Você está na página 1de 7

Agora que o vírus nos tem sitiados, resta

ouvir da boca dos pardais as últimas que nos


vão dando conta da inexistência de Deus. Rui
Nunes, de tão habituado a escrever nos
pequenos desperdícios do tempo, tem outro
livro, "O Anjo Camponês", cheio de atento
silêncio para as confissões destes dias.

Estamos prestes a perder os nomes. Em breve só


falaremos sozinhos, mas seremos mais. Legiões
dispersas e ociosas mirando os céus, enchendo o
peito de um ar podre, sentindo a leve camada de
ferrugem que se solta das colinas de uma região que
não nos diz muito. E é através destas inúmeras e
desamparadas vigílias na escuridão que veremos
reunido um tesouro para ser consumido muito mais
tarde. Isto indo beber o nosso próprio rosto de uma
água que corre entre as visões de Ernst Jünger, esse
danado que entendeu a razão porque cremos nos
homens solitários, quando da história que ouvimos
do mundo só nos ficam as traições, e então cremos
neles “devido à ânsia de conhecer uma fraternidade
mais total, uma relação espiritual mais profunda do
que aquela que é possível entre os homens”. O pior
que há é estar-se num mundo que nos pede cada vez
menos, que agora se entrega com furor a uma
espécie de arraial doméstico, uma telenovela
adaptada às redes sociais onde, todos em coro, sem
um acento agudo ou especialmente trágico, se
entregam ao melodrama: uns disparates, uns
arrepios, apreciando o cenário das lojas vazias,
equacionando a hipótese de o rato vir a tornar-se
uma moeda em circulação, sentindo o cerco de um
inimigo invisível, como se a vida em si fosse um bem
e houvesse absolutamente que protegê-la. Mas as
ironias começam se fizermos algumas perguntas.
Que vidas obrigam, afinal, a tamanhos cuidados? As
ironias são insolúveis, e as destes dias revelam-nos
uma época absolutamente cretina. Fechados em
casa, como em gaiolas, exibindo variações nos tons
de cinza das penas, papagueando as recomendações,
numa intensidade de paranoia frívola, apontando
uns aos outros incoerências, pecados, como uma
raça de anjos azucrinantes, meio anjo, meio mosca.
Ontem declarou-se a peste; pandemia, se
preferirem. Equacionam-se modos de resistência e
rendição. Podemos, ao menos, ir à adega buscar as
melhores garrafas, virá-las, apanhar pifos mais e
menos líricos, rir-mo-nos diante deste frustre ensaio
de apocalipse, tirar a rolha dos grandes ecos, ir saber
notícias de outras cidades sitiadas, ler-lhes os
registos desses subalternos, cronistas amadores que
têm a graça de estarem livres dos vícios dos
historiadores, capazes de sentenças rasas e
demolidoras, como o de Zbigniew Herbert: “eu sei
que é monótono tudo isto não vai comover
ninguém// evito comentários mantenho sob
controle as emoções descrevo factos/ parece que só
os factos têm valor nos mercados estrangeiros/ com
uma espécie de orgulho quero dizer ao mundo/ que
graças à guerra criámos uma nova raça de crianças/
as nossas crianças não gostam de contos de fadas
brincam aos tiros/ dia e noite sonham com sopa pão
ossos/ tal como os cães e os gatos (...)”. É um pouco
alheado, um tanto ou quanto previdente em relação
aos infortúnios que passaram a definir a nossa
condição, que Rui Nunes há muito tem insistido em
dispor o mundo numa escala que só ele sabe dentro
de si, ir de um lado ao outro do quarto como se entre
a mesa e a cama estivessem as fronteiras de tantos
países, como limoeiros ou laranjeiras, e pudesse
colher um fruto em plena luz e logo dá-lo a morder à
escuridão mais funda, pudesse esbracejar e ser
ouvido já, ali, por cada um dos seus leitores. Põe-nos
diante das cenas, guia-nos numa montagem de
flashes atravessando a pouca vista que lhe resta: “há
tantos anos, num mosteiro em Córdoba, em
Córdoba? Incerto, o passado, Franco acabara de
morrer, lembra-se tao bem dele, no caixão, vestido
de generalíssimo, a apodrecer debaixo da farda,
dura como a carapaça de um besouro”... No passado
o futuro espera uma maior desanca, a figura de um
bispo, algum cabrão, de fé muito incerta, “que vai e
vem solene, na sua casula roxa”. Pior que não haver
Deus é, por cima disso, haver tantos que se dizem
Dele. Temo-los aí, repetindo-se diante da multidão
negra, cheios de uma ambição corrosiva. “O Anjo
Camponês” (Relógio d'Água, Janeiro de 2020) serve
bem para lavar-nos dessas formas de lixo. Há cortes
e regressos, uma boca entreaberta (“Por vezes, uma
palavra fica a meio. É o meio de tudo.”), o ar que
passa entre a piedade arrebatada diante do
sofrimento e da indiferença que o velho continente
prometeu que não se repetiria. Sabemos como Rui
Nunes tem feito questão de se importar, como a sua
fragilidade parece a língua comum que o liga a
tantos, que faz dele uma dessas vozes que não
aceitam as condições de crédito oferecidas pela
morte em troca da rendição, defende-se e resiste
dominando a sua miopia a um sopro de a luz se
apagar de vez, mas não sussurra, não usa o tom
geral e mavioso das vozes com que se escreve por cá,
prefere o frémito, o modo de um grito entrar em
decomposição, as notas iradas, e essas quase
trocistas, indo do relato sobre as metamorfoses na
política do inferno a uma sucessão castigadora de
breves descrições pormenorizadas, pratica “a
minúcia sufocante”, carregando de tonalidades
dissonantes o seu testemunho. O mal que vê liberta-
o para ir tacteando, fazendo da escrita uma forma de
relevo, uma forma pessoal de braille, que não deixa
que a frase se precipite, puxa-lhe as rédeas, obriga a
língua a uma postura consternada, recria-a em
ideogramas. De tanto sobrepor emendas, o seu texto
tem pragas para cada articulação que emperre,
segue como um aleijado, como se cada movimento
lhe exigisse uma metamorfose. É uma escrita
encontrada já tarde demais, feita rumor em alguns
momentos, ossos; vai tecendo o avesso do mundo,
pronunciando o contrário de Deus, a sua retirada, o
vazio estremecedor, esse tráfico do que resta,
inconsciente, “um carreiro de formigas de sítio
nenhum para sítio nenhum”. Nem tudo funciona.
Não há sempre o mesmo grau de mestria, mas há a
exposição ao lado acidental, ao erro em carne viva,
às modulações obscuras que não se deixam
satisfazer mas perseguem essas impressões
transtornadas e esquivas que se metem pelas fendas
do idioma. Esta é, ao mesmo tempo,
fragilizada pelos erros que estão vivos noutras
páginas e lhe provocam efeitos de assombração que
muitas vezes dão a sensação de se estar diante de
trechos de um recitativo que se perdeu, frases
inquinadas mas que ainda portam amplas
ressonâncias, o eco de coisas não ditas. Rui Nunes
expõe-nos as ruínas do próprio discurso, mesmo os
sons registam um desmoronamento, faz o silêncio
irromper como silvas, tojo, põe-nos entre as brenhas
"onde a urze espalhou flores minúsculas", tornando
o sentido uma margem atacada pela selvajaria do
que resiste a ser dito, esse silêncio convulso que
pressiona a língua desde antes e até depois da
memória da frase se ter dissipado. Há, por isso,
nestes livros finais a desgostante força de uma arte
terminal, representativa do nosso lugar rarefeito, e
mesmo a erudição que aqui nos surge com uma
elegância angulosa, tem algo de recriminador, marca
as evidências do desastre. “O Anjo Camponês” nem
parece um livro mas mais um desses cadernos onde
se assenta às escondidas impressões brutais, coisas
que se guarda para si para não crescer em nós o
desejo de matar. E o registo deste autor, “mestre do
cambiante e do escrúpulo”, faz dele um fantasma
arreliando os clientes de uma hospedaria (“Hoje,
não se pode ir morrendo, há lugares específicos para
morrer; chega-se e morre-se. Ainda não se está bem
morto e já andam a arranjar o quarto para outro,
daqui a uma hora um novo hóspede estará na
mesma cama. A mosca que esvoaça contra o vidro da
janela vai passando, com o seu voo, de morto em
morto”). Eis um ser destinado a ser descatalogado,
isto numa editora que tem aderido à deriva vã de
tentar farejar o sucesso, investida na busca, “ao
mesmo tempo arrogante e invertebrada”, das
vendas, dos destaques de cada estação, das calorosas
brisas que vão soprando dos hebdomadários. Esta é
uma novela do qual foram levantados
escrupulosamente todos os indícios de simulacro
narrativo, de tentação ficcional, essa forma de
consolo que se estende entre a constância e o
uníssono, o entretecido do tempo e do espaço, da
experiência e da inocência, uma espécie de crime
praticado pelas afecções próprias do bom gosto, de
uma brandura de acertos musicais. Aqui, mesmo o
tom lúgubre que emerge para contar algum episódio
é logo arremetido por nuvens de insectos, zumbidos.
Nenhum episódio aguenta muito tempo num registo
natural. O próprio texto causa a fragmentação da
alma, o leitor é sacudido, arrastado para aqui,
depois para ali, até que o abandono das forças se
ligue à própria continuidade, porque, como nos diz a
certa altura, “até para não continuar é preciso ter
forças”. É um passeio ao longo de uma imensa vala
comum, “um homem a sós com os seus gestos”
numa relação muito íntima com esses espíritos
esmagados pela crueldade. Pode imaginar-se o que a
respiração diária do terror implica até nos ritmos
físicos, numa regularidade cardíaca que se esquece
devorada por imagens que ferem como memórias...
“todos os princípios têm a intensidade de um corpo:
o lábio a secar, a pele a encarquilhar-se, o coração a
bater, enquanto a frase desenrola a certeza que a vai
tornando nojenta”... Há nesta obra uma consciência
que não espera grande coisa da razão e por isso
investe contra o corpo, “um corpo sem
subterfúgios”, uma muito física consciência, uma
veemência que faz as rondas somando sintomas,
como se estivéssemos a adoecer, a sentir o sangue a
transformar-se em pó nas veias, fiel aos defuntos,
respeitando as cinzas... “é assim que tudo
desaparece no nome de tudo.” E depois isto sente-
se, como se tivéssemos areia no próprio nome, como
se de cada vez que nos chamassem fosse maior o
deserto, e o tempo já começasse a enterrar-nos antes
da hora.
 

Você também pode gostar