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À Espera de um like de Godot.

Uma conversa com Vania Baldi

Uma ilustração adequada da condição mais comum dos nativos digitais seria uma perspectiva
de campos a perder de vista dominados por uma espécie de plantação onde os corpos
estivessem alojados em casulos, como larvas que incapazes de completar a sua metamorfose,
diluindo-se aos poucos numa espécie de banho amniótico, exercitando o seu suposto potencial
através de uma infinita sucessão de projecções virtuais. Passeando por ali, ouvir-se-á uma
toada ou murmúrio que vai de boca em boca, com variações subtis entre um perpétuo suspiro
ou bocejo, entrecortados por alguns gemidos de deleite ou de frenético prazer. A sensação é a
de estarmos numa imensa sala de um casino, mas sem música de fundo ou os ruídos das slot
machines, apenas esse rumor contínuo, o de um longo processo de digestão. Vivemos no
estômago da máquina, num conjunto de galerias infernais, fora do tempo, demasiado longe do
mundo, processando estímulos cada vez mais rarefeitos. Num processo de respiração assistida,
a nossa actividade psíquico é monitorizada, e nem se pode dizer que sonhamos. Integramos
um imenso organismo que foi perdendo funções vitais, condenado a um processo de
hibernação que nos aproxima de um estado vegetativo. Nos primeiros tempos de forçada
inacção, e depois de azedarmos de impotência, a consciência só era capaz de produzir
pesadelos. E a solução foi induzir quimicamente um sono superficial que não nos deixa
mergulhar fundo o suficiente para dar largas ao inconsciente. Antes disto, estávamos sujeitos a
permanentes crises de ansiedade, balançando entre os períodos em que nos sentíamos
extenuadas, como gatas borralheiras de uma civilização decadente, e aqueles outros
momentos de êxtase e aflição, como cinderelas escapando ao ouvir as badaladas da meia-
noite. “As rémoras, os ogres, os deuses mais bonitos,/ velam nossa carne como grifos
educados”, de acordo com a visão de José Miguel Silva. O processo de transição acabou por
não ser de ordem ecológica, mas de consciência. Por motivos de eficiência energética, a maior
parte da população acolheu este quadro de hipnose. Não foi preciso simular nenhum processo
democrático, pois desta vez realmente já não nos restavam alternativas. A civilização rendeu-se
perante o seu próprio ultimato. Mas os intelectuais garantiam que a maioria nem daria pela
diferença. O futuro seria como uma longa noite de sono. Como foi que o poeta nos retratou
antes de tomar a pílula azul? “E o pior é que chamamos liberdade/ a um tapete que, rolante, já
não ouve/ a opinião dos nossos pés; que nos leva/ para onde e anuímos, alheados,/ aos
mecânicos desígnios do terror.// Respiramos cadeados, consumimos injustiça,/ damos duas
várias voltas ao risonho torniquete/ que nos serve de chapéu; trocamos a cabeça/ por um
prato de aspirinas. Os clássicos da vida/ sem tristeza nem remorso (Cinderela,// Varadero, off-
shore) iluminam o cenário/ em que dormimos, inocentes como balas/ e nem sei como não
somos mais felizes. (…) Neste cerco, viver é uma questão/ de prorrogar o desalento, de iludir/ o
infortúnio: cerramos uma porta suicida,/ desatamos a gravata, ficamos satisfeitos/ quando o
gelo, na bebida, é de boa qualidade.// Se olhamos para o chão desaparece/ o horizonte; se
olhamos para o céu/ ficamos sós. Não percebo como rimos/ quando pedem que posemos para
a foto/ de família. Alguém nos enganamos.// Confundidos pelo surto de mentira,/ leiloados
pela última hipnose,/ enxertados no pedúnculo da morte,/ semi-envergonhados, de sorriso
padecido,/ dizei-me se este rosto de cartão amarrotado,// se esta alma como um campo
pedregoso,/ se estes pés adaptados ao espinho,/ se isto que nós vemos é um homem.” Para
surpresa dos engenheiros do programa, nos momentos finais, em vez de lágrimas e terror,
verificou-se que o termos sido obrigados a dizer adeus ao nosso modo de vida trouxe uma
sensação de alívio, e até algum ânimo, pois o que quer que se seguisse pelo menos já seria
outra coisa. Fartos da colmeia digital, exauridos por esse regime imparável, se não podíamos
recuperar o mundo, mais valia abrir mão de toda essa linha de decepcionantes sucedâneos.
Neste episódio, vamos ao fundo da última fase da evolução humana, induzida por essas
conexões ininterruptas, por esse quadro de ajustamento mútuo com o ambiente mediático,
num imenso e circular sistema nervoso que se limita processar sequências infinitas e um tanto
aleatórias de dados apenas para que a máquina possa aperfeiçoar o seu código. Para nos
ajudar nesta descida aos círculos (ou circuitos) do inferno digital, Vania Baldi foi o nosso
Virgílio.

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