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Leitura e escrita na educação infantil

com sentido e significado


Ana Carolina Carvalho 05/09/2019

Com frequência, nós, que trabalhamos com formação de professores,


escutamos as perguntas: pode alfabetizar na educação infantil? Não corremos
o risco de atropelar a infância das crianças pequenas? Não estaremos
introduzindo-as cedo demais no mundo da escrita? E a brincadeira? Não ficaria
prejudicada, se nos preocuparmos demais com o processo de alfabetização ao
longo da educação infantil? Mas, o que entendemos por alfabetização? E qual
a concepção de criança que temos em mente?

Foto: Marcelo Camargo. Fonte: Agência Brasil.

Dúvidas sérias, perguntas importantes, que nos revelam o quanto estamos


preocupados com as experiências que as crianças podem e devem ter até os
cinco anos de idade. E por falar em experiência, vamos conhecer algumas
reais, viajando um pouco pelo espaço e até pelo tempo? E, por meio dessas
experiências, vamos situando também o lugar que a leitura e a escrita podem
ter na vida de uma criança pequena.

Quem tem medo de “histólia”?


Nossa primeira escala será na cidade de São Paulo e a criança que vamos
conhecer será a pequenina Teresa, de apenas 1 ano e 9 meses. Ela está em
seu quarto com a sua mãe, que resolve fazer uma brincadeira com a leitora
muito precoce. Da cestinha dos livros preferidos da menina, a mãe retira uma
das histórias que mais leem juntas e começa a contar a história de outro livro
muito querido da menina. Ou seja, troca os enredos! Teresa não tem dúvida:
pega o livro das mãos de sua mãe, leva-o até a sua cestinha, retira o livro certo
e entrega o novo exemplar para a mãe, dizendo: “esse, mamãe!”. E dizendo
isso, senta-se muito satisfeita no colo de sua mãe, a fim de, mais uma vez,
reencontrar a história tantas vezes ouvida.

Ainda em São Paulo e no mesmo período de tempo, numa escola de educação


infantil, o menino Pedro, de 3 anos, reúne seus amigos em roda para ler o livro
“Quem tem medo de dragão?”. Pedro gosta tanto dessa história, que já
decorou o seu texto, sabe-o de cor. Os colegas escutam atentos, fazem
perguntas à Pedro, trocam opiniões sobre o enredo, as malvadezas do animal
imaginário, se emocionam e se encantam com a história. Alguém duvida de
que sejam leitores conversando e desfrutando um bom texto literário?

Leia relatos de educadores e familiares sobre o processo de alfabetização


+ Alfabetização e inclusão: educadores e familiares de crianças com deficiência
contam suas experiências
+ Ressignificar saberes para valorizar eficiências no processo de alfabetização

Nossa próxima parada será no interior da Bahia. Numa zona rural, há uma
escola muito simples, onde podemos ver a Kailany, uma menininha de 3 anos
e meio, segurando um papel e um lápis. Sentada na soleira da porta e, muito
compenetrada, faz como se estivesse escrevendo, imitando a letra cursiva de
um adulto. Atenta, a sua professora pergunta o que ela está escrevendo. A
menina não titubeia e responde: uma histólia. Dá vontade de esperar para
conhecer o enredo, mas precisamos continuar nossa jornada e observar mais
experiências de leitura e de escrita entre os pequenos.

Voltamos para São Paulo e encontramos novamente a Teresa, agora mais


crescida, com 5 anos. Ela está ajudando a sua mãe nos preparativos da festa
de aniversário e produz uma pequena lista de coisas que não poderão faltar na
comemoração. Sua lista fica assim:
Ilustração: Arquivo pessoal

Seguimos viajando no tempo e no espaço e vamos parar na cidade de Jarinu,


no estado de São Paulo, década de 1960. Ali, a menina Adriana, de 4 anos,
está ajudando sua mãe na cozinha e sem querer, derruba uma caixa de ovos,
quebrando-os todos. Diante da expressão de desespero de sua mãe, Adriana
sai da cozinha e volta com um bilhete de desculpas. Nele, escreveu, ao seu
modo, o seguinte texto: mamãe, prometo não quebrar mais ovos, sua filha, Adriana.

O que essas experiências nos dizem?


O que essas crianças, em locais e tempos tão diferentes, nos revelam sobre
seu conhecimento acerca da linguagem escrita? E sobre as experiências que
já tiveram até os quase 2, aos 3, 4 ou 5 anos de idade, para que pudessem
constituir-se nesses pequenos leitores e escritores, que já demonstram não só
um saber, mas também prazer no contato com a língua escrita?

Para começo de conversa, já conhecem muito bem o valor da escrita e como


esse objeto social pode servir a propósitos muito diferentes: para que entremos
no mundo da fantasia por meio de uma história, para que possamos nos
lembrar de coisas importantes que precisamos fazer, para nos comunicarmos
com alguém, pedindo desculpas etc. Não é pouco conhecimento!

E para que Adriana, Kailany, Teresa e Pedro soubessem de tudo isso, podemos
afirmar que participaram de muitas situações em que a leitura e a escrita se
fizeram presentes, de forma contextualizada. O que isso significa? Que
observaram adultos escrevendo bilhetes, fazendo listas, lendo histórias. Que
estão buscando compreender e apropriar-se de seu uso.

Ou seja, essas foram crianças que não só participaram de práticas sociais de


leitura e de escrita, mas que tiveram a chance de se fazer perguntas sobre elas:
como são, para que servem? E que, tentando responder a essas questões,
encontraram muitas outras práticas reais, que fizeram eco às primeiras
experiências. Práticas que existem no mundo, que são importantes em nosso
contexto social, e por isso mesmo, devem fazer parte da escola, constituindo
experiências importantes a ser garantidas, desde a educação infantil.

Leitura e escrita aliadas à prática social


Delia Lerner, pesquisadora e professora argentina, autora de um livro que já se
tornou um clássico entre os profissionais que trabalham com alfabetização,
afirma que a escola precisa funcionar como uma micro sociedade de leitores e
escritores. Isto significa que para se enfrentar o desafio de formar pessoas que
de fato saibam ler e escrever é preciso que as crianças tenham, desde cedo,
experiências de leitura e escrita, numa “versão que se ajuste muito mais à
prática social, o que permite que as crianças possam se apropriar efetivamente
da língua escrita”.

Apresentar os textos em seus contextos reais também ajuda a criança na hora


de ler e de escrever, pois elas contarão com conhecimentos importantes acerca
do porquê os textos nos servem, a sua função, do que eles costumam tratar,
que forma possuem. Para que cheguem com esse conhecimento ao aprender
a ler e escrever por conta própria, as crianças precisam ter participado de
muitas situações de leitura e de escrita. Precisam ter ouvido histórias lidas com
muita frequência, ter tido contato com textos diversos, ter preparado pratos a
partir de receitas, ter recebido e escrito bilhetes, ter sido incentivadas a
escrever “do seu jeito”, construindo hipóteses sobre o sistema de escrita.

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É preciso que tenham sido provocadas por suas professoras e professores,


com boas intervenções, é preciso que tenham se arriscado a escrever e pensar
sobre esse objeto de conhecimento. Precisam também ter brincado de
restaurante, de escolinha, de escritório, situações em que a escrita pode estar
presente, inseridas no contexto da brincadeira, com sentido e significado.

Emilia Ferreiro afirma que o grande fracasso que observamos em relação à


alfabetização deve-se ao fato de a escrita ser vista como meramente uma
técnica, retirada de seu contexto, oferecendo textos sem sentido, muitas vezes,
criados apenas para uso escolar. De acordo com a autora:

“As crianças são facilmente alfabetizáveis, desde que descubram, através de contextos
sociais funcionais, que a escrita é um objeto interessante que merece ser conhecido (como
tantos outros objetos da realidade aos quais dedicam seus melhores esforços intelectuais).”

Alfabetização se dá nas experiências


cotidianas das crianças
Iniciar um processo de alfabetização desde a educação infantil não significa
colocar as crianças pequenas sentadas em cadeiras escolares para copiar
letras ou preencher fichas de atividades sem sentido, que não têm nenhuma
correspondência no real, e que consideram que as crianças não são capazes
de ter uma voz na escrita, que aprendem todas da mesma maneira, que não
podem expressar seus pensamentos singulares sobre a língua escrita, coisa
que todas as crianças citadas puderam fazer.

Iniciar um processo de alfabetização desde a educação infantil significa


favorecer um contato verdadeiro com as situações de leitura e a escrita para
todas as crianças. E para isso é preciso contar com algumas experiências
frequentes: leitura de textos diversos, sejam eles de ficção e de não-ficção,
incentivar a escrita pela criança, propondo situações em que ela possa, por
exemplo, registrar seu nome em seus pertences, desenhos e outras produções,
situações em que ela presencie sua professora ou professor escrevendo um
bilhete para as famílias e que, mais tarde, ela mesma possa ser a autora desses
bilhetes, situações em que possa registrar o passo a passo de uma gostosa
salada de fruta ou de um delicioso bolo feito pela turma, que anote informações
sobre uma pesquisa sobre bichinhos de jardim, que a criança participe não
apenas de leituras feitas pelo seu professor ou professora, mas também de
conversas sobre o lido, procurando expressar o que sentiu, de quais textos se
lembrou, o que achou do final de uma história ou do estilo de escrita de um
determinado autor, que possa conhecer outras visões sobre o mesmo texto
lido, que participe de rodas de indicações literárias, sugerindo leituras para
colegas, que leve livros com frequência para casa, a fim de ler com seus
familiares…

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turma
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de histórias
Todas essas são experiências que leitores e escritores proficientes têm em seu
cotidiano. São experiências que existem fora da escola, estão no mundo, na
vida. No entanto, sabemos que, por mais que estejam no mundo, nem sempre
estão efetivamente presentes na vida de todas as famílias. Muitas crianças
terão apenas na escola a oportunidade de ter essas experiências, já que, em
nossa sociedade tão desigual, a leitura e o contato com os textos também não
se dá de forma equânime.

Neste artigo mesmo, temos diferentes contextos. Teresa nasceu em um lar de


classe média em São Paulo, numa família de leitores. Não é o caso da Kailany.
Contudo, as duas tiveram contato com a leitura e a escrita desde cedo, em suas
escolas de educação infantil. É neste sentido que a escola, tal como escreveu
Maria Teresa Andruetto, pode atuar como a grande igualadora social de recursos
culturais.

E a BNCC nessa história?


Ultimamente, temos estado às voltas com a reelaboração dos currículos
escolares, por conta da homologação da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). De acordo com esse documento:

“Desde cedo, a criança manifesta curiosidade com relação à cultura escrita: ao ouvir e
acompanhar a leitura de textos, ao observar os muitos textos que circulam no contexto
familiar, comunitário e escolar, ela vai construindo sua concepção de língua escrita,
reconhecendo diferentes usos sociais da escrita, dos gêneros, suportes e portadores. Na
Educação Infantil, a imersão na cultura escrita deve partir do que as crianças conhecem e
das curiosidades que deixam transparecer. As experiências com a literatura infantil,
propostas pelo educador, mediador entre os textos e as crianças, contribuem para o
desenvolvimento do gosto pela leitura, do estímulo à imaginação e da ampliação do
conhecimento de mundo.”

E ainda:

“Nesse convívio com textos escritos, as crianças vão construindo hipóteses sobre a escrita
que se revelam, inicialmente, em rabiscos e garatujas e, à medida que vão conhecendo
letras, em escritas espontâneas, não convencionais, mas já indicativas da compreensão da
escrita como sistema de representação da língua.”

E então: pode alfabetizar na educação


infantil?
Agora, voltando à questão inicial: se entendermos que alfabetizar significa todo
um processo de contato com sentido e significado com situações de leitura e
de escrita e de uma reflexão sobre o sistema de escrita, então, sim, não só
podemos, como devemos alfabetizar desde a educação infantil, promovendo a
participação de todas as crianças, sem exceção, nessas práticas sociais (em meio a
muitas outras experiências a que as crianças têm direito, por meio da interação
e da brincadeira), considerando que cada criança, em sua singularidade, tem o
direito à essa participação. Porque ao ler e escrever, as crianças pequenas
estão conhecendo o mundo, as suas belezas, as suas possibilidades, as
brincadeiras, as histórias, estão se comunicando e ocupando um lugar nesse
mundo que é por escrito, conhecendo também a si mesmas e dando espaço à
sua própria voz, por meio da escrita.

Se todas as escolas de educação infantil garantirem experiências plenas de


leitura e de escrita às crianças, certamente ampliaremos as nossas chances de
sermos uma sociedade mais justa em relação a essa importante garantia: do
direito à leitura e à escrita com qualidade para todos e todas.

Referências
Andruetto, Maria Teresa. A leitura, outra revolução. São Paulo: Edições SESC,
2017.

BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da


Educação, Brasília, DF: MEC, 2017.

Ferreiro, Emilia. Com todas as letras. São Paulo: Cortez, 1996.

Lerner, Delia. Ler e escrever na escola, o real, o possível e o necessário. Porto


Alegre: Artmed, 2002.

Ana Carolina Carvalho é psicóloga formada pela USP e mestre em Educação pela
Unicamp. Formadora de professores do Instituto Avisa Lá e da CE CEDAC. Professora
do curso de Pós-Graduação “Investigações e Fazeres com Crianças de 4 a 6 anos” do
Instituto Singularidades.

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