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Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.bertrandeditora.pt
Tel. 217 626 000 · Fax 217 626 150
ISBN 978-972-25-4122-0
À minha mãe,
mão firme de algodão
«Tudo aquilo parecem desenhos,
Mas dentro das letras estão vozes.
Cada página é uma caixa infinita de vozes.»
MIA COUTO, Mulheres de Cinza. As Areias do Imperador,
Uma Trilogia Moçambicana
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«O rei morreu», apontou na sua tabuinha astrológica um escriba
babilónio. O documento chegou quase intacto até nós por acaso.
Era o dia 10 de junho do ano 323 a. C., e não era preciso ler as
linhas das estrelas para adivinhar que começavam tempos
perigosos. Alexandre deixava dois herdeiros frágeis: um meio-irmão
que todos consideravam bastante idiota e um filho ainda não
nascido na barriga de Roxana, uma das suas três esposas. O
escriba babilónio, instruído em história e nos mecanismos da
monarquia, talvez refletisse, naquela tarde carregada de augúrios,
sobre o caos das sucessões que desencadeiam guerras confusas e
cruéis. Era isso que, naquela altura, muita gente temia e foi
exatamente o que aconteceu.
O banho de sangue começou depressa. Roxana assassinou as
outras duas viúvas de Alexandre para se assegurar de que o seu
filho não teria concorrentes. Os generais macedónios mais
poderosos declararam guerra uns aos outros. Ao longo dos anos,
numa metódica carnificina, iriam matando todos os membros da
família real: o meio-irmão, a mãe de Alexandre, a sua mulher
Roxana e o seu filho, que não chegou a fazer doze anos. Entretanto,
o império desintegrava-se. Seleuco, um dos oficiais de Alexandre,
vendeu os territórios conquistados na Índia a um caudilho nativo
pelo inacreditável preço de quinhentos elefantes de guerra, que
utilizou para continuar a lutar contra os seus rivais macedónios.
Exércitos de mercenários ofereceram-se durante décadas ao melhor
licitador. Depois de anos de combates, ferocidade, vinganças e
muitas vidas ceifadas, ficaram três senhores da guerra: Seleuco, na
Ásia; Antígono, na Macedónia, e Ptolomeu, no Egito. De todos eles,
Ptolomeu foi o único que não teve uma morte violenta.
Ptolomeu instalou-se no Egito, onde passaria o resto da sua
vida. Durante décadas lutou com unhas e dentes contra os seus
antigos companheiros para se manter no trono. E, nos momentos de
pausa que as guerras civis entre macedónios lhe deixavam, tentava
conhecer o imenso país que estava a governar. Tudo ali era
surpreendente: as pirâmides; as íbis; as tempestades de areia; as
ondas de dunas; o galope dos camelos; os estranhos deuses com
cabeça de animal; os eunucos; as perucas e as cabeças rapadas;
as enchentes humanas nos dias de festa; os gatos sagrados, que
era crime matar; os hieróglifos; as cerimónias palacianas; os
templos à escala sobre-humana; o enorme poder dos sacerdotes; o
negro e lamacento Nilo a arrastar-se pelo seu delta rumo ao mar; os
crocodilos; as planícies onde as abundantes colheitas se alimentam
dos ossos dos mortos; a cerveja; os hipopótamos; o deserto, onde
nada permanece a salvo do tempo destruidor; o embalsamamento;
as múmias; a vida ritualizada; o amor pelo passado; o culto da
morte.
Ptolomeu deve ter-se sentido desorientado, confuso, isolado.
Não percebia a língua egípcia, era desajeitado nas cerimónias e
tinha a suspeita de que os cortesãos se riam dele. Contudo, tinha
aprendido com Alexandre a comportar-se com atrevimento. Se não
conseguires entender os símbolos, inventa outros. Se o Egito te
desafia com a sua antiguidade fabulosa, transfere a capital para
Alexandria — a única cidade sem passado — e converte-a no centro
mais importante de todo o Mediterrâneo. Se os teus súbditos
desconfiam das novidades, faz com que toda a audácia do
pensamento e da ciência confluam no seu território.
Ptolomeu destinou grandes riquezas para a construção do
Museu e da Biblioteca de Alexandria.
Equilíbrio à beira do abismo:
a Biblioteca e o Museu de Alexandria
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Vivi uma das etapas mais estranhas da minha vida numa cidade
habitada por milhões de livros. Uma cidade que, talvez por
inspiração dessa peculiar comunidade de papel, decidiu existir num
passado inventado.
Lembro-me da minha primeira manhã em Oxford. Com todas as
credenciais em ordem, orgulhosa da minha bolsa de investigação,
pretendia entrar diretamente na Biblioteca Bodleiana e dedicar umas
horas ao prazer da primeira exploração. Contudo, intercetaram-me
no hall de entrada, onde um empregado da biblioteca, depois de
ouvir as minhas explicações, me fez passar para um escritório
afastado, como se o meu comportamento fosse tão suspeito e as
minhas pretensões tão duvidosas que fosse conveniente tratá-los à
porta fechada, sem contaminar a inocência dos turistas e dos
estudiosos. Sentado do outro lado de uma escrivaninha havia um
homem careca que me interrogou sem estabelecer contacto visual
comigo. Respondi às suas perguntas, justifiquei a minha presença e
mostrei todos os documentos que me pediu com uma cortesia um
pouco intimidatória. Houve um longo silêncio, enquanto ele ia
introduzindo informação sobre mim nas suas vastas bases de
dados, e depois, com os dedos ainda sobre o teclado, numa
surpreendente pirueta no tempo, instalou-se no passado medieval
ao anunciar-me que tinha chegado o momento do juramento.
Estendeu-me um pequeno baralho de cartões plastificados que
compilavam, cada um numa língua diferente, as palavras que devia
pronunciar. Fi-lo. Jurei que obedeceria às normas. Que não roubaria
nem danificaria nem desfiguraria nenhum livro. Que não pegaria
fogo à biblioteca nem ajudaria a provocar um incêndio para
contemplar com prazer diabólico como as chamas rugientes
engoliam os seus tesouros até os reduzirem a cinzas. Todos os
preliminares pareciam governados pela lógica distorcida dos
territórios fronteiriços; tal como nos voos para os Estados Unidos,
quando nos entregam aqueles formulários de imigração surrealistas
em que perguntam se pretendemos atentar contra a vida do
presidente.
De qualquer forma, o meu juramento não foi suficiente; tive de
me submeter aos detetores, consentir que inspecionassem o
conteúdo das minhas malas e deixar a minha mochila no bengaleiro
antes de atravessar finalmente o torniquete metálico da entrada.
Enquanto me submetiam aos restantes controlos, lembrei-me
daquelas bibliotecas na Idade Média nas quais acorrentavam os
livros às estantes ou às escrivaninhas para evitarem roubos. Pensei
nas fantásticas maldições lançadas ao longo da História contra os
ladrões de livros, textos obscuramente imaginativos que me atraem
de forma inexplicável, talvez porque idealizar uma boa maldição não
esteja ao alcance de qualquer um. Uma antologia ainda por
escrever devia começar pelas ameaçadoras palavras inscritas na
biblioteca do mosteiro de San Pere de les Puelles de Barcelona, que
encontro citadas em Uma História da Leitura, de Alberto Manguel:
«Àquele que rouba, ou pede um livro emprestado e não o devolve
ao seu dono, que a sua mão se transforme em serpente e o morda.
Que fique paralisado e sejam condenados todos os seus membros.
Que desfaleça de dor, suplicando aos gritos misericórdia, e que
nada alivie o seu sofrimento até que pereça. Que as traças-dos-
livros lhe roam as entranhas como fazem os remorsos que nunca
terminam. E que quando, finalmente, desça ao castigo eterno, que
as chamas do inferno o consumam para sempre.»
Naquele primeiro dia atribuíram-me um cartão que, como soube
mais tarde, era de nível lúmpen na escala de Oxford. Dava-me
direito a entrar nas bibliotecas e colleges, mas só por determinadas
zonas e em horários autorizados; a consultar livros e revistas,
embora não a pedi-los emprestados; a contemplar — sem ousar
fazer parte delas — as excêntricas liturgias da vida académica.
Rapidamente averiguei que Lewis Carroll estudou e deu aulas em
Oxford durante vinte e seis anos. Então compreendi um gigantesco
mal-entendido: As Aventuras de Alice no País das Maravilhas é puro
realismo literário. Na verdade, descreve na perfeição as minhas
experiências durante aquelas primeiras semanas, bem como os
lugares tentadores que podia entrever pelo buraco da fechadura,
onde teria necessitado de uma poção mágica para cumprir os
requisitos de acesso. A minha cabeça a bater contra os tetos.
Divisões tão asfixiantes que tinha vontade de tirar os braços pelas
janelas e de espreitar pela chaminé. Túneis, letreiros, lanches de
loucos, conversas de uma lógica escorregadia. E personagens
anacrónicas absortas em cerimoniais imprevisíveis. Também
descobri que em Oxford as relações — de amizade, de colaboração
doutoral ou plágio, de servidão feudal, sexuais e outras variantes —
são sazonais e os seus ritmos são compassados segundo o
calendário do ano letivo. Eu tinha cometido o erro de chegar a meio
do trimestre, quando os estudantes já tinham terminado a fase de
andarem às apalpadelas e já tinham resolvido as suas necessidades
essenciais. A residência calvinista onde estava alojada também não
contribuía para a minha integração. As suas normas de
comportamento eram tão inóspitas como a própria cidade, e os
horários de regresso, conventuais. Lembro-me da tristeza da
cozinha comum às sete da tarde, com os seus oito frigoríficos
alinhados; num deles havia um espaço etiquetado com o número do
meu quarto, como o código da lombada de um livro, e até a
prateleira para os ovos estava equitativamente dividida de dois em
dois. Tudo disposto para que cada um permanecesse no seu recinto
numerado, sem invadir o território nem os víveres alheios.
Descíamos para jantar, dávamos o nosso pequeno contributo para o
saco do lixo comum e voltávamos para o estreito quarto atapetado
que nos correspondia.
Tinha tanta necessidade de falar que comecei a mendigar
palavras. Lancei as minhas primeiras abordagens linguísticas na
Biblioteca Sackler, que era o meu quartel-general. Tinha observado
que o porteiro tinha uma cara jovial e avermelhada —
provavelmente pelo álcool — na qual se podia confiar. Também
ataquei, atraída pelos seus olhos céticos, uma das vigilantes do
Museu Ashmolean. Perguntava-lhes pelos segredos da cidade,
pelos recantos desconhecidos das bibliotecas, pela explicação dos
mistérios que abundavam à volta e dos quais eles eram sentinelas.
Assim ouvi histórias fascinantes.
Pedi explicações sobre o surpreendente ritual que se seguia para
solicitar livros: os bibliotecários tomavam nota do nosso pedido e
davam-nos uma hora, um ou dois dias depois, para irmos a uma
sala de leitura específica, onde nos entregavam o material. Se o fim
de semana se aproximava, o prazo podia alargar-se a três ou até a
quatro dias. «Onde estão os livros?», perguntei. E então falaram-me
das duas cidades sobrepostas.
Todos os dias, responderam-me, os bibliotecários da Bodleiana
recebem mil novas publicações. Têm de arranjar lugar para elas,
porque na manhã seguinte chegarão, sem misericórdia, outras mil.
Todos os anos, a coleção aumenta em cerca de cem mil livros e
duzentas mil revistas, ou seja mais de três quilómetros anuais de
estantes e os estatutos não permitem eliminar nem uma folha de
papel. No início do século XX, os edifícios do circuito bibliotecário
ficaram a transbordar pela avalancha de livros. Naquela época,
disseram, começaram a construir-se armazéns subterrâneos e uma
rede de túneis com tapetes rolantes por baixo da cidade. Na época
da Guerra Fria, quando os refúgios nucleares ficaram na moda,
aquele labirinto do subsolo atingiu o seu esplendor mítico. Mas a
avalancha de papel fez transbordar as caves e ameaçou, com a sua
pressão, a rede de esgotos da cidade. Então começaram a mandar
livros para outros lugares, fora da cidade — para uma mina
abandonada e para instalações industriais das imediações. Há
bibliotecários que se encarregam do transporte, acrescentaram,
embora tenham mais depressa o aspeto de operadores de grua com
fatos fluorescentes.
Graças a essas conversas — as primeiras correntes de simpatia
que recebi —, comecei a reconciliar-me com Oxford. Quando
passeava sozinha, julgava ouvir o eco dos tapetes rolantes que
moviam os livros sob os meus passos, fazendo-me companhia.
Imaginava-os ali, nos seus túneis húmidos e secretos, como as
criaturas de Fraggle Rock da minha infância, ou como as
personagens do filme Underground. Relaxei. Baixei a guarda.
Aceitei que em Oxford as excentricidades tinham razões objetivas.
Senti-me mais à vontade, até mais livre, na minha posição marginal
de forasteira desajeitada. E, com paciência, consegui encontrar
outros memoráveis inadaptados.
No nevoeiro de cada manhã, quando me aventurava pelas ruas
desfocadas, sentia que a cidade inteira gravitava sobre um mar de
livros, tal como um tapete mágico em pleno voo.
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Entrava várias vezes por mês por uma porta traseira do Palácio
Médici Riccardi na Via de’ Ginori, mesmo depois do muro ameado
do jardim. A fachada tinha a cor baunilha tão característica de
Florença. Precisava de respirar a simplicidade dessas casas e
desses pátios antes de enfrentar a investida barroca e a asfixiante
cascata de dourados que me aguardavam no interior da Biblioteca
Riccardiana. Ali tive pela primeira vez entre as minhas mãos um
manuscrito de pergaminho realmente valioso.
Durante as minhas longas horas de estudo na luxuosa sala de
leitura, pude urdir com cuidado cada detalhe do plano para apanhar
a minha presa. A verdade é que não precisava de consultar nenhum
manuscrito para a minha investigação, mas adotei a minha melhor
expressão de honradez académica diante dos responsáveis da
biblioteca. O objetivo da minha incursão era exclusivamente
hedonista: queria tocar levemente nesse livro e acariciá-lo, desejava
sentir o deleite sensual tão severamente custodiado pelos guardiães
do património. Entusiasmava-me tocar numa obra de arte nascida
para o prazer de um aristocrata e a sua pandilha de amigos
privilegiados; aquilo era a deliciosa transgressão de uma pobre
rapariga que fazia o possível para pagar o arrendamento em
Florença. Nunca esquecerei aqueles minutos de intimidade —
quase erótica — com um Petrarca do século XIV. Enquanto cumpria
o ritual de acesso aos manuscritos de valor incalculável — entregar
a minha mochila aos bibliotecários, conservar apenas uma folha de
papel e um lápis, calçar as luvas de algodão, submeter-me à
vigilância dos guardiães do tesouro —, confesso que senti umas
agradáveis pontadas de peso na consciência pelos encórdios que o
meu excêntrico fetichismo pelos livros estava a provocar. Às vezes
imaginava que, como castigo, ia cair sobre mim alguma das
alegorias que flutuavam nas pinturas do teto entre nuvens e
escudos heráldicos. Era especialmente ameaçadora a mulher loura
e roliça que levitava na parte mais alta; se não me engano, era a
Sabedoria, a brandir a esfera do orbe.
Pude usufruir dos frutos da minha impostura durante quase uma
hora, e as notas que tirei — representando o papel de uma
paleógrafa aplicada — descreviam apenas as minhas felizes
impressões sensoriais. Ao passar as folhas, o pergaminho crepitava.
O sussurro dos livros, pensei, é diferente em cada época.
Impressionou-me a beleza e a regularidade da escrita traçada por
uma mão especialista. Vi os rastos do tempo, essas páginas
salpicadas de manchas amareladas como as mãos do meu avô
cheias de sinais.
Talvez o impulso de escrever este ensaio tenha nascido então,
com o calor daquele livro de Petrarca que sussurrava como uma
suave fogueira. Depois tive outros manuscritos de pergaminho entre
as mãos, e aprendi a observá-los melhor, mas a memória agarra-se
sempre à primeira vez.
Ao acariciar o códice, lembrei-me de que aquele maravilhoso
pergaminho tinha sido um dia o lombo de um animal que depois
seria degolado. Em apenas umas semanas, o gado podia passar da
vida no prado, no estábulo ou na pocilga para se converter numa
Bíblia. Durante o período em que temos uma melhor documentação,
a Idade Média, os mosteiros compravam peles de vaca, ovelha,
cordeiro, cabra ou porco, escolhidas quando o animal estava vivo
para poderem apreciar melhor a qualidade do exemplar. Como nos
seres humanos, as peles dos animais variam de acordo com a idade
e a espécie. A pele de um anho é mais lisa do que a de uma cabra
de seis anos. Algumas vacas têm a pele mais deteriorada porque
gostam de se esfregar contra a casca das árvores ou porque os
insetos as picam mais. Todos estes aspetos, juntamente com a
habilidade do artesão, tinham importância para o resultado final.
Para pelar e retirar a carne do pergaminho, esticava-se a pele, lisa
como um tambor, e raspava-se de cima a baixo com muito cuidado
utilizando uma faca de lâmina curva. Na gigantesca tensão do
bastidor, um corte demasiado profundo da faca, um folículo de pelo
mal cicatrizado ou o orifício diminuto de uma antiga picadela podiam
crescer até se converterem em buracos do tamanho de uma bola de
ténis. Os copistas aguçavam a imaginação para repararem as
imperfeições da matéria-prima e por vezes o seu talento
embelezava ainda mais o manuscrito. Um buraco no pergaminho
podia converter-se numa janela através da qual a cabeça de uma
miniatura podia espreitar para a página seguinte. Também conheço
o caso de uma brecha reparada pelas freiras de um convento sueco
com um trabalho de tricô que tece uma bela gelosia de fios entre as
letras.
Enquanto sustinha aquele delicado pergaminho entre as mãos
enluvadas para não danificá-lo, pensei na crueldade. Tal como na
nossa época as crias de foca morrem à bastonada na neve para que
possamos abrigar-nos com quentes casacos de pele, os
manuscritos mais luxuosos da Idade Média também exigiam
consideráveis doses de sadismo. Existiram exemplares belíssimos
fabricados com peles brancas profundas e textura sedosa,
chamados «vitelas», que procediam de crias recém-nascidas ou até
de embriões abortados dentro da sua mãe. Imagino os guinchos dos
animais e o seu sangue derramado durante séculos para que as
palavras do passado chegassem até nós. Por trás do requintado
trabalho do pergaminho e da tinta escondem-se, como irmãos
gémeos rejeitados, a pele ferida e o sangue — a barbárie que
espreita nos pontos cegos da civilização. Preferimos ignorar que o
progresso e a beleza incluem dor e violência. De acordo com essa
estranha contradição humana, muitos desses livros serviram para
difundir pelo mundo torrentes de palavras sábias sobre o amor, a
bondade e a compaixão.
Um grande manuscrito podia causar a morte de um rebanho
inteiro. Na verdade, hoje não haveria animais suficientes no mundo
para a descomunal matança que as nossas publicações exigiriam.
Segundo os cálculos do historiador Peter Watson, se supusermos
que cada pele ocupava uma área de meio metro quadrado, um livro
de cento e cinquenta páginas exigiria o sacrifício de entre dez e
doze animais. Outros especialistas atribuem centenas de peles a um
único exemplar da Bíblia de Gutenberg. Produzir cópias em
pergaminho de uma obra, que era a única forma de favorecer a sua
sobrevivência, implicava um gasto enorme, ao alcance de muito
poucos. Não é de estranhar que possuir um livro, mesmo um
exemplar comum, fosse durante um longo período de tempo um
privilégio exclusivo de nobres e ordens religiosas. Numa Bíblia do
século XIII, o escriba, angustiado com a escassez material, anota na
margem: «Oh, se o céu fosse de pergaminho, e o mar fosse de
tinta.»
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Vivi em Florença durante um ano. Era estranho ir todas as
manhãs trabalhar a proteger o portátil das cotoveladas e dos
ataques das multidões turísticas. Na minha rota, evitava a histeria
fotográfica de centenas de pessoas a posarem com um sorriso
congelado. Via filas perpétuas — ondulantes centopeias humanas
— perante os próprios museus. Sentadas na rua, as pessoas
comiam alimentos embalados. Os guias conduziam os seus
rebanhos, vociferando através dos seus microfones em todas as
línguas possíveis. Algumas vezes, a multidão bloqueava a
passagem, como hordas de fãs à espera da chegada de uma estrela
pop. Toda a gente empunhava o seu telemóvel. Gritos. Era preciso
deixar passar as caleches puxadas por cavalos apáticos. Cheiro a
suor, a bosta, a café, a molho de tomate. Sim, era estranho ir
trabalhar no meio desse festival de aglomeração humana e de
selfies. Quando me aproximava do edifício da universidade e via ao
longe o mural do Guernica pintado na parede, respirava com o alívio
de quem emerge, um pouco ferido, de uma estação de metro em
hora de ponta.
A paz e o recolhimento também são possíveis em Florença, mas
é preciso sair para procurá-los, deixando os circuitos trilhados: é
preciso merecê-los. Eu encontrei-os pela primeira vez numa
luminosa manhã de dezembro no Convento de São Marcos. No rés
do chão vagueavam dois visitantes silenciosos, mas no primeiro
andar fiquei sozinha, incrédula como alguém que escapou de uma
feroz debandada de animais na savana. Sedada pela atmosfera
cristalina, visitei uma a uma as celas dos monges, onde Fra
Angelico pintou frescos de uma doçura franciscana que parecem
uma declaração de amor aos seres humildes, aos inocentes, aos
esperançados, aos iludidos. Contam que precisamente ali, rodeado
por esse desfile de belíssimos tolos, Cosme, patriarca da família
Médici, se retirava para fazer penitência pelos agravos que cometia
para multiplicar a sua fortuna e espalhar as suas filiais bancárias por
toda a Europa. O grande homem de negócios tinha reservado uma
cela dupla; já se sabe, os poderosos precisam de mais conforto do
que o resto do mundo, até nas suas horas de expiação. Entre duas
celas, no início de um amplo corredor, descobri um canto
extraordinário do convento. Os especialistas acham que esse lugar
acolheu a primeira biblioteca moderna. Foi aí que acabaram os
esplêndidos livros que o humanista Niccolò Niccoli legou à cidade
«para o bem comum, para o serviço público, para que permaneçam
num lugar aberto a todos, onde as pessoas esfomeadas de
educação possam colher neles, como em campos férteis, o rico fruto
da aprendizagem». Por sua vez, Cosme financiou a construção de
uma biblioteca renascentista, projetada pelo arquiteto Michelozzo,
que substituiu as divisões escuras e os livros acorrentados do
mundo medieval por um símbolo dos novos tempos: uma ala ampla,
banhada em luz natural, concebida para facilitar o estudo e a
conversa. As fontes descrevem com admiração o aspeto original da
biblioteca: uma arcada aérea sustentada por duas filas de delicadas
colunas, janelas dos dois lados, pedra serena, paredes verde-água
para inspirar sossego, prateleiras carregadas de livros, e sessenta e
quatro bancos de madeira de cipreste para os frades e visitantes
que iam ler, escrever e copiar textos. Um acesso desde o exterior
tornava realidade o sonho de Niccolò: a sua coleção de
quatrocentos manuscritos permanecia aberta a todos os amantes da
literatura, florentinos e estrangeiros. Inaugurada em 1444, foi, após
a destruição das suas antepassadas helenísticas e romanas, a
primeira biblioteca pública do continente.
Caminhei lentamente pela sala comprida. Desapareceram as
mesas, substituídas por vitrinas onde se expõem valiosos
manuscritos. Já ninguém vai ler a este espaço renascentista de luz
e silêncio, convertido em museu, e, no entanto, entre estas paredes
respira-se a atmosfera morna dos espaços habitados. Talvez os
fantasmas, que, como toda a gente sabe, são seres assustadiços
que preferem os lugares solitários porque receiam as terroríficas
hordas dos vivos, se tenham refugiado aqui.
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Fazer uma cópia fiel de um texto à mão não é uma tarefa fácil.
Exige uma série de operações repetitivas e esgotantes. O copista
deve ler no livro que lhe serve de modelo um pedaço de texto, retê-
lo na memória, reproduzi-lo com uma caligrafia bonita e depois
voltar ao original fixando o olhar no ponto exato onde tinha parado.
Era necessária uma enorme concentração para se chegar a ser um
bom escriba. Até as pessoas mais treinadas e atentas introduzem
falhas (erros de leitura, lapsos por cansaço, traduções mentais,
interpretações erróneas e correções erradas, substituições de
palavras e omissões de partes do texto). Na verdade, a
personalidade do copista retrata-se nos erros que comete. Embora a
mão que copiou um livro fosse anónima, através dos erros podemos
saber onde nasceu o escriba, que nível cultural tinha, a sua
agilidade mental e os seus gostos, até a sua psicologia se pode ver
nas suas omissões e nas palavras trocadas.
É um facto comprovado que qualquer cópia semeia erros no
texto que reproduz. Uma cópia da cópia reproduzirá as falhas do
modelo e acrescentará sempre outros novos da sua própria colheita.
Os produtos artesanais nunca são idênticos. Só as máquinas
conseguem produzir em série. Os livros manuscritos variavam à
medida que se iam multiplicando, como aquele jogo que consiste
em ir contando a mesma história ao ouvido de pessoa a pessoa e
comprovar que, ao passar de boca em boca, acaba por se converter
numa história diferente da original.
A apaixonada e enlouquecida competição entre reis
colecionadores tinha convertido Alexandria no maior arsenal de
livros alguma vez conhecido. Na Grande Biblioteca era possível
encontrar muitas obras repetidas, sobretudo de Homero. Os sábios
do Museu tiveram a oportunidade de comparar versões e de detetar
as alarmantes diferenças entre elas. Observaram que o processo de
cópias sucessivas estava a alterar sigilosamente as mensagens
literárias. Em muitas passagens não se entendia o que o autor
queria dizer, e noutros lugares eram ditas coisas diferentes
dependendo da cópia. Ao aperceberem-se da dimensão do
problema, compreenderam que, com o passar dos séculos, os
textos se desgastariam pela força silenciosa da falibilidade humana
— tal como as rochas se desgastam pelo ataque constante das
ondas —, e os relatos se tornariam cada vez mais
incompreensíveis, até à dissolução do sentido.
Os guardiães da Biblioteca embarcaram então numa tarefa
quase detetivesca, comparando todas as versões que tinham ao
alcance de cada obra, para reconstruírem de forma original os
textos. Procuravam os fósseis de palavras perdidas e extratos de
significado por baixo da falta de sentido das camadas superiores.
Esse esforço fez avançar os métodos de estudo e investigação e
serviu de treino para uma grande geração de críticos. Os filólogos
alexandrinos prepararam exemplares corrigidos e muito cuidados
das obras literárias que consideravam mais valiosas. Essas ótimas
versões estavam à disposição do público como matriz para
sucessivas cópias e até para o mercado de livros. As edições que
hoje lemos e traduzimos são filhas dos detetives de palavras de
Alexandria.
Para além de restaurarem os textos em circulação, o Museu de
Alexandria — também chamado a gaiola das musas — produziu
toneladas de erudição, disquisições e tratados sobre literatura. Os
seus contemporâneos respeitavam o descomunal trabalho
alexandrino, mas ao mesmo tempo adoravam fazer troça daqueles
sábios, cómicos contra a sua vontade. O alvo preferido das piadas
foi um estudioso chamado Dídimo, que chegou a publicar o
fantástico número de três ou até quatro mil monografias. Dídimo
trabalhou de forma incansável na Biblioteca durante o século I a. C.,
escrevendo comentários e glossários, enquanto o mundo à sua volta
era destroçado devido às guerras civis de Roma. Dídimo era
conhecido por duas alcunhas: Tripas de Bronze (Chalkénteros),
porque era preciso ter as entranhas de metal para poder escrever os
seus inumeráveis e prolixos comentários sobre literatura; e o
Esquece-Livros (Biblioláthas), porque uma vez disse em público que
uma teoria era absurda e então mostraram-lhe um ensaio seu onde
a defendia. O filho de Dídimo, chamado Apião, herdou o incansável
ofício paterno, e conta-se que o imperador Tibério lhe chamava Cu
do Mundo. Os filólogos alexandrinos — apaixonados, detalhistas,
cultos, e às vezes pedantes e entediantes — percorreram
rapidamente um trajeto que, com os seus sucessos e excessos, nós
também viríamos a realizar. Durante o helenismo, e pela primeira
vez na História, a bibliografia sobre literatura começou a encher
mais livros do que a própria literatura.
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Você, que lê este livro, viveu durante alguns anos num mundo
oral. Desde o seu balbuciar hesitante até aprender a ler, as palavras
só existiam na voz. Encontrava os desenhos mudos das letras por
todo o lado, mas não significavam nada para si. Os adultos que
controlavam o mundo liam e escreviam. Você não entendia bem o
que era isso, nem lhe importava muito, porque bastava-lhe falar. Os
primeiros relatos da sua vida entraram pelos búzios das suas
orelhas; os seus olhos ainda não sabiam ouvir. Depois chegou a
escola, as linhas retas, os círculos, as letras, as sílabas. Em
pequena escala, cumpriu-se em si o mesmo movimento que a
humanidade fez da oralidade à escrita.
A minha mãe lia-me livros todas as noites, sentada à beira da
minha cama. Ela era o rapsodo; eu, o seu público fascinado. O
lugar, a hora, os gestos e os silêncios eram sempre os mesmos, a
nossa íntima liturgia. Enquanto os seus olhos procuravam o lugar
onde tinha abandonado a leitura e depois recuavam umas frases
para trás para recuperarem o fio da história, a suave brisa do relato
levava todas as preocupações do dia e os medos intuídos da noite.
Naquela altura, a leitura parecia-me um paraíso pequeno e
provisório — depois aprendi que todos os paraísos são assim,
humildes e transitórios.
A sua voz. Eu ouvia a sua voz e os sons da história que ela me
ajudava a ouvir com a imaginação: o chapinhar da água contra o
casco de um barco, o ranger suave da neve, o choque de duas
espadas, o silvo de uma seta, passos misteriosos, uivos de lobo,
cochichos atrás de uma porta. Eu e a minha mãe sentíamo-nos
muito unidas, juntas em dois lugares ao mesmo tempo, mais juntas
do que nunca mas separadas em duas dimensões paralelas, dentro
e fora, com um relógio que fazia tiquetaque no quarto durante meia
hora e anos inteiros a passarem na história, sozinhas e ao mesmo
tempo rodeadas de muita gente, amigas e espias das personagens.
Nesses anos, fui perdendo os dentes de leite, um a um. O meu
gesto preferido enquanto ela me contava histórias era abanar um
dente trémulo com o dedo, senti-lo desprender-se das suas raízes,
dançar cada vez mais solto e, quando finalmente se soltava
deitando uns fios de sangue salgados, colocá-lo na palma da minha
mão para olhar para ele — a infância estava a quebrar-se, deixava
espaços vazios no meu corpo e cacos brancos pelo caminho, e o
tempo de ouvir histórias acabaria depressa, embora eu não
soubesse disso.
E, quando chegávamos a episódios especialmente emocionantes
— uma perseguição, a proximidade do assassino, a iminência de
uma descoberta, o sinal de uma traição —, a minha mãe pigarreava,
fingia uma comichão na garganta, tossia; era o sinal combinado da
primeira interrupção. Já não consigo ler mais. Então era a minha vez
de suplicar e ficar desesperada: não, não fiques por aqui; continua
mais um bocadinho. Estou cansada. Por favor, por favor.
Interpretávamos a pequena comédia e depois ela continuava. Eu
sabia que me enganava, claro, mas assustava-me sempre. No fim,
uma das interrupções seria a sério, e ela fecharia o livro, dar-me-ia
um beijo, deixar-me-ia sozinha às escuras e dedicar-se-ia a essa
vida secreta na qual os mais velhos vivem à noite, às suas noites
apaixonantes, misteriosas, desejadas; esse país estrangeiro e
proibido para as crianças. O livro fechado ficaria em cima da mesa
de cabeceira, calado e teimoso, expulsando-me dos acampamentos
do Yukon, ou das margens do Mississippi, ou do Castelo de If, da
pousada do Almirante Benbow, do Monte de las Ánimas, da selva de
Misiones, do lago de Maracaibo, do bairro de Benia Kirk, em
Odessa, de Ventimiglia, da avenida Nevski, da ilha Baratária, do
antro da aranha Shelob na fronteira de Mordor, do páramo ao pé da
mansão dos Baskerville, de Nijni Nóvgorod, da floresta de
Sherwood, do sinistro laboratório de anatomia de Ingolstad, do
arvoredo do barão Cosimo em Ombrosa, do planeta dos baobás, da
misteriosa casa de Yvonne de Galais, do refúgio de Fagin, da ilha de
Ítaca. E, embora eu abrisse o livro no lugar oportuno, assinalado
pelo marcador, não serviria de nada, pois só veria linhas cheias de
patas de aranha que se negariam a dizer-me uma mísera palavra.
Sem a voz da minha mãe, a magia não se tornava realidade. Ler era
um feitiço, sim; conseguir que esses insetos estranhos pretos dos
livros, que então me pareciam enormes formigueiros de papel,
falassem.
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Não sabemos o seu nome, nem onde nasceu, nem quanto tempo
viveu. Chamar-lhe-ei «ele» porque o imagino homem. As mulheres
gregas da época não tinham liberdade de movimentos. Não lhes
permitiam a independência e a iniciativa para fazerem algo assim.
Ele viveu no século VIII a. C., há vinte e nove séculos. Mudou o
meu mundo. Enquanto escrevo estas linhas sinto-me grata a esse
desconhecido esquecido que, com a sua inteligência, conseguiu um
avanço maravilhoso, embora talvez não fosse consciente da
importância da sua descoberta. Imagino-o viajante, talvez ilhéu. De
certeza que foi amigo de experientes mercadores fenícios de rosto
bronzeado. Provavelmente, bebeu com eles nas tabernas dos
portos, à noite, a aspirar o cheiro do salitre no ar misturado com o
fumo que subia de um pratinho de choco em cima da mesa,
enquanto ouvia histórias do mar. Barcos a cavalgar nas
tempestades, ondas como cordilheiras, naufrágios, costas
estranhas, misteriosas vozes de mulher na noite. Mas o que o
fascinava era sobretudo um talento dos marinheiros aparentemente
humilde e sem épica. Como é que uns simples mercadores podiam
escrever tão depressa?
Os gregos tinham conhecido a escrita na época do apogeu
cretense e dos reinos micénicos, com as suas constelações de
sinais arcanos apenas ao serviço da contabilidade palaciana.
Sistemas silábicos de grande complexidade e um uso muito
limitado, elitista. Os tempos de pilhagens e invasões, juntamente
com a pobreza dos últimos séculos, tinham quase sepultado no
esquecimento aqueles labirintos de sinais. Para ele, para quem a
arte da escrita era um símbolo de poder, os rápidos traços dos
marinheiros fenícios foram uma revelação. Sentiu surpresa,
vertigem, desejo de possuir o seu segredo. Decidiu decifrar os
mistérios da palavra escrita.
Conseguiu um ou vários informantes letrados, talvez pagando-
lhes do seu próprio bolso. O lugar onde se deram os encontros foi,
provavelmente, uma ilha (as melhores candidatas são Tera, Melos e
Chipre) ou até a costa libanesa (como, por exemplo, o porto de Al-
Mina, onde os mercadores eubeus estavam em constante contacto
com os fenícios). Com os seus improvisados mestres, aprendeu a
mágica ferramenta que permitia capturar a marca das infinitas
palavras com apenas vinte e dois simples desenhos. Soube apreciar
a audácia da invenção. Ao mesmo tempo, descobriu que a escrita
fenícia continha enigmas: só se anotavam as consoantes de cada
sílaba, deixando para o leitor a tarefa de adivinhar as vogais. Os
fenícios tinham sacrificado a exatidão em prol de uma maior
facilidade.
A partir do modelo fenício, ele inventou, para a sua língua grega,
o primeiro alfabeto da História sem ambiguidades — tão preciso
como uma partitura. Começou por adaptar cerca de quinze sinais
fenícios consonânticos na sua mesma ordem, com um nome
parecido (aleph, bet, gimel… converteram-se em «alfa», «beta»,
«gama»...). Pegou em letras que não eram úteis para a sua língua,
as chamadas consoantes débeis, e usou os seus sinais para as
cinco vogais que, no mínimo, eram necessárias. Só foi inovador
onde achou que era capaz de melhorar o original. O seu êxito foi
enorme. Graças a ele, difundiu-se na Europa um alfabeto
melhorado, com todas as vantagens da descoberta fenícia e um
novo avanço acrescentado: a leitura deixou de estar sujeita à
conjetura e, portanto, tornou-se ainda mais acessível. Imaginemos
como seria ler esta frase sem vogais: mgnms cm sr lr st frs sm vgs.
Pensemos por um instante na dificuldade de identificar a palavra
«ideia» a partir da consoante «D» ou «aéreo» apenas desde um
«R».
Não sabemos nada sobre esse desconhecido; só nos resta a
fantástica ferramenta que nos ofereceu. A sua identidade é uma
marca apagada pelas ondas, mas não há dúvida de que existiu. Os
especialistas pensam que a invenção do alfabeto grego não foi um
processo anónimo a cargo de uma coletividade sem nome nem
rosto. Foi um ato individual, deliberado e inteligente que exigiu uma
grande sofisticação auditiva para identificar as partículas básicas —
consoantes e vogais — que compõem as palavras. Um
acontecimento único que se realizou num determinado momento e
num único lugar. Na história da escrita grega não há indícios de uma
passagem gradual de um sistema menos completo para um mais
acabado. Também não há rastos de formas intermédias, ensaios,
hesitações, nem retrocessos. Houve alguém — já nunca
averiguaremos quem —, um sábio anónimo, assíduo de tabernas
até ao amanhecer, amigo dos navegantes forasteiros num lugar
banhado pelo mar, que se atreveu a forjar as palavras do futuro
dando forma a todas as nossas letras. E nós, essencialmente,
continuamos a escrever da mesma maneira que o criador deste
instrumento prodigioso imaginou.
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Durante os séculos de lenta expansão do alfabeto, os gregos
continuaram a cantar poemas, mas já não da mesma forma. Certas
vozes atreveram-se a dizer o que nenhum texto antigo tinha ousado
dizer antes. Infelizmente, só nos restam os cacos daqueles versos.
Até ao ano 500 a. C., não se conserva nenhum livro completo de
filosofia nem de poesia, e os poemas inteiros ou as citações textuais
dos autores em prosa são a exceção. Mas esses pequenos
fragmentos que se salvaram são tão poderosos que, mesmo
incompletos, nos comovem.
Aquela foi a grande época da lírica, quando os poemas —
breves, em comparação com a Ilíada —, escritos para serem
cantados, deixaram de olhar para o passado, como as lendas
tradicionais dos velhos tempos. Falavam da ondulação dos dias
próximos, agarravam-se às sensações que experimentavam. Agora.
Aqui. Eu.
Pela primeira vez, a escrita alia-se às palavras díscolas,
irreverentes, que chocam contra os valores da sua época. Esta
assombrosa corrente começa com Arquíloco — filho bastardo de um
grego nobre e de uma escrava bárbara —, mercenário e poeta.
Durante a sua curta vida — de 680 a 640 a. C. —, teve de se
orientar sozinho, sem fortuna nem privilégios, voluntariando-se para
combater em guerras alheias. Como ele disse, a sua lança dava-lhe
todos os dias um pedaço de pão e servia-lhe o vinho que bebia.
Soldado de sorte nas fronteiras entre a cultura e a barbárie,
conheceu as realidades sórdidas por trás dos ideais bélicos.
Segundo o código de honra, era preciso aguentar a posição no
campo de batalha, sem recuar nem fugir. Numa escaramuça contra
os Exércitos trácios, Arquíloco teve de escolher entre morrer
naquele sítio, por trás do seu alto e pesado escudo, ou deixar o
mesmo atirado para um lugar qualquer e desatar a correr para
sobreviver. Existia na Grécia Antiga um insulto gravíssimo, ser um
«lança-escudos», rhípsaspis. Diz-se que, quando se despediam dos
seus filhos antes do combate, as mães espartanas avisavam-nos de
que voltassem «com o escudo ou sobre ele», ou seja, levando-o no
braço por terem lutado com coragem, ou deitados em cima dele,
convertidos em cadáveres.
O que é que Arquíloco decidiu? Fugir a sete pés e, para além
disso, proclamá-lo nos seus versos: «Com grande pena minha,
lancei o escudo para um arbusto, uma excelente peça, agora é um
trácio que o brande. Mas salvei a pele. O que é que esse escudo me
importa? Que se perca. Comprarei outro tão bom.» Nenhum
guerreiro homérico se teria atrevido a admitir algo semelhante, nem
teria tido o sentido do humor necessário para isso. Mas Arquíloco
divertia-se a apresentar-se como anti-herói e a ridicularizar com
descaramento as convenções. Embora fosse corajoso — caso
contrário não teria podido ganhar o sustento na guerra durante
décadas —, amava a vida «que já não se pode recuperar nem
comprar enquanto o último fôlego atravessa a estacaria dos
dentes». Sabia que o soldado que foge a tempo serve para outra
batalha, e para escrever outros poemas. Precisamente pela sua
sinceridade desafiante, recuso-me a imaginá-lo cobarde, mas sim
realista e cáustico.
Nos seus versos, a linguagem é franca, sem rodeios, até roçar a
brutalidade. Com ele, surge um decidido realismo na lírica grega.
Abre as portas a uma nova poesia insolente. Não esconde o seu
temperamento vingativo, apaixonado, trocista. Para o seu desejo
sexual, encontra palavras explícitas: «Oxalá pudesse tocar na mão
de Neóbula... e lançar-me, pronto para a ação, sobre o seu odre e
acomodar a barriga sobre a barriga e as minhas coxas sobre as
suas coxas.» Um brevíssimo fragmento conservado demonstra que
não se acanhou ao falar de sexo oral na sua poesia: «como um
trácio ou um frígio que com uma cana chupa a cerveja, ela, com a
cabeça baixa, entregava-se à tarefa.»
Arquíloco morreu no campo de batalha como Aquiles, mas
deixou claro que a promessa de glória póstuma lhe parecia mais
uma fanfarronice: «Ninguém, depois de morto, é honrado pelos seus
conterrâneos. Preferimos, vivos, o louvor dos vivos.» Richard
Jenkyns, professor de Oxford, considera-o «o primeiro chato da
Europa». Acho que esse epitáfio lhe teria arrancado uma
gargalhada.
O primeiro livro
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As livrarias ambulantes
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A religião da cultura
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Muitos séculos mais tarde, um familiar intelectual de Heródoto, o
filósofo Emanuel Levinas — lituano, francês adotivo e judeu —, que
sobreviveu a um campo de concentração alemão depois de perder
toda a sua família em Auschwitz, escreveria: «O meu acolhimento
do outro é o facto decisivo através do qual as coisas se iluminam.»
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Demóstenes ficou órfão aos sete anos. O seu pai, fabricante de
armas, deixou-lhe um património suficiente para viver sem
problemas económicos, mas os seus tutores esbanjaram a herança.
A sua mãe, arruinada, não tinha dinheiro para lhe pagar uma boa
educação. Passavam dificuldades. Os rapazes do bairro riam-se
dele pelo seu aspeto magro, débil e delicado. Até lhe deram uma
alcunha: bátalo, que significava «ânus», ou seja, «maricas». Para
além disso, sofria um penoso defeito que o complexava e paralisava
ao falar. Provavelmente, gaguejava ou tinha dificuldade para
pronunciar certas consoantes.
Contam que Demóstenes venceu os seus problemas com uma
disciplina sádica. Obrigava-se a falar com seixos na boca. Saía a
correr pelo campo para fortalecer os seus pulmões e recitava versos
a arfar, cansado, arquejando enquanto subia. Passeava à beira do
mar em dias de tempestade para melhorar a sua capacidade de
concentração entre o rugido das ondas. Ensaiava em casa em
frente de um espelho de corpo inteiro, repetindo frases desafiantes e
fazendo poses. A cena, contada por Plutarco, parece preparar o
terreno para o «You Talkin’ to me?» de Robert De Niro em Taxi
Driver. Pobre, órfão, gago e humilhado, anos depois converter-se-ia
no orador mais famoso de todos os tempos. Os antigos gregos, tal
como os americanos de hoje, adoravam uma boa história de
superação.
O número dez simboliza a perfeição. Está na base do nosso
sistema decimal. No mundo académico espanhol representa a
qualificação máxima, ou seja, a excelência. Para os pitagóricos era
um número mágico e sagrado. Não é por acaso que foram dez os
oradores áticos canónicos cujas obras mereciam ser conservadas e
estudadas. Os antigos acreditavam que o fascinante poder das
palavras encontrava a sua máxima expressão — precisamente —
nos discursos.
Os gregos sempre tiveram fama de palradores e de litigantes
inesgotáveis. Os heróis dos seus mitos não eram, como no
imaginário de outras culturas, meros guerreiros brutos e
musculados, pois sabiam lançar, quando se proporcionava, uma
arenga bem adornada, já que tinham sido educados para serem
especialistas na palavra. As instituições democráticas de Atenas
ampliaram a esfera dos discursos: todos os atenienses — entenda-
se: os que cumpriam os requisitos de serem livres e homens —
tinham a possibilidade de falar diante dos seus concidadãos na
Assembleia, onde se votavam as decisões políticas, e decidir, como
membros de júris populares, sobre a solidez dos discursos alheios.
Aparentemente, adoravam o falatório ininterrupto que era o
ingrediente principal da sua vida quotidiana, da ágora ao
parlamento. Aristófanes escreveu uma comédia paródica sobre um
indivíduo chamado Filócleon, um autêntico viciado nos julgamentos.
Para ajudá-lo a ultrapassar a compulsão fiscal, o seu filho monta um
tribunal na sua própria casa e oferece a presidência ao pai. À falta
de alguém para julgar, acusam o cão da família, por ter comido um
pedaço de queijo na cozinha, improvisando longas alegações a seu
favor e contra ele. A pantomina alivia Filócleon como um chuto de
metadona alivia um drogado.
Heródoto relata que, na noite anterior à crucial Batalha de
Salamina, à qual deviam chegar frescos e descansados, os generais
envolveram-se numa discussão tumultuária que se prolongou até
altas horas da manhã, enquanto os soldados rasos resmungavam e
criticavam a insensatez dos seus superiores. A discussão não os
impediu de ganhar a batalha, mas Heródoto parece lamentar esse
seu temperamento quezilento, que na sua opinião foi o motivo pelo
qual os gregos nunca conseguiram construir um Estado forte e
unitário. Sim, amavam as palavras e os argumentos incisivos. Por
isso eram capazes de criar poemas de belíssima arte verbal, mas
também de converter qualquer discussão numa briga estéril e
destrutiva.
A oratória dos advogados e estadistas gregos era bastante
diferente da atual. Na ausência de leis contra os libelos e agravos,
os oradores maltratavam-se uns aos outros com um verdadeiro luxo
de injúrias. As intermináveis acusações pessoais e a imputação de
motivos reles ao adversário acrescentavam um interesse mórbido,
quase pugilístico, aos debates. Chegaram a aperfeiçoar a arte de se
criticarem uns aos outros com engenhosos insultos a tal ponto que o
espetáculo devia ser hipnótico. Nos tribunais — todos compostos
por júris —, as questões legais importavam menos do que a astúcia
da argumentação. Para os processos privados, a prática jurídica
exigia que o próprio litigante defendesse o seu caso diante do
tribunal com dois discursos sucessivos. Não existiam advogados
que representassem os seus clientes como se faz hoje em dia. O
habitual era que os litigantes não confiassem em si próprios para
comporem a sua defesa ou o discurso de acusação, e em geral
acabavam por contratar os serviços de uma personagem chamada
«logógrafo» que estudava o caso e escrevia um discurso
convincente, o mais coloquial e simples possível. O cliente aprendia-
o de cor para recitá-lo diante do tribunal. Era assim que a maior
parte dos oradores ganhava a vida. Quanto ao resto, procuravam
defender casos que aumentassem o seu prestígio e contribuíssem
para a descolagem da sua carreira política.
Os melhores discursos políticos e judiciais publicavam-se pouco
tempo depois de serem pronunciados, quando a polémica ainda
estava quente, e as pessoas liam-nos com o mesmo prazer com
que atualmente ficamos colados às séries de advogados. Já agora,
um dos meus filmes judiciais preferidos, Na Sombra e no Silêncio,
contém uma piscadela de olho àquela época. O advogado
protagonista, imaginado por Harper Lee e que sempre recordaremos
com o rosto maduro, suado e paternal de Gregory Peck, chama-se
Atticus Finch, uma referência evidente aos dez grandes oradores
áticos do cânone clássico. E, evidentemente, como qualquer bom
ático que se preze, o herói da pequena Scout sabe pronunciar uma
vibrante alegação — a favor de um homem negro — perante um júri
hostil, na Alabama racista e empobrecida pela Grande Depressão
dos anos trinta do século passado.
Aqueles dez oradores míticos nasceram no decorrer de um
século — entre o V e o IV a. C. — e puderam todos praticamente
conhecer-se e vituperar-se entre si com cólera. Os seus anos de
esplendor coincidiram com a democracia ateniense, e a era das
monarquias helenísticas marcou o fim. Na verdade, entre os
discursos mais famosos de Demóstenes estão as Filípicas, uma
série de ataques furibundos e apocalípticos contra o imperialismo de
Filipe II da Macedónia, pai de Alexandre. Todos nós, os que desde
então nos envolvemos em alguma filípica, somos meros aprendizes
do fascinante Demóstenes.
Outro dos dez oradores, Antifonte, foi um autêntico pioneiro que
poderia estar na vanguarda da psicanálise e das terapias da
palavra. O exercício da sua profissão tinha-lhe ensinado que os
discursos, se forem efetivos, podem influenciar poderosamente o
estado de espírito das pessoas, comovendo, alegrando,
apaixonando, sossegando. Então teve uma ideia nova: inventou um
método para evitar a dor e a aflição comparável à terapia médica
dos doentes. Abriu um estabelecimento na cidade de Corinto e
colocou um rótulo a anunciar que «podia consolar os tristes com
discursos adequados». Quando aparecia algum cliente, ouvia-o com
muita atenção até compreender a desgraça que o afligia. Depois
«apagava-lha do espírito» com conferências consoladoras. Usava o
fármaco da palavra persuasiva para curar a angústia e, de acordo
com os autores antigos, chegou a ser famoso pelos seus raciocínios
sedativos. Depois dele, alguns filósofos afirmaram que a sua tarefa
consistia em «expulsar o rebelde pesar através do raciocínio», mas
Antifonte foi o primeiro a ter a intuição de que curar graças à palavra
se podia converter num ofício. Também compreendeu que a terapia
devia ser um diálogo exploratório. A experiência ensinou-lhe que
convém fazer falar aquele que sofre sobre os motivos da sua dor,
porque, às vezes, procurando as palavras encontra-se o remédio.
Muitos séculos depois, Viktor Frankl, um discípulo de Freud,
sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz e Dachau,
desenvolveria um método parecido para ultrapassar os traumas da
barbárie europeia da sua época.
Seduzidos pela beleza das palavras, os gregos inauguraram o
género da conferência, que teve um surpreendente destino já
durante a Antiguidade. Os sofistas, mestres itinerantes que viajavam
de cidade em cidade à caça de alunos, ofereciam espetáculos para
se darem a conhecer, demonstrarem a qualidade do seu ensino e
provarem as suas habilidades diante do auditório. Umas vezes eram
discursos preparados e, outras, improvisações acerca de temas
sugeridos no momento pelo público — coisas tão descabeladas
como o elogio dos mosquitos ou a calvície. Em algumas daquelas
conferências as portas estavam abertas a todo o tipo de curiosos,
mas em geral as conferências costumavam estar reservadas a um
público mais seleto que pagava um bilhete. Os sofistas cuidavam
com esmero da cenografia dos seus discursos e chegavam até a
comparecer diante dos seus ouvintes com a extravagante
indumentária dos antigos aedos andarilhos, declarando-se herdeiros
daqueles poetas que fascinavam da mesma maneira reis e
camponeses com o feitiço dos seus versos. Na época helenística, o
fenómeno expandiu-se. Havia uma verdadeira tropa de intelectuais
errantes — evidentemente oradores, mas também artistas, filósofos
ou médicos higienistas — que percorriam os caminhos do império,
levando de um lado para o outro o seu experiente talento com a
segurança de encontrarem um auditório solícito até nos recantos
mais empoeirados do mundo conhecido. A conferência converteu-se
no género literário mais vivo, aquele que, de acordo com alguns
especialistas, melhor define a originalidade da cultura daquela
época. Aí começa a rota que conduz às nossas TED Talks e ao
negócio multimilionário dos ex-presidentes conferencistas.
No século V a. C., o formidável sofista Górgias escreveu: «A
palavra é um poderoso soberano; com um corpo pequeníssimo e
totalmente invisível, executa as obras mais divinas: tirar o medo,
eliminar a dor, transmitir alegria e aumentar a compaixão.» O eco
destas ideias gregas está presente naquela que me parece uma das
frases mais belas do evangelho: «mas diz uma só palavra e o meu
servo será curado.»
Porém, aquela genuína paixão pela linguagem gerou toda uma
série de técnicas retóricas que acabaram por gangrenar a sua
espontaneidade. Os oradores aplicaram-se a construir um método
cheio de fórmulas, princípios e procedimentos elaborados até ao
mínimo detalhe. Todas essas disquisições sobre estilo, juntamente
com o asfixiante aparelho de exórdios, provas e refutações, tiveram
consequências em geral nefastas. Infelizmente, durante a
Antiguidade abundavam os mestres pedantes de eloquência e os
artistas do palavreado vão. O amor pelos floreados invadiu e deitou
a perder demasiada literatura. Por vezes, ao traduzir textos gregos
ou romanos, tive de dar uma gargalhada. O escritor está a falar das
suas emoções mais profundas e essenciais — dor, desejo,
abandono, exílio, solidão, medo, tentações de suicídio — quando,
no momento mais inoportuno, intervém um aluno aplicado que
aprendeu de cor as figuras de estilo. E quebra-se o encanto. O
mundo está a afundar-se sob os seus pés e ele conta-o com
antíteses, homeoteleutos e paronomásias.
Desde aquele tempo até ao presente, a nossa fé candorosa nas
receitas para a vida deu de comer a muitos charlatães da retórica.
Hoje somos inundados por decálogos de autoajuda que oferecem as
suas milagrosas listas de sucessos. Dez fórmulas para salvar o
nosso casamento, para esculpir o nosso corpo ou para nos
convertermos em pessoas altamente efetivas, dez chaves para
sermos bons pais, dez truques para fazermos a costeleta perfeita,
dez frases brilhantes para acabar um capítulo. Infelizmente, não
comprei o último.
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Os bibliotecários de Alexandria não expulsaram os poetas
gregos, nem sequer Platão. Na margem do Nilo, o palácio dos livros
proporcionava hospitalidade aos dois bandos adversários. As suas
prateleiras criaram um desses insólitos espaços de armistício onde
as hostilidades cessam, os inimigos tocam levemente uns nos
outros na promiscuidade das estantes, as fronteiras se dissipam e a
leitura se converte em mais uma forma de reconciliação.
Sabemos que a Grande Biblioteca acolheu as ideias, as
descobertas e os grunhidos de Platão. Não sem uma certa dose de
ironia, pois o sábio Calímaco, autor dos Pínakes e ilustre membro
do Museu, quis deixar expresso o cariz assassino que os livros
platónicos podiam chegar a ter.
O episódio está num brevíssimo texto em verso. Talvez
Calímaco, como poeta que era, quisesse lançar um dardo a Platão
em nome do grémio. O seu poema descreve o suicídio de um tal
Cleômbroto de Ambrácia, que se lançou para o vazio do alto de uma
muralha. Diz-nos que não tinha acontecido nada a este jovem capaz
de empurrá-lo para a morte, exceto que «tinha lido um tratado,
apenas um, de Platão: Acerca da alma». Nós conhecemos o diálogo
que acabou com o pobre Cleômbroto com o título de Fédon. Muitos
se perguntaram porque é que se suicidaria depois de ler essa obra,
que relata as últimas horas de Sócrates antes de tomar a sua dose
de cicuta. Alguns defendem que não conseguiu suportar a morte do
sábio, mas outros argumentam que o seu suicídio se ficou a dever a
um raciocínio do próprio Platão, que afirma que a plenitude da
sabedoria só nos chegará após a morte. Em todo o caso, Calímaco
deixou cair sibilinamente a sua crítica: talvez os jovens estejam mais
em perigo, depois de tudo, ao ler Platão do que os poetas.
Não sabemos se o episódio de Cleômbroto foi um caso isolado,
ou se talvez o Fédon tenha semeado um regueiro de suicídios
parecido com o que, séculos mais tarde, deixaria A Paixão do
Jovem Werther. Desde a sua publicação em 1774, o atormentado
romance de Goethe levou muitos jovens europeus com desgostos
de amor a darem um tiro a si próprios, imitando o protagonista. O
autor viveu com alarme o fenómeno social — e funerário — no qual,
reedição após reedição, se ia convertendo o seu livro. Sabe-se que
as autoridades de alguns países chegaram a proibi-lo por motivos
de saúde pública.
Goethe tinha-se inspirado no suicídio real de um amigo, e nas
suas próprias fantasias adolescentes de morte. Mais de cinquenta
anos depois, na sua biografia Poesia e Verdade reconhece que só
conseguiu apaziguar esse impulso autodestrutivo fazendo com que
Werther disparasse sobre si próprio no seu lugar. Mas o fantasma
que o escritor conseguiu expulsar com esse exorcismo literário
passou a atormentar os seus leitores, alguns dos quais sucumbiram
à sua macabra influência. Duzentos anos depois, em 1974, o
sociólogo David Phillips criou o termo «efeito Werther» para
descrever o misterioso reflexo de imitação que o comportamento
suicida apresenta. Até uma personagem de ficção pode ser o
agente de contágio, desencadeando casos idênticos. Outro
maravilhoso romance inquietante, As Virgens Suicidas, de Jeffrey
Eugenides, indaga no profundo enigma psicológico das mortes por
imitação.
Seja como for, o caso do leitor do Fédon que saltou de uma
muralha — a versão grega do viaduto — ia inaugurar sem pretendê-
lo um novo filão literário: os relatos sobre livros que causam a morte.
Não é de estranhar que o mais famoso de todos, o Necronomicon,
tenha nome grego. Este volume maldito, cuja leitura provoca a
loucura e o suicídio, é uma invenção de H. P. Lovecraft para o
universo terrorífico dos seus Mitos de Cthulhu. Como é evidente,
nunca chegaremos a conhecer o conteúdo do Necronomicon porque
ninguém sobreviveu para revelá-lo. Diz-se persistentemente por aí
que alberga saberes arcanos e feitiços de bruxaria que permitem
estabelecer contacto com seres alienígenas de poderes malignos,
os Antigos. Expulsos em tempos imemoriais do nosso planeta por
praticarem a magia negra, estes seres jazem em letargia no espaço
à espera de uma oportunidade para se apoderarem do mundo, que
uma vez já foi seu.
Lovecraft divertiu-se a escrever uma minuciosa história do
Necronomicon e as suas traduções com tal luxo de detalhes que
alguns leitores acreditaram cegamente na sua existência, e certos
alfarrabistas vigaristas fingiram que possuíam um exemplar, pondo-
o à venda para incautos. A graça bibliófila começa pelo nome do
próprio autor, um suposto poeta árabe louco chamado Abdul Al
Hazred. Na verdade, trata-se de uma alcunha infantil do próprio
Lovecraft, inspirada nos contos de As Mil e Uma Noites. Al Hazred é
uma piscadela de olho ao inglês all has read, «aquele que leu tudo».
Os relatos dos Mitos de Cthulhu são pródigos em avisos sobre
as consequências funestas de ler o Necronomicon. Avisam-nos de
que na Idade Média, devido à sua influência, deram-se
acontecimentos surpreendentes, e o livro foi condenado pela Igreja
em 1050. Sempre de acordo com a versão de Lovecraft, apesar das
maldições, foi impressa uma tradução para latim do livro sacrílego
na Espanha do século XVII. Subsistiriam quatro exemplares dessa
edição, um no Museu Britânico, outro na Biblioteca Nacional de
Paris, outro em Harvard, e o último na fictícia universidade
americana de Miskatonic, na também fictícia cidade de Arkham. Os
seguidores trocistas de Lovecraft falsificaram fichas do livro para os
catálogos de diversas bibliotecas do mundo, atribuindo a origem da
edição proibida à cidade de Toledo. Onde quer que apareça um
suposto exemplar, faz disparar os pedidos de empréstimo —
aparentemente, a curiosidade tem mais poder do que o medo do
rasto de demência e de morte que o Necronomicon deixa à sua
passagem.
Platão, o árabe louco Al Hazred e Goethe escreveram livros
capazes de arrastarem para a perdição com o feitiço obscuro das
suas palavras. Outra faceta curiosa da morte do leitor são os livros
envenenados. Que eu saiba, o aparecimento mais antigo destes
volumes assassinos dá-se em As Mil e Uma Noites. No final da
quarta noite e durante toda a quinta, Xerazade narra a história do rei
Yunan e do médico Ruyan. Depois de curar a lepra do rei, o médico
Ruyan descobre que o ingrato monarca pretende desfazer-se dele,
por isso maquina um plano para castigá-lo. Oferece-lhe um livro,
«extrato dos extratos, raridade das raridades, que contém
maravilhas inestimáveis». Acontece que as folhas estão
impregnadas de veneno e o rei acaba por morrer: «Yunan
surpreendeu-se até ao limite da surpresa. Cheio de impaciência,
pegou no livro e abriu-o, mas encontrou as folhas coladas. Então, a
meter o seu dedo na boca, molhou-o com saliva e conseguiu
descolar a primeira folha. Teve de fazer o mesmo com a segunda e
a terceira, e cada uma se abria com maior dificuldade. Desse modo
o rei abriu seis folhas e tentou lê-las, mas não pôde encontrar
nenhuma escrita. Apenas alguns instantes depois o veneno circulou
pelo seu organismo, pois o livro estava envenenado.»
Se, depois de vermos o Psico, muitos de nós sentimos um
calafrio quando tomamos banho sozinhos num hotel, este conto de
As Mil e Uma Noites pode provocar arrepios semelhantes aos
leitores habituados a humedecerem a ponta do dedo para passarem
as páginas. Várias vezes nas minhas leituras voltei a tropeçar com o
livro besuntado de veneno, como se começasse a converter-se num
clássico do terror bibliófilo. Lembro-me do belíssimo tratado de
falcoaria com o qual a malvada rainha Catarina de Médici mata por
erro o seu filho Carlos em A Rainha Margot, de Alexandre Dumas, e
o tratado sobre o riso de Aristóteles — do qual já falei —, que
provoca uma colheita vermelha na tétrica abadia de O Nome da
Rosa. Gosto especialmente da cena da revelação do segredo:
quando o detetive franciscano Guilherme de Baskerville resolve o
mistério dos crimes, não consegue evitar um instante de admiração
pelo assassino. Reconhece que o livro é uma arma exemplar e
silenciosa com a qual «a vítima se envenena sozinha, precisamente
na medida que quer ler».
Infelizmente, o último capítulo desta história dos livros homicidas
é totalmente verídico. Penso nos livros-bomba, volumes em cujo
interior se colocam explosivos de grande potência para matarem o
seu destinatário ao abri-lo. A Casa Branca recebe, ano após ano,
centenas de livros com bombas, que as forças de segurança
desativam. Centenas de empregados de correio, jornalistas,
porteiros, secretárias, e homens e mulheres dos mais variados
ofícios morreram por este motivo em todo o mundo. Qualquer um
podia ser vítima deste tipo de ataque. O estudioso Fernando Báez
calcula que dezenas de manuais clandestinos na Internet ensinam a
fabricar livros-bomba. Aparentemente, os terroristas expressam
preferências por certos autores, e abundam as listas de títulos,
categorias e tamanhos. Alguns grupos consideram a Bíblia
inadequada e, pelo contrário, sabe-se lá porquê, acham o Dom
Quixote muito útil. A 27 de dezembro de 2003, Romano Prodi,
presidente da Comissão Europeia, esteve prestes a morrer quando
abriu um exemplar-bomba de O Prazer, de Gabriele D’Annunzio.
Como é evidente, os políticos e altos cargos que não leem estão
mais protegidos.
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O pior foi o silêncio. Naquela altura, não havia uma palavra para
nomeá-lo. Podíamos dizer: riem-se de mim na aula. Ou de forma
mais dramática: na escola batem-me. Mas isso só arranhava a
superfície da realidade. Não precisávamos de raios-X nos olhos
para vermos formar-se na mente dos adultos um diagnóstico
instantâneo: coisas de crianças.
Era a revelação precoce de um mecanismo tribal, primitivo,
predador. Tinham-me retirado a proteção do grupo. Havia uma cerca
de arame imaginária e eu estava lá fora. Se alguém me insultasse
ou me puxasse a cadeira aos empurrões, os outros não lhe davam
importância. A agressão chegou a adquirir um ar rotineiro, habitual,
pouco chamativo. Não quero dizer que acontecesse todos os dias.
Às vezes, sem saber porquê, declaravam-se estranhos períodos de
calma, o ferrolho da caixa dos trovões permanecia fechado durante
semanas, a trajetória das bolas no recreio deixava de apontar para
mim. Até que, de repente, a professora repreendia na aula algum
dos meus perseguidores, e ao sair, entre a algazarra de crianças
impacientes por brincarem, nos corredores pintados de azul,
devolviam-me a humilhação: marrona, filha da puta, estás a olhar
para onde, queres levar. E começava tudo de novo.
Os perseguidores distribuíam os papéis: um era o líder, e outros
os seus fiéis sequazes. Inventavam alcunhas para mim; faziam
imitações grotescas do meu aparelho de dentes; lançavam-me
essas bolas cujo golpe seco, cujo atordoamento ainda parece que
sinto; partiram-me o dedo mindinho na aula de ginástica;
desfrutavam com o meu medo. Acho que os outros nem sequer se
lembram disso. Talvez, esgaravatando na sua memória, diriam,
bem, pregámos-lhe algumas partidas pesadas. Colaboravam
precisamente assim, com a sua indiferença.
Durante o período mais cruel, entre os meus oito e doze anos,
houve outras marginalizadas; não fui a única. Uma repetente, uma
emigrante chinesa que mal falava a nossa língua, uma rapariga
exuberante com a puberdade adiantada. Éramos os exemplares
débeis da manada, que o predador observa e isola de longe.
Muita gente idealiza a sua infância, converte-a no território
sobrevalorizado da inocência perdida. Eu não tenho qualquer
recordação desta suposta inocência dos outros meninos. A minha
infância é uma estranha confusão de avidez e medo, de fraqueza e
resistência, de dias tenebrosos e de alegrias eufóricas. Estão aí as
brincadeiras, a curiosidade, as primeiras amigas, o amor medular
dos meus pais. E a humilhação quotidiana. Não sei como é que
essas duas partes fraturadas da minha experiência encaixam uma
na outra. A memória arquivou-as separadamente.
Mas o pior, insisto, foi o silêncio. Aceitei o código vigente entre as
crianças, aceitei a mordaça. Toda a gente sabe, desde os quatro
anos, desde sempre, que fazer queixinhas está muito mal. O
queixinhas é um cagarolas, um mau colega, merece levar porrada.
O que acontece no recreio fica no recreio. Não se conta nada aos
adultos — ou, pelo menos, só o mínimo imprescindível para que não
se lembrem de intervir. Era eu que fazia os arranhões sozinha.
Perdia as coisas que, na verdade, me tinham roubado e apareciam
a flutuar na água amarelada do fundo da sanita. Interiorizei que o
único laivo de dignidade ao meu alcance consistia em resistir, em
calar-me, em não chorar à frente dos outros, em não pedir ajuda.
Não sou um caso isolado. A violência entre as crianças, entre os
adolescentes, desenvolve-se protegida por uma barreira de silêncio
duvidoso. Durante anos reconfortou-me não ter sido a queixinhas da
turma, a delatora, a cobarde. Não ter caído tão baixo. Por
autoestima mal interpretada, por vergonha, obedeci à norma: certas
coisas não se contam. Querer ser escritora foi uma rebelião tardia
contra essa lei. Essas coisas que não se contam são precisamente
aquelas que temos obrigação de contar. Decidi converter-me nessa
queixinhas que tanto receei ser. A raiz da escrita é muitas vezes
sombria. Esta é a minha obscuridade. Ela alimenta este livro, talvez
tudo o que escrevo.
Durante os anos humilhantes, para além da minha família,
ajudaram-me quatro pessoas que nunca vi: Robert Louis, Michael,
Jack, Joseph. Mais à frente descobriria que são mais conhecidos
pelos seus apelidos: Stevenson, Ende, London e Conrad. Graças a
eles aprendi que o meu mundo é apenas um dos muitos mundos
simultâneos que existem, incluindo os imaginários. Graças a eles
descobri que podia armazenar fantasias acolhedoras e guardá-las
no meu quarto interior para procurar aí um refúgio quando lá fora
caísse granizo. Essa relação mudou a minha vida.
Remexo entre os meus velhos papéis em busca de um conto
intitulado «As tribos selvagens», que escrevi nos meus primeiros
anos de exploração literária. Ao relê-lo tanto tempo depois, deparo-
me com uma escrita inicial, mas renuncio a introduzir o bisturi. É um
estranho exercício de arqueologia pessoal, a cavar até um extrato
do passado onde a proximidade dos factos ainda me protegia dos
filtros bem-intencionados e enganadores da memória. E, entre as
suas linhas inexperientes, descubro que também eu, na minha
pequena tragédia, encontrei o salva-vidas dos livros.
Era a capitã do barco. Estava no convés quando ouvi um grito. Terra à vista!
Vou até à proa e tiro o telescópio. Na ilha há palmeiras e coqueiros e rochas de
formas estranhas. A ilha do tesouro! Homem do leme, três graus a estibordo.
Arreeiem velas! Vamos atracar. Explorarei a ilha sozinha porque a tripulação tem
medo. Os marinheiros contam histórias terroríficas sobre os selvagens que vivem
na ilha.
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Na verdade, somos bastante estranhos e, como diz Amelia
Valcárcel, foram os gregos que começaram a ser tão estranhos
como nós. Em Alexandria aconteceram — pela primeira vez e em
grande escala — algumas raridades que hoje fazem parte da nossa
vida normal. O que os Ptolomeus materializaram na sua capital do
Nilo é uma ideia ao mesmo tempo assustadora e familiar para nós.
Após a revolução tecnológica que a escrita e o alfabeto tinham
representado, os sucessores de Alexandre puseram em
funcionamento um ambicioso projeto de acumulação de
conhecimento e de acesso ao saber. O Museu atraiu os melhores
cientistas e inventores da época com a promessa de que poderiam
dedicar a sua vida à investigação — para além disso, apelava-se
aos bolsos das suas túnicas com a aliciante isenção de impostos. A
Grande Biblioteca e a sua filial do Serapeu rebentaram os ferrolhos
que mantinham todas as ideias e todas as descobertas custodiadas.
A atmosfera eletrizante em redor daqueles rolos escritos e a sua
acumulação na gigantesca Biblioteca teve de ser algo parecido à
explosão criativa que significam hoje a Internet e Silicon Valley.
Há mais: os responsáveis pela Biblioteca desenvolveram
sistemas eficazes para se orientarem entre aquela informação que
começava a transbordar por todos os diques da memória. Inventar
métodos como o sistema alfabético de ordenação e os catálogos, e
formar pessoal que cuidaria dos rolos — filólogos para emendarem
os erros nos livros, amanuenses para multiplicá-los, bibliotecários
pedantes e risonhos para guiarem os não iniciados pelo labirinto
virtual dos textos escritos — foi um passo tão importante como
inventar a escrita. Muitos sistemas de escrita surgiram de forma
independente entre si no tempo e no espaço, mas relativamente
poucos conseguiram subsistir. Os arqueólogos conseguiram
descobrir numerosos vestígios de línguas esquecidas que se
extinguiram porque não tinham métodos eficientes para catalogarem
os seus textos e otimizarem as pesquisas. De que serve acumular
documentos se a desordem os baralha, e os dados necessários em
cada momento são como agulhas em palheiros infinitos? O que
distinguiu a Grande Biblioteca no seu tempo, como hoje a Internet,
foram as suas técnicas simplificadas e avançadíssimas para
encontrar o fio na caótica maranha da sabedoria escrita.
Organizar a informação continua a ser um desafio fundamental
na era das novas tecnologias, como já foi na época dos Ptolomeus.
Não é por acaso que em várias línguas — francês, catalão e
espanhol — chamamos aos nossos aparelhos informáticos
precisamente «ordenadores» [«computadores» em português]. Foi
Jacques Perret, um professor de línguas clássicas da Sorbonne,
quem propôs em 1955 aos diretores franceses da IBM, em véspera
de lançarem as novas máquinas no mercado, substituírem o nome
anglo-saxónico computer, que refere apenas as operações de
cálculo, por ordinateur, que incide na função — muito mais
importante e decisiva — de ordenar os dados. A história das
peripécias tecnológicas desde a invenção da escrita até à
informática é, no fundo, a crónica dos métodos criados para dispor
do conhecimento, arquivá-lo e recuperá-lo. A rota de todos estes
avanços contra o esquecimento e a confusão, que começou na
Mesopotâmia, teve o seu auge na Antiguidade, no palácio dos livros
de Alexandria e serpenteia sinuosamente até às redes digitais de
hoje.
Os reis colecionadores deram outro passo anómalo e genial:
traduzir. Nunca ninguém tinha abordado um projeto de tradução
universal com uma curiosidade tão ampla e tanta profusão de
meios. Herdeiros da ambição de Alexandre, os Ptolomeus não se
conformaram com cartografar o mundo inexplorado, pois quiseram
abrir caminhos para as mentes dos outros. E foi uma reviravolta
decisiva porque a civilização europeia se construiu através de
traduções — do grego, do latim, do árabe, do hebreu, das diferentes
línguas de Babel. Sem traduções, teríamos sido outros. Nós, os
habitantes de cada região de uma Europa obstaculizada por
montanhas, rios, mares e fronteiras linguísticas, teríamos ignorado
as descobertas alheias, e as nossas limitações ter-nos-iam isolado
ainda mais. É impossível que todos conheçamos cada uma das
línguas em que a literatura e o saber falam e, infelizmente, a maioria
das pombas não nos conseguem dar o dom de línguas. Mas o
nosso antigo hábito de traduzir criou pontes, amalgamou ideias,
originou uma conversa polifónica infinita, e protegeu-nos dos piores
perigos do nosso chauvinismo provinciano, ensinando-nos que a
nossa língua é mais uma — e, na verdade, mais de uma.
O ato de traduzir, que todos damos por adquirido, alberga
aspetos misteriosos. Em A Invenção da Solidão, Paul Auster reflete
sobre esta experiência quase mágica, este jogo de espelhos. Os
seus recantos intrigam-no porque, durante muitos anos, o escritor
ganhou a vida a traduzir os livros de outros escritores. Sentou-se à
sua escrivaninha, leu um livro em francês e, de seguida, com
esforço, escreveu o mesmo livro em inglês. Na verdade, é e não é o
mesmo livro, e por isso a tarefa nunca deixou de surpreendê-lo. Há
uma fração de segundo em que qualquer tradução toca levemente
na vertigem, no inquietante encontro cara a cara com o próprio
duplo, o desconcerto quântico da sobreposição de estados. Auster
senta-se à sua mesa para traduzir o livro de outra pessoa e, embora
só exista uma presença na divisão, na verdade há duas. Auster
imagina-se a si próprio como uma espécie de fantasma vivo de
outra pessoa — muitas vezes morta —, que está e não está, e cujo
livro é e não é o que traduz nesse mesmo instante. Então, diz a si
próprio que é possível estar sozinho e não estar no mesmo
momento.
O «transvasamento» de línguas é filho de um conceito que, em
grande medida, foi inventado por Alexandre e que ainda
denominamos com um nome grego: o cosmopolitismo. A melhor
parte do sonho megalómano de Alexandre — a realização, como em
qualquer utopia que se preze, coxeou de maneira significativa —
consistia em dar vida a uma união duradoura de todos os povos da
oikoumene, criando uma forma política nova capaz de assegurar a
todos os seres humanos paz, cultura e leis. Plutarco escreveu:
«Alexandre não tratou os gregos como caudilhos e os bárbaros
despoticamente, como Aristóteles lhe tinha aconselhado, nem se
comportou com os outros como se fossem plantas ou animais. Pelo
contrário, ordenou que todos considerassem o mundo como a sua
pátria, parentes dos bons e estranhos dos maus.» Trata-se, sem
dúvida, de um resumo hagiográfico que esconde cuidadosamente
os aspetos mais escabrosos da aventura imperial grega. Porém,
através de um prisma deformado, reflete o excecional processo de
globalização iniciado por Alexandre.
O projeto de criar um reino que se estendesse até aos confins do
mundo habitado morreu com o jovem macedónio, mas as suas
conquistas abriram um espaço ampliado de relações humanas. A
civilização helenística foi, na verdade, a maior rede de intercâmbios
culturais e mercantis que o mundo conhecera até então. E as novas
cidades, fundadas por Alexandre e pelos seus sucessores como
celebração vivente da sua glória, inauguraram uma forma inovadora
de viver na queda da civilização clássica. Enquanto na Grécia
europeia a existência ainda decorria de acordo com normas
tradicionais, nas aglomeradas ruas das grandes cidades
alexandrinas do Médio Oriente e da Ásia Menor, a quotidiana
miscelânea de pessoas com origens, costumes e crenças variadas
abriu caminho a híbridos atrevidos.
Muitos estudiosos acreditam que quem encarnou melhor os
novos horizontes do helenismo foi Eratóstenes, chamado no século
III a. C. pelo rei Ptolomeu III para dirigir a Biblioteca de Alexandria. O
OS CAMINHOS DE ROMA
Uma cidade com má reputação
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A literatura da derrota
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Quem é que aprendia a ler e tinha livros na civilização romana?
Nada demonstra a existência de algo remotamente parecido à
educação universal na Antiguidade. Só na época contemporânea,
há bem pouco tempo, alguns países conseguiram uma alfabetização
generalizada, e isso não aconteceu de forma espontânea, já que foi
necessário um grande esforço coletivo. Os romanos nunca tentaram
universalizar as letras, nem criar uma escola pública. A educação
era voluntária, não obrigatória. E cara. É difícil reconstruir o grau de
alfabetização da época, que oscila entre aqueles que mal
conseguiam escrever o seu nome aos que devoravam a complexa
prosa de Tácito. As habilidades de escrita e leitura não eram
uniformes entre homens e mulheres, nem entre regiões rurais e
urbanas. Os especialistas são, em geral, cautelosos e vagos nas
suas conjeturas. O historiador W. V. Harris atreve-se a apresentar
valores precisos para a população de Pompeia, que ficou sepultada
pela lava do Vesúvio no século I e onde foi possível estudar
detalhadamente os milhares de grafítis e pinturas nas paredes —
mensagens de gente comum, como o anúncio do arrendamento de
uma casa, declarações de amor, objetos perdidos, insultos e várias
obscenidades parecidas às que encontramos nas portas das nossas
casas de banho públicas, tarifas de prostitutas, um adepto que
incentiva o seu gladiador preferido… Segundo Harris, naquela
cidade teriam estado em condições de ler e escrever pelo menos
60% de homens e 20% das mulheres; no total, não mais do que dois
ou três mil pompeianos. Embora os valores nos possam parecer
baixos, revelam um nível de educação nunca antes alcançado, e um
acesso à cultura mais aberto do que em qualquer época anterior.
A vida das crianças de classe privilegiada sofria uma reviravolta
quando faziam sete anos. A essa idade abandonavam o conforto da
sua casa, onde a sua mãe as educava e algum escravo grego lhes
ensinava a sua língua — como a precetora estrangeira dos
romances oitocentistas. Acabada a época da aprendizagem em
casa, tinham de enfrentar uma experiência dura, até violenta. Até
aos onze ou doze anos iam sofrer a didática obsessiva e monótona
da escola primária. Insistia-se maçadoramente em cada fase — as
letras, as sílabas, os textos —, sem tentar agarrar a curiosidade dos
estudantes, com uma absoluta indiferença para com a psicologia
infantil. Como na Grécia, o método era passivo: a memória e a
imitação eram os talentos mais valorizados.
Para além disso, o professor não costumava tornar a
aprendizagem agradável. Para todos os escritores antigos, a
lembrança da escola está associada à violência e ao terror. No
século IV, o poeta Ausónio enviou uma carta ao seu neto para
incentivá-lo a começar sem medo a sua nova vida de colegial. «Ver
um professor não é uma coisa assim tão assustadora», dizia-lhe.
«Embora tenha uma voz desagradável e ameace com ásperas
repreensões franzindo a testa, vais habituar-te a ele. Não te
assustes se na escola ecoam muitos golpes de chicote. Não fiques
perturbado com a gritaria quando o cabo da vara vibrar e os vossos
banquinhos se mexerem pelo tremor e o medo.» Suponho que estas
palavras supostamente tranquilizadoras provocariam mais de um
pesadelo ao pobre menino. Agostinho de Hipona, que nunca
esqueceu os seus sofrimentos de colegial, escreveu aos setenta e
dois anos: «Quem não recuaria horrorizado e preferiria perecer se
lhe dessem a escolher entre a morte ou voltar à infância!»
O ofício dos professores primários denominava-se em latim
litterator, ou seja, «o que ensina as letras». Aqueles pobres
coitados, em geral severos, desabridos e mal pagos — não nos
devemos surpreender por saber que muitos tiveram vários
empregos —, legaram o seu nome à «literatura», outra profissão
propensa às penúrias. Os estabelecimentos onde davam as suas
aulas também não eram propriamente monumentais: lugares de
aluguer barato, às vezes simples pórticos separados dos barulhos
da rua e dos curiosos por finas cortinas de tecido. Os alunos
sentavam-se em humildes tamboretes sem encosto e escreviam
sobre os seus próprios joelhos, pois não havia mesas. Horácio
descreve-os a caminho da escola «carregando no seu braço
esquerdo a caixinha com as pedras para fazer as contas e a
tabuinha para escrever». Esse foi o conteúdo das primeiras
mochilas infantis.
As crianças precisavam de materiais baratos de escrita para as
suas tarefas escolares, os ditados, as práticas de caligrafia, os
rascunhos. Como o papiro era uma mercadoria luxuosa, as
tabuinhas enceradas foram, desde os romanos, o suporte da escrita
quotidiana e íntima da infância. Nelas aprendiam a ler e nelas
expressavam os seus sucessos, os seus amores, as suas
recordações. Em geral eram simples peças lisas de madeira ou de
metal com uma ligeira parte esvaziada, onde recebiam um
revestimento de cera de abelhas misturada com resina. Sobre essa
camada mole traçavam-se as letras com um estilete afiado de ferro
ou osso. Pelo outro extremo, o buril acabava numa espécie de
espátula com a qual alisar a cera e assim poder reutilizar a tabuinha
ou apagar um erro. O suporte permitia uma reciclagem infinita,
simplesmente trocada a camada de cera. No jazigo de Pompeia
apareceram, quase intactos, dois retratos de mulheres pensativas
com a ponta de um stilus a tocar levemente na sua boca, como
poderia ter feito um intelectual do século XX com os seus óculos, o
seu cigarro e a sua barba esmeradamente descuidada. No mais
conhecido dos dois — que, fantasiando com uma imagem
inexistente, batizámos de «a poeta Safo» —, uma mulher jovem
medita com o estilete apoiado nos lábios e as ceras seguradas
numa mão, enquanto a sua mente cria um verso. Cada vez que
mordiscamos a ponta de uma caneta ou de um lápis, concentrados,
com o olhar perdido, estamos a perpetuar, sem sermos conscientes,
um repertório de gestos tão antigos como a escrita.
A mão da jovem Safo pompeiana segura um bloco de cinco ou
seis tabuinhas. Era habitual perfurar-se pequenos orifícios num
canto das tabuinhas para depois atá-las com argolas, cordões ou
correias. Às vezes, fabricavam-se dípticos ou polípticos unidos por
dobradiças. Graças a um grande depósito de material encontrado
em Vindolanda, ao pé da muralha de Adriano na Grã-Bretanha,
também conhecemos a existência de objetos do tamanho de um
caderno, confecionados com placas de madeira comuns ou tiras de
bétula juntas como um acordeão. A madeira extraía-se das árvores
na primavera, quando a seiva circula por elas e a madeira é mais
flexível para se poder dobrar, como os modernos folhetos
desdobráveis. Nestes conjuntos de tabuinhas encadernadas como
páginas de madeira — em latim, códices —, encontramos o elo
entre o passado mais remoto da escrita e o presente. Foram as
precursoras do livro tal como o conhecemos hoje.
As tabuinhas eram muito comuns e tinham usos muito diversos.
Numerosas certidões de nascimento e documentos de alforria de
escravos — duas maneiras de iniciar uma nova vida — foram
escritos nelas. Também serviram para as anotações pessoais, a
contabilidade doméstica e os apontamentos comerciais de
pequenos negócios, o arquivo, as cartas e as primeiras versões dos
poemas que ainda lemos hoje em dia. No seu manual erótico A Arte
de Amar, Ovídio diz aos amantes clandestinos que devem apagar
as frases comprometedoras com muito cuidado antes de voltarem a
usar uma tabuinha. De acordo com o poeta, muitas infidelidades
descobriam-se por descuidos deste tipo — as ceras antigas eram,
aparentemente, tão delatoras como os telemóveis de hoje. O
assunto provocou, sem dúvida, bastantes desgostos nos nossos
antepassados da era pré-digital, já que o popular Kama Sutra, de
Vatsyayana, também dedica um amplo espaço a instruir as
mulheres na arte de ocultar as cartas incriminatórias das suas
aventuras amorosas.
Às vezes, as tabuinhas levavam uma camada de gesso para se
escrever nelas com tinta usando cálamo, uma cana rígida que
terminava numa ponta fendida com um corte no meio, como o bico
das canetas de tinta permanente. Desta forma, era mais fácil para
uma mão pouco especialista desenhar as letras com riscos e linhas
simples. O poeta Pérsio descreve uma criança em idade escolar a
resmungar e a ficar desesperada com cada grande gota de tinta que
caía da ponta do cálamo e salpicava os seus exercícios de
caligrafia. Essa cena repetiu-se nas aulas durante muitos séculos,
até um passado muito recente. A minha mãe ainda se lembra da
paisagem dos seus cadernos escolares borrifados com aquelas
lágrimas negras.
Eu, pelo contrário, pertenço à era da caneta. Uma invenção
genial do jornalista húngaro László Bíró. Contam que László se
lembrou desta ideia básica — fabricar um novo instrumento de
escrita com uma bola de metal dura dentro de um buraco —
enquanto observava umas crianças a jogarem à bola. Apercebeu-se
de que a bola deixava rasto ao rodar depois de ter passado por uma
poça de água. Imagino aquele jogo de futebol numa cidade chuvosa
— os gritos, os risos, o dia cinzento, o chão salpicado de espelhos,
as marcas húmidas da bola — como um novo alfabeto recém-
inventado. É daí que vêm as inesquecíveis Bic Cristal hexagonais
da minha infância, com a sua tampa azul e o seu buraquinho lateral.
Regressam à minha memória as longas tardes aborrecidas nas
quais as usávamos como sarabatanas para lançar bagos de arroz
contra a nuca dos colegas, e eu apontava — com a falta de jeito
adolescente — tentando chamar a atenção de alguém que talvez
me atraísse.
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A doce inércia
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Nem tudo o que é novo vale a pena: as armas químicas são uma
invenção mais recente do que a democracia. As tradições também
não são sempre convencionais, espartilhadas e aborrecidas. As
rebeldias de hoje inspiram-se em correntes do passado, como o
movimento abolicionista ou o sufragismo. Uma herança pode ser
revolucionária, mas também pode ser retrógrada. Os clássicos
foram por vezes profundamente críticos, com o seu mundo e com o
nosso. Não avançámos assim tanto ao ponto de prescindirmos das
suas reflexões sobre a corrupção, o militarismo ou a injustiça.
Em 415 a. C., Eurípides apresentou a sua tragédia As Troianas
durante um festival religioso, num teatro a abarrotar. A obra recriava
o fim da Guerra de Troia — o mito fundacional dos gregos, a grande
vitória patriótica dos seus antepassados. A grande maioria dos
atenienses que esperava pelo início da peça nas bancadas a comer
pão, queijo e azeitonas estava tão orgulhosa das façanhas de
Aquiles em Troia como nós de termos derrotado o nazismo na
Segunda Guerra Mundial. Mas, se esperavam um Spielberg ático
que lisonjeasse o seu orgulho de estar no lado correto da História
como em A Lista de Schindler, tinham pela frente uma deceção de
dimensões épicas. Eurípides apresentou diante dos seus olhos uma
feroz matança, um arrebatamento e destruição vingativa, violações
coletivas, o assassinato a sangue frio de uma criança lançada ao
abismo desde as muralhas, os horrores da guerra a caírem sobre as
mulheres derrotadas…
O que os atenienses ouviram naquela tarde convulsa do século V
a. C. foi a raiva e o desespero das mães do bando inimigo, que os
acusavam de crueldade. No fim, a idosa rainha Hécuba, iluminada
por um incêndio apocalíptico, denuncia com a sua boca desdentada
a orfandade universal das vítimas («Ai de mim, o fogo já devora o
elevado alcácer, e a cidade inteira, e as mais altas muralhas. O pó e
o fumo, nas asas dos ventos, roubam-me o meu palácio. O nome
deste lugar será esquecido, como tudo se esquece. Treme, treme a
Terra quando Troia cai; meus membros trémulos, arrastem os meus
pés. Vamos viver na escravatura»).
Nem é preciso dizer que Eurípides não ganhou o prémio no
festival de teatro daquele ano. Em tempos de guerra — o mundo
antigo estava permanentemente em guerra —, numa produção
financiada com dinheiro público, atreveu-se a tomar partido pelas
mulheres perante os homens, pelos inimigos perante os seus
compatriotas, pelas perdedoras perante os vencedores. Não
conseguiu o prémio, mas depois de cada uma das grandes guerras
europeias — recentemente, em honra das viúvas e das mães de
Sarajevo — esta obra voltou a representar-se e a desdentada
Hécuba falou de novo, desde as trincheiras quentes e os escombros
ainda por retirar, em nome das vítimas pela guerra, antes de
começarmos a esquecer.
A imagem consagrada e intocável dos clássicos impede-nos de
imaginarmos o enorme questionamento sofrido por alguns deles e
os tremendos alvoroços que organizaram com as suas obras. Se
houve uma personagem polémica foi o multimilionário Séneca.
Astuto investidor, organizou o que hoje chamaríamos um banco de
crédito e enriqueceu graças à cobrança de juros exorbitantes.
Comprou propriedades no Egito, o paraíso do investimento
imobiliário naquela altura. Multiplicou várias vezes o seu património
e, através de prebendas e redes de contacto, conseguiu acumular
uma das maiores fortunas do século, mais de um décimo da
cobrança anual de impostos de todo o Império Romano. Teria
podido dedicar-se ao luxo, a exibir a sua riqueza em imensas e
caras mansões com milhares de telhas — em Roma, o tamanho das
casas não se media pelos metros quadrados de superfície, mas sim
pelo número de telhas que protegiam a cabeça do proprietário —, a
colecionar antiguidades, escravos e troféus de caça. Mas era
apaixonado pela filosofia, ironicamente, pela filosofia estoica.
Dedicou páginas transbordantes de convicção às suas ideias,
páginas onde afirmava que um homem é rico quando as suas
necessidades são sóbrias. Sem necessidade de listas da revista
Forbes, os seus contemporâneos sabiam que a sua fortuna atingia
níveis fora do comum. Era muito tentador fazer troça e levar na
brincadeira todas aquelas apologias do desapego, da frugalidade e
das vantagens de se conformar com pão tosco. Uma e outra vez,
Séneca foi ridicularizado por defender o seu credo de moderação e
filantropia enquanto administrava os seus negócios com métodos de
capitalista desenfreado. É difícil saber em que acreditar com esta
ambivalente personagem, banqueiro e filósofo, que nunca chegou a
resolver a contradição entre o que pensava e como vivia. Porém,
alguns dos textos que lhe proporcionaram tanta troça em vida
continuam a desafiar-nos hoje. Uma passagem das suas Cartas a
Lucílio marca um ponto sem retorno na história do pacifismo
ocidental: «Castigamos os homicídios individuais, mas o que dizer
das guerras e do glorioso delito de arrasar aldeias inteiras?
Elogiamos factos que se pagariam com a pena de morte porque são
cometidos por quem leva as insígnias de general. A autoridade
pública ordena o que está proibido aos particulares, a violência é
exercida mediante decisões do Senado e decretos da plebe. O ser
humano, o mais doce dos animais, não se envergonha de fazer a
guerra e de mandar os seus filhos para também a fazerem.»
Estes textos acumulam séculos, mas recriam o mundo que nos
rodeia com uma veracidade assombrosa. Como é possível? Porque
desde a Grécia e Roma não parámos de reciclar os nossos sinais,
as nossas ideias e as nossas revoluções. Os três filósofos da
suspeita — Nietzsche na metafísica, Freud na ética e Marx na
política — partiram do estudo dos antigos para concretizarem a
passagem para a modernidade. Até a criação mais inovadora
contém, entre outras coisas, fragmentos e despojos de ideias
anteriores. Os clássicos são esses livros que, como os velhos
roqueiros sempre em ativo, envelhecem em cima do palco e se
adaptam a novos tipos de público. Os mitómanos pagam muito para
irem aos seus concertos, os irreverentes parodiam-nos, mas
ninguém os ignora. Demonstram que o novo mantém com o velho
uma relação mais complexa e criativa do que parece à primeira
vista. Como escreveu Hannah Arendt, «O passado não leva para
trás, mas sim impulsiona para a frente e, ao contrário do que se
poderia esperar, é o futuro que nos conduz para o passado».
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Num dia do ano 212, mais de trinta milhões de pessoas foram-se
deitar com uma identidade diferente daquela que tinham de manhã
bem cedo. O motivo não foi uma invasão em massa dos ladrões de
corpos, mas sim a surpreendente decisão de um imperador romano.
As fontes não nos dizem como é que a mudança foi recebida, se
ganhou o jogo da desconfiança ou do alvoroço. Provavelmente,
predominaria a surpresa: não havia precedentes históricos para algo
assim — e tenho a certeza de que não verei nada remotamente
parecido no nosso século XXI.
Qual foi o motivo de tanta comoção repentina? O imperador
Caracala tinha decretado que todos os habitantes livres do império,
onde quer que vivessem, desde a Britânia até à Síria, desde a
Capadócia até à Mauritânia, adquiriam a partir desse momento a
cidadania romana. Foi uma decisão revolucionária que apagou sem
mais nem menos a distinção entre autóctones e estrangeiros. Um
longo processo integrador culminou no instante da aprovação do
decreto. Foi uma das maiores concessões de cidadania
documentadas na História, se não a maior: dezenas de milhões de
provincianos converteram-se legalmente em romanos da noite para
o dia. Esse repentino presente ainda desconcerta os historiadores,
porque quebrou com a política antiquíssima — e tão contemporânea
— de converter apenas uma pequena percentagem dos aspirantes,
de forma gradual e restritiva, em cidadãos plenos. O político e
cronista antigo Dião Cássio suspeitava que sob a aparente
generosidade de Caracala se escondia a necessidade de receber
dinheiro, já que os novos romanos contraíam ipso facto a obrigação
de pagar o imposto sucessório e o imposto pela alforria de escravos.
Como afirma Mary Beard, se esse foi o motivo, acabou por ser uma
maneira muito embaraçosa de abordar o assunto. Não me parece
que nenhum estado atual equacione legalizar trinta milhões de
indivíduos de repente, por mais atraente que seja a perspetiva de
lhes cobrar impostos. Sem dúvida, a decisão do imperador teve uma
importante carga simbólica. Em tempos de crise, dar a mais gente
motivos pessoais para se identificar com Roma podia ser uma
medida inteligente.
Como é óbvio, a extensão da cidadania desvalorizou a sua
importância. Ao cair uma barreira de privilégio, rapidamente se
ergueu outra no seu lugar. Ao longo do século III, ganhou
importância a distinção entre os honestiores — a elite enriquecida e
os veteranos do Exército — e os humiliores — os mais humildes,
conceito intemporal que não precisa de tradução. A legislação
reconheceria direitos desiguais a estes dois grupos; os honestiores
ficaram isentos, por lei, de castigos degradantes ou cruéis como a
crucificação ou a flagelação, enquanto os humiliores permaneciam
expostos às humilhações anteriormente reservadas para os
escravos e os não cidadãos. A fronteira da riqueza substituiu as
fronteiras geográficas.
Embora, na prática, não faltassem grandes doses de
preconceitos, fricções e avidez, a civilização romana possuiu desde
as suas origens uma clara vocação integradora. Caracala terminou
uma evolução que, segundo a lenda, tinha sido iniciada por Rómulo
mil anos antes, quando ofereceu acolhimento — sem fazer
perguntas — a todos os forasteiros que aparecessem na recém-
fundada Roma. O que distinguiu a nova cidade foi a sua receção
aos mais desesperados fugitivos e requerentes de asilo. E, na
verdade, os descendentes de Rómulo praticaram uma política de
fusão sem precedentes na História universal: consideravam
irrelevante a pureza da estirpe, não se preocupavam muito com a
cor da pele, libertavam os escravos com procedimentos simples e
reconheciam ao liberto um estatuto quase de cidadão — os filhos
dos libertos eram-no de pleno direito. Não sabemos até que ponto a
população romana era multicultural, entre outras coisas, porque não
se prestava atenção a esse assunto; provavelmente foi o grupo
etnicamente mais diverso antes da idade moderna. Sem dúvida, em
Roma não faltou quem clamasse que tantos escravos acabariam por
minar as essências patrióticas, e muitos acusavam os estrangeiros
de fazerem poucos esforços para se integrarem. Mas nem o mais
teimoso daqueles resmungões com vontade de protestar teria
entendido os nossos conceitos modernos de «imigrantes ilegais» ou
«sem documentos».
É um facto que a população se movia por todo o território
romano como nunca antes: comerciantes, militares, administradores
e burocratas, traficantes de escravos, provinciais ricos com sonhos
de sucesso na capital. Havia cidadãos de classe alta na Britânia
oriundos do Norte de África. Todos os anos, governadores e altos
funcionários eram mandados para destinos longínquos. As legiões
formavam-se com soldados de todas as procedências. Até os mais
necessitados se juntavam ao fluxo de migrações. A moral de uma
fábula dizia: «Os pobres, ao terem uma bagagem mais leve, passam
com facilidade de uma cidade para outra.»
Os imperadores estavam obcecados com a iconografia global, da
qual faziam propaganda. Proclamava-se que Roma não era apenas
a dominadora do mundo, mas sim também a pátria comum de toda
a humanidade; a grande cidade mundial, a cosmópole concretizada,
capaz de oferecer acolhimento no seu interior a todas as pessoas
dispersas por geografias longínquas. Este ideal encontrou talvez a
sua expressão mais característica no pomposo e adulador Encómio
do retórico Élio Aristides: «Nem o mar nem todas as distâncias da
terra impedem de obter a cidadania, e aqui não há distinção entre a
Ásia e a Europa. Está tudo aberto para todos. Em Roma, ninguém
que seja digno de confiança é estrangeiro.» Os filósofos da época
insistiram em que o império realizava o sonho cosmopolita herdado
do helenismo. Com a sua Constitutio antoniniana do ano 212,
Caracala concretizou juridicamente estas ideias. Quanto ao resto,
não deixou uma grande lembrança como governante. Caprichoso e
homicida, acabou assassinado aos vinte e nove anos por um dos
seus guarda-costas enquanto urinava na valeta de uma estrada na
Mesopotâmia. Embora o seu reinado não tenha dado muitos sinais
de idealismo, admirava Alexandre e quis imitar o seu projeto de um
império baseado na cidadania do mundo. Ele próprio, nascido em
Lugdunum — atual Lyon — era filho da mestiçagem: o pai, Septímio
Severo, descendia da estirpe berbere e tinha a pele escura; a mãe,
Júlia Domna, tinha nascido em Emesa — atual Homs, na Síria. E
não foi a exceção. Quando o nomearam, há tempo que os
imperadores já não eram nativos de Roma, nem sequer italianos. As
elites do poder romano não tinham a pele tão branca como o
mármore das suas estátuas.
Se não era a raça, a cor da pele ou o local de nascimento, o que
é que unia os habitantes da Escócia, Gália, Hispânia, Síria,
Capadócia e Mauritânia? Quais eram os vínculos que, ao longo de
extensões tão enormes, ajudavam os romanos a entender-se, a
partilhar aspirações e a descobrir que eram membros de uma
mesma comunidade? Uma urdidura de palavras, ideias, mitos e
livros.
Sentir-se romano consistia em habitar cidades de largas
avenidas que se cruzavam em ângulo reto; em ter acesso a
ginásios, termas, fóruns, templos de mármores, bibliotecas,
inscrições em latim, aquedutos, redes de esgotos; em saber quem
eram Aquiles, Heitor, Eneias e Dido; em contemplar sem estranheza
os rolos e os códices como parte da paisagem quotidiana; em pagar
impostos aos temidos cobradores; em ter desatado a rir com uma
piada de Plauto nas bancadas de um teatro; em conhecer os
episódios da Roma primitiva contados por Tito Lívio em Ab urbe
condita; em ter ouvido um filósofo estoico falar de autodomínio; em
conhecer a — ou até ter servido na — imparável maquinaria bélica
das legiões. Mosaicos, banquetes, estátuas, rituais, frontões,
baixos-relevos, lendas de triunfo e de dor, fábulas, comédias e
tragédias modelavam — com ar, pedra e papiro — aquela
identidade romana ampliada até limites inimagináveis, o primeiro
relato comum europeu.
Pelas estradas do império globalizado, ensaios e ficções
transitaram de um lado para o outro da geografia conhecida.
Encontraram abrigo numa constelação de bibliotecas públicas e
privadas como nunca se tinha visto antes. Foram copiados e postos
à venda em livrarias de cidades longínquas entre si, como Brindisi,
Cartago, Lyon ou Reims. Seduziram pessoas de diversas origens, a
quem as escolas romanas ensinaram a ler após gerações de
imemorial analfabetismo. Tal como os aristocratas da capital, os
provinciais mais ricos compraram escravos especializado em copiar
textos — o inventário dos bens de um abastado cidadão romano,
proprietário de uma quinta no Egito, inclui, entre os seus cinquenta e
nove escravos, cinco notários, dois amanuenses, um escriba e um
restaurador de livros. Eram muitos os copistas que, ao serviço de
particulares ou de comerciantes, passavam longas jornadas diante
da carteira apetrechados de tinteiros, réguas e cálamos de cana
dura, para satisfazerem a procura de letra escrita. Nunca antes tinha
existido uma comunidade semelhante de leitores espalhada por
vários continentes e unida pelos mesmos livros. É verdade que não
eram milhões de pessoas; nem centenas de milhares; talvez, nos
melhores tempos, várias dezenas de milhares. Mas, contemplados à
luz daquela época, estamos a falar de números prodigiosos.
Como diz Stephen Greenblatt, houve no mundo antigo um
período — que foi longuíssimo — no qual pôde parecer que um dos
principais problemas culturais era a inesgotável produção de livros.
Onde se podiam pôr? Como era preciso organizá-los nas estantes?
Como reter na cabeça aquela profusão de conhecimento? A perda
de tanta riqueza teria sido simplesmente inconcebível para qualquer
um que vivesse naquele ambiente. Depois, não repentinamente mas
sim com a lógica gradual de uma extinção em massa, toda aquela
empresa chegou ao fim. O que parecia estável acabou por ser frágil,
e o que se julgava eterno acabou por se demonstrar efémero.
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Atreva-se a recordar
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A invenção dos livros foi talvez o maior triunfo na nossa tenaz
luta contra a destruição. Confiámos aos juncos, à pele, aos farrapos,
às árvores e à luz a sabedoria que não estávamos dispostos a
perder. Com a sua ajuda, a humanidade viveu uma fabulosa
aceleração da História, do desenvolvimento e do progresso. A
gramática partilhada que os nossos mitos e os nossos
conhecimentos nos proporcionaram multiplica as nossas
possibilidades de cooperação, unindo leitores de diferentes partes
do mundo e de gerações sucessivas ao longo dos séculos. Como
afirma Stefan Zweig no memorável final de Mendel dos Livros: «Os
livros escrevem-se para unir, por cima do próprio fôlego, os seres
humanos, e assim defendermo-nos face ao inexorável reverso de
toda a existência: a fugacidade e o esquecimento.»
Em diferentes épocas, ensaiámos livros de fumo, de pedra, de
terra, de folhas, de juncos, de seda, de pele, de farrapos, de árvores
e, agora, de luz — os computadores e os e-books. Os gestos de
abrir e fechar os livros ou de viajar pelo texto variaram no tempo.
Mudaram as suas formas, a sua rugosidade ou lisura, o seu interior
labiríntico, a sua maneira de ranger e sussurrar, a sua duração, os
animais que os devoram e a experiência de lê-los em voz alta ou
baixa. Tiveram muitas formas, mas é incontestável que o sucesso
da descoberta é esmagador.
Devemos aos livros a sobrevivência das melhores ideias
fabricadas pela espécie humana. Sem eles, talvez tivéssemos
esquecido aquele punhado de gregos temerários que decidiram
entregar o poder ao povo — e chamaram «democracia» a essa
ousada experiência; os médicos hipocráticos, que criaram o primeiro
código deontológico da História onde se comprometiam a cuidar
também dos pobres e dos escravos: «Tem em conta os meios do
teu paciente. Por vezes deves até prestar os teus serviços
gratuitamente; e, se tiveres oportunidade de auxiliar um estrangeiro
que se encontra em dificuldades económicas, presta-lhe plena
assistência»; Aristóteles, que fundou uma das mais precoces
universidades, e dizia aos seus alunos que a diferença entre o sábio
e o ignorante é a mesma do que entre o vivo e o morto; Eratóstenes,
que usou o poder do raciocínio para calcular a circunferência da
Terra com uma margem de erro de apenas oitenta quilómetros
utilizando somente um pau e um camelo; ou os códigos legais
daqueles loucos romanos que um dia reconheceram a cidadania a
todos os habitantes do seu enorme império; ou esse grego cristão,
Paulo de Tarso, que pronunciou talvez o primeiro discurso igualitário
quando disse: «Não há judeu nem grego, nem escravo nem homem
livre, nem homem nem mulher.» Conhecer todos esses precedentes
inspirou-nos ideias tão extravagantes no reino animal como os
direitos humanos, a democracia, a confiança na ciência, a saúde
universal, a educação obrigatória, o direito a um julgamento justo e
a preocupação social com os mais fracos. Quem seríamos hoje em
dia se tivéssemos perdido a recordação de todas essas
descobertas, tal como esquecemos durante séculos as línguas e os
saberes das civilizações egípcia e mesopotâmica? O escritor Elias
Canetti, búlgaro sefardita de língua alemã com apelido espanhol —
os seus antepassados paternos substituíram Cañete por Canetti —,
respondeu: se cada época perdesse o contacto com as anteriores,
se cada século cortasse o cordão umbilical, só poderíamos construir
uma fábrica sem futuro. Seria a asfixia.
Não pretendo omitir as zonas de sombra desta história. A palavra
«cooperação» tem uma auréola benéfica e altruísta que por vezes
pode encobrir realidades obscuras. Com frequência, as redes de
colaboração também servem para explorar e oprimir o próximo.
Muitas sociedades organizaram-se para garantir a continuidade do
seu sistema esclavagista; e os nazis, para orquestrarem a solução
final. Os livros também podem ser um veículo de ideias prejudiciais.
Platão, que acreditava na reencarnação, inventou um mito para
explicar a existência do sexo feminino: nascer mulher é o castigo e a
expiação para aqueles homens que foram injustos numa vida prévia.
Aristóteles escreveu que os escravos são inferiores por natureza.
Na sua coleção de epigramas, Marcial não parece sentir escrúpulos
morais quando adula até ao enjoo um imperador cruel, nem ao dizer
piadas à custa de pessoas com defeitos físicos. A maioria dos
escritores romanos considerava os combates de gladiadores, onde
o público se divertia a contemplar a agonia dos lutadores, como
parte da sua civilização. Os livros convertem-nos em herdeiros de
todos os relatos: os melhores, os piores, os ambíguos, os
problemáticos, os de duplo sentido. Dispor de todos eles é bom para
pensar, e permite escolher. É difícil evitar o sobressalto perante a
estranha mistura de criatividade, esplendor, violência e agravos
característica das civilizações que estabeleceram os alicerces da
Europa. Este desassossego é quase um axioma da modernidade
tardia. Em 1940, um dos anos mais obscuros da história europeia,
Walter Benjamin, foragido na França ocupada, escreveu a sua
célebre reflexão incendiária: «Não há documento da cultura que não
seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie.» Perante a
desoladora evidência de que a barbárie perseverava nas regiões da
razão e de que o Iluminismo não tinha dissipado o mal, outro
europeu entusiasta, Stefan Zweig, suicidou-se em 1942.
Por esta altura, sabemos que qualquer imagem adocicada ou
reverencial da cultura é ingénua, para além de estéril. Petrarca,
ofuscado pela sua admiração sentimental pela Roma Antiga,
enfureceu-se ao descobrir as epístolas de Cícero, a quem sempre
tinha considerado uma alma gémea. Os documentos íntimos do seu
alter ego revelaram uma personagem ambiciosa, por vezes
mesquinha, por vezes cínica, e muito pouco clarividente nas suas
manobras políticas. Petrarca encerrou o assunto escrevendo uma
carta moralizadora ao morto, cheia de censura. Todos poderíamos
lançar justas recriminações contra os nossos imperfeitos
antepassados — e certamente sofreremos as reprimendas dos
nossos descendentes, que diagnosticarão todas as contradições e
insensibilidades que habitam em nós. Mas, se resistirmos ao
impulso de simplificar a literatura com julgamentos absolutos, lê-la-
emos melhor. Quando mais sensata e perspicaz for a nossa
compreensão histórica, mais seremos capazes de proteger aquilo
que valorizamos. Como escreve o poeta e viajante Fernando
Sanmartín: «O passado define-nos, dá-nos uma identidade,
empurra-nos para a psicanálise ou para o disfarce, para os
narcóticos ou para o misticismo. Quem é leitor tem um passado
dentro dos livros. Para o bem ou para o mal. Porque lemos coisas
que hoje nos causariam perplexidade, até tédio. Mas também lemos
páginas que ainda nos provocam entusiasmo ou certezas. Um livro
é sempre uma mensagem.»
É verdade que os livros legitimaram acontecimentos terríveis,
mas também sustentaram os melhores relatos, símbolos, saberes e
invenções que a humanidade construiu no passado. Na Ilíada
contemplamos a lancinante aproximação entre um idoso e o
assassino do seu filho; nos versos de Safo descobrimos que o
desejo é uma forma de rebeldia; nas Histórias de Heródoto
aprendemos a procurar a versão do outro; na Antígona
vislumbramos a existência da lei internacional; em As Troianas
enfrentamos a própria barbárie; numa epístola de Horácio
encontramos a máxima ilustrada «atreve-te a saber»; em A Arte de
Amar de Ovídio fizemos um curso intensivo de prazer; nos livros de
Tácito compreendemos os mecanismos da ditadura; e na voz de
Séneca ouvimos um primeiro grito pacifista. Os livros legaram-nos
algumas ideias dos nossos antepassados que não envelheceram
muito mal: a igualdade entre os seres humanos, a possibilidade de
escolher os nossos dirigentes, a intuição de que talvez as crianças
estejam melhor na escola do que a trabalhar, a vontade de usar — e
diminuir — o tesouro público para cuidar dos doentes, dos idosos e
dos mais fracos. Todas essas invenções foram descobertas dos
antigos, esses aos quais chamamos clássicos, e chegaram até nós
por um caminho incerto. Sem os livros, as melhores coisas do nosso
mundo teriam caído no esquecimento.
EPÍLOGO
Os esquecidos, as anónimas
Um pequeno exército de cavalos e mulas aventura-se todos os
dias pelas escorregadias encostas e desfiladeiros dos montes
Apalaches, com os alforges carregados de livros. Os ginetes dessa
tropa são, na sua maioria, mulheres — amazonas das letras. No
início, os aldeões do este de Kentucky, nos seus vales isolados dos
Estados Unidos e do resto do mundo, observam-nas com ancestral
desconfiança. Alguém no seu perfeito juízo cavalgaria durante o frio
inverno por este território desprovido de estradas, terra de caminhos
desfocados, frágeis pontes que pendem sobre o abismo e leitos de
arroio onde as patas dos animais derrapam entre cataratas de
seixos? Aguçam o olhar, cospem com energia. Noutros tempos
viram chegar forasteiros que apareciam para trabalharem nas minas
ou nas serrações, mas isso aconteceu antes da Grande Depressão.
Sem dúvida, não estavam habituados ao aspeto sinistro destas
mulheres sozinhas, jovens, com um alarmante ar de servirem
remotas autoridades, a rondarem como caçadores à procura de um
sítio onde colocar uma armadilha. Quando chega uma delas, pesa
no ambiente a presença sombria de uma ameaça. As famílias dos
condados da montanha sentem um medo difuso, primário, com a
chegada de estranhos. São pobres e receiam a autoridade tanto
como os criminosos. Só um terço dessa bondosa gente rural sabe
ler, mas até eles se assustam quando um desconhecido ergue um
papel. Uma dívida por pagar, uma denúncia mal-intencionada ou um
litígio incompreensível poderiam arrasar as suas escassas
propriedades. Jamais o admitiriam, mas essas mulheres a cavalo
inspiram-lhes receio. O medo converte-se em surpresa quando as
veem desmontar, abrir os alforges e tirar — espanto e ranger de
dentes — livros.
O mistério resolve-se e os aldeões não conseguem acreditar. A
sério? Bibliotecárias a cavalo? Fornecimento literário? Não
conseguem perceber a gíria estranha que essas mulheres utilizam:
projeto federal, New Deal, serviço público, planos para favorecer a
leitura. Começam a sentir alívio. Ninguém menciona impostos,
tribunais ou despejos. Para além disso, as jovens bibliotecárias têm
um aspeto amigável. Parecem acreditar em Deus e na bondade.
Combater o desemprego, a crise e o analfabetismo através de
amplas doses de cultura financiada pelo Estado: esse era um dos
deveres da Work Progress Administration. Por volta de 1934,
quando o projeto foi concebido, as estatísticas só registavam um
livro per capita no estado do Kentucky. No empobrecido território
montanhoso do Este, sem estradas nem eletricidade, era
impensável pôr em funcionamento um sistema de bibliotecas móveis
em veículos, que tanto sucesso estava a alcançar noutras zonas do
país. A única alternativa era lançar as aguerridas bibliotecárias pelas
veredas dos Apalaches para que levassem às costas os livros até
aos redutos mais isolados. Uma delas, Nan Milan, brincava dizendo
que os seus cavalos tinham as patas mais curtas num lado do que
noutro, para não escorregarem nos escarpados trilhos da serra.
Cada ginete percorria três ou quatro rotas por semana, com trajetos
de até trinta quilómetros por dia. Os livros, procedentes de
donativos, eram armazenados nos postos de correio, barracões,
igrejas, tribunais ou casas particulares. As mulheres, que levavam o
seu trabalho tão a sério como os incansáveis carteiros da época,
recolhiam os lotes nas diferentes sedes e distribuíam-nos por
escolas rurais, centros comunitários e casas de camponeses. Nas
suas cavalgadas solitárias não faltava a épica: os documentos
compilam episódios de cavalos exaustos no meio do nada, perante
o qual as mulheres continuavam o caminho a pé, a transportarem o
pesado alforge de mundos imaginários. «Traz-me um livro para ler»,
era o grito das crianças que viam as forasteiras chegar. Embora em
1936 o circuito abrangesse 50 000 famílias e 155 escolas, com um
total de 8 000 quilómetros percorridos por mês, as bibliotecárias a
cavalo do Kentucky só conseguiam dar resposta a um décimo dos
pedidos. Depois de vencerem os primeiros surtos de desconfiança,
os montanheiros tinham-se convertido em ávidos leitores. Em
Whitley County, as portadoras literárias encontravam comissões de
boas-vindas de até trinta aldeões. Uma vez, uma família negou-se a
mudar-se para outro condado porque ali não havia serviço
bibliotecário. Uma velha fotografia a preto e branco mostra uma
jovem amazona a ler em voz alta ao pé do catre de um idoso
doente. A afluência de livros melhorou a saúde e os hábitos de
higiene na região — as famílias aprenderam, por exemplo, que lavar
as mãos era muito mais efetivo para evitar cólicas do que soprar
fumo de tabaco sobre uma colherada de leite. Os adultos e as
crianças apaixonaram-se pelo sentido de humor de Mark Twain,
mas o título mais pedido foi, de longe, Robinson Crusoe. Os
clássicos puseram os novos leitores em contacto com um tipo de
magia que sempre lhes tinha sido negado. Os escolares letrados
liam-nos aos seus pais analfabetos. Um jovem disse à sua
bibliotecária: «Os livros que nos trouxeste salvaram-nos a vida.»
O programa deu trabalho a quase mil bibliotecárias hípicas
durante uma década. O financiamento terminou em 1943, o ano da
dissolução da WPA, quando a Guerra Mundial substituiu a cultura
como antídoto face ao desemprego.
Somos os únicos animais que fabulam, que afugentam a
escuridão com histórias, que aprendem a conviver com o caos
graças aos relatos, que atiçam as brasas das fogueiras com o ar
das suas palavras, que percorrem longas distâncias para levarem as
suas histórias aos estranhos. E, quando partilhamos os mesmos
relatos, deixamos de ser estranhos.
Há algo assombroso no facto de termos conseguido preservar as
ficções urdidas há milénios. Desde que alguém narrou pela primeira
vez a Ilíada, as peripécias do velho duelo entre Aquiles e Heitor nas
praias de Troia nunca mais caíram no esquecimento. Como escreve
Harari, um sociólogo arcaico que viveu há cerca de 20 000 anos,
bem se podia ter chegado à conclusão de que a mitologia tinha
pouquíssimas possibilidades de sobreviver. Afinal de contas, o que é
uma história? Uma sequência de palavras. Um sopro. Uma corrente
de ar que sai dos pulmões, atravessa a laringe, vibra nas cordas
vocais e adquire a sua forma definitiva quando a língua acaricia o
paladar, os dentes ou os lábios. Parece impossível salvar algo tão
frágil. Mas a humanidade desafiou a soberania absoluta da
destruição ao inventar a escrita e os livros. Graças a essas
descobertas, nasceu um espaço imenso de encontro com os outros
e produziu-se um fantástico aumento da esperança de vida das
ideias. De alguma forma misteriosa e espontânea, o amor pelos
livros criou uma cadeia invisível de gente — homens e mulheres —
que, sem se conhecerem, salvaram o tesouro dos melhores relatos,
sonhos e pensamentos ao longo do tempo.
Esta é a história de um romance em coro ainda por escrever. O
relato de uma fabulosa aventura coletiva, a paixão calada de tantos
seres humanos unidos por esta misteriosa lealdade: narradoras
orais, inventores, escribas, iluminadores, bibliotecárias, tradutores,
livreiras, vendedores ambulantes, professoras, sábios, espias,
rebeldes, viajantes, freiras, escravos, aventureiras, impressores.
Leitores nos seus clubes, nas suas casas, em cumes de montanhas,
junto ao mar que ruge, nas capitais onde a energia se concentra e
nos enclaves afastados onde, em tempos de caos, o saber se
refugia. Gente comum cujos nomes, em muitos casos, a História
não regista. Os esquecidos, as anónimas. Pessoas que lutaram por
nós, pelos rostos nebulosos do futuro.
AGRADECIMENTOS
Prólogo
I. Grécia
CAPÍTULO 1: Herodas, Mimiambos, I, 26-32 (uma alcoviteira
enumera as seduções de Alexandria).
CAPÍTULO 2: Plínio, o Velho, História Natural, IX, 58, 119-121 (a
pérola dissolvida em vinagre); Plutarco, Vidas Paralelas. António,
58, 5 (Marco António oferece 200 000 livros) e 27 (descrição de
Cleópatra).
CAPÍTULO 3: Plutarco, A Fortuna ou a Virtude de Alexandre Magno,
I, 5 = Moralia 328C (Alexandre fundou setenta cidades); Plutarco,
Vidas Paralelas. Alexandre, 8, 2 (Alexandre dormia com a Ilíada
debaixo da almofada) e 26, 5 (sonho homérico e fundação de
Alexandria); Homero, Odisseia, Canto IV, 351-359 (a ilha de Faro);
Estrabão, Geografia, XVII, 1, 8 (o traçado de Alexandria).
CAPÍTULO 4: Plutarco, Vidas Paralelas. Alexandre, 21
(generosidade para com a família de Dario); 26, 1 (o cofre da Ilíada).
CAPÍTULO 5: Arriano, Anábase de Alexandre, V, 25-29 (os oficiais
macedónios negam-se a seguir em frente).
CAPÍTULO 6: Arriano, Anábase de Alexandre, VII, 4 (casamentos
em Susa).
CAPÍTULO 8: Antigo Testamento, Livro dos Macabeus, 1, 1-9
(Alexandre na Bíblia); Asura XVIII, versículos 82-98 (Alexandre no
Corão); Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, XVII, 72 (Alexandre
incendia Persépolis); Estrabão, Geografia, II, 1, 9 (todos os que
escrevem sobre Alexandre preferem o maravilhoso à verdade).
CAPÍTULO 9: Astronomical Diaries from Babilonia, vol. I, 207, ed. A.
http://www.mecd.gob.es/cultura-mecd/areas-
cultura/bibliotecas/mc/ebp/portada.html; F. Báez, Nueva historia
universal de la destrucción de libros, Barcelona, 2011, pág. 49
(número de bibliotecas que existiram nas antigas cidades do
Próximo-Oriente); Ángel Esteban, El escritor en su paraíso,
Cáceres, 2014 (escritores bibliotecários); E. Rodríguez Monegal,
Borges por él mismo, Barcelona, Laia-Literatura, 1984, pág. 112
(Borges orienta-se às cegas na Biblioteca Nacional de Buenos
Aires); Julia Wells, «The female librarian in film: Has the image
changed in 60 years?», SLIS Student Research Journal, 2013, 3(2)
(arquétipos das bibliotecárias no cinema); Rosa San Segundo
Manuel, «Mujeres bibliotecarias durante la II República: de
vanguarda intelectual a la depuración», CEE Participación
Educativa, número extraordinário 2010, págs. 143-164
(bibliotecárias no pós-guerra espanhol); Inmaculada de la Fuente, El
exilio interior. La vida de María Moliner, Turner, Madrid, 2011, págs.
175-198 (processo de depuração de María Moliner);
http://www.mecd.gob.es/revista-cee/pdf/extr2010-san-segundo-
manuel.pdf (bibliotecárias na Segunda República Espanhola: da
vanguarda intelectual à depuração).
CAPÍTULO 60: Gabriel Zaid, Los demasiados libros, Debolsillo,
Barcelona, 2010, pág. 20 (um livro por minuto); Enciclopédia
Bizantina Suda, sub voce Deínarchos e Lykourgos; Focio,
Biblioteca, 20b 25 (os enkrithéntes); Enciclopédia Bizantina Suda,
sub voce Télephos (um manual intitulado Conhecer os Livros);
Enciclopédia Bizantina Suda, sub voce Philón (um manual intitulado
Sobre a Escolha e a Aquisição de Livros).
CAPÍTULO 61: Ateneu, Deipnosofistas, IX, 379E (os Sete
Epílogo
Madrid, 1999.
PASCUAL, C., F. PUCHE e A. RIVERO, Memoria de la librería, Trama
Editorial, Madrid, 2012.
PENNAC, D., Como una novela, tradução de Joaquín Jordá,
Anagrama, Barcelona, 1993 (edição original: Comme un roman,
1992).
PFEIFFER, R., Historia de la filología clásica. De los comienzos
hasta el final de la época helenística, tradução de Justo Vicuña e
M.ª Rosa La fuente, Gredos, Madrid, 1981 (edição original: History
of Classical Scholarship. From the Beginnings to the End of the
Hellenistic Age, 1968).
PINKER, S., En defensa de la Ilustración. Por la razón, la ciencia,
Oxford, 1980.
VALCÁRCEL, A., Sexo y filosofía. Sobre «mujer» y «poder», Horas y
Horas, Madrid, 2013.
VEYNE, P., Sexo y poder en Roma, tradução de María José Furió,