalhães (n. 1940), Ivan Freitas (n.
1932) e Adriano de Aquino (n. 1946) participaram na mostra Opinião 65,
na qual os artistas tomam, decididamente, uma posição diante do momento
político. Esta constitui, talvez, a primeira reação estética consistente às
tendências abstratas da década anterior.
O endurecimento da ditadura, nomeadamente a partir da aprovação
do AI-5, ao invés, como referimos, de silenciar a palavra cantada ou de
obscurecer a imagem pintada, vai, ao contrário, consolidar o radicalismo das

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 247


Capítulo IV

propostas estéticas. Criam-se, neste contexto, novas formas de expressão,


deixando, os artistas, de possuir uma forma limitada de atuação, não se
dedicando, apenas, a um tipo de manifestação artística, antes elaborando e
dando vida a performances, a cartazes, a pichações e a produtos
industrializados modificados. A esta nova vida estético-cultural subjaz uma
leitura da realidade que se materializa através de um catálogo de artes que
mescla diferentes domínios artísticos. Cildo Meireles (n. 1948), por
exemplo, carimba em diferentes notas a pergunta Quem matou Herzog?

Fonte: https://www.levyleiloeiro.com.br/imagens/img_m/515/242386.jpg

248 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Rubens Gerchman, por seu lado, expõe numa Avenida do Rio de


Janeiro, a palavra Lute, em letras garrafais:

Fonte: www.institutorubensgerchman.org.br

Hélio Oiticica (1937-1980), considerado um neoconcretista,


pretendia, por seu lado, envolver a participação do espectador na criação da
obra de arte. Em 1967, na exposição Nova Objetividade Brasileira,
idealizada e apresentada pelo próprio Oiticica, no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, em 1967, Oiticica instalou nos jardins do museu um
ambiente que denominou Tropicália. Num país sob domínio de uma
ditadura militar, Oiticica mescla, numa obra, ócio e criatividade, provocando
a moral estética vigente e denunciando as condições de vida de uma
sociedade determinada pelo autoritarismo, cuja parcela significativa da
população vivia na pobreza, sem os benefícios que o desenvolvimento
industrial havia trazido para uma minoria.
A Tropicália assemelha-se a um labirinto que nos remete para a
arquitetura das favelas, num cenário com plantas características dos trópicos.
O público caminhava descalço, pisando em areia, brita e água, para, no final,
se encontrar defronte uma televisão ligada, símbolo da modernidade e,
também, veículo de um imaginário dominante e de uma alienação
massificada.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 249


Capítulo IV

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66335/tropicalia

Esta obra de Oiticica vai desencadear um movimento estético (e,


portanto, cultural): o Tropicalismo.
O movimento tropicalista teve a sua maior expressão na música,
cujo início remonta ao, já referido, Festival de Música Popular, realizado em
1967, pela TV Record. Surge, nesse momento, uma música brasileira pós-
Bossa Nova que busca a universalização da linguagem MPB através da
incorporação de elementos da cultura musical globalizada, como o rock e a
psicodelia, e do uso criativo da guitarra elétrica. O tropicalismo musical vai,
deste modo, unir a música popular com a música pop, num
experimentalismo estético que dá um novo tom moderno à música e cultura
brasileiras.
Ainda que a irreverência deste movimento seja, sobretudo, de teor
social-cultural, e menos de teor político-militante, a sua palavra irreverente,
rebelde e inovadora mostrava-se extremamente incómoda para a ditadura.

250 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

A oposição clara e direta aos governos da ditadura militar assume-se,


em suma, no final da década de 1960, e no início da década de 1970, numa
linguagem que, continuamente, revolucionava os códigos culturais
dominantes. O rompimento com estéticas artísticas é, assim, concomitante
com o rompimento de uma ordem socioeconómica que se contesta através
de novas linguagens artísticas. Ao longo das mais de duas décadas de
ditadura militar, os artistas contribuíram para o desgaste do regime face à
opinião pública e reagiram com novas linguagens e criaram novos discursos
estéticos frente à conjuntura repressiva. Não obstante, a sua criatividade não
foi ignorada pela ditadura militar.
Nesse sentido, a falta de liberdade para a criação artística, a
perseguição e censura dos autores fez com que muitos optassem pelo exílio,
o que conduzirá, sobretudo no final da década de 1970, à desestruturação
do sistema de artes plásticas brasileiro. O final daquela década assiste, por
conseguinte, ao fim do vanguardismo que a segunda metade da década de
1960 havia inaugurado.
Para terminar, não poderíamos deixar de fazer uma referência, ainda
que breve, ao Cinema Novo.
No início dos anos 1960, um grupo de jovens cineastas, na esteira
do que havia ocorrido na literatura, durante o modernismo da primeira e
segunda fase, vai em busca de um cinema brasileiro, mediante formas de
linguagem mais inovadoras.
Enquanto na década de 1950, o cinema nacional-popular brasileiro
tivera como temática de eleição a narração da vida dos mais desprovidos, no
espaço urbano, fazendo dialogar a estética dos melodramas e dos musicais
da época, o Cinema Novo da década de 1960 vai desviar a sua atenção para
o homem do campo, reunindo cineastas como Nelson Pereira dos Santos,
Ruy Guerra e Glauber Rocha.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 251


Capítulo IV

Quando ocorre o golpe militar de 1964, o cinema brasileiro vivia a


sua fase mais criativa e diversificada, alcançando, então, um amplo
reconhecimento fora das fronteiras brasileiras.
As obras dos realizadores do Cinema Novo e do Cinema Marginal
não se vão, contudo, afastar da realidade opressiva em que os seus filmes são
produzidos. Nesse sentido, a linguagem cinematográfica de ambos os
movimentos vai compreender e refletir (sobre) quer a modernização
brasileira, quer a violência política que se instalou no Brasil, enquanto pensa
o papel que os intelectuais deverão exercer na nova realidade imposta em
1964.
Há, porém, um fenómeno no cinema que a ditadura não conseguirá
evitar.
Com efeito, os cineastas internacionalmente reconhecidos situavam-
se no plano ideológico contrário àquele veiculado pela ditadura. De forma a
que o cinema brasileiro continuasse a ter a projeção internacional que,
entretanto, alcançara, os generais render-se-ão ao pragmatismo: para que o
cinema brasileiro mantivesse aquela posição de destaque, ainda que
utilizando uma linguagem metafórica que se distanciava dos valores e
crenças do regime militar e da expressão pura da ideologia dominante, a
ditadura passa a criar um sistema de financiamento próprio para o cinema
brasileiro (sobretudo a partir de 1975).
A Embrafilme - órgão estatal que distribuía e produzia filmes
brasileiros – desempenhou, neste contexto, um papel importante na
conquista de mercado para os filmes nacionais, ampliando-se,
consideravelmente, o público das obras fílmicas realizadas quer pelo cinema
novo, quer pelo radical cinema marginal.
Em 1969, Glauber Rocha ganhou o prémio de melhor realizador,
no 22° Festival Cannes (ocorrida de 8 a 23 de Maio daquele ano), com O
Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, prémio que partilhou, em ex-

252 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

equo, com o realizador checoslovaco Vojtěch Jasný com All My


Compatriots (Všichni dobří rodáci).
Na segunda metade dos anos 1970, o cinema brasileiro, apoiado
pela Embrafilme, consegue, portanto, uma razoável penetração no mercado
nacional e internacional, não apenas graças às obras de Glauber Rocha, mas
também a obras de Carlos Diegues (Xica da Silva (1975)) ou de Bruno
Barreto (Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976)).
No importante espaço de reflexão que é feito a respeito da ditadura
(e, depois da redemocratização do país, sobre o novo modelo brasileiro),
não poderíamos deixar de referir o cinema documental, sobretudo aquele
que é produzido a partir da década de 1980. Destacam-se, neste caso, Jango
(1984), de Silvio Tendler, e Cabra Marcado para Morrer (1984), de
Eduardo Coutinho,
Depois da crise dos anos 1980 e do começo dos anos 1990, num
período que abarca a agonia da ditadura e o início do processo de
redemocratização do Brasil, os temas ligados à ditadura militar inspirarão,
então, dezenas de filmes brasileiros, seja no campo do documentário, seja no
campo da ficcão.

O Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro
(1969)

• Direção: Glauber
Rocha
• Roteiro: Glauber
Rocha
• Género: Drama /
Faroeste
• Duração: 100 minutos
• Tipo: Longa-metragem

Fonte:
http://www.bcc.org.br/cartazes
/cartaz_fb/002155

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 253


Capítulo IV

2. O BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR (1985 –


ATUALIDADE): PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO E
DEPENDÊNCIA EXTERNA

Nas últimas décadas do século XX, o quadro socioespacial do Brasil


e da América latina sofre profundas transformações. O desenvolvimento
económico aprofunda-se, indústrias de tecnologia avançada surgem e o
número de trabalhadores que se desloca para o espaço urbano continua a
aumentar.
A expansão da população urbana, assim como a ampliação dos graus
de ensino obrigatórios e a crescente implantação de universidades em
diferentes regiões do país, vai, por seu lado, ter como consequência o
incremento do mercado de bens culturais, cujos investimentos massivos
advêm de empresas da indústria cultural transnacional, nomeadamente
estadunidenses.
Massificam-se os diferentes meios de comunicação, nomeadamente a
televisão e a rede de internet, enquanto as relações culturais se globalizam e
os bens de consumo fabricados no continente latino-americano (automóveis,
eletrodomésticos) expandem-se interna e externamente.
O desenvolvimento diferenciado das forças produtivas registado no
continente latino-americano implicou que se estabelecessem relações
distintas entre o espaço urbano e o espaço rural.
Tendo em conta que não se aboliu o regime latifundiário da grande
propriedade, sob o modelo agrário-industrial, a agricultura brasileira
estabelece uma relação económica de proximidade e de dependência com a
indústria (Leitão, 2007). De 1930 a 1980, a agricultura brasileira "tanto se
dedica à monocultura de exportação, quanto se encarrega de produzir
alimentos mais baratos a fim de abastecer o mercado interno e prover a mesa
do trabalhador" (Leitão, 2009, p. 216), impulsionando, desta feita, o
crescimento do parque industrial. Os investimentos nas infra-estruturas do

254 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

país levaram, então, à criação da Companhia Siderúrgica Nacional (1941),


da Petrobras (1953) e de outras grandes empresas estatais, num processo
económico concomitante com o controlo estatal de preços, de
comercialização e de armazenamento de produtos, através da estruturação de
órgãos como o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) (1933) ou do
Instituto Brasileiro do Café (IBC) (1952).
A agonia do regime militar, que economicamente é marcada pela
revelação da essência depredadora e desigual do milagre económico, é
paralela ao advento da era neoliberal (um modelo, já então, hegemónico no
Reino-Unido de Margaret Thatcher, ou nos EUA, de Ronald Reagan), com
a vitória e domínio do capital especulativo, e do soerguimento de
movimentos de massas, com a reabertura de diversos sindicatos e diretórios
(associações) estudantis, a luta pela amnistia, em 1979, ou a campanha pelas
Diretas Já!, de 1984.
Com a globalização do mercado capitalista nesta nova etapa da
História da Humanidade, finaliza o padrão que se havia constituído na
Revolução Tecnológica, ocorrida no final do século XIX, e que fora
marcada pela descoberta das ligas químicas, pelo uso do cimento e do
concreto e pela utilização do petróleo e do motor a combustão (Leitão,
2009).
No Brasil, a etapa neoliberal afirma-se em 1989, com a eleição para
a Presidência da República de Fernando Collor de Melo 13, que inicia um
vasto e amplo processo de privatização de empresas estatais e
estrangeirização do controlo dos recursos naturais, tudo isto à custa de um
exponencial aumento da dívida externa brasileira e de uma crescente
dependência tecnológica do exterior.
Este processo acentua-se não apenas no Brasil, como em toda a
América latina.

13
O seu mandato presidencial inicia-se em15 de março de 1990 e termina em 29 de
dezembro de 1992.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 255


Capítulo IV

Aquele Continente passa, assim, no quadro mundial, a exercer o


papel de exportador de matérias-primas (bauxita, carne, níquel, produtos
agrícolas, entre outros), cujos preços são determinados pelo mercado
internacional (os quais sofreriam, ademais, nos últimos quinze anos do
século XX, uma queda).
Em 1991, o Paraguai constituía o país com a maior taxa de
concentração fundiária do mundo (0.880), segundo o índice Gini; logo
depois, surgia o Brasil, com uma taxa de 0.836, "mas com áreas que
atingiam a incrível cifra de 0.903, como ocorria no Estado do Maranhão"
(Leitão, 2007, p. 217). Ora, a razão 1 do índice Gini indica a posse de
todas as terras nas mãos de um único proprietário, pelo que, através dos
dados deste índice, na década de 1990, podemos verificar a dimensão e
importância económica do processo concentracionário de terras, no Brasil.
Nesta nova etapa socioeconómica do Continente latino-americano,
em geral, e do Brasil, em particular, a problemática agrária representa um
papel de primeira importância.
Com efeito, durante a ditadura, e até à atualidade, o agronegócio
(aliança dos grandes proprietários de terra com a indústria brasileira e
externa) organiza os principais sectores da produção agrícola. Este modelo
assemelha-se bastante àquele que havia sido desenvolvido durante o Brasil-
colónia, uma vez que a sua estrutura assenta na monocultura (soja, laranja,
pecuária, cana, café) sob grandes extensões de terra, destinando-se os
produtos finais, sobretudo, à exportação.
Neste contexto, dos anos de chumbo ao contexto neoliberal das
décadas de 1990, passando pelo período de 14 anos de uma política que
procurou conciliar os interesses dominantes, da década de 1990, com
reivindicações trabalhistas de sectores que denunciavam o crescente e amplo
empobrecimento e marginalização de vastos sectores da sociedade brasileira
(de 2003 a 2011, sob a Presidência de Lula da Silva, e de 2011 a 2016, sob
a Presidência de Dilma Rousseff), os artistas apreenderão, das mais diversas

256 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

formas, e através de diferentes suportes estéticos, a história contemporânea


do Brasil.
Na literatura, aquela reflexão e representação manifestar-se-á tanto
na prosa de ficção (como o romance e o conto), como na literatura marginal
da periferia ou na imaginativa lírica nordestina da literatura de cordel.

Venda tradicional de livros de cordel

Fonte: http://apoesc.blogspot.com/2014/08/sete-mitos-sobre-literatura-de-cordel.html

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 257


Capítulo IV

2.1. A LITERATURA E O QUOTIDIANO BRASILEIRO

Na viragem para o século XXI, a literatura brasileira propõe


múltiplas correntes e estilos. Muitos autores propõem um realismo cru, à
imagem de muitos cineastas (como Paulo Lins ou Fernando Bonassi),
referindo-se a problemas socioculturais e/ou familiares (como Lygia
Fagundes Telles ou Nelson Rodrigues - este último dramaturgo), enquanto
no romance policial se destacam autores como Ruben Fonseca ou Luiz
Alfredo Garcia-Roza. Sobre a literatura de final do século XX, afirma Flora
Süssekind:

Talvez se possa observar a literatura brasileira produzida


nos últimos anos não segundo o consenso negativo dos
balanços de fim de década, mas sob a perspectiva tripla de
uma crise de escala, de uma tensão enunciativa e de uma
geminação entre econômico e cultural que, se não exclusivas
do período, por conta de intensificação e disseminação
generalizadas, se converteriam em premissas dominantes da
experiência literária contemporânea (Folha de São Paulo,
23/07/2000).

Neste sentido, Süssekind faz comunicar "a prosa em redução e


poema em expansão" (Folha de São Paulo, 23/07/2000), a produção
plástica com a produção literária, a cultura com a economia, ou seja,
Süssekind considera que a crise de escala, a tensão enunciativa e a geminação
entre o fator económico e o fator cultural constituem as características
estéticas da última década do século XX.
No plano estético, Süssekind alerta para um processo de
miniaturização da literatura, "desde a redução cada vez maior das
ministórias de Dalton Trevisan à opção formal pela novela" (Folha de São
Paulo, 23/07/2000), na qual ocorrem quer experimentações rítmicas (de

258 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

que são exemplos os contos Romance Negro e O Buraco na Parede, de


Rubem Fonseca), quer um processo narrativo de rarefação de palavras (de
que é exemplo Cortejo de Abril, de Zulmira Ribeiro Tavares).
Paralelamente, a expressão lírica sofre, precisamente, um movimento inverso
ao da prosa, expandindo-se: "O que já se ensaiava desde os anos 80, em
parte como resposta à dominância dos brevíssimos poemas-minuto e como
desdobramento narrativo de uma produção de caráter eminentemente
expressivo como a do decênio anterior" (Süssekind, Folha de São Paulo,
23/07/2000).
Seja o expansionismo na lírica, ou a miniaturização na prosa, a
produção literária brasileira assiste a uma "situação de desmedida"
(Süssekind, Folha de São Paulo, 23/07/2000). Este facto problematiza as
formas e os conteúdos das práticas culturais, no presente histórico das
manifestações culturais, os quais dialogam, como refere Süssekind, "com a
experiência contemporânea da financeirização da economia, da
dessolidarização nacional, do esvaziamento estatal, da inserção brasileira
num mercado global marcado por uma instabilidade sistêmica" (Folha de
São Paulo, 23/07/2000). A dificuldade de determinar a dimensão de uma
produção estético-literária enfatiza, deste modo, a necessária discussão sobre
simbologias e formas instáveis, assim como a sua relação com a escala e as
suas "equivalências com alguns dos mecanismos dominantes do mercado
financeiro" (Süssekind, Folha de São Paulo, 23/07/2000).
A literatura brasileira revela, igualmente, como nota Luiz Ricardo
Leitão (2007), um imaginário coletivo fortemente influenciado pelo
urbanismo e pela simbologia dele decorrente, fruto da evolução socio-
histórica e política das últimas décadas. Neste sentido, em termos temáticos,
a ficção brasileira contemporânea caminha pela intimidade das ruas e ruelas
das grandes cidades, sem que, contudo, ignore a complexidade da realidade
sociogeográfica de uma população marcada por desigualdades históricas.
Apesar de as personagens de Rubem Fonseca, João Antônio ou
Loyola Brandão transitarem pela confusão das ruas citadinas, nos romances

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 259


Capítulo IV

de Antônio Torres as personagens transitam pelos arrabaldes ainda


marcados pela velha ordem agrária, enquanto nos romances de Marcio
Souza (n. 1946) (Galvez, o Imperador do Acre (1976) e Mad Maria
(1980)) se denunciam "o desvario e a insensatez encenados pela civilização
ocidental na Amazônia" (Leitão, 2007, p. 231). Em Mad Maria, a narrativa
decorre no espaço geográfico da Amazônia, retratando a construção da
ferrovia Madeira-Mamoré, ocorrida entre 1907 e 1912. O projeto era
liderado pelo americano Percival Farquhar e tinha como objetivo a
construção de uma estrada que pudesse competir com o Canal do Panamá.
A obra Galvez, o Imperador do Acre trata-se, por seu lado, de um folhetim
que se baseia na vida de Luis Gálvez Rodríguez de Arias (1864-1935),
aventureiro espanhol que se envolveu em disputas, devido à questão da posse
do território do Acre, no final do século XIX. Originalmente concebido
como roteiro de cinema, Galvez, o Imperador do Acre é o resultado de um
longo processo de elaboração, por parte do autor, cujo início remonta à
segunda metade dos anos 1960. Até à sua publicação final, em 1976, o livro
sofreu diversas versões, algumas, aliás, bem diversas daquela que, finalmente,
foi publicada.
Apesar de o tema agrário ainda marcar presença na literatura
contemporânea (inclusivamente na obra poética de Manoel de Barros), a
cidade vai constituir a matéria-prima das literaturas contemporâneas.
Uma nova corrente na literatura brasileira contemporânea foi
caracterizada, por Alfredo Bosi (2015), como brutalista, um tipo de escrita
"que difere do ideal de escrita mediado pelo comentário psicológico e pelo
gosto das pausas reflexivas ainda vigente na idade do ouro do romance
brasileiro entre os anos 30 e 60" (p. 464), aplicando-se uma pluralidade de
formas que se distanciam da literatura da terceira geração modernista – ou
pós-modernista, como para Alfredo Bosi – de Guimarães Rosa ou de Clarice
Lispector.
Nos contos Feliz Ano Novo (1975), de Rubem Fonseca, são
retratados os problemas tecnocráticos consequência da ditadura, razão pela

260 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

qual, aliás, acabaram por ser proibidos pela censura: "a frieza e o cinismo da
voraz burguesia monopolista em ascensão são descritos de forma quase
sarcástica e impiedosa nas duas versões de Passeio Noturno, conto cujo
protagonista é um jovem executivo de classe média alta que, após o jantar,
roda de carro pelas ruas a fim de atropelar e ferir (ou até mesmo matar)
algum pedestre escolhido a esmo" (Leitão, 2007, p. 234).
Ora, aquele cenário macabro urbano será, também, reconstituído
pelo carioca Paulo Lins, no romance publicado em 1997, Cidade de Deus.
Neste romance, são narradas as transformações sociais pelas quais passou o
bairro carioca Cidade de Deus.
Na década de 1990, o tráfico de drogas vai substituir a pequena
criminalidade que se havia iniciado na década de 1960, impondo-se um
cenário de violência e de guerra permanente. Baseado em factos reais, parte
do material utilizado para escrever o romance foi coletada durante oito anos
(entre 1986 e 1993), graças a um trabalho de pesquisa antropológica que o
autor empreendeu com a antropóloga Alba Zualar.
Paulo Lins recorre à polifonia de vozes narrativas, as quais, no
centro de uma guerra implacável, nos revelam a violência da atual sociedade
brasileira, denunciando a corrupção e a criminalidade policial, a expansão
vertiginosa do narcotráfico e a voragem consumista de drogas, sexo e artigos
de luxo por parte de uma camada jovem, oriunda de estratos médios,
médios-altos e altos da sociedade.
A obra foi adaptada para o cinema pelo realizador Fernando
Meirelles, em 2003, que optou por imprimir um ritmo acelerado e frenético
ao filme, assim nos remetendo para o ambiente ultra-urbanizado e acelerado
das periferias faveladas das grandes cidades brasileiras.
Relativamente à literatura marginal, que dá nome à revista criada
por Ferréz (homem de cultura que exerceu as mais díspares profissões, de
padeiro, vendedor de vassouras a pedreiro), vários são os nomes de artistas e
autores que emergem da periferia, numa constante luta contra a

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 261


Capítulo IV

marginalização social e pela afirmação de uma voz literária oposta à


homogeneizada pela Academia. Ferréz recorre a uma escrita que não pode
ser dissociada da comunidade de onde brotou, com uma narrativa "viva e
enxuta" à qual "se ajustam plenamente" os traços linguísticos" seja o uso de
gírias próprias da periferia (...), seja o emprego de uma pontuação própria,
ao ritmo do enunciador, ou ainda a sistemática redução vocabular" (Leitão,
2007, p. 236).
Esta busca de um espaço próprio e de um reconhecimento, por parte
da literatura marginal, não se encontra distante dos problemas com que se
defrontou a expressão lírica de Patativa do Assaré, um camponês cuja verve
busca na literatura de cordel a sua máxima expressão poética.
Patativa do Assaré é, aliás, um dos expoentes máximos dessa
manifestação cultural bastante difundida no nordeste e norte do Brasil - a
Literatura de Cordel -, a qual, de resto, figura como uma importante fonte
de estudo e de análise do modo como o sertão tem sido representado.
Para além de um espaço geográfico que se transforma em elemento
constituinte de uma determinada subjetividade, o sertão é a própria matéria
da linguagem poética de Patativa do Assaré, à qual subjaz um modo
específico de expressão e um ritmo próprio que corresponde à
sociogeografia sertaneja. É, ademais, neste aspecto, que Patativa do Assaré se
impõe como um grande criador literário, uma vez que é autor de uma obra
que, para além de fornecer o retrato pitoresco do sertão, faz com que este
alimente uma profunda expressão e um modo peculiar de comunicar e de
percecionar a realidade, na esteira de escritores brasileiros que trabalharam,
em simultâneo, espaços reais e espaços imaginários, ou seja, o sertão e suas
vozes, figuras, mitos e simbologias.

262 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

2.1.2. AUTORES MAIS REPRESENTATIVOS

1. Rubem Fonseca narrativa policial, incluindo fortes


(n. 1925) elementos advindos da oralidade,
onde vários dos seus personagens
Rubem Fonseca nasceu em Juiz principais são delegados, inspetores,
de Fora, no Estado de Minas Gerais, detetives particulares, advogados
no dia 11 de maio de 1925. criminalistas, ou, ainda, escritores.
Estudou Direito na Universidade do Subjacentes aos crimes que surgem
Brasil e entrou para a polícia como na sua obra, encontra-se a crítica a
comissário do Distrito Policial de uma sociedade opressora, revela-se o
São Cristóvão. Trabalhou, quotidiano violento das grandes
sobretudo, no gabinete, cuidando cidades e desnudam-se dramas
dos serviços de relações públicas. humanos: "Se a cidade é a
Em 1953, juntamente com linguagem (...), o autor busca se
outros colegas, foi estudar para os confundir com os múltiplos
EUA. De volta ao Brasil, em 1954, narradores em primeira pessoa, que
atuou na Fundação Getúlio Vargas, percorrem uma realidade social
no Rio de Janeiro. Em 1958, foi podre, mantendo alguma ética,
exonerado da polícia e dedicou-se embora sejam declaradamente
integralmente à literatura. contraventores" (Miguel Sanches,
Em 1963, publicou o seu Jornal de Letras, 03/11/2017).
primeiro livro de contos, Os Escreveu, igualmente, cenários
Prisioneiros, obra na qual se revela o para cinema. Foi galardoado, ao
mundo periférico do Rio de Janeiro, longo de sua carreira literária, com
e, dois anos mais tarde, uma vários prémios importantes, como o
coletânea de contos, A coleira do Prémio Camões, o prémio mais
cão. importante de Língua Portuguesa.
Várias das suas narrativas (em
especial, nos romances) são Principais obras (romances e
apresentadas sob a estrutura de uma contos): Os Prisioneiros (1963); A

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 263


Capítulo IV

Coleira do Cão (1965); Lúcia Parede (1995); A Confraria dos


McCartner (1967); O Caso Morel Espadas (1998); O Doente Moliére
(1973); O Homem de Fevereiro ou (2000); Pequenas Criaturas (2002);
Março (1973); Feliz Ano Novo Ela e Outras Mulheres (2006);
(1975); A Grande Arte (1983); Axilas e Outras Histórias
Vastas Emoções e Pensamentos Indecorosas (2011).
Imperfeitos (1988); O Buraco na

2. Paulo Lins Sol, e, em 1997, publicou Cidade de


(n. 1958) Deus. Aqui, Paulo Lins retrata o
quotidiano da comunidade onde
Paulo Lins nasceu no Rio de cresceu, assim como o desordenado
Janeiro, no dia 11 de junho de crescimento desta, revelando a
1958. violência bruta que envolve o tráfico
Morador da comunidade Cidade de drogas no seio da comunidade.
de Deus, no Rio de Janeiro, Em 2002, o livro foi adaptado para
mostrou, desde jovem, um particular cinema pelo realizador Fernando
interesse pela poesia e pela música, Meirelles, tendo recebido quatro
nomeadamente pelo samba. nomeações para os Óscares de
Ingressou no curso de Letras da 2004.
Universidade Federal do Rio de Depois do lançamento de Cidade
Janeiro (UFRJ) e, durante esse de Deus, Paulo Lins escreveu
período, trabalhou como assistente diversos roteiros para o cinema e
da antropóloga Alba Zaluar, cujo para a televisão, como, por exemplo,
doutoramento tinha como temática para alguns episódios da série
a criminalidade na Cidade de Deus. Cidade dos Homens, da Rede
A recolha documental que então Globo de Televisão.
faria, serviria de base ao romance Em 2012, lançou o seu segundo
Cidade de Deus. romance, Desde que o Samba é
Em 1986, publicou o seu Samba, cujo cenário se centra no
primeiro livro de poesias, Sobre o bairro Estácio de Sá, local de

264 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

nascimento do samba carnavalesco. poesia e ilustração numa trama


O seu mais recente livro, Era Uma dramática.
Vez... Eu! (2014), foi feito em
colaboração com o ilustrador Obras: Sobre o sol (1986);
Maurício Carneiro, a atriz circense e Cidade de Deus (1997); Desde que
cantora Beo da Silva e o designer o Samba é Samba (2012); Era Uma
gráfico Eduardo Lima, reunindo vez... Eu! (2014).

2. Ferréz periferia de São Paulo, onde vive o


(Reginaldo Ferreira da Silva) escritor.
(n. 1975) Ligado ao movimento hip hop e
fundador da 1DASUL, movimento
Reginaldo Ferreira da Silva que promove eventos culturais em
nasceu em 1975, na favela Valo bairros da periferia, Ferréz atua,
Velho, de São Paulo, vivendo, igualmente, como cronista na revista
atualmente, na favela Capão Caros Amigos. A sua prosa ágil
Redondo, também na cidade de São incorpora elementos de revolta, mas
Paulo. O seu nome artístico Ferréz também de perplexidade e de
homenageia duas figuras históricas esperança, reivindicando uma voz
brasileiras: Virgulino Ferreira para os habitantes das favelas das
(Ferre), conhecido como Lampião, e grandes cidades brasileiras.
Zumbi dos Palmares (Z). Em 2001 cria e lança a revista
O seu primeiro livro, Fortaleza Literatura Marginal, em parceria
da Desilusão, foi lançado em 1997, com a revista Caros Amigos,
porém, a notoriedade veio um acarretando o surgimento do selo
pouco depois, com a publicação de literário L.M.
Capão Pecado, em 2000, romance
que retrata o quotidiano violento do Principais obras: Fortaleza da
bairro do Capão Redondo, na Desilusão (1997); Capão Pecado
(2000); Manual Prático do Ódio

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Capítulo IV

(2003); Amanhecer Esmeralda Almoçar (2011); O Pote Mágico


(2004); Ninguém é Inocente em (2012); Os Ricos também Morrem
São Paulo (2006); Cronista de Um (2015).
Tempo Ruim (2009); Deus foi

3. Patativa do Assaré uma comparação entre a pureza da


(1909-2002) 14 poesia de Patativa e o canto da ave
nordestina da Chapada do Araripe.
Antônio Gonçalves da Silva Durante aquele périplo,
(Patativa do Assaré) nasceu no sítio enquanto canta ao som da viola, em
Serra de Santana, no Estado do companhia dos cantadores locais,
Ceará, em 1909. Patativa incorpora o Assaré ao seu
Apesar do reduzido acesso à nome, adotando, a partir de então,
escolarização, aos dez anos já aquele que ficaria o seu nome
compunha versos. Aos 16 anos artístico.
conseguiu uma viola, a qual trocara Em 1964, Luiz Gonzaga,
por uma ovelha, passando, a partir ouvindo Patativa recitar A Triste
de então, a fazer versos de Partida, decidiu musicar os seus
improvisos, seguindo a tradição dos versos, cuja gravação, em 1965, se
cantadores nordestinos. tornaria num dos maiores sucessos
Em 1929, quanto tinha vinte de Luís Gonzaga e levaria, em
anos, viajou por diversas cidades do simultâneo, Patativa a ser
Pará. Aqui, conheceu o jornalista reconhecido nacionalmente. A
cearense José Carvalho de Brito, composição relatava as agruras do
quem publicaria os seus primeiros nordestino diante da seca, obrigado
trabalhos no jornal Correio do a abandonar a sua terra para
Ceará, denominando o autor trabalhar no sul.
Antônio de Patativa, estabelecendo Durante a ditadura militar,
Patativa participou da campanha das
14
A biografia que aqui apresentamos teve Diretas Já, e, em 1984, publicou o
como fonte primordial o Dicionário Cravo poema Inleição Direta 84.
Albin da Música Popular Brasileira.

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Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Em 1979, gravou o LP com Ispinho e Fulô (1988); Balceiro.


declamação de poemas de sua Patativa e Outros Poetas de Assaré
autoria, Poemas e Canções, e, em (1991); Cordéis (1993); Aqui Tem
1981, lançou o seu segundo disco, Coisa (1994); Biblioteca de Cordel:
A Terra é Natura. Em 1995, Patativa do Assaré (2000); Balceiro
recebeu, em Fortaleza, a medalha 2. Patativa e Outros Poetas de
José de Alencar, em homenagem Assaré (2001); Ao pé da mesa
pelos seus 85 anos. Na ocasião foi, (2001).
igualmente, lançado o LP Patativa
do Assaré: 85 Anos de Poesia. Poemas mais conhecidos: "A
Triste Partida"; "Cante Lá que eu
Principais obras: Canto Cá"; "Coisas do Rio de
As suas poesias seriam reunidas Janeiro"; "Meu Protesto";
em diferentes obras: "Mote/Glosas"; "Peixe"; "O Poeta
Livros: Inspiração Nordestina da Roça"; "Apelo dum Agricultor";
(1956); Inspiração Nordestina: "Se Existe Inferno"; "Vaca Estrela e
Cantos do Patativa (1967); Cante Boi Fubá"; "Você e Lembra?";
Lá que Eu Canto Cá (1978); "Vou Vorá".

Patativa do Assaré – "Aos poetas


clássicos"

Eu nasci aqui no mato,


Poetas niversitário, Vivi sempre a trabaiá,
Poetas de Cademia, Neste meu pobre recato,
De rico vocabularo Eu não pude estudá
Cheio de mitologia; No verdô de minha idade,
Se a gente canta o que pensa, Só tive a felicidad
Eu quero pedir licença, De dá um pequeno insaio
Pois mesmo sem português In dois livro do iscritô,
Neste livrinho apresento O famoso professô
O prazê e o sofrimento Filisberto de Carvaio.
De um poeta camponês.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 267


Capítulo IV

No premêro livro havia E não istruí papé


Belas figuras na capa, Com poesia sem rima.
E no começo se lia:
A pá - O dedo do Papa,
Papa, pia, dedo, dado, Cheio de rima e sintindo
Pua, o pote de melado, Quero iscrevê meu volume,
Dá-me o dado, a fera é má Pra não ficá parecido
E tantas coisa bonita, Com a fulô sem perfume;
Qui o meu coração parpita A poesia sem rima,
Quando eu pego a rescordá. Bastante me disanima
E alegria não me dá;
Foi os livro de valô Não tem sabô a leitura,
Mais maió que vi no mundo, Parece uma noite iscura
Apenas daquele autô Sem istrela e sem luá.
Li o premêro e o segundo;
Mas, porém, esta leitura, Se um dotô me perguntá
Me tirô da treva escura, Se o verso sem rima presta,
Mostrando o caminho certo, Calado eu não vou ficá,
Bastante me protegeu; A minha resposta é esta:
Eu juro que Jesus deu - Sem a rima, a poesia
Sarvação a Filisberto. Perde arguma simpatia
E uma parte do primô;
Depois que os dois livro eu li, Não merece munta parma,
Fiquei me sintindo bem, É como o corpo sem arma
E ôtras coisinha aprendi E o coração sem amô.
Sem tê lição de ninguém.
Na minha pobre linguage, Meu caro amigo poeta,
A minha lira servage Qui faz poesia branca,
Canto o que minha arma sente Não me chame de pateta
E o meu coração incerra, Por esta opinião franca.
As coisa de minha terra Nasci entre a natureza,
E a vida de minha gente. Sempre adorando as beleza
Das obra do Criadô,
Poeta niversitaro, Uvindo o vento na serva
Poeta de cademia, E vendo no campo a reva
De rico vocabularo Pintadinha de fulô.
Cheio de mitologia,
Tarvez este meu livrinho
Não vá recebê carinho,
Nem lugio e nem istima,
Mas garanto sê fié

268 IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas |


Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Sou um caboco rocêro, Deste jeito Deus me quis


Sem letra e sem istrução; E assim eu me sinto bem;
O meu verso tem o chêro Me considero feliz
Da poêra do sertão; Sem nunca invejá quem tem
Vivo nesta solidade Profundo conhecimento.
Bem destante da cidade Ou ligêro como o vento
Onde a ciença guverna. Ou divagá como a lesma,
Tudo meu é naturá, Tudo sofre a mesma prova,
Não sou capaz de gostá Vai batê na fria cova;
Da poesia moderna. Esta vida é sempre a mesma.

Comentário:

O cordel melódico de Patativa adverte o leitor para o facto de a lírica, assim


como qualquer outra manifestação artística, não ser, apenas, fruto da imaginação
criativa de autores com formação superior, cujo discurso revela uma sabedoria,mítica,
é certo, mas distante da realidade que subjaz àquela criação imaginária. Alertando
para a marginalização de outras vozes, nomeadamente aquelas que vêm do espaço
rural, Patativa remete-nos para a problemática do que é, hoje, na literatura, como nas
artes, consagrado nacional e internacionalmente, assim como para o contínuo
silenciamento de vozes que, seja no Romantismo, seja no modernismo de segunda
geração, haviam, então, dado os primeiros passos para, nesses momentos socio-
históricos, conseguir ocupar um lugar de relevo no espaço literário brasileiro e um
reconhecimento nacional. A voz de Patativa é a voz de uma literatura relegada para
segundo plano, é a voz do homem do campo, é a voz do campo e de todos os homens
que nele vivem e trabalham, é a voz que luta ao lado das vozes de Férraz ou de Paulo
Lins, pelo reconhecimento de um espaço estético que emerge da desigualdade social
que um modelo socioeconómico, desde as suas mais profundas entranhas, originou.

| IV. Da ditadura militar à atualidade: sociedade e estéticas contemporâneas 269


Mapa do Brasil em 1908

"Este é o Mappa Geral da Republica dos


Estados Unidos do Brasil, publicado em
1908. Foi organizado pela Companhia
Lithographica Hartmann-Reichenbach, São
Paulo e Rio de Janeiro. Original na
Biblioteca do Congresso dos EUA".

(texto e imagem: http://www.historia-


brasil.com/mapas/brasil-1908.htm)
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

CONCLUSÃO

Os processos sociais desencadeados nos diferentes períodos históricos


do Brasil permitem-nos compreender as variantes nacionais da literatura
brasileira, as quais, seja na literatura nacionalmente consagrada, seja, por vezes,
na literatura marginal, ora se identificam com as influências europeias, ora delas
se distanciam, revelando a busca de uma identidade e características estético-
literárias próprias e autónomas que se firmariam, sobretudo, no decurso dos
séculos XIX e XX.
Se o Romantismo finissecular, dando voz ao índio brasileiro, busca
enfatizar o sentimentalismo e o nacionalismo, mitificando os temas escolhidos,
este complexo ideo-afectivo (Bosi, 2015) vai, gradualmente, cedendo espaço à
crítica, cuja manifestação plena se concretiza com o realismo.
A escola realista brasileira vai encontrar as suas raízes no fim do tráfico
de escravos, em 1850, ano que coincide com a legalização da propriedade
privada da terra (relembre-se que a Lei de Terras foi promulgada em 1850),
momento que coincide com a decadência da indústria açucareira e a
desconstrução de um sistema de valores e de crenças a esta associado. O
prestígio nacional muda, então, de região, e, se antes se encontrava associado ao
Nordeste, depois da queda da predominância do engenho açucareiro
nordestino, passa a estar associada ao sul do país, onde a atividade económica
conduz a mudanças que as letras e as artes brasileiras acompanharão, por elas
sendo influenciadas e marcadas.
A partir de 1870, o homem letrado brasileiro buscará as suas premissas
ideológicas no abolicionismo e no republicanismo, demolindo a tradição
escolástica e o ecletismo romântico (Bosi, 2015), virando-se para as
democracias burguesas francesa e estadunidense. O Romantismo deixaria, neste
contexto, de assumir uma função social, uma vez que a velha nobreza se
extinguia, em concomitância com o fim da resistência clerical ao nacionalismo e
a laicização que as revoluções industriais e francesa houveram trazido à Europa.
Os anseios das classes letradas urbanas, naquela segunda metade do século XIX,

| Conclusão 271
Ana Maria Saldanha

iam, deste modo, formando um novo quadro, propício ao alargamento das


ideias liberais, abolicionistas e republicanas, as quais, entre as décadas de 1870 e
1890, serão dominantes entre a intelectualidade brasileira, sofrendo, apenas, a
oposição dos decadentes senhores do açúcar.
A filosofia evolucionista e positivista vai influenciar grandemente esta
nova geração de prosadores e pensadores, pelo que Comte, Taine ou Darwin
serão os mestres ideológicos de autores como Tobias Barreto ou Capistrano de
Abreu, mas também de outros autores finisseculares, como Euclides da Cunha
ou Graça Aranha, que, já distantes do Romantismo, fazem confluir nas suas
obras quer elementos realistas, quer elementos naturalistas, mas com a
particularidade de naquelas fazerem incidir uma cor local.
A objetividade que autores realistas e realistas–naturalistas procuraram
respondia, pois, à metodologia científica que, então, se impunha.
O Realismo aproxima-se e inter-relaciona-se com o Naturalismo, ao
ponto de ambos se unificarem em projetos e obras literárias. A moral fatalista é
preconizada por autores como Aluísio Azevedo ou Raimundo Correia,
surgindo, ainda que com menos precisão e força, na obra de Machado de Assis,
num momento em que o Brasil se caracteriza pela forte influência dos grandes
proprietários rurais, sobretudo graças à exportação do café e de outros produtos
agrícolas (algodão, cacau, cana-de-açúcar – esta última já muito desvalorizada
no mercado internacional), assim como ao ciclo de borracha na Amazónia, cujas
divisas resultantes da sua exportação permitiriam que o Nordeste revivesse um
período de expansão e de opulência.
Em 1889, a República impõe-se no Brasil, pela via conservadora,
materializando a resposta dos grandes proprietários de terra ao movimento
abolicionista e reformista. A República surge, neste contexto, como uma forma
de travar uma reforma fundiária, consolidando o federalismo oligárquico e
impulsionando transformações graduais no campo brasileiro que culminariam
com a transformação do campesino em proletário rural.
O contexto internacional do fim da década de 1920 vai, por seu lado,
impulsionar a industrialização do Brasil.

272 Conclusão |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Depois do fim da Primeira Guerra Mundial (1918) e da belle époque


dos anos 20 que se lhe seguiu, ocorreu, em 1929, o crash da bolsa de Valores
de Nova Iorque. A nova situação económica daqui decorrente obrigou a um
rearranjo das economias centrais e periféricas, pelo que o Brasil (como, aliás, o
restante da América latina), se vê obrigado a olhar para o seu interior, em
detrimento do exterior (ou seja, das economias centrais das quais dependia).
Inicia-se, então, uma nova etapa na economia, sobretudo a partir de 1930,
depois da ascensão de Getúlio Vargas à Presidência da República, a qual se
baseia no desenvolvimento industrial interno.
O reflexo estético-ideológico destas movimentações socioeconómicas
vai patentear-se no movimento modernista.
O desenvolvimento e aceleramento do parque industrial brasileiro que
se vai verificar durante as décadas de 1930 e 1940, é, ainda, concomitante com
o processo de aprofundamento da acumulação capitalista industrial e com as
consequentes e fortes contradições classistas, sobretudo no espaço urbano, onde
cresce em número e importância o proletariado. Serão, assim, as duras
condições de vida e de trabalho desta classe que seriam literariamente
denunciadas, no decorrer da segunda fase modernista.
A partir da década de 1950, assiste-se a um processo de aceleração da
modernização da agricultura, enquanto nos anos 1960 e 1970 se inicia um
processo de colonização do território brasileiro (que vai dar origem à criação do
Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária (INCRA)), através da
deslocação de populações rurais para zonas despovoadas.
Ora, uma vez mais, estas transformações económicas não escaparam à
pena dos romancistas. Assim, por exemplo, em 1914, a criação de Jeca Tatu,
por Monteiro Lobato, estereotipa a figura do camponês do modelo
agroexportador, ao contrário, porém, da representação do mesmo Jeca Tatu, na
Era Vargas. A Semana de Arte Moderna de 1922 constitui, por seu lado, o
embrião das mudanças estéticas de 1930, momento a partir do qual se passa, no
plano económico, a olhar para a riqueza do Brasil. O olhar predominante já não
é, desta forma, para o exterior, mas antes para o interior, para a riqueza existente

| Conclusão 273
Ana Maria Saldanha

no próprio território brasileiro. Assim sendo, também a personagem Jeca Tatu


sofre mudanças, pelo que a culpabilidade da sua ignorância e miséria a ele já não
é atribuída, mas antes àqueles que haviam pensado o modelo agroexportador.
O modelo económico imposto em 1930 prosseguirá até à década de
1
1980 .
O regime militar imposto no dia 31 de março de 1964, com o apoio
dos sectores economicamente dominantes da sociedade brasileira, e que se
prolongará até 1985, vai, uma vez mais, marcar a produção estético-literária
desse período.
Durante aquele período, artistas proporão, no plano estético-
ideológico, o revolucionamento de códigos culturais. Dão-se, então, a conhecer
artistas que viriam a formar os grandes nomes da arte contemporânea brasileira,
de que é exemplo Ivan Serpa, Antônio Dias, Hélio Oiticica ou Carlos Vergara.
Criam-se obras contestadoras, nos diferentes domínios de intervenção
artística, as quais irão romper com estéticas artísticas precedentes e com o
sistema de valores e de crenças contemporâneo dos criadores, num processo de
desconstrução simbólica que acompanha quer a MPB, quer a literatura de ficção
então produzida, quer as artes visuais.
As imagens pintadas, escritas e cantadas, de 1964 a 1985, participam,
em suma, no combate à ditadura, experimentando novas linguagens estéticas,
num processo contestatório que visava combater a
repressão, barbárie e violência impostas pelos militares. Artistas e homens da
cultura e das letras propõem, neste contexto, novas imagens e novos símbolos,
da literatura ao cinema, passando pela pintura e pela música, intervindo
na sociedade e materializando uma nova forma de pensar e de ler o mundo que,
nas novas linguagens que deram vida àquelas manifestações artísticas,

1
Depois do regime agroexportador colonial, durante o período do Brasil-Colónia (1532-
1822), em que, praticamente, 80% da produção agrícola se destinava à exportação, depois
do fim da escravidão (1888) e da paulatina industrialização (iniciada em 1930), a
agricultura brasileira manterá, contudo, e isto até à atualidade, a monocultura de exportação
como forma de entrada de divisas no país.

274 Conclusão |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

consubstanciavam novos valores, quer de ordem estética, quer de ordem


ideológica.
Na atualidade, a literatura brasileira, ainda que se centre, sobretudo, no
espaço urbano, continua a manifestar (e a ser fruto de) uma determinada
realidade.
Assim acontece com a literatura emergente das periferias urbanas,
alguma dela marginal (e, portanto, não consagrada nacionalmente), que, em
alguns casos, ecoará nos ecrãs de cinema, numa intercomunicação entre a obra
literária e a obra cinematográfica que nos remete para a década de 1960. Duas
linguagens cruzam-se, comunicam e unem-se, num processo de entrecruzamento
de domínios estético-discursivos que não pode ser compreendido sem que
tenhamos em conta quer a atual etapa de tecnologia avançada, quer a
massificação dos meios de comunicação, quer a mercantilização acelerada do
conhecimento, do saber e da arte. Este último processo deu, aliás, origem a uma
indústria cultural que, buscando relegar para segundo plano a beleza e acuidade
de vozes de uma Cora Coralina ou de um Patativa do Assaré, nos remete para a
sempre intensa luta entre a exclusão e marginalização de vozes não conformes
ao padrão dominante – e, ao contrário, a consagração de tantas outras.
Entretanto, a Literatura e as Artes prosseguem o seu constante e
inevitável diálogo e cruzamento com os movimentos da sociedade, oferecendo-
nos a matéria, a beleza e os projetos que alimentam o devir.

| Conclusão 275
Mapa do Brasil em 1915

"Este mapa foi publicado em cartão postal


em 1915. Na época, o nome oficial do país
era Estados Unidos do Brasil . A grafia é
anterior às reformas ortográficas dos anos
1940, pelo que nomes como Curytiba,
Matto Grosso e Goyaz se escreviam de
forma distinta da atual".
(texto (adaptado) e imagem: http://www.historia-
brasil.com/mapas/brasil-1911.htm)
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

ANEXO
CRONOLOGIA DOS PERÍODOS ESTÉTICOS E
LITERÁRIOS NO BRASIL

ERA COLONIAL
Séc. Designação Autores Marco Principais características do
literário período estético-literário

Literatura - Pêro Vaz de Caminha - A Carta Literatura de viagem:


Quinhentista (1500)
- visão documental e paradisíaca
(literatura nova terra.
XVI informativa / - Pero M. Gândavo
viagem - Gabriel Soares de
e Sousa Literatura catequética:
literatura
catequética) - José de Anchieta - tinha como objetivo a
evangelização.
- Bento Teixeira - Prosopopéia - expressão ideológica da Contra-
(1601) Reforma;
- conflito entre uma visão
antropocêntrica e uma visão
teocêntrica;
Seiscentismo - Gregório de Matos - oposição entre mundo material e
mundo espiritual;
XVII ou - Pde. Antonio Vieira - conflito entre fé e razão;
Barroco - idealização amorosa, sensualismo
e sentimento de culpa cristão;
- consciência da efemeridade do
tempo;
- gosto por raciocínios complexos,
intrincados, desenvolvidos em
parábolas e narrativas bíblicas;
- carpe diem.

- Cláudio Manuel da - Obras - antropocentrismo;


Costa (1768) - racionalismo (busca de
equilíbrio);
Setecentismo - paganismo;
- Tomás Antônio - elementos da cultura greco-latina;
XVIII ou Gonzaga - imitação dos clássicos
renascentistas;
Arcadismo - Silva Alvarenga - idealização amorosa,
neoplatonismo, convencionalismo
- Alvarenga Peixoto amoroso;
- Santa Rita Durão - busca da clareza das ideias;
- pastoralismo, bucolismo;
- Basílio da Gama - universalismo;
- ideário iluminista.

| Anexo 277
Ana Maria Saldanha

ERA NACIONAL (Séc. XIX)


Designação Autores Marco Principais características do período
literário estético-literário
- predomínio da emoção;
- Gonçalves de - Suspiros - egocentrismo;
Magalhães poéticos e - subjetivismo;
saudades - espiritualismo;
- Álvares de Azevedo (1836)
- Casimiro de Abreu - nacionalismo;
- Junqueira Freire - maior liberdade formal;
Romantismo - comparações, metáforas e adjetivações
- Fagundes Varela
- Castro Alves constantes;
- José de Alencar - vocabulário e sintaxe próximos da realidade
- Manuel Antônio de linguística brasileira;
Almeida - Natureza interage com o eu lírico;
- Joaquim Manuel de - mulher idealizada e inacessível;
Macedo - amor intenso e paixão;
- Visconde de Taunay - gosto pela noite e pelo mistério;
- Bernardo Guimarães - intuição e imaginação.
- Franklin Távora
- Machado de Assis - Memórias REALISMO:
Póstumas de - objetivismo;
Brás Cubas - descrições e adjetivações objetivas, numa
(1881) tentativa de captar o real;
- linguagem culta e direta;
- mulher não idealizada;
- O Mulato - o amor e os restantes sentimentos
- Aluísio Azevedo subordinam-se aos interesses sociais;
(1881)
- herói problemático, cheio de fraquezas e
incertezas;
- narrativa lenta, acompanhando o tempo
Realismo / psicológico;
Naturalismo / - universalismo.
Parnasianismo - Raul Pompéia
- Olavo Bilac NATURALISMO:
- Raimundo Correia - linguagem simples;
- Alberto de Oliveira - clareza, equilíbrio e harmonia na composição;
- preocupação com detalhes;
- presença de regionalismos;
- descrição e narrativas lentas;
- impessoalidade.

PARNASIANISMO:
- busca da perfeição formal;
- vocabulário culto;
- gosto pelas descrições;
- rimas raras.
- Cruz e Sousa - Missal - subjetivismo;
e - linguagem vaga e fluida que busca sugerir;
Simbolismo Broquéis - antimaterialismo e antirracionalismo;
- Afonso de Guimarães (1893) - pessimismo e dor de existir;
- Pedrto Kilkerry -retoma elementos da tradição romântica.

278 Anexo |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

Era Nacional (século XX)


Designação Autores Marco literário Principais características do período
estético-literário
- Euclides da Cunha - Os Sertões (1902) - literatura de transição;
- fortes influências das tendências artísticas
Pré- da segunda metade do séc. XX;
Modernismo - Graça Aranha - preocupações de índole social;
- Lima Barreto - interesse pela realidade brasileira;
- Monteiro Lobato - busca de uma linguagem mais simples e
- Augusto dos Anjos coloquial.
- nacionalismo;
- revisão crítica do passado histórico-
cultural brasileiro;
MODERNISMO - valorização de temas ligados ao
quotidiano;
- versos livres e liberdade da palavra;
- busca de uma linguagem brasileira, mais
popular e coloquial;
- pontuação relativa.
- Manuel Bandeira - ironia, sarcasmo e irreverência;
- Ronald de Carvalho - crítica à cultura oficial;
Primeira Fase - Mário de Andrade Semana de Arte - resgate das raízes culturais brasileiras;
do - Oswald de Andrade Moderna de São - renovação da linguagem;
Modernismo - Menotti Del Picchia Paulo - oposição ao parnasianismo e ao
- Guilherme de Almeida (1922) academicismo;
- experimentações estéticas;
- renovações artísticas;
PROSA:
- José Américo Almeida - A Bagaceira (1928)
- Rachel de Queiroz - preocupação com a realidade brasileira;
- José Lins do Rego - intenção clara de denuncia social;
- Graciliano Ramos - engajamento político;
- Jorge Amado - influência do realismo e romantismo;
Segunda fase - Érico Veríssimo - nacionalismo, universalismo e
do - Dionélio Machado regionalismo;
Modernismo - valorização da cultura brasileira;
POESIA: - influência da psicanálise;
- Carlos Drummond de - "Alguma Poesia" - temática quotidiana;
Andrade (1930) - linguagem coloquial;
- Jorge de Lima - uso de versos livres e brancos (na poesia).
- Murilo Mendes
- Cecília Meireles
- Vinícius de Moraes
- Clarice Lispector - Perto do Coração - realismo fantástico;
Selvagem (1944) - experimentações artísticas (ficção
experimental);
- retorno ao passado;
Geração de - Guimarães Rosa - academicismo;
1945 - João Cabral de Melo - influência do Parnasianismo e do
Neto Simbolismo;
- Ariano Suassuna - inovações linguísticas e metalinguagem;
- Lygia Fagundes Telles - regionalismo universal;
- temática social e humana.
- prosa urbana, regionalista e intimista.

| Anexo 279
Ana Maria Saldanha

Era Nacional (contemporaneidade)


Designação Autores Designação Autores

POESIA PROSA
- Mário Palmério
 Concretismo - Haroldo Campos  Romance - José Cândido de Carvalho
 Neoconcretis - Augusto de Campos Regionalista - Bernardo Élis
mo - Décio Pignatari - Herberto Sales
- Antônio Callado

- Ferreira Gullar - Lygia Fagundes Telles


 Poesia-Práxis - Mario Chamie  Romance - Autran Dourado
- Décio Pignatari intimista - Osman Lins
- Luiz Ângelo Pinto - Lya Luft
- Wladimir Dias Pino - Aníbal Machado
- Alvares de Sá - Fernando Sabino
- Josué Montello
- Chico Buarque
- Wally Salomão
- Cacaso - José Condé
 Poesia
Marginal
- Capinam  Romance - Carlos Heitor Cony
- Alice Rui urbano-social - Antônio Olavo Pereira
- Chacal - Marcos Rey
- Paulo Leminski - Luís Vilela
- Torquato Neto - Ricardo Ramos
- Dalton Trevisan
- Rubem Fonseca
- Caetano Veloso
- Gilberto Gil - Ignácio de Loyola Brandão
 Tropicalismo
- grupo Os Mutantes  Romance - Antônio Callado
- Tom Zé político - Roberto Drummond
( apoiados em textos de - Rubem Fonseca
Torquato Neto e Capinam
e nos arranjos musicais do  Romance - Pedro Nava
maestro Rogério Duprat) memorialista e - Érico Veríssimo
autobiográfico - Fernado Gabeira
- Marcelo Rubens Paiva

Principais características do atual período  Romances - Osman Lins


estético-literário: experimentais e - Ignácio de Loyola Brandão
metalinguísticos - Ivan Ângelo
- eliminação das fronteiras entre a arte erudita e a - Antônio
arte popular;
- presença marcante da intertextualidade;  Literatura - Férrez
- ecletismo estilístico; Marginal - Paulo Lins
- preocupação com o presente e poucas - Mano Brown
perspectivas de futuro;
- sucessão de modismos devido ao consumo  Literatura de - Patativa do Assaré
desenfreado da nossa era; Cordel - Cora Coralina
- consciência da financeirização da economia e
subsequente crítica.

280 Anexo |
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da Literatura Brasileira

BIBLIOGRAFIA

ABREU, Casimiro José Marques de. As primaveras. Rio de Janeiro: Imprensa


Nacional, 1952.
ABREU, Casimiro José Marques de. Poesias completas. Rio de Janeiro:
Tecnoprint [s/d].
ADORNO, Theodor. "L'industrie culturelle", Communications, n. 3, 1964, pp.
12-18.
ADORNO, Theodor. Introduction à la sociologie de la musique (12 conférences
théoriques). Genève: Editions Contrechamps, 2009.
SILVA, Vitor Aguiar e. Teoria da Literatura. Lisboa: Almedina, 2004.
ALVES, Antônio de Castro. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976.
AMADO, Jorge. Seara Vermelha. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ANCHIETA, José de. Poesias. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade
de São Paulo, 1954.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: José
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ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova
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ANDRADE, Mário de. Fogo Morto. IN: REGO, José Lins do. Fogo Morto.
Rio de Janeiro: José Olympo, 2009, pp. 25-29.
ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Bello Horizonte: Villa Rica,
1995.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum carácter. São Paulo:
Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1995.
ANDRADE, Oswald. A escada. IN: ANDRADE, Oswald. Os condenados. São
Paulo: Globo, 2003, pp. 285-354.
ANDRADE, Oswald. A estrela de absinto. IN: ANDRADE, Oswald. Os
condenados. São Paulo: Globo, 2003, pp. 157-284.
ANDRADE, Oswald. Alma. IN: ANDRADE, Oswald. Os condenados. São
Paulo: Globo, 2003, pp. 47-156.
ANDRADE, Oswald. Os condenados. São Paulo: Globo, 2003.
ANDRADE, Oswald. Pau-Brasil. São Paulo: Globo/Secretaria de Estado da
Cultura, 1990.
ARANHA, Graça. Canaã. São Paulo: Martin Claret, 2007.
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
ASSIS, Machado de. Obra completa. Vol. I. São Paulo: Nova Aguilar, 1997.

| Bibliografia 281
Ana Maria Saldanha

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: O Estado de S. Paulo/Klick Editora,


1997.
AZEVEDO, Manoel Antônio Alvares de. Poesias completas. São Paulo: Saraiva,
1957.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
UNESP/HUCITEC, 1988.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
São Paulo: UNESP/HUCITEC, 1985.
BAKHTINE, Mikhaïl. Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978.
BANDEIRA, Manuel. O itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Record, 1997.
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1986.
BARBOSA, Francisco de Assis. António de Alcântara Machado. Trechos
escolhidos. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1970.
BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Ed. du Seuil, 1970.
BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São José da Costa Rica:
ALLCA XX/Universidade da Costa Rica, 1997.
BARRETO, Lima. Obras Completas. Vol. 4. São Paulo: Editora Brasiliense,
1956.
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Fonte: https://portoimagem.wordpress.com/2018/08/30/porto-alegre-perde-58-mil-moradores-em-um-ano/
FICHA TÉCNICA
Título
Do Brasil-Colónia ao Século XX: Sociedade e Principais Tendências Estéticas da
Literatura Brasileira

Autor
Ana Maria Saldanha

Editor
Instituto Politécnico de Macau (IPM)
Rua de Luís Gonzaga Gomes, Macau
Tel: (+853) 2857 8722
Fax: (+853) 2830 8801
www.ipm.edu.mo

Data de edição
Dezembro de 2018

Edição
1a Edição

Grafismo e Composição
Ana Maria Saldanha

Capa
Miguel Casanova
miguelcasanovac4@gmail.com

Impressão
Tipografia Vui Fong Limitada

ISBN
978-99965-2-197-3

Tiragem
500 exemplares

Este livro aplica o Acordo Ortográfico (AO) de 1990.

Esta obra foi publicada com o apoio do Gabinete de Apoio ao Ensino Superior (GAES) da Região
Administrativa Especial de Macau (RAEM), ao abrigo do Programa "Financiamentos Especiais para
a Formação de Quadros Qualificados Bilingues em Chinês e Português e para a Cooperação do
Ensino e da Investigação das Instituições do Ensino Superior de Macau de 2018".

Qualquer reprodução do texto por fotocópia ou qualquer outro processo, sem prévia autorização
escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infractor.

© Dezembro de 2018 – Instituto Politécnico de Macau

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