Você está na página 1de 596

@ Jorge Fuembuena

Irene Vallejo (Saragoça, 1979) é apaixonada pela mitologia grega e


romana desde tenra idade. Estudou Filologia Clássica, doutorando-se nas
universidades de Saragoça e Florença. É escritora, colunista do El País e
do Heraldo de Aragón, palestrante e promotora da educação e do
conhecimento sobre o mundo clássico.
Partilha com os outros, diariamente, a sua paixão pelo mundo clássico,
pelos livros e pela leitura.

Prémio El Ojo Crítico de Narrativa


Prémio Las Librerías Recomiendan na categoria de não ficção
Prémio Acción Cívica para melhor obra de não ficção
Prémios de Novela Historica Hislibris na categoria de não ficção
Prémio Búho para melhor livro
Título: O Infinito num Junco
Título original: El infinito en un junco. La invención de los libros en el
mundo antiguo
1.ª edição em papel: outubro de 2020
Autora: Irene Vallejo
Tradução: Rita Custódio e Àlex Tarradellas
Revisão: Cátia Teixeira
Design da capa: Ana Monteiro
Imagem da capa: Bridgeman Images/Fotobanco.pt

© Irene Vallejo Moreu, 2019


Esta edição foi publicada por acordo com Casanovas y Lynch Literary
Agency S.L.
All Rights Reserved.
[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa,
exceto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.]

Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.bertrandeditora.pt
Tel. 217 626 000 · Fax 217 626 150

ISBN 978-972-25-4122-0
À minha mãe,
mão firme de algodão
«Tudo aquilo parecem desenhos,
Mas dentro das letras estão vozes.
Cada página é uma caixa infinita de vozes.»
MIA COUTO, Mulheres de Cinza. As Areias do Imperador,
Uma Trilogia Moçambicana

«Os sinais inertes de um alfabeto


tornam-se significados cheios de vida na mente.
Ler e escrever alteram a nossa organização cerebral.»
SIRI HUSTVEDT, Living, Thinking, Looking
«Gosto de imaginar o quão pasmado ficaria
o bondoso Homero, quem quer que fosse,
ao ver as suas epopeias nas estantes
de um ser tão inimaginável para ele como eu,
no meio de um continente até então desconhecido.»
MARILYNNE ROBINSON, When I Was a Child I Read Books

«Ler é sempre uma mudança, uma viagem,


partir para se encontrar. Ler,
mesmo sendo um ato comummente sedentário,
devolve-nos à nossa condição de nómadas.»
ANTONIO BASANTA, Leer contra la nada
«O livro é, sobretudo,
um recipiente onde o tempo repousa.
Uma prodigiosa armadilha com a qual a inteligência
e a sensibilidade humana
venceram essa condição efémera, fluente,
que levava a experiência do viver
para o nada do esquecimento.»
EMILIO LLEDÓ, Los libros y la libertad
Prólogo

Misteriosos grupos de homens a cavalo percorrem os caminhos


da Grécia. Os camponeses observam-nos com desconfiança desde
as suas terras ou desde as portas das suas cabanas. A experiência
ensinou-lhes que só as pessoas perigosas é que viajam: soldados,
mercenários e traficantes de escravos. Franzem a testa e grunhem
até que os veem fundir-se de novo no horizonte. Não gostam dos
forasteiros armados.
Os ginetes cavalgam sem reparar nos aldeões. Durante meses
escalaram montanhas, atravessaram desfiladeiros, cruzaram vales,
vadearam rios, navegaram de ilha em ilha. Os seus músculos e a
sua resistência endureceram desde que lhes atribuíram esta
estranha missão. Para cumprirem a sua tarefa devem aventurar-se
pelos violentos territórios de um mundo em guerra quase constante.
São caçadores em busca de presas de um tipo muito especial.
Presas silenciosas, astutas, que não deixam rasto nem pegada.
Se estes inquietantes emissários se sentassem na taberna de
algum porto, a beber vinho, a comer polvo assado, a falar e a
embebedar-se com desconhecidos (nunca o fazem por prudência),
poderiam contar grandes histórias de viagens. Meteram-se em
terras devastadas pela peste. Atravessaram regiões assoladas por
incêndios, contemplaram a cinza quente da destruição e a
brutalidade de rebeldes e mercenários em pé de guerra. Como
ainda não existem mapas de regiões extensas, perderam-se e
caminharam sem rumo durante dias inteiros sob a fúria do sol ou
das tempestades. Tiveram de beber águas repugnantes que lhes
causaram diarreias monstruosas. Sempre que chove, as carroças e
as mulas ficam atoladas nas poças; entre gritos e juramentos,
puxaram-nas até caírem de joelhos e beijarem a lama. Quando a
noite os surpreende longe de algum refúgio, só a sua capa é que os
protege dos escorpiões. Conheceram o tormento enlouquecedor dos
piolhos e o medo constante dos bandoleiros que infestam os
caminhos. Muitas vezes, a cavalgar por imensas solidões, gela-se-
lhes o sangue ao imaginarem um grupo de bandidos à sua espera,
sustendo a respiração, escondidos em alguma curva do caminho
para caírem sobre eles, assassiná-los a sangue frio, roubar-lhes a
bolsa e abandonarem os seus cadáveres quentes entre os arbustos.
É lógico que tenham medo. O rei do Egito confiou-lhes grandes
quantias de dinheiro antes de mandá-los cumprir as suas ordens
para a outra margem do mar. Naquele tempo, apenas umas
décadas depois da morte de Alexandre, viajar com uma grande
fortuna era muito arriscado, quase suicida. E, embora os punhais
dos ladrões, as doenças contagiosas e os naufrágios ameaçassem
fazer fracassar uma missão tão custosa, o faraó insiste em enviar os
seus agentes desde o país do Nilo, atravessando fronteiras e
grandes distâncias, em todas as direções. Deseja
apaixonadamente, com impaciência e dolorosa sede de posse,
essas presas que os seus caçadores secretos rastreiam para ele,
enfrentando perigos desconhecidos.
Os camponeses, que se sentam na coscuvilhice uns com os
outros à porta das suas cabanas, os mercenários e os bandidos
teriam aberto uns olhos assombrados e uma boca incrédula se
soubessem o que é que os ginetes estrangeiros perseguiam.
Livros, procuravam livros.
Era o segredo melhor guardado da corte egípcia. O Senhor das
Duas Terras, um dos homens mais poderosos do momento, daria a
vida (a dos outros, claro; é sempre assim com os reis) para
conseguir todos os livros do mundo para a sua Grande Biblioteca de
Alexandria. Perseguia o sonho de uma biblioteca absoluta e perfeita,
a coleção onde reuniria todas as obras de todos os autores desde o
início dos tempos.

Assusta-me sempre escrever as primeiras linhas, atravessar o


limiar de um novo livro. Quando percorri todas as bibliotecas,
quando os cadernos transbordam de notas febris, quando já não me
lembro de pretextos razoáveis, nem sequer insensatos, para
continuar à espera, atraso-o ainda vários dias durante os quais
chego à conclusão que é apenas cobardia. Simplesmente, não me
sinto capaz. Devia estar tudo ali — o tom, o sentido de humor, a
poesia, o ritmo, as promessas. Os capítulos ainda por escrever já
deviam adivinhar-se, lutando por nascer, na sementeira das
palavras escolhidas para começar. Mas, como é que isso se faz?
Neste momento, a minha bagagem são as dúvidas. Com cada livro
volto ao ponto de partida e ao coração agitado de todas as primeiras
vezes. Escrever é tentar descobrir o que escreveríamos se
escrevêssemos, assim o expressa Marguerite Duras, passando do
infinitivo para o condicional e depois para o conjuntivo, como se
sentisse o chão a quebrar-se sobre os seus pés.
No fundo, não é tão diferente de todas essas coisas que
começamos a fazer antes de saber fazê-las: falar outra língua,
conduzir, ser mãe. Viver.
Depois de todas as agonias da dúvida, depois de esgotar os
adiamentos e os álibis, numa tarde quente de julho enfrento a
solidão da página em branco. Decidi abrir o meu texto com a
imagem de uns enigmáticos caçadores à espreita da presa.
Identifico-me com eles, gosto da sua paciência, do seu estoicismo,
dos seus tempos perdidos, da lentidão e da adrenalina da procura.
Durante anos trabalhei como investigadora, a consultar fontes, a
interpretá-las e a tentar conhecer o material histórico. Mas, no
momento da verdade, a história real e documentada que vou
descobrindo parece-me tão surpreendente que invade os meus
sonhos e ganha, sem que eu o pretenda, a forma de um relato.
Sinto a tentação de entrar na pele dos caçadores de livros nos
caminhos de uma Europa antiga, violenta e convulsa. E se começar
por narrar a sua viagem? Poderia funcionar, mas como manter o
esqueleto dos dados diferenciados sob o músculo e o sangue da
imaginação?
Acho que o ponto de partida é tão fantástico como a viagem em
busca das Minas do Rei Salomão ou da Arca Perdida, mas os
documentos garantem que existiu realmente na mente megalómana
dos reis do Egito. Talvez aquela altura, o século III a. C., tenha sido
a única e última vez em que foi possível tornar realidade o sonho de
juntar todos os livros do mundo, sem exceção, numa biblioteca
universal. Hoje parece-nos a trama de um fascinante conto abstrato
de Borges — ou, talvez, a sua grande fantasia erótica.
Na época do grande projeto alexandrino, não existia nada
parecido ao comércio internacional de livros. Estes podiam comprar-
se em cidades com uma longa vida cultural, mas não na jovem
Alexandria. Os textos contam que os reis usaram as enormes
vantagens do poder absoluto para enriquecerem a sua coleção.
Confiscavam o que não podiam comprar. Se fosse preciso cortar
pescoços ou arrasar colheitas para ficarem com um livro cobiçado,
dariam a ordem para o fazerem dizendo a si próprios que o
esplendor do seu país era mais importante do que os seus
pequenos escrúpulos.
A vigarice, como é óbvio, fazia parte do repertório de coisas que
estavam dispostos a fazer para conseguirem atingir os seus
objetivos. Ptolomeu III ansiava ter as versões oficiais das obras de
Ésquilo, Sófocles e Eurípides conservadas no arquivo de Atenas
desde a sua estreia nos festivais de teatro. Os embaixadores do
faraó pediram os valiosos rolos emprestados para encomendarem
cópias aos seus minuciosos amanuenses. As autoridades
atenienses exigiram a exorbitante fiança de quinze talentos de prata,
que, hoje em dia, equivale a milhões de dólares. Os egípcios
pagaram, agradeceram com pomposas reverências, fizeram solenes
juramentos de devolverem o empréstimo antes de passarem —
digamos — doze luas, ameaçaram-se a si próprios com cruéis
maldições se os livros não voltassem em perfeito estado e, de
seguida, evidentemente, apropriaram-se deles, renunciando ao
depósito. Os dirigentes de Atenas tiveram de suportar a ofensa. A
orgulhosa capital dos tempos de Péricles tinha-se convertido numa
cidade provinciana de um reino incapaz de rivalizar com o poderio
do Egito, que dominava o comércio dos cereais, o petróleo da
época.
Alexandria era o principal porto do país e o seu novo centro vital.
Desde sempre, uma potência económica dessa magnitude pode
exceder-se alegremente. Todos os barcos de qualquer procedência
que faziam escala na capital da Biblioteca eram submetidos a uma
revista imediata. Os oficiais das alfândegas confiscavam qualquer
escrito que encontravam a bordo, mandavam-no copiar em papiros
novos, devolviam as cópias e ficavam com os originais. Estes livros
apreendidos nas embarcações iam parar às estantes da Biblioteca
com uma breve anotação esclarecendo a sua procedência («fundo
das naus»).
Quando se está no topo do mundo, não há favores excessivos.
Dizia-se que Ptolomeu II enviou mensageiros aos soberanos e
governantes de cada país da Terra. Numa carta selada pedia-lhes
que se dessem ao trabalho de lhe enviar para a sua coleção
simplesmente tudo: as obras de poetas e escritores em prosa do
seu reino, de oradores e filósofos, de médicos e adivinhos, de
historiadores e todos os outros.
Para além disso — e esta foi a minha porta de entrada para esta
história —, os reis mandaram agentes pelos perigosos caminhos e
mares do mundo conhecido com a bolsa cheia e ordens para
comprarem a máxima quantidade possível de livros e de
encontrarem, no lugar onde estivessem, as cópias mais antigas.
Esse apetite de livros e os preços que se chegavam a pagar por
eles atraíram pícaros e falsificadores. Ofereciam rolos de falsos
textos valiosos, envelheciam o papiro, fundiam várias obras numa
para aumentarem a sua extensão e inventavam todo o tipo de
manipulações hábeis. Algum sábio com sentido de humor divertiu-se
a escrever obras cheias de artifícios, autênticas fraudes calculadas
para tentarem a cobiça dos Ptolomeus. Os títulos eram divertidos;
poderiam comercializar-se hoje em dia com facilidade, por exemplo:
«O que Tucídides não disse». Substituamos Tucídides por Kafka ou
Joyce, e imaginemos o interesse que provocaria o falsário ao
aparecer na Biblioteca com as fingidas memórias e os segredos
inconfessáveis do escritor debaixo do braço.
Apesar das prudentes suspeitas de fraude, os compradores da
Biblioteca receavam deixar passar um livro que pudesse ser valioso
e correr o risco de fazer enfurecer o faraó. O rei passava em revista
com frequência os rolos da sua coleção com o mesmo orgulho com
que passava em revista os desfiles militares. Perguntava a Demétrio
de Faleros, o encarregado da organização da Biblioteca, quantos
livros já tinham. E Demétrio atualizava-o sobre o valor: «Já há mais
de vinte dezenas de milhares, oh Rei; e empenho-me para
completar em breve o que falta para os quinhentos mil.» Em
Alexandria, a fome de livros desenfreada começava a converter-se
num surto de loucura apaixonada.

Nasci num país e numa época em que os livros são objetos


fáceis de conseguir. Na minha casa, espreitam por todo o lado. Em
períodos de trabalho intenso, quando peço dúzias deles em
empréstimo às diferentes bibliotecas que suportam as minhas
incursões, costumo deixá-los empilhados em torres em cima das
cadeiras ou até no chão. Também abertos ao contrário, como
telhados de duas águas à procura de uma casa que abrigar. Agora,
para evitar que o meu filho de dois anos amarrote as folhas, formo
pilhas sobre o apoio de cabeça do sofá, e quando me sento a
descansar sinto o contacto dos seus cantos na nuca. Se equiparar o
preço dos livros com o dos arrendamentos da cidade onde vivo,
concluo que os meus livros são uns inquilinos dispendiosos. Mas eu
acho que todos, desde os grandes livros de fotografia até esses
velhos exemplares de bolso colados que tentam sempre fechar-se
como se fossem mexilhões, tornam a casa mais acolhedora.
A história dos esforços, viagens e dificuldades para encher as
estantes da Biblioteca de Alexandria pode parecer atraente pelo seu
exotismo. São acontecimentos raros, aventuras, como as fabulosas
navegações para as Índias em busca de especiarias. Aqui e agora,
os livros são tão comuns, tão desprovidos da aura de novidade
tecnológica, que os profetas do seu desaparecimento abundam. De
vez em quando, leio com desconsolo artigos jornalísticos que
vaticinam a extinção dos livros, substituídos por dispositivos
eletrónicos e derrotados face às imensas possibilidades de lazer. Os
mais agoirentos pretendem que estejamos à beira de um fim de
época, de um verdadeiro apocalipse de livrarias a fechar e de
bibliotecas desabitadas. Parecem insinuar que dentro de muito
pouco tempo os livros serão exibidos nas vitrinas dos museus
etnológicos, perto das pontas das lanças pré-históricas. Com essas
imagens gravadas na imaginação, observo as minhas filas
intermináveis de livros e as fileiras de vinis, perguntando-me se um
velho mundo acolhedor está prestes a desaparecer.
Temos a certeza disso?
O livro superou a prova do tempo, demonstrou ser um corredor
de longas distâncias. Sempre que acordámos do sonho das nossas
revoluções ou do pesadelo das nossas catástrofes humanas, o livro
continuava ali. Como diz Umberto Eco, pertence à mesma categoria
do que a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Depois de
inventados, não se pode fazer nada melhor.
Evidentemente, a tecnologia é deslumbrante e tem força
suficiente para destronar as antigas monarquias. Contudo, todos
sentimos falta de coisas que perdemos — fotografias, arquivos,
velhos trabalhos, recordações — pela velocidade com que os seus
produtos envelhecem e ficam obsoletos. Primeiro foram as canções
das nossas cassetes, depois os filmes gravados em VHS.
Dedicamos esforços frustrantes a colecionar aquilo que a tecnologia
insiste em fazer com que passe de moda. Quando o DVD apareceu,
dizíamos a nós próprios que tínhamos finalmente resolvido para
sempre os nossos problemas de arquivo, mas voltam à carga
tentando-nos com novos discos de formato mais pequeno, que
invariavelmente nos obrigam a comprar novos aparelhos. O mais
curioso é que ainda podemos ler um manuscrito pacientemente
copiado há mais de dez séculos, mas já não podemos ver uma
cassete, uma fita de vídeo ou uma disquete de há apenas alguns
anos, a não ser que conservemos todos os nossos sucessivos
computadores e aparelhos de reprodução, como um museu da
caducidade, nas arrecadações das nossas casas.
Não esqueçamos que o livro foi nosso aliado, há muitos séculos,
numa guerra que os manuais de história não registam. A luta para
preservar as nossas criações valiosas: as palavras, que são apenas
um sopro de ar; as ficções que inventamos para dar sentido ao caos
e sobreviver nele; os conhecimentos verdadeiros, falsos e sempre
provisórios que vamos arranhando na dura rocha da nossa
ignorância.
Por isso decidi mergulhar nesta investigação. No início de tudo,
houve perguntas, enxames de perguntas. Quando apareceram os
livros? Qual é a história secreta dos esforços para multiplicá-los ou
aniquilá-los? O que é que se perdeu pelo caminho, e o que é que se
salvou? Porque é que alguns deles se converteram em clássicos?
Quantas baixas provocaram os dentes do tempo, as unhas do fogo,
o veneno da água? Que livros foram queimados com ira, e que
livros foram copiados da forma mais apaixonada? Os mesmos?
Este relato é uma tentativa de continuar a aventura daqueles
caçadores de livros. Gostava de ser, de alguma forma, a sua
improvável companheira de viagem, à espreita de manuscritos
perdidos, histórias desconhecidas e vozes prestes a emudecerem.
Talvez aqueles grupos de exploradores não passassem de esbirros
ao serviço de uns reis possuídos por uma obsessão megalómana.
Talvez não percebessem a transcendência da sua tarefa, que lhes
parecia absurda, e nas noites ao relento, quando os borralhos da
fogueira se apagavam, murmuravam entredentes que estavam
fartos de arriscar a vida pelo sonho de um louco. Provavelmente,
teriam preferido que os mandassem para uma missão com mais
possibilidades de ascensão, como abafar uma revolta no deserto de
Núbia ou inspecionar o carregamento das barcaças do Nilo. Mas
parece-me que, ao procurarem o rasto de todos os livros como se
fossem peças de um tesouro disperso, estavam a estabelecer, sem
sabê-lo, os alicerces do nosso mundo.
I

A GRÉCIA IMAGINA O FUTURO


A cidade dos prazeres e dos livros
1

A mulher do mercador, jovem e aborrecida, dorme sozinha. Há


dez meses que ele zarpou da ilha mediterrânica de Cós rumo ao
Egito e desde então não lhe chegou nem uma carta do país do Nilo.
Ela tem dezassete anos, ainda não deu à luz e não suporta a
monotonia da vida afastada no gineceu, à espera de
acontecimentos, sem sair de casa para evitar falatórios. Não há
muito que fazer. No início achava divertido tiranizar as escravas,
mas isso não é suficiente para preencher os seus dias. Por isso
alegra-se quando recebe as visitas de outras mulheres. Não importa
quem bata à porta, precisa desesperadamente de se distrair para
atenuar o peso de chumbo das horas.
Uma escrava anuncia a chegada da idosa Gílide. A mulher do
mercador promete a si própria um momento de diversão: a sua
velha ama de leite é desbocada e diz obscenidades com muita
graça.
— Querida Gílide! Há meses que não vinhas à minha casa.
— Sabes que vivo longe, minha filha, e já tenho menos forças do
que uma mosca.
— Bem… bem… — diz a mulher do mercador —, pelo menos
ainda tens força para dar um bom abraço a mais de um.
— Goza, goza! — responde Gílide. — Isso fica para vocês, que
são novas.
Com um sorriso malicioso, com preâmbulos astutos, a idosa
desembucha finalmente aquilo que a levou até ali. Um jovem forte e
bonito que ganhou duas vezes o prémio de luta nos Jogos
Olímpicos reparou na mulher do mercador, consome-se de desejo
por ela e quer ser seu amante.
— Não te zangues e ouve a proposta. Tem o aguilhão da paixão
cravado na carne. Permite-te uma alegria com ele. Vais ficar aqui, a
aquecer a cadeira? — pergunta Gílide, tentadora. — Quando te
aperceberes, terás envelhecido e as cinzas terão devorado o teu
vigor.
— Cala-te, cala-te…
— E a que é que se dedica o teu marido no Egito? Não te
escreve, esqueceu-te, e de certeza que já molhou os lábios noutro
copo.
Para vencer a última resistência da rapariga, Gílide descreve
com lábia tudo o que o Egito, e especialmente Alexandria, oferecem
ao marido afastado e ingrato: riquezas, o encanto de um clima
sempre quente e sensual, ginásios, espetáculos, manadas de
filósofos, livros, ouro, vinho, adolescentes e tantas mulheres
atraentes como estrelas a brilhar no céu.
Traduzi livremente o início de uma breve peça de teatro grega
escrita no século III a. C. com um intenso aroma de vida quotidiana.
Pequenas obras como esta provavelmente não eram representadas,
exceto algum tipo de leitura dramatizada. Humorísticas, às vezes
picarescas, abrem janelas para um mundo proscrito de escravos
açoitados e amos cruéis, proxenetas, mães à beira do desespero
por causa dos seus filhos adolescentes, ou mulheres sexualmente
insatisfeitas. Gílide é uma das primeiras alcoviteiras da história da
literatura, uma bisbilhoteira profissional que conhece os segredos do
ofício e aponta, sem hesitar, para o resquício mais frágil das suas
vítimas: o medo universal de envelhecer. Porém, apesar do seu
cruel talento, desta vez, Gílide fracassa. O diálogo acaba com os
insultos carinhosos da rapariga, que é fiel ao seu marido ausente,
ou talvez não queira correr os terríveis riscos do adultério.
«Perdeste a cabeça?», pergunta a mulher do mercador a Gílide,
mas, por outro lado, consola-a oferecendo-lhe um copo de vinho.
Juntamente com o humor e o tom fresco, o texto é interessante
porque nos mostra a visão que as pessoas comuns tinham da
Alexandria da sua época: a cidade dos prazeres e dos livros; a
capital do sexo e da palavra.

A lenda de Alexandria não parou de crescer. Dois séculos depois


de se escrever o diálogo de Gílide e da rapariga tentada, Alexandria
foi o cenário de um dos maiores mitos eróticos de todos os tempos:
a história de amor entre Cleópatra e Marco António.
Roma, que naquela altura se tinha convertido no centro do maior
império mediterrânico, ainda era um labirinto de ruas tortuosas,
escuras e enlameadas quando Marco António desembarcou pela
primeira vez em Alexandria. De repente, viu-se transportado para
uma cidade embriagadora cujos palácios, templos, amplas avenidas
e monumentos irradiavam grandeza. Os romanos sentiam-se
seguros do seu poder militar e donos do futuro, mas não podiam
competir com a sedução de um passado esplendoroso e do luxo
decadente. Com uma mistura de excitação, orgulho e cálculos
táticos, o poderoso general e a última rainha do Egito construíram
uma aliança política e sexual que escandalizou os romanos
tradicionais. Para maior provocação, dizia-se que Marco António ia
transferir a capital do império de Roma para Alexandria. Se o casal
tivesse vencido a guerra pelo controlo do Império Romano, hoje
talvez nós, os turistas, fôssemos em manadas ao Egito para
tirarmos fotografias na Cidade Eterna, com o seu Coliseu e os seus
fóruns.
Tal como a sua cidade, Cleópatra encarna essa peculiar fusão de
cultura e sensualidade alexandrina. Plutarco diz que, na verdade,
Cleópatra não era de uma grande beleza. As pessoas não paravam
de repente na rua para olhar para ela. Mas, pelo contrário, o que
atraía nela era a inteligência e o paleio. O timbre da sua voz possuía
tal doçura que deixava um aguilhão cravado em quem a ouvisse. E
a sua língua, continua o historiador, acomodava-se ao idioma que
quisesse como um instrumento musical de muitas cordas. Era capaz
de falar sem intérpretes com etíopes, hebreus, árabes, sírios, medos
e partos. Astuta, bem informada, ganhou vários assaltos no combate
pelo poder dentro e fora do seu país, embora tenha perdido a
batalha decisiva. O seu problema é que só falaram dela desde o
bando inimigo.
Nesta história tempestuosa os livros também têm um papel
importante. Quando Marco António julgava estar prestes a governar
o mundo, quis deslumbrar Cleópatra com um presente. Sabia que o
ouro, as joias ou os banquetes não conseguiriam acender uma luz
de assombro nos olhos da sua amante, porque ela se tinha
habituado a esbanjá-los diariamente. Certa vez, durante uma
madrugada alcoólica, num gesto de ostentação provocadora, ela
dissolveu uma pérola de tamanho fabuloso em vinagre e bebeu-a.
Por isso, Marco António escolheu um presente do qual Cleópatra
não poderia desdenhar com um ar aborrecido: pôs aos seus pés
duzentos mil volumes para a Grande Biblioteca. Em Alexandria, os
livros eram combustível para as paixões.
Dois escritores falecidos durante o século XX converteram-se nos
nossos guias pelos segredos da cidade, acrescentando camadas de
pátina ao mito de Alexandria. Konstantinos Kaváfis era um obscuro
funcionário de origem grega que trabalhou, sem nunca ascender,
para a Administração britânica no Egito, na secção de Rega do
Ministério das Obras Públicas. À noite mergulhava num mundo de
prazeres, gente cosmopolita e má vida internacional. Conhecia
como a palma da sua mão o dédalo de bordéis alexandrinos, único
refúgio para a sua homossexualidade «proibida e severamente
desprezada por todos», como ele próprio escreveu. Kaváfis era um
leitor apaixonado dos clássicos e poeta quase em segredo.
Nos seus poemas mais conhecidos hoje em dia revivem as
personagens reais e fictícias que povoavam Ítaca, Troia, Atenas ou
Bizâncio. Aparentemente mais pessoais, outros poemas
esgaravatam, entre a ironia e a rutura, na sua própria experiência de
maturidade: a nostalgia da sua juventude, a aprendizagem do prazer
ou a angústia pela passagem do tempo. A diferenciação temática é,
na verdade, artificial. O passado lido e imaginado emocionava
Kaváfis tanto como as suas recordações. Quando deambulava por
Alexandria, via a cidade ausente palpitar sob a cidade real. Embora
a Grande Biblioteca tivesse desaparecido, os seus ecos, sussurros
e cochichos continuavam a vibrar na atmosfera. Para Kaváfis,
aquela grande comunidade de fantasmas tornava habitáveis as frias
ruas por onde rondam, solitários e atormentados, os vivos.
As personagens de O Quarteto de Alexandria, Justine, Darley e,
sobretudo, Balthazar, que diz tê-lo conhecido, recordam
constantemente Kaváfis, «o velho poeta da cidade». Por sua vez, os
quatro romances de Lawrence Durrell, um desses ingleses
asfixiados pelo puritanismo e pelo clima do seu país, ampliam a
ressonância erótica e literária do mito alexandrino. Durrell conheceu
a cidade nos anos turbulentos da Segunda Guerra Mundial, quando
o Egito estava ocupado pelas tropas britânicas e era um ninho de
espionagem, conspirações e, como sempre, prazeres. Ninguém
descreveu com mais precisão as cores e sensações físicas que
Alexandria despertava. O silêncio esmagador e o céu alto do verão.
Os dias abrasadores. O luminoso azul do mar, os molhes, a ribeira
amarela. No interior, o lago Mareótis, que às vezes aparece
desfocado como uma miragem. Entre as águas do porto e do lago,
inúmeras ruas onde se aglomeram o pó, os mendigos e as moscas.
Palmeiras, hotéis de luxo, haxixe, embriaguez. O ar seco carregado
de eletricidade. Entardeceres cor de limão e violeta. Cinco raças,
cinco línguas, uma dúzia de religiões, o reflexo de cinco frotas na
água gordurosa. Em Alexandria, escreve Durrell, a carne acorda e
sente as grades da prisão.
A Segunda Guerra Mundial arrasou a cidade. No último romance
de O Quarteto de Alexandria, Clea descreve uma paisagem
melancólica. Os tanques encalhados nas praias como esqueletos de
dinossauros, os grandes canhões como árvores caídas de um
bosque petrificado, os beduínos extraviados entre as minas
explosivas. A cidade, que sempre foi perversa, agora parece um
enorme urinol público — conclui. Lawrence Durrell nunca voltou a
Alexandria após 1952. As milenares comunidades judaica e grega
fugiram depois da guerra do Canal de Suez, o fim de uma época no
Médio Oriente. Viajantes que regressam da cidade contam-me que
a cidade cosmopolita e sensual emigrou para a memória dos livros.
Alexandre: o mundo nunca é suficiente

Não há apenas uma Alexandria. Um rasto de cidades com esse


nome denuncia a rota de Alexandre, o Grande, desde a Turquia até
ao rio Indo. As diferentes línguas desfiguraram o som original, mas
às vezes ainda se distingue a longínqua melodia. Alexandreta,
Iskenderun em turco. Alexandria de Carmânia, atual Quermã, no
Irão. Alexandria de Margiana, agora Merv, no Turquemenistão.
Alexandria Eschate, que se poderia traduzir como Alexandria no Fim
do Mundo, hoje Khujand no Tajiquistão. Alexandria Bucéfala, a
cidade fundada em memória do cavalo que tinha acompanhado
Alexandre desde pequeno, depois chamada Jalalpur Sharif, no
Paquistão. A Guerra do Afeganistão familiarizou-nos com outras
Alexandrias antigas: Bagram, Herāt, Kandahar.
Plutarco conta que Alexandre fundou setenta cidades. Queria
assinalar a sua passagem, como essas crianças que pintam o seu
nome nas paredes ou nas portas das casas de banho públicas («Eu
estive aqui», «Eu venci aqui»). O atlas é o extenso muro onde o
conquistador inscreveu várias vezes a sua recordação.
O impulso que movia Alexandre, o motivo da sua energia
transbordante, capaz de lançá-lo para uma expedição de conquista
de 25 000 quilómetros, era a sede de fama e de admiração.
Acreditava profundamente nas lendas dos heróis; aliás, vivia e
competia com eles. Tinha uma ligação obsessiva com a
personagem de Aquiles, o guerreiro mais poderoso e temido da
mitologia grega. Tinha-o escolhido em pequeno, quando o seu
professor Aristóteles lhe mostrou os poemas homéricos e sonhava
ser parecido com ele. Sentia a mesma admiração apaixonada por
ele do que os rapazes de hoje em dia pelos seus ídolos desportivos.
Contam que Alexandre dormia sempre com o seu exemplar da
Ilíada e uma adaga debaixo da almofada. A imagem faz-nos sorrir,
pensamos no rapaz que adormece com a caderneta de cromos
aberta na cama e sonha que ganha um campeonato entre a gritaria
encolerizada do público.
Mas Alexandre tornou realidade as suas fantasias de sucesso
mais desenfreadas. O historial das suas conquistas, conseguidas
em apenas oito anos — Anatólia, Pérsia, Egito, Ásia Central, Índia
—, catapulta-o para o topo das façanhas bélicas. Em comparação
com ele, Aquiles, que perdeu a vida no cerco de uma única cidade
que durou dez anos, parece um vulgar principiante.
A Alexandria do Egito nasceu, como não podia deixar de ser, de
um sonho literário, de um sussurro homérico. Quando estava a
dormir, Alexandre sentiu um idoso de cabelo grisalho a aproximar-
se. Ao chegar ao seu lado, o misterioso desconhecido recitou uns
versos da Odisseia que falavam de uma ilha chamada Faro,
rodeada pela sonora ondulação do mar, em frente da costa egípcia.
A ilha existia, estava situada nas proximidades da planície aluvial
onde o delta do Nilo se funde com as águas do Mediterrâneo.
Alexandre, segundo a lógica daqueles tempos, acreditou que a sua
visão era um presságio e fundou nesse lugar a cidade predestinada.
Pareceu-lhe um lugar muito bonito. Ali, o deserto de areia tocava
no deserto de água, duas paisagens solitárias, imensas, mutáveis,
esculpidas pelo vento. Ele próprio desenhou com farinha o traçado
exterior em forma de retângulo quase perfeito, mostrando onde se
devia construir a praça pública, que deuses deveriam ter templo e
por onde passaria o perímetro da muralha. Com o tempo, a pequena
ilha de Faro ficaria unida ao delta com um comprido dique e
albergaria uma das sete maravilhas do mundo.
Quando começaram a construir, Alexandre continuou a sua
viagem, deixando uma pequena população de gregos, de judeus e
de pastores que, durante muito tempo, tinham vivido nas aldeias dos
arredores. Os nativos egípcios, segundo a lógica colonial de todas
as épocas, foram incluídos como cidadãos de estatuto inferior.
Alexandre não voltaria a ver a cidade. Menos de uma década
mais tarde, o seu cadáver regressaria. Mas em 331 a. C., quando
fundou Alexandria, tinha vinte e quatro anos e sentia-se invencível.

Era jovem e implacável. A caminho do Egito, tinha vencido duas


vezes seguidas o Exército do rei dos reis persa. Apoderou-se da
Turquia e da Síria, declarando que as libertava do jugo persa.
Conquistou a faixa da Palestina e a Fenícia; todas as cidades se
renderam a ele sem oferecerem resistência, exceto duas: Tiro e
Gaza. Quando caíram, depois de estarem sitiadas durante sete
meses, o libertador aplicou-lhes um castigo brutal. Os últimos
sobreviventes foram crucificados ao longo da costa — uma fileira de
dois mil corpos a agonizarem ao pé do mar. Venderam as mulheres
e as crianças como escravos. Alexandre mandou atar o governador
da torturada Gaza a uma carroça e arrastá-lo até morrer, tal como o
corpo de Heitor na Ilíada. Provavelmente, gostava de pensar que
estava a viver o seu próprio poema épico e, de vez em quando,
imitava algum gesto, algum símbolo, alguma crueldade lendária.
Outras vezes, parecia-lhe mais heroico ser generoso com os
vencidos. Quando capturou a família do rei persa Dario III, respeitou
as mulheres e não as usou como reféns. Ordenou que
continuassem vivas sem que as incomodassem nos seus próprios
alojamentos, conservando as suas roupas e joias. Também lhes
permitiu enterrarem os seus mortos caídos na batalha.
Ao entrar no pavilhão de Dario III viu ouro, prata, alabastro,
sentiu o cheiro fragrante da mirra e os aromas, o adorno de tapetes,
de mesas e aparadores, uma abundância que não tinha conhecido
na corte provinciana da sua Macedónia natal. Comentou com os
amigos: «Nisto consistia, pelo que parece, reinar.» Então
apresentaram-lhe um cofre, o objeto mais valioso e excecional da
bagagem de Dario III. «O que é que pode ser tão valioso que tenha
de ser guardado aqui?», perguntou aos seus homens. Cada um fez
as suas sugestões: dinheiro, joias, essências, especiarias, troféus
de guerra. Alexandre negou com a cabeça e, após um breve
silêncio, ordenou que colocassem naquela caixa a sua Ilíada, da
qual nunca se separava.

Nunca perdeu uma batalha. Enfrentou sempre como mais um,


sem privilégios, as dificuldades da campanha. Apenas seis anos
depois de suceder ao seu pai como rei da Macedónia, aos vinte e
cinco anos, tinha derrotado o maior exército do seu tempo e tinha-se
apoderado dos tesouros do Império Persa. Não era suficiente para
ele. Avançou até ao mar Cáspio, atravessou os atuais Afeganistão,
Turquemenistão e Uzbequistão, cruzou as passagens nevadas da
cordilheira do Hindu Kush, e depois um deserto de areias movediças
até ao rio Oxus, o atual Amu Dária. Seguiu em frente por regiões
que nenhum grego tinha pisado antes (Samarcanda e o Punjab). Já
não conseguia vitórias brilhantes, pois desgastava-se numa
esgotante luta de guerrilhas.
A língua grega tem uma palavra para descrever a sua obsessão:
póthos. É o desejo do ausente ou do inalcançável, um desejo que
faz sofrer porque é impossível de acalmar. Nomeia o desassossego
dos apaixonados não correspondidos e também a angústia do luto,
quando sentimos a falta de uma maneira insuportável de uma
pessoa morta. Alexandre não encontrava sossego no seu desejo de
ir sempre mais além para fugir do aborrecimento e da mediocridade.
Ainda não tinha feito trinta anos e começava a temer que o mundo
não fosse suficientemente grande para ele. O que faria se um dia se
acabassem os territórios por conquistar?
Aristóteles tinha-lhe ensinado que o extremo da Terra estava do
outro lado das montanhas do Hindu Kush, e Alexandre queria
chegar até aos últimos confins. A ideia de ver o limite do mundo
atraía-o como um íman. Será que encontraria o grande Oceano
Exterior do qual o seu mestre lhe tinha falado? Ou as águas do mar
cairiam em cascata sobre um abismo sem fundo? Ou o final seria
invisível, uma névoa espessa e um fundo a tornar-se cada vez mais
branco?
Mas os homens de Alexandre, doentes e mal-humorados, sob as
chuvas da estação das monções, negaram-se a continuar a avançar
pela Índia. Tinham-lhes chegado notícias de um enorme reino
indiano desconhecido para além do Ganges. O mundo não dava
sinais de acabar.
Um veterano falou em nome de todos: tinham percorrido
milhares de quilómetros sob as ordens do seu jovem rei,
massacrando pelo caminho pelo menos setecentos e cinquenta mil
asiáticos. Tinham tido de enterrar os seus melhores amigos caídos
em combate. Tinham suportado fomes, frios glaciares, sede e
travessias pelo deserto. Muitos tinham morrido como cães nas
valetas por doenças desconhecidas, ou tinham ficado horrivelmente
mutilados. Os poucos que tinham sobrevivido já não dispunham das
mesmas forças do que quando eram novos. Agora, os cavalos
coxeavam com as patas doridas, e as carroças de abastecimento
ficavam atoladas nos caminhos enlameados pela monção. Até as
fivelas dos cintos estavam corroídas, e as rações apodreciam
devido à humidade. Calçavam botas esburacadas há anos. Queriam
voltar para casa, acariciar as suas mulheres e abraçar os seus
filhos, que mal se deviam lembrar deles. Sentiam a falta da terra
onde tinham nascido. Se Alexandre decidisse continuar com a sua
expedição que não contasse com os seus macedónios.
Alexandre enfureceu-se e, como Aquiles no início da Ilíada,
retirou-se para a sua tenda entre ameaças. Começou uma luta
psicológica. No início, os soldados ficaram em silêncio, depois
atreveram-se a apupar o seu rei por ter perdido as estribeiras. Não
estavam dispostos a deixarem-se humilhar depois de lhe terem
oferecido os melhores anos das suas vidas.
A tensão durou dois dias. Depois, o formidável exército deu
meia-volta, rumo à sua pátria. Alexandre, depois de tudo, perdeu
uma batalha.
O amigo macedónio

Ptolomeu foi companheiro de expedição e amigo íntimo de


Alexandre. Pelas suas origens, não tinha a mais remota ligação com
o Egito. Nascido numa família nobre mas sem brilho na Macedónia,
nunca imaginou que um dia chegaria a ser faraó do rico país do
Nilo, que pisou pela primeira vez com quase quarenta anos, sem
conhecer a sua língua, costumes e complexa burocracia. Mas as
conquistas de Alexandre e as suas enormes consequências foram
uma dessas surpresas históricas que nenhum analista prevê, pelo
menos antes de acontecerem.
Embora os macedónios fossem orgulhosos, sabiam que o resto
do mundo considerava o seu país atávico, tribal e insignificante. No
mosaico de estados independentes gregos estavam, sem dúvida,
muitos degraus abaixo do pedigree dos atenienses ou dos
espartanos. Mantinham a monarquia tradicional enquanto a maior
parte das cidades-estado da Hélade tinha experimentado formas de
governo mais sofisticadas e, para piorar a situação, falavam um
dialeto que era difícil de compreender para os outros. Quando um
dos seus reis quis competir nos Jogos Olímpicos, deram-lhe
autorização depois de um cuidadoso escrutínio. Por outras palavras,
admitiam-nos a contragosto como parte do clube grego. Para o resto
do mundo, simplesmente não existiam. Naquela altura, o Oriente era
o foco de civilização, bem iluminado pela História; e o Ocidente, o
território escuro e selvagem onde viviam os bárbaros. No atlas das
perceções e dos preconceitos geográficos, a Macedónia ocupava a
periferia do mundo civilizado. Provavelmente, poucos egípcios
sabiam situar no mapa a pátria do seu próximo rei.
Alexandre acabou com essa atitude de menosprezo. Foi uma
personagem tão poderosa que todos os gregos o adotaram como
seu. Na verdade, converteram-no num símbolo nacional. Quando a
Grécia esteve submetida durante séculos ao domínio turco
otomano, os gregos criaram lendas nas quais o grande herói
Alexandre voltava à vida para libertar a sua pátria da opressão
estrangeira.
Napoleão também ascendeu de provinciano corso a francês sem
paliativos à medida que conquistava a Europa: o triunfo é um
passaporte ao qual ninguém levanta objeções.
Ptolomeu sempre esteve muito perto de Alexandre. Escudeiro do
príncipe na corte macedónica, acompanhou-o na sua meteórica
campanha de conquistas, enquadrado no exclusivo regimento de
cavalaria dos companheiros do rei, e foi um dos seus guarda-costas
pessoais de confiança. Após o motim do Ganges, conheceu as
dificuldades da viagem de regresso, que superaram as piores
previsões: sofreram a agressão conjunta da malária, a disenteria,
tigres, serpentes e insetos venenosos. Os povos rebeldes da região
do Indo atacavam um exército exausto pelas marchas sob o húmido
calor tropical. No inverno do regresso só restava um quarto dos
efetivos que chegaram à Índia.
Após tantas vitórias, sofrimentos e mortes, a primavera de 324 a.
C. foi agridoce. Ptolomeu e as restantes tropas desfrutavam de um
breve descanso na cidade de Susa, a sudeste do atual Irão, quando
o imprevisível Alexandre decidiu fazer uma grandiosa festa que,
surpreendentemente, incluía no programa um casamento coletivo
para ele e para os seus oficiais. Nuns festejos espetaculares que
duraram cinco dias, casou oitenta generais e pessoas chegadas
com mulheres, ou mais provavelmente meninas, da aristocracia
persa. Ele próprio acrescentou ao seu número de esposas — os
seus costumes macedónicos permitiam a poligamia — a primogénita
de Dario e outra mulher de um poderoso clã oriental. Num gesto
encenado e muito calculado, estendeu as cerimónias à sua tropa.
Dez mil soldados receberam um dote real por casarem com
mulheres orientais. Foi um esforço para promover os casamentos
mistos a uma escala que nunca mais se voltou a tentar. Na mente
de Alexandre fervilhava a ideia de um império mestiço.
Ptolomeu também participou nos casamentos em massa de
Susa. Correspondeu-lhe a filha de um rico sátrapa iraniano. Como a
maior parte dos oficiais, talvez tivesse preferido uma condecoração
pelos serviços prestados e cinco dias de folia sem complicações.
Em geral, os homens de Alexandre não tinham o menor desejo de
confraternizar, e muito menos de serem aparentados, com os
persas, aos quais pouco tempo antes massacravam no campo de
batalha. No novo império estavam a surgir tensões, que dentro de
pouco tempo explodiriam, entre os nacionalismos e a fusão cultural.
Alexandre não teve tempo de impor a sua visão. Morreu no início
do verão seguinte na Babilónia, com trinta e dois anos, atacado pela
febre.

Enquanto dita as suas memórias em Alexandria, um idoso


Ptolomeu com os traços de Anthony Hopkins confessa ao seu
escriba o segredo que o persegue e atormenta: Alexandre não
morreu por causas naturais. Ele próprio e outros oficiais
envenenaram-no. O filme — Alexander (Alexandre, o Grande, na
tradução portuguesa), de 2004, realizado por Oliver Stone —
converte Ptolomeu num homem sombrio, um Macbeth grego, um
guerreiro leal às ordens de Alexandre, e mais tarde no seu
assassino. No fim da longa-metragem, a personagem arranca a
máscara e descobre-se um rosto obscuro. Será que pode ter
acontecido isto? Ou devemos pensar que Oliver Stone se aproxima
aqui, como em JFK, das teorias da conspiração e do fascínio
popular pelos líderes assassinados?
Provavelmente, os oficiais macedónios de Alexandre ficaram
nervosos e ressentidos em 323 a. C. Naquela altura, a maior parte
dos soldados do seu exército eram iranianos ou indianos. Alexandre
estava a permitir a entrada de bárbaros até nos regimentos de elite,
e estava a enobrecer alguns deles. Obcecado com a exaltação
homérica da coragem, pretendia recrutar os melhores, à margem da
sua origem étnica. Os seus antigos companheiros de armas
achavam essa política ofensiva e detestável. Mas, seria motivo
suficiente para quebrarem uma lealdade profunda e correrem o
enorme perigo que implicava eliminar o seu rei?
Nunca saberemos ao certo se Alexandre foi assassinado ou se
morreu devido a um processo infecioso (como a malária ou uma
simples gripe) que acabou com um corpo esgotado, gravemente
ferido em nove sítios diferentes durante as suas campanhas e
submetido a um excesso de esforço quase sobre-humano. Naquela
época, a sua morte repentina converteu-se numa arma de
arremesso que os sucessores do rei usaram sem escrúpulos na sua
luta pelo poder, culpando-se uns aos outros pelo suposto
magnicídio. O rumor do envenenamento espalhou-se rapidamente:
era a versão dos factos mais impressionante e dramática. No meio
da confusão de panfletos, acusações e interesses sucessórios, os
historiadores não conseguem resolver o enigma, mas sim apenas
valorizar os prós e os contras de cada hipótese.
A figura de Ptolomeu, amigo fiel ou talvez traidor, fica presa num
território de penumbra.

Frodo e Sam, os dois hobbits, chegaram ao sinistro lugar das


escadas de Cirith Ungol, nas montanhas ocidentais de Mordor. Para
ultrapassarem o medo, conversam sobre a sua inesperada vida de
aventuras. Tudo acontece perto do abrupto final de As Duas Torres,
a segunda parte de O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien.
Samwise, cujos maiores prazeres no mundo são uma refeição
saborosa e uma grande história, diz: «Pergunto-me se algum dia
apareceremos nas canções e nas lendas. Estamos envolvidos por
uma, claro; mas quero dizer se a porão em palavras para contá-la
ao pé do lume ou para lê-la num calhamaço com letras vermelhas e
pretas, muitos, muitos anos depois. E as pessoas dirão: sim, é uma
das minhas histórias preferidas.»
Era o sonho de Alexandre: ter uma lenda própria, entrar nos
livros para permanecer na recordação. E conseguiu-o. A sua breve
vida é um mito no Oriente e no Ocidente, o Corão e a Bíblia
contribuíram para isso. Em Alexandria, durante os séculos
posteriores à sua morte, foi-se construindo um relato fantástico
sobre as suas viagens e aventuras, escrito em grego e depois
traduzido para latim, para siríaco e para dezenas de línguas mais.
Conhecemo-lo como Romance de Alexandre, e chegou aos nossos
dias com sucessivas variações e supressões. Delirante e
disparatado, alguns estudiosos pensam que, à margem de certos
textos religiosos, foi o livro mais lido no mundo pré-moderno.
No século II, os romanos acrescentaram ao seu nome a alcunha
Magno («o Grande»). Pelo contrário, os seguidores de Zaratustra
chamavam-lhe Alexandre, o Maldito. Nunca lhe perdoaram ter
pegado fogo ao Palácio de Persépolis, onde ardeu a biblioteca do
rei. Ali queimou-se, entre outros, o livro sagrado dos zoroastrianos,
o Avestá, e os fiéis tiveram de reescrever a obra de cor.
Os claro-escuros e as contradições de Alexandre já se refletem
nos historiadores do mundo antigo, que apresentam uma galeria de
retratos diferentes. Arriano acha-o fascinante, Cúrcio Rufo descobre
zonas de sombra. Plutarco não consegue resistir a um episódio
emocionante, seja obscuro ou luminoso. Todos eles fantasiam.
Deixam que a biografia de Alexandre deslize para a ficção, cedendo
aos seus instintos de escritores que farejam uma grande história.
Um viajante e geógrafo da época romana disse, com ironia, que
quem escreve sobre Alexandre prefere sempre o maravilhoso à
verdade.
A visão dos historiadores contemporâneos depende do seu grau
de idealismo e da época em que escrevem. No início do século XX,
os heróis ainda gozavam de boa saúde; depois da Segunda Guerra
Mundial, do Holocausto, da bomba atómica e da descolonização,
tornámo-nos mais céticos. Agora há autores que deitam Alexandre
no divã e lhe diagnosticam megalomania furiosa, crueldade e
indiferença para com as suas vítimas. Alguns compararam-no a
Adolf Hitler. O debate continua, matizado por sensibilidades novas.
Surpreende-me e fascina-me que a cultura popular não o
abandone como se fosse um fóssil de outros tempos. Nos lugares
mais inesperados deparei-me com seguidores incondicionais de
Alexandre capazes de desenhar num guardanapo um esboço rápido
dos movimentos de tropas das suas grandes batalhas. A música do
seu nome continua a soar. Caetano Veloso dedica-lhe «Alexandre»
no seu disco Livro, enquanto os britânicos Iron Maiden chamaram
«Alexander the Great» a um dos seus temas mais lendários. O
fervor por esta peça de heavy metal é quase sagrado: a banda de
Leyton nunca a interpreta ao vivo, e circula entre os fãs o rumor de
que só soará no seu último concerto. Em quase todo o mundo, as
pessoas continuam a chamar Alexandre aos seus filhos — ou
Sikander, que é a versão árabe do nome —, em memória do
guerreiro. Todos os anos se imprime a sua efígie em milhões de
produtos que o autêntico Alexandre nem sequer saberia usar, como
t-shirts, gravatas, capas de telemóvel ou videojogos.
Alexandre, o caçador da imortalidade, irradiou a lenda com que
sonhava. Contudo, se me perguntarem — como dizia Tolkien — qual
é a minha história preferida para contar junto ao lume, não
escolheria as vitórias nem as viagens, mas sim a extraordinária
aventura da Biblioteca de Alexandria.

9
«O rei morreu», apontou na sua tabuinha astrológica um escriba
babilónio. O documento chegou quase intacto até nós por acaso.
Era o dia 10 de junho do ano 323 a. C., e não era preciso ler as
linhas das estrelas para adivinhar que começavam tempos
perigosos. Alexandre deixava dois herdeiros frágeis: um meio-irmão
que todos consideravam bastante idiota e um filho ainda não
nascido na barriga de Roxana, uma das suas três esposas. O
escriba babilónio, instruído em história e nos mecanismos da
monarquia, talvez refletisse, naquela tarde carregada de augúrios,
sobre o caos das sucessões que desencadeiam guerras confusas e
cruéis. Era isso que, naquela altura, muita gente temia e foi
exatamente o que aconteceu.
O banho de sangue começou depressa. Roxana assassinou as
outras duas viúvas de Alexandre para se assegurar de que o seu
filho não teria concorrentes. Os generais macedónios mais
poderosos declararam guerra uns aos outros. Ao longo dos anos,
numa metódica carnificina, iriam matando todos os membros da
família real: o meio-irmão, a mãe de Alexandre, a sua mulher
Roxana e o seu filho, que não chegou a fazer doze anos. Entretanto,
o império desintegrava-se. Seleuco, um dos oficiais de Alexandre,
vendeu os territórios conquistados na Índia a um caudilho nativo
pelo inacreditável preço de quinhentos elefantes de guerra, que
utilizou para continuar a lutar contra os seus rivais macedónios.
Exércitos de mercenários ofereceram-se durante décadas ao melhor
licitador. Depois de anos de combates, ferocidade, vinganças e
muitas vidas ceifadas, ficaram três senhores da guerra: Seleuco, na
Ásia; Antígono, na Macedónia, e Ptolomeu, no Egito. De todos eles,
Ptolomeu foi o único que não teve uma morte violenta.
Ptolomeu instalou-se no Egito, onde passaria o resto da sua
vida. Durante décadas lutou com unhas e dentes contra os seus
antigos companheiros para se manter no trono. E, nos momentos de
pausa que as guerras civis entre macedónios lhe deixavam, tentava
conhecer o imenso país que estava a governar. Tudo ali era
surpreendente: as pirâmides; as íbis; as tempestades de areia; as
ondas de dunas; o galope dos camelos; os estranhos deuses com
cabeça de animal; os eunucos; as perucas e as cabeças rapadas;
as enchentes humanas nos dias de festa; os gatos sagrados, que
era crime matar; os hieróglifos; as cerimónias palacianas; os
templos à escala sobre-humana; o enorme poder dos sacerdotes; o
negro e lamacento Nilo a arrastar-se pelo seu delta rumo ao mar; os
crocodilos; as planícies onde as abundantes colheitas se alimentam
dos ossos dos mortos; a cerveja; os hipopótamos; o deserto, onde
nada permanece a salvo do tempo destruidor; o embalsamamento;
as múmias; a vida ritualizada; o amor pelo passado; o culto da
morte.
Ptolomeu deve ter-se sentido desorientado, confuso, isolado.
Não percebia a língua egípcia, era desajeitado nas cerimónias e
tinha a suspeita de que os cortesãos se riam dele. Contudo, tinha
aprendido com Alexandre a comportar-se com atrevimento. Se não
conseguires entender os símbolos, inventa outros. Se o Egito te
desafia com a sua antiguidade fabulosa, transfere a capital para
Alexandria — a única cidade sem passado — e converte-a no centro
mais importante de todo o Mediterrâneo. Se os teus súbditos
desconfiam das novidades, faz com que toda a audácia do
pensamento e da ciência confluam no seu território.
Ptolomeu destinou grandes riquezas para a construção do
Museu e da Biblioteca de Alexandria.
Equilíbrio à beira do abismo:
a Biblioteca e o Museu de Alexandria

10

Embora não exista informação a esse respeito, atrevo-me a


imaginar que a ideia de criar uma biblioteca universal tenha nascido
na mente de Alexandre. O plano tem as dimensões da sua ambição,
leva a marca da sua sede de totalidade. «Considero a Terra»,
proclamou Alexandre num dos primeiros decretos que promulgou,
«como minha». Reunir todos os livros existentes é outra forma —
simbólica, mental, pacífica — de possuir o mundo.
A paixão do colecionador de livros é parecida com a do viajante.
Toda a biblioteca é uma viagem; todo o livro é um passaporte sem
data de caducidade. Alexandre percorreu as rotas de África e da
Ásia sem se separar do seu exemplar da Ilíada, ao qual recorria,
segundo dizem os historiadores, em busca de conselhos e para
alimentar o seu afã de transcendência. A leitura, como uma bússola,
abria-lhe os caminhos do desconhecido.
Num mundo caótico, adquirir livros é um ato de equilíbrio à beira
do abismo. Walter Benjamin, no seu esplêndido ensaio intitulado
Desempacotando a minha biblioteca, chega a esta conclusão.
«Renovar o velho mundo: este é o desejo mais profundo do
colecionador quando se vê impelido a adquirir coisas novas»,
escreve Benjamin. A Biblioteca de Alexandria era uma enciclopédia
mágica que congregou o saber e as ficções da Antiguidade para
impedir a sua dispersão e a sua perda. Mas também foi concebida
como um espaço novo, do qual partiriam as rotas para o futuro.
As bibliotecas anteriores eram privadas e estavam
especializadas nas matérias úteis para os seus donos. Até as que
pertenciam a escolas ou grupos profissionais amplos eram apenas
um instrumento ao serviço das suas necessidades particulares. A
antecessora que mais se aproximou à Biblioteca de Alexandria — a
biblioteca de Assurbanipal em Nínive, no norte do atual Iraque —
destinava-se ao uso do rei. A Biblioteca de Alexandria, variada e
completíssima, englobava livros de todos os temas, escritos em
todos os cantos da geografia conhecida. As suas portas estavam
abertas a todas as pessoas ávidas de saber, aos estudiosos de
qualquer nacionalidade e a todo aquele que tivesse aspirações
literárias provadas. Foi a primeira biblioteca da sua espécie e a que
mais perto esteve de possuir todos os livros que existiam naquela
altura.
Para além do mais, aproximou-se do ideal mestiço do império
com que Alexandre sonhava. O jovem rei, que casou com três
mulheres estrangeiras e teve filhos semibárbaros, planeava,
segundo conta o historiador Diodoro Siluco, transferir a população
da Europa para a Ásia, e vice-versa, para construir uma comunidade
de amizade e ligações familiares entre os continentes. A sua súbita
morte não lhe permitiu realizar este projeto de deportações, curiosa
mistura de violência e desejos fraternais.
A Biblioteca abriu-se à medida da amplitude do mundo. Incluiu as
obras mais importantes de outras línguas traduzidas para grego. Um
tratadista bizantino escreveu sobre aquele tempo: «Recrutaram-se
de cada povo sábios, os quais, para além de dominarem a sua
própria língua, conheciam lindamente o grego; foram confiados a
cada grupo os seus respetivos textos, e assim, de todos, se
preparou uma tradução.» Ali se elaborou a conhecida versão grega
da Torá judia conhecida como a Bíblia dos Setenta. A tradução dos
textos iranianos atribuídos a Zaratustra, de mais de dois milhões de
versos, dois séculos depois ainda era conhecida como um trabalho
memorável. Um sacerdote egípcio chamado Manetão compôs para
a Biblioteca uma lista das dinastias faraónicas e das suas façanhas
desde tempos míticos até à conquista de Alexandre. Para escrever
esse compêndio da história egípcia em língua grega, procurou,
consultou e extraiu documentos originais conservados em dezenas
de templos. Outro sacerdote bilingue, Beroso, conhecedor da
literatura cuneiforme, traduziu para grego as tradições babilónicas.
Também existia na Biblioteca um tratado sobre a Índia, que
escreveu, baseando-se em fontes locais, um embaixador grego da
corte de Pataliputra, cidade do nordeste da Índia situada na margem
do Ganges. Nunca antes se tinha começado um trabalho de
tradução dessa envergadura.
A Biblioteca tornou realidade a melhor parte do sonho de
Alexandre: a sua universalidade, o seu afã de conhecimento, o seu
incomum desejo de fusão. Nas prateleiras de Alexandria foram
abolidas as fronteiras, e ali conviveram, por fim calmamente, as
palavras dos gregos, dos judeus, dos egípcios, dos iranianos e dos
indianos. Talvez esse território mental tenha sido o único espaço
acolhedor para todos eles.

11

Borges também estava enfeitiçado pela ideia de abraçar a


totalidade dos livros. O seu conto A Biblioteca de Babel faz-nos
mergulhar numa biblioteca prodigiosa, no labirinto completo de
todos os sonhos e palavras. No entanto, percebemos de imediato
que é um lugar inquietante. Ali vemos como as nossas fantasias se
tingem de pesadelo, transformadas em oráculo dos medos
contemporâneos.
O universo (que outros chamam a Biblioteca), diz Borges, é uma
espécie de colmeia monstruosa que existe desde sempre. É
composto por intermináveis galerias hexagonais idênticas
comunicadas por escadas em espiral. Em cada hexágono
encontramos candeeiros, prateleiras e livros. À direita e esquerda do
patamar há dois cubículos, um serve para dormir de pé e o outro é o
urinol. Todas as necessidades se reduzem a isso: luz, leitura e
latrinas. Nos corredores vivem funcionários estranhos que o
narrador, um deles, define como bibliotecários imperfeitos. Cada um
está a cargo de um determinado número de galerias do infinito
circuito geométrico.
Os livros da Biblioteca contêm todas as combinações possíveis
de vinte e três letras e dois sinais de pontuação, ou seja, tudo o que
se pode imaginar e expressar em todas as línguas, recordadas ou
esquecidas. Portanto, diz-nos o narrador, em algum lugar das
prateleiras está a crónica da tua morte. E a história minuciosamente
detalhada do futuro. E as autobiografias dos arcanjos. E o catálogo
verdadeiro da Biblioteca, bem como milhares e milhares de
catálogos falsos. Os habitantes da colmeia têm as mesmas
limitações do que nós: dominam apenas um par de línguas, e o seu
tempo de vida é breve. Portanto, as possibilidades estatísticas de
que alguém localize na imensidão dos túneis o livro que procura, ou
simplesmente um livro compreensível para si, são muito remotas.
E esse é o grande paradoxo. Pelos hexágonos da colmeia
vagueiam caçadores de livros, místicos, fanáticos destruidores,
bibliotecários suicidas, peregrinos, idólatras e loucos. Mas ninguém
lê. Entre a esgotante sobreabundância de páginas ao acaso,
extingue-se o prazer da leitura. Todas as energias se consomem na
procura e na decifração.
Podemos entendê-lo simplesmente como um conto irónico
construído a partir de mitos bíblicos e bibliófilos que percorrem
arquiteturas inspiradas nas prisões de Piranesi ou nas escadas sem
fim de Escher. Contudo, para os leitores de hoje, a biblioteca de
Babel fascina-nos como uma alegoria profética do mundo virtual, do
excesso da Internet, dessa gigante rede de informações e textos,
filtrada pelos algoritmos dos motores de pesquisa, onde nos
perdemos como fantasmas num labirinto.
Num surpreendente anacronismo, Borges pressagia o mundo
atual. É verdade que o conto possui uma intuição contemporânea: a
rede eletrónica, o conceito que agora chamamos Web, é uma
réplica do funcionamento das bibliotecas. Na origem da Internet
havia o sonho de acalentar uma conversa mundial. Era preciso criar
itinerários, avenidas, rotas aéreas para as palavras. Cada texto
precisava de uma referência — um link —, graças ao qual o leitor
poderia encontrá-lo a partir de qualquer computador em qualquer
canto do mundo. Timothy John Berners-Lee, o cientista responsável
pelos conceitos que estruturam a Web, procurou inspiração no
espaço ordenado e ágil das bibliotecas públicas. Imitando os seus
mecanismos, atribuiu a cada documento virtual um endereço que
era único e permitia alcançá-lo de outro computador. Este
localizador universal — chamado na linguagem de computação URL
— é o equivalente exato do código de uma biblioteca. Depois,
Berners-Lee idealizou o protocolo de transferência de hipertexto —
mais conhecido pela sigla http —, que funciona como as fichas de
requisições que preenchemos para pedir ao bibliotecário que
procure o livro desejado. A Internet é uma emanação —
multiplicada, vasta e etérea — das bibliotecas.
Imagino a experiência de entrar na Biblioteca de Alexandria em
termos parecidos ao que senti quando naveguei pela primeira vez
na Internet: a surpresa, a vertigem dos espaços imensos. Acho que
estou a contemplar um viajante que desembarca no porto de
Alexandria e acelera o passo para o reduto de livros, alguém
parecido a mim no apetite para a leitura, invadido, quase ofuscado,
pelas emocionantes possibilidades da abundância que se começa a
vislumbrar desde os pórticos da Biblioteca. Cada um na sua época
pensaria o mesmo: em nenhum lugar tinha existido tanta informação
reunida, tanto conhecimento possível, tantos relatos com os quais
sentir o medo e o prazer de viver.

12

Voltemos atrás. A Biblioteca ainda não existe. As bravatas de


Ptolomeu sobre a grande capital grega no Egito embatiam contra
uma realidade imunda. Duas décadas depois da sua fundação,
Alexandria era uma pequena cidade em construção povoada por
soldados e marinheiros, um reduzido grupo de burocratas em luta
contra o caos e essa peculiar fauna de negociantes astutos,
delinquentes, aventureiros e vigaristas com paleio que procuravam
uma oportunidade numa terra virgem. As ruas retas, traçadas por
um arquiteto grego, estavam sujas e cheiravam a excrementos. Os
escravos tinham as costas cheias de chicotadas. Respirava-se um
ambiente de western, violência, energia e devastação. O letal
khamsin, o vento de Este que séculos depois atormentaria as tropas
de Napoleão e de Rommel, sacudia a cidade ao chegar a primavera.
À distância, as tempestades do khamsin pareciam manchas
sangrentas no céu longínquo. Depois, a escuridão apagava a luz, e
a areia começava a sua invasão, levantando sufocantes e
ofuscantes muros de pó que entravam pelas fendas das casas,
secavam a garganta e o nariz, deixavam os olhos raiados de
sangue, provocavam loucura, desespero e crimes. Após horas de
tromba opressiva, desabavam no mar, acompanhados por um
soluço do ar áspero.
Ptolomeu decidiu que se instalaria precisamente ali com toda a
sua corte e que atrairia os melhores cientistas e escritores da época
até àquele marasmo na periferia do nada.
Começaram as obras frenéticas. Mandou construir um canal para
unir o Nilo ao lago Mareótis e ao mar. Projetou um porto grandioso.
E mandou erguer um palácio ao pé do mar protegido por um dique,
uma enorme fortaleza onde atrincheirar-se em caso de serem
sitiados, uma cidade proibida à qual muito poucos tinham acesso, o
lar do inesperado rei na sua cidade improvável.
Para edificar os seus sonhos gastou muito dinheiro. Ptolomeu
não tinha ficado com a talhada maior, mas sim com a mais valiosa
do Império de Alexandre. O Egito era sinónimo de riqueza. Nas
margens férteis do Nilo cresciam fabulosas colheitas de cereais, a
mercadoria que permitia dominar os mercados naquela época como
hoje o petróleo. Para além do mais, o Egito exportava o material de
escrita mais utilizado na época: o papiro.
O junco de papiro afunda as suas raízes nas águas do Nilo. O
caule tem a grossura do braço de um homem e tem entre três e seis
metros de altura. Com as suas fibras flexíveis, as pessoas humildes
fabricavam cordas, esteiras, sandálias e cestas. Os antigos relatos
recordam-no: a cestinha onde a sua mãe abandonou o pequeno
Moisés nas margens do Nilo era feita de papiro, besuntado com pez
e alcatrão. No terceiro milénio a. C. os egípcios descobriram que
podiam fabricar folhas para a escrita com aqueles juncos, e no
primeiro milénio já tinham estendido a sua descoberta aos povos do
Próximo-Oriente. Durante séculos, os hebreus, os gregos e depois
os romanos escreveram a sua literatura em rolos de papiro. À
medida que as sociedades mediterrânicas se alfabetizavam e se
tornavam mais complexas, precisavam cada vez mais de papiro, e
os preços subiam no calor da procura. A planta era muito escassa
fora do Egito e, como o coltan dos nossos smartphones, converteu-
se num bem estratégico. Chegou a existir um poderoso mercado
que distribuía o papiro em rotas comerciais através da África, da
Ásia e da Europa. Os reis do Egito apropriaram-se do monopólio da
manufatura e do comércio de folhas; os especialistas em língua
egípcia acreditam que a palavra «papiro» tem a mesma raiz do que
«faraó».
Imaginemos uma manhã de trabalho nas oficinas faraónicas. Um
grupo de operários do rei chega de madrugada às margens do rio
para colher juncos, e o sussurro dos seus passos acorda os
pássaros adormecidos, que levantam voo desde o canavial. Os
homens trabalham na frescura da manhã e ao meio-dia depositam
na oficina grandes braçadas de juncos. Com movimentos precisos,
descascam-nos e cortam o caule triangular em finas tiras de cerca
de 30-40 centímetros de altura. Colocam sobre uma tábua plana a
primeira camada de tiras verticais e depois outra camada de fibras
horizontais em ângulo reto com a primeira. Batem com um maço de
madeira nas duas camadas sobrepostas para que a seiva
segregada funcione como uma cola natural. Alisam a superfície das
folhas desbastando-as com pedra-pomes ou conchas. Por último,
colam as lâminas de papiro, uma depois de outra, pelas margens
com uma pasta de farinha e água, até formarem uma comprida tira
que guardam enrolada. O mais comum é unir cerca de vinte lâminas
e polir com cuidado as junturas até conseguir uma superfície lisa na
qual a cana do escriba não encalhe. Os mercadores não vendem
folhas soltas, mas sim rolos; quem precisar de escrever uma carta
ou um documento breve cortará o pedaço desejado. Os rolos
medem entre 13 e 30 centímetros de largura, e o seu comprimento
mais habitual oscila entre os 3,2 e os 3,6 metros. Mas a extensão é
tão variável como a quantidade de páginas dos nossos livros.
Assim, por exemplo, o rolo mais comprido da coleção egípcia do
Museu Britânico, o papiro Harris, media originalmente 42 metros.
O rolo de papiro implicou um avanço fantástico. Após séculos de
pesquisa de suportes e de escrita humana sobre pedra, barro,
madeira ou metal, a linguagem encontrou finalmente o seu lugar na
matéria viva. O primeiro livro da história nasceu quando as palavras,
apenas ar escrito, encontraram abrigo na medula de uma planta
aquática. E, face aos seus antepassados inertes e rígidos, o livro foi,
desde o início, um objeto flexível, leve, preparado para a viagem e a
aventura.
Rolos de papiro que albergam no seu interior longos textos
manuscritos delineados com cálamo e tinta: é este o aspeto dos
livros que começam a chegar à incipiente Biblioteca de Alexandria.
13

Os generais de Alexandre ficaram enfeitiçados por ele após a


sua morte. Começaram a imitar os seus gestos, a sua forma de
vestir, o chapéu que costumava usar, a sua forma de inclinar a
cabeça. Continuavam a celebrar banquetes como ele gostava e
reproduziam a sua imagem nas moedas que cunhavam. Um dos
companheiros do rei deixou crescer uma cabeleira ondulada que
usava descuidadamente solta para se parecer a ele. O comandante
Eumenes afirmava que Alexandre lhe aparecia nos sonhos e falava
com ele. Ptolomeu fez circular o boato de que era meio-irmão de
Alexandre por parte do pai. Certa vez, vários herdeiros rivais
aceitaram reunir-se numa tenda presidida pelo trono vazio e o cetro
do defunto rei; ao deliberar, tiveram a sensação de que o ausente os
continuava a guiar.
Todos sentiam a falta de Alexandre e acalentavam ver o seu
fantasma, mas ao mesmo tempo andavam ocupados a destruir o
império mundial que ele lhes tinha legado, a liquidar, um atrás do
outro, os seus familiares mais próximos e a trair a lealdade que os
tinha unido. Oscar Wilde estava a pensar em amores deste tipo
quando escreveu A Balada do Cárcere Reading: «Cada homem
mata o que ama.»
Ptolomeu também tomou a dianteira na luta pela memória de
Alexandre com astúcia. Uma das suas jogadas mais brilhantes
consistiu em apoderar-se do cadáver do jovem rei. Tinha
compreendido melhor do que ninguém o incalculável valor simbólico
de exibir os seus restos mortais.
No outono de 322 a. C., uma comitiva partiu de Babilónia rumo à
Macedónia para enterrar Alexandre no seu país natal. Levavam o
corpo, embalsamado com mel e especiarias, dentro de um caixão
de ouro, num coche fúnebre que as fontes descrevem como uma
enternecedora exibição kitsch de baldaquins, cortinas púrpura,
borlas, esculturas douradas, bordados e coroas. Ptolomeu tinha-se
tornado amigo do oficial que estava ao comando do cortejo. Com a
ajuda desse cúmplice, conseguiu que a rota se desviasse para
Damasco, foi ao seu encontro com um grande exército e sequestrou
o féretro. O comandante Pérdicas, que já tinha o túmulo real
preparado na Macedónia, cerrou os punhos ao ficar a saber do rapto
e lançou um ataque contra o Egito, mas acabou executado pelos
seus próprios homens após uma campanha desastrosa. Ptolomeu
ganhou a disputa. Transferiu o cadáver para Alexandria e expô-lo
num mausoléu aberto ao público que, como o túmulo de Lenine na
Praça Vermelha de Moscovo, se converteu numa grande atração e
num foco de turismo necrófilo. Foi ali que o primeiro imperador
romano, Augusto, ainda o viu e depositou uma grinalda na tampa de
vidro do sarcófago e pediu para tocar no corpo. De acordo com as
más-línguas, ao dar-lhe um beijo partiu-lhe acidentalmente o nariz
— beijar uma múmia acarreta certos riscos. O sarcófago foi
destruído em alguma das grandes revoltas populares que assolaram
Alexandria e, apesar dos rumores, os arqueólogos não conseguem
encontrar o rasto do túmulo. Há quem pense que o cadáver possa
ter tido um final digno do cosmopolita Alexandre (cortado aos
pedacinhos e convertido em milhares de amuletos espalhados pelo
amplo mundo que uma vez conquistou).
Contam que, quando Augusto homenageou Alexandre no seu
mausoléu, lhe perguntaram se também queria ver o sepulcro dos
Ptolomeus. «Vim ver um rei, não mortos», respondeu. Essas
palavras condensam o drama dos diádocos, os sucessores de
Alexandre — toda a gente os considerava um bando de medíocres
suplentes, um cinzento apêndice da lenda. Faltava-lhes a
legitimidade do carisma, e só ao relacionarem-se com um morto
podiam transmitir verdadeiro respeito. Por isso disfarçavam-se de
Alexandre de todas as maneiras possíveis desejando que os
confundissem com ele, como esses escrupulosos imitadores de
Elvis dos nossos dias.
Dentro deste jogo de parecenças e analogias, o rei Ptolomeu
quis Aristóteles para professor dos seus filhos, tal como foi de
Alexandre. Mas o filósofo tinha morrido em 322 a. C., apenas uns
meses depois do seu famoso aluno. Um pouco dececionado por ter
de baixar a fasquia, Ptolomeu enviou os seus mensageiros à escola
de Aristóteles em Atenas, o Liceu, para oferecerem um trabalho em
Alexandria, generosamente pago, aos sábios mais brilhantes do
momento. Dois deles aceitaram a oferta; um educaria os príncipes,
e o outro organizaria a Grande Biblioteca.
O novo encarregado da aquisição e organização dos livros
chamava-se Demétrio de Faleros. Ele inventou o ofício, até então
inexistente, de bibliotecário. Os seus anos de juventude tinham-no
preparado para as tarefas intelectuais e para assumir o comando.
Foi estudante do Liceu, e depois, durante uma década, entrou no
torvelinho da política. Em Atenas tinha conhecido a primeira
biblioteca organizada aplicando um sistema racional: a coleção do
próprio Aristóteles, alcunhado «o leitor». Aristóteles, em mais de
duzentos tratados, procurou a estrutura do mundo e parcelou-a
(física, biologia, astronomia, lógica, ética, estética, retórica, política,
metafísica). Ali, entre as prateleiras do seu mestre e o sossego das
suas classificações, Demétrio deve ter compreendido que possuir
livros é um exercício de equilíbrio sobre a corda bamba. Um esforço
para unir os pedaços dispersos do Universo até formar um conjunto
com sentido. Uma arquitetura harmoniosa perante o caos. Uma
escultura de areia. O refúgio onde protegemos tudo aquilo que
receamos esquecer. A memória do mundo. Um dique contra o
tsunâmi do tempo.
Demétrio transferiu para o Egito o modelo de pensamento
aristotélico, que, naquela altura, estava na vanguarda da ciência
ocidental. Dizia-se que Aristóteles tinha ensinado os alexandrinos a
organizarem uma biblioteca. A frase não pode ser interpretada de
forma literal, porque o filósofo nunca viajou ao país do Nilo. A sua
influência chegou por caminhos indiretos, através do seu aluno
avantajado, que desembarcou na jovem cidade fugindo dos
sobressaltos da política. No entanto, apesar das boas intenções,
Demétrio sucumbiu às intrigas da corte de Ptolomeu. Conspirou,
caiu em desgraça e foi preso. Mas a sua passagem por Alexandria
deixou marcas duradouras. Graças a ele, instalou-se um fantasma
protetor na Biblioteca, o de Aristóteles, o apaixonado pelos livros.

14

Com uma certa regularidade, Demétrio devia enviar a Ptolomeu


um relatório sobre a sua tarefa, que começava assim: «Ao grande
rei, da parte de Demétrio. Obedecendo à sua ordem de acrescentar
à coleção da Biblioteca, para completá-la, os livros que ainda faltam,
e de restaurar adequadamente aqueles que foram maltratados pelos
acasos da fortuna, dediquei um grande cuidado à minha tarefa e
agora presto-lhe contas.»
E não era uma tarefa simples. Quase não era possível conseguir
livros gregos sem percorrer longas distâncias; nos templos, palácios
e mansões do país abundavam os rolos, mas em egípcio, e
Ptolomeu não se rebaixaria a aprender a língua dos seus súbditos.
Só Cleópatra, a última da linhagem e, segundo os testemunhos,
espantosa poliglota, chegou a falar e a ler a língua faraónica.
Demétrio enviou agentes com a bolsa repleta e armas
embainhadas, rumo à Anatólia, às ilhas do mar Egeu e à Grécia, à
caça de obras em grego. Naquela mesma época, como já referi, os
oficiais de alfândegas receberam instruções para revistarem todos
os barcos que ancoravam no porto de Alexandria e requisitarem
qualquer texto que encontrassem a bordo. Os rolos recém-
comprados ou confiscados iam parar a uns armazéns onde os
ajudantes de Demétrio os identificavam e faziam inventário. Aqueles
livros eram cilindros de papiro sem capa nem lombada — e sem
essas contracapas e cintas vermelhas que nos lembram o quão
aclamada, vibrante e magistral é a obra em questão. Era difícil
reconhecer o conteúdo à primeira vista e, quando alguém possuía
mais de uma dúzia de livros e pretendia consultá-los com
frequência, era uma verdadeira chatice. Para uma biblioteca este
problema apresentava um grande desafio, que se resolvia de
maneira imperfeita. Antes de empilhar os livros nas prateleiras,
colocavam no extremo de cada rolo um pequeno letreiro — muito
propenso a cair — com a indicação do autor, da obra e da origem do
exemplar.
Contam que, numa visita do rei à Biblioteca, Demétrio propôs
incluir na coleção os livros da lei judaica, numa versão cuidada. «O
que é que te impede de fazê-lo?», perguntou o rei, que lhe tinha
dado carta-branca. «Precisamos de uma tradução, porque estão
escritos em hebreu.»
Já havia poucas pessoas a perceberem hebreu, até em
Jerusalém, onde a maior parte da população falava arameu, a
língua na qual séculos depois Jesus pregaria. Os judeus de
Alexandria — uma comunidade poderosa que ocupava um bairro
inteiro da cidade — começaram então a traduzir as suas escrituras
sagradas para grego, mas de forma lenta e fragmentada, porque os
fiéis mais ortodoxos se opunham às inovações. Era um debate
aceso nas sinagogas da época, tal como foi para os católicos o fim
das missas em latim. Portanto, se o responsável pela Biblioteca
queria uma versão completa e cuidada da Torá, teria de
encomendá-la.
De acordo com a tradição, Demétrio pediu autorização para
escrever a Eleazar, sumo sacerdote de Jerusalém. Em nome de
Ptolomeu, pediu-lhe que enviasse a Alexandria especialistas
eruditos na lei e capazes de traduzi-la. Eleazar respondeu com
alegria à carta e aos presentes que a acompanhavam. Após um
mês a viajar através das areias abrasadoras do Sinai, chegaram ao
Egito setenta e dois sábios hebreus, seis por cada tribo, a nata da
doutrina rabínica, e foram alojados numa mansão da ilha de Faro,
ao pé da praia, «imersa numa paz profunda». Demétrio visitava-os
com frequência com o seu pessoal para comprovar o avanço do
trabalho. Nesse retiro tranquilo, diz-se que acabaram a tradução do
Pentateuco em setenta e dois dias, e depois voltaram à sua cidade.
Em memória desta história, a Bíblia grega é conhecida como a
«Bíblia dos Setenta».
Quem conta estes acontecimentos, um tal Aristeias, garante ter
assistido pessoalmente aos mesmos. Hoje sabemos que o
documento é uma falsificação, mas há dados reais escondidos entre
a ramagem desta fábula. O mundo estava a mudar e Alexandria era
o seu espelho. A língua grega estava a converter-se na nova língua
franca. Não era, claro, a língua de Eurípides e de Platão, mas sim
uma versão acessível à qual chamavam koiné, algo parecido com
esse inglês para desenrascar com o qual nos entendemos nos
hotéis e aeroportos nas férias. Os reis macedónios tinham decidido
impor o grego em todo o império, como símbolo de domínio político
e supremacia cultural, deixando para o próximo o esforço de
aprendê-lo se se quisesse fazer entender. Contudo, algo da
universalidade de Alexandre e de Aristóteles tinha penetrado na sua
orgulhosa mente chauvinista. Sabiam que precisavam de
compreender os seus novos súbditos para poderem governá-los. É
dessa ótica que se explicam os esforços económicos e intelectuais
para traduzirem os seus livros, e especialmente os seus textos
religiosos, que são mapas das almas. A Biblioteca de Alexandria
não nasceu apenas para oferecer refúgio ao passado e à sua
herança. Era também a vanguarda de uma sociedade que
poderíamos considerar globalizada, como a nossa.

15

Essa primitiva globalização chamou-se «helenismo». Costumes,


crenças e formas de vida comuns enraizaram-se nos territórios
conquistados por Alexandre desde a Anatólia até Punjab. A
arquitetura grega era imitada em lugares tão remotos como a Líbia
ou a ilha de Java. A língua grega servia para asiáticos e africanos se
comunicarem. Plutarco garante que na Babilónia liam Homero, e
que os meninos da Pérsia, de Susa e de Gedrósia — região hoje
dividida entre o Paquistão, o Afeganistão e o Irão — cantavam as
tragédias de Sófocles e Eurípides. Pelos caminhos do comércio, da
educação e da mestiçagem, uma grande parte do mundo começou
a experimentar uma chamativa assimilação cultural. A paisagem
desde a Europa até à Índia estava salpicada de cidades com traços
reconhecíveis (ruas amplas que se cruzavam em ângulo reto
segundo o traçado hipodâmico, ágoras, teatros, ginásios, inscrições
em grego e templos com frontões decorados). Eram os sinais
distintivos daquele imperialismo, tal como hoje o são a Coca-Cola,
os McDonald’s, os anúncios luminosos, os centros comerciais, o
cinema de Hollywood e os produtos da Apple, que uniformizam o
mundo.
Tal como na nossa época, havia fortes correntes de
descontentamento. Nos povos conquistados, muitos súbditos
resistiam a serem colonizados pelos invasores. Mas também havia
resmungões gregos que recordavam tempos de aristocrática
independência e não se adaptavam à nova sociedade cosmopolita.
Ah, a pureza perdida do passado. De repente, surgiam estrangeiros
piolhosos em todos os cantos. Num mundo de horizontes alargados,
a emigração crescia enquanto os salários do trabalho livre se
ressentiam pela concorrência dos escravos orientais. Aumentou o
medo do outro, daquele que era diferente. Um gramático chamado
Apião refilava porque os judeus ocupavam o melhor bairro de
Alexandria, ao pé do palácio real, e Hecateu, um grego que visitou o
Egito na época de Ptolomeu, deplorava a xenofobia judaica.
Também houve fricções, às vezes sangrentas, entre comunidades.
O historiador Diodoro Siluco relata que uma multidão furiosa de
egípcios linchou um estrangeiro por matar um gato, animal sagrado
para os egípcios.
As mudanças provocavam ansiedade. Muitos gregos, que
durante séculos tinham vivido em pequenas cidades administradas
pelos seus próprios cidadãos, viram-se de repente incluídos em
extensos reinos. Começou a espalhar-se o desenraizamento, a
sensação de estarem deslocados, de viverem perdidos num
universo demasiado grande, governados por poderes longínquos e
inacessíveis. Desenvolveu-se o individualismo; agudizou-se a
sensação de solidão.
A civilização helenística — angustiada, frívola, teatral, convulsa,
atordoada pelas rápidas transformações — albergava impulsos
contraditórios. Parafraseando Dickens, «foi o melhor dos tempos, foi
o pior dos tempos». Floresceram ao mesmo tempo o ceticismo e a
superstição; a curiosidade e os preconceitos; a tolerância e a
intolerância. Algumas pessoas começaram a considerar-se cidadãs
do mundo, enquanto noutras o nacionalismo era exacerbado. As
ideias reverberavam e viajavam para além das fronteiras,
misturando-se com facilidade. O ecletismo triunfava. O pensamento
estoico, que se impôs durante todo o helenismo e a época imperial
romana, ensinava a evitar o sofrimento através da serenidade, da
ausência de desejos e do fortalecimento interior. Os budistas
orientais podiam sentir-se identificados com esse programa de
autoajuda.
O fracasso dos ideais do passado desencadeou entre os gregos
uma intensa nostalgia de outros tempos, e, simultaneamente, a
diversão de parodiar os velhos relatos heroicos. Se Alexandre tinha
conquistado o mundo agarrado ao seu exemplar da Ilíada, pouco
tempo depois um poeta anónimo ridicularizou aquelas lendas numa
epopeia cómica, a Batracomiomaquia, que narrava a batalha entre
as tropas do rei das rãs e as do príncipe dos ratos. A fé nos deuses
e nos mitos extinguia-se deixando para trás um rasto misto de
irreverência, desconcerto e saudade. Décadas mais tarde, Apolónio
de Rodes, nostálgico bibliotecário de Alexandria, homenageou a
épica antiga no seu poema sobre as aventuras de Jasão e os
Argonautas. Os cinéfilos de hoje descobrirão a mesma tensão no
western crepuscular Imperdoável de Clint Eastwood, face ao sorriso
iconoclasta e irónico de Tarantino a dinamitar o género em Django
Libertado. A piada e a melancolia conviviam numa amálgama que é
muito reconhecível nos nossos dias.

16

Ptolomeu tinha cumprido os seus propósitos. Até Roma a


substituir, Alexandria foi o centro dessa civilização que ultrapassava
fronteiras. Para além disso, era a capital do poder económico. O
resplandecente Farol, uma das maravilhas do mundo,
desempenhava a mesma função simbólica do que as Torres
Gémeas do World Trade Center de Nova Iorque.
A sul de Alexandria, enormes celeiros escuros quebravam a linha
do horizonte. Ali armazenavam-se as colheitas das ricas planícies
de aluvião banhadas pelo Nilo. Milhares de sacos eram
transportados para os cais através de uma rede de canais. Os
barcos egípcios zarpavam a transbordar rumo às principais cidades
portuárias da época, onde esperavam com ansiedade os seus
carregamentos para conjurarem o fantasma da fome. Os grandes
centros urbanos da Antiguidade tinham crescido para além das
possibilidades das zonas rurais circundantes. Alexandria garantia o
pão, que era sinónimo de estabilidade e condição indispensável do
poder. Se os egípcios decidissem aumentar os preços ou diminuir o
fornecimento, um país inteiro podia mergulhar na violência e nos
motins.
Embora seja uma cidade jovem e poderosa, a nostalgia esconde-
se nos próprios alicerces de Alexandria. O rei tem saudades dos
tempos passados que não conheceu, mas estes deixam-no
obcecado — a era dourada de Atenas, os dias efervescentes de
Péricles, os filósofos, os grandes historiadores, o teatro, os sofistas,
os discursos, a concentração de indivíduos extraordinários numa
pequena capital orgulhosa que se proclamou «a escola da Grécia».
Durante séculos, os macedónios, no seu país quase bárbaro a norte
da Grécia, ouviam falar do esplendor de Atenas, e essas notícias e
rumores fascinavam-nos. Convidaram o velho Eurípides para passar
os seus últimos anos com eles, e também conseguiram atrair
Aristóteles para a corte. Esses ilustres convidados eram a sua
esperança. Tentavam imitar os refinamentos de Atenas, queriam
sentir-se cultos e perder a fama humilhante de serem menos gregos
do que os outros. O seu olhar fronteiriço, periférico, admirativo,
engrandecia o mito.
Neste ponto, lembro-me do jardim dos Finzi-Contini no romance
de Giorgio Bassani. Li-o e reli-o muitas vezes, e acho que é um dos
meus livros preferidos. A grande mansão dos judeus ricos de
Ferrara, com o seu jardim, a sua pista de ténis e os altos muros que
a rodeiam, representa esse lugar onde queremos ser admitidos,
mas, quando nos convidam, sentimo-nos um intruso inseguro. Não
pertencemos a esse mundo, por muito apaixonados que estejamos
por ele. Deixar-nos-ão entrar apenas durante um verão encantado,
desfrutar de longos jogos de ténis, explorar o jardim, cair na rede do
desejo, mas as portas voltarão a fechar-se. E esse espaço ficará
unido para sempre à nossa melancolia. Quase todos nós, em algum
momento da vida, espiámos de fora um jardim dos Finzi-Contini.
Para Ptolomeu, era Atenas. Com a memória ferida pela cidade
inalcançável, fundou o Museu de Alexandria.
Para um grego, um museu era um recinto sagrado em honra das
musas, as filhas da Memória, as deusas da inspiração. A Academia
de Platão e, mais tarde, o Liceu de Aristóteles tinham a sua sede em
pequenas florestas dedicadas às musas porque o exercício do
pensamento e da educação podiam entender-se como atos
metafóricos e luminosos de culto às nove deusas. O Museu de
Ptolomeu chegou mais longe: foi uma das instituições mais
ambiciosas do helenismo, uma versão primitiva dos nossos centros
de investigação, universidades e laboratórios de ideias. Eram
convidados para o Museu os melhores escritores, poetas, cientistas
e filósofos da época. Os escolhidos mantinham o posto para
sempre, libertados de qualquer preocupação material, para que
pudessem dedicar todas as suas energias a pensar e a criar.
Ptolomeu atribuía-lhes um salário, alojamento gratuito e um lugar
num luxuoso refeitório coletivo. Para além disso, eximia-os de
pagarem impostos, talvez o melhor presente em tempos de
voracidade das arcas reais.
Durante séculos, o Museu reuniu, como desejava Ptolomeu, uma
resplandecente constelação de nomes: o matemático Euclides, que
formulou os teoremas da geometria; Estratão, o maior físico da
época; o astrónomo Aristarco de Samos; Eratóstenes, que calculou
o perímetro da Terra com admirável exatidão; Herófilo, pioneiro da
anatomia; Arquimedes, inventor da hidrostática; Dionísio de Trácia,
que escreveu o primeiro tratado de gramática; os poetas Calímaco e
Apolónio de Rodes. Em Alexandria nasceram teorias
revolucionárias, como o modelo heliocêntrico do sistema solar, que,
resgatado no século XVI, provocaria a revolução copernicana e a
condenação de Galileu. Quebrou-se o tabu das dissecações de
cadáveres — e também, segundo as más-línguas, de presos vivos
das prisões —, que permitiram avançar na medicina.
Desenvolveram-se novos ramos do saber, como a trigonometria, a
gramática e a conservação de manuscritos. Ali, teve início o estudo
filológico dos textos. Foram feitas grandes descobertas, como o
parafuso de rosca sem fim, que ainda se utiliza para o
bombeamento. E, dezassete séculos antes do cavalo-vapor de Watt,
Herão de Alexandria descreveu uma máquina a vapor, embora só a
tenha utilizado para propulsar o movimento de bonecos mecânicos e
outros brinquedos. A sua obra sobre os autómatos é considerada
um precedente precoce da robótica.
A Biblioteca tinha um lugar essencial naquela pequena cidade de
sábios. Poucas vezes na História se fez um esforço parecido,
consciente e deliberado, para reunir num único lugar as mentes
mais brilhantes da época. E nunca antes os melhores pensadores
tiveram acesso a tantos livros, à memória do saber anterior, aos
sussurros do passado com os quais aprender o ofício de pensar.
O Museu e a Biblioteca faziam parte do recinto do palácio,
protegidos pelos muros da fortaleza. A vida daqueles primeiros
investigadores profissionais era passada no isolamento do espaço
fortificado. A sua rotina consistia em dar conferências, aulas e
discussões públicas, mas, acima de tudo, era a silenciosa
investigação que dominava. Para além do mais, o diretor da
Biblioteca era o professor dos filhos do rei. Quando o sol se punha,
jantavam todos juntos numa sala onde às vezes o próprio Ptolomeu
se juntava ao banquete para ouvir as suas conversas, os seus
duelos de talento, as suas descobertas e as suas vaidades. Talvez
pensasse que tinha conseguido criar a sua própria Atenas, o seu
jardim amuralhado.
Graças a um autor satírico da época conhecemos os costumes
dos membros do Museu, tranquilos estudiosos aliviados de qualquer
preocupação, protegidos dos acontecimentos desfavoráveis dos
seus tempos. «Na populosa terra do Egito — diz o poeta e
humorista — engordam muitos eruditos que gatafunham livros e dão
bicadas uns aos outros na gaiola das musas.» Outro poema fazia
regressar um escritor do mundo dos mortos para aconselhar os
habitantes do Museu a não sentirem tanto ressentimento uns pelos
outros. Na verdade, as bicadas eram um assunto corrente entre
aqueles sábios de vida relaxada, retirados do ruído mundano. As
fontes históricas refletem discórdias, ciúmes, cólera, rivalidades e
má-língua entre eles. Nada que não aconteça nos nossos atuais
departamentos universitários, com as suas pequenas e
intermináveis disputas.

17

Desencadeou-se nos nossos dias uma enfurecida competição


por erguer o arranha-céus mais alto do mundo. Na sua época,
Alexandria entrou na luta: o Farol da cidade foi, durante muitos
séculos, um das construções mais altas do mundo. Era o emblema
da vaidade real, esse edifício icónico, como a Ópera de Sidney ou o
Museu Guggenheim de Bilbau, que é o sonho erótico dos
governantes. E, para além disso, converteu-se no símbolo de uma
era dourada da ciência.
Inicialmente o «Farol» era um lugar; assim se chamava a ilha do
delta do Nilo com a qual Alexandre sonhou e onde decidiu fundar a
cidade. No mar Báltico, outra pequena ilha chama-se Fårö. Foi ali
que Ingmar Bergman gravou o seu filme Em Busca da Verdade —
entre muitos outros — e foi para ali que se retirou para viver como
um ermitão abismado. Mas nós já não nos lembramos do topónimo
original; o edifício apropriou-se do nome geográfico e, por herança
do grego, a palavra ainda sobrevive nas línguas atuais.
Antes de começar a construção, Ptolomeu pediu a um
engenheiro grego que unisse a ilha de Faro com os cais através de
um dique de mais de um quilómetro de comprimento, que dividiu o
porto em duas docas separadas, uma para os barcos mercantes e
outra para os militares. No meio do enxame de barcos ergueu-se a
grande torre branca. Os árabes que ainda a viram de pé na Idade
Moderna descrevem uma sutura de três corpos — quadrado,
octogonal e cilíndrico —, comunicados pelas rampas. No cimo, a
uma altura de cento e vinte metros, havia um espelho que refletia o
sol de dia e o resplendor de uma fogueira à noite. No silêncio
noturno, os escravos subiam pelas rampas com carregamentos de
combustível que mantinham o lume aceso.
A lenda envolve o espelho do Farol. Naquela altura, as lentes
eram alta tecnologia, objetos fascinantes capazes de transformarem
o olhar e o mundo. Entre os cientistas do Museu, que tentavam abrir
todos os caminhos do conhecimento, também houve especialistas
em ótica; às suas ordens, lavrar-se-ia o grande espelho. Embora
não se possa ter a certeza do que conseguiram, muito séculos
depois, os relatos dos viajantes árabes falavam de lentes que
permitiam vigiar desde o Farol a grande distância os barcos que
navegavam para Alexandria. Contava-se que, da parte mais alta do
Farol se podia ver a cidade de Constantinopla refletida no espelho.
A partir dessas confusas recordações — em parte certas, em parte
exageradas —, poderíamos talvez encontrar no Farol o antepassado
do telescópio, o grande olho capaz de se meter na distância do mar
e das estrelas.
Foi a última e a mais moderna das sete maravilhas da
Antiguidade. Simbolizava o que Alexandria queria ser: a cidade-
farol, o centro do eixo de coordenadas, a capital de um mundo
ampliado, o sinal luminoso que guiava e dirigia o rumo de todas as
navegações. E, embora tenha sido destruído pelas sacudidelas de
sucessivos terramotos desde o século X até ao século XIV, podemos
observar a sua marca em todos os faróis posteriores, que seguiram
o seu modelo arquitetónico.
A Biblioteca, que também era de certa forma um farol, é,
contudo, um lugar que nenhum autor antigo nos ajuda a imaginar.
Em todos os textos, permanecem imprecisos os detalhes sobre o
espaço, a distribuição de salas e pátios, as atmosferas e os
recantos, como que refletidos num espelho às escuras.

18

Ler é um ritual que implica gestos, posições, objetos, espaços,


materiais, movimentos, modulações de luz. Para imaginarmos como
liam os nossos antepassados, precisamos de conhecer, em cada
época, essa rede de circunstâncias que rodeiam o íntimo cerimonial
de entrar num livro.
O manuseamento de um rolo não é nada parecido com o de um
livro de páginas. Ao abrir um rolo, os olhos deparavam-se com uma
fila de colunas de texto, uma atrás de outra, da esquerda para a
direita, na parte interior do papiro. À medida que avançava, o leitor
ia desenrolando o mesmo com a mão direita para aceder ao novo
texto, enquanto com a mão esquerda enrolava as colunas já lidas.
Um movimento pausado, rítmico, interiorizado; um baile lento.
Quando acabavam de lê-lo, o livro ficava enrolado ao contrário, do
final para o início, e a cortesia exigia rebobiná-lo — como as
cassetes — para o próximo leitor. A cerâmica, as esculturas e os
relevos representam homens e mulheres, presos pela leitura, a
reproduzirem esses gestos. Estão de pé, ou sentados com o livro no
colo. Têm as duas mãos ocupadas; não podem desenrolar o rolo
apenas com uma. As suas posições, atitudes e gestos são
diferentes dos nossos e ao mesmo tempo são-nos familiares: as
costas encurvam-se ligeiramente, o corpo encolhe-se sobre as
palavras, o leitor ausenta-se do seu mundo por um momento e
empreende uma viagem, transportado pelo movimento lateral das
suas pupilas.
A Biblioteca de Alexandria acolheu muitos daqueles viajantes
imóveis, mas não sabemos bem que enquadramento e que lugares
oferecia para a leitura. Há apenas descrições, e as que temos são
estranhamente vagas. Só podemos conjeturar o que escondem
esses silêncios. A informação mais decisiva vem de um autor
nascido na atual Turquia, Estrabão, que chegou a Alexandria desde
Roma no ano 24 a. C. para trabalhar num grande tratado geográfico
com o qual queria complementar as suas investigações sobre
história. Na crónica da sua passagem pela cidade — onde conheceu
o Farol, o grande dique, o porto, as ruas ortogonais, os bairros, o
lago Mareótis e os canais do Nilo —, diz que o Museu faz parte do
enorme palácio real. Com a passagem dos séculos, o palácio tinha-
se ido ampliando já que cada rei lhe tinha acrescentado novas
dependências e edifícios, até que o conjunto chegou a ocupar,
segundo Estrabão, um terço da cidade. Nessa extensa fortaleza
proibida, à qual poucos tinham acesso, Estrabão contemplou um
atarefado microcosmos. Depois de percorrê-lo com um olhar atento,
redigiu uma descrição do Museu e do mausoléu de Alexandre, sem
dedicar uma única palavra à Biblioteca.
O Museu — explica — compreende o perípato (uma galeria
coberta e decorada com colunas), a êxedra (uma zona semicircular
ao ar livre, com assentos) e uma grande sala, na qual os sábios
comem juntos. Vivem em comunidade de bens e têm um sacerdote,
que é o chefe do Museu, nomeado antigamente pelos soberanos e
agora por Augusto.
E é tudo.
Onde estava a Biblioteca? Talvez a tenhamos procurado em vão
e, embora esteja diante dos nossos olhos, não a vemos porque não
é parecida com as nossas expectativas. Alguns especialistas
supõem que Estrabão não menciona a Biblioteca, onde sem dúvida
trabalhou, porque não era um edifício independente. Talvez fosse
um conjunto de nichos abertos nos muros da grande galeria do
museu. Ali, empilhados em prateleiras, encontrar-se-iam os rolos, ao
alcance dos investigadores. Em divisões anexas armazenar-se-iam
documentos e livros de utilização menos frequente, mas mais
valiosos e raros.
É a hipótese mais verosímil sobre as bibliotecas gregas, que não
eram salas, mas sim estantes. Não dispunham de instalações para
os leitores, que tinham de trabalhar num pórtico contíguo,
ensolarado e protegido das inclemências, muito parecido ao claustro
de um mosteiro. Se tudo acontecesse como imaginamos, aqueles
leitores do Museu de Alexandria escolheriam um livro e procurariam
um lugar para se sentarem na êxedra. Ou retirar-se-iam para os
seus aposentos para se deitarem. Ou leriam a passear lentamente
entre as colunas e diante do olhar cego das estátuas. E assim
transitariam pelos caminhos da invenção e das rotas da memória.

19

Pelo contrário, no nosso tempo, alguns dos edifícios mais


fascinantes da arquitetura contemporânea são precisamente
bibliotecas, espaços abertos à experimentação e ao jogo com a luz.
Pensemos na admirada Staatsbibliothek de Berlim, projetada por
Hans Scharoun e Edgar Wisniewski. Foi aí que Wim Wenders filmou
uma cena de Asas do Desejo. A câmara desliza pela enorme sala
de leitura aberta, sobe pelas escadas e espreita pelo impressionante
espaço vertical desde as passarelas sobrepostas que flutuam como
os camarotes de um auditório. As pessoas formigam sob a luz
zenital, entre os blocos paralelos de estantes, a carregarem pilhas
de livros colados à barriga. Ou permanecem sentadas com vários
gestos de concentração (a mão sobre o queixo, o punho a segurar a
face, uma caneta que gira entre os dedos como uma hélice…).
Sem que ninguém chegue a perceber, entra na biblioteca um
grupo de anjos ataviados com essa memorável estética dos anos
oitenta: sobretudos escuros, camisolas de gola alta e, no caso de
Bruno Ganz, o cabelo apanhado num pequeno rabo-de-cavalo.
Como os humanos não conseguem vê-los, os anjos aproximam-se
com liberdade, sentam-se ao seu lado ou colocam-lhes uma mão no
ombro. Intrigados, espreitam pelos livros que estão a ler. Acariciam
o lápis de um estudante, a ponderar sobre o mistério de todas as
palavras que saem desse pequeno objeto. Ao pé de umas crianças,
imitam sem compreendê-lo o gesto de tocar levemente nas linhas
com o dedo indicador. Observam à sua volta, com curiosidade e
surpresa, rostos ensimesmados e olhares mergulhados nas
palavras. Querem entender o que é que os vivos sentem nesses
momentos e porque é que os livros prendem a sua atenção com
tanta intensidade.
Os anjos possuem o dom de ouvir os pensamentos das pessoas.
Embora ninguém fale, captam à sua passagem um murmúrio
constante de palavras sussurradas. São as sílabas silenciosas da
leitura. Ler constrói uma comunicação íntima, uma solidão sonora
que, para os anjos, é surpreendente e milagrosa, quase
sobrenatural. Dentro das cabeças das pessoas, as frases lidas
ecoam como um canto à capela, como uma oração.
Tal como nesta sequência do filme, a Biblioteca de Alexandria
devia estar povoada de rumores e sussurros em voz baixa. Na
Antiguidade, quando os olhos reconheciam as letras, a língua
pronunciava-as, o corpo seguia o ritmo do texto, e o pé batia no
chão como um metrónomo. A escrita ouvia-se. Poucos imaginavam
que fosse possível ler de outra forma.
Falemos por um momento de si, que lê estas linhas. Neste
momento, com o livro aberto entre as mãos, dedica-se a uma
atividade misteriosa e inquietante, embora o hábito o impeça de se
surpreender com aquilo que faz. Pense bem. Está em silêncio, a
percorrer com o olhar filas de letras que fazem sentido para si e lhe
comunicam ideias independentes do mundo que o rodeia neste
momento. Retirou-se, para dizê-lo de alguma forma, para uma
divisão interior onde lhe falam pessoas ausentes, ou seja,
fantasmas visíveis apenas para si (neste caso, o meu eu espectral)
e onde o tempo passa ao ritmo do seu interesse ou do
entendimento. Criou uma realidade paralela à ilusão
cinematográfica, uma realidade que só depende de si. Você pode,
em qualquer momento, afastar os olhos destes parágrafos e voltar a
participar na ação e no movimento do mundo exterior. Mas,
entretanto, permanece à margem, onde escolheu estar. Há uma
aura quase mágica em tudo isto.
Não pense que foi sempre assim. Desde os primeiros séculos da
escrita até à Idade Média, a norma era ler em voz alta, para si
próprio ou para outros, e os escritores pronunciavam as frases à
medida que as escreviam ouvindo assim a sua musicalidade. Os
livros não eram uma canção que se cantava com a mente, como
agora, mas sim uma melodia que saltava para os lábios e soava em
voz alta. O leitor convertia-se no intérprete que lhe emprestava as
suas cordas vocais. Um texto escrito entendia-se como uma
partitura muito básica e por isso apareciam as palavras, uma atrás
de outra, numa cadeia contínua sem separações nem sinais de
pontuação — era preciso pronunciá-las para entendê-las. Quando
se lia um livro costumava haver testemunhas. Eram frequentes as
leituras em público, e os relatos que agradavam andavam de boca
em boca. Não precisamos de imaginar os pórticos das bibliotecas
antigas em silêncio, mas sim invadidos pelas vozes e pelos ecos
das páginas. Salvo exceções, os leitores antigos não tinham a
liberdade da qual você desfruta para ler à sua vontade as ideias ou
as fantasias escritas nos textos, para parar, para pensar ou para
sonhar acordado quando lhe apetece, para escolher e ocultar o que
escolhe, para interromper ou abandonar, para criar os seus próprios
universos. Esta liberdade individual, a sua, é uma conquista do
pensamento independente face ao pensamento tutelado, e foi
conseguida passo a passo ao longo do tempo.
Talvez por esse motivo, os primeiros a ler como você, em
silêncio, em conversa muda com o escritor, tenham chamado
poderosamente a atenção. No século IV, Agostinho de Hipona ficou
tão intrigado ao ver o bispo Ambrósio de Milão ler desta forma que o
anotou nas suas Confissões. Era a primeira vez que alguém fazia
algo assim à sua frente. É óbvio que lhe pareceu uma coisa fora do
normal. Ao ler — conta-nos com estranheza —, os seus olhos
transitam pelas páginas e a sua mente entende o que dizem, mas a
sua língua cala-se. Agostinho apercebe-se de que esse leitor não
está ao seu lado apesar da sua grande proximidade física, mas sim
que escapou para outro mundo mais livre e fluído escolhido por ele,
está a viajar sem se mexer e sem revelar a ninguém onde podem
encontrá-lo. Esse espetáculo parecia-lhe desconcertante e
fascinava-o.
Você é um tipo de leitor muito especial e descende de uma
genealogia de inovadores. Este diálogo silencioso entre nós os dois,
livre e secreto, é uma invenção surpreendente.
20

Ao morrer, Ptolomeu deixou resolvidas as incertezas


profissionais para mais de dez gerações dos seus herdeiros. A
dinastia que ele tinha iniciado duraria quase trezentos anos, até os
romanos anexarem o Egito ao seu império. Todos os reis da família
— chegou a haver catorze — se chamaram Ptolomeu, e os autores
antigos nem sempre se esforçam para os diferenciarem uns dos
outros (ou talvez percam a conta). Lendo as fontes, tem-se a
miragem de um só soberano vampírico que vive durante três
séculos enquanto à sua volta o mundo helenístico — hedonista,
nostálgico e subjugado — cambaleia e muda de mãos.
A era dourada da Biblioteca e do Museu coincide com o reinado
dos quatro primeiros Ptolomeus. Nos oásis entre batalhas e
conspirações de corte, todo eles desfrutaram da companhia um
pouco excêntrica da sua particular coleção de sábios. Tinham
passatempos intelectuais: Ptolomeu I quis ser historiador da grande
aventura que tinha vivido e escreveu uma crónica das conquistas de
Alexandre; Ptolomeu II interessou-se pela zoologia; Ptolomeu III,
pela literatura; e Ptolomeu IV era dramaturgo no seu tempo livre.
Depois, o entusiasmo foi decaindo pouco a pouco, e a esplêndida
Alexandria começou a gretar-se levemente. Conta-se que Ptolomeu
X teve dificuldades económicas e, para pagar o salário aos seus
soldados, mandou substituir o sarcófago de ouro de Alexandre por
um caixão mais barato de alabastro ou cristal de rocha. Fundiu o
metal para cunhar moeda e livrou-se de apuros, mas os
alexandrinos nunca lhe perdoaram o sacrilégio. Por esse punhado
de dracmas acabou, algum tempo depois, assassinado no exílio.
Porém, os bons tempos duraram décadas, e os livros
continuaram a chegar em abundância a Alexandria. De facto,
Ptolomeu III fundou uma segunda biblioteca fora do distrito do
palácio, no santuário do deus Serápis. A Grande Biblioteca ficou
reservada para os estudiosos, enquanto a biblioteca filial foi posta à
disposição de todos. Como disse um professor de retórica que a
conheceu pouco tempo antes da sua destruição, os livros do
Serapeu «punham toda a cidade em condições de filosofar». Talvez
tenha sido a primeira biblioteca pública realmente aberta a ricos e
pobres; a elites e desfavorecidos, a livres e escravos.
A filial alimentava-se de cópias da biblioteca principal. Chegavam
ao Museu milhares de rolos, de todas as procedências, que os
sábios estudavam, comparavam e corrigiam, preparando a partir
deles exemplares definitivos e muito cuidados. Os duplicados
dessas edições ideais iam alimentar os fundos da biblioteca filha.
O Templo de Serápis (o Serapeu) era uma pequena acrópole,
situado no alto de um estreito promontório com vista sobre a cidade
e o mar. Chegava-se ao cume sem fôlego depois de se subir umas
escadas monumentais. Uma comprida galeria coberta rodeava o
recinto, e, ao longo desse corredor, em nichos ou pequenas divisões
abertas ao público, os livros aguardavam. A biblioteca filha, como
provavelmente a mãe, não teve um edifício próprio; era a inquilina
do pórtico.
Tzetzes, um escritor bizantino, afirma que a biblioteca do
Serapeu chegou a reunir quarenta e dois mil e oitocentos rolos.
Adoraríamos conhecer os valores reais de livros que as duas
bibliotecas albergavam. É uma questão apaixonante para
historiadores e investigadores. Naquela altura, quantos seriam todos
os livros do mundo? É difícil acreditar nos autores antigos, porque
os valores variam escandalosamente de uns para outros, tal como
os cálculos das manifestações na nossa época, quando o governo
faz as contas e depois os organizadores contra-atacam. Vejamos de
novo rapidamente os números precisos da discórdia. Sobre a
Grande Biblioteca, Epifânio refere o valor surpreendentemente exato
de cinquenta e quatro mil e oitocentos rolos; Aristeias, duzentos mil;
Tzetzes, quatrocentos e noventa mil; Aulo Gélio e Amiano
Marcelino, setecentos mil.
Mas há algo de que temos a certeza: a unidade de medida dos
cálculos bibliotecários era o rolo. É um sistema de cômputo ambíguo
— devia haver muitos títulos repetidos e, para além disso, a maior
parte das obras não cabia num único rolo, por isso englobavam
vários. Por outro lado, a quantidade de rolos seria variável —
aumentaria com as aquisições, e diminuiria devido a incêndios,
acidentes e perdas.
As bibliotecas antigas — quando ainda não se tinham
desenvolvido métodos de inventário e não se dispunha de ajuda
tecnológica — não podiam saber exatamente (e talvez não
estivessem muito preocupadas com isso) quantos títulos diferentes
possuíam em cada momento. Os valores que chegaram até nós
são, parece, apenas projeções do fascínio pela Biblioteca de
Alexandria. Nascida como um sonho — o desejo de albergar todos
os saberes conhecidos —, acabou por adquirir proporções de lenda.

Uma história de fogo e passadiços

21
Vivi uma das etapas mais estranhas da minha vida numa cidade
habitada por milhões de livros. Uma cidade que, talvez por
inspiração dessa peculiar comunidade de papel, decidiu existir num
passado inventado.
Lembro-me da minha primeira manhã em Oxford. Com todas as
credenciais em ordem, orgulhosa da minha bolsa de investigação,
pretendia entrar diretamente na Biblioteca Bodleiana e dedicar umas
horas ao prazer da primeira exploração. Contudo, intercetaram-me
no hall de entrada, onde um empregado da biblioteca, depois de
ouvir as minhas explicações, me fez passar para um escritório
afastado, como se o meu comportamento fosse tão suspeito e as
minhas pretensões tão duvidosas que fosse conveniente tratá-los à
porta fechada, sem contaminar a inocência dos turistas e dos
estudiosos. Sentado do outro lado de uma escrivaninha havia um
homem careca que me interrogou sem estabelecer contacto visual
comigo. Respondi às suas perguntas, justifiquei a minha presença e
mostrei todos os documentos que me pediu com uma cortesia um
pouco intimidatória. Houve um longo silêncio, enquanto ele ia
introduzindo informação sobre mim nas suas vastas bases de
dados, e depois, com os dedos ainda sobre o teclado, numa
surpreendente pirueta no tempo, instalou-se no passado medieval
ao anunciar-me que tinha chegado o momento do juramento.
Estendeu-me um pequeno baralho de cartões plastificados que
compilavam, cada um numa língua diferente, as palavras que devia
pronunciar. Fi-lo. Jurei que obedeceria às normas. Que não roubaria
nem danificaria nem desfiguraria nenhum livro. Que não pegaria
fogo à biblioteca nem ajudaria a provocar um incêndio para
contemplar com prazer diabólico como as chamas rugientes
engoliam os seus tesouros até os reduzirem a cinzas. Todos os
preliminares pareciam governados pela lógica distorcida dos
territórios fronteiriços; tal como nos voos para os Estados Unidos,
quando nos entregam aqueles formulários de imigração surrealistas
em que perguntam se pretendemos atentar contra a vida do
presidente.
De qualquer forma, o meu juramento não foi suficiente; tive de
me submeter aos detetores, consentir que inspecionassem o
conteúdo das minhas malas e deixar a minha mochila no bengaleiro
antes de atravessar finalmente o torniquete metálico da entrada.
Enquanto me submetiam aos restantes controlos, lembrei-me
daquelas bibliotecas na Idade Média nas quais acorrentavam os
livros às estantes ou às escrivaninhas para evitarem roubos. Pensei
nas fantásticas maldições lançadas ao longo da História contra os
ladrões de livros, textos obscuramente imaginativos que me atraem
de forma inexplicável, talvez porque idealizar uma boa maldição não
esteja ao alcance de qualquer um. Uma antologia ainda por
escrever devia começar pelas ameaçadoras palavras inscritas na
biblioteca do mosteiro de San Pere de les Puelles de Barcelona, que
encontro citadas em Uma História da Leitura, de Alberto Manguel:
«Àquele que rouba, ou pede um livro emprestado e não o devolve
ao seu dono, que a sua mão se transforme em serpente e o morda.
Que fique paralisado e sejam condenados todos os seus membros.
Que desfaleça de dor, suplicando aos gritos misericórdia, e que
nada alivie o seu sofrimento até que pereça. Que as traças-dos-
livros lhe roam as entranhas como fazem os remorsos que nunca
terminam. E que quando, finalmente, desça ao castigo eterno, que
as chamas do inferno o consumam para sempre.»
Naquele primeiro dia atribuíram-me um cartão que, como soube
mais tarde, era de nível lúmpen na escala de Oxford. Dava-me
direito a entrar nas bibliotecas e colleges, mas só por determinadas
zonas e em horários autorizados; a consultar livros e revistas,
embora não a pedi-los emprestados; a contemplar — sem ousar
fazer parte delas — as excêntricas liturgias da vida académica.
Rapidamente averiguei que Lewis Carroll estudou e deu aulas em
Oxford durante vinte e seis anos. Então compreendi um gigantesco
mal-entendido: As Aventuras de Alice no País das Maravilhas é puro
realismo literário. Na verdade, descreve na perfeição as minhas
experiências durante aquelas primeiras semanas, bem como os
lugares tentadores que podia entrever pelo buraco da fechadura,
onde teria necessitado de uma poção mágica para cumprir os
requisitos de acesso. A minha cabeça a bater contra os tetos.
Divisões tão asfixiantes que tinha vontade de tirar os braços pelas
janelas e de espreitar pela chaminé. Túneis, letreiros, lanches de
loucos, conversas de uma lógica escorregadia. E personagens
anacrónicas absortas em cerimoniais imprevisíveis. Também
descobri que em Oxford as relações — de amizade, de colaboração
doutoral ou plágio, de servidão feudal, sexuais e outras variantes —
são sazonais e os seus ritmos são compassados segundo o
calendário do ano letivo. Eu tinha cometido o erro de chegar a meio
do trimestre, quando os estudantes já tinham terminado a fase de
andarem às apalpadelas e já tinham resolvido as suas necessidades
essenciais. A residência calvinista onde estava alojada também não
contribuía para a minha integração. As suas normas de
comportamento eram tão inóspitas como a própria cidade, e os
horários de regresso, conventuais. Lembro-me da tristeza da
cozinha comum às sete da tarde, com os seus oito frigoríficos
alinhados; num deles havia um espaço etiquetado com o número do
meu quarto, como o código da lombada de um livro, e até a
prateleira para os ovos estava equitativamente dividida de dois em
dois. Tudo disposto para que cada um permanecesse no seu recinto
numerado, sem invadir o território nem os víveres alheios.
Descíamos para jantar, dávamos o nosso pequeno contributo para o
saco do lixo comum e voltávamos para o estreito quarto atapetado
que nos correspondia.
Tinha tanta necessidade de falar que comecei a mendigar
palavras. Lancei as minhas primeiras abordagens linguísticas na
Biblioteca Sackler, que era o meu quartel-general. Tinha observado
que o porteiro tinha uma cara jovial e avermelhada —
provavelmente pelo álcool — na qual se podia confiar. Também
ataquei, atraída pelos seus olhos céticos, uma das vigilantes do
Museu Ashmolean. Perguntava-lhes pelos segredos da cidade,
pelos recantos desconhecidos das bibliotecas, pela explicação dos
mistérios que abundavam à volta e dos quais eles eram sentinelas.
Assim ouvi histórias fascinantes.
Pedi explicações sobre o surpreendente ritual que se seguia para
solicitar livros: os bibliotecários tomavam nota do nosso pedido e
davam-nos uma hora, um ou dois dias depois, para irmos a uma
sala de leitura específica, onde nos entregavam o material. Se o fim
de semana se aproximava, o prazo podia alargar-se a três ou até a
quatro dias. «Onde estão os livros?», perguntei. E então falaram-me
das duas cidades sobrepostas.
Todos os dias, responderam-me, os bibliotecários da Bodleiana
recebem mil novas publicações. Têm de arranjar lugar para elas,
porque na manhã seguinte chegarão, sem misericórdia, outras mil.
Todos os anos, a coleção aumenta em cerca de cem mil livros e
duzentas mil revistas, ou seja mais de três quilómetros anuais de
estantes e os estatutos não permitem eliminar nem uma folha de
papel. No início do século XX, os edifícios do circuito bibliotecário
ficaram a transbordar pela avalancha de livros. Naquela época,
disseram, começaram a construir-se armazéns subterrâneos e uma
rede de túneis com tapetes rolantes por baixo da cidade. Na época
da Guerra Fria, quando os refúgios nucleares ficaram na moda,
aquele labirinto do subsolo atingiu o seu esplendor mítico. Mas a
avalancha de papel fez transbordar as caves e ameaçou, com a sua
pressão, a rede de esgotos da cidade. Então começaram a mandar
livros para outros lugares, fora da cidade — para uma mina
abandonada e para instalações industriais das imediações. Há
bibliotecários que se encarregam do transporte, acrescentaram,
embora tenham mais depressa o aspeto de operadores de grua com
fatos fluorescentes.
Graças a essas conversas — as primeiras correntes de simpatia
que recebi —, comecei a reconciliar-me com Oxford. Quando
passeava sozinha, julgava ouvir o eco dos tapetes rolantes que
moviam os livros sob os meus passos, fazendo-me companhia.
Imaginava-os ali, nos seus túneis húmidos e secretos, como as
criaturas de Fraggle Rock da minha infância, ou como as
personagens do filme Underground. Relaxei. Baixei a guarda.
Aceitei que em Oxford as excentricidades tinham razões objetivas.
Senti-me mais à vontade, até mais livre, na minha posição marginal
de forasteira desajeitada. E, com paciência, consegui encontrar
outros memoráveis inadaptados.
No nevoeiro de cada manhã, quando me aventurava pelas ruas
desfocadas, sentia que a cidade inteira gravitava sobre um mar de
livros, tal como um tapete mágico em pleno voo.
22

Numa manhã de chuva monótona e de sombras de água nas


paredes, a minha amiga vigilante explicou-me que o Museu
Ashmolean, onde ela trabalhava e eu ia vê-la, tinha sido o primeiro
museu público num sentido moderno. Gostei de sabê-lo. Fico
sempre emocionada quando estou nos lugares onde começa algo;
nos territórios das primeiras coisas.
Foi uma pequena reviravolta histórica, quase impercetível
quando se deu: em 1677, Elias Ashmole ofereceu o seu gabinete de
curiosidades — moedas antigas, gravuras, amostras geológicas
curiosas, animais exóticos dissecados — à cidade de Oxford. Já não
seria uma coleção privada, um luxo familiar que os seus filhos e
netos herdariam como símbolo da sua privilegiada posição social,
pois pertenceria aos estudantes e a todas as pessoas curiosas que
quisessem visitá-lo.
Naquela época, as inovações, que num mundo decididamente
conservador não tinham muito boa fama, costumavam disfarçar-se
sempre de tradição recuperada. Com o afã de reviver antigas
glórias, a coleção pública oferecida por Ashmole, uma novidade sem
nome nem precedentes, chamou-se «museu». Era uma maneira de
traçar um eixo imaginário entre Alexandria e Oxford. Já existia uma
Grande Biblioteca; precisavam do seu Museu. Julgando restaurar o
passado, tinham criado algo diferente, que triunfaria: uma alienação
de ideias antigas e inquietações contemporâneas. Foi este conceito
de museu como lugar de exibição que acabou por se alicerçar na
Europa, e não o modelo alexandrino de comunidade de sábios.
Em 1759 foi inaugurado o Museu Britânico de Londres. E, na
França de 1793, a Assembleia Nacional revolucionária confiscou à
monarquia o Palácio do Louvre com todas as suas obras de arte
para convertê-lo num museu. Foi um novo símbolo radical. Os
revolucionários queriam abolir a ideia de que o passado era
propriedade de uma única classe social. As coisas antigas não
podiam continuar a ser apenas um capricho da nobreza. A
Revolução Francesa expropriou a História aos aristocratas. No final
do século XIX, ir a uma exposição de bugigangas antigas, quadros
de velhos mestres, manuscritos e primeiras edições de livros
converteu-se num passatempo de moda para os europeus. E
atravessou o oceano, até aos Estados Unidos. Em 1870, um grupo
de empresários fundou o Metropolitan de Nova Iorque; o MoMA
seria o primeiro museu privado de arte contemporânea. Um
empresário mineiro chamado Solomon R. Guggenheim e os seus
herdeiros seguiriam esse rasto, que hoje gera um grande negócio
turístico, comercial e até imobiliário. A herança de Alexandria, por
uma insólita decisão de Elias Ashmole, espalhou-se até formar uma
poderosa rede. Os museus foram chamados «as catedrais do
século XXI».
Esconde-se aqui um atraente paradoxo: o facto de todos
podermos amar o passado é algo profundamente revolucionário.

23

As bibliotecas mais antigas das que temos conhecimento, no


Próximo-Oriente — Mesopotâmia, Síria, Ásia Menor e Pérsia —,
também lançaram maldições contra os ladrões e destruidores de
textos.
«Àquele que se aproprie da tabuinha através de roubo ou a leve
à força ou faça com que o seu escravo a roube, que Samas lhe
arranque os olhos, que Nabu e Nisaba o ensurdeçam, que Nabu
dissolva a sua vida como a água.»
«A quem parta esta tabuinha ou a ponha em água ou a apague
até que não se possa entender, que os deuses e deusas do céu e
da terra o castiguem com uma maldição que não se possa quebrar,
terrível e sem piedade, enquanto viva, para que o seu nome e a sua
semente fiquem apagados da face da Terra e a sua carne seja pasto
dos cães.»
Ao ler as horripilantes ameaças que proferem, podemos intuir a
importância que aquelas remotas coleções tinham para os seus
proprietários. Naquele tempo ainda não existia o comércio de livros,
e só era possível consegui-los se fôssemos nós próprios a copiá-los
(e para isso precisávamos de ser escribas profissionais) ou
arrebatando-os a outros como uma pilhagem de guerra (e para isso
precisávamos de derrotar o inimigo em perigosas batalhas).
Inventados há cinco mil anos, os livros de que estamos a falar,
na verdade os antepassados dos livros — e dos tablets —, eram
tabuinhas de argila. Nas margens dos rios da Mesopotâmia não
havia juncos de papiro, e outros materiais como a pedra, a madeira
ou a pele, eram escassos, mas a argila era abundante. Por isso os
sumérios começaram a escrever sobre a terra que sustentava os
seus passos. Conseguiam uma superfície para escrever modulando
pequenas massas de argila de cerca de vinte centímetros de
comprimento, com uma forma retangular e plana, parecidas aos
nossos tablets de sete polegadas. E desenvolveram um estilo de
escrita à base de fendas de buril na argila mole. A água apagava as
letras escritas sobre o barro, mas, pelo contrário, o fogo, que tinha
sido o verdugo de tantos livros, cozia as tabuinhas de argila tal
como um forno de oleiro, tornando-as mais duradouras. A maior
parte das tabuinhas que os arqueólogos resgataram conservam-se
precisamente porque arderam nas chamas de um incêndio. Os
livros escondem histórias incríveis de sobrevivência; em raras
ocasiões — os incêndios da Mesopotâmia de Micenas, as lixeiras do
Egito, a erupção do Vesúvio —, foram salvos pelas forças
destruidoras.
As primeiras bibliotecas do mundo foram lugares humildes,
pequenos armazéns com estantes contíguas às paredes e filas de
tabuinhas colocadas de pé, em posição vertical, umas ao pé das
outras, sobre as prateleiras. Na verdade, os especialistas no
Próximo-Oriente Antigo preferem chamar-lhes «arquivos». Ali
guardavam-se faturas, notas de entrega, recibos, inventários,
contratos matrimoniais, acordos de divórcio, atas de julgamentos,
códigos legais. E, numa pequena percentagem, também literatura,
sobretudo poemas e hinos religiosos. Nas escavações do Palácio de
Hatusa, a capital hitita, na atual Turquia, foram encontrados vários
espécimes de um curioso género literário; orações para combater a
impotência sexual.
Na Biblioteca de Hatusa — e antes em Nipur, a sul da
Mesopotâmia — apareceram tabuinhas que contêm catálogos das
coleções. Nelas, como ainda não era costume dar título aos livros,
cada obra identificava-se pela primeira linha ou por um breve
resumo do conteúdo. Para evitar a dispersão dos textos, que eram
muito extensos, mencionava-se o número de tabuinhas que os
formava. Às vezes havia o nome do autor e outros dados
acessórios. A existência desses inventários demonstra que, no
século XIII a. C., as bibliotecas começavam a crescer e os leitores já
não as podiam englobar com uma simples olhadela para as
tabuinhas na estante. Para além disso, revela um grande avanço
teórico: a consciência da unidade da coleção como sucesso e como
aspiração. Um catálogo não é um simples apêndice da biblioteca. É
o seu conceito, a sua ligação e o seu apogeu.
As bibliotecas do Próximo-Oriente nunca foram públicas.
Pertenciam às elitistas escolas de escribas, que precisavam de
textos como modelo para a aprendizagem, ou eram privilégio
exclusivo dos reis. O monarca assírio Assurbanipal, que viveu
durante o século VII a. C., foi o maior colecionador de livros antes de
Ptolomeu. Assurbanipal diz numa tabuinha que criou a Biblioteca de
Nínive para sua «real contemplação e leitura». Tinha um talento
pouco comum na monarquia daquela época e do qual gostava de se
gabar: conhecia a arte de escrever, «que entre os reis, os meus
antecessores, nenhum aprendeu». Na sua biblioteca, os
arqueólogos desenterraram cerca de trinta mil tabuinhas, das quais
só cinco mil são literárias. Encontrou-se a habitual mistura de
documentos de arquivo, livros sobre augúrios, religião e magia, ao
pé das obras mais famosas da literatura do Próximo-Oriente.
A biblioteca do orgulhoso rei Assurbanipal, o precedente mais
próximo da Grande Biblioteca de Alexandria, não possuiu a sua
universalidade. Era um conjunto de documentos e textos úteis para
as cerimónias e rituais públicos. Até as obras literárias tinham o seu
lugar ali por motivos práticos, porque o rei precisava de conhecer os
mitos fundacionais do seu povo. Sem exceção, todas as bibliotecas
do Próximo-Oriente deixaram de existir e caíram no esquecimento.
Os escritos daqueles grandes impérios permaneceram sepultados
nas areias dos desertos ao pé das suas cidades destruídas, e os
restos descobertos da sua escrita eram indecifráveis. O
esquecimento foi tão completo que, quando os viajantes
encontraram inscrições cuneiformes nas ruínas das cidades
aqueménidas muitos pensaram que eram simples decorações nas
jambas das janelas e portas. Depois de séculos de silêncio, foi a
paixão dos investigadores que desenterrou os seus vestígios e
conseguiu decifrar as línguas esquecidas das suas tabuinhas.
Pelo contrário, os livros de Atenas, Alexandria e Roma nunca se
calaram totalmente. Ao longo dos séculos mantiveram uma
conversa em sussurros, um diálogo que fala de mitos e lendas, mas
também de filosofia, ciências e leis. De alguma forma, talvez sem
sabê-lo, nós fazemos parte dessa conversa.

24

A Biblioteca de Alexandria também tinha antepassados egípcios,


mas são os que aparecem mais esbatidos na fotografia de família.
Durante os séculos faraónicos houve bibliotecas particulares e
bibliotecas nos templos, mas as nossas notícias sobre elas são
vagas. As fontes referem casas de livros, arquivos nos quais se
guardava a documentação administrativa, e casas da vida,
depósitos da tradição milenar, onde copiavam, interpretavam e
protegiam os textos sagrados. Os detalhes mais precisos sobre uma
biblioteca egípcia são-nos relatados por um viajante grego, Hecateu
de Abdera, que no tempo de Ptolomeu I conseguiu uma visita
guiada pelo Templo de Ámon em Tebas. Descreve o seu percurso
pelo labirinto de salas, pátios, corredores e divisões do recinto como
uma experiência exótica. Diz ter visto numa galeria coberta a
biblioteca sagrada sobre a qual se encontrava escrito: «Lugar de
cuidado da alma». Para além da beleza dessa ideia — a biblioteca
como clínica da alma —, pouco sabemos sobre as coleções de
livros egípcios.
Tal como a escrita cuneiforme, os sinais hieroglíficos ficaram
esquecidos durante mais de um milénio. Como é que isso pôde
acontecer? Porque é que o longo passado escrito se converteu
numa maranha de desenhos incompreensíveis? Na verdade, no
Egito, pouquíssimos indivíduos sabiam ler e escrever (só os
membros da casta dos escribas, o grupo mais poderoso do país
depois do rei e da sua família). Para chegar a ser escriba era
preciso dominar centenas e, com o tempo, milhares de sinais. Era
uma aprendizagem lenta que só os mais ricos, em escolas
exclusivas, parecidas com os nossos MBA para formar altos
executivos, se podiam permitir. Entre os escribas aí formados eram
escolhidos os altos funcionários e sacerdotes do reino, que depois
intervinham nas lutas sucessórias dos faraós e aproveitavam para
impor os seus critérios e as suas conveniências. Não resisto a citar
um texto egípcio muito afastado no tempo e, no entanto,
estranhamente familiar. Nele, um maduro senhor endinheirado, Dua-
Hety, lança uma dessas inconfundíveis filípicas paternas ao seu filho
Pepy por ser preguiçoso na escola de escribas que está a custar
uma fortuna à família: «Aplica-te nos livros. Vi o ferreiro no seu
trabalho. Os seus dedos são como garras de crocodilo. O barbeiro
está a fazer a barba até ao final da tarde e tem de andar de rua em
rua à procura de clientes a quem barbear. (…) O cortador de canas
tem de viajar até ao delta, depois de fazer mais do que o que os
seus braços conseguem fazer, os mosquitos acabaram com ele, e
as moscas mataram-no. (…) Olha, não há profissão que esteja livre
de diretor, exceto a de escriba. Ele é o chefe. Se conheceres a
escrita, terás mais sucesso do que nas profissões de que te falei.
Junta-te a pessoas distintas.»
Não sabemos se Pepy levou a sério o discurso do pai e, a
resmungar, estudou para abrir caminho na elite social egípcia.
Nesse caso, depois de uns anos duros a ensaiar os traços e a
aguentar as sapatadas dos professores, conhecidos pela sua mão
dura, Pepy teria ganhado o direito de exibir os diferentes utensílios
do escriba: pincéis com pequenas cerdas de diferente grossura,
uma paleta com ranhura, sacos de pigmentos, uma carapaça de
tartaruga para misturá-los, e uma tábua de madeira nobre para
colocar em cima do papiro e ter um apoio firme, porque não era
costume utilizar mesas para escrever, mas sim apoiar-se sentado
sobre as pernas cruzadas.
Pelo contrário, conhecemos a história dos últimos escribas
egípcios, que testemunharam o naufrágio da sua civilização. A partir
do édito de Teodósio I em 380, o cristianismo converteu-se em
religião de Estado, única e obrigatória, e foram proibidos os cultos
pagãos no Império Romano. Todos os templos dos antigos deuses
fecharam, exceto o Templo de Ísis da ilha de Filas, a sul da primeira
catarata do Nilo. Aí se refugiaram um grupo de sacerdotes, que
eram depositários dos segredos da sua sofisticada escrita e aos
quais proibiram transmitir o seu saber. Um deles, Esmet-Akhom,
gravou sobre os muros do templo a última inscrição hieroglífica
jamais escrita e que acaba com as palavras «para sempre
eternamente». Uns anos depois, o imperador Justiniano recorreu à
força militar para fechar o templo onde os sacerdotes de Ísis
resistiam, fazendo os rebeldes prisioneiros. O Egito enterrou os
seus velhos deuses, com os quais convivia há milénios. E, com os
seus deuses, os seus objetos de culto e até a linguagem. Em
apenas uma geração desapareceu tudo. E foram precisos catorze
séculos para voltar a descobrir a chave dessa linguagem.
No início do século XIX começou uma apaixonante corrida para
decifrar os hieróglifos egípcios. Os melhores orientalistas europeus
enfrentaram o desafio de recuperar a língua perdida, vigiando-se
uns aos outros de soslaio. Foram umas décadas de exaltação e
suspense no mundo científico, e também de invejas e sede de
glória. O tiro de partida da competição soou a quarenta e oito
quilómetros de Alexandria, em julho de 1799. No ano anterior,
Napoleão, que sonhava seguir os passos de Alexandre, tinha levado
as suas tropas a calcinarem-se no deserto do Egito com a saudável
intenção de incomodar os seus inimigos britânicos. A expedição foi
um fiasco, mas serviu para que os europeus se apaixonassem pelas
antiguidades faraónicas. Nas proximidades do porto de Al Rashid,
que os franceses chamavam Roseta, um soldado encontrou —
enquanto trabalhava nas obras de construção de uma fortaleza
militar — uma lousa com estranhas inscrições. Quando a sua pá
chocou contra o pesado pedaço de basalto escuro afundado na
lama, o soldado deve ter murmurado, provavelmente, um rol de
maldições. Não sabia que estava prestes a descobrir algo
extraordinário. Esse pedaço de pedra seria universalmente
conhecido tempo depois com o nome de Pedra de Roseta.
Esta peça memorável é um fragmento de uma antiga estela
egípcia onde o rei Ptolomeu V mandou gravar um decreto
sacerdotal traduzido para três tipos de escrita — hieroglífica,
demótica (a última fase da escrita egípcia) e grega —, algo parecido
à publicação de uma lei autónoma dos nossos dias nas três línguas
cooficiais da região. Um capitão do Corpo de Engenheiros que
trabalhava em Roseta compreendeu que aquela estela partida era
uma descoberta valiosa e mandou transferir os seus 760 quilos de
peso até ao Instituto Egípcio do Cairo, recém-fundado pelo grupo de
sábios e arqueólogos que viajavam com as tropas da expedição
francesa. Eles fizeram impressões com tinta, que mais à frente
distribuiriam entre os estudiosos atraídos pelo desafio. Quando o
almirante Nelson expulsou o Exército napoleónico do Egito,
apoderou-se da Pedra de Roseta, enquanto os franceses se
encolerizavam, e transferiu-a para o Museu Britânico, onde hoje é a
peça mais visitada.
Corria o ano de 1802. Então, começou um duelo de inteligências.
Quem tenta decifrar uma língua desconhecida penetra num caos
de palavras, perseguindo sombras. É uma tarefa quase impossível,
se não houver um pretexto para compreender o sentido, se se
ignorar até o assunto sobre o qual as frases enigmáticas falam. Pelo
contrário, quando existe uma tradução do texto misterioso numa
língua conhecida, o investigador já não está perdido porque tem nas
mãos um mapa do território inexplorado. Por isso, os linguistas
intuíram logo que o fragmento grego da Pedra de Roseta abriria as
portas da língua perdida do antigo Egito. A aventura de decifrá-la
despertou um novo interesse pela criptografia, que no final do
século XIX e início do XX invadiria a imaginação de Edgar Allan Poe
no seu conto «O escaravelho de ouro», e de Conan Doyle em «Os
dançarinos».
Durante os primeiros anos do século XIX, o enigma egípcio
resistiu aos ataques dos linguistas, desorientados perante a
mutilação das inscrições. Quebrado o princípio da escrita hieroglífica
e o final da grega, era quase impossível estabelecer
correspondências claras entre o texto egípcio e a sua tradução.
Mas, por volta da década de vinte do século passado, as peças
começaram a encaixar e os nomes próprios dos reis macedónios
foram a chave. Na inscrição hieroglífica, vários sinais apareciam
esculpidos dentro de uns anéis ovalados aos quais os especialistas
chamavam «cartuchos». O primeiro passo foi supor que os
cartuchos albergavam os nomes próprios dos faraós. O britânico
Thomas Young conseguiu decifrar o nome de Ptolomeu, e mais
tarde o francês Jean-François Champollion leu o de Cleópatra.
Graças a esse primeiro grupo de sons revelados, Champollion,
fabuloso poliglota, descobriu semelhanças entre a enigmática língua
egípcia e a língua copta, que ele dominava. A partir dessa intuição,
durante uns anos de trabalho obsessivo a comparar inscrições e a
esforçar-se para traduzi-las, elaborou um dicionário de hieroglíficos
e uma gramática do egípcio. Morreu pouco tempo depois, com
quarenta e um anos, com a saúde deteriorada por décadas de
sobriedade, frio, pobreza e longas jornadas de estudo.
O nome de Ptolomeu foi a chave que abriu a fechadura. Depois
de séculos de sigilo, os papiros e os monumentos egípcios voltaram
a falar.
Hoje existe uma iniciativa chamada Projeto Roseta que aspira a
proteger a extinção das línguas humanas. Os linguistas,
antropólogos e informáticos responsáveis pelo projeto, com sede em
São Francisco, conceberam um disco de níquel onde trabalharam
muito para gravar à escala microscópica um mesmo texto na sua
tradução para mil línguas. Embora a última pessoa capaz de se
lembrar de alguma dessas mil línguas já tivesse falecido, as
traduções paralelas permitiam resgatar os significados e as
sonoridades perdidas. O disco é uma Pedra de Roseta universal e
portátil, um ato de resistência perante o esquecimento irrevogável
das palavras.

A pele dos livros

25

Antes da invenção da imprensa, cada livro era único. Para que


existisse um novo exemplar, alguém devia reproduzi-lo letra a letra,
palavra por palavra, num exercício paciente e esgotante. Havia
poucas cópias da maioria das obras, e a possibilidade de que um
determinado texto se extinguisse totalmente era uma ameaça muito
real. Na Antiguidade, em qualquer momento, o último exemplar de
um livro podia estar a desaparecer numa prateleira, devorado pelas
térmitas ou destruído pela humidade. E, enquanto a água ou as
mandíbulas do inseto atuavam, uma voz era silenciada para
sempre.
Na verdade, essa pequena obra de destruição aconteceu muitas
vezes. Naquele tempo, os livros eram frágeis. Todos tinham, à
partida, mais probabilidades de desaparecerem do que de
permanecerem. A sua sobrevivência dependia do acaso, dos
acidentes, do apreço que os seus proprietários sentiam por eles e,
muito mais do que hoje, da sua matéria-prima. Eram objetos
indeléveis, fabricados com materiais que se deterioravam, se
partiam ou se desagregavam. A invenção do livro é a história de
uma batalha contra o tempo para melhorar os aspetos tangíveis e
práticos — a duração, o preço, a resistência, a leveza — do suporte
físico do textos. Cada avanço, por mais ínfimo que pudesse parecer,
aumentava a esperança de vida das palavras.
A pedra é duradoura, claro. Os antigos gravaram as suas frases
nela, tal como nós continuamos a fazer nessas placas, lápides,
blocos e pedestais que habitam nas nossas cidades. Mas um livro
só pode ser de pedra metaforicamente. A Pedra de Roseta, com os
seus quase oitocentos quilos de peso, é um monumento, e não um
objeto. O livro deve ser portátil, deve favorecer a intimidade de
quem escreve e lê, deve acompanhar os leitores e caber na sua
bagagem.
O antepassado mais próximo dos livros foram as tabuinhas. Já
falei das tabuinhas de argila da Mesopotâmia, que se estenderam
pelos atuais territórios da Síria, Iraque, Irão, Jordânia, Líbano, Israel,
Turquia, Creta e Grécia, e em algumas zonas continuaram a usar-se
até ao início da era cristã. As tabuinhas endureciam-se como os
adobes, secando-as ao sol. Molhando a superfície, era possível
apagar os traços e escrever de novo. Quase nunca se coziam em
fornos, como os tijolos, porque então a argila ficava inutilizada para
se poder usar de novo. Guardavam-se, ao abrigo da humidade,
empilhadas em estantes de madeira e também em cestas de vime e
jarras. Eram baratas e leves, mas partiam-se facilmente.
Hoje conservam-se tabuinhas do tamanho de um cartão de
crédito ou de um telemóvel e toda uma gama de tamanho crescente
até aos grandes exemplares de 30 e 35 centímetros. Mesmo que se
escrevesse pelos dois lados, os textos extensos não cabiam. Este
era um grave inconveniente: quando uma só obra ficava distribuída
em várias peças, havia muitas possibilidades de que se perdessem
tabuinhas e, com elas, partes do relato.
Na Europa, ainda foram mais habituais as tabuinhas de madeira,
metal ou marfim cobertas com um banho de cera e resina. Escrevia-
se sobre a superfície de cera com um instrumento afiado de osso ou
metal, que acabava pelo extremo oposto em forma de espátula para
apagar facilmente os erros. Essas peças enceradas acolheram a
maior parte das cartas da Antiguidade e também os rascunhos, as
anotações e todos os seus textos efémeros. Era com elas que as
crianças se iniciavam na escrita, tal como nos nossos inesquecíveis
cadernos pautados.
As tabuinhas retangulares foram uma descoberta formal. O
retângulo provoca um estranho prazer ao nosso olhar. Delimita um
espaço equilibrado, concreto, abrangível. A maior parte das janelas,
das montras, dos ecrãs, das fotografias e dos quadros são
retangulares. Os livros, depois de sucessivas pesquisas e ensaios,
também acabaram por ser definitivamente retangulares.
O rolo de papiro implicou um fantástico avanço na história do
livro. Os judeus, gregos e romanos adotaram-no com tanto
entusiasmo que chegaram a considerá-lo um traço cultural próprio.
Em comparação com as tabuinhas, as folhas de papiro são um
material fino, leve e flexível e, quando se enrolam, fica armazenada
uma grande quantidade de texto em muito pouco espaço. Um rolo
de dimensões habituais podia conter uma tragédia grega completa,
um diálogo breve de Platão ou um evangelho. Isso representava um
prodigioso avanço no que se refere ao esforço para conservar as
obras do pensamento e da imaginação. Os rolos de papiro
relegaram as tabuinhas para um uso secundário (as anotações, os
rascunhos e os textos perecedouros). Eram como as folhas
descartadas da impressora — aquelas que chamamos «papel de
rascunho» — que utilizamos para fazer listas de propósitos que não
cumpriremos ou que damos às crianças para desenharem.
Contudo, os papiros tinham inconvenientes. No clima seco do
Egito, mantinham a sua flexibilidade e brancura, mas a humidade da
Europa enegrecia-os, tornando-os frágeis. Se as folhas de papiro se
humedecem e secam várias vezes, desfazem-se. Durante a
Antiguidade, os rolos mais valiosos guardavam-se protegidos em
jarras, em caixas de madeira ou em sacos de pele. Para além disso,
só se aproveitava um lado do rolo, a parte em que as fibras vegetais
eram horizontais, paralelas às linhas de escrita. No outro lado, os
filamentos verticais estorvavam o avanço do cálamo. A face escrita
ficava no interior do rolo, para protegê-la da luz e do atrito.
Os livros de papiro — leves, belos e transportáveis — eram
objetos delicados. A leitura e o uso habitual consumiam-nos. O frio e
a chuva destruíam-nos. Como eram matéria vegetal, despertavam a
glutonaria dos insetos, e ardiam facilmente.
Como já disse, os rolos só se fabricavam no Egito. Eram
produtos de importação sustentados por uma impressionante
estrutura comercial que continuou viva, mesmo sob o domínio
muçulmano, até ao século XII. Os faraós e reis egípcios, senhores
do monopólio, decidiam o preço das oito variedades de papiro que
circulavam no mercado. E, de forma parecida aos países
exportadores de petróleo, os soberanos egípcios aplicavam à sua
vontade medidas de pressão ou sabotagem.
E foi isso que aconteceu, com inesperadas consequências para
a história do livro. No início do século II a. C., o rei Ptolomeu V,
corroído pela inveja, procurava a forma de prejudicar uma biblioteca
rival fundada na cidade de Pérgamo, na atual Turquia. Tinha sido
criada por um rei helenístico de cultura grega, Eumenes II,
reproduzindo um século mais tarde a avidez e os métodos pouco
escrupulosos dos primeiros Ptolomeus no momento de conseguirem
livros. Também se lançou à caça de génios intelectuais e atraiu um
grupo de sábios que formavam uma comunidade paralela à do
Museu. Desde a sua capital, Eumenes tentava eclipsar o brilho
cultural de Alexandria num momento em que o poder político egípcio
estava em declínio. Ptolomeu, consciente de que os melhores
tempos tinham ficado para trás, enfureceu-se perante o desafio. Não
estava disposto a suportar afrontas contra a Grande Biblioteca, que
simbolizava o orgulho da sua linhagem. Conta-se que mandou
prender o bibliotecário Aristófanes de Bizâncio quando descobriu
que este planeava instalar-se em Pérgamo sob a proteção do rei
Eumenes, acusando um de traição e o outro de roubo.
Para além de mandar prender Aristófanes de Bizâncio, o contra-
ataque de Ptolomeu a Eumenes foi visceral. Interrompeu o
fornecimento de papiro ao reino de Eumenes, para vergar a
biblioteca inimiga privando-a do melhor material de escrita existente.
A medida poderia ter sido demolidora, mas — para frustração do
vingativo rei — o embargo impulsionou um grande avanço que, para
além do mais, imortalizaria o nome do inimigo. Em Pérgamo
reagiram aperfeiçoando a antiga técnica oriental de escrever sobre
couro, uma prática cujo uso tinha sido secundário e local até então.
Em memória da cidade que o universalizou, o produto melhorado
chamou-se «pergaminho». Cerca de quatro séculos mais tarde,
essa descoberta mudaria a fisionomia e o futuro dos livros. O
pergaminho fabricava-se com peles de bezerro, ovelha, carneiro ou
cabra. Os artesãos mergulhavam-nas num banho de cal durante
várias semanas antes de secá-las esticadas num bastidor de
madeira. O facto de estarem esticadas alinhava as fibras da pele,
formando uma superfície lisa, que depois raspavam para mais tarde
alcançarem a brancura, a beleza e a grossura desejadas. O
resultado desse longo processo de elaboração eram lâminas
suaves, finas, que se aproveitavam nas duas faces para a escrita e,
sobretudo — esse é o segredo —, duradouras.
O escritor italiano Vasco Pratolini disse que a literatura consiste
em fazer exercícios de caligrafia sobre a pele. Embora não
pensasse no pergaminho, a imagem é perfeita. Quando o novo
material de escrita triunfou, os livros transformaram-se precisamente
nisso: corpos habitados pelas palavras, pensamentos tatuados na
pele.

26

A nossa pele é uma grande página em branco; o corpo, um livro.


O tempo vai escrevendo pouco a pouco a sua história nas faces,
nos ventres, nas barrigas, nos sexos, nas pernas. Acabados de
chegar ao mundo, imprimem-nos na barriga um grande «O», o
umbigo. Depois vão aparecendo lentamente outras letras. As linhas
da mão. Os sinais, como pontos finais. Os riscos que os médicos
deixam quando abrem a carne e depois a cosem. Com os anos, as
cicatrizes, as rugas, as manchas e as ramificações varicosas traçam
as sílabas que relatam uma vida.
Volto a ler o Requiem da maravilhosa poeta Anna Akhmátova,
onde descreve as longas filas de mulheres em frente da prisão de
Leningrado. Anna conheceu a fundo a desgraça: o seu primeiro
marido foi fuzilado; o segundo morreu de extenuação num campo de
trabalho do gulag; o seu único filho foi detido várias vezes e passou
dez anos na prisão. Um dia, ao enfrentar o espelho com o seu
aspeto abatido e os sulcos que o sofrimento estava a abrir no seu
rosto, ela lembrou-se da imagem das antigas tabuinhas
mesopotâmicas. E escreveu um verso triste e inesquecível: «Agora
sei como é que a dor traça as rudes páginas cuneiformes na face.»
Por vezes, eu também encontrei pessoas cujos rostos parecem
argila, atravessada pela dor. E, depois de ler o poema de
Akhmátova, já não consigo evitá-lo: as tabuinhas assírias sugerem-
me rostos de pessoas que viveram — e sofreram — muito.
Mas não é só o tempo que escreve na pele. Algumas pessoas
mandam tatuar frases ou desenhos para se decorarem como
pergaminhos iluminados. Nunca o fiz e, porém, compreendo esse
impulso por deixar marca, colorir e converter em texto o próprio
corpo. Lembro-me das semanas extasiadas que vivi com uma amiga
adolescente quando ela decidiu fazer a sua primeira tatuagem.
Levantou a gaze que a tapava à minha frente. Olhei fixamente para
as letras ainda tenras e para a carne avermelhada do braço; quando
o músculo se esticava, as palavras pareciam tremer com um
movimento subtil próprio. Senti-me fascinada com aquela frase
capaz de palpitar, de suar, de sangrar (um livro vivo).
Sempre me intrigou saber o que é que as pessoas escrevem no
livro da sua pele. Uma vez conheci um tatuador e falámos sobre o
seu ofício. A maior parte, disse-me, faz tatuagens desejando
recordar para sempre uma pessoa ou um acontecimento. O
problema é que os nossos «sempres» costumam ser efémeros, e
este tipo de tatuagens são os que, estatisticamente, provocam mais
arrependimentos. Outros clientes escolhem frases otimistas, letras
de canções pop, poemas. Até quando os textos são clichés, más
traduções ou textos sem muito sentido, tê-los gravados no corpo fá-
los sentirem-se únicos, especiais, bonitos e cheios de vida. Acho
que a tatuagem é uma sobrevivência do pensamento mágico, o
rasto de uma fé ancestral na aura das palavras.
O pergaminho vivo não é apenas uma metáfora, a pele humana
pode transportar mensagens escritas e ser lida. Em situações
excecionais, os corpos servem como canal oculto da informação. O
historiador Heródoto conta uma história fantástica — baseada em
factos reais — sobre tatuagens, intrigas e espias da Antiguidade.
Numa época de grandes turbulências políticas, um general
ateniense chamado Histieu queria incentivar o seu genro
Aristágoras, tirano de Mileto, para dar início a uma revolta contra o
Império Persa. Tratava-se de uma conspiração altamente perigosa
na qual os dois iam pôr a vida em perigo. Os caminhos estavam
vigiados e, previsivelmente, os mensageiros de Aristágoras seriam
revistados antes de chegarem a Mileto, na atual Turquia. Onde era
possível levar escondida uma carta que os condenava à tortura e à
morte lenta caso fossem apanhados? O general teve uma ideia
brilhante: rapou a cabeça do seu escravo mais leal, tatuou-lhe uma
mensagem no couro cabeludo e esperou até que o cabelo
crescesse novamente. As palavras tatuadas eram: «Histeu a
Aristágoras: revolta jónica.» Quando o cabelo novo começou a
crescer cobrindo a frase subversiva, enviou o escravo a Mileto. Para
maior segurança, o escravo não sabia nada da conspiração. Tinha
apenas ordens para rapar o cabelo em casa de Aristágoras e dizer-
lhe que desse uma olhadela à sua cabeça rapada. Sigiloso como
um espia da Guerra Fria, o mensageiro viajou, manteve-se tranquilo
enquanto o revistavam, chegou ao seu destino sem que o complô
fosse descoberto e rapou a cabeça. O plano continuou em frente.
Ele nunca soube — ninguém consegue ler o seu próprio cocuruto —
o que é que diziam as palavras incendiárias tatuadas para sempre
na sua cabeça.
Essa misteriosa rede que o tempo, a pele e as palavras tramam
está no centro do thriller Memento, realizado por Christopher Nolan.
O seu perplexo protagonista, Leonard, sofre amnésia anterógrada
devido a um trauma. Não consegue armazenar as lembranças
recentes; a consciência de todos os seus atos desvanece-se pouco
tempo depois sem deixar marcas. Todas as manhãs acorda sem se
lembrar de nada do dia anterior, dos meses anteriores, de todo o
tempo passado desde o trágico acidente que lhe provocou a lesão
cerebral. Apesar da sua doença, Leonard pretende encontrar o
homem que violou e matou a sua mulher, e vingar-se. Criou um
sistema que lhe permite mover-se por um mundo que se apaga,
semeado de intrigas, manipulações e armadilhas: tatua nas suas
mãos, braços e peito a informação essencial sobre si próprio, e
todos os dias reencontra ali a sua própria história. Com uma
identidade ameaçada pelo esquecimento, só a leitura das suas
tatuagens lhe permite manter a sua busca e o seu objetivo. A
verdade do relato escapa-se-nos entre o rol de mentiras das
personagens, incluindo Leonard, de quem acabamos por suspeitar.
O filme está construído com a estrutura de um puzzle fragmentário,
como a mente do seu protagonista e como o próprio mundo
contemporâneo. Indiretamente, é também uma reflexão sobre a
natureza dos livros: extensões da memória, as únicas testemunhas
— imperfeitas, ambíguas mas insubstituíveis — dos tempos e dos
lugares onde a lembrança viva não chega.
27

Entrava várias vezes por mês por uma porta traseira do Palácio
Médici Riccardi na Via de’ Ginori, mesmo depois do muro ameado
do jardim. A fachada tinha a cor baunilha tão característica de
Florença. Precisava de respirar a simplicidade dessas casas e
desses pátios antes de enfrentar a investida barroca e a asfixiante
cascata de dourados que me aguardavam no interior da Biblioteca
Riccardiana. Ali tive pela primeira vez entre as minhas mãos um
manuscrito de pergaminho realmente valioso.
Durante as minhas longas horas de estudo na luxuosa sala de
leitura, pude urdir com cuidado cada detalhe do plano para apanhar
a minha presa. A verdade é que não precisava de consultar nenhum
manuscrito para a minha investigação, mas adotei a minha melhor
expressão de honradez académica diante dos responsáveis da
biblioteca. O objetivo da minha incursão era exclusivamente
hedonista: queria tocar levemente nesse livro e acariciá-lo, desejava
sentir o deleite sensual tão severamente custodiado pelos guardiães
do património. Entusiasmava-me tocar numa obra de arte nascida
para o prazer de um aristocrata e a sua pandilha de amigos
privilegiados; aquilo era a deliciosa transgressão de uma pobre
rapariga que fazia o possível para pagar o arrendamento em
Florença. Nunca esquecerei aqueles minutos de intimidade —
quase erótica — com um Petrarca do século XIV. Enquanto cumpria
o ritual de acesso aos manuscritos de valor incalculável — entregar
a minha mochila aos bibliotecários, conservar apenas uma folha de
papel e um lápis, calçar as luvas de algodão, submeter-me à
vigilância dos guardiães do tesouro —, confesso que senti umas
agradáveis pontadas de peso na consciência pelos encórdios que o
meu excêntrico fetichismo pelos livros estava a provocar. Às vezes
imaginava que, como castigo, ia cair sobre mim alguma das
alegorias que flutuavam nas pinturas do teto entre nuvens e
escudos heráldicos. Era especialmente ameaçadora a mulher loura
e roliça que levitava na parte mais alta; se não me engano, era a
Sabedoria, a brandir a esfera do orbe.
Pude usufruir dos frutos da minha impostura durante quase uma
hora, e as notas que tirei — representando o papel de uma
paleógrafa aplicada — descreviam apenas as minhas felizes
impressões sensoriais. Ao passar as folhas, o pergaminho crepitava.
O sussurro dos livros, pensei, é diferente em cada época.
Impressionou-me a beleza e a regularidade da escrita traçada por
uma mão especialista. Vi os rastos do tempo, essas páginas
salpicadas de manchas amareladas como as mãos do meu avô
cheias de sinais.
Talvez o impulso de escrever este ensaio tenha nascido então,
com o calor daquele livro de Petrarca que sussurrava como uma
suave fogueira. Depois tive outros manuscritos de pergaminho entre
as mãos, e aprendi a observá-los melhor, mas a memória agarra-se
sempre à primeira vez.
Ao acariciar o códice, lembrei-me de que aquele maravilhoso
pergaminho tinha sido um dia o lombo de um animal que depois
seria degolado. Em apenas umas semanas, o gado podia passar da
vida no prado, no estábulo ou na pocilga para se converter numa
Bíblia. Durante o período em que temos uma melhor documentação,
a Idade Média, os mosteiros compravam peles de vaca, ovelha,
cordeiro, cabra ou porco, escolhidas quando o animal estava vivo
para poderem apreciar melhor a qualidade do exemplar. Como nos
seres humanos, as peles dos animais variam de acordo com a idade
e a espécie. A pele de um anho é mais lisa do que a de uma cabra
de seis anos. Algumas vacas têm a pele mais deteriorada porque
gostam de se esfregar contra a casca das árvores ou porque os
insetos as picam mais. Todos estes aspetos, juntamente com a
habilidade do artesão, tinham importância para o resultado final.
Para pelar e retirar a carne do pergaminho, esticava-se a pele, lisa
como um tambor, e raspava-se de cima a baixo com muito cuidado
utilizando uma faca de lâmina curva. Na gigantesca tensão do
bastidor, um corte demasiado profundo da faca, um folículo de pelo
mal cicatrizado ou o orifício diminuto de uma antiga picadela podiam
crescer até se converterem em buracos do tamanho de uma bola de
ténis. Os copistas aguçavam a imaginação para repararem as
imperfeições da matéria-prima e por vezes o seu talento
embelezava ainda mais o manuscrito. Um buraco no pergaminho
podia converter-se numa janela através da qual a cabeça de uma
miniatura podia espreitar para a página seguinte. Também conheço
o caso de uma brecha reparada pelas freiras de um convento sueco
com um trabalho de tricô que tece uma bela gelosia de fios entre as
letras.
Enquanto sustinha aquele delicado pergaminho entre as mãos
enluvadas para não danificá-lo, pensei na crueldade. Tal como na
nossa época as crias de foca morrem à bastonada na neve para que
possamos abrigar-nos com quentes casacos de pele, os
manuscritos mais luxuosos da Idade Média também exigiam
consideráveis doses de sadismo. Existiram exemplares belíssimos
fabricados com peles brancas profundas e textura sedosa,
chamados «vitelas», que procediam de crias recém-nascidas ou até
de embriões abortados dentro da sua mãe. Imagino os guinchos dos
animais e o seu sangue derramado durante séculos para que as
palavras do passado chegassem até nós. Por trás do requintado
trabalho do pergaminho e da tinta escondem-se, como irmãos
gémeos rejeitados, a pele ferida e o sangue — a barbárie que
espreita nos pontos cegos da civilização. Preferimos ignorar que o
progresso e a beleza incluem dor e violência. De acordo com essa
estranha contradição humana, muitos desses livros serviram para
difundir pelo mundo torrentes de palavras sábias sobre o amor, a
bondade e a compaixão.
Um grande manuscrito podia causar a morte de um rebanho
inteiro. Na verdade, hoje não haveria animais suficientes no mundo
para a descomunal matança que as nossas publicações exigiriam.
Segundo os cálculos do historiador Peter Watson, se supusermos
que cada pele ocupava uma área de meio metro quadrado, um livro
de cento e cinquenta páginas exigiria o sacrifício de entre dez e
doze animais. Outros especialistas atribuem centenas de peles a um
único exemplar da Bíblia de Gutenberg. Produzir cópias em
pergaminho de uma obra, que era a única forma de favorecer a sua
sobrevivência, implicava um gasto enorme, ao alcance de muito
poucos. Não é de estranhar que possuir um livro, mesmo um
exemplar comum, fosse durante um longo período de tempo um
privilégio exclusivo de nobres e ordens religiosas. Numa Bíblia do
século XIII, o escriba, angustiado com a escassez material, anota na
margem: «Oh, se o céu fosse de pergaminho, e o mar fosse de
tinta.»

28
Vivi em Florença durante um ano. Era estranho ir todas as
manhãs trabalhar a proteger o portátil das cotoveladas e dos
ataques das multidões turísticas. Na minha rota, evitava a histeria
fotográfica de centenas de pessoas a posarem com um sorriso
congelado. Via filas perpétuas — ondulantes centopeias humanas
— perante os próprios museus. Sentadas na rua, as pessoas
comiam alimentos embalados. Os guias conduziam os seus
rebanhos, vociferando através dos seus microfones em todas as
línguas possíveis. Algumas vezes, a multidão bloqueava a
passagem, como hordas de fãs à espera da chegada de uma estrela
pop. Toda a gente empunhava o seu telemóvel. Gritos. Era preciso
deixar passar as caleches puxadas por cavalos apáticos. Cheiro a
suor, a bosta, a café, a molho de tomate. Sim, era estranho ir
trabalhar no meio desse festival de aglomeração humana e de
selfies. Quando me aproximava do edifício da universidade e via ao
longe o mural do Guernica pintado na parede, respirava com o alívio
de quem emerge, um pouco ferido, de uma estação de metro em
hora de ponta.
A paz e o recolhimento também são possíveis em Florença, mas
é preciso sair para procurá-los, deixando os circuitos trilhados: é
preciso merecê-los. Eu encontrei-os pela primeira vez numa
luminosa manhã de dezembro no Convento de São Marcos. No rés
do chão vagueavam dois visitantes silenciosos, mas no primeiro
andar fiquei sozinha, incrédula como alguém que escapou de uma
feroz debandada de animais na savana. Sedada pela atmosfera
cristalina, visitei uma a uma as celas dos monges, onde Fra
Angelico pintou frescos de uma doçura franciscana que parecem
uma declaração de amor aos seres humildes, aos inocentes, aos
esperançados, aos iludidos. Contam que precisamente ali, rodeado
por esse desfile de belíssimos tolos, Cosme, patriarca da família
Médici, se retirava para fazer penitência pelos agravos que cometia
para multiplicar a sua fortuna e espalhar as suas filiais bancárias por
toda a Europa. O grande homem de negócios tinha reservado uma
cela dupla; já se sabe, os poderosos precisam de mais conforto do
que o resto do mundo, até nas suas horas de expiação. Entre duas
celas, no início de um amplo corredor, descobri um canto
extraordinário do convento. Os especialistas acham que esse lugar
acolheu a primeira biblioteca moderna. Foi aí que acabaram os
esplêndidos livros que o humanista Niccolò Niccoli legou à cidade
«para o bem comum, para o serviço público, para que permaneçam
num lugar aberto a todos, onde as pessoas esfomeadas de
educação possam colher neles, como em campos férteis, o rico fruto
da aprendizagem». Por sua vez, Cosme financiou a construção de
uma biblioteca renascentista, projetada pelo arquiteto Michelozzo,
que substituiu as divisões escuras e os livros acorrentados do
mundo medieval por um símbolo dos novos tempos: uma ala ampla,
banhada em luz natural, concebida para facilitar o estudo e a
conversa. As fontes descrevem com admiração o aspeto original da
biblioteca: uma arcada aérea sustentada por duas filas de delicadas
colunas, janelas dos dois lados, pedra serena, paredes verde-água
para inspirar sossego, prateleiras carregadas de livros, e sessenta e
quatro bancos de madeira de cipreste para os frades e visitantes
que iam ler, escrever e copiar textos. Um acesso desde o exterior
tornava realidade o sonho de Niccolò: a sua coleção de
quatrocentos manuscritos permanecia aberta a todos os amantes da
literatura, florentinos e estrangeiros. Inaugurada em 1444, foi, após
a destruição das suas antepassadas helenísticas e romanas, a
primeira biblioteca pública do continente.
Caminhei lentamente pela sala comprida. Desapareceram as
mesas, substituídas por vitrinas onde se expõem valiosos
manuscritos. Já ninguém vai ler a este espaço renascentista de luz
e silêncio, convertido em museu, e, no entanto, entre estas paredes
respira-se a atmosfera morna dos espaços habitados. Talvez os
fantasmas, que, como toda a gente sabe, são seres assustadiços
que preferem os lugares solitários porque receiam as terroríficas
hordas dos vivos, se tenham refugiado aqui.

Uma tarefa detetivesca

29

Fazer uma cópia fiel de um texto à mão não é uma tarefa fácil.
Exige uma série de operações repetitivas e esgotantes. O copista
deve ler no livro que lhe serve de modelo um pedaço de texto, retê-
lo na memória, reproduzi-lo com uma caligrafia bonita e depois
voltar ao original fixando o olhar no ponto exato onde tinha parado.
Era necessária uma enorme concentração para se chegar a ser um
bom escriba. Até as pessoas mais treinadas e atentas introduzem
falhas (erros de leitura, lapsos por cansaço, traduções mentais,
interpretações erróneas e correções erradas, substituições de
palavras e omissões de partes do texto). Na verdade, a
personalidade do copista retrata-se nos erros que comete. Embora a
mão que copiou um livro fosse anónima, através dos erros podemos
saber onde nasceu o escriba, que nível cultural tinha, a sua
agilidade mental e os seus gostos, até a sua psicologia se pode ver
nas suas omissões e nas palavras trocadas.
É um facto comprovado que qualquer cópia semeia erros no
texto que reproduz. Uma cópia da cópia reproduzirá as falhas do
modelo e acrescentará sempre outros novos da sua própria colheita.
Os produtos artesanais nunca são idênticos. Só as máquinas
conseguem produzir em série. Os livros manuscritos variavam à
medida que se iam multiplicando, como aquele jogo que consiste
em ir contando a mesma história ao ouvido de pessoa a pessoa e
comprovar que, ao passar de boca em boca, acaba por se converter
numa história diferente da original.
A apaixonada e enlouquecida competição entre reis
colecionadores tinha convertido Alexandria no maior arsenal de
livros alguma vez conhecido. Na Grande Biblioteca era possível
encontrar muitas obras repetidas, sobretudo de Homero. Os sábios
do Museu tiveram a oportunidade de comparar versões e de detetar
as alarmantes diferenças entre elas. Observaram que o processo de
cópias sucessivas estava a alterar sigilosamente as mensagens
literárias. Em muitas passagens não se entendia o que o autor
queria dizer, e noutros lugares eram ditas coisas diferentes
dependendo da cópia. Ao aperceberem-se da dimensão do
problema, compreenderam que, com o passar dos séculos, os
textos se desgastariam pela força silenciosa da falibilidade humana
— tal como as rochas se desgastam pelo ataque constante das
ondas —, e os relatos se tornariam cada vez mais
incompreensíveis, até à dissolução do sentido.
Os guardiães da Biblioteca embarcaram então numa tarefa
quase detetivesca, comparando todas as versões que tinham ao
alcance de cada obra, para reconstruírem de forma original os
textos. Procuravam os fósseis de palavras perdidas e extratos de
significado por baixo da falta de sentido das camadas superiores.
Esse esforço fez avançar os métodos de estudo e investigação e
serviu de treino para uma grande geração de críticos. Os filólogos
alexandrinos prepararam exemplares corrigidos e muito cuidados
das obras literárias que consideravam mais valiosas. Essas ótimas
versões estavam à disposição do público como matriz para
sucessivas cópias e até para o mercado de livros. As edições que
hoje lemos e traduzimos são filhas dos detetives de palavras de
Alexandria.
Para além de restaurarem os textos em circulação, o Museu de
Alexandria — também chamado a gaiola das musas — produziu
toneladas de erudição, disquisições e tratados sobre literatura. Os
seus contemporâneos respeitavam o descomunal trabalho
alexandrino, mas ao mesmo tempo adoravam fazer troça daqueles
sábios, cómicos contra a sua vontade. O alvo preferido das piadas
foi um estudioso chamado Dídimo, que chegou a publicar o
fantástico número de três ou até quatro mil monografias. Dídimo
trabalhou de forma incansável na Biblioteca durante o século I a. C.,
escrevendo comentários e glossários, enquanto o mundo à sua volta
era destroçado devido às guerras civis de Roma. Dídimo era
conhecido por duas alcunhas: Tripas de Bronze (Chalkénteros),
porque era preciso ter as entranhas de metal para poder escrever os
seus inumeráveis e prolixos comentários sobre literatura; e o
Esquece-Livros (Biblioláthas), porque uma vez disse em público que
uma teoria era absurda e então mostraram-lhe um ensaio seu onde
a defendia. O filho de Dídimo, chamado Apião, herdou o incansável
ofício paterno, e conta-se que o imperador Tibério lhe chamava Cu
do Mundo. Os filólogos alexandrinos — apaixonados, detalhistas,
cultos, e às vezes pedantes e entediantes — percorreram
rapidamente um trajeto que, com os seus sucessos e excessos, nós
também viríamos a realizar. Durante o helenismo, e pela primeira
vez na História, a bibliografia sobre literatura começou a encher
mais livros do que a própria literatura.

Homero como enigma e como decadência

30

A Grande Biblioteca adquiria tudo, de poemas épicos a livros de


cozinha. No meio desse oceano de letras, os estudiosos tinham de
escolher a que autores e obras dedicavam o seu esforço. Não havia
discussão possível sobre o grande protagonista da literatura grega,
e especializaram-se nele. Alexandria converteu-se na capital
homérica.
Homero está envolvido no mistério. É um homem sem biografia,
ou talvez só a alcunha de um poeta cego — o nome «Homero»
pode traduzir-se como «o que não vê». Os gregos não tinham
qualquer certeza sobre ele e nem sequer estavam de acordo
quando tentavam situá-lo no tempo. Heródoto julgava que tinha
vivido no século IX a. C. («quatro séculos antes da minha época e
não mais», escreveu), enquanto outros autores imaginavam-no no
século XII a. C., contemporâneo da Guerra de Troia. Homero era
uma vaga lembrança sem contornos, a sombra de uma voz à qual
atribuíam a música da Ilíada e da Odisseia.
Naquela época toda a gente conhecia a Ilíada e a Odisseia.
Quem sabia ler tinha aprendido a fazê-lo lendo Homero na escola, e
os restantes tinham ouvido contar as aventuras de Aquiles e Ulisses
de viva voz. Desde a Anatólia até às portas da Índia, no mundo
helenístico expandido e mestiço, ser grego deixou de ser uma
questão de nascimento ou de genética; tinha muito mais que ver
com amar os poemas homéricos. A cultura dos conquistadores
macedónios resumia-se a uma série de traços distintivos, que as
populações nativas eram obrigadas a adotar se quisessem
ascender: a língua, o teatro, o ginásio — onde os homens se
exercitavam nus, para escândalo dos outros povos —, os jogos
atléticos, o simpósio — uma forma refinada de se reunirem para
beber — e Homero.
Numa sociedade que nunca teve livros sagrados, a Ilíada e a
Odisseia eram o mais parecido com a Bíblia. Fascinados por
Homero ou furiosos com ele, mas sem a vigilância de uma classe
sacerdotal, os escritores, artistas e filósofos gregos sentiram-se
livres para explorar, questionar, satirizar ou alargar os horizontes
homéricos. Conta-se que Ésquilo disse humildemente que as suas
tragédias eram apenas «as migalhas do grande banquete de
Homero». Platão dedicou longas páginas a atacar a suposta
sabedoria do poeta, e expulsou-o da sua república ideal. Certa vez
desembarcou em Alexandria um sábio ambulante chamado Zoilo,
que promovia as suas conferências declarando-se subversivamente
«o fustigador de Homero», e o rei Ptolomeu foi pessoalmente ver o
seu espetáculo para «acusá-lo de parricídio». Ninguém permanecia
indiferente às epopeias de Aquiles e Ulisses. Os papiros
desenterrados no Egito confirmam que a Ilíada foi, de longe, o livro
grego mais lido na Antiguidade, e encontraram-se passagens dos
poemas nos sarcófagos das múmias greco-egípcias — pessoas que
levaram consigo versos homéricos rumo à eternidade.
Os poemas homéricos eram mais do que um entretenimento
para um público enfeitiçado, expressavam os sonhos e as mitologias
dos povos antigos. Desde tempos remotos, de geração em geração,
nós, os seres humanos, relatámos uns aos outros os
acontecimentos históricos que deixaram marca na memória das
gerações, mas temos a mania reincidente de convertê-los em lenda.
No século XXI, as invenções de façanhas históricas podem parecer-
nos um mecanismo primitivo e já ultrapassado. Contudo, isso não é
verdade: cada civilização escolhe os seus episódios nacionais e
consagra os seus heróis para se orgulhar de um passado lendário.
Talvez o último país a construir o seu universo mítico tenha sido os
Estados Unidos, com o western, e conseguiu exportar o seu fascínio
para o mundo globalizado contemporâneo. John Ford refletiu sobre
a mitificação da história em O Homem que Matou Liberty Valance,
onde o diretor de um jornal, rasgando o artigo solidamente
documentado do seu repórter de investigação, conclui: «Isto é o
Oeste, senhor. E, no Oeste, quando os acontecimentos se
convertem em lendas, é preciso imprimir a lenda.» Não interessa
que a época saudosa (os tempos do genocídio índio, a guerra civil,
a febre do ouro, o poder dos cowboys selvagens, as cidades sem
lei, a apologia da carabina e a escravatura) fosse na verdade pouco
gloriosa. Algo parecido se podia afirmar — e alguns gregos tiveram
coragem de dizê-lo — sobre o grande acontecimento fundacional
helénico, a sangrenta Guerra de Troia. Mas, tal como o cinema nos
ensinou a apaixonarmo-nos pelas paisagens empoeiradas e
grandiosas do faroeste, pelos territórios fronteiriços, pelo espírito
pioneiro e pelo afã de conquistar a terra, Homero emocionava os
gregos com os seus violentos e vibrantes relatos do campo de
batalha e do regresso dos veteranos ao seu lar.
Como os melhores filmes do Oeste, Homero é mais do que um
mero panfleto patriótico. É verdade que os seus poemas
representavam o mundo aristocrático sem se rebelarem contra as
suas injustiças nem as pôr causa, mas ele também sabia captar os
claro-escuros das suas histórias. Ali reconhecemos uma
mentalidade e uns conflitos não tão afastados dos nossos — ou,
para sermos mais exatos, duas mentalidades, porque a Odisseia é
muitíssimo mais moderna do que a Ilíada.
A Ilíada narra a história de um homem obcecado com a fama e
com a honra. Aquiles pode escolher entre uma vida sem brilho,
longa e tranquila, se ficar no seu país, ou uma morte gloriosa, se
embarcar para Troia. E decide ir à guerra, embora as profecias o
avisem de que não regressará. Aquiles pertence à grande família
das pessoas deslumbradas por um ideal, corajosas, comprometidas,
melancólicas, insatisfeitas, obstinadas e propensas a levarem-se
muito a sério a si próprias. Alexandre sonhou desde que era
pequeno ser parecido com ele, e procurou inspiração na Ilíada
durante os anos da sua fulgurante campanha militar.
No cruel universo bélico, os jovens morrem e os pais sobrevivem
aos seus filhos. Numa noite, o rei de Troia aventura-se sozinho até
ao acampamento inimigo para rogar que lhe devolvam o cadáver do
seu filho, para enterrá-lo. Aquiles, o assassino, a máquina de matar,
tem pena do velho e, diante da imagem de dolorosa dignidade do
idoso, lembra-se do seu próprio pai, a quem não voltará a ver. É um
momento comovente, no qual o vencedor e o vencido choram juntos
e partilham certezas: o direito de sepultarem os mortos, a
universalidade do luto e a beleza estranha desses clarões de
humanidade que iluminam momentaneamente a catástrofe da
guerra. Porém, embora a Ilíada não o conte, sabemos que a trégua
será breve. A guerra continuará, Aquiles morrerá em combate, Troia
será arrasada, os seus homens, esfaqueados, e as suas mulheres,
sorteadas como escravas entre os vencedores. O poema acaba à
beira do abismo.
Aquiles é um guerreiro tradicional, habitante de um mundo
severo e trágico; pelo contrário, o vagabundo Ulisses — um ser
literário tão moderno que seduziu Joyce — lança-se com prazer a
aventuras fantásticas, imprevisíveis, divertidas; às vezes eróticas, às
vezes ridículas. A Ilíada e a Odisseia exploram opções vitais
afastadas, e os seus heróis enfrentam as provas e os acasos da
existência com temperamentos opostos. Homero deixa claro que
Ulisses valoriza intensamente a vida, com as suas imperfeições, os
seus instantes de êxtase, os seus prazeres e o seu sabor agridoce.
É o antepassado de todos os viajantes, exploradores, marinheiros e
piratas de ficção — capaz de enfrentar qualquer situação,
mentiroso, sedutor, colecionador de experiências e grande narrador
de histórias. Tem saudades da sua casa e da sua mulher, mas
entretém-se à sua vontade pelo caminho. A Odisseia é a primeira
representação literária da nostalgia, que convive, sem muitos
conflitos, com o espírito de navegação e aventura. Quando o seu
barco encalha na ilha da ninfa Calipso de lindas tranças, Ulisses fica
com ela durante sete anos.
Nesse pequeno éden mediterrânico onde florescem as violetas e
a suave ondulação banha as praias paradisíacas, Ulisses usufrui do
sexo com uma deusa, desfrutando, ao seu lado, da imortalidade e
da eterna juventude. Porém, depois de vários anos de prazer, tanta
felicidade fá-lo infeliz. Cansa-se da monotonia dessas férias
perpétuas e chora na margem do mar recordando os seus. Por outro
lado, Ulisses conhece suficientemente a raça divina para pensar
duas vezes antes de confessar à sua poderosa amiga que se
cansou dela. Será Calipso a abordar a conversa bicuda: «Ulisses,
com que então queres ir para a tua casa na tua terra natal? Se
soubesses com quantas tristezas o destino te deparará, ficarias aqui
comigo e serias imortal. Eu orgulho-me de não ser inferior à tua
esposa nem no porte nem em estatura, pois nenhuma mulher pode
rivalizar com o corpo e com o rosto de uma deusa.»
É uma oferta muito tentadora: viver para sempre como amante
de uma voluptuosa ninfa, na plenitude do corpo, sem velhice, sem
doenças, sem marés de azar, sem problemas de próstata nem
demência senil. Ulisses responde: «Deusa, não te zangues comigo.
Sei muito bem que Penélope é inferior a ti, mas ainda assim desejo
ir para a minha casa e ver o dia do regresso. Se algum dos deuses
me maltratar no mar vermelho como o vinho, suportá-lo-ei
pacientemente. Já sofri tanto entre as ondas, na guerra…» E,
depois de decidir a sua rutura — diz o poeta com encantadora
naturalidade — o sol pôs-se, chegou o crepúsculo e foram os dois
deleitar-se com o amor em mútua companhia. Cinco dias depois, ele
zarpou da ilha, feliz por abrir as velas ao vento.
O astuto Ulisses não fantasia, como Aquiles, com um destino
grandioso e único. Poderia ter sido um deus, mas opta por voltar a
Ítaca, à pequena ilha rochosa onde vive, para se deparar com a
decrepitude do pai, com a adolescência do filho, com a menopausa
de Penélope. Ulisses é um ser lutador e vivido que prefere as
tristezas autênticas a uma felicidade artificial. O presente que
Calipso lhe oferece é demasiado parecido com uma miragem, com
uma fuga, com o sonho de uma droga alucinogénia, com uma
realidade paralela. A decisão do herói expressa uma nova
sabedoria, afastada do estrito código de honra que movia Aquiles.
Essa sabedoria sussurra-nos que a humilde, imperfeita e efémera
vida humana vale a pena, apesar das suas limitações e das suas
desgraças, embora a juventude desapareça, a carne se torne flácida
e acabemos a arrastar os pés.

O mundo perdido da oralidade:


uma tapeçaria de ecos

31

A primeira palavra da literatura ocidental é «cólera» (em grego,


ménin). Assim começa o hexâmetro inicial da Ilíada, fazendo-nos
mergulhar, de repente, sem hesitar, no barulho e na fúria. A rota que
nos leva aos territórios de Eurípides, Shakespeare, Conrad,
Faulkner, Lorca ou Rulfo começa pela ira de Aquiles.
Porém, mais do que um início, Homero é um final. Na verdade, é
a ponta de um icebergue mergulhado quase totalmente no
esquecimento. Quando escrevemos o seu nome ao pé dos
escritores da literatura universal, estamos a misturar dois universos
incomparáveis. A Ilíada e a Odisseia nasceram noutro mundo
diferente do nosso, num tempo anterior à expansão da escrita,
quando a linguagem era efémera (gestos, ar, ecos). Uma época de
«palavras aladas», como lhes chama Homero, palavras que o vento
levava e que só a memória podia reter.
O nome de Homero está associado aos textos épicos que têm
origem num período no qual faz pouco sentido falar de autoria.
Durante a etapa oral, os poemas eram recitados em público,
perpetuando um costume herdado das tribos nómadas, quando os
idosos recitavam ao pé do lume as velhas histórias dos seus
ancestrais e as façanhas dos seus heróis. A poesia estava
socializada, era de todos e não pertencia a ninguém em particular.
Cada poeta podia usar livremente os mitos e os cantos da tradição,
retocando-os, livrando-se do que considerasse irrelevante, incluindo
nuances, personagens, aventuras inventadas e também versos que
tinha ouvido os seus colegas de profissão dizerem. Por trás de cada
relato havia toda uma galáxia de poetas que não teriam entendido o
conceito «direitos de autor». Durante os longos séculos de
oralidade, o romanceiro grego foi mudando e foi-se expandindo,
estrato a estrato, geração após geração, sem que os textos
conseguissem alcançar uma versão fechada ou definitiva.
Os poetas analfabetos criaram centenas de poemas que se
perderam para sempre. Alguns deles deixaram uma sombra de
recordação nos escritores antigos e, pelas suas alusões — resumos
e breves fragmentos — conhecemos o seu argumento por alto. Para
além do ciclo de Troia, houve pelo menos outro sobre a cidade de
Tebas, onde nasceu o desgraçado Édipo. Um canto antiquíssimo,
anterior à Ilíada e à Odisseia, era protagonizado pelo guerreiro
Mémnon, nascido na Etiópia. Se as conjunturas sobre a sua
antiguidade estiverem certas, significaria, surpreendentemente, que
a canção de gesta mais antiga que conhecemos na Europa narrava
as façanhas de um herói negro.
Na sociedade oral, os bardos atuavam nas grandes festas e nos
banquetes dos nobres. Quando um profissional das palavras aladas
interpretava o seu repertório de narrações perante um auditório, por
mais pequeno que fosse, estava a «publicar» a sua obra. Se
queremos imaginar aquela forma de contar e ouvir histórias — que
ainda não é literatura porque não conhece nem as letras nem a
escrita —, temos duas fontes de informação. A Ilíada e a Odisseia
oferecem pinceladas da vida, do ofício (e também das penúrias) dos
aedos gregos. Para além disso, os antropólogos estudaram outras
culturas nas quais a épica oral subsistiu — convivendo com a
imprensa e as novas tecnologias da comunicação — até aos nossos
tempos. Embora nos pareçam visitantes do passado, os cantos
tradicionais negam-se a morrer e, em alguns lugares do planeta
servem para relatar as novas guerras e as perigosas vidas do
presente. Os estudiosos do folclore gravaram a canção de um bardo
cretense que relata o ataque dos paraquedistas alemães em Creta
em 1941, e emociona-se tanto ao recordar os amigos falecidos que
a sua voz falha de repente, treme e emudece.
Imaginemos uma cena da vida quotidiana no pequeno palácio de
um senhor local do século X a. C. Celebra-se um banquete e, para
alegrar a noite, o anfitrião contratou um cantor ambulante. Ao pé do
limiar, no lugar dos mendigos, o forasteiro espera até que o
convidem a sentar-se no salão onde os mais ricos do lugar devoram
carne assada e bebem, com as gotas de gordura a escorrerem-lhes
pelo queixo. Quando os olhares se fixam neles, fica com vergonha
da sua túnica gasta e não muito limpa. Afina em silêncio o seu
instrumento, a cítara, enquanto se prepara para o esforço da
atuação. É um grande narrador de histórias, praticou o ofício de
entrançar palavras desde pequeno. Com a voz clara acompanhada
pelo dedilhar das cordas, sentado sozinho, como um cantor e
compositor com a sua guitarra, envolve toda a gente na magia de
um relato apaixonante entrelaçado de aventuras e combates. Os
convidados do banquete abanam a cabeça, assentem, seguem o
ritmo com o pé. Ficam de imediato enfeitiçados. A história arrasta-os
para dentro de si, faz com que os seus olhos brilhem e comecem a
sorrir sem se aperceberem. Nisso, os gregos antigos e as modernas
testemunhas de recitações das aldeias eslavas estão de acordo: a
canção épica prende, invade e fascina quem a ouve.
Não é só o conjuro do relato que tem efeito, o astuto bardo
também tem um repertório de truques. Ao chegar à localidade,
informou-se sobre os antepassados da família que o contratou,
aprendeu os seus nomes e peculiaridades, para introduzi-los na
trama relacionando-os com os heróis lendários. Incorpora sempre
na narração um episódio que por acaso glorifica os conterrâneos
dos seus clientes. Encurta ou prolonga a canção dependendo do
humor e do ambiente da sala. Se o auditório gosta das descrições
de luxo, adorna a armadura do guerreiro, os arreios dos seus
cavalos e as joias das princesas — como costuma dizer, não tem de
pagar essas riquezas com o seu dinheiro. Domina a arte das pausas
e o suspense, e interrompe sempre a história num momento muito
calculado para que o convidem a continuar no dia seguinte. O recital
continua noite após noite, às vezes durante uma semana ou mais,
até que o interesse dos seus anfitriões começa a diminuir. Então, o
músico viajante volta aos caminhos, à vida errante, em busca de um
novo refúgio.
Em tempos de palavras aladas, a literatura era uma arte
efémera. Cada representação desses poemas orais era única e
acontecia uma só vez. Como um músico de jazz que, a partir de
uma melodia popular, se entrega a uma apaixonada improvisação
sem partitura, os bardos jogavam com variações espontâneas sobre
os cantos aprendidos. Até se recitavam o mesmo poema, narrando
a mesma lenda protagonizada pelos mesmos heróis, nunca era
idêntico à vez anterior. Graças a um treino precoce e disciplinado,
aprendiam a usar o verso como uma linguagem viva, moldável,
conheciam os argumentos de centenas de mitos. Dominavam as
normas da linguagem tradicional, tinham um arsenal de frases
preparadas e bordões para preencher os versos, e com esse vime
teciam, para cada recitação, um canto ao mesmo tempo fiel e
diferente. Mas não havia nenhum afã de autoria: os poetas amavam
a herança do passado e não viam razões para serem originais se a
versão tradicional era bela. A expressão da individualidade pertence
ao tempo da escrita; naquela altura, o prestígio da originalidade
artística estava pela hora da morte.
Evidentemente, para dominar o seu ofício era preciso possuir
uma memória prodigiosa. O etnólogo Mathias Murko — que abriu o
caminho continuado depois por Milman Parry e Albert Lord —
comprovou, no início do século XX, que os cantores bósnios
muçulmanos dominavam trinta ou quarenta cantos orais; alguns
mais de cem, e outros até cento e quarenta. Os cantos podiam durar
sete ou oito horas — como os poemas gregos, eram sempre
versões diferentes do mesmo relato —, e eram necessárias várias
noites completas (até à alvorada) para recitá-los na totalidade.
Quando Murko perguntou com que idade começavam a aprender,
responderam-lhe que já tocavam o instrumento ao colo dos seus
pais e relatavam lendas desde os oito anos. Havia meninos-
prodígio, pequenos Mozart da narração. Um deles lembrava-se de
que aos dez anos ia com a família aos cafés do bazar, onde
absorvia todos os cantos; só conseguia dormir depois de ter
repetido todas as histórias ouvidas e, quando adormecia, ficavam
guardadas na sua memória. Por vezes, os bardos viajavam durante
horas para poderem ouvir um colega de profissão. Bastava-lhes
uma única audição de um canto — duas, se estivessem muito
bêbados — para eles próprios poderem interpretá-lo. Assim
sobrevivia a herança dos poemas.
Provavelmente na Grécia acontecia algo parecido. Os poetas
épicos conservavam a lembrança do passado porque, desde
crianças, cresciam num mundo duplo — o real e o das lendas.
Quando falavam em verso, sentiam-se transportados para o mundo
do passado, que só conheciam através do sortilégio da poesia. Eles
— como livros de carne e osso, vivos e palpitantes, em tempos sem
escrita e, portanto, sem História — impediam que todas as
experiências, as vidas e o saber acumulado acabassem no nada do
esquecimento.

32

Uma nova invenção começou a transformar silenciosamente o


mundo durante a segunda metade do século VIII a. C., uma
revolução agradável que acabaria por transformar a memória, a
linguagem, o ato criador, a maneira de organizar o pensamento, a
nossa relação com a autoridade, com o saber e com o passado. As
mudanças foram lentas, mas extraordinárias. Depois do alfabeto,
nada voltou a ser igual.
Os primeiros leitores e os primeiros escritores eram pioneiros. O
mundo da oralidade resistia a desaparecer — nem sequer hoje se
extinguiu totalmente — e a palavra escrita sofreu inicialmente um
certo estigma. Muitos gregos preferiam que as palavras cantassem.
As inovações não lhes agradavam muito, resmungavam e grunhiam
quando as tinham à frente. Ao contrário de nós, os habitantes do
mundo antigo achavam que o novo tinha tendência para provocar
mais degeneração do que progresso. Algo dessa hesitação
perdurou no tempo; todos os grandes avanços — a escrita, a
imprensa, a Internet… — tiveram de enfrentar detratores
apocalípticos. De certeza que alguns resmungões acusaram a roda
de ser um instrumento decadente e até à sua morte preferiram
transportar menires às costas.
No entanto, era difícil resistir à promessa da nova invenção. Toda
a sociedade aspira a perdurar e a ser recordada. O ato de escrever
prolongava a vida da memória, impedia que o passado se
dissolvesse para sempre.
Nos primeiros tempos, os poemas ainda nasciam e viajavam
pela via oral, mas alguns bardos aprenderam o traçado das letras e
começaram a transcrevê-los em folhas de papiro (ou ditaram-nos)
como passaporte para o futuro. Talvez então alguns começassem a
tomar consciência das inesperadas implicações daquela ousadia.
Escrever os poemas significava imobilizar o texto, fixá-lo para
sempre. Nos livros, as palavras ficam cristalizadas. Era preciso
escolher uma única versão dos cantos, a mais bela possível, para
que sobrevivesse às outras. Até àquele momento, o canto era um
organismo vivo que crescia e mudava, mas a escrita ia petrificá-lo.
Optar por uma versão do relato significava sacrificar todas as outras
e, ao mesmo tempo, salvá-lo da destruição e do esquecimento.
Graças a esse ato audacioso, quase temerário, chegaram até
nós duas obras memoráveis que formaram a nossa visão do mundo.
Os 15 000 versos da Ilíada e os 12 000 versos da Odisseia que
agora lemos como se fossem dois romances são um território
fronteiriço entre a oralidade e o novo mundo. Um poeta,
provavelmente educado na fluidez das recitações, mas em contacto
com a escrita, enfiou vários cantos tradicionais no fio de uma trama
coerente. Será que Homero foi essa personagem no limiar de dois
universos? Nunca o saberemos. Cada investigador imagina o seu
próprio Homero: um bardo analfabeto de tempos remotos; o
responsável pela versão definitiva da Ilíada e da Odisseia; um poeta
que lhes deu um último toque; ou um editor seduzido pela
extravagante invenção dos livros, ar escrito. Não deixa de me
fascinar que um autor tão importante para a nossa cultura seja
apenas um fantasma.
Com a escassa informação disponível, é impossível esclarecer o
mistério. A sombra de Homero desaparece em terras de penumbra.
E isso ainda torna a Ilíada e a Odisseia mais fascinantes — são
documentos excecionais que nos permitem aproximarmo-nos ao
mesmo tempo dos relatos alados e das palavras perdidas.

33

Você, que lê este livro, viveu durante alguns anos num mundo
oral. Desde o seu balbuciar hesitante até aprender a ler, as palavras
só existiam na voz. Encontrava os desenhos mudos das letras por
todo o lado, mas não significavam nada para si. Os adultos que
controlavam o mundo liam e escreviam. Você não entendia bem o
que era isso, nem lhe importava muito, porque bastava-lhe falar. Os
primeiros relatos da sua vida entraram pelos búzios das suas
orelhas; os seus olhos ainda não sabiam ouvir. Depois chegou a
escola, as linhas retas, os círculos, as letras, as sílabas. Em
pequena escala, cumpriu-se em si o mesmo movimento que a
humanidade fez da oralidade à escrita.
A minha mãe lia-me livros todas as noites, sentada à beira da
minha cama. Ela era o rapsodo; eu, o seu público fascinado. O
lugar, a hora, os gestos e os silêncios eram sempre os mesmos, a
nossa íntima liturgia. Enquanto os seus olhos procuravam o lugar
onde tinha abandonado a leitura e depois recuavam umas frases
para trás para recuperarem o fio da história, a suave brisa do relato
levava todas as preocupações do dia e os medos intuídos da noite.
Naquela altura, a leitura parecia-me um paraíso pequeno e
provisório — depois aprendi que todos os paraísos são assim,
humildes e transitórios.
A sua voz. Eu ouvia a sua voz e os sons da história que ela me
ajudava a ouvir com a imaginação: o chapinhar da água contra o
casco de um barco, o ranger suave da neve, o choque de duas
espadas, o silvo de uma seta, passos misteriosos, uivos de lobo,
cochichos atrás de uma porta. Eu e a minha mãe sentíamo-nos
muito unidas, juntas em dois lugares ao mesmo tempo, mais juntas
do que nunca mas separadas em duas dimensões paralelas, dentro
e fora, com um relógio que fazia tiquetaque no quarto durante meia
hora e anos inteiros a passarem na história, sozinhas e ao mesmo
tempo rodeadas de muita gente, amigas e espias das personagens.
Nesses anos, fui perdendo os dentes de leite, um a um. O meu
gesto preferido enquanto ela me contava histórias era abanar um
dente trémulo com o dedo, senti-lo desprender-se das suas raízes,
dançar cada vez mais solto e, quando finalmente se soltava
deitando uns fios de sangue salgados, colocá-lo na palma da minha
mão para olhar para ele — a infância estava a quebrar-se, deixava
espaços vazios no meu corpo e cacos brancos pelo caminho, e o
tempo de ouvir histórias acabaria depressa, embora eu não
soubesse disso.
E, quando chegávamos a episódios especialmente emocionantes
— uma perseguição, a proximidade do assassino, a iminência de
uma descoberta, o sinal de uma traição —, a minha mãe pigarreava,
fingia uma comichão na garganta, tossia; era o sinal combinado da
primeira interrupção. Já não consigo ler mais. Então era a minha vez
de suplicar e ficar desesperada: não, não fiques por aqui; continua
mais um bocadinho. Estou cansada. Por favor, por favor.
Interpretávamos a pequena comédia e depois ela continuava. Eu
sabia que me enganava, claro, mas assustava-me sempre. No fim,
uma das interrupções seria a sério, e ela fecharia o livro, dar-me-ia
um beijo, deixar-me-ia sozinha às escuras e dedicar-se-ia a essa
vida secreta na qual os mais velhos vivem à noite, às suas noites
apaixonantes, misteriosas, desejadas; esse país estrangeiro e
proibido para as crianças. O livro fechado ficaria em cima da mesa
de cabeceira, calado e teimoso, expulsando-me dos acampamentos
do Yukon, ou das margens do Mississippi, ou do Castelo de If, da
pousada do Almirante Benbow, do Monte de las Ánimas, da selva de
Misiones, do lago de Maracaibo, do bairro de Benia Kirk, em
Odessa, de Ventimiglia, da avenida Nevski, da ilha Baratária, do
antro da aranha Shelob na fronteira de Mordor, do páramo ao pé da
mansão dos Baskerville, de Nijni Nóvgorod, da floresta de
Sherwood, do sinistro laboratório de anatomia de Ingolstad, do
arvoredo do barão Cosimo em Ombrosa, do planeta dos baobás, da
misteriosa casa de Yvonne de Galais, do refúgio de Fagin, da ilha de
Ítaca. E, embora eu abrisse o livro no lugar oportuno, assinalado
pelo marcador, não serviria de nada, pois só veria linhas cheias de
patas de aranha que se negariam a dizer-me uma mísera palavra.
Sem a voz da minha mãe, a magia não se tornava realidade. Ler era
um feitiço, sim; conseguir que esses insetos estranhos pretos dos
livros, que então me pareciam enormes formigueiros de papel,
falassem.

34

O lugar-comum leva-nos a imaginar que as culturas orais são


primitivas, rudimentares e tribais. Se hoje medirmos o
desenvolvimento de um país em função do grau de alfabetização da
sua população, não é de estranhar que projetemos para essa etapa
pré-histórica o nosso conceito de um mundo atrasado e extinto.
Contudo, sabemos que não foi assim — pelo menos, não
necessariamente. A cultura inca peruana, por exemplo, conquistou e
governou um poderoso império, sem o apoio da escrita (para além
de um sistema de mensagens através de nós em cordas ou quipus),
e foi capaz de criar uma arte própria e uma arquitetura ciclópica que
atrai todos os anos milhares de turistas para as alturas andinas de
Cusco e Machu Picchu.
Claro que a ausência de escrita era um inconveniente cultural.
Quanto maior era a complexidade que as sociedades orais atingiam,
mais constante e angustiante se tornava para os seus habitantes a
ameaça do esquecimento. Precisavam de preservar as suas leis, as
suas crenças, as suas descobertas, o seu conhecimento técnico —
a sua identidade. Se não transmitissem os seus êxitos, cada
geração teria de voltar a começar fatigantemente desde o início.
Mas só se podiam comunicar através de um sistema de ecos, leve e
fugaz como o ar. Encontravam a sua única esperança de
permanência no tempo na frágil memória humana. Por isso,
treinavam a memória até expandirem ao máximo a sua capacidade.
Eram atletas da recordação na luta contra os seus próprios limites.
No seu esforço para se perpetuarem, os habitantes do mundo
oral aperceberam-se de que a linguagem rítmica é mais fácil de
recordar, e foi nas asas dessa descoberta que nasceu a poesia. Ao
recitar versos, a melodia das palavras ajuda a repetir o texto sem
alterá-lo, porque a música se quebra quando a sequência falha.
Todos nós tivemos de aprender poemas na escola e agora, anos
depois, após termos esquecido tantas coisas, comprovamos que
ainda nos lembramos deles com uma nitidez surpreendente.
Não é por acaso que, na mitologia grega, as musas eram filhas
da deusa Mnemósine (de onde vem a palavra «mnemónica»), a
personificação da memória como atividade: a recordação e a
evocação. Naquela época — como em todas as épocas —, ninguém
podia criar sem conseguir recordar. Apesar das suas radicais
diferenças, o bardo oral e o escritor pós-moderno têm algo em
comum: a forma de entenderem a sua obra como versão, nostalgia,
tradução e constante reciclagem do passado.
O ritmo não é apenas um aliado da memória, pois também é um
catalisador dos nossos prazeres — a dança, a música e o sexo
jogam com a repetição, o compasso e as cadências. A linguagem
também possui infinitas possibilidades rítmicas. A épica grega flui
em hexâmetros, que criam um peculiar ritmo acústico através de
combinações de sílabas longas e breves. Pelo contrário, o verso
hebraico prefere os ritmos sintáticos: «Há um breve momento para
tudo e um tempo para cada coisa sob o céu: um tempo para nascer
e um tempo para morrer; um tempo para plantar e um tempo para
arrancar o que se plantou; um tempo para matar e um tempo para
curar; um tempo para destruir e um tempo para edificar…» Dir-se-ia
que estas frases do Eclesiastes cantam e, de facto, o músico Pete
Seeger compôs uma canção, inspirada nelas — Turn! Turn! Turn!
(To everything there is a season) — que chegou ao topo das listas
de êxitos em 1965. Na origem da poesia, o prazer do ritmo foi posto
ao serviço da continuidade cultural.
Juntamente com a música linguística, descobriram-se outras
estratégias para a conservação da recordação. Os poemas orais
transmitiam os seus ensinamentos em ação, em forma de relatos, e
não de reflexões; as frases abstratas são próprias da linguagem
escrita. Nenhum poeta teria dito ao seu público algo tão pouco
cativante como: «As mentiras minam a confiança.» No seu lugar,
teria preferido contar a história do pastor brincalhão que se divertia a
alarmar as pessoas da aldeia com os seus gritos («Vem aí o lobo!»).
No tempo da oralidade, havia sempre alguma aventura em marcha,
e as personagens enganavam-se e sofriam, nos seus papéis de
ficção, as consequências para que a comunidade aprendesse as
lições. A experiência ganhava sentido e transmitia-se em forma de
relato — lenda, história, fábula, caso, piada, adivinha ou lembrança.
O mundo quimérico da oralidade imaginava histórias cheias de
vitalidade e movimento nas quais os vivos se relacionavam com os
mortos, os humanos com os deuses, e os corpos com os fantasmas,
e nas quais a relação entre o céu, a terra e o inferno permitia um
caminho de eterno retorno. Na verdade, as histórias tradicionais
humanizavam até os animais, os rios, as árvores, a lua ou a neve,
como se toda a natureza desejasse juntar-se à alegria e à vertigem
da narração. A literatura infantil ainda mantém vivo esse antigo
prazer pela ação exuberante e a alegre convivência entre animais
que falam e crianças.
A Ilíada e a Odisseia — como os poemas perdidos daquela
época — eram, de acordo com as palavras de Eric A. Havelock,
enciclopédias orais para os gregos que compilavam o seu saber
popular herdado. Contavam, com um ritmo enérgico e apaixonante,
o mito da Guerra de Troia, seguido do difícil regresso a casa dos
conquistadores gregos. A trama, o dramatismo e a aventura
prendiam a atenção do público e, dentro do relato, camuflados no
rápido rio de episódios, sucediam-se breves ensinamentos em
grupos de versos prontos para serem memorizados. Quem ouvia as
recitações aprendia noções de navegação e agricultura,
procedimentos para construir barcos ou casas, regras para celebrar
uma assembleia, tomar uma decisão coletiva, armar-se para o
combate ou preparar um funeral. Interiorizava como é que um
guerreiro se deve comportar na batalha, como se deve falar a um
sacerdote, como pronunciar um desafio ou reparar uma ofensa,
como comportar-se em casa, o que esperam os deuses dos
humanos, o que ditam as leis, os costumes e o código de honra.
Nos versos homéricos não há um indivíduo rebelde e boémio que
fala expressando a sua originalidade, mas sim a voz coletiva da
tribo.
Entre os ensinamentos herdados encontramos valiosas doses de
sabedoria antiga, mas também expressões de ideologia opressiva.
No primeiro canto da Odisseia, Telémaco manda calar a sua mãe,
Penélope, sem hesitar: «Mãe, vai para o teu quarto e dedica-te ao
teu trabalho, o tear e a roca, e vê lá se as escravas cumprem as
suas tarefas. A palavra deve ser coisa de homens, de todos, e
sobretudo coisa minha, porque sou eu que mando neste palácio.»
Ao ler hoje este episódio, ficamos sobressaltados com a rudeza do
adolescente que começa a sentir-se homem e quer tomar as rédeas
da sua casa relegando a mãe para os lavores da roca. Mas o poeta
aprova esta precoce afirmação do domínio masculino na boca do
jovem filho de Ulisses, e propõe-na ao seu público como exemplo.
Para os gregos, a palavra pertencia aos homens; era um privilégio
seu. Na Ilíada, o próprio deus Zeus repreende a sua mulher Hera
durante um banquete por tentar minar as suas intenções, e humilha-
a em público com um grosseiro «cala-te!», expresso em solenes
hexâmetros épicos. Com os seus atos e as suas palavras, as
personagens homéricas ofereciam constantemente modelos de
comportamento no lar, onde o chefe de família se tornava dono e
senhor.
Mais à frente, a Ilíada propõe-nos um exemplo de classismo,
também associado à questão candente do uso da palavra. Quando
um homem do povo, chamado Térsites — o único plebeu que
aparece no poema, descrito como o mais feio dos gregos que foram
a Troia —, ousa intervir na assembleia de guerreiros, Ulisses
empurra-o com o cetro e diz-lhe num tom imperativo para deixar
falar aqueles que são melhores do que ele, ou seja, os reis e
generais. Apesar do descaramento, o rebelde Térsites tem coragem
suficiente para lançar um discurso reivindicativo a criticar a cobiça
do rei Agamémnon: «Átrida! De que te queixas outra vez? As tuas
tendas estão a transbordar de riquezas e de mulheres. Não está
certo que aquele que é o chefe arruíne os seus guerreiros.» O
poema descreve como Ulisses fere o desbocado e coxo Térsites,
enquanto a afluência que presencia a cena aplaude, dá mostras de
apoio e explode em gargalhadas («Com o cetro bateu-lhe nas
costas e nos ombros. Encurvou-se e uma lágrima escorreu-lhe pela
face. Uma nódoa negra sanguinolenta nasceu nas suas costas por
causa do áureo cetro e sentou-se e sentiu medo»).
Enquanto desfrutamos da época homérica, com o seu poder de
fascínio e os seus instantes de beleza extrema, devemos manter-
nos atentos como leitores, conscientes de que tem origem num
mundo dominado pela aristocracia patriarcal grega, a qual o autor
enaltece sem questionar os seus valores. A possibilidade de narrar
uma história livre e transgressora é alheia a uma época em que os
poetas eram sentinelas da tradição. Seria preciso esperar até à
invenção da escrita e dos livros para que alguns escritores —
sempre em minoria — começassem a falar com a voz dos díscolos,
dos rebeldes, dos humilhados e ofendidos, das mulheres silenciadas
ou dos espancados e feios Térsites.

35

É um grande paradoxo: somos oriundos de um mundo perdido


ao qual só podemos espreitar quando desaparece. A nossa imagem
da oralidade vem dos livros. Conhecemos as palavras aladas
através do seu contrário, as palavras imóveis da escrita. Depois de
transcritas, essas narrações perderam para sempre a sua fluidez, a
sua elasticidade, a liberdade de improvisação e, em muitos casos, a
sua linguagem característica. Salvar aquela herança exigiu feri-la de
morte.
Ferida e ainda assim fascinante, a grande riqueza do imaginário
da alvorada da nossa cultura sobreviveu sem se evaporar
totalmente dos confins do tempo. Ouvimos os seus ecos distantes
na transcrição de mitologias, fábulas, sagas, canções folclóricas e
outras histórias tradicionais. Transformada, alterada e
reinterpretada, encontramo-la na Ilíada e na Odisseia, nas tragédias
gregas, na Tora — e no Antigo Testamento —, no Ramáiana, nas
Eddas, em As Mil e Uma Noites. E esses relatos exilados —
refugiados literários no país estrangeiro dos textos escritos — são
precisamente a espinha dorsal da nossa cultura.
Quando a musa aprendeu a escrever — de acordo com as
palavras de Havelock —, desencadearam-se alterações
surpreendentes. Os novos textos puderam começar a multiplicar-se
numa variedade infinita porque já não estavam sujeitos à economia
da memória. O armazém do conhecimento deixou de ser
exclusivamente acústico, converteu-se num arquivo material e,
portanto, podia ampliar-se sem limites. Assim, a literatura ganhou a
liberdade de se expandir em todas as direções, já não tinha de
administrar com avareza a limitada capacidade da recordação. E
essa liberdade também impregnou os temas e pontos de vista do
relato. Perante a oralidade, que favorecia as formas e ideias
tradicionais, reconhecíveis para o seu auditório, o discurso
alfabetizado podia abrir-se a horizontes desconhecidos porque o
leitor tinha tempo para assimilar e meditar com tranquilidade sobre
as ideias novas. Nos livros cabem formulações excêntricas, vozes
de identidades individuais, desafios à tradição.
Ao abandonar a oralidade, a linguagem experimentou
reajustamentos arquitetónicos: a sintaxe desdobrou novas
estruturas lógicas, e o vocabulário tornou-se mais abstrato. Para
além disso, a literatura encontrou novos caminhos fora da disciplina
do verso. Como o burguês fidalgo de Molière, que um belo dia se
apercebeu de que estava a falar em prosa sem sabê-lo há mais de
quarenta anos, os autores gregos descobriram que as suas
personagens podiam deixar de dialogar em hexâmetros.
A prosa converteu-se no veículo de um surpreendente universo
de factos e teorias. Os enunciados inovadores alargaram o espaço
do pensamento. Essa ampliação de perspetivas esteve na origem
da história, da filosofia e da ciência. Para se referir ao seu trabalho
intelectual, Aristóteles escolheu a palavra theoría e o verbo
correspondente theoreîn, que em grego dizem respeito ao ato de
observar algo. Essa escolha é muito reveladora: o ofício de pensar o
mundo existe graças aos livros e à leitura, ou seja, quando podemos
ver as palavras, e refletir devagar sobre elas, em vez de nos
limitarmos a ouvi-las pronunciar no veloz rio do discurso.
Todas estas transformações se deram num ritmo lento.
Costumamos imaginar que as novas invenções varrem rapidamente
os antigos hábitos, mas esses processos não se medem em anos-
luz, mas antes em anos «estalactite». Pouco a pouco, como gotas
que escorregam na pedra e deixam para trás finos rastos de calcite,
as letras criaram novas consciências e mentalidades. O abandono
da oralidade na Grécia Antiga foi uma longa etapa que englobou
desde o século VIII ao século IV a. C. Aristóteles, que reuniu uma
ampla coleção de livros — inspiradora da ambiciosa Biblioteca
alexandrina —, foi provavelmente o primeiro homem de letras
europeu em sentido estrito.
Na verdade, não devíamos falar de substituição, mas sim de uma
curiosa união entre a oralidade e a linguagem escrita, um delicado
entretecer-se. É paradoxal, por exemplo, que nas escolas gregas as
crianças aprendam a ler com a Ilíada e a Odisseia. Homero manteve
sempre o seu lugar central no ensino; tal como nos tempos da
enciclopédia oral, foi o mestre indiscutível de toda a Hélade. Por
outro lado, não há dúvida de que os grandes contadores de histórias
e os indivíduos hábeis a compor discursos continuaram a
deslumbrar os gregos, como demonstra a sua inesgotável paixão
pela retórica. Em geral, a liderança política das cidades-estado
gregas recaía em pessoas que tinham o dom da palavra. Ali nunca
existiu essa divisão característica do mundo medieval entre
senhores feudais com muito músculo mas pouco cérebro, e os
cultos letrados que redigiam os seus documentos. Os gregos
adoravam a oratória eficaz, temperada com um certo gracejo
expressivo. O estereótipo humorístico da Antiguidade apresenta-os
sempre a gabar-se, a tagarelar, a importunar. Por esse amor
desenfreado à palavra e o seu frenesim de debate, os romanos que
conquistaram a Grécia consideravam-nos irremediáveis palradores.
Se aguçarmos o ouvido, ainda ouvimos ecoar as palavras aladas
nos coros da tragédia, nos hinos de Píndaro, na história cheia de
relatos que Heródoto escreveu, nos diálogos de Platão. Ao mesmo
tempo, todas essas obras possuem um traço inovador de linguagem
e de consciência individual. Como costuma acontecer, não houve
uma rutura completa nem uma continuidade absoluta. Até a aposta
literária mais inovadora contém sempre fragmentos e despojos de
inúmeros textos prévios.
O caso de Sócrates apresenta uma chamativa amálgama do
novo e do velho. Sócrates, um pequeno artesão, passou a sua vida
a rondar pelos ginásios, pelas oficinas e pela ágora de Atenas para
entabular conversas filosóficas com quem quisesse parar para falar
com ele. Esse gosto pelo vagabundear fala-barato e o seu
desinteresse pela sua casa, para além de desgraçarem o seu
casamento com Xântipe, trouxeram-lhe fama de excêntrico. Era um
conversador formidável que sempre se recusou a escrever os seus
ensinamentos. Acusava os livros de obstaculizarem o diálogo de
ideias, porque a palavra escrita não sabe responder às perguntas e
objeções do leitor. Provavelmente, sentia-se mais próximo dos
antigos bardos de vida ao ar livre do que dos escritores de aspeto
pálido e olheiras. Contudo, a musa da filosofia, que seduziu
Sócrates e lhe inspirou o seu feliz absentismo laboral, era filha da
escrita. No mundo das tradições, uma personagem como ele, com
as suas origens humildes e a sua impactante fealdade — era baixo,
tinha o nariz achatado e a barriga imponente —, não teria tido direito
de tomar a palavra em público, pois teria tido a sorte de Térsites. No
entanto, na ilustrada Atenas do seu tempo, os aristocratas não só
renunciaram a espancá-lo em público, como o respeitaram e
patrocinaram a sua atividade filosófica ambulante.
Sócrates não foi o único grande pensador que, na encruzilhada
da comunicação, se absteve de escrever. Tal como ele, Pitágoras,
Diógenes, Buda e Jesus de Nazaré optaram pela oralidade. No
entanto, todos eles sabiam ler e dominavam a escrita. No Evangelho
de São João, Jesus baixa-se e escreve com o dedo na areia,
mesmo antes de lançar o seu famoso desafio: «Quem de entre vós
nunca tiver pecado que atire a primeira pedra.» João não nos revela
o que é que dizia a frase escrita na areia — talvez o vento tenha
levado uma máxima tão memorável como a anterior, ou apenas uma
lista de recados —, mas o essencial é que lemos toda a cena. Os
discípulos assumiram a tarefa que o seu mentor tinha rejeitado e,
graças às crónicas dos apóstolos, persiste uma imagem nítida da
sua passagem pelo mundo. Embora os mestres tenham tomado
partido pela oralidade, os livros foram o veículo decisivo para
espalhar a sua mensagem. Quando a memória era o único depósito
de palavras, os discursos dissidentes tinham possibilidades muito
escassas de se perpetuarem para além do pequeno círculo de
adeptos.
É importante matizar: na nova civilização da escrita, a oralidade
perdeu o monopólio da palavra, mas não se extinguiu e, na verdade,
continua a viver entre nós. Até ao século XX, quem sabia ler era uma
minoria em todas as sociedades, e ainda hoje existem centenas de
milhões de analfabetos no mundo. Como os antropólogos sabem, a
voz dos cantos e dos mitos nunca se calou totalmente. Entre as
duas guerras, Milman Parry, investigador da Universidade de
Harvard, viajou até aos Balcãs para testemunhar recitações épicas à
moda de Homero e tentar desvendar o enigma homérico. Para sua
surpresa, a história da sua viagem científica converteu-se numa
nova epopeia ao estilo antigo. Um bardo analfabeto interpretou em
1933 um canto que ascendia o filólogo à inesperada categoria de
herói mítico: «Um falcão cinzento voou desde os belos confins da
América, sobrevoando países e cidades, até chegar à beira do
nosso mar. A nossa história recordá-lo-á através do tempo.» Outro
investigador americano, Hiram Bingham, que duas décadas antes
deu a conhecer a jazida arqueológica de Machu Picchu, entraria no
imaginário popular convertido em Indiana Jones e brandindo o seu
famoso chicote. Durante um curto período de tempo, alguns
professores universitários conseguiram um lugar no quadro heroico
do universo épico.
Embora aparentemente possa ser paradoxal, a oralidade deve
grandes triunfos aos avanços da tecnologia. Desde tempos remotos,
o poder da voz humana só conseguia alcançar as pessoas
fisicamente presentes. A rádio e a televisão fulminaram essas
limitações — o som tanto dos discursos solenes como da conversa
fiada quotidiana está em condições de alcançar toda a população
mundial. Com a proliferação dos telemóveis, dos satélites e da rede,
as nossas palavras viajam de um extremo a outro da geografia
planetária com asas maiores do que nunca.
O cinema, que começou por ser um espetáculo mudo, perseguiu
ansiosamente a passagem para o sonoro. Enquanto a etapa
silenciosa durou, as salas deram trabalho a umas curiosas
personagens, os explicadores, que pertenciam à antiga tribo dos
rapsodos, trovadores, titereiros e narradores. A sua tarefa consistia
em ler as legendas dos filmes para o público analfabeto e animar a
sessão. No início, a sua presença era tranquilizadora porque as
pessoas assustavam-se ao verem uma projeção pela primeira vez.
Não percebiam como é que uma rua — ou uma fábrica, um
comboio, uma cidade, o mundo — podia brotar de um lençol. Os
explicadores ajudavam a suavizar o estranhamento do cinema,
quando as imagens em movimento entraram nas nossas vidas.
Apareciam munidos de artefactos como buzinas, matracas e cascas
de coco para reproduzirem os sons que se viam no ecrã.
Destacavam as personagens com um ponteiro. Respondiam às
exclamações do público. Improvisavam monólogos expressivos no
decorrer da ação. Interpretavam, davam carácter à trama silenciosa.
Arrancavam gargalhadas. No fundo, tentavam preencher o
inquietante vazio que a ausência de vozes criava. Os explicadores
mais divertidos e eloquentes chegaram a ser anunciados nos
programas dos cinemas porque muitos espectadores iam às salas
atraídos por eles, e não pelos filmes.
Heigo Kurosawa foi um admirado benshi, narrador de filmes
mudos para o público japonês. Converteu-se numa estrela; as
pessoas iam ouvi-lo em massa. Introduziu o seu irmão mais novo
Akira, que naquela altura queria ser pintor, nos ambientes
cinematográficos de Tóquio. Por volta de 1930, com a vertiginosa
chegada do som, os benshi perderam o seu trabalho, a sua fama
eclipsou-se e foram esquecidos. Heigo suicidou-se em 1933. Akira
dedicou toda a sua vida a realizar filmes como os que aprendeu a
amar na voz do seu irmão mais velho.

36

Enquanto estou mergulhada no capítulo anterior, concentrada


nas vozes distantes de tempos remotos, sou atingida pelo impacto
da agitada atualidade. Após a notícia, desencadeou-se o verborreico
concerto de comentários, indignações e ironia nas nervosas redes
sociais. Soam os «será possível?» e os «já estava na hora», a
polémica atinge o ponto de efervescência. Os jornais e as emissoras
de rádio consultam os seus especialistas habituais. Não há trégua.
O Twitter vomita a penúltima novidade inaudita: a Academia Sueca
atribuiu o Prémio Nobel da Literatura a Bob Dylan.
Assisto divertida à cacofonia mediática de apocalípticos e
integrados. Os entusiastas celebram o facto de as hierarquias e o
snobismo literário terem finalmente ido pelos ares. Os indignados
desconfiam do vanguardismo postiço do vetusto comité sueco.
Suspeitam que aqui não há intenção de dessacralizar ou expandir o
conceito de escritor, nem uma derrota dos aduaneiros de uniforme
que vigiam os limites da literatura e solicitam visto de entrada; nesta
escolha veem simples oportunismo e sede de repercussão pública.
Os mais exaltados preferem chamar-lhe banalização e perguntam-
se escandalizados qual será o passo seguinte após tamanha
insensatez. Será que a seguir ao cantor e compositor surgirá no
sancta sanctorum da academia uma matilha de filhos bastardos da
palavra — guionistas de cinema e de televisão, autores de BD e de
monólogos, programadores de videojogos e projetos transmedia,
epigramistas do Twitter? Serão eles as tribos do futuro?
Eu, invadida pelo livro que escrevo, penso em Homero, penso na
multidão de bardos itinerantes escondidos atrás do seu nome. Eles
foram os primeiros. Cantavam para entreter os ricos nos seus
palácios e as pessoas humildes nas praças das aldeias. Naquela
altura, ser poeta era uma questão de solas gastas, de pó dos
caminhos, do instrumento às costas, de recitais ao cair da noite e de
ritmo no corpo. Aqueles artistas caminhantes, os andrajosos
enviados das musas, sábios boémios que explicavam o mundo em
canções, metade enciclopedistas e metade bobos da corte, são os
antepassados dos escritores. A sua poesia veio antes da prosa, e a
sua música antes da leitura silenciosa.
Um Nobel para a oralidade. Que antigo pode chegar a ser o
futuro.

37

Quando era pequena achava que os livros tinham sido escritos


para mim, que o único exemplar do mundo estava na minha casa.
Estava convencida: os meus pais, que durante aquela época da sua
vida eram gigantes esplêndidos e todo-poderosos, tinham-se
ocupado, nos seus momentos livres, de inventar e fabricar as
histórias que me ofereciam. As minhas histórias preferidas, que eu
saboreava na cama, com a manta até ao queixo, na voz
inconfundível da minha mãe, existiam, claro está, só para que eu as
ouvisse. E cumpriam a sua única missão no mundo quando eu
exigia à gigante narradora: «Mais!»
Cresci, mas continuo a manter uma relação muito narcisista com
os livros. Quando um relato me invade, quando a sua chuva de
palavras penetra em mim, quando compreendo de forma quase
dolorosa o que conta, quando tenho a segurança — íntima, solitária
— de que o seu autor mudou a minha vida, volto a acreditar que eu,
especialmente eu, sou a leitora de quem esse livro andava à
procura.
Nunca perguntei a ninguém se sente algo parecido. No meu
caso, tudo tem origem no país da infância, e acho que há um motivo
essencial: o meu primeiro contacto com a literatura foi como leitura
em voz alta; como encruzilhada onde confluem todos os tempos —
o presente da escrita e o passado da oralidade; como pequeno
teatro com um só espectador, como encontro fiel, como oração
libertadora. Se alguém lê para ti, deseja o teu prazer; é um ato de
amor e um armistício no meio dos combates da vida. Enquanto
ouves com atenção sonhadora, o narrador e o livro fundem-se numa
única presença, numa só voz. E, da mesma forma que o teu leitor
modula para ti as inflexões, os sorrisos ténues, os silêncios e os
olhares, a história também é tua por direito inalienável. Nunca
esquecerás quem te contou uma boa história na penumbra de uma
noite.
Uma mulher ouve o seu amante adolescente ler em cada um dos
seus encontros eróticos. Fascina-me imaginar esses momentos
descritos em O Leitor, de Bernhard Schlink. Tudo começa com a
Odisseia, que o rapaz traduzia nas suas aulas de grego da escola.
Lê-mo, diz ela. Tens uma voz muito bonita, rapazinho. Quando ele
tenta beijá-la, ela afasta a cara: primeiro tens de me ler alguma
coisa. A partir desse dia, o ritual dos seus encontros inclui sempre a
leitura. Durante meia hora — antes do banho, do sexo e do repouso
—, na intimidade do desejo, ele vai desenovelando histórias
enquanto a mulher, Hanna, ouve com atenção, às vezes rindo-se ou
bufando com desprezo, ou fazendo exclamações indignadas. Ao
longo dos meses e dos livros — Schiller, Goethe, Tolstói, Dickens
—, o rapaz de voz insegura aprende as habilidades do narrador.
Quando chega o verão e os dias ficam mais compridos, dedicam
ainda mais tempo à leitura. Numa tarde de sufocante calor estival,
depois de terminarem um livro, Hanna nega-se a começar outro. É o
seu último encontro. Dias depois, o rapaz chega à hora habitual e
toca à campainha, mas a casa está vazia. Ela desapareceu de
repente, sem explicações — o final das leituras marcou o final da
sua história. Durante anos, ele não pode ver um livro sem pensar
em partilhá-lo com Hanna.
Algum tempo depois, enquanto estuda Direito numa universidade
alemã, ele descobre por acaso a obscura história da sua antiga
amante: foi guarda num campo de concentração nazi. Ali também
fazia com que as prisioneiras lhe lessem livros, noite após noite,
antes de metê-las no comboio que as conduzia a uma morte certa
em Auschwitz. Por certos indícios, atando as pontas soltas,
compreende que Hanna é analfabeta. Reconstrói a história de uma
jovem emigrada do mundo rural, sem educação, acostumada a
trabalhos insignificantes, que se embriaga com a autoridade num
campo feminino perto de Cracóvia. É sobre essa nova revelação
que se explica a dureza de Hanna, que às vezes roçava a
crueldade, os seus silêncios, as suas reações incompreensíveis, a
sua sede de leituras em voz alta, a sua marginalização, os seus
esforços para se esconder, o seu isolamento. As lembranças
amorosas do jovem estudante tingem-se de horror e, no entanto,
toma a decisão de gravar a Odisseia em cassetes e de mandá-las
para a prisão para aliviar a solidão dela. Enquanto Hanna cumpre a
sua longa pena, ele não deixa de lhe enviar gravações de Tchékhov,
Kafka, Max Frisch, Fontane. Presos num labirinto de culpa,
surpresa, memória e amor, os dois resguardam-se no antigo refúgio
das leituras em voz alta. Esses anos de narrações partilhadas
revivem as mil e a umas noites em que Xerazade acalmou com os
seus relatos o sultão assassino. Náufragos da catástrofe da
Segunda Guerra Mundial e com as feridas europeias ainda em
carne viva, o protagonista e Hanna regressam às antigas histórias
em busca de absolvição, de cura, de paz.

A revolução aprazível do alfabeto

38

Nós, habitantes do século XXI, assumimos que toda a gente


aprende a ler e a escrever na infância. Parece-nos um
conhecimento acessível, ao alcance de qualquer um. Nem sequer
imaginamos que possam existir entre nós pessoas analfabetas,
como Hanna.
Mas existem (670 000 em Espanha, em 2016, de acordo com os
dados do Instituto Nacional de Estatística1). Eu conheci uma.
Testemunhei a sua impotência perante situações quotidianas como
orientar-se na rua, encontrar a plataforma correta de uma estação,
decifrar a fatura da luz — embora me pergunte se alguns de nós,
que sabemos ler, entendemos a confusão das tarifas elétricas —,
poder votar ou escolher um prato num restaurante. Só os lugares
conhecidos e as rotinas repetidas acalmavam a sua angústia num
mundo no qual era incapaz de se orientar como os outros. Dedicava
um esforço esgotante a ocultar a sua condição de analfabeta —
«esqueci-me dos óculos em casa; não se importa de me ler isto?»
—, e essa necessidade de fingir acabava por marginalizá-la das
relações normais com os outros. Lembro-me sobretudo do
desamparo, do repertório de pequenas mentiras necessárias para
pedir ajuda aos desconhecidos sem passar vergonha, da minoria de
idade sem fim. Em A Cerimónia, o cineasta Claude Chabrol captou o
lado obscuro e inquietante desta silenciosa exclusão mostrando a
violência reprimida da protagonista, ironicamente chamada Sophie.
Baseava-se num romance policial de Ruth Rendell, Corações de
Pedra, que descreve a obsessão desesperada — e, no final,
sangrenta — de uma mulher analfabeta para proteger o seu
segredo.
Lemos mais do que nunca. Estamos cercados por cartazes,
rótulos, publicidade, ecrãs, documentos. As ruas estão a transbordar
de palavras, desde os grafítis das paredes até aos anúncios
luminosos. Piscam nos telemóveis e nos ecrãs dos computadores.
Textos em diferentes formatos convivem connosco na nossa casa
como calmos animais de estimação. Nunca tinha havido tantos. Os
nossos dias estão atravessados por contínuas rajadas de letras
escritas e alarmes que anunciam a sua chegada. Dedicamos várias
horas da nossa jornada e do nosso ócio a tamborilar sobre
diferentes teclados. Quando nos pedem para preenchermos um
formulário diante de um guiché, nunca ninguém tem a cortesia de
nos perguntar se sabemos ler. Até nas situações mais correntes
seríamos excluídos se não fôssemos capazes de escrever com
rapidez.
Ana María Moix contou-me uma vez que, nos anos setenta,
acabou num almoço com a prodigiosa camada do boom latino-
americano: Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Bryce
Echenique, José Donoso, Jorge Edwards… Entraram num
restaurante de Barcelona onde era preciso apontar o pedido e
entregá-lo por escrito ao empregado. Mas eles, a beber e a
conversar, ignoraram o menu e as aproximações interrogativas dos
empregados. No fim, o maître teve de interrompê-los, irritado com
tanta conversa fiada apaixonada e tão pouco interesse
gastronómico. Aproximou-se deles e, sem reconhecê-los, perguntou
com uma voz irritada: «Mas nesta mesa ninguém sabe escrever?»
Hoje assumimos que, à nossa volta, a imensa maioria das
pessoas lê e escreve. Tal como a informática, a escrita foi no início
um espaço dedicado apenas a alguns especialistas. Sucessivas
simplificações permitiram que milhões de pessoas utilizassem essas
ferramentas na sua vida quotidiana. Para esta progressão — que,
no caso dos computadores, se verificou em apenas umas décadas
—, foram necessários milhares de anos na história da escrita. A
rapidez das mudanças não é um dos traços distintivos do passado
remoto.
Há seis mil anos, apareceram os primeiros sinais escritos na
Mesopotâmia, mas a origem desta invenção está envolta em
silêncio e em mistério. Algum tempo depois, e de forma
independente, a escrita também nasceu no Egito, na Índia e na
China. A arte da escrita teve, segundo as teorias mais recentes,
uma origem prática: as listas de propriedades. Estas hipóteses
afirmam que os nossos antepassados aprenderam o cálculo antes
das letras. A escrita veio resolver um problema de proprietários ricos
e administradores palacianos, que precisavam de fazer anotações
porque lhes era difícil organizar a contabilidade de forma oral. O
momento de transcrever legendas e relatos chegaria depois. Somos
seres económicos e simbólicos. Começámos a escrever inventários,
e depois invenções (primeiro as contas; de seguida as histórias).
Os primeiros apontamentos eram desenhos esquemáticos (uma
cabeça de boi, uma árvore, um jarro de azeite, um homem
pequeno). Com esses traços, os antigos latifundiários inventariavam
os seus rebanhos, os seus bosques, a sua despensa e os seus
escravos. No início, imprimiam essas formas em argila com
pequenas marcas e mais tarde traçavam-nas com cálamos. Os
desenhos tinham de ser simples, e sempre os mesmos, para que se
pudessem aprender e decifrar. O passo seguinte foi desenhar ideias
abstratas. Nas primitivas tabuinhas sumérias duas riscas cruzadas
descreviam a inimizade; duas riscas paralelas, a amizade; um pato
com um ovo, a fertilidade. Gosto de imaginar os nossos ancestrais a
saborearem a excitação de expressarem os seus pensamentos pela
primeira vez; quando descobriam que o amor, o ódio, o terror, o
desalento e a esperança se podiam escrever.
Equacionou-se de imediato um problema: são necessários
demasiados desenhos para dar conta do mundo exterior e interior —
das pulgas às nuvens, da dor de dentes ao medo de morrer. O
número de sinais não parava de aumentar, sobrecarregando a
memória. A solução foi uma das maiores genialidades humanas,
original, simples e de incalculáveis consequências: deixar de
desenhar as coisas e as ideias, que são infinitas, para começar a
desenhar os sons das palavras, que são um repertório limitado.
Assim, através de sucessivas simplificações, chegaram às letras.
Combinando letras conseguimos a mais perfeita partitura da
linguagem, e a mais duradoura. Mas as letras nunca deixaram para
trás o seu passado de desenhos esquemáticos. O nosso «D»
representava originalmente uma porta, o «M» o movimento da água,
o «N» era uma serpente e o «O» um olho. Ainda hoje em dia, os
nossos textos são paisagens, onde pintamos — sem sabê-lo — a
ondulação do mar, onde espreitam perigosos animais e olhares que
não pestanejam.

39

Os primitivos sistemas eram verdadeiros labirintos de símbolos.


Misturavam desenhos figurativos — pictogramas e ideogramas —,
sinais fonéticos e marcas diferenciadoras que ajudavam a resolver
ambiguidades. Dominar a escrita exigia conhecer até mil símbolos e
as suas complicadas combinações. Esse conhecimento —
complexo e maravilhoso — estava apenas ao alcance de uma seleta
minoria de escribas que tinham um ofício privilegiado e secreto. Os
aprendizes, de origem nobre, tinham de sobreviver a um despiedado
ensinamento. Um texto egípcio diz «o ouvido do rapaz está nas
suas costas; só ouve quando lhe bates!» Nas escolas de escribas,
os rapazes, com as costas cheias de cicatrizes, amadureciam
durante anos à base de sovas e de disciplina violenta. Não era
permitido preguiçar, e o castigo para os maus alunos podia chegar a
ser a prisão. Contudo, se suportassem a crueldade e a monotonia
da aprendizagem, escalavam até ao topo das hierarquias religiosas.
Os mestres da escrita formavam uma aristocracia por vezes mais
poderosa do que a dos cortesãos analfabetos ou do que o próprio
soberano. A consequência desse sistema de ensino foi que, durante
muitos séculos, a escrita só deu voz ao poder estabelecido.
A invenção do alfabeto derrubou muros e abriu portas para que
muitas pessoas, e não apenas um conclave de iniciados, pudessem
aceder ao pensamento escrito. A revolução foi iniciada entre os
povos semíticos. Partindo do complicado sistema egípcio, chegaram
a uma fórmula de surpreendente simplicidade. Retiveram apenas os
sinais que representavam as consoantes simples, a arquitetura
básica das palavras. Os vestígios mais antigos do alfabeto foram
encontrados numa parede rochosa cheia de grafítis, perto de uma
árida estrada em Wadi el-Hol («o Vale Terrível»), que atravessa o
deserto entre Abidos e Tebas, no Alto Egito. Estas simples
inscrições de emigrantes, datadas de 1850 a. C., estão relacionadas
com a antiga escrita alfabética da península do Sinai e do território
cananeu na Síria-Palestina. Por volta de 1250 a. C., os fenícios —
cananeus que habitavam em cidades costeiras como Biblos, Tiro,
Sídon, Beirute e Ascalão — chegaram a um sistema de vinte e dois
sinais. Para trás ficaram as escritas antigas que exigiam uma
esgotante carga para a memória e uma longa especialização
apenas ao alcance de mentes privilegiadas. Usar menos de trinta
letras para representar todas as palavras da língua poderia parecer
um método muito tosco a um escriba egípcio, habituado a utilizar
centenas de símbolos. Teria franzido o nariz e arqueado as
sobrancelhas diante da nossa anódina letra «E», derivada de um
belo hieroglífico egípcio — um homem a levantar os braços — que
tinha um poético significado: «Transmites alegria com a tua
presença.» Pelo contrário, para os astutos viajantes fenícios, a
questão adquiria um carácter muito diferente. A simplificada escrita
alfabética libertava o comerciante do poder do escriba. Graças a ela,
cada um podia manter os seus próprios registos e dirigir os seus
negócios.
O impacto da invenção não afetou apenas os mercadores, pois
alcançou também muitos que, fora dos círculos do governo e dos
colégios sacerdotais, longe das sentinelas da ortodoxia, puderam
pela primeira vez aceder às histórias da tradição por escrito,
distanciar-se do seu feitiço oral e começar a duvidar delas. Foi
assim que nasceram o espírito crítico e a literatura escrita. Certos
indivíduos atreveram-se a deixar uma marca dos seus sentimentos,
das suas incredulidades e da sua própria visão da vida. Os livros
converteram-se pouco a pouco num veículo de expressão individual.
Em Israel, as vozes dos combativos profetas, que não eram
necessariamente escribas nem sacerdotes, surgiram na Bíblia; na
Grécia, pessoas sem origens aristocráticas converteram-se em
pesquisadores curiosos de respostas para explicar o mundo à sua
volta. Embora os rebeldes e revolucionários continuassem a ser tão
prejudicados como antes, os seus ideais tinham novas
possibilidades de lhes sobreviverem e de se difundirem. Graças ao
alfabeto, algumas causas perdidas ganharam-se com o tempo.
Mesmo se a maior parte dos textos continuaram a consolidar o
poder de reis e senhores, abriram-se interstícios para vozes
indómitas. As tradições perderam um pouco da sua solidez
inamovível. Ideias inovadoras abanaram as vetustas estruturas
sociais.
Por volta do ano 1000 a. C., encontramos a escrita fenícia num
poema esculpido no túmulo de Ahiram, rei de Biblos (hoje chamada
Jubla), cidade famosa pelo seu comércio de exportação de papiros,
e de onde é originária a palavra grega com a qual se designa o livro:
biblíon. Todos os posteriores ramos da escrita alfabética descendem
deste sistema dos fenícios. A mais importante foi a aramaica, da
qual por sua vez provinham a família hebraica, árabe e indiana.
Desta mesma matriz também derivou o alfabeto grego, e mais tarde
o latino, que se enraizou nos territórios que se estendem da
Escandinávia ao Mediterrâneo, bem como nos grandes espaços
antigamente colonizados por ocidentais.

40

Os gregos adotaram a escrita fenícia em completa liberdade,


sem qualquer imposição. Adaptaram a invenção às suas
necessidades e, ao lento ritmo de uma mudança desejada, foram
pondo por escrito as tradições orais que mais amavam, salvando-as
das fragilidades da memória. Desfrutaram da mesma independência
na sua época oral e na sua vida alfabética. É um caso excecional;
muitas culturas orais, pelo contrário, acabaram numa brusca colisão,
cercadas ou invadidas por povos que lhes impuseram a sua língua e
a palavra escrita à força. Os antropólogos e etnólogos conseguiram
encontrar testemunhos vivos desta mudança para a escrita em
países colonizados onde o aparecimento do alfabeto, juntamente
com o trauma das invasões, está percorrido por um rasto de
violência.
O romance No Longer at Ease, do escritor nigeriano Chinua
Achebe, reflete sobre esse conflituoso amor pelas letras invasoras.
Após o desembarque ocidental e os primeiros vislumbres da
aniquilação do mundo milenar em que nasceram, as personagens
desta história descobrem, fascinadas, a escrita. Ao mesmo tempo,
pressentem com dor que, nas mãos dos colonos, esse mágico
instrumento despojá-los-ia do seu próprio passado. A civilização
estrangeira possui o feitiço para se perpetuar; entretanto, o universo
indígena desmorona-se. «O símbolo do poder branco era a palavra
escrita. Uma vez, antes de ir para Inglaterra, Obi ouviu um familiar
analfabeto falar com profunda emoção sobre os mistérios da palavra
escrita: antes, as nossas mulheres faziam desenhos negros no
corpo com a seiva do uli. Era bonito, mas durava pouco. Se durasse
duas semanas de mercado já era muito. Mas por vezes os nossos
idosos falavam de um uli que não perdia a sua cor, embora nenhum
o tivesse visto. Hoje vemo-lo na escrita do homem branco. Se fores
aos tribunais nativos e olhares para os livros dos escrivães de há
vinte anos ou mais, ainda estão como no dia em que os escreveram.
Não dizem uma coisa hoje e outra amanhã, ou uma coisa este ano e
outra no próximo. Num livro, Okoye hoje não pode ser Okonkwo
amanhã. Na Bíblia, Pilatos diz: “O que está escrito, escrito está”. É
um uli que nunca desbota.»

41
Não sabemos o seu nome, nem onde nasceu, nem quanto tempo
viveu. Chamar-lhe-ei «ele» porque o imagino homem. As mulheres
gregas da época não tinham liberdade de movimentos. Não lhes
permitiam a independência e a iniciativa para fazerem algo assim.
Ele viveu no século VIII a. C., há vinte e nove séculos. Mudou o
meu mundo. Enquanto escrevo estas linhas sinto-me grata a esse
desconhecido esquecido que, com a sua inteligência, conseguiu um
avanço maravilhoso, embora talvez não fosse consciente da
importância da sua descoberta. Imagino-o viajante, talvez ilhéu. De
certeza que foi amigo de experientes mercadores fenícios de rosto
bronzeado. Provavelmente, bebeu com eles nas tabernas dos
portos, à noite, a aspirar o cheiro do salitre no ar misturado com o
fumo que subia de um pratinho de choco em cima da mesa,
enquanto ouvia histórias do mar. Barcos a cavalgar nas
tempestades, ondas como cordilheiras, naufrágios, costas
estranhas, misteriosas vozes de mulher na noite. Mas o que o
fascinava era sobretudo um talento dos marinheiros aparentemente
humilde e sem épica. Como é que uns simples mercadores podiam
escrever tão depressa?
Os gregos tinham conhecido a escrita na época do apogeu
cretense e dos reinos micénicos, com as suas constelações de
sinais arcanos apenas ao serviço da contabilidade palaciana.
Sistemas silábicos de grande complexidade e um uso muito
limitado, elitista. Os tempos de pilhagens e invasões, juntamente
com a pobreza dos últimos séculos, tinham quase sepultado no
esquecimento aqueles labirintos de sinais. Para ele, para quem a
arte da escrita era um símbolo de poder, os rápidos traços dos
marinheiros fenícios foram uma revelação. Sentiu surpresa,
vertigem, desejo de possuir o seu segredo. Decidiu decifrar os
mistérios da palavra escrita.
Conseguiu um ou vários informantes letrados, talvez pagando-
lhes do seu próprio bolso. O lugar onde se deram os encontros foi,
provavelmente, uma ilha (as melhores candidatas são Tera, Melos e
Chipre) ou até a costa libanesa (como, por exemplo, o porto de Al-
Mina, onde os mercadores eubeus estavam em constante contacto
com os fenícios). Com os seus improvisados mestres, aprendeu a
mágica ferramenta que permitia capturar a marca das infinitas
palavras com apenas vinte e dois simples desenhos. Soube apreciar
a audácia da invenção. Ao mesmo tempo, descobriu que a escrita
fenícia continha enigmas: só se anotavam as consoantes de cada
sílaba, deixando para o leitor a tarefa de adivinhar as vogais. Os
fenícios tinham sacrificado a exatidão em prol de uma maior
facilidade.
A partir do modelo fenício, ele inventou, para a sua língua grega,
o primeiro alfabeto da História sem ambiguidades — tão preciso
como uma partitura. Começou por adaptar cerca de quinze sinais
fenícios consonânticos na sua mesma ordem, com um nome
parecido (aleph, bet, gimel… converteram-se em «alfa», «beta»,
«gama»...). Pegou em letras que não eram úteis para a sua língua,
as chamadas consoantes débeis, e usou os seus sinais para as
cinco vogais que, no mínimo, eram necessárias. Só foi inovador
onde achou que era capaz de melhorar o original. O seu êxito foi
enorme. Graças a ele, difundiu-se na Europa um alfabeto
melhorado, com todas as vantagens da descoberta fenícia e um
novo avanço acrescentado: a leitura deixou de estar sujeita à
conjetura e, portanto, tornou-se ainda mais acessível. Imaginemos
como seria ler esta frase sem vogais: mgnms cm sr lr st frs sm vgs.
Pensemos por um instante na dificuldade de identificar a palavra
«ideia» a partir da consoante «D» ou «aéreo» apenas desde um
«R».
Não sabemos nada sobre esse desconhecido; só nos resta a
fantástica ferramenta que nos ofereceu. A sua identidade é uma
marca apagada pelas ondas, mas não há dúvida de que existiu. Os
especialistas pensam que a invenção do alfabeto grego não foi um
processo anónimo a cargo de uma coletividade sem nome nem
rosto. Foi um ato individual, deliberado e inteligente que exigiu uma
grande sofisticação auditiva para identificar as partículas básicas —
consoantes e vogais — que compõem as palavras. Um
acontecimento único que se realizou num determinado momento e
num único lugar. Na história da escrita grega não há indícios de uma
passagem gradual de um sistema menos completo para um mais
acabado. Também não há rastos de formas intermédias, ensaios,
hesitações, nem retrocessos. Houve alguém — já nunca
averiguaremos quem —, um sábio anónimo, assíduo de tabernas
até ao amanhecer, amigo dos navegantes forasteiros num lugar
banhado pelo mar, que se atreveu a forjar as palavras do futuro
dando forma a todas as nossas letras. E nós, essencialmente,
continuamos a escrever da mesma maneira que o criador deste
instrumento prodigioso imaginou.

42

Graças ao alfabeto, a escrita mudou de mãos. Na época dos


palácios micénicos, um reduzido grupo de especialistas e escribas
registavam em tabuinhas de barro a contabilidade do palácio. Os
monótonos inventários de riquezas são o único rasto escrito daquela
época. Pelo contrário, na Grécia do século VIII a. C., a nova invenção
revelou uma paisagem diferente. Os primeiros vestígios alfabéticos
que conhecemos apareceram em vasos de cerâmica ou na pedra.
As palavras que os oleiros e os canteiros gravaram já não falam de
vendas e de posses — escravos, bronze, armas, cavalos, azeite ou
gado. Eternizam instantes especiais das vidas de pessoas comuns
que participam em banquetes, que dançam, bebem e celebram os
seus prazeres.
Sobreviveram cerca de vinte inscrições datadas entre o ano 750
e 650 a. C. A mais antiga é a inscrição de Dipylon, encontrada num
antigo cemitério de Atenas. O exemplo mais remoto de escrita
alfabética, embora incompleto, é um verso sensual e evocador: «O
bailarino que dance com maior destreza…» Essas simples palavras
transferem-nos para um simpósio realizado numa residência grega
com risos, jogos, vinho e um concurso de dança para os convidados
cujo prémio era o próprio vaso. Homero descreveu na Odisseia este
tipo de competições festivas, que eram frequentes nos banquetes e
para os gregos faziam parte do seu conceito de boa vida. A julgar
pelos termos da inscrição, o tipo de dança seria acrobática,
enérgica, carregada de erotismo. Por isso imaginamos que o
vencedor do concurso devia ser muito jovem, capaz de fazer um
grande esforço físico, as piruetas e os saltos que a dança exigia.
Sentiu-se tão orgulhoso que conservou sempre a recordação
daquele dia feliz e, muitos anos depois, pediu que o enterrassem
com o troféu da sua vitória. No seu túmulo, após vinte e sete
séculos de silêncio, encontrámos o vaso e, gravado nele, esse verso
que conserva ecos de música e marcas de uns belos passos de
dança.
A segunda inscrição mais próxima — de cerca de 720 a. C. —
também foi encontrada num túmulo da ilha de Ísquia, no extremo
ocidental do mundo grego. Diz: «Eu sou o delicioso copo de Nestor.
Quem beber deste copo será logo tomado pelo desejo de Afrodite,
coroado de beleza.» É uma homenagem à Ilíada, escrita em
hexâmetros. O copo de Nestor demonstra que até numa ilha
periférica, num mundo de comerciantes e navegadores, o
conhecimento de Homero era implacável. E revela-nos que a magia
das letras convertia simples objetos quotidianos, como um copo ou
uma vasilha de cerâmica, em posses valiosas que acompanhavam
os seus proprietários até ao túmulo. Uma nova época estava a
começar. O alfabeto tirou a escrita para fora da atmosfera fechada
dos armazéns do palácio e fê-la dançar, beber e sucumbir ao
desejo.

Vozes que saem do nevoeiro, tempos indecisos

43

Na infância balbuciante da escrita, as vozes que narravam


histórias abandonaram o nevoeiro do anonimato. Os autores
queriam ser recordados, vencer a morte com a força dos seus
relatos. Sabemos quem são. Dizem-nos os seus nomes para que os
salvemos do esquecimento. Por vezes até saem dos bastidores do
relato para falarem na primeira pessoa, um atrevimento que o
invisível narrador da Ilíada e da Odisseia nunca se permite.
Percebemos a mudança ao ler Hesíodo, que criou as suas
principais obras em redor da mudança de século, ou seja, por volta
do ano 700 a. C. Os seus hexâmetros conservam o sabor da
originalidade, mas contêm um ingrediente novo: a origem do que
hoje chamamos autoficção. Com a sua forma abrupta e desinibida,
Hesíodo — autor, narrador e personagem — dá-nos detalhes sobre
a sua família, as suas experiências e a sua forma de vida. Talvez se
possa dizer que é o primeiro indivíduo da Europa a fazê-lo e um
afastado avô literário de Annie Ernaux ou Emmanuel Carrère.
Hesíodo conta que o seu pai emigrou da Ásia Menor para a Beócia
«a fugir não precisamente da abundância, da felicidade e da
riqueza, mas sim da escassez». Com o seu habitual humor ácido,
critica a vilória imunda onde a família se instalou, chamada Ascra,
«aldeia mísera, má no inverno, dura no verão, e nunca boa».
Descreve como nasceu a sua vocação poética. Hesíodo era um
jovem pastor que passava os seus dias na solidão da montanha, a
dormir no chão com o gado do pai. Enquanto vagueava pelos pastos
de verão, construiu um mundo imaginário, feito de versos, música e
palavras. Um mundo interior ao mesmo tempo celestial e perigoso.
Um dia, quando estava a pastar o rebanho ao pé do monte Hélicon,
teve uma visão. Apareceram-lhe à frente as nove musas,
ensinaram-lhe um canto, transmitiram-lhe o seu dom e puseram nas
suas mãos um ramo de louro. Ao adotá-lo, disseram-lhe uma frase
inquietante: «Sabemos contar mentiras que parecem verdades, e
sabemos, quando queremos, proclamar a verdade.» É uma das
reflexões mais antigas sobre a ficção — essa mentira sincera — e,
talvez, uma confissão íntima. Gosto de pensar que Hesíodo, o
menino poeta rodeado de silêncio, balidos e bosta, como séculos
mais tarde Miguel Hernández, revela aqui a sua obsessão pelas
palavras. As palavras que ama e o aterram pelo poder que têm no
mundo, pela má utilização que se pode fazer delas.
Em Os Trabalhos e os Dias, este pastor poeta relata a épica do
seu presente, não as façanhas do passado. Descreve um tipo de
heroísmo diferente: a dura luta para sobreviver em condições
difíceis. Usa os solenes hexâmetros homéricos para falar da
semeadura e da poda, de castrar porcos e do grasnido dos grous,
de espigas e de carrascas, da porca terra, do vinho que aquece as
frias noites no campo. Forja mitos, fábulas de animais e máximas de
rude sabedoria campestre. Arremete contra o seu irmão Perses,
com quem se zangou por causa da herança. Divulga sem pudor as
escabrosas lutas familiares pela divisão do património e não se
preocupa se parece avarento; pelo contrário, é um lavrador
orgulhoso de saber quanto é que vale a terra. Explica-nos que o
preguiçoso e desavergonhado do seu irmão levou-o a litígio e, não
contente com essa extrema maldade, está a tentar subornar o juiz.
De seguida, lança-se a denunciar a avidez dos pequenos caciques e
as maquinações dos tribunais. Usa expressões maravilhosamente
mordazes, como «juízes papa-presuntos». Furioso e sombrio ao
estilo dos profetas, ameaça as autoridades com o castigo divino
que, para engordarem a sua bolsa, favorecem sempre os poderosos
e roubam os camponeses pobres. Hesíodo já não canta os ideais da
aristocracia. É um herdeiro do feio Térsites, que na Ilíada
recriminava o rei Agamémnon que prosperava à custa do esforço de
todos numa guerra da qual só ele beneficiava.
Muitos gregos da sua época desejavam uns alicerces mais justos
para a vida em comum e uma distribuição mais equitativa das
riquezas. Os Trabalhos e os Dias falava a essas pessoas sobre o
valor do trabalho paciente e delicado, sobre o respeito pelo outro e a
sede de justiça. O tempo do alfabeto fez com que fosse possível
que o ácido protesto de Hesíodo perdurasse. Apesar das — ou
talvez graças às — suas palavras insultuosas contra os reis, o
poema acabou por se converter num livro imprescindível e depois
em texto escolar. Ali, entre os sulcos de uma pequena propriedade
em litígio da mísera Ascra, no noroeste da Ática, começa a
genealogia da poesia social.

44

O alfabeto — segundo Eric A. Havelock — era no início um


intruso sem posição social. A elite da sociedade continuava a recitar
e a atuar. O uso da escrita espalhou-se em passos lentos,
paulatinos, suaves. No início, e durante séculos, os relatos
ganhavam forma na folha em branco da mente e tornavam-se
públicos ao lê-los em voz alta. De certa forma, estavam todos
concebidos para a comunicação oral. As versões escritas dos livros
eram apenas um seguro contra o esquecimento. Os textos mais
antigos serviam como partituras musicais da linguagem, que só os
especialistas — autores e intérpretes — usavam e liam. A música
das palavras chegava ao público através dos ouvidos, não pela
visão.
Por volta do século VI a. C., nasceu a prosa e, com ela, os
escritores propriamente ditos, que já não construíam as suas obras
nos misteriosos passadiços da memória, pois sentavam-se a traçar
letras em tabuinhas ou em papiros. Os próprios autores começaram
a escrever os seus textos, ou a ditá-los a um secretário. As poucas
cópias que se faziam, se é que se faziam, quase não circulavam.
Por isso, não há marcas de indústria nem de comércio de livros na
época arcaica.
Contudo, a própria oralidade transformou-se ao entrar em
contacto com o alfabeto. Depois de escritas, as palavras
começaram a ficar ancoradas na sua ordem, como notas num
pentagrama. A melodia das frases permanecia igual para sempre; a
torrente espontânea, a agilidade na resposta e a liberdade da
linguagem falada desapareceram. Na época micénica antiga, os
aedos itinerantes costumavam cantar as lendas heroicas ao som do
seu instrumento e deixavam-se levar pelo encanto da improvisação;
mas, com o aparecimento dos livros escritos, foram substituídos
pelos rapsodos, que recitavam textos memorizados — sempre
idênticos e sem acompanhamento musical —, dando pancadas de
metrónomo com uma bengala para marcarem o ritmo.
Na época de Sócrates, os textos escritos ainda não eram uma
ferramenta habitual e continuavam a despertar receio.
Consideravam-nos um sucedâneo da palavra oral — leviana, alada,
sagrada. Embora a Atenas do século v a. C. já tivesse um incipiente
comércio de livros, só um século depois, no tempo de Aristóteles, é
que se chegou a contemplar o hábito de ler sem estranheza. Para
Sócrates, os livros eram ajudas da memória e do conhecimento,
mas pensava que os verdadeiros sábios fariam bem em desconfiar
deles. Esta questão inspirou um diálogo platónico intitulado Fedro,
que decorre a poucos passos das muralhas de Atenas, à sombra de
um frondoso plátano na margem do rio Ilissos. Ali, na hora morna da
sesta, com a banda sonora das cigarras, nasce uma conversa sobre
a beleza que deriva misteriosamente para o ambíguo dom da
escrita.
Há séculos, diz Sócrates a Fedro, o deus Theuth do Egito,
inventor dos dados, do jogo das damas, dos números, da geometria,
da astronomia e das letras, visitou o rei do Egito e ofereceu-lhe
estas invenções para ele as ensinar aos seus súbditos. Traduzo as
palavras de Sócrates: «O rei Thamus perguntou-lhe então que
utilidade tinha escrever, e Theuth respondeu-lhe: — Este
conhecimento, oh rei, tornará os egípcios mais sábios; é o elixir da
memória e da sabedoria. Então Thamus disse-lhe: — Oh Theuth,
por seres o pai da escrita dás-lhe vantagens que não tem. O que as
letras produzirão é esquecimento em quem as aprender, ao
descurar a memória, já que, fiando-se dos livros, chegarão à
recordação desde fora. Será, portanto, a aparência da sabedoria,
não a sua verdade, o que a escrita dará aos homens; e, quando
tiver feito deles entendidos em tudo sem uma verdadeira instrução,
será difícil suportar a sua companhia, porque se julgarão sábios em
vez de o serem.»
Depois de ouvir o exótico mito egípcio, Fedro diz estar de acordo
com o seu mestre. É o habitual nos educados seguidores de
Sócrates, que nunca ousam contrariá-lo. Na verdade, nos diálogos
de Platão, os discípulos dizem sem parar frases como: «É bem
verdade, Sócrates», «Concordo contigo, Sócrates», «Vejo que tens
razão de novo, Sócrates». Embora o seu interlocutor já se tenha
rendido, o filósofo lança a estocada final: «A palavra escrita parece
falar contigo como se fosse inteligente, mas se lhe perguntas
alguma coisa, porque desejas saber mais, continua a repetir-te o
mesmo sem parar. Os livros não são capazes de se defenderem.»
Sócrates temia que os homens abandonassem o esforço da
própria reflexão por causa da escrita. Suspeitava que, graças ao
auxílio das letras, se confiaria o saber aos textos e, sem o empenho
de compreendê-los a fundo, bastaria tê-los ao alcance da mão. E
assim já não seria sabedoria própria, incorporada a nós e indelével,
parte da bagagem de cada um, mas sim um apêndice alheio. O
argumento é sagaz, e ainda nos impressiona. Neste momento
estamos mergulhados numa transição tão radical como a
alfabetização grega. A Internet está a mudar o uso da memória e da
própria mecânica do saber. Uma experiência realizada em 2011 por
D. M. Wegner, pioneiro da psicologia social, mediu a capacidade de
recordar de uns voluntários. Só metade deles sabia que os dados a
reter eram guardados num computador. Quem pensou que a
informação ficava gravada relaxou no esforço para aprendê-la. Os
cientistas chamam «o efeito do Google» a este fenómeno de
relaxamento da memória. Temos tendência para recordar melhor
onde se alberga um dado do que o próprio dado. É evidente que o
conhecimento disponível é maior do que nunca, mas armazena-se
quase todo fora da nossa mente. Surgem perguntas inquietantes.
Sob o aluvião de dados, onde fica o saber? A nossa preguiçosa
memória é afinal uma agenda de moradas onde procurar
informação, sem rasto da própria informação? No fundo, somos
mais ignorantes do que os nossos memoriosos antepassados dos
velhos tempos da oralidade?
A grande ironia de todo este assunto é que Platão explicou o
menosprezo do mestre pelos livros num livro, conservando assim as
suas críticas contra a escrita para nós, os seus futuros leitores.
45

Mais além de certos limites, a única possibilidade de expandir a


nossa memória depende da tecnologia. Essas transformações são
ao mesmo tempo perigosas e fascinantes. A linha que separa as
nossas mentes da Internet está a tornar-se cada vez mais difusa.
Instalou-se entre nós a impressão de que sabemos tudo aquilo que
podemos localizar graças ao Google. Quando um grupo de pessoas
se reúne, costuma haver alguém que se lança a comprovar os
dados da conversa com o seu smartphone. Mergulha no ecrã como
uma ave aquática e, após uma consulta rápida, emerge com o peixe
no bico, esclarecendo todas as dúvidas sobre o nome daquele ator
ou quais são os dias ideais para pescar o peixe-banana.
Após as suas experiências dos anos oitenta para a frente,
Wegner pensa que, se recordarmos onde encontrar informações
importantes, mesmo sem retermos o conhecimento concreto,
estamos a ampliar as fronteiras do nosso território mental. É o
fundamento da sua teoria da memória transacional. Segundo
Wegner, ninguém se lembra de tudo. Armazenamos informação nas
mentes dos outros — a quem podemos recorrer para perguntar —,
nos livros e na gigantesca cibermemória.
O alfabeto foi uma tecnologia ainda mais revolucionária do que a
Internet. Construiu pela primeira vez essa memória comum,
expandida e ao alcance de toda a gente. Nem o saber nem a
literatura completa cabem numa só mente, mas, graças aos livros,
cada um de nós encontra as portas abertas para todos os relatos e
todos os conhecimentos. Podemos pensar, como vaticinava
Sócrates, que nos tornámos num bando de convencidos ignorantes.
Ou que, graças às letras, fazemos parte do cérebro maior e mais
inteligente que alguma vez existiu. Borges, que pertencia ao grupo
dos que pensam da segunda forma, escreveu: «Dos diversos
instrumentos do homem, o mais surpreendente é, sem dúvida, o
livro. Os restantes são extensões do seu corpo. O microscópio e o
telescópio são extensões da sua visão; o telefone é a extensão da
voz; depois temos o arado e a espada, extensões do seu braço.
Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da
imaginação.»

46

Sócrates disse a Fedro, naquele deslumbrante meio-dia, nos


arredores de Atenas, que as palavras escritas são sinais mortos e
fantasmagóricos, filhos ilegítimos do único discurso vivo: o oral.
O poeta Friedrich Hölderlin, nascido vinte e três séculos mais
tarde, teria desejado viajar no tempo até àquele longínquo dia e
àquele calmo prado «sob a sombra dos plátanos, onde o Ilissos
corria entre as flores, onde Sócrates conquistava os corações e
Aspásia passeava entre as murtas, enquanto ecoava a ágora
ruidosa e o meu Platão criava paraísos».
É algo que acontece com frequência: os tempos que uns
consideram decadentes enquanto os vivem são a região da
nostalgia para outros. Hölderlin julgava ser um antigo ateniense
transferido para a inóspita Alemanha. A sua verdadeira pátria era
aquele século esplendoroso contra o qual Sócrates protestava por
destruir a autêntica sabedoria.
Com apenas trinta anos, o poeta alemão começou a sofrer crises
mentais. Contam que tinha ataques de ira, agitação, e de verborreia
que não conseguia controlar. Declarado doente incurável, os seus
familiares internaram-no numa clínica. No verão de 1807, Hölderlin
recebeu durante o seu enclausuramento a visita de um marceneiro
chamado Ernst Zimmer, entusiasmado com o seu livro Hiperião, e
decidiu levá-lo para viver na sua casa, ao pé do rio Neckar. O poeta
ficou ali até à sua morte, em 1843, sempre ao cuidado da família do
seu leitor.
Quase sem conhecê-lo, Zimmer decidiu acolher, alimentar e
cuidar na sua demência o autor do romance que amava. As caladas
palavras de um livro forjaram entre dois estranhos, durante quase
quatro décadas, uma ligação mais forte do que o parentesco. Talvez
as letras sejam só sinais mortos e fantasmagóricos, filhas ilegítimas
da palavra oral, mas nós, leitores, sabemos dar-lhes vida. Adoraria
contar esta história ao velho e resmungão Sócrates.

47

Fahrenheit 451 é a temperatura na qual os livros ardem e o título


que Ray Bradbury escolheu para a sua fantasia futurista. Ou não tão
futurista.
A história decorre durante uma época sombria num país em que
é proibido ler. Os bombeiros já não se ocupam de apagar incêndios,
mas sim de queimar os livros que alguns cidadãos rebeldes
escondem nas suas casas. O governo decretou que toda a gente
deve ser feliz. Os livros estão repletos de ideias nocivas e, para
além disso, a leitura solitária presta-se à melancolia. A população
deve ser protegida dos escritores, que transmitem pensamentos
malignos.
Os dissidentes são perseguidos. Refugiam-se nos bosques à
volta das cidades, nos caminhos, na margem dos rios
contaminados, nas vias férreas abandonadas. Viajam
permanentemente, sob a luz das estrelas, disfarçados de
vagabundos. Aprenderam de cor livros inteiros e guardam-nos nas
suas cabeças, onde ninguém consegue vê-los nem suspeitar da sua
existência. «No início, não se tratou de um plano preconcebido.
Cada homem tinha um livro que queria recordar, e fê-lo. Depois
fomos entrando em contacto uns com os outros, viajámos, criámos
esta organização e delineámos um plano. Transmitiremos oralmente
os livros aos nossos filhos e deixaremos que eles esperem pela sua
vez. Quando a guerra terminar, algum dia, algum ano, os livros
poderão ser reescritos. As pessoas serão convocadas, uma a uma,
para que recitem o que sabem, e imprimi-lo-emos até que chegue
outra Idade da Escuridão, em que talvez devamos repetir toda a
operação.» Estes fugitivos, que viram como aquilo que amavam
acabava destruído, devem percorrer um longo caminho de fuga,
sempre assustados, sem outra certeza do que os livros arquivados
por trás dos seus tranquilos olhos.
O romance parece uma fábula distópica, mas não é. Aconteceu
realmente algo muito semelhante. No ano 213 a. C., quando um
grupo de gregos tentava reunir a totalidade dos livros em
Alexandria, o imperador chinês Qin Shi Huang ordenou que se
queimassem todos os livros do seu reino. Só perdoou os tratados de
agricultura, medicina e profecia. Queria que a História começasse
com ele. Pretendia abolir o passado porque os seus opositores
invocavam-no saudosos dos seus antigos imperadores. Segundo
um documento da época, o plano foi posto em prática sem piedade
(«Os que se servirem da Antiguidade para denegrir os tempos
presentes serão executados juntamente com os seus familiares.
Quem ocultar livros será marcado com ferro em brasa e condenado
a trabalhos forçados»). O ódio de Qin Shi Huang provocou a
destruição de milhares e milhares de livros — entre outros, os
escritos do confucionismo. Os esbirros do imperador foram de porta
em porta, apoderando-se dos livros e fazendo-os arder numa pira.
Mais de quatrocentos letrados relutantes foram enterrados vivos.
Em 191 a. C., sob uma nova dinastia, puderam reescrever-se
muitos daqueles livros perdidos. Correndo riscos inacreditáveis, os
profissionais das letras tinham conservado na memória obras
inteiras, em segredo, ao abrigo da guerra, das perseguições e dos
homens das fogueiras.
Não foi a única vez que aconteceu uma coisa dessas. Quando
Alexandre ocupou a cidade de Persépolis e lhe pegou fogo, arderam
todos os exemplares do livro sagrado do zoroastrismo. Os seus fiéis
recuperaram-no graças ao que recordavam, palavra por palavra. Ao
mesmo tempo que Bradbury imaginava a sua fantasia distópica,
durante os anos de crueldade do estalinismo, onze amigos de Anna
Akhmátova iam memorizando poemas do seu lancinante livro
Requiem à medida que o escrevia, para preservá-los de qualquer
desgraça que pudesse acontecer à autora. A escrita e a memória
não são adversárias. Na verdade, ao longo da História, salvaram-se
uma à outra: as letras resguardam o passado; a memória, os livros
perseguidos.
Durante a Antiguidade, quando ainda perduravam laivos da
cultura oral, quando havia menos livros e se reliam mais, não era de
estranhar que os leitores aprendessem obras inteiras de cor.
Sabemos que os rapsodos recitavam em várias sessões os 15 000
versos da Ilíada e os 12 000 da Odisseia. Pessoas comuns também
eram capazes de repetir fielmente longos textos literários. Agostinho
de Hipona relembra num dos seus livros o seu companheiro de
estudos Simplício, que recitava discursos inteiros de Cícero e todos
os poemas de Vergílio — ou seja, milhares e milhares de versos —
de trás para frente, em ordem inversa. Ao ler, gravava as frases que
o comoviam nas «tabuinhas enceradas da memória» para recordá-
las e recitá-las à vontade, como se estivesse a olhar para as
páginas de um livro. Um médico romano do século II, chamado
Antilo, chegou mais longe, afirmando até que memorizar livros era
bom para a saúde. Defendia uma divertida e extravagante teoria a
esse respeito. Quem nunca fez um esforço para memorizar um
relato, uns versos, um diálogo — dizia — tem mais dificuldades para
eliminar certos fluidos prejudiciais do seu corpo. Pelo contrário, os
que podem recitar longos textos de cor expulsam sem problemas
essas substâncias nocivas através da respiração.
Talvez sem sabê-lo, nós — como os fugitivos de Bradbury, os
letrados chineses, os seguidores de Zaratustra ou os amigos de
Anna Akhmátova — mantemos certas páginas que nos importam a
salvo na mente. «Eu sou A República de Platão», diz uma
personagem de Fahrenheit 451. «Eu sou Marco Aurélio.» «O
capítulo um de Walden de Thoreau vive em Green River; o capítulo
dois, em Willow Farm.» «Há uma pequena aldeia com apenas vinte
e sete habitantes que alberga os ensaios completos de Bertrand
Russell, divididos em tantas páginas como pessoas tem.» Um dos
maltrapilhos rebeldes, com o cabelo encardido e sujidade nas
unhas, brinca: «Nunca julgue um livro pela sua capa.»
De certa forma, todos os leitores têm dentro de si íntimas
bibliotecas clandestinas de palavras que deixaram neles a sua
marca.

Aprender a ler sombras

48

Os livros tiveram de criar o seu público. E, ao fazê-lo,


transformaram a forma de vida dos gregos.
O alfabeto começou a criar raízes num mundo de guerreiros. Só
os filhos da aristocracia é que recebiam educação — militar,
desportiva e musical. Durante a sua infância, eram educados pelos
seus precetores no palácio. Quando chegavam à adolescência,
entre os treze e os dezoito anos, aprendiam a arte da guerra dos
seus amantes adultos — a pederastia grega tinha uma função
pedagógica. Aquela sociedade consentia o amor entre combatentes
maduros e os seus jovens escolhidos, sempre de classe alta. Os
gregos acreditavam que a tensão erótica aumentava a coragem de
ambos: o guerreiro veterano desejava brilhar diante do seu jovem
preferido, e o amado tentava estar à altura do prestigiado guerreiro
que o tinha seduzido. Com as mulheres relegadas para os gineceus,
as cidades-estado eram clubes de homens que se observavam uns
aos outros, imitando-se e apaixonando-se, obcecados pelo
heroísmo bélico. Entre batalha e batalha, dedicavam-se a
banquetes, a torneios e à caça. Punham em prática os seus ideais
cavalheirescos nas carnificinas mais sangrentas. O historiador
Tucídides conta que todos os habitantes da Grécia levavam sempre
consigo armas, porque ninguém se podia sentir seguro nem nas
cidades nem nos caminhos. Diz também que os atenienses foram
os primeiros a começar a deixar o armamento em casa e a
comportar-se de maneira ligeiramente menos rude.
Em algum momento do século VI a. C., a educação deixou de ser
essencialmente militar e atlética. Ainda assim, o adestramento para
o combate não desapareceu, claro, porque os habitantes das
cidades antigas viviam permanentemente à bulha com os estados
vizinhos e a trespassar com as suas lanças quem habitava um
pouco mais além da fronteira. Mas, pouco a pouco, começou a
ganhar terreno o ensino das letras e dos números. Só em alguns
redutos como a arcaizante Esparta se mantiveram os treze anos
obrigatórios de alistamento e disciplina militar.
E então aconteceu algo inesperado. A febre do alfabeto
espalhou-se para além dos círculos nobres, que consideravam a
educação como um privilégio próprio. Os orgulhosos aristocratas
tiveram de suportar um número crescente de novos-ricos que, com
um insuportável atrevimento, pretendiam iniciar os seus filhos nos
segredos da escrita e estavam dispostos a pagar para consegui-lo.
Foi assim que nasceu a escola. O ensino pessoal de um treinador
ou de um amante já não era suficiente para cobrir as necessidades
de todos, e foi-se convertendo numa prática minoritária. Cada vez
mais jovens — livres, mas sem apelidos nobres — reclamavam
educar-se e, sob a pressão das suas aspirações, apareceram os
primeiros lugares coletivos para a aprendizagem.
Para saber quando se deu esse acontecimento decisivo é
preciso pesquisar os textos antigos em busca de pistas.
Descobrimos a existência de uma das escolas mais antigas, quase
de passagem, num texto de uma inquietante atualidade. Trata-se do
relato de um acontecimento de crónica negra na remota ilha de
Astipaleia. O escritor Pausânias conta na sua descrição da Grécia
um assassinato múltiplo que abalou as pessoas do arquipélago do
Dodecaneso em 492 a. C. O crime ainda habitava na memória dos
ilhéus durante o século II d. C., quando o escritor viajante ouviu
alguém contá-lo. A lúgubre história parece um cruzamento entre
Bowling for Columbine e a lenda de Sansão. Pausânias relata que
um jovem ressentido contra o mundo e com antecedentes violentos
entrou numa escola para desafogar o seu ódio perpetrando uma
matança de crianças: «Dizem que o pugilista Cleomedes de
Astipaleia matou num combate o seu adversário Ico de Epidauro.
Pela sua brutalidade, os juízes olímpicos retiraram-lhe a vitória.
Cleomedes enlouqueceu de raiva. Quando regressou a Astipaleia,
entrou na escola, onde havia sessenta crianças, e derrubou com a
força dos seus braços a coluna que sustentava o teto. O edifício
caiu sobre as suas cabeças e matou-as a todas.»
Para além do seu obscuro final, esta história revela-nos que uma
pequena ilhota do mar Egeu, de apenas 13 quilómetros de largura,
possuía no início do século V a. C. uma escola onde, num dia
qualquer, estudavam sessenta alunos. Outros testemunhos parecem
confirmar a verosimilhança do dado. Naquela altura, o alfabeto
estava a introduzir-se na vida grega até nessas aldeias remotas que
só abandonam os bastidores da História quando são fustigadas por
uma catástrofe natural ou se for cometido nelas um crime
arrepiante.
49

A minha mãe quis ensinar-me a ler e eu neguei-me. Tinha medo.


Na minha escola havia um menino chamado Alvarito, filho de
professores, que tinha aprendido em casa. Quando nós, os
restantes, ainda gaguejávamos ao ler as sílabas, ele lia de seguida
com distraída perfeição. Uma facilidade espantosa, difícil de
suportar. A vingança deu-se no recreio. Perseguiam-no. Gritavam:
caixa de óculos, badocha. Pisaram-lhe a mochila. Penduraram-lhe o
anoraque nos ramos da figueira, onde não conseguia chegar a ele
porque não tinha agilidade a trepar. O Alvarito tinha infringido o
código da escola; tinha-se armado em espertalhão. Os seus pais
tiveram de pô-lo noutra escola.
Isto não me vai acontecer, pensei com orgulho. Para além do
mais, não precisava de ir à frente dos outros. A minha mãe lia-me
histórias à noite. O nosso pequeno teatro noturno não estaria em
perigo enquanto eu não soubesse ler. O que queria mesmo era
aprender a escrever. Não sabia que as coisas vão juntas e precisam
uma da outra.
Um dia, finalmente, tenho um lápis entre os dedos. Não se deixa
segurar facilmente, é preciso domesticá-lo. Aperto-o com força
contra o papel para que não fuja, mas às vezes é rebelde, partindo o
nariz contra o caderno. Então preciso de afiar outra vez a ponta.
Consigo ver-me; estou sentada com outras crianças numa mesa
redonda cor de baunilha. Inclinada para a frente, desenho linhas,
pontes, círculos, curvas. A minha língua espreita entre os lábios,
seguindo a deslocação da mão. Filas de emes coladas às suas
vizinhas. Filas de bês com a sua barriguinha. Não gosto da barra
transversal do t (complica a questão).
Algum tempo depois, evoluo: já consigo juntar letras. O eme
estende um rabinho para o a. No início parece tudo uma confusão,
uma mistura de gatafunhos. Continuo em frente. Como sou canhota,
esfrego o punho por cima das linhas ao avançar e vou-as apagando.
Deixo um rasto cinzento. Com a mão enegrecida, continuo. Até que
numa manhã, sem me aperceber, por surpresa, arranco o segredo à
escrita. Faço magia. Mãe. Os pauzinhos e os círculos cantam em
silêncio. Apanhei a realidade com uma rede de letras. Já não são só
linhas; é ela que aparece de repente no papel: a sua voz tão bonita,
os caracóis do seu cabelo castanho, o olhar acolhedor, o sorriso que
mostra uns incisivos proeminentes e, por isso, porque tem vergonha
dos seus dentes desordenados, acaba sempre num gesto tímido.
Chamei-a com o meu lápis, está ali. Mãe! Acabo de escrever e
compreender a minha primeira palavra.
Em todas as sociedades que utilizam a escrita, aprender a ler
tem algo de ritual de iniciação. As crianças sabem que estão mais
perto dos adultos quando são capazes de entender as letras. É
sempre um passo emocionante para a idade adulta. Sela uma
aliança, arranca uma parte superada da infância. Vive-se com
felicidade e euforia. O novo poder põe tudo à prova. Quem ia
suspeitar que o mundo inteiro estava decorado com pequenas
cadeias de letras, como uma grande festa popular? Agora é preciso
decifrar a rua: far-má-cia, pa-dei-ro, a-luuuu-ga-se. As sílabas
explodem na boca como fogo de artifício, a lançar faíscas. Em casa,
à mesa, por todo o lado somos invadidos por mensagens. Começam
as rajadas de perguntas. O que significa baixoemcalorias? E
aguamineralnatural? Consumirdepreferência?
Na sociedade judaica medieval celebrava-se com uma cerimónia
solene o momento da aprendizagem, quando os livros tornavam as
crianças partícipes da memória comunitária e do passado
partilhado. Durante a festa do Pentecostes, o professor sentava o
menino a quem ia iniciar ao seu colo. Mostrava-lhe um quadro onde
estavam escritos os símbolos do alfabeto hebraico e de seguida
uma passagem das escrituras. O professor lia em voz alta, e o aluno
repetia. Depois untava-se o quadro com mel e o iniciado lambia-o,
para que as palavras penetrassem simbolicamente no seu corpo.
Também escreviam letras em ovos cozidos já pelados ou em bolos.
O alfabeto tornava-se doce e salgado, mastigava-se e assimilava-
se. Começava a fazer parte de nós próprios.
Como é que o alfabeto que decifra o mundo e revela os
pensamentos não havia de ser mágico? Os gregos antigos também
sentiam o seu feitiço. Naquele tempo, as letras eram utilizadas para
representar, para além de palavras, números e notas musicais.
Cada uma das suas sete vogais simbolizava um dos sete planetas e
dos sete anjos que os presidem. Utilizavam-se feitiços e amuletos.
Naquelas remotas escolas gregas — tardes pardas, chuviscos,
monotonia atrás das janelas —, as crianças cantavam em coro as
letras: «Há alfa, beta, gama e delta, e épsilo, e também zeta…»
Depois, as sílabas: beta com alfa, ba. O professor desenhava-as e
depois, pegando na mão do seu aluno, fazia-o passar de novo por
cima do traço. As crianças repetiam mil vezes os modelos.
Copiavam ou escreviam breves máximas de uma linha ditadas pelo
professor. Como nós, aprendiam poemas de cor — os seus «dez
canhões de cada lado» e «surpreendeu-se um português» — e
sequências de palavras estranhas. Lembro-me de uma dessas
cantilenas espanholas de infância: brujir, grujir e desquijerar; nunca
mais voltei a tropeçar com estes verbos estridentes.
A didática era obsessiva e cansativa. O professor-domador
recitava, e os alunos repetiam. A aprendizagem avançava em ritmo
lento (não era de estranhar que crianças de dez ou doze anos ainda
estivessem a aprender a escrever). Assim que eram capazes,
começavam a ler, a repetir, a resumir, a comentar e a copiar uma
seleção de textos essenciais, quase sempre os mesmos. Sobretudo
de Homero, também de Hesíodo. E de outros imprescindíveis. Os
antigos, que viam as crianças como uma espécie de adultos em
miniatura sem gostos nem talentos próprios, ofereciam-lhes os
mesmos livros que os adultos liam. Não havia nada parecido à atual
literatura infantil ou juvenil, nenhuma facilidade. Ainda não se tinha
inventado a infância, ainda não tinha chegado Freud para atribuir
uma importância crucial aos primeiros anos. Então, o melhor que se
podia fazer por uma criança era mergulhá-la de cabeça no mundo
adulto e tirar-lhe a infância esfregando-a, como se estivesse suja.
O alfabeto podia ser mágico, mas o método de ensino era
frequentemente sádico. Os castigos corporais eram inseparáveis da
rotina escolar das crianças gregas, tal como tinham sido para os
escribas egípcios ou judeus. Numa pequena obra humorística de
Herodas, o professor grita: «Onde está o couro duro, o rabo de boi
com o qual açoito os rebeldes? Deem-mo antes que a minha cólera
exploda.»

O sucesso das palavras díscolas

50
Durante os séculos de lenta expansão do alfabeto, os gregos
continuaram a cantar poemas, mas já não da mesma forma. Certas
vozes atreveram-se a dizer o que nenhum texto antigo tinha ousado
dizer antes. Infelizmente, só nos restam os cacos daqueles versos.
Até ao ano 500 a. C., não se conserva nenhum livro completo de
filosofia nem de poesia, e os poemas inteiros ou as citações textuais
dos autores em prosa são a exceção. Mas esses pequenos
fragmentos que se salvaram são tão poderosos que, mesmo
incompletos, nos comovem.
Aquela foi a grande época da lírica, quando os poemas —
breves, em comparação com a Ilíada —, escritos para serem
cantados, deixaram de olhar para o passado, como as lendas
tradicionais dos velhos tempos. Falavam da ondulação dos dias
próximos, agarravam-se às sensações que experimentavam. Agora.
Aqui. Eu.
Pela primeira vez, a escrita alia-se às palavras díscolas,
irreverentes, que chocam contra os valores da sua época. Esta
assombrosa corrente começa com Arquíloco — filho bastardo de um
grego nobre e de uma escrava bárbara —, mercenário e poeta.
Durante a sua curta vida — de 680 a 640 a. C. —, teve de se
orientar sozinho, sem fortuna nem privilégios, voluntariando-se para
combater em guerras alheias. Como ele disse, a sua lança dava-lhe
todos os dias um pedaço de pão e servia-lhe o vinho que bebia.
Soldado de sorte nas fronteiras entre a cultura e a barbárie,
conheceu as realidades sórdidas por trás dos ideais bélicos.
Segundo o código de honra, era preciso aguentar a posição no
campo de batalha, sem recuar nem fugir. Numa escaramuça contra
os Exércitos trácios, Arquíloco teve de escolher entre morrer
naquele sítio, por trás do seu alto e pesado escudo, ou deixar o
mesmo atirado para um lugar qualquer e desatar a correr para
sobreviver. Existia na Grécia Antiga um insulto gravíssimo, ser um
«lança-escudos», rhípsaspis. Diz-se que, quando se despediam dos
seus filhos antes do combate, as mães espartanas avisavam-nos de
que voltassem «com o escudo ou sobre ele», ou seja, levando-o no
braço por terem lutado com coragem, ou deitados em cima dele,
convertidos em cadáveres.
O que é que Arquíloco decidiu? Fugir a sete pés e, para além
disso, proclamá-lo nos seus versos: «Com grande pena minha,
lancei o escudo para um arbusto, uma excelente peça, agora é um
trácio que o brande. Mas salvei a pele. O que é que esse escudo me
importa? Que se perca. Comprarei outro tão bom.» Nenhum
guerreiro homérico se teria atrevido a admitir algo semelhante, nem
teria tido o sentido do humor necessário para isso. Mas Arquíloco
divertia-se a apresentar-se como anti-herói e a ridicularizar com
descaramento as convenções. Embora fosse corajoso — caso
contrário não teria podido ganhar o sustento na guerra durante
décadas —, amava a vida «que já não se pode recuperar nem
comprar enquanto o último fôlego atravessa a estacaria dos
dentes». Sabia que o soldado que foge a tempo serve para outra
batalha, e para escrever outros poemas. Precisamente pela sua
sinceridade desafiante, recuso-me a imaginá-lo cobarde, mas sim
realista e cáustico.
Nos seus versos, a linguagem é franca, sem rodeios, até roçar a
brutalidade. Com ele, surge um decidido realismo na lírica grega.
Abre as portas a uma nova poesia insolente. Não esconde o seu
temperamento vingativo, apaixonado, trocista. Para o seu desejo
sexual, encontra palavras explícitas: «Oxalá pudesse tocar na mão
de Neóbula... e lançar-me, pronto para a ação, sobre o seu odre e
acomodar a barriga sobre a barriga e as minhas coxas sobre as
suas coxas.» Um brevíssimo fragmento conservado demonstra que
não se acanhou ao falar de sexo oral na sua poesia: «como um
trácio ou um frígio que com uma cana chupa a cerveja, ela, com a
cabeça baixa, entregava-se à tarefa.»
Arquíloco morreu no campo de batalha como Aquiles, mas
deixou claro que a promessa de glória póstuma lhe parecia mais
uma fanfarronice: «Ninguém, depois de morto, é honrado pelos seus
conterrâneos. Preferimos, vivos, o louvor dos vivos.» Richard
Jenkyns, professor de Oxford, considera-o «o primeiro chato da
Europa». Acho que esse epitáfio lhe teria arrancado uma
gargalhada.

O primeiro livro

51

Não há vestígios arqueológicos dos livros mais antigos da


Europa. O papiro é um material perecível e frágil que não sobrevive
em climas húmidos para além de duzentos anos. Hoje só podemos
rastrear nos textos antigos as primeiras menções a livros concretos,
reais, que alguém viu e tocou num lugar de cujo nome quis recordar-
se. Essa pesquisa leva-me à passagem do século VI ao V a. C.
Conta-se que naquela época o filósofo Heráclito depositou um
exemplar da sua obra Sobre a Natureza no Templo de Artemisa em
Éfeso.
Éfeso era uma cidade-estado situada na Anatólia, a antiga Ásia
Menor, hoje Turquia. O que agora entendemos por filosofia surgiu
no início do século VI a. C., de repente, sem nenhuma causa visível,
naquela estreita faixa costeira ocupada pelos gregos, à beira do
mundo asiático. Os primeiros filósofos foram filhos da fronteira, da
mistura de sangues, do limiar. Enquanto a Grécia continental
continuava ancorada ao passado, os habitantes da periferia mestiça
aventuraram-se a idealizar novidades radicais.
O nascimento da filosofia grega coincidiu com a juventude dos
livros, e não foi por acaso. Face à comunicação oral — baseada nos
relatos tradicionais, conhecidos e fáceis de recordar —, a escrita
permitiu criar uma linguagem complexa que os leitores podiam
assimilar e meditar com tranquilidade. Para além disso, desenvolver
um espírito crítico é mais simples para quem tem um livro na mão —
e pode interromper a leitura, reler e parar para pensar — do que
para o ouvinte cativado por um rapsodo.
Heráclito foi chamado de «o enigmático» e, mais tarde, de «o
obscuro». Na sua obra, a opacidade da vida e as suas
surpreendentes contradições parecem infiltrar-se no texto,
impregnando-o. Com ele começa a literatura difícil, na qual o leitor
se deve esforçar para arrebatar o significado às frases. É o pai de
Proust, com as suas orações labirínticas cheias de subterfúgios; de
Faulkner e dos seus monólogos confusos, com frequência
deslocados; e de Joyce, que em Finnegan’s Wake dá a impressão
de escrever em várias línguas ao mesmo tempo — algumas
inventadas por si. Não estou a querer dizer que haja um parentesco
entre eles por os seus estilos serem parecidos. Na verdade, de
Heráclito só chegou até nós um conjunto de breves máximas,
estranhas e poderosas. Não, o que têm em comum é a sua atitude
para com a palavra: se o mundo é críptico, a linguagem adequada
para representá-lo será densa, misteriosa e difícil de decifrar.
Heráclito achava que a realidade se explica como tensão
permanente. Ele chamava-lhe «guerra» ou luta entre contrários. Dia
e noite; vigília e sono; vida e morte transformam-se um no outro e só
existem na sua oposição; no fundo, são duas faces da mesma
moeda («A doença tornou a saúde boa e amável; a fome, a
saciedade; o esforço, o descanso… Imortais mortais, mortais
imortais, vivendo a morte de outros e a vida de outros morrendo»).
Por herança, correspondia a Heráclito a categoria de rei da sua
cidade. Cedeu o cargo ao seu irmão mais novo, que, desde a
chegada da democracia, era na verdade um sacerdócio.
Aparentemente, considerava os feiticeiros, pregadores e adivinhos
meros «traficantes de mistérios». Contam que se negou a fazer leis
para os efésios, preferindo brincar com as crianças no templo.
Também dizem que chegou a tornar-se muito presunçoso e
desdenhoso. As honras e o poder não lhe importavam, estava
obcecado por encontrar o logos do Universo, que significava
«palavra» e também «sentido». Na primeira frase do quarto
evangelho — «no início era o logos» —, fala Heráclito.
Para ele, a chave de tudo era a mudança. Nada permanece.
Tudo flui. Não tomaremos banho duas vezes no mesmo rio. Essa
imagem aquática de um mundo sempre mutável, que impressionou
Platão, faz parte de nós. Reescrevemo-la e reformulámo-la milhões
de vezes. Desde Manrique — «as nossas vidas são os rios que vão
dar ao mar, que é o morrer» — até Bauman e a sua modernidade
líquida. Borges, fascinado com o rio de Heráclito, dedicou-lhe, entre
outros, este poema: «Heráclito caminha pela tarde de Éfeso. A tarde
deixou-o, sem que a sua vontade o decidisse, na margem de um rio
silencioso. A sua voz declara: “Ninguém desce duas vezes às águas
do mesmo rio”. Detém-se. Sente que ele também é um rio e uma
fuga. Quer recuperar essa manhã e a sua noite e a véspera. Não
pode.»
Acho que as frases estranhas de Heráclito capturam o mistério e
a surpresa que deram origem à filosofia. E também ao presente.
Para escrever este capítulo, reli os escassos fragmentos dos seus
pensamentos abruptos que chegaram até nós. Pareceram-me uma
explicação da atualidade que nos sacode como um sismo. À beira
da violência, debatemo-nos entre extremos opostos: a globalização
e a lei da fronteira; a mestiçagem e o medo das minorias; o impulso
de acolhimento e a fúria de expulsar; a ânsia da liberdade e o sonho
de construir refúgios amuralhados; o desejo de mudança e a
nostalgia da grandeza perdida.
A tensão destas contradições pode chegar a ser quase
insuportável. Por esse motivo, sentimo-nos presos. Mas, segundo
as teses de Heráclito, uma pequena alteração nos dinâmicos
equilíbrios de forças muda tudo. É também por isso que a
esperança de transformar o mundo tem sempre razão.

52

Quer ser famoso a qualquer preço. Nunca se destacou em nada


mas rebela-se contra a ideia de ser mais um. Sonha em segredo
que as pessoas o reconhecem na rua, cochicham e apontam para
ele. Uma voz interior sussurra-lhe que um dia se vai converter numa
celebridade, como os campeões olímpicos ou os atores que
seduzem o público boquiaberto.
Decidiu que vai fazer algo grande; só lhe falta descobrir o quê.
Um dia maquina finalmente um plano. Incapaz de realizar
proezas, sempre pode ficar na História como destruidor. Na sua
cidade há uma das sete maravilhas do mundo, que é visitada por
reis e viajantes de terras muito longínquas. Num promontório
rochoso, empoleirado entre nuvens, o Templo de Artemísia domina
todos os bairros de Éfeso. Foram necessários cento e vinte anos
para construí-lo. A entrada é um denso bosque de colunas. No seu
interior, forrado de ouro e prata, descansa a imagem sagrada da
deusa que caiu do céu, para além das valiosas esculturas de
Policleto e Fídias, e fantásticas riquezas.
Na noite sem lua de 21 de julho de 365 a. C., enquanto na
remota Macedónia nascia o grande Alexandre, ele desliza entre as
sombras e trepa pelos degraus que levam ao Artemísio. Os
guardas-noturnos estão a dormir. No silêncio quebrado por roncos,
apodera-se de uma lamparina, derrama óleo e pega fogo aos
tecidos que decoram o interior. As chamas lambem o tecido e
sobem até ao teto. No início, o incêndio rasteja lentamente, mas
quando consegue ferir as vigas de madeira começa a rápida dança
do fogo, como se o edifício estivesse há anos a sonhar arder.
Ele olha para as labaredas, que rugem e se enroscam,
hipnotizado. Depois sai do edifício a tossir para ver como ilumina a
noite. Aí, os guardas prendem-no sem problema. Levam-no
acorrentado para o calabouço, onde é feliz durante umas horas
solitárias, a aspirar o cheiro a fumo. Quando o torturam, confessa a
verdade: tinha planeado incendiar o edifício mais belo do mundo
para ser conhecido no mundo inteiro. Os historiadores contam que
todas as cidades da Ásia Menor proibiram, sob pena de morte,
revelar o seu nome, mas não conseguiram apagá-lo da História.
Está presente em todas as enciclopédias, incluindo as virtuais. O
escritor Marcel Schwob foi o seu biógrafo num capítulo de Vidas
Imaginárias. Sartre também lhe dedicou um conto. Deu o seu nome
ao distúrbio psicológico daqueles que, só para aparecerem uns
minutos na televisão ou serem os mais vistos no YouTube, são
capazes de fazer qualquer disparate gratuito. O exibicionismo a todo
o custo não é um fenómeno exclusivamente contemporâneo.
O seu nome amaldiçoado era Heróstrato. Em sua memória, o
desejo patológico de popularidade acabou por se chamar síndrome
de Heróstrato.
O incêndio que provocou para ser catapultado para a fama
deixou o rolo de papiro que Heráclito tinha oferecido à deusa
reduzido a cinzas. Ironicamente, o filósofo achava que, de maneira
cíclica, o fogo aniquila o Universo e na sua obra profetizava uma
conflagração cósmica final. Quanto ao Universo, não sei, mas os
livros — que em todas as suas formas ardem bem — têm um triste
historial de destruição entre as chamas.

As livrarias ambulantes

53

Quantos livros existiam na era dourada da Grécia? Que


percentagem da população era capaz de lê-los? Falta-nos
informação. Temos dados pontuais, fibras de erva que voam no ar e
não permitem calcular a extensão da pradaria. Para além disso, a
maior parte deles refere-se a um lugar excecional, a cidade de
Atenas. O resto é penumbra.
À procura de marcas daquela alfabetização invisível, recorremos
às imagens de leitores representados em pinturas cerâmicas. A
partir de 490 a. C., os vasos de figuras vermelhas aparecem
decorados com cenas que representam crianças a aprender a ler e
a escrever na escola, ou pessoas sentadas numa cadeira com um
rolo aberto no colo e a ler. Frequentemente, o artista traça letras ou
palavras de tamanho aumentado nos papiros que desenha, por
vezes com tanta minuciosidade que se podem ler — trata-se de
versos de Homero, de Safo… Em quase todos os casos, o livro
contém poesia. Também aparece um livro escolar sobre mitologia. O
que mais se destaca é que os protagonistas habituais destes
pequenos quadros são mulheres, mas, paradoxalmente, as meninas
não aparecem nas cenas escolares. Essa contradição coloca-nos
perante um mistério. Talvez as mulheres leitoras pertencessem às
famílias de classe alta e fossem educadas em casa. Ou talvez se
tratasse de um motivo iconográfico mais do que de uma realidade
quotidiana. Nunca o saberemos.
Numa lápide com data entre o ano 430 e 420 a. C. aparece
esculpido um jovem de perfil, absorto nas palavras de um rolo que
desdobra sobre os seus joelhos, a cabeça em ligeira inclinação, as
pernas cruzadas à altura dos tornozelos precisamente na posição
em que eu agora escrevo. Sob o relevo que dá forma à cadeira, vê-
se um vulto de pedra desgastada com aspeto de cão que se refugia
debaixo da cadeira. O relevo comunica o sossego das horas
passadas entre livros. Aquele ateniense falecido amava tanto a
leitura que a levou para o túmulo.
Na passagem do século V para o IV a. C., aparecem pela primeira
vez em cena umas personagens até então desconhecidas: os
livreiros. Nessa época, a nova palavra byliopólai («vendedores de
livros») espreita nos textos dos poetas cómicos atenienses.
Segundo nos contam, no mercado da ágora instalam-se bancas de
venda de rolos literários entre outras que ofereciam verdura, alho,
incenso e perfumes. Por um dracma, diz Sócrates num diálogo de
Platão, qualquer um pode comprar um tratado de filosofia no
mercado. É surpreendente que já existisse uma disponibilidade tão
fácil de livros e, sobretudo, de obras filosóficas difíceis. A julgar pelo
seu preço reduzido, provavelmente tratava-se de cópias em formato
pequeno ou em segunda mão.
Pouco sabemos sobre os preços dos livros. O custo dos rolos de
papiro sugere que a norma oscilava entre dois e quatro dracmas por
exemplar — o equivalente ao pagamento de um jornaleiro de um a
seis dias. Os elevados valores mencionados dos exemplares raros
— Luciano de Samósata fala de um livro que rondava os setecentos
e cinquenta dracmas — não são indicadores dos preços normais
dos livros comuns. Para as classes prósperas, até para as suas
categorias mais modestas, os livros eram uma mercadoria
relativamente acessível.
No final do século V a. C., começou a já imemorial tradição de
troça contra os ratos de biblioteca, cujo arquétipo será Dom Quixote.
Aristófanes, dando as boas-vindas com ironia à intertextualidade, ri-
se dos escritores que «expressam as suas obras a partir de outros
livros». Outro autor de comédia utilizou uma biblioteca privada como
pano de fundo de uma cena. Nela, um professor mostra com
orgulho ao famoso herói Héracles as suas estantes repletas de
livros de Homero, Hesíodo, os trágicos e os historiadores. «Pega em
qualquer livro de que gostes e depois lê-o; fá-lo com calma, olha
para os títulos.» Héracles, que na comédia grega aparece sempre
representado como um comilão, escolhe um livro de cozinha. É
verdade que sabemos que, naquela época, circulavam manuais das
mais variadas matérias para satisfazer a curiosidade leitora e, entre
eles, o manual por excelência, que era o livro de receitas culinárias
a cargo de um chefe siciliano que estava na moda.
Os livreiros atenienses tinham clientes de ultramar. Iniciou-se a
exportação de livros. O resto do mundo grego procurava a literatura
criada em Atenas, em especial libretos de tragédias, que eram o
grande espetáculo da época. O teatro ático cativava até quem
detestava o imperialismo ateniense, como acontece agora com a
poderosa indústria do cinema americano. Xenofonte conta, na
primeira metade do século IV a. C., que na perigosa costa de
Salmidesso, hoje turca, encontrou o litoral semeado de despojos de
naufrágios. Havia «camas, caixas pequenas, muitos livros escritos e
outras coisas que os mercadores costumam transportar em caixas
de madeira».
Teve de existir uma certa organização para abastecer o mercado
livreiro, e pessoas que dirigissem oficinas de cópia, mas não temos
dados para reconstruir a sua envergadura e funcionamento, e
portanto estamos a entrar no hesitante território da suposição.
Provavelmente, as oficinas deviam fazer cópias de livros com a
autorização dos autores que procurassem um público um pouco
mais amplo do que o seu círculo de amigos. Mas também
reproduziam textos sem consultarem os criadores. Na Antiguidade,
desconheciam-se os direitos de autor.
Um discípulo de Platão encomendou cópias das obras do seu
mestre e embarcou rumo a Sicília para vendê-las. Teve a astúcia de
perceber que ali havia mercado para os diálogos socráticos. Os
seus contemporâneos dão a entender que essa iniciativa de venda
lhe valeu uma péssima reputação em Atenas, não por se apropriar
do copyright do seu mestre, mas sim porque se tinha metido em
negócios, algo absolutamente plebeu e impróprio de um homem
bem-nascido que, para além disso, pertencia ao círculo de Platão.
A Academia platónica teve, sem dúvida, uma biblioteca própria,
mas a coleção do Liceu aristotélico deve ter superado largamente
todas as suas antecessoras. Estrabão disse que Aristóteles foi «o
primeiro que saibamos que colecionou livros». Conta-se que
Aristóteles comprou todos os rolos que outro filósofo possuía pela
imensa soma de três talentos (dezoito mil dracmas). Imagino-o a
acumular durante anos, num contínuo gotejar de dinheiro, os textos
essenciais para englobar todo o espectro das ciências e da arte
daquela época. Não teria podido escrever o que escreveu sem uma
leitura constante.
Um pequeno recanto da Europa começava a ser devorado pela
febre dos livros.

54

Aristóteles fala de autores de tragédia que escreviam mais para


os leitores do que para o público dos teatros. Acrescenta que os
seus livros têm «grande circulação». O que é que poderia significar
uma grande circulação naquela época germinal?
Outra frase atribuída a Aristóteles revela um mundo escondido.
Conta que os livreiros transportavam grandes quantidades de livros
em carroças. Talvez se esteja a referir a bufarinheiros que levavam
literatura pelos caminhos, andando aos solavancos de aldeia em
aldeia à mercê de todos os perigos.
Na verdade, como diz Jorge Carrión, as livrarias sedentárias são
uma anomalia moderna numa tradição sobretudo nómada e poética.
Foram os viajantes que encheram de manuscritos a Biblioteca de
Alexandria, mercadores de tinta e papel que empurraram ideias
como rodas pela Rota da Seda, vendedores ambulantes de livros
usados — entre outras mercadorias — que se instalavam em
pousadas e em feiras até muito recentemente, depois de
percorrerem grandes distâncias carregados com baús, caixas
volumosas e bancas desmontáveis. Hoje são os «biblioautocarros»
e os «biblioburros» — dependendo da geografia — que mantêm
vivo o velho hábito dos incansáveis livros viajantes.
The Haunted Bookshop, de Christopher Morley, relata essa
experiência nómada. Nos Estados Unidos, nos anos vinte do século
passado, o senhor Mifflin percorre o mundo rural americano numa
estranha carruagem com aspeto de elétrico puxado por um cavalo
branco. Quando levanta as coberturas laterais, acontece que o
comprido vagão é uma banca de livros — estantes sobre estantes,
todas repletas. Dentro da caravana não falta conforto: um
aquecedor a óleo, uma mesa desdobrável, um catre para dormir,
uma cadeira de vime e gerânios nas diminutas prateleiras das duas
janelas.
Durante muitos anos, o senhor Mifflin tinha sido professor numa
escola rural, «dedicando-se ao máximo por um salário miserável».
Por motivos de saúde, decide ir viver para o campo. Constrói com
as suas próprias mãos uma carroça — à qual batiza de «Parnaso
ambulante» — e compra uma grande quantidade de livros num
alfarrabista em Baltimore. Embora não lhe faltem nem a picardia
nem a lábia do comerciante, Mifflin considera-se um pregador dos
caminhos, chamado a divulgar o evangelho dos bons livros.
Apregoa a sua mercadoria de quinta em quinta, pelas rotas
empoeiradas onde as carroças de madeira convivem com os
primeiros automóveis fabricados em série. Quando chega ao
alpendre de uma casa de camponeses, desce da boleia com um
salto, atravessa o curral onde as galinhas arranham o chão e
esforça-se por convencer uma mulher que pela batatas da
importância de ler. Tenta converter os fazendeiros ao seu credo
entusiasta. «Quando venderes um livro a alguém, não lhe estás só a
vender doze onças de papel, tinta e cola. Estás a vender-lhe uma
vida totalmente nova. Amor, amizade e humor e barcos que
navegam na noite. Num livro cabe tudo, o céu e a terra, quero dizer,
num livro a sério. Raios! Se em vez de livreiro fosse padeiro,
talhante ou vendedor de vassouras, as pessoas viriam a correr para
me receberem, ansiosas por terem a minha mercadoria. E eis-me
aqui, com o meu carregamento de salvações eternas. Sim, salvação
para as suas pequenas e atribuladas almas. E nem imagina o que
custa que o entendam.»
As pessoas de tez curtida e mãos arroxeadas pela geada nunca
tiveram oportunidade de comprar literatura, e muito menos de que
alguém lhes explique o que esta significa. Mifflin comprovou que,
quanto mais se mete no campo, menos livros se veem e os que
encontra são piores. Com a sua peculiar eloquência, clama que
seria necessário um exército de livreiros como ele dispostos a
visitarem pessoalmente as casas dos lavradores, a contarem
histórias aos seus filhos, a falarem com os professores das
pequenas escolas e a pressionarem os editores das revistas
agrícolas até conseguirem que os livros circulem pelas veias do
país; em suma, levar o Santo Graal às remotas quintas do Maine.
Se essa era a situação na América do Norte em meados do
século xx, como seria a dos mercadores que Aristóteles menciona,
entre os olivais ensolarados, quando os livros eram jovens e tudo
acontecia pela primeira vez?

A religião da cultura

55

Alexandre tinha desencadeado a vertigem e os terrores da


globalização. Até então, a maior parte dos gregos tinham sido
cidadãos de pequenas nações que englobavam pouco mais de uma
povoação e as suas imediações. Cada um desses países mínimos
se orgulhava da sua própria política e da sua própria cultura, eram
ferozmente independentes e envolviam-se em escaramuças
frequentes com os seus vizinhos em nome do amor à liberdade.
Quando as cidades da Grécia foram anexadas às novas
monarquias, os seus habitantes ficaram órfãos em massa. As
orgulhosas comunidades cambalearam ao deixarem de ser centros
independentes para se converterem numa vasta periferia imperial.
Os que no dia anterior tinham sido cidadãos eram agora súbditos.
Continuaram a combater uns contra os outros e a entreter-se com
alianças, tratados, arbitragens e declarações de guerra. Mas depois
de perderem a independência, as batalhas já não tinham um sabor
tão intenso. Perante o vazio, as novas estruturas estatais —
incipientes, autoritárias e centradas em lutas dinásticas —, não
ofereciam qualquer ancoragem. À deriva, os gregos procuraram
algo mais em que apoiar-se. Abraçaram credos orientais, rituais
exóticos, filosofias salvadoras. Alguns refugiaram-se numa religião
recém-criada: a religião da cultura e da arte.
Perante o eclipse da vida cidadã, certas pessoas decidiram
dedicar as suas energias a aprender; a educar-se com a esperança
de permanecerem livres e independentes num mundo submetido; a
desenvolverem até ao máximo possível todos os seus talentos; a
conseguirem a melhor versão possível de si próprias; a modelarem
o seu interior como uma estátua; a fazerem da sua própria vida uma
obra de arte. Tratava-se da estética da existência que tanto
impressionou Michel Foucault quando estudava os gregos para a
sua História da Sexualidade. Na última entrevista que deu,
fascinado com esta ideia antiga, Foucault disse: «Chama-me a
atenção o facto de que na nossa sociedade a arte se tenha
convertido em algo que diz respeito aos objetos e não à vida nem
aos indivíduos. Porque é que um homem qualquer não pode fazer
da sua vida uma obra de arte? Porque é que um determinado
candeeiro ou uma casa podem ser obras de arte e a minha vida não
pode sê-lo?»
Embora esta ideia não fosse nova, na época helenística
converteu-se num refúgio para os desorientados órfãos das
liberdades perdidas. Nesse período, a paideia — em grego,
«educação» — transforma-se para alguns na única tarefa à qual
vale a pena dedicar-se na vida. O significado da palavra vai-se
enriquecendo e, quando romanos como Varrão ou Cícero precisam
de traduzi-la para latim, escolhem o termo humanitas. É o ponto de
partida do humanismo europeu e das suas irradiações posteriores.
Os ecos desta constelação de palavras ainda não se calaram. A
Enciclopédia Ilustrada resgatou a antiga paideia — que descende da
expressão en kýklos paideia —, que ainda hoje ressoa na
experiência global e poliglota da Wikipédia.
Às vezes esquecemo-nos de que esta antiga fé na cultura
nasceu como um credo religioso, com o seu lado místico e a sua
promessa de salvação. Os fiéis acreditavam que, na vida para lá do
túmulo, as almas dos escolhidos viveriam em pradarias regadas
pelos frescos mananciais onde haveria teatros para os poetas, coros
de dança, concertos e colóquios à volta da mesa de eternos
banquetes — neste caso, regados com um generoso vinho. Seria
um lugar celestial para os filósofos mais faladores: ali ninguém se
irritaria com eles nem lhes pediria para calarem a boca de uma vez
por todas.
É por isso que encontramos em tantos monumentos funerários
— epitáfios, baixos-relevos ou estátuas — a lembrança da cultura
dos defuntos. Despedem-se da existência terrena com a postura de
homens de letras, oradores, filósofos, amantes da arte ou músicos.
Estes túmulos não pertencem, como se julgava no início, a
intelectuais de ofício, professores ou artistas. Agora sabemos que,
na maior parte dos casos, eram comerciantes, médicos ou
funcionários. Mas queriam ser lembrados por um único motivo:
porque se iniciaram no labor da inteligência e das maravilhas da
arte, saberes protegidos pelas musas.
«A única coisa que vale a pena — escreve no século II um
seguidor deste culto — é a educação. Todos os outros bens são
humanos e pequenos e não merecem ser procurados com grande
empenho. Os títulos nobiliárquicos são um bem dos antepassados.
A riqueza é uma dádiva da sorte, que a tira e a dá. A glória é
instável. A beleza é efémera; a saúde, inconstante. A força física cai
tomada pela doença e pela velhice. A instrução é a única das
nossas coisas que é imortal e divina. Porque só a inteligência
rejuvenesce com os anos e o tempo, que arrebata tudo, dá
sabedoria à velhice. Nem sequer a guerra que, como uma
enxurrada, varre e arrasta tudo, te pode tirar o que sabes.»
As antigas crenças tinham-se desmoronado, mas, pelo contrário,
a imortalidade era posta ao alcance de todos, através da cultura, da
palavra e dos livros. Não esqueçamos que o Museu de Alexandria,
ao qual a Grande Biblioteca pertencia, era um templo onde um
sacerdote oficiava os rituais das musas. É enternecedor pensar
naqueles gregos que sonharam bater às portas do céu empunhando
os seus rolos.

56

Do século III ao I a. C., a paisagem transformou-se, e os livros


encontraram refúgio em novos horizontes. Os papiros egípcios
revelam que, sem chegar a ser total, na época helenística a
alfabetização espalhou-se muito, até para além da classe dirigente.
Claro que os ricos eram os primeiros a entrar na escola e os últimos
a abandoná-la. Porém, pelo menos na Grécia europeia, as crianças
de condição livre tinham mais opções do que em qualquer outra
época de receberem uma educação primária — as leis escolares de
Mileto ou de Teos dão a entender isso mesmo. A legislação desta
última cidade esclarece que o ensino básico se dirigiria igualmente a
meninos e meninas, e pelos vistos era algo generalizado. Aliás, num
grande número de cidades do Egeu e da Ásia Menor houve uma
florescente oferta de ensino para as raparigas de famílias abastadas
— por fim abriram-se as fendas que permitem distinguir a entrada
de meninas estudantes nas aulas e as primeiras gerações de
leitoras.
A possibilidade de aceder à educação estava a expandir-se
através de imensas extensões geográficas. Poder-se-ia fazer uma
longa lista de intelectuais nascidos em cidades insignificantes com
nomes sonoros e longínquos como Küthaya, Eucárpia, Rodiápolis,
Amásia, Seleuceia do Euleu… Não se fundaram apenas bibliotecas
nas capitais — a Biblioteca de Alexandria e a sua rival de Pérgamo.
Também nasciam instituições culturais mais modestas na periferia.
Uma inscrição do século II a. C. encontrada na pequena ilha de Cos
recorda-nos os donativos de vários patrocinadores privados à
biblioteca local.
Por todo o território dos dois novos continentes invadidos pelos
macedónios — África e Ásia —, os teatros, os ginásios e os livros
expressavam a consciência da sua identidade grega. Para os
indígenas, dominar a língua dos seus governantes a ler Tucídides e
Platão ajudava a subir até posições de prestígio. Os conquistadores,
claro, impunham a sua cultura convencidos de estarem a civilizar
bárbaros. Num lugar tão remoto como Ai-Khanoum, no Afeganistão,
conservam-se textos gravados em pedra, sem dúvida chegados até
essas paragens no veículo dos livros — cada vez mais viajantes.
Algo chama a atenção: os escritores desta enorme extensão
geográfica liam e citavam os mesmos autores, começando por
Homero e chegando a Aristóteles e Menandro. O facto de terem
aprendido a ler e escrever com esses livros era quase a única coisa
que um grego nascido no atual Irão e outro nascido no Egito, os dois
tão longe de casa, tinham em comum.
O resgate e o cuidado dessa literatura não podia ser deixado ao
acaso. E os sábios que povoavam o fantástico labirinto de livros
erguido em Alexandria ocupavam-se disso.

Um homem de memória prodigiosa


e um grupo de raparigas vanguardistas

57

Era uma vez, na Grande Biblioteca, um homem de memória


prodigiosa. Dia após dia, dedicava-se a ler os rolos pela sua ordem,
de prateleira em prateleira. E as palavras acariciadas pelos seus
olhos gravavam-se na sua mente, transformando-a pouco a pouco
num arquivo mágico de todos os livros.
Chamava-se Aristófanes de Bizâncio. O seu pai era comandante
de mercenários e tinha-o treinado neste ofício aventureiro e
perigoso. Ele preferiu as viagens imóveis, as múltiplas vidas
imaginárias do leitor. Na sua testa, por trás das madeixas de cabelo
grisalho como líquen, desenhavam-se umas rugas paralelas que
sugeriam as linhas de um texto indecifrável. Ter-se-ia dito que
aquele homem magro e musgoso, sempre em silêncio, mas
habitado por infinitos fantasmas sussurrantes, era cada vez mais
parecido com os livros que devorava.
Um dia celebrou-se em Alexandria um concurso de poesia. O rei
escolheu seis personagens ilustres da cidade como juízes literários.
Faltava mais um para conseguir um número ímpar, e alguém
sugeriu o nome de Aristófanes. Os sete juízes ouviram os poetas
recitar, mas, enquanto os outros aplaudiam, Aristófanes limitava-se
a ficar em silêncio com um ar inexpressivo. Deixou os outros
deliberarem sem se misturar na discussão. Só no fim é que pediu
para falar, para dizer que todos os concorrentes menos um eram
farsantes. Levantou-se, entrou nos pórticos da biblioteca e,
utilizando apenas a sua memória, tirou uma montanha de rolos de
diferentes estantes. Ali estavam, palavra por palavra, recônditos, os
poemas que os escritores batoteiros tinham saqueado. Os ladrões
de palavras não conseguiram enganar Aristófanes. Para ele, cada
verso era tão inconfundível como um rosto, e recordava o seu lugar
nas prateleiras tal como outros conhecem o sítio de cada estrela no
céu noturno.
Conta a lenda que o rei do Egito nomeou aquele memorioso
leitor diretor da Biblioteca. Este episódio, relatado por Vitrúvio,
demonstra que o plágio e os escândalos são tão antigos quanto os
próprios concursos literários. Para além disso, a história de
Aristófanes de Bizâncio revela-nos o crescimento da Grande
Biblioteca, que, um século depois da sua criação, já só podia caber
numa memória fabulosa. Tinha chegado o tempo dos catálogos e
das listas. Na verdade, como explica o ensaísta Philipp Blom,
qualquer colecionador precisa do seu inventário. As coisas que se
esforça por reunir podem voltar a dispersar-se algum dia, vendidas
ou saqueadas, sem deixar rasto da paixão e dos conhecimentos que
impulsionavam o seu antigo dono. Até os mais humildes
colecionadores de selos, livros ou discos ficam magoados ao
imaginarem que, provavelmente, no futuro esses objetos escolhidos
um a um por íntimos motivos voltarão às confusas e desarrumadas
lojas de velharias. Só no seu catálogo, a coleção sobrevive ao seu
próprio naufrágio. É a prova de que existiu como conjunto, como
plano cuidadoso, como obra de arte.
No catálogo manifesta-se o poder do número. Já contei antes
que, de acordo com as fontes, de tempos a tempos o rei Ptolomeu
revia as prateleiras da Biblioteca e perguntava ao seu responsável:
«Quantos livros já temos?» O valor que saía da boca do
bibliotecário resumia o sucesso ou o fracasso do seu grandioso
plano. Esta cena tem uma certa parecença com um episódio
protagonizado por Don Juan Tenorio, a quem se poderia considerar
o arquétipo literário do colecionador insaciável. Na ópera Don
Giovanni, Mozart e o seu libretista Da Ponte incluíram a famosa
«Ária do catálogo», onde o criado Leporello fornece um inventário
de conquistas: «Este é o catálogo das mulheres que o meu senhor
amou, um catálogo que eu próprio elaborei. Observem, leiam
comigo. Em Itália, seiscentas e quarenta, na Alemanha duzentas e
trinta e uma, cem em França, na Turquia noventa e uma, mas em
Espanha já são mil e três!» Os Ptolomeus, como Don Juan,
precisavam de servidores-contabilistas que lhes garantissem que a
soma do seu sucesso continuava a aumentar, que tinham direito de
se sentirem cada vez mais importantes e poderosos. Da mesma
forma, as redes sociais são os Leporellos do nosso mundo virtual.
Alimentando o narcisismo e o impulso colecionador que nasce em
nós, gerem a conta do número de amigos, seguidores e «likes» que
conseguimos conquistar.
A Biblioteca de Alexandria, que tentou tocar levemente no
infinito, também teve um grande catálogo. Sabemos que ocupava
pelo menos cento e vinte rolos, cinco vezes mais do que a Ilíada de
Homero. Só por si, esse dado conserva um laivo da magnífica
coleção perdida. E prova que, naquela altura, o mar de livros tinha
transbordado os diques da memória humana. A soma do saber, da
poesia e dos relatos escritos já nunca voltaria a habitar numa só
cabeça — como se conta que habitou na de Aristófanes.

58

Calímaco de Cirene, um poeta nascido no território líbio e o


primeiro cartógrafo da literatura, encarregou-se do grande catálogo
no século III a. C. Nas galerias, pórticos, salas interiores e
corredores da Biblioteca de Alexandria, com as suas prateleiras a
transbordar, já era possível perder-se. Fazia falta um mapa do
território, uma ordem e uma bússola.
Calímaco é considerado o pai dos bibliotecários. Imagino-o a
preencher as primeiras fichas bibliográficas da História — que
seriam tabuinhas — e a inventar algum antecedente remoto dos
códigos. Talvez tenha conhecido os segredos das bibliotecas
babilónicas e assírias e se tenha inspirado nos seus métodos de
organização, mas chegou muito mais longe do que qualquer um dos
seus antecessores. Traçou um atlas de todos os escritores e de
todas as obras. Resolveu problemas de autenticidade e falsas
atribuições. Encontrou rolos sem título que era preciso identificar.
Quando dois autores tinham o mesmo nome, investigou a identidade
de cada um para diferenciá-los. Em alguns casos confundiam-se
nomes e alcunhas. Por exemplo, o verdadeiro nome — hoje
esquecido — de Platão era Arístocles. Atualmente já só o
conhecemos pelo que parece ser a sua alcunha do ginásio, Platão,
que em grego significava «costas largas» — o filósofo devia estar
muito orgulhoso das suas habilidades pugilísticas na arena.
Em suma, o novo geógrafo dos livros teve de enfrentar infinitas
questões com paciência e amor pelo detalhe minucioso. Calímaco
escreveu uma biografia brevíssima de cada autor, investigou os
dados distintivos — o nome do pai, o local de nascimento, a alcunha
— e elaborou a lista completa das suas obras por ordem alfabética.
O título de cada livro era seguido por uma citação da primeira frase
do texto — caso ainda se conservasse — para facilitar a sua
identificação.
A ideia de utilizar o alfabeto para ordenar e arquivar textos foi um
grande contributo dos sábios alexandrinos. Na nossa vida
quotidiana, assumimo-lo como algo tão comum, tão claro e útil que
nem sequer nos parece uma invenção. E, no entanto, é uma
ferramenta — tal como o chapéu de chuva, os atacadores dos
sapatos ou a lombada dos livros — que alguém idealizou num
momento de inspiração antecedido por uma longa pesquisa. Certos
investigadores julgam que esta simples genialidade pode ser
precisamente aquilo que Aristóteles ensinou aos bibliotecários de
Alexandria. A hipótese é sugestiva, embora impossível de provar.
Em todo o caso, o sistema impôs-se graças aos intelectuais do
Museu. Nós, com um abecedário diferente, continuamos a imitar os
seus gestos.
O catálogo de Calímaco — chamado os Pínakes, «as Tábuas»
— não se conservou, mas em textos dos séculos posteriores
aparecem referências e alusões suficientes para termos uma ideia
bastante aproximada de como foi. Também chegaram até nós listas
que provavelmente foram copiadas dos Pínakes. Por exemplo, os
títulos de setenta e três peças de teatro de Ésquilo por ordem
alfabética, e mais de cem de Sófocles. Estas enumerações são um
autêntico inventário de perdas — hoje só conseguimos ler sete
tragédias completas de cada um.
Numa das suas decisões com maior repercussão, Calímaco
organizou a literatura por géneros. Classificou — já para sempre —
os livros em dois grandes territórios: o verso e a prosa. Depois,
dividiu cada um destes países literários em províncias: épica, lírica,
tragédia, comédia; história, oratória, filosofia, medicina, direito. E, no
fim, uma última secção miscelânea para as obras que não
encaixavam em nenhum dos principais géneros. Ali estavam, por
exemplo, quatro livros de confeitaria. A ordenação alfabética por
géneros, que chegou até às nossas bibliotecas atuais, obedecia a
critérios meramente formais, úteis mas arbitrários. Desde então, os
livros mistos, experimentais, fronteiriços e desobedientes às leis dos
géneros — eles também existiram na Antiguidade — suportaram os
inconvenientes de serem inclassificáveis.
Apesar do seu formalismo, os Pínakes converteram-se numa
ferramenta de pesquisa essencial, no primeiro grande mapa da
literatura, num portulano para navegar o grande oceano da
Biblioteca de Alexandria. E, no encalço de Aristóteles, uma
audaciosa taxonomia do saber e da invenção. Durante toda a
Antiguidade, o catálogo de Calímaco era consultado e atualizado
constantemente. Teve um enorme sucesso e estabeleceu os
alicerces das ciências bibliográficas e enciclopédicas, ramos do
saber que estão ao serviço de todos os outros.
Suponho que Calímaco devia sonhar salvar do esquecimento
todos os pequenos mundos metidos dentro dos livros, até os mais
recônditos, e daí retirou forças e paciência para esse imenso
esforço. Apesar de tudo, ele próprio era um escritor preocupado
com o futuro das palavras. Por incrível que pareça, a sua obra
perdeu-se quase toda.
Pelo que sabemos, foi um poeta transgressor, que defendia com
unhas e dentes a experimentação criativa. Ficava aborrecido com os
fiéis imitadores de um passado literário irrecuperável. Amava a
brevidade, a ironia, o talento, a fragmentação. Às vezes, não há
nada como conhecer bem os clássicos para saber por onde é
possível abrir novos caminhos.

59

Silenciosamente, as bibliotecas invadiram o mundo.


Entre 1500 e 300 a. C., existiram 55 bibliotecas, apenas para um
público minoritário, em algumas cidades do Próximo-Oriente, e
nenhuma na Europa. De acordo com dados de 2014 em Espanha,
97% da população dispõe de, pelo menos, uma biblioteca pública no
lugar onde vive — há um total de 4649 bibliotecas em todo o país.
Estes valores contam a história de uma enorme mudança e de uma
fantástica multiplicação. Embora tenha passado bastante
despercebida, trata-se de uma das realidades antigas que nos
colonizaram com mais eficácia. Se nos perguntássemos, tal como
esses extravagantes membros da Frente Popular da Judeia de A
Vida de Brian, o que é que os gregos e os romanos fizeram por nós
responderíamos sem hesitar: estradas, esgotos, leis, democracia,
teatro, aquedutos. Talvez incluíssemos na lista a épica dos
gladiadores, esse rol de barulhentos lutadores seminus que tanto
fascinavam os guionistas de Hollywood, ou os condutores de
quadrigas, mas nem remotamente pensaríamos no êxito sossegado
das bibliotecas públicas, atualmente cada vez mais vivas do que
nunca.
Não me esqueço da primeira biblioteca da minha infância. Desde
muito pequena, sabia que havia uma floresta em todas as histórias;
ao entrar nos seus misteriosos caminhos, o protagonista esbarra
com a magia e acaba por encontrar alguma maravilha. Eu também
caminhava entre árvores, de mão dada com o meu pai, nas longas
tardes de julho. Costumávamos ir os dois juntos a uma biblioteca
pequena no Parque Grande. Era uma casinha que, pelo seu aspeto
e o seu telhado, me parecia retirada de alguma história ou talvez de
um país alpino. Entrava no seu interior em penumbra, escolhia uma
banda desenhada e voltava a sair para o luminoso exterior do
parque com o tesouro bem abraçado, até escolher um banco onde
lê-lo. E lia-o com muita atenção, da primeira à última letra, bebendo
os desenhos e as palavras, enquanto a tarde caía lentamente e se
ouvia a música metálica das bicicletas a passarem. Quando
acabava, devolvia a banda desenhada que tinha sido a minha
pilhagem durante umas horas, saía da floresta e voltava a casa com
a imaginação a fervilhar na frescura do anoitecer.
As maravilhas daquele parque que tinha subido à categoria de
floresta pelo meu olhar infantil eram, claro, pura fantasia; os livros e
os heróis que os habitavam; o sussurro dos álamos que, com os
seus cochichos misteriosos, pareciam prometer uma história; a
biblioteca. Tinha-me convertido numa junkie da banda desenhada, e
todas as tardes eu exigia uma dose maior.
As centenas de milhares de bibliotecários que trabalham em todo
o mundo alimentam o nosso vício das palavras. São os guardiães
da droga. Confiamos-lhes a soma dos nossos conhecimentos e dos
nossos sonhos, desde os contos de fadas às enciclopédias, desde
os opúsculos eruditos às bandas desenhadas mais reles. Agora que
muitas editoras destroem os seus fundos para evitarem os gastos
de armazenamento, ali encontramos um depósito de palavras sem
utilidade; o cofre do tesouro.
Cada biblioteca é única e, como alguém me disse uma vez, é
sempre parecida com o seu bibliotecário. Admiro essas centenas de
milhares de pessoas que ainda confiam no futuro dos livros ou,
melhor dito, na sua capacidade de abolirem o tempo. Que
aconselham, incentivam, planeiam atividades e criam pretextos para
que o olhar de um leitor acorde as palavras adormecidas, às vezes
durante anos, de um exemplar empilhado numa estante. Sabem que
esse ato tão quotidiano é, no fundo — levanta-te, Lázaro —, a
ressurreição de um mundo.
Os bibliotecários têm uma longa genealogia que começa no
Crescente Fértil da Mesopotâmia, mas quase não sabemos nada
sobre esses longínquos antepassados da profissão. O primeiro que
nos fala com a sua voz própria é Calímaco, a quem podemos
imaginar com um perfil nítido no seu paciente trabalho de
catalogação e nas suas longas noites de escrita. Depois de
Calímaco, muitos escritores fizeram de bibliotecários durante
alguma época da sua vida, entre paredes de livros que convidam e
paralisam ao mesmo tempo. Goethe, Casanova, Hölderlin, os
irmãos Grimm, Lewis Carroll, Musil, Onetti, Perec, Stephen King.
«Deus tornou-me poeta e eu tornei-me bibliotecária», escreveu
Gloria Fuertes.
E Borges, o bibliotecário cego que se converteu quase num
género literário. Um amigo do escritor conta que uma vez percorreu
a Biblioteca Nacional de Buenos Aires com ele. Borges movia-se
entre as prateleiras como no seu próprio habitat. Abraçava cada
uma das estantes com o olhar, já quase sem vê-las nitidamente.
Sabia onde estava cada livro e, ao abri-lo, encontrava logo a página
precisa. Perdendo-se nos corredores forrados de livros, deslizando
por lugares quase invisíveis, Borges abria caminho na escuridão da
biblioteca com a delicada precisão de um equilibrista; como Jorge
de Burgos, esse guardião cego — e assassino silencioso — da
biblioteca abacial de O Nome da Rosa, que Umberto Eco, entre a
homenagem e a irreverência, imaginou inspirando-se nele.
No início do século XX, este ofício desempenhado por homens
desde os tempos de Nínive, Babilónia e Alexandria em diante,
começou a transformar-se num território pacificamente invadido por
mulheres. Em 1910, eram quase 80% do total. E, como só as
mulheres solteiras tinham autorização para trabalhar, o imaginário
coletivo construiu a caricatura da bibliotecária solteirona, irascível,
antipática, com um coque cinzento, óculos, roupa antiquada e muita
vontade de grunhir. A mentalidade dessa época não tão longínqua
achava que uma mulher que trabalhasse entre livros só se podia
lamentar com amargura pelo namorado que nunca lhe pôs um anel
no dedo e pela sua prole inexistente. Em Do Céu Caiu uma Estrela,
estreado nada mais, nada menos do que em 1946, encontramos um
reflexo desse estereótipo. Parece-me um momento
insuperavelmente paradoxal, mas infelizmente está rodado sem
qualquer ironia. O protagonista, George Bailey, interpretado por
James Stewart, está à beira do suicídio na noite de Natal. Então,
intervém o seu anjo da guarda para lhe mostrar como seria o mundo
se ele não tivesse nascido e assim convencê-lo de que a sua vida
não é um inane despropósito. Depois de contemplar como todos os
seus amigos e familiares teriam sido mais desgraçados sem ele,
George pergunta pela sua mulher: onde é que está Mary? O anjo
balbucia; não… não me peças isso. George, angustiado,
imaginando o pior, agarra no anjo pela lapela. Se sabes onde está a
minha mulher, diz-mo. Não to posso dizer. Por favor. Não vais
gostar, George. À beira do desespero, George pergunta: Onde é
que está, onde é que está? Ficou solteira… Está prestes a fechar a
biblioteca. George deixa cair o anjo e corre para a biblioteca. Então,
Mary, que efetivamente está a fechar a porta da Biblioteca Pública
de Pottersville, aparece no ecrã. Veste o uniforme completo: fato
monástico, carrapito, óculos grossos. Caminha a agarrar a mala
contra o peito, complexada e infeliz. A banda sonora do filme cria
uma atmosfera lúgubre. E, perante a horrorizada expressão de
George, espera-se que o espectador, metendo as mãos na cabeça,
pense: Não, uma bibliotecária não!
Estes clichés, como demonstrou a investigadora Julia Wells,
continuam presentes no cinema contemporâneo. Muitas
bibliotecárias na ficção continuam a aparecer como mulheres
resmungonas que lançam furibundos chiuuus a quem se atreve a
falar nos seus domínios. E aqui tropeço com uma triste ironia
histórica. Durante os anos imediatamente anteriores à rodagem do
filme de Frank Capra, na Espanha do pós-guerra, a maior parte das
bibliotecárias que trabalharam durante a República foram
consideradas perigosas revolucionárias e submetidas a processos
de depuração. Em geral, eram o reverso do fantasma de Mary em
Do Céu Caiu uma Estrela: raparigas modernas, vanguardistas,
pioneiras nas universidades espanholas. As autoridades franquistas
investigaram as suas atividades públicas, a sua vida profissional e o
seu comportamento privado. As que conseguiram manter o seu
trabalho no Corpo público de Bibliotecários e Arquivistas sofreram
humilhantes cortes no salário, destinos forçados e ficaram
incapacitadas de assumir cargos de direção. Penso em María
Moliner, a quem baixaram dezoito lugares na hierarquia, excluindo-a
para toda a sua carreira de cargos de direção ou confiança.
Relegada primeiro para o Arquivo de Finanças de Valência e depois
para a Escola de Engenheiros de Madrid, elaborou sozinha o seu
fantástico dicionário. A biblioteca da infância da minha mãe não era
uma casinha encantada na floresta, como a minha; era o edifício
onde trabalhavam duas mulheres que sofreram represálias.
As bibliotecas e os bibliotecários têm a sua própria história
universal da infâmia: ataques, bombardeamentos, censura,
depurações, perseguição. Inspiraram uma galeria de personagens
fantásticas, como Jorge de Burgos em O Nome da Rosa, capaz de
converter um livro de Aristóteles em arma do crime; ou Mary, que
vive ao mesmo tempo em duas dimensões espácio-temporais, como
uma feliz mãe de família e como uma atormentada bibliotecária (e
não sabemos qual dessas vidas prefere). Mas o mais surpreendente
de tudo é o caminho percorrido desde as origens orientais — com
os seus grémios de escribas e castas de sacerdotes que mantinham
o conhecimento vigiado — até às bibliotecas de hoje, abertas a todo
aquele que queira ler e aprender.
Nas suas prateleiras aguardam juntos livros escritos em países
inimigos, até em guerra uns contra os outros. Manuais de fotografia
e de interpretação dos sonhos. Ensaios que falam de micróbios ou
de galáxias. A autobiografia de um general ao lado das memórias de
um desertor. A obra otimista de um autor incompreendido e a obra
obscura de um autor de sucesso. Os apontamentos de uma
escritora viajante ao lado dos cinco volumes de que um escritor
sedentário precisa para contar detalhadamente os seus sonhos. O
livro impresso ontem e ao seu lado o que acaba de fazer vinte
séculos. Aí não se conhecem as fronteiras temporais nem
geográficas. E, finalmente, estamos todos convidados a entrar:
estrangeiros e locais, pessoas com óculos, com lentes ou com
remelas. Homens que levam coque ou mulheres que levam gravata.
Isso é parecido com uma utopia.

60

Mallarmé, no século XIX, escreveu: «A carne é triste e, ai, li todos


os livros.» Provavelmente, o poeta referia-se ao tédio de uma
existência saturada e esmorecida. Porém, lidas desde os tempos da
Amazon e do Kindle, as suas palavras lembram-nos com ironia que
a aspiração a conhecer todos os livros é apenas um sonho
impossível dos bibliófilos mais loucos. A humanidade publica um
livro de meio em meio minuto. Imaginando um preço de vinte euros
e uma grossura de cerca de dois centímetros, seriam necessários
mais de vinte milhões de euros e à volta de vinte quilómetros de
prateleiras para a ampliação anual da biblioteca de Mallarmé.
O catálogo de Calímaco foi o primeiro atlas completo dos livros
conhecidos. O continente cartografado acabou por ser enorme, e os
gregos sentiram-se, pelo menos, tão ultrapassados como nós.
Nenhuma pessoa leria a totalidade dos rolos guardados na
Biblioteca de Alexandria. Ninguém saberia tudo. Cada vez mais, o
conhecimento de cada um seria um arquipélago mínimo no
incomensurável oceano da sua ignorância.
Nasceu então a ansiedade de selecionar: o que ler, ver, fazer,
antes que seja demasiado tarde? Pelo mesmo motivo, hoje
continuamos obcecados com as listas. Há apenas uns anos, Peter
Boxall publicou a enésima lista de livros — neste caso, 1001, como
a noites de Xerazade — que é preciso ler antes de morrer.
Atualmente, proliferam as seleções dos discos que vale a pena
ouvir, dos filmes que convém não perder ou dos lugares onde
devíamos viajar. A Internet é a grande lista dos nossos dias,
fragmentária e infinitamente ramificada. Qualquer manual de
autoajuda que se preze, encaminhado a tornar-nos milionários, a
ajudar-nos a conquistar o sucesso ou a redimir-nos da obesidade,
inclui o conselho básico de fazer listas. Perseverarás nos propósitos
inventariados e a tua vida melhorará. As enumerações têm que ver
com a ordem como ansiolítico, ou seja, com o nosso sistema
defensivo para neutralizar a expansão do caos. Também têm que
ver com a angústia, com o medo, com o doloroso convencimento de
que temos os dias contados. Daí que tentemos reduzir as coisas
que nos ultrapassam a dez, cinquenta, cem epígrafes.
Ao percorrer com o olhar o desmesurado catálogo, sem dúvida
os sábios da Grande Biblioteca foram infetados pelo mesmo vírus
invasor das listas. Quais eram os livros imprescindíveis de cada
género? Que narrações, que versos, que ideias deviam chegar às
gerações futuras?
Na época de reprodução manuscrita, a sobrevivência de um livro
antigo exigia um enorme esforço porque o material se deteriorava e
era preciso voltar a copiá-lo de vez em quando. Estas cópias
sucessivas também obrigavam a rever a edição e a comentá-la para
que a passagem dos anos não obscurecesse o seu sentido. Os
sábios da Biblioteca, com os seus dias contados, não podiam
garantir essa dedicação a todos os livros do catálogo. Era preciso
escolher. As suas listas foram, como a maior parte das nossas, um
programa de trabalho, mas para além disso criaram um sistema de
referências que chegou até aos nossos dias. Em A Vertigem das
Listas, Umberto Eco defende que as listas são, na verdade, a
origem da cultura, parte da história da arte e da literatura.
Acrescenta que nas enciclopédias e nos dicionários encontramos
formas elaboradas das listas. E todas elas — repertórios,
bibliografias, índices, tabelas, catálogos, dicionários — tornam o
infinito mais compreensível.
Os gregos tinham uma palavra para os autores incluídos nas
listas: enkrithéntes, «os que ultrapassaram a seleção, os
peneirados». A palavra escolhida sugere a metáfora rural da
peneira, que separa e distingue o trigo do joio. A uma escala menor
do que a dos nossos tempos, na Antiguidade também abundavam
as listas de autores enkrithéntes que devíamos ler antes de morrer.
Conhecemos os títulos de uns manuais de época imperial que
parecem tão atuais como as novidades contemporâneas: Conhecer
os Livros, de Telefo de Pérgamo, Sobre a Escolha e Aquisição de
Livros, de Erénio Filão ou O Bibliófilo, de Damófilo de Bitínia. Esses
tratados encaminhavam os leitores na seleção de livros, destacando
as obras essenciais. Algumas destas listas antigas chegaram até
nós e, embora apresentem diferenças entre si — as seleções
atualizam-se constantemente —, mantêm um cenário comum.
Depois de rastreá-las e compará-las, acho que todas dizem respeito
aos sábios de Alexandria e ao catálogo de Calímaco. E acho que o
sentido originário daquelas seleções foi reunir esforços para impedir
que um punhado de livros maravilhosos, os preferidos, caísse no
esquecimento.
Escolher é, de alguma forma, salvaguardar. Hoje continuamos a
elaborar listas de paisagens e monumentos declarando-os
património da humanidade, para tentar protegê-los das vagas de
destruição.
Alexandria é um ponto de partida. Ali o dinheiro dos reis e o
empenho dos estudiosos mantiveram um grande trabalho de
conservação e salvamento. Talvez pela primeira vez, os gregos
perceberam que as frágeis palavras dos livros eram uma herança de
que os seus filhos e os filhos dos seus filhos precisariam para
explicar a vida: que algo tão efémero — o desenho de um sopro de
ar, a vibração musical dos nossos pensamentos — tinha de ser
preservado a pensar nas gerações futuras; que as antigas histórias,
lendas, contos e poemas são testemunhos de umas aspirações e de
uma forma de entender o mundo que se negam a morrer.
Acho que a grande originalidade dos sábios da Biblioteca de
Alexandria não tem que ver com o seu amor pelo passado. O que os
tornou visionários foi entender que Antígona, Édipo e Medeia —
esses seres de tinta e papiro ameaçados pelo esquecimento —
deviam viajar através dos séculos; que não se podia privar milhões
de pessoas ainda por nascer dos mesmos; que inspirariam as
nossas rebeldias, que nos recordariam o quão dolorosas podem ser
certas verdades, que revelariam os nossos recantos mais obscuros;
que nos esbofeteariam sempre que nos orgulhássemos demasiado
da nossa condição de filhos do progresso; que nos continuariam a
importar.
Pela primeira vez, contemplaram os direitos do futuro — os
nossos.

61

Enquanto escrevo, dezembro acaba no meio da habitual neurose


das listas — dos mais vendidos à dos que se vestem melhor no ano.
Os últimos doze meses ficam resumidos nestas listas-pódio que
todos os jornais publicam e que invadem as redes. A realidade
transforma-se num grande torneio, e apaixona-nos saber quem são
os vencedores. Por uma vez, a culpa deste impulso não é da
Internet. Os gregos foram pioneiros da classificação com as suas
famosas listas: os sete sábios e as sete maravilhas. Invadidos,
como nós, pela febre culinária, anteciparam o Guia Michelin
elaborando o seu próprio palmarés gastronómico. Encontrámos uma
lista dos Sete Grandes Cozinheiros Gregos num curioso ensaio do
século II intitulado Deipnosofistas. Nele, um erudito cozinheiro
ensina ao seu aprendiz os nomes dos sete chefes mais ilustres e a
especialidade de cada um: Agis de Rodes e os seus perfeitos
assados de peixe; Nereu de Chios, que cozinhava um congro digno
dos deuses; Caríades de Atenas, o mestre dos ovos com molho
branco; Lamprias e o caldo negro; Aftoneto, criador do enchido;
Eutino, o grande cozinheiro das lentilhas; Aristão, o inventor de
numerosos guisados; entre eles a cozinha por evaporação — o que
hoje chamaríamos cozinha de autor. E conclui: «Eles converteram-
se nos nossos segundos sete sábios.» Não faltam traços de uma
ironia muito atual: no próprio ensaio, um ilustre artista dos fogões
afirma trocista que, «de todos os condimentos, o mais importante na
cozinha é a fanfarronice».
Os escritores, como é evidente, também foram alvo de listas, até
antes da fundação da Biblioteca de Alexandria. Já no século IV a. C.,
os grandes nomes da tragédia eram um repertório fechado: Ésquilo,
Sófocles e Eurípides. Meio século depois da morte do último deles,
a reposição das suas célebres peças de teatro converteram-se no
ingrediente principal dos programas cénicos. Atraíam mais público
do que os seus sucessores vivos. O governo ateniense decidiu criar
um arquivo estatal para proteger — como bem público — as versões
genuínas das tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, e só dos
três.
Os trágicos gregos seriam para sempre um trio. Provavelmente,
foi na Grande Biblioteca que se criaram outras listas famosas — os
nove poetas líricos, os dez oradores. Desde aqueles tempos
remotos, as listas preferem certos números dotados de uma aura
mágica (três, sete, nove, dez).
Existe, sem dúvida, o prazer de enumerar. Conheço-o; vivi-o.
Durante os seus últimos meses, o meu pai dedicou muitas horas, e
as poucas forças que lhe restavam, a navegar por sites de desporto.
Procurava fotografias de jogos de futebol da boa época — a sua,
claro —, por volta do final dos anos cinquenta e do início dos
sessenta do século passado. Para o meu pai, qualquer futebol do
passado foi melhor. Se havia algo que o emocionava era encontrar
alguma velha constituição da equipa que tinha memorizado quando
era pequeno. Primeiro dizia-a em voz alta, lendo-a no ecrã,
saboreando a ordem precisa das palavras. Depois apontava-a num
caderno de espiral e folhas quadriculadas que ainda conservo.
Mostrava-me com orgulho as suas listas, equipas de fantasmas,
filas e filas de nomes escritos com a sua bonita letra já um pouco
trémula pelo avançar da doença. As estrofes dessas canções —
onze apelidos aprendidos de cor e depois esquecidos — tinham o
poder de o levar de volta à sua infância. As listas também são uma
parte íntima da autobiografia de cada pessoa.
A escrita, dizem os especialistas, nasceu para fazer
contabilidade, ou seja, listas de cabras, de espadas e de ânforas de
vinho. Talvez por isso a literatura sempre tenha continuado a
inventar como inventariar. No Canto II da Ilíada apresenta-se uma
longuíssima enumeração das naus gregas que combatem contra os
troianos. A Bíblia não seria a mesma sem os dez mandamentos e as
genealogias infinitas. Uma escritora japonesa do século X, Sei
Shōnagon, introduziu 164 listas no seu Livro do Travesseiro.
Anotava tudo aquilo que fosse possível catalogar por ordem
descendente e por escrito. Iniciava as suas enumerações com
epígrafes sugestivas como «Coisas que aceleram os batimentos do
coração», «Coisas que devem ser breves», «Coisas que perdem ao
serem pintadas», «Coisas que estão perto embora estejam
distantes», «Pessoas que parecem satisfeitas consigo próprias»,
«Nuvens e coisas de que gosto particularmente».
No penúltimo capítulo do seu Ulisses, Joyce detalha uma prolixa
lista dos utensílios que se podem encontrar na gaveta da cozinha de
Leopold Bloom. Tenho uma predileção pelas seis propostas para o
próximo milénio de Italo Calvino. E pelas enumerações de Borges,
em particular pelos seus poemas dos dons. E pela tentativa de
Perec, sentado num café da Praça Saint-Sulpice, de esgotar um
lugar parisiense.
Joe Brainard publicou em 1975 o livro I Remember, no qual
descrevia as suas lembranças numa emotiva lista ao longo de cento
e cinquenta páginas. «Lembro-me de quando achava que nada
velho podia ter valor.» «Lembro-me de ler doze livros todos os
verões para me darem um diploma da biblioteca municipal. Estava-
me nas tintas para ler, mas adorava conseguir diplomas. Lembro-me
de que escolhia livros com a letra grande e muitos desenhos.»
«Lembro-me de ter uma lista onde ia apontando os estados
visitados.» «Lembro-me de fantasiar com o facto de algum dia
conseguir ler uma enciclopédia toda e de saber tudo.»
Não posso omitir o «contributo para a estatística» de Wislawa
Szymborska: «De cada cem pessoas, as que sabem tudo: cinquenta
e duas;/ as inseguras de cada passo: quase todas as outras;/ as
prontas a ajudar, sempre que não dure muito: até quarenta e nove;/
as sempre boas, porque não conseguem ser de outra forma: quatro,
ou talvez cinco;/ as capazes de ser felizes: no máximo, vinte e
tantas;/ as inofensivas sozinhas, mas selvagens em grupo: mais de
metade, de certeza;/ as cruéis quando as circunstâncias obrigarem
a isso, é melhor não sabê-lo nem sequer aproximadamente (…);/ as
mortais: cem de cem./ Valor que por agora não sofre qualquer
alteração.»
Passamos a vida a fazer listas, a lê-las, a decorá-las, a rasgá-
las, deitando-as no caixote do lixo, a riscar objetivos cumpridos, a
detestá-las e a amá-las. As melhores são as que dão importância ao
que enumeram e tentam dar-lhe sentido. As que acariciam os
detalhes e a singularidade do mundo, impedindo que percamos de
vista aquilo que é valioso. Apesar de agora, em pleno
bombardeamento de fim de ano, nos cansarem tanto que temos
vontade de pô-las na lista negra.
Tecedeiras de histórias

62

Só há uma presença feminina no cânone literário grego: Safo. É


tentador atribuir esse gritante desequilíbrio ao facto de as mulheres
não escreverem na Grécia Antiga. Só é verdade em parte. Embora
para elas fosse mais difícil educar-se e ler, muitas superaram os
obstáculos. De algumas, restam fragmentos incompletos de
poemas; da maioria, apenas um nome. Esta é a minha lista
provisória de escritoras quase esquecidas: Corina, Telesila, Mirtis,
Praxila, Eumetis também chamada Cleobulina, Beo, Erina, Nóside,
Mero, Ánite, Mosquina, Hédila, Filina, Melino, Cecília Trébula, Júlia
Balbila, Damo, Teosébia.
Intrigam-me os versos de cada uma delas que já nunca leremos
porque, para mim, o grego começou com voz de mulher — a voz da
minha professora da escola. Lembro-me de que, no início, as suas
aulas não me impressionaram muito — demoramos sempre algum
tempo a reconhecer quem vai mudar a nossa vida. Naquela altura,
eu era uma adolescente decidida a vender muito cara a minha
admiração. Esperava professores carismáticos, seguros de si
próprios, daqueles que — tinha-os visto em alguns filmes — entram
na sala com um ar rebelde, sentam o rabo à beira da sua secretária
e começam a falar, talentosos, brilhantes, divertidos. Exteriormente,
a Pilar Iranzo não encaixava nessa fantasia. Altíssima e magra,
encurvava ligeiramente os ombros, como que pedindo desculpa por
ser mais alta do que toda a gente. Usava uma bata branca
convencional. Ao falar, as suas compridas mãos de pianista
agitavam-se no ar com nervosismo. Às vezes gaguejava a explicar a
lição, como se de repente as palavras fugissem em debandada da
sua cabeça. Ouvia com uma atenção intensa, fazia mais perguntas
do que afirmações e parecia sentir-se especialmente à vontade ao
abrigo do ponto de interrogação.
A surpreendente Pilar quebrou depressa as cercas de arame do
meu ceticismo. Daqueles anos a aprender com ela, lembro-me do
prazer da descoberta, do voo, da espantosa alegria da
aprendizagem. Éramos um grupo tão pequeno de estudantes que
acabámos por nos sentar todos à volta de uma mesa e por formar
uma roda como se fôssemos conspiradores. Aprendíamos por
contágio, por iluminação. A Pilar entrincheirava-nos por trás das
declinações, das frias datas e números, das teorias abstratas, dos
artefactos convencionais. Era transparente: sem artimanhas, sem
alardes, sem poses, revelou-nos a sua paixão pela Grécia.
Emprestava-nos os seus livros preferidos, contava-nos os filmes da
sua juventude, as suas viagens, os mitos nos quais se reconhecia.
Quando falava da Antígona, ela própria era a Antígona; e quando
falava da Medeia, parecia-nos a história mais terrorífica que alguma
vez tínhamos ouvido. Ao traduzi-las, sentíamos que as obras
clássicas tinham sido escritas para nós. Esquecíamos o medo de
não entendê-las. Deixaram de ser lajes pesadas, impostas. Graças
à Pilar, alguns de nós anexámos um país estrangeiro ao nosso
mundo interior.
Anos depois, quando eu própria tive de enfrentar a vertigem de
uma aula, compreendi que precisamos de gostar dos nossos alunos
para despirmos perante eles aquilo que amamos: para nos
arriscarmos a oferecer a um grupo de adolescentes os nossos
autênticos entusiasmos, os nossos próprios pensamentos, aqueles
versos que nos emocionam, sabendo que poderiam fazer troça ou
responder inexpressivamente e com uma evidente indiferença.
Enquanto tirava o curso, costumava visitar a Pilar durante as
horas em que dava aulas no seminário de Grego. Quando se
reformou, continuei a vê-la num café perto da sua casa. Precisava
de lhe agradecer aquela forma tão imprudente de ensinar, confiando
em todos nós. Achando que merecíamos saber. Partilhando a sua
maneira íntima e misteriosa de ouvir as vozes do passado.
Naqueles encontros, falávamos durante horas, saltando no tempo
desde o presente dos nossos assuntos até à Antiguidade grega, que
era o que nos unia. Mas tropeçávamos num paradoxo: compreender
que teria sido terrível viver na época que tanto nos fascinava, onde
as mulheres permaneciam afastadas do poder, onde não tinham
liberdade, onde nunca deixavam de ser menores de idade. A Pilar,
que tinha dedicado tantos anos a transmitir a luminosa herança da
Grécia, sabia que aquela época a teria condenado a permanecer na
sombra. Sentia a falta das palavras das escritoras perdidas e dos
seus poemas nascidos no silêncio.

63

A história da literatura começa de forma inesperada. O primeiro


autor do mundo que assina um texto com o seu próprio nome é uma
mulher.
Mil e quinhentos anos antes de Homero, Enheduanna, poeta e
sacerdotisa, escreveu um conjunto de hinos cujos ecos ainda se
ouvem nos Salmos da Bíblia. Rubricou-os com orgulho. Era filha do
rei Sargão da Acádia, que unificou a Mesopotâmia central e
meridional num grande império, e tia do futuro rei Naram-Sim.
Quando os estudiosos decifraram os fragmentos dos seus versos,
perdidos durante milénios e recuperados apenas no século XX,
alcunharam-na de «a Shakespeare da literatura suméria»,
impressionados com a sua escrita brilhante e complexa. «O que eu
fiz ninguém fez antes», escreve Enheduanna. Também são suas as
mais antigas notações astronómicas. Poderosa e audaciosa,
atreveu-se a participar na agitada luta política da sua época, e por
isso sofreu o castigo do exílio e a sua nostalgia. Porém, nunca
deixou de escrever cantos para Inana, a sua divindade protetora,
senhora do amor e da guerra. No seu hino mais íntimo e recordado,
revela o segredo do seu processo criativo: a deusa lunar visita a sua
casa à meia-noite e ajuda-a a «conceber» novos poemas, «fazendo
nascer» versos que respiram. É um acontecimento mágico, erótico,
noturno. Enheduanna foi — que saibamos — a primeira pessoa a
descrever o misterioso parto das palavras poéticas.
Esse promissor começo não teve seguimento. A Odisseia, como
já referi antes, apresenta o adolescente Telémaco a mandar calar a
mãe porque a sua voz não deve ser ouvida em público. Mary Beard
analisou com um fino humor este episódio do poema homérico. «A
palavra deve ser coisa de homens», diz Telémaco. Refere-se ao
discurso público com conhecimento de causa, não à conversa, à
tagarelice ou aos mexericos, que qualquer um — incluindo as
mulheres; sobretudo as mulheres — podia praticar.
O silenciamento de Penélope inicia uma longa lista de
imperativos repetidos ao longo de toda a Antiguidade greco-latina.
Por exemplo, o filósofo Demócrito, defensor da democracia e da
liberdade, tão subversivo em muitos aspetos do seu pensamento,
não tinha qualquer inconveniente em recomendar «que a mulher
não se exercite na fala, pois isso é terrível». Calar-se em público,
escreveu, devia ser considerado o melhor adorno feminino. Aquela
civilização tinha esta ideia tatuada na sua mente: a palavra pública
pertencia apenas aos homens. O território da política, da oratória e,
em grande parte, da literatura, eram os seus domínios. Não
devíamos esquecer que a democracia ateniense se alicerçou na
exclusão de todas as mulheres — e dos estrangeiros e escravos, ou
seja, da maior parte da população. Como dizia o protagonista da
série britânica dos anos oitenta Sim, Senhor Ministro: «Temos direito
de escolher o melhor homem para o cargo, à margem do seu sexo.»
É verdade que essa exclusão não se vivia da mesma forma em
toda a geografia grega. E aqui nasce outro paradoxo. Atenas, a
capital das experiências políticas e da ousadia intelectual, foi talvez
a cidade grega mais repressiva com as mulheres. Nesse lugar que
tanto admiramos, elas — se tivessem nascido em casas ricas —
quase não punham um pé na rua; permaneciam confinadas dentro
de casa, a tecer entre os muros do gineceu, longe do espaço
público e da ebulição da ágora. É preciso dizer que os pobres não
tinham nem o dinheiro suficiente nem os meios necessários para se
permitirem esse apartheid familiar; mas, por outro lado, essas vidas
limitadas, a miséria, o suor e a força dos costumes também não
permitiam grandes margens de liberdade.
Como todas as diversões áticas, o teatro era um clube
masculino. Os autores, os atores e os cantores do coro eram
homens — por mais que hoje nos custe imaginar um barbudo
ateniense a interpretar a Antígona ou a Electra. Na época clássica,
quando Atenas liderava a Grécia, a ausência de mulheres criadoras
foi mais gritante do que nunca.
Existia outro mundo mais aberto na costa da Anatólia e nas ilhas
próximas do Egeu (Lesbos, Quios, Samos…), terra de emigrantes
gregos na fronteira com a Ásia. Aí, as proibições não eram tão
estritas, nem o encerramento tão asfixiante. As meninas recebiam
uma educação e, sempre que fossem ricas e nobres, algumas
mulheres podiam fazer ouvir a sua voz — certos investigadores
dedicam-se a procurar na região indícios dos últimos resquícios de
um matriarcado perdido. Segundo Platão, na ilha de Creta,
«chamavam mátria à pátria». Na famosa Batalha de Salamina,
combateu na frente de uma flotilha a única comandante-chefe
conhecida. Chamava-se Artemísia e vinha da cidade costeira de
Halicarnasso, na Ásia Menor, onde reinava. Embora fosse grega,
aliou-se aos invasores persas. Conta-se que os atenienses
ofereciam uma recompensa de dez mil dracmas pela sua cabeça,
«já que consideravam algo inadmissível que uma mulher fizesse a
guerra a Atenas».
E em Rodes, uma ilha próxima, somos surpreendidos por um
caso insólito: o de uma rapariga jovem que, sem se dedicar à
prostituição, participa nos banquetes masculinos. Chama-se
Eumetis, que significa «a de boa inteligência», mas todos a
conheciam como Cleobulina porque era a filha de Cleóbulo, um dos
sete sábios. Tal como Enheduanna, era filha de um rei. Cleobulina
tinha inteligência política e soube utilizar bem a sua influência.
Diziam que tinha convertido o seu pai num governante mais
atencioso e solidário para com os seus súbditos. Desde criança, ao
brincar inventava adivinhas, enquanto fazia tranças em fitas e
pequenas redes. Escreveu um livro de adivinhas em hexâmetros
que ainda se recordaria séculos depois. Um texto antigo situa-a num
simpósio, relacionando-se com toda a liberdade com os homens.
Diverte-se, intervém na conversa, brinca a pentear e a despentear o
cabelo de um dos sete sábios. Como era talentosa e engraçada
numa época que queria mulheres silenciosas, Cleobulina prestava-
se à caricatura. Sabemos que um cómico ateniense a parodiou
numa peça de teatro intitulada — no plural — As Cleobulinas. Pode-
se supor que a comédia, hoje perdida, fabricaria umas personagens
parecidas às de As Preciosas Ridículas de Molière: jovenzinhas
absurdas que perdem a cabeça pelos jogos de palavras e que,
embora se julguem muito espertas, na verdade são umas pedantes
insuportáveis. As mulheres que escreviam enfrentavam a ameaça
da troça, esse espelho deformante. Talvez por isso amassem o
segredo, sugerir sem chegar a dizer, a adivinha, a interrogação.
Como escreve Carlos García Gual, «expressar-se através de
enigmas era, no âmbito grego, algo próprio das mulheres, também
tecedeiras com palavras».

64

Safo — conta-o ela própria — era baixinha, morena e pouco


atraente. Nasceu numa família aristocrática em decadência. Ao
contrário de Cleobulina, não era filha de reis. O seu irmão mais
velho esbanjou a fortuna familiar, ou o que restava dela. Casaram-
na com um estranho, como era habitual, e teve uma filha. Tudo a
encaminhava para uma vida anónima.
As mulheres gregas não escreviam poesia épica, claro. Não
conheciam a experiência das armas porque as batalhas eram o
perigoso desporto da aristocracia masculina. Para além disso, elas
não podiam ter a vida livre e itinerante dos aedos, viajando de
cidade em cidade para oferecerem o seu canto. Também não
participavam nos banquetes nem nas competições desportivas, nem
nos assuntos políticos. O que é que podiam fazer? Albergavam
recordações. Como essas amas e avós que contavam histórias aos
irmãos Grimm, transmitiam de geração em geração lendas
velhíssimas. Também compunham cantos para os coros femininos
(canções de casamento, canções em honra dos deuses, canções
para dançar). E falavam de si próprias em poemas para uma só voz,
acompanhados da lira — daí provém o termo «poesia lírica».
Tratava-se de universos obrigatoriamente pequenos e locais. Ainda
assim, de forma quase milagrosa, algumas mulheres lançam desde
o seu canto um olhar original e fulminam os muros que as
aprisionam. Safo fê-lo. Fá-lo-iam outras reclusas transgressoras
como Emily Dickinson ou Janet Frame.
Safo escreveu: «Alguns dizem que nada é mais belo na negra
terra do que um esquadrão de ginetes, ou de infantes, ou de naus.
Mas eu digo que o mais belo é a pessoa amada.» Estas simples
palavras escondem uma revolução mental. Quando foram escritas,
no século VI a. C., quebraram os esquemas tradicionais. Num
mundo profundamente autoritário, o poema surpreende porque tem
múltiplas perspetivas, e até parece celebrar a liberdade do
desacordo. Para além disso, atreve-se a questionar aquilo que a
maioria admira: os desfiles, os exércitos, a exibição e o alarde de
poder. Provavelmente, Safo teria cantado o mesmo que Georges
Brassens sobre a sua má reputação: «Quando é dia de festa
nacional/ eu fico à mesma na cama,/ pois a música militar/ nunca
me soube animar.» Diante das aborrecidas exibições de força
guerreira, ela preferia sentir e evocar o desejo. «O mais belo é o que
cada um ama.» Inesperado, este verso afirma que a beleza está
primeiro no olhar do amante; que não desejamos quem nos parece
mais atraente, mas sim parece-nos mais atraente porque o
desejamos. Segundo Safo, quem ama cria a beleza; não se rende a
ela como as pessoas costumam pensar. Desejar é um ato criativo,
tal como escrever versos. Favorecida com o dom da música, a
pequena e feia Safo podia decorar o minúsculo mundo que a
rodeava com as suas paixões e embelezá-lo.
Em algum momento, a biografia de Safo sofreu uma reviravolta.
O seu casamento acabou e ela trocou as rotinas do lar por uma
nova atividade que não conhecemos bem. Recorrendo aos
deteriorados fragmentos que nos chegaram dos seus versos e
através de notícias sobre ela, podemos reconstruir o ambiente
pouco convencional no qual viveu esses anos. Sabemos que
orientou um grupo de raparigas novas, filhas de famílias ilustres.
Sabemos também que se apaixonou em momentos sucessivos por
algumas delas — Átis, Dica, Irana, Anactória —, e que juntas
compunham poesia, faziam sacrifícios a Afrodite, entrançavam
coroas de flores, sentiam desejo, acariciavam-se, cantavam e
dançavam, alheias aos homens. De vez em quando, uma destas
adolescentes partia, talvez para casar, e a separação fazia-as sofrer
a todas. Por último, dizem-nos que na ilha de Lesbos havia grupos
parecidos, orientados por mulheres a quem Safo considera inimigas.
E sente-se dolorosamente traída por raparigas que a deixam para
entrarem num círculo rival.
Pensa-se — mas é só uma conjetura — que eram thíasoi
femininos, uma espécie de clubes religiosos onde as adolescentes,
sob orientação de uma mulher carismática, aprendiam poesia,
música e dança, honravam os deuses, e talvez explorassem o seu
erotismo pouco antes do casamento. Em todo o caso, os amores de
Safo pelas suas protegidas não eram sentimentos condenados, mas
sim reconhecidos e até desejados. Os gregos achavam que o amor
era a principal força educadora. Não respeitavam muito o professor
que ensinava por dinheiro, correndo atrás da clientela e reclamando
o seu pagamento. Para a sua mentalidade aristocrática, aceitar um
trabalho remunerado era próprio de maltrapilhos. Gostavam mais do
professor que escolhia novos discípulos apenas quando descobria
neles um brilho especial e entregava a sua sabedoria, sem o estorvo
de pedidos salariais, apaixonando-se e seduzindo — nem mais nem
menos do que fazia Sócrates. Na Grécia, olhavam para esse tipo de
homossexualidade pedagógica como algo até mais digno e elevado
do que as relações heterossexuais.
O poema mais conhecido de Safo desenvolve-se no casamento
de uma jovem amiga que já não voltará ao grupo. Para Safo, é a
festa do adeus: «Esse homem parece-me igual a um deus/ que está
sentado à tua frente/ e cativo te ouve/ enquanto lhe falas com
doçura. O teu riso encantador/ perturbou o meu coração no peito:/
Se olho para ti, a voz não me obedece;/ a minha língua quebra-se/ e
sob a pele, um ténue fogo percorre-me,/ já não vejo, os meus
ouvidos zumbem,/ brota o suor, sou toda sacudida por um tremor;/ e
estou pálida, mais do que a erva./ Sinto que me falta pouco para
morrer.»
Estes versos, nos quais palpita o desejo, escandalizaram muitos
leitores. Século após século, Safo sofreu uma verdadeira avalancha
de incompreensão, caricaturas e comentários mal-intencionados
que bisbilhotavam na sua vida privada. Já Séneca refere um ensaio
intitulado: «Safo foi uma prostituta?» No outro extremo, um puritano
filólogo do século XIX escreveu, para manter algum comedimento e
proteger o mundo das obscenidades pagãs, que «dirigia um
internato de meninas». Em 1073, o papa Gregório VII tinha
mandado queimar todos os exemplares dos seus poemas pela sua
penosa imoralidade.
Num fragmento de apenas uma linha que chegou até nós por
acaso, lemos: «Eu afirmo que alguém se lembrará de todas nós.» E,
embora aquela possibilidade parecesse ser quase impossível, após
trinta séculos continuamos a ouvir a voz ténue daquela mulher
baixinha.

65

Quero imaginar que houve em Atenas uma corrente de rebeldia


feminina da qual nenhum autor grego nos fala e que não está
presente nos livros de História. Para rastrear as marcas deste
quimérico movimento esquecido atrevi-me a mergulhar nos textos e
a ler nas entrelinhas. Embora nunca saibamos de certeza se existiu,
a suposição sempre me atraiu. O que vou expor é apenas uma
hipótese, mas fascina-me.
As primeiras a revoltarem-se teriam sido heteras, ou seja,
prostitutas de luxo. As únicas mulheres verdadeiramente livres da
Atenas clássica. Comparáveis em alguns aspetos com as geishas
japonesas, ocupavam um lugar ambíguo dentro da escala social,
marcadas pelas vantagens e os inconvenientes da sua má
reputação: estavam por sua conta, mas mantinham-se
independentes. A maior parte delas eram gregas nascidas na Ásia
Menor e, portanto, sem direitos de cidadania. Na sua terra natal
tinham recebido uma educação musical e literária que Atenas
negava às suas filhas. Obrigadas a pagar impostos como os
homens, podiam, tal como eles, administrar os seus próprios bens.
Tinham acesso aos círculos da política e da cultura através dos seus
amantes. Não estavam submetidas à pressão que as esposas
atenienses suportavam, embora, pelo contrário, soubessem que
estavam duplamente excluídas (por serem estrangeiras e por serem
prostitutas).
Essas mulheres emigrantes, minoritárias, desejadas e
socialmente vulneráveis, tinham mais capacidade de protesto do
que as atenienses recolhidas nos seus gineceus. E, durante pouco
mais de uma década, as suas vozes ouviram-se graças a um
enamoramento transgressor que abanou as esferas do poder.
Para os atenienses do século V a. C., a distribuição de funções
seguia um esquema incontestável. Um orador da época descreveu-
o sem rodeios: «Temos as heteras por prazer, as concubinas para o
cuidado diário do nosso corpo, as esposas para nos darem filhos
legítimos e para serem guardiãs fiéis da nossa casa.» Quando o
homem mais poderoso da Ática transgrediu esse esquema de
competências, a cidade fervilhou de indignação.
Péricles era casado com uma mulher (apropriada à sua
linhagem), mãe dos seus dois filhos. Mas a convivência era difícil, e
desfez o seu matrimónio para se juntar a Aspásia, uma hetera
nascida na Ásia Menor. Quase cinco séculos mais tarde, o
historiador Plutarco transcreve uma série de insultos contra a
subversiva primeira-dama ateniense retirados de textos da época,
onde é chamada de impúdica, concubina com cara de cadela e
mulher de bordel, entre outros elogios.
Durante a maior parte da nossa História, o casamento foi, acima
de tudo, uma instituição económica, uma fusão de interesses
partilhados. Para os políticos gregos, até na democracia, o
casamento selava alianças entre grandes famílias que mantinham
as rédeas do governo bem firmes. E estes desfaziam-se por motivos
mercantis ou estratégicos, quando havia outro clã mais poderoso
com que aparentar. Pelo contrário, Péricles escolheu Aspásia —
uma estrangeira com má reputação e sem pedigree — por um
motivo absolutamente ridículo: o amor. Plutarco diz que os cidadãos
contemplavam boquiabertos como «ao voltar da ágora, todos os
dias a abraçava e beijava docemente». E, tal como conta Plutarco,
entendemos que essa exibição de amor conjugal era uma
escandalosa imoralidade na Atenas do momento. Podemos
imaginar os cidadãos atenienses a resmungar e a rir-se das
perversões do seu líder. Se já era bastante estúpido uma pessoa
estar apaixonada pela sua mulher, demonstrá-lo em público era
quase uma obscenidade. Muitos achavam que estavam a atravessar
tempos difíceis e recordavam com saudade um passado mais
saudável. Aquele século V a. C. em Atenas, esplendoroso para nós,
parecia-lhes uma época obscura de concubinagem, mestiçagem e
devassidão.
O que os mexericos não diziam é que a inteligência de Aspásia
ajudou Péricles na sua carreira política. Sabemos pouco sobre ela
porque a sua figura chegou envolvida em incógnitas e má-língua,
mas os textos dão a entender que era uma autêntica oradora na
sombra. Sócrates costumava visitá-la com os seus discípulos e
desfrutava da sua brilhante conversa; chegou até a chamar-lhe
«mestre». Segundo Platão, escreveu discursos para o seu marido;
entre eles, o famoso discurso fúnebre onde defendia
apaixonadamente a democracia. Ainda hoje, os escritores dos
discursos presidenciais de Obama, e antes os de Kennedy, se
inspiraram nas palavras que, provavelmente, foram criadas por
Aspásia. Porém, ela não aparece na história da literatura. Os seus
escritos perderam-se ou foram atribuídos a outros.
Durante quinze ou vinte anos, até à morte de Péricles em 429 a.
C., Aspásia teve uma enorme influência nos círculos do poder. É um
mistério como utilizou essa posição de inesperado protagonismo.
Mas nesse período aconteceu algo sem precedentes: os textos dos
trágicos, dos cómicos e dos filósofos começam a discutir — ou a
ridicularizar — a extravagante ideia da emancipação feminina, uma
questão que antes dessa época nenhum grego tinha referido.
Nessas décadas fulgurantes, Antígona, a rapariga que ousa
desafiar sozinha a lei injusta de um tirano em nome dos princípios
humanitários, falou desde os palcos, tal como Lisístrata, que em
plena guerra tem a fantástica ideia de se aliar com as mulheres do
bando inimigo para organizar uma greve sexual conjunta até se
assinar a paz, e Praxágora, que, diante de um grupo de habitantes
atenienses, suplanta os homens na assembleia e, com os votos
femininos, instaura um regime comunista e igualitário, e a rebelde
estrangeira Medeia.
Ninguém chega mais longe do que a Medeia de Eurípides.
Imagino o público de homens a encher o teatro na manhã da
primeira representação, em 431 a. C. Com os olhos fixos no palco,
atraídos pelo magnetismo do medo, contemplaram como uma
mulher ofendida e vingativa desencadeava o horror mais absoluto.
Viram o indescritível: uma mãe a assassinar os seus filhos com as
suas próprias mãos para ferir o marido que a abandonava e a
condenava ao exílio. Ouviram palavras absolutamente novas.
Medeia falou em voz alta, pela primeira vez, da fúria e da angústia
que crescia nos lares atenienses: «Nós, as mulheres, somos o ser
mais desgraçado. Começamos por ter de comprar um marido com
gasto de riquezas e ter um dono do nosso corpo, e este é o pior dos
males. Separar-se do marido é escandaloso para as mulheres, mas
não no caso dos homens. Quando eles se entediam em casa, saem
para se distraírem. Contudo, se fazemos o mesmo, não nos deixam
sair dizendo que é preciso cuidar dos filhos. Asseguram que, ficando
em casa, nós, mulheres, evitamos perigos, enquanto o homem,
coitadinho, tem de ir à guerra.» Medeia, em conflito com o seu
enclausuramento e a sua maternidade, acaba por dizer que
preferiria travar três guerras do que dar à luz mais uma vez.
Contagiadas por Medeia, as mulheres do coro vão abandonando
também a sua atitude modesta e atemorizada. Num dado momento,
uma delas atreve-se a dizer que as mulheres não devem ficar
excluídas da filosofia, da política, dos raciocínios subtis e dos
debates: «Nós também temos uma musa que nos acompanha em
busca da sabedoria.» Na tragédia grega o coro representava a voz
da comunidade. Portanto, ali não falava a estrangeira díscola, mas
sim as atenienses de vida organizada e doméstica. Para compor o
ramalhete, todas as audácias de Medeia e do seu coro feminino
foram pronunciadas no palco por homens travestidos com
compridas perucas e empoleirados em enormes sapatos de
plataforma. Paradoxalmente, as drag queens foram inventadas na
Grécia, mas nenhuma mulher podia ser atriz.
Quero imaginar que as ideias novas flutuavam no ar, que algum
tipo de movimento social agitava o debate nas praças de Atenas. O
teatro sempre foi um cenário da discussão coletiva. Muito
especialmente na Grécia, as comédias e as tragédias destacavam
os conflitos mais acesos. Procuravam a sua inspiração na ágora,
nas ruas e nas assembleias, para pôr em cena as inquietações
políticas do momento. É verosímil imaginar que Antígona, Lisístrata,
Praxágora e Medeia eram presenças reais, de alguma forma, na
vida ateniense daqueles anos.
Gostaria de acreditar que essa corrente de mudança,
provavelmente sustentada pelo carisma de Aspásia, impregnou
inclusivamente o pensamento de Platão, que nem de longe era um
apóstolo da igualdade. Na verdade, o filósofo defendeu num dos
seus livros que, como castigo, os homens injustos reencarnavam
em mulheres, e que era por isso que existia o sexo feminino. É
quase inacreditável que o mesmo indivíduo que escreve que nascer
mulher é uma condenação e uma expiação também escrevesse
estas linhas surpreendentes no seu livro A República: «Nenhuma
ocupação no governo do Estado corresponde à mulher por ser
mulher nem ao homem enquanto homem, pois os dotes naturais
estão similarmente distribuídos entre ambos, e a mulher participa,
por natureza, em todas as ocupações, tal como o homem.»
Aspásia é um dos maiores mistérios e ausências dos
documentos antigos. O que fez, pensou e disse chega-nos filtrado
por outros. Dizem-nos que se dedicou a escrever e a ensinar; quero
acreditar que, para além disso, com a sua poderosa oratória,
incentivou o primeiro movimento de emancipação do qual temos
conhecimento. Gostava de imaginar que, graças a ela, as mulheres
de Atenas e de outras cidades se atreveram a cruzar o limiar das
grandes escolas filosóficas. Na Academia platónica houve pelo
menos duas discípulas: Lasténia de Mantineia e Asioteia de Filos.
Dizem que a última se vestia de homem. Uma hetera chamada
Leontina foi filósofa no Jardim e amante de Epicuro. Escreveu um
livro sobre os deuses — hoje perdido sem deixar rasto —, onde
tentava derrubar as teses de filósofos muito respeitados. Séculos
depois, Cícero lançou-lhe uma desqualificação azeda: «Até uma
prostituta como Leontina teve a audácia de escrever contra
Teofrasto?»
A mais conhecida e transgressora de todas foi Hipárquia de
Maroneia, da escola dos cínicos. Que saibamos, é a única filósofa a
quem os antigos dedicaram uma breve biografia. Não deixou
nenhum escrito, mas ficou célebre por dinamitar todas as
convenções no seu comportamento público. Renunciou à fortuna
familiar e viveu na rua com o seu amante Crates, vestindo farrapos.
Como ambos acreditavam que as necessidades naturais eram boas
e não deviam envergonhar ninguém, praticavam sexo à vista de
todos, sem afugentar os mirones. Um certo dia, um homem apontou
para Hipárquia e perguntou: «Esta é a que abandonou a
lançadeira?» E ela respondeu: «Sim, sou eu. Parece-te que me
engano a dedicar o tempo que ia gastar no tear à minha própria
educação?»
Depois de tudo, talvez Hipárquia pensasse, com um humor
brincalhão, que a mente é um grande tear de palavras. Ainda entre
nós, na terminologia literária, continua a utilizar-se essa imagem de
narração como tapete. Continuamos a falar — com metáforas
têxteis — de tramas, de urdiduras, de fiar relatos, de tecer histórias.
O que é para nós um texto a não ser um conjunto de fios verbais
atados?
Assim se descrevia a si própria a poeta portuguesa Sophia de
Mello Breyner Andresen: «Porque pertenço à raça daqueles que
percorrem o labirinto,/ sem jamais perderem o fio de linho da
palavra.»
66

Os mitos fazem-se e desfazem-se, como conta a lenda que


acontecia com Penélope. Durante os vinte anos que passou à
espera do regresso de Ulisses, o palácio de Ítaca encheu-se de
pretendentes que queriam declarar o rei ausente como morto e
ocupar o seu leito. Ela prometeu-lhes que escolheria um marido
quando acabasse um sudário para o seu idoso sogro Laertes.
Durante três anos, tecia o sudário durante o dia e, astutamente,
desfazia-o à noite. Sentada no tear, movia a lançadeira e entrançava
um engano salvador que todas as manhãs voltava a começar.
Os escritores antigos compreenderam muito cedo que os
caminhos mais fascinantes são aqueles que nascem nas gretas, nos
pontos cegos e nas manipulações do relato. Penélope esperou
fielmente por Ulisses ou enganou-o na sua ausência? Helena esteve
ou não esteve em Troia? Teseu abandonou Ariadna, ou esta foi
raptada? Orfeu amava Eurídice mais do que a sua própria vida ou
foi o primeiro pederasta? Todas estas variantes coexistiram dentro
do emaranhado labirinto da mitologia grega. Como em Às Portas do
Inferno (Rashomon), devemos escolher entre relatos incompatíveis
entre si. Aquela primitiva literatura europeia legou-nos o gosto pela
multiplicação dos pontos de vista, pelas variações e diferentes
leituras, pelas narrações feitas e desfeitas uma e outra vez.
Século após século, continuamos a enrolar e a desenrolar as
lendas que os gregos nos contaram em forma de caleidoscópio
ambíguo. No Ulisses de Joyce, a cantora Molly Bloom, uma peculiar
e linguaruda Penélope, expõe a sua versão do mito numa longa
frase sem pontuação, que não se conta pelas linhas mas sim por
páginas — mais de noventa —, e salpicada de obscenidades. O
livro termina com o seu atropelado monólogo íntimo, enquanto jaz
na cama ao pé do seu marido. Relembra a infância em Gibraltar, os
seus amores, a sua maternidade, o desejo, os corpos, as vozes, o
inconfessável. A última palavra do romance corresponde-lhe a ela, e
é a palavra «Sim». Penélope pode ostentar finalmente um erotismo
categórico, afirmativo: «…primeiro eu pus os braços à volta dele sim
e puxei-o para mim para que ele pudesse sentir os meus seios
todos perfume sim e o coração dele ficou como louco e sim eu disse
sim eu quero Sim.»
Também a canadiana Margaret Atwood viajou para a paisagem
homérica da Odisseia, onde os monstros femininos permitem uma
releitura humorística. Margaret dá voz a uma sereia, uma trocista
mulher-pássaro que, segundo o mito, faz ninho numa ilha rochosa
sem nome a abarrotar de esqueletos e cadáveres. No poema, a
grande sedutora revela o seu segredo mortal e doce, as palavras
com as quais atrai os navegantes que ousam aproximar-se dos seus
recifes para o naufrágio e a morte. Em que consiste o seu poderoso
feitiço? «Esta é a canção que toda a gente gostava de aprender, a
canção que obriga os homens a saltar pela borda em esquadrões,
mesmo quando veem os crânios a repousar na praia, a canção que
ninguém conhece porque todos os que a ouviram estão mortos…
Vou contar-te um segredo a ti, a ti e só a ti. Aproxima-te. Esta
canção é um grito de ajuda: Ajuda-me! Só tu, só tu podes, porque és
único. Ai, é uma canção aborrecida mas funciona sempre.» Irónica,
a sereia reconhece que não é preciso ser uma criatura mitológica e
fatal para enganar os heróis; basta chamá-los com a sua voz
sussurrante, pedir-lhes ajuda, elogiar a sua vaidade.
A poeta Louise Glück permite que a feiticeira Circe, tia de
Medeia, se explique. Homero acusou-a de usar os seus unguentos
mágicos para converter os companheiros de Ulisses em porcos. Ela
conta uma história infinitamente mais sarcástica: «Jamais converti
alguém em porco. Algumas pessoas já são porcos; eu faço com que
o pareçam. Estou farta do teu mundo, onde o exterior disfarça o
interior.» E, quando o seu amante Ulisses decide abandoná-la, a
bruxa, sozinha na praia, dialoga com o mar de todos os relatos: «O
grande homem vira as suas costas à ilha. Agora, já não morrerá no
paraíso… Agora é tempo de voltar a ouvir o pulso do narrativo mar,
ao amanhecer. O que nos trouxe até aqui levar-nos-á daqui; a nossa
nau balança sobre as rubras águas do porto. Quebrou-se o feitiço.
Devolve-lhe a sua vida, mar que só podes andar para a frente.»
As lendas vêm de um mundo arcaico, mas no nosso tear
voltamos a entrançá-las com linhas novas. Por mais que Telémaco
insista em governar as palavras e impor silêncio, mais cedo ou mais
tarde nascem versões do mito do ponto de vista de Penélope e das
restantes mulheres, as tecedeiras de histórias.

É o outro quem me conta a minha história

67

Nos palcos de Atenas ouviram-se palavras surpreendentes. Dali


falaram mulheres desesperadas, parricidas, doentes, loucos,
escravos, suicidas e estrangeiros. O púbico não conseguia tirar os
olhos daquelas personagens insólitas. «Teatro» significava
precisamente em grego «lugar para olhar». Os gregos tinham
ouvido relatos durante gerações, mas espreitar para uma história
olhando para ela como espias atrás da fresta de uma porta era uma
experiência muito diferente, de uma estranha intensidade. Ali
começou a triunfar a linguagem audiovisual que ainda nos hipnotiza.
As tragédias, agrupadas em trilogias, criavam o mesmo tipo de
dependência das atuais séries e sagas. Eram obras de terror, como
Aristóteles sabia, e as melhores são, para além de viagens ao fim
da noite, onde os medos ancestrais estão à espreita, os tabus, o
sangue derramado, o crime familiar, a angústia do conflito sem
saída, o silêncio dos deuses.
Resta pouco, pouquíssimo daquelas obras arrepiantes (sete
tragédias de Ésquilo, sete de Sófocles e dezoito de Eurípides).
Sabe-se que, juntando os três, escreveram várias centenas de
dramas, a maior parte dos quais desapareceram. E conhecemos,
pelo menos, trezentos títulos perdidos de outros autores. A
paisagem da tragédia grega é hoje terra queimada. Só chegou até
nós um punhado de obras, mas estão entre as preferidas dos
atenienses de então. Eles não tinham dúvidas sobre quem eram os
melhores. Por volta do ano 330 a. C., colocaram estátuas de bronze
dos três dramaturgos em frente do teatro de Dionísio, no sopé da
Acrópole. E, como já se disse, decidiram conservar cópias oficiais
dos seus textos, só dos seus. A destruição foi terrível, mas não
indiscriminada.
As tragédias sobreviventes proporcionam uma estranha fusão de
violência e debate verbal sofisticado. Nela convivem as belas
palavras com as armas ensanguentadas. De alguma forma
misteriosa, as tragédias conseguem ser desenfreadamente
delicadas. Em geral, contam mitos primitivos de um passado
lendário — a Guerra de Troia, o destino de Édipo — cujos ecos
ainda se ouviam no presente do século V a. C. Mas há uma curiosa
exceção, uma tragédia baseada em factos reais. É, para além disso,
a obra de teatro conservada mais antiga do mundo. Trata-se de Os
Persas, onde Ésquilo abriu caminho a Shakespeare e talvez, sem
sabê-lo, tenha inventado o romance histórico.
Durante a vida de Ésquilo, o Império Persa lançou várias
expedições contra o enxame de minúsculas cidades em perpétua
disputa que era a Grécia daquela altura. A defesa de Atenas
dependia de um exército cidadão, por isso Ésquilo lutou em vários
campos de batalha, entre eles o de Maratona, onde perdeu o seu
irmão, e talvez também na Batalha Naval de Salamina. Naquele
tempo, a guerra era muito diferente. Tento imaginar aquela luta
corpo a corpo, a curta distância, numa época em que não se tinham
inventado as balas nem os explosivos. Os combatentes fitavam-se
enquanto tentavam matar-se. Cravavam com força lanças e
espadas na carne do inimigo, mutilavam corpos, pisavam
cadáveres, ouviam gritos de morte, manchavam-se de terra e de
vísceras. Contam que, no seu epitáfio, Ésquilo mencionou as suas
batalhas sem dizer nada da sua enorme obra literária. Estava mais
orgulhoso de ter participado na resistência da pequena Grécia
contra o poderoso invasor persa do que dos seus versos.
Acho que a nossa ideia do choque civilizacional não teria soado
estranha aos seus ouvidos. A luta entre Oriente e Ocidente é uma
velha história. Os atenienses sentiam a ameaça constante de um
Estado ditatorial tirânico. Se esse inimigo conseguisse vergar a
Grécia, extinguiria para sempre a sua democracia e a sua forma de
vida. As chamadas guerras médicas foram o grande conflito da
época, e Ésquilo decidiu levá-lo aos palcos quando as vitórias
gregas ainda continuavam frescas na memória.
Poderia ter-se limitado a escrever um panfleto patriótico, mas o
poeta ex-combatente tomou uma série de decisões inesperadas. A
mais surpreendente de todas foi adotar o ponto de vista dos
derrotados, como Clint Eastwood em Cartas de Iwo Jima. A ação
decorre em Susa, a capital dos persas, e na peça não aparece
nenhuma personagem grega. Para além do mais, Ésquilo parece
ter-se documentado sobre a sociedade persa — conhece
genealogias reais, palavras iranianas e traços da pompa e do
protocolo da corte. Mas o que mais se destaca é que não detetamos
qualquer rasto de ódio, mas sim uma inesperada compreensão. A
obra começa defronte do palácio. Os persas estão preocupados
porque não recebem notícias da expedição bélica. Então surge um
mensageiro que conta a terrível derrota e fala dos heróis asiáticos
mortos em combate. No fim, chega o rei Xerxes, que perdeu a sua
arrogância pelo caminho e regressa andrajoso a casa, com uma
inútil carnificina às costas.
É uma visão insólita do inimigo que esteve prestes a destruir a
Grécia. Os persas não são descritos como parte de um eixo do mal
nem como criminosos natos. Ésquilo leva-nos a contemplar a
impotência dos idosos conselheiros que se opunham à guerra e não
foram ouvidos, a angústia de quem espera em casa o regresso dos
exércitos, as divisões internas entre os falcões e as pombas do
regime, a dor das viúvas e das mães. Intui-se a desgraça dos
soldados arrastados para o matadouro pela megalomania do seu
rei.
O mensageiro de Os Persas relata com dolorosa emoção a
Batalha de Salamina, que chegou a ser um símbolo contemporâneo.
Os Soldados de Salamina aos quais Javier Cercas se refere no seu
romance são aqueles gregos que detiveram a invasão do Império
Persa e também os soldados da resistência contra o nazismo.
Cercas sabe que pode haver soldados de Salamina em todas as
épocas: os que encaram uma batalha decisiva — e aparentemente
perdida — para defenderem o seu país, a democracia e as suas
aspirações. Salamina deixou de ser só uma pequena ilha do mar
Egeu, a dois quilómetros do porto do Pireu e, para além dos mapas,
existe em qualquer lugar onde alguém, em inferioridade numérica,
se rebela contra uma agressão avassaladora.
As representações teatrais são mais antigas do que Ésquilo. Ele
próprio escreveu outras peças anteriores a Os Persas. Mas perdeu-
se tudo, de maneira que esta obra é para nós um começo. Sempre
me fascinou que Ésquilo, depois de lutar contra os persas frente a
frente, corpo a corpo, e fitando-os, depois de ver morrer o irmão em
combate, estando perto dele, encenasse a dor dos seus inimigos
derrotados. Sem troça, sem ódio, sem generalizar as culpas. E é
assim que, entre o luto, as cicatrizes e o desejo de compreender o
que é estranho, começa a história conhecida do teatro.

68

Ésquilo e os seus contemporâneos achavam que a sua guerra


contra os persas fazia parte de um grande confronto entre Oriente e
Ocidente, com maiúsculas. Influenciados pela trágica experiência do
combate, consideravam os seus inimigos gente sanguinária e ávida
de conquistas. Achavam que a sua vitória sobre eles era o triunfo da
civilização sobre a barbárie.
Na península da Anatólia, encruzilhada de várias culturas,
nasceu um grego de sangue misto e mente inquieta que estava
obcecado com o velho conflito. Porque é que esses dois mundos —
a Europa e a Ásia — estavam envolvidos numa luta de vida ou
morte? Porque é que se enfrentam desde tempos imemoriais? O
que é que procuravam, como se justificavam, quais eram as suas
razões? Sempre tinha sido assim? Seria assim para sempre?
Aquele grego amigo das perguntas dedicou a sua vida a procurar
respostas. Escreveu uma longa obra de viagens e testemunhos à
qual chamou Historíai, que na sua língua significava «pesquisas» ou
«investigações». Nós ainda usamos, sem traduzi-la, a palavra que
ele redefiniu ao dar nome ao seu livro e à sua tarefa: «história».
Com a sua obra nasceu uma nova disciplina e, talvez, uma forma
diferente de olhar para o mundo. Porque o autor das Histórias era
um indivíduo de curiosidade incansável, um aventureiro, um
perseguidor do surpreendente, um nómada, um dos primeiros
escritores capazes de pensar à escala planetária, diria quase um
avançado da globalização. Estou a falar, claro, de Heródoto.
Numa época em que a maioria dos gregos mal assomava o nariz
para além dos limites da sua aldeia natal, Heródoto foi um viajante
incansável. Navegou em barcos mercantes, avançou em lentas
caravanas, entabulou conversa com muitas pessoas e visitou
inúmeras cidades dentro do Império Persa, para poder relatar a
guerra com conhecimento do terreno e uma visão alargada. Ao
conhecer o inimigo na sua vida quotidiana, em tempos de paz,
proporcionou uma visão diferente e mais exata do que qualquer
outro escritor. De acordo com as palavras de Jacques Lacarrière,
Heródoto fez um esforço para derrubar os preconceitos dos seus
compatriotas gregos, mostrando-lhes que a linha divisória entre a
barbárie e a civilização nunca é uma fronteira geográfica entre
diferentes países, mas sim uma fronteira moral dentro de cada povo;
aliás, dentro de cada indivíduo.
É curioso comprovar que, tantos séculos depois de Heródoto ter
escrito a sua obra, o primeiro livro de história comece de forma
raivosamente atual: a falar de guerras entre orientais e ocidentais,
de sequestros, de acusações cruzadas, de diferentes versões sobre
os mesmos acontecimentos, de factos alternativos.
Nos primeiros parágrafos da sua obra, o historiador pergunta-se
pelo início das lutas entre europeus e asiáticos. Encontra ecos
desse conflito primordial nos antigos mitos. Tudo começou com o
sequestro de uma mulher grega, chamada Io. Um grupo de
mercadores, ou melhor, de traficantes — as diferenças entre uns e
outros sempre foram voláteis na Antiguidade —, desembarcaram na
cidade grega de Argos para exibirem a sua mercadoria. Algumas
mulheres aproximaram-se da margem atraídas por aqueles produtos
exóticos. Bisbilhotavam amontoadas ao pé da popa da nau
estrangeira quando, de repente, os vendedores, que eram de
origem fenícia, se lançaram sobre elas. A maioria defendeu-se com
unhas e dentes e conseguiu escapar, mas Io não teve tanta sorte.
Capturaram-na e levaram-na à força até ao Egito, convertida ela
própria em mercadoria. Este sequestro, segundo o relato de
Heródoto, foi o início de toda a violência. Pouco tempo depois, um
destacamento de gregos em missão de castigo desembarcou na
Fenícia — hoje Líbano — e raptou Europa, a filha do rei de Tiro. O
empate nas agressões durou pouco, porque os gregos também
sequestraram a asiática Medeia no território da atual Geórgia. Na
geração seguinte, Páris decidiu arranjar mulher pelo procedimento
do rapto, levando a bela Helena à força rumo a Troia. Esta agressão
encheu a paciência dos gregos: a guerra e a inimizade incurável
entre a Ásia e a Europa começaram.
O início das Histórias contém uma fascinante mistura de
mentalidade antiga e surpreendente modernidade. É evidente que
Heródoto acredita que as lendas, os oráculos, as histórias
maravilhosas e as intervenções divinas devem estar ao lado dos
acontecimentos documentados. Vivia num mundo em que o
pesadelo sonhado por um rei, provocado por uma indigestão, podia
ser interpretado como uma mensagem dos deuses e mudar o rumo
de um império ou a estratégia de uma guerra. As fronteiras entre o
racional e o irracional eram difusas. Porém, Heródoto não foi um
indivíduo crédulo nem reverente. Fascina-me o descaramento com
que converte alguns dos grandes episódio míticos da sua cultura —
o rapto de Europa, a viagem dos argonautas, o começo da Guerra
de Troia — numa série de crueldades sobretudo mesquinhas.
Admiro a lucidez com que elimina os ouropéis lendários para
denunciar a facilidade com que as mulheres se convertem em
vítimas em tempos de guerra e de vingança, quando a violência é
desencadeada.
De seguida, Heródoto faz uma inesperada afirmação sobre as
suas fontes. Diz que ouviu das pessoas cultas da Pérsia as
explicações que acaba de proporcionar sobre a origem do conflito.
Pelo contrário, os fenícios contam outra história, «e eu não me
meterei a decidir entre eles, inquirindo se a coisa aconteceu desta
ou de outra forma». Após anos de viagens e conversas, Heródoto
comprovou que as testemunhas que interrogava lhe facilitavam
relatos contraditórios sobre os mesmos acontecimentos, esqueciam
muitas vezes o sucedido e, pelo contrário, lembravam-se de
acontecimentos que só se deram no universo paralelo dos seus
desejos. Assim descobriu que a verdade é fugidia, que é quase
impossível desvendar o passado tal como aconteceu porque só
dispomos de versões diferentes, interesseiras, contraditórias e
incompletas dos factos. Nas Histórias proliferam frases como «que
eu saiba», «pelo que me parece», «de acordo com o que averiguei
pela boca de…», «não sei se é verdade; só escrevo o que se diz».
Milénios antes do multiperspetivismo contemporâneo, o primeiro
historiador grego compreendeu que a memória é frágil,
evanescente, e que quando alguém evoca o seu passado deforma a
realidade para se justificar ou encontrar alívio. Por isso, como em
Citizen Kane, como em Às Portas do Inferno (Rashomon), nunca
chegaremos a conhecer a verdade mais profunda, apenas os seus
indícios, as suas variantes, as suas versões, a sua comprida
sombra, as suas infinitas interpretações.
E o mais incrível de tudo isso: o nosso autor não relata a versão
dos gregos, só a dos persas e dos fenícios. Assim, a história
ocidental nasce explicando o ponto de vista do outro, do inimigo, do
grande desconhecido. Parece-me uma abordagem profundamente
revolucionária, até mesmo vinte e cinco séculos depois. Precisamos
de conhecer culturas afastadas e diferentes, porque
contemplaremos a nossa refletida nelas. Porque só entenderemos a
nossa identidade se a compararmos com outras identidades. É o
outro quem me conta a minha história, quem me diz quem sou eu.

69
Muitos séculos mais tarde, um familiar intelectual de Heródoto, o
filósofo Emanuel Levinas — lituano, francês adotivo e judeu —, que
sobreviveu a um campo de concentração alemão depois de perder
toda a sua família em Auschwitz, escreveria: «O meu acolhimento
do outro é o facto decisivo através do qual as coisas se iluminam.»

70

Gostaria de fazer um parênteses e contar a versão grega do


rapto de Europa. Para Heródoto é mais um simples episódio na
vergonhosa série de sequestros lendários, mas eu sinto-me atraída
pela história da misteriosa mulher que deu nome ao continente que
habito.
Como todos os gregos sabiam, Zeus era um deus mulherengo,
sempre à espreita de jovenzinhas humanas. Quando alguma o
atraía, vestia-se com os disfarces mais disparatados para ganhar o
seu particular direito de pernada [suposto direito medieval do senhor
feudal de desvirginar as noivas no âmbito dos seus domínios]. São
famosas as suas violações em forma de cisne, de chuva dourada ou
de touro. Esta última transformação foi a armadilha escolhida para
capturar Europa, a filha do rei de Tiro.
Não há precisamente amor e harmonia — escreve com ironia o
poeta Ovídio — na mansão do pai dos deuses. Zeus teve uma
discussão doméstica com a sua esposa Hera e abandona o palácio
batendo com a porta. Já fora do monte Olimpo, decide ter uma
aventura com uma humana para esquecer a irritação da discussão e
do seu casamento infeliz. Desce até à praia de Tiro, onde já reparou
na atraente filha do rei, que passeia com o seu séquito de criadas.
Para se aproximar da sua presa, o deus adquire a aparência de um
touro branco como a neve, com o pescoço musculado e — de novo
segundo Ovídio — uma majestosa papada que pende sobre as suas
patas da frente. Europa repara no animal de cor láctea e contempla-
o a pastar tranquilamente perto do mar, sem suspeitar que diante
dos seus olhos está uma criatura astuta e maligna, como a baleia
branca que muitos séculos depois Herman Melville imaginará.
Começa a sedução: o touro beija as mãos de Europa com o seu
focinho branco, salta, brinca na areia, oferece-lhe a barriga para que
lha acaricie. A rapariga ri-se, perde o medo, segue o seu jogo. Pelo
prazer de desobedecer às suas velhas criadas, que lhe fazem sinais
e advertências para ser prudente, atreve-se a subir ao lombo do
touro. Quando sente as coxas da rapariga nos seus flancos, o touro
corre para o mar, e galopa, sem se alterar, sobre as águas. Europa,
aterrorizada, vira-se para olhar para a praia. A sua túnica leve
ondula com o sopro do vento. Nunca mais voltará a ver a sua casa
nem a sua cidade.
O galope de Zeus sobre as águas vai conduzi-la à ilha de Creta,
onde os filhos de ambos criarão a deslumbrante civilização dos
palácios, do labirinto, do ameaçador minotauro e das luminosas
pinturas que os turistas atuais, vomitados pelos cruzeiros, vão
fotografar entre as ruínas de Cnossos.
Um irmão de Europa, chamado Cadmo, recebe a ordem de
encontrá-la onde quer que esteja. O seu pai, o rei, ameaça-o com o
exílio caso não a traga de volta. Como Cadmo é apenas um simples
mortal, não consegue descobrir o esconderijo que Zeus escolheu
para as suas crueldades clandestinas. Percorre a Grécia de uma
ponta a outra, chamando Europa até que o seu nome fica gravado
nas rochas, nos olivais e nas searas do continente desconhecido.
Cansado de uma procura que nunca termina, funda a cidade de
Tebas, berço da desgraçada estirpe de Édipo. Conta a lenda que foi
Cadmo que ensinou os gregos a escrever.
Desde que o linguista Ernest Klein propôs a etimologia, muitos
filólogos defendem que a palavra «Europa» tem origem oriental.
Relacionam-na com o arcádio Erebu, parente do termo árabe atual
ghurubu. Ambos significam «o país onde morre o sol», a terra do
ocaso; o Ocidente, do ponto de vista dos habitantes do Este do
Mediterrâneo. No tempo que os mitos gregos evocam, a terra
privilegiada das grandes civilizações estendia-se pelas zona de
levante, entre os rios Tigre e Nilo. Em comparação, o nosso
continente era um território selvagem, o obscuro e bárbaro faroeste.
Se essa hipótese estiver certa, o nosso continente tem um nome
árabe — paradoxos da linguagem. Tento imaginar os traços da
mulher que se chamou Europa — uma fenícia; hoje chamar-lhe-
íamos sírio-libanesa, provavelmente de pele escura e feições
pronunciadas, com o cabelo encaracolado, o tipo de estrangeira que
atualmente despertaria receios entre os europeus que olham para
as vagas de refugiados com o sobrolho franzido.
Na verdade, a lenda do rapto de Europa é um símbolo. Por trás
da história da princesa arrebatada do seu lar palpita uma longínqua
recordação histórica: a viagem do conhecimento e da beleza oriental
desde o Crescente Fértil para Ocidente e, em particular, a chegada
do alfabeto fenício a terras gregas. Portanto, Europa nasceu ao
acolher as letras, os livros, a memória. A sua própria existência está
em dívida para com a sabedoria sequestrada do Oriente. Não nos
esqueçamos de que houve um tempo em que, oficialmente, os
bárbaros éramos nós.
71

Em meados dos anos cinquenta do século passado, numa


Europa dividida pela Cortina de Ferro, viajar para além dos
territórios aliados era uma missão ainda mais difícil do que no tempo
de Heródoto. Em 1955, um jovem jornalista polaco chamado
Ryszard Kapuściński desejava, acima de tudo, «atravessar a
fronteira». Não lhe importava qual nem onde, não ambicionava
lugares envolvidos na aura capitalista do inalcançável, como
Londres ou Paris. Não, ele só desejava o ato quase místico e
transcendental de atravessar a fronteira. Sair da prisão. Conhecer o
outro lado.
Teve sorte. O seu jornal — que tinha o exaltado nome de
Estandarte da Juventude — mandou-o como correspondente para a
Índia. Antes de partir, a redatora-chefe ofereceu-lhe um grosso
volume de capa dura: as Histórias de Heródoto. Com as suas
centenas de páginas, não era precisamente um volume leve para
arrastá-lo na bagagem, mas Ryszard levou-o consigo. Transmitia-
lhe segurança num momento em que se sentia estupefacto,
alarmado. A primeira escala que o voo para Nova Deli faria seria em
Roma. Estava prestes a «pisar o Ocidente» e, segundo lhe tinham
ensinado na sua pátria comunista, devia-se temer o Ocidente como
à peste.
O livro de Heródoto foi o seu vade-mécum e apoio na descoberta
desse misterioso mundo exterior. Décadas depois, com um longo
deambular internacional atrás de si, Kapuściński escreveu um livro
maravilhoso, Viagens com Heródoto, que está cheio de simpatia
para com o inquieto grego em quem encontrou um companheiro de
caminho e uma alma gémea: «Estava-lhe muito grato porque, ali,
nos momentos em que me tinha sentido inseguro e perdido, sempre
tinha estado ao meu lado, a ajudar-me (...). Juntos percorremos o
mundo durante muitos anos. O meu experiente e sábio grego nunca
deixou de ser um guia excecional. E, embora a melhor forma de
viajar seja fazê-lo a sós, não me parece que nos estorvássemos um
ao outro: separava-nos uma distância de dois mil e quinhentos anos
à qual é preciso acrescentar outra, fruto do respeito que me
impunha. A sensação de me relacionar de forma equitativa com um
gigante nunca me abandonou.»
Kapuściński descobre em Heródoto o temperamento de um
incipiente jornalista, dotado da intuição, da visão e do ouvido de um
repórter. Na sua opinião, as Histórias são a primeira reportagem de
literatura universal. É a obra de um indivíduo intrépido que sulca
mares, percorre estepes e se mete em desertos, um homem
possuído pela paixão, pela ânsia e a obsessão de conhecimento.
Tinha estabelecido um objetivo incrivelmente ambicioso (imortalizar
a história do mundo) e não deixava que nada o desanimasse. No
remoto século V a. C. não era possível consultar fontes sobre países
estrangeiros em arquivos nem em bibliotecas. Por isso, o seu
método foi, essencialmente, o do jornalista: viajar, observar e
perguntar; tirar conclusões do que os outros lhe contavam e do que
ele próprio via. Foi dessa forma que acumulou os seus
conhecimentos.
O jornalista e escritor polaco imagina o seu mestre grego em
situações como esta: após uma longa jornada por caminhos
empoeirados, chega a uma aldeia ao pé do mar. Deixa a sua
bengala a um lado, sacode a areia das sandálias e, sem mais
demoras, começa uma conversa. Heródoto era filho de uma cultura
mediterrânea de compridas e acolhedoras mesas onde, em tardes e
noites quentes, se sentam muitas pessoas juntas para comer queijo
e azeitonas, beber vinho fresco e falar. Nessas conversas — a jantar
ao pé de uma fogueira ou ao ar livre sob uma árvore milenar —
afloravam histórias, episódios, velhas lendas, contos. Se aparecia
um hóspede, era convidado. E, se esse hóspede tivesse boa
memória, reuniria um sem-fim de informação.
Quase não sabemos nada sobre a vida privada do viajante
Heródoto, e chama a atenção que no seu livro, cheio de
personagens e episódios, conte tão pouco sobre si próprio. Limita-
se a referir que era originário de Halicarnasso, a atual Bodrum, na
Turquia, uma cidade que se debruça numa belíssima baía, porto
populoso e local de passagem das rotas comerciais entre a Ásia, o
Médio Oriente e a Grécia. Aos dezassete anos, Heródoto teve de
fugir da sua cidade natal porque um tio seu protagonizou uma
rebelião falhada contra o tirano pró-persa. Desde muito novo,
converteu-se num apátrida, uma das piores coisas que podia
acontecer a um grego da época. Então, deixando de se preocupar
com o futuro, decidiu lançar-se aos mares e aos caminhos para
tentar averiguar o máximo possível sobre o mundo conhecido, da
Índia ao Atlântico, dos Urais à Etiópia. Não sabemos quais foram os
seus meios de subsistência no exílio. Viajou, dedicou uma enorme
energia à sua tarefa de investigador e abandonou-se ao feitiço dos
países que ia percorrendo. Conheceu estrangeiros hospitaleiros e
refrescou a sua mente falando com eles sobre costumes e
tradições. Escreveu sobre povos longínquos e adversários, sem
fazer nenhuma alusão ofensiva nem julgamento pejorativo sobre
eles. Foi provavelmente, como o imagina Kapuściński, um homem
simples, cordial e compreensivo, aberto e tagarela, alguém que
consegue sempre dar a volta aos outros e puxar-lhes pela língua.
Apesar do seu desterro forçado, não albergava ressentimento nem
raiva. Tentava compreender tudo, entender porque é que cada
indivíduo agia de uma maneira e não de outra. Nunca culpava os
seres humanos pelas calamidades históricas, mas sim a educação,
os costumes e o sistema político em que lhes tinha calhado viver.
Por isso, como o seu tio insurgente, converteu-se num defensor
fervoroso da liberdade e da democracia, e inimigo do despotismo,
da autocracia e da tirania. Pensava que só no primeiro sistema é
que o indivíduo se pode comportar dignamente. Tomem nota —
parece dizer Heródoto —: um insignificante grupo de estados gregos
venceu a grande potência oriental só porque os gregos se sabiam
livres, e estavam dispostos a dar tudo por essa liberdade.
Há uma passagem das Histórias que me cativou e maravilhou
desde a primeira leitura. Nela sugere-se que a personalidade de
cada um de nós está modelada — mais do que gostamos de admitir
— pelos hábitos mentais, a repetição e o chauvinismo: «Se todas as
pessoas pudessem escolher entre todos os costumes, convidando-
as a optar pelos mais perfeitos, cada uma escolheria o seu; cada
uma está extremamente convencida de que os seus próprios
costumes são os mais perfeitos. Durante o reinado de Dario, este
monarca convocou os gregos que estavam na sua corte e
perguntou-lhes por quanto dinheiro aceitariam comer os cadáveres
dos seus pais. Eles responderam que não o fariam por nenhum
preço. De seguida Dario convocou os indianos chamados calatias,
que devoram os seus progenitores, e perguntou-lhes, à frente dos
gregos, que seguiam a conversa através de um intérprete, por que
soma aceitariam queimar os restos mortais dos seus pais numa
fogueira; então eles começaram a vociferar, suplicando-lhe que não
blasfemasse. Píndaro fez bem ao dizer que o costume é a rainha do
mundo.»
Alguns autores acreditam que este texto de Heródoto contém a
semente de toda a tolerância e a necessidade de compreender,
saber e refletir que, séculos mais tarde, serão o abc da etnologia.
Em todo o caso, revela uma enorme perspicácia na observação dos
povos que visitou, e também da sua pátria grega. Os costumes são
muito diferentes em cada cultura, mas a sua força é gigantesca em
todo o lado. No fundo, o que as comunidades humanas têm em
comum é aquilo que, inevitavelmente, as põe em confronto: a
tendência para se julgarem melhores. Como revelou o olhar irónico
do grego nómada, estamos todos muito dispostos para nos
considerarmos superiores. Nisso somos iguais.
Se para Kapuściński o livro de Heródoto foi um peso-pesado na
bagagem, muito mais incómodo seria para os seus leitores da
época. Na verdade, foi um dos primeiros calhamaços de que temos
conhecimento e, com toda a certeza, a primeira obra extensa escrita
em prosa grega. Chegou até nós dividida em nove partes com os
nomes das musas, e cada uma dessas nove partes ocuparia um
rolo de papiro completo. Para transportar esses nove tomos juntos,
seria praticamente necessário possuir um escravo carregador.
A invenção dos rolos significou, sem dúvida, um grande avanço
naquele momento. Estes dispositivos de livros eram mais práticos
do que qualquer um dos seus antecessores. Sem dúvida, possuíam
maior capacidade do que as tabuinhas de barro e eram muito mais
transportáveis do que os sinais de fumo ou as inscrições em blocos
de pedra; ainda assim, não deixavam de ser embaraçosos. Como já
expliquei, escrevia-se apenas numa das faces do papiro, pelo que
os rolos tinham tendência para se converterem em tiras muito
longas, repletas, no lado utilizável, de colunas de uma escrita muito
apertada. Para abrir caminho através desse variegado labirinto de
letras, o leitor devia executar uma incómoda maquinação, enrolando
e desenrolando constantemente metros e metros de texto. Para
além disso, para rentabilizar ao máximo o caro material, os livros
estavam escritos sem deixar espaços de separação entre as
palavras nem entre as frases, e sem dividi-los em capítulos. Se,
graças a uma máquina do tempo, pudéssemos ter nas nossas mãos
algum exemplar do século V a. C. das Histórias de Heródoto,
parecer-nos-ia que uma só palavra ininterrupta e interminável se
expandia por quase uma dezena de rolos de papiro.
Apenas textos breves, como uma tragédia ou um diálogo
socrático, cabiam à vontade num único rolo. Quanto mais compridos
eram os rolos, mais frágeis e incómodos eram e mais propensão
tinham para se rasgarem. Procurar uma passagem completa num
exemplar de quarenta e dois metros — o mais comprido que se
conhece — bem podia provocar cãibras nos braços e um leve
torcicolo.
A grande maioria das obras antigas ocupavam, portanto, mais de
um rolo cada uma. No século IV a. C., os copistas e livreiros gregos
desenvolveram um sistema de reclames para garantirem a unidade
das obras distribuídas em vários livros. O mesmo sistema já tinha
sido praticado com as tabuinhas no Médio Oriente. Consistia em
escrever no fim do rolo as palavras do rolo seguinte, para ajudar o
leitor a localizar o novo tomo que estava prestes a começar. Apesar
de todas as precauções que se puderam conceber, a integridade
das obras estava sempre ameaçada por uma incontrolável
tendência para a desagregação, a desordem e a perda.
Havia caixas preparadas para guardar e transportar os rolos.
Esses recipientes tentavam proteger os livros da humidade, das
mordidelas dos insetos, da passagem do tempo. Em cada caixa
caberiam entre cinco e sete unidades, dependendo da extensão.
Curiosamente, muitos textos conservados de numerosos autores
antigos são múltiplos de cinco e sete — temos sete tragédias de
Ésquilo e outras tantas de Sófocles, vinte e uma comédias de Plauto
e partes da história de Tito Lívio preservadas de dez em dez livros,
por exemplo. Alguns investigadores pensam que, no acidentado
percurso da transmissão e nas peripécias do tempo, essas peças se
salvaram precisamente porque as guardaram juntas numa ou em
várias daquelas caixas.
Mergulhei nestes detalhes para explicar até que ponto os livros
daquela altura eram frágeis e difíceis de proteger. Havia poucos
exemplares em circulação de cada título, e a sua sobrevivência
exigia gigantescos esforços. Os incêndios e as cheias, que
destruíam sem remédio os livros, eram catástrofes relativamente
frequentes. O desgaste pela utilização, o apetite das traças e os
estragos do clima húmido obrigavam a voltar a copiar, de vez em
quando, um por um, todos os rolos das bibliotecas e das coleções
privadas. Plínio, o Velho, escreveu que, nas melhores condições
possíveis e com os cuidados mais escrupulosos, um rolo de papiro
podia alcançar uma vida útil de duzentos anos. Na imensa maioria
dos casos duraria muito menos. As baixas eram constantes e, à
medida que o número de exemplares sobreviventes de uma obra
concreta diminuíam, era cada vez mais complicado voltar a
encontrá-la para repô-la. Ao longo de toda a Antiguidade e da Idade
Média, até à invenção da imprensa, estavam continuamente a
perder-se livros — ou prestes a precipitar-se no abismo do
desaparecimento.
Imaginemos por um instante que cada um de nós teria de
dedicar meses inteiros da nossa vida a fazer cópias à mão, palavra
por palavra, dos nossos livros mais queridos, para evitar a sua
extinção. Quantos se salvariam?
Por isso, devemos considerar um pequeno milagre coletivo —
graças à paixão desconhecida de muitos leitores anónimos — que
uma obra tão extensa como as Histórias de Heródoto, e portanto tão
vulnerável, tenha chegado até nós contornando o desfiladeiro dos
séculos. Como escreve J. M. Coetzee, o clássico é «aquilo que
sobrevive à pior barbárie, aquilo que sobrevive porque há gerações
de pessoas que não se podem permitir ignorá-lo e, portanto,
agarram-se a ele a qualquer preço».

O drama do riso e a nossa dívida


para com as lixeiras

72

Uma série de crimes assustadores começam a acontecer entre


os muros de uma abadia medieval empoleirada nas montanhas
italianas. O rasto letal dessas mortes conduz à grande biblioteca
monástica, onde, escondido como uma árvore numa floresta ou um
diamante entre pedras de gelo, descansa um manuscrito pelo qual
os monges estão dispostos a morrer e a matar. O abade encomenda
a investigação do escabroso assunto a uma visitante que está de
passagem no mosteiro, frei Guilherme de Baskerville, que aprendeu
o ofício do interrogatório fazendo de inquisidor religioso. Tudo
acontece no tempestuoso século XIV.
O Nome da Rosa é um surpreendente romance policial que
decorre no mundo ritual, silencioso e cheio de subterfúgios de um
convento. Umberto Eco, jogando com os clichés do género, numa
piscadela de olho aos amantes da leitura de todas as épocas,
substitui a habitual femme fatale por um livro fatídico que seduz,
perverte e mata quem ousa lê-lo. E o leitor pergunta-se, claro, que
perigosos segredos oculta esse texto proibido, do qual nos dizem
que possui «o poder mortífero de cem escorpiões». Um evangelho
oculto e sedicioso, profecias catastróficas de algum Nostradamus
medieval, necromancia, pornografia, blasfémias, exoterismo, missas
negras? Não, nenhum dessas insignificâncias. Quando Guilherme
de Baskerville une as peças do quebra-cabeças, averiguamos que
se trata — oh, céus — de um ensaio de Aristóteles.
A sério? Alguém poderia sentir-se enganado. Depois de tudo,
Aristóteles não é precisamente um escritor radical nem alguém
conhecido pelas suas ideias subversivas. Hoje é difícil imaginar o
teórico do meio-termo, o enciclopedista minucioso, o fundador do
Liceu a escrever um livro maldito. Contudo, Umberto Eco conjetura
os perigosos significados de uma obra aristotélica que nunca
leremos: o tratado perdido sobre a comédia, a lendária segunda
parte da Poética; ou seja, o ensaio que — sabemo-lo por alusões do
próprio Aristóteles, mergulhava no universo revolucionário do riso.
Quando nos aproximamos do desfecho de O Nome da Rosa,
deparamo-nos com uma dessas típicas perorações de assassino em
série, os minutos de glória de qualquer vilão que se preze, durante
os quais, podendo liquidar o detetive e ganhar o jogo, prefere
dedicar-se estupidamente a gabar-se da sua inteligência. É aqui que
o monge homicida explica, com um sensacional estilo apocalíptico,
porque é que os escritos de Aristóteles sobre o riso são perigosos e
devem ser eliminados: «Este livro eleva o riso a arte, converte-o em
objeto de filosofia e de pérfida teologia. O riso liberta o aldeão do
medo do diabo, porque na festa dos tontos o diabo também parece
pobre e tonto, e, portanto, controlável. Mas este livro poderia
mostrar que libertar-se do medo é um ato de sabedoria. Quando ri,
enquanto o vinho gorgoleja na sua garganta, o aldeão sente-se
senhor, porque investiu nas relações de domínio; mas este livro
poderia ensinar os doutos a legitimarem este investimento. Deste
livro poderia saltar a faísca luciferina que acenderia um novo
incêndio em todo o mundo. Se algum dia, confiada ao testemunho
indestrutível da escrita, a arte do riso chegasse a ser aceitável…
então não teríamos armas para deter a blasfémia, porque apelaria
às forças obscuras da matéria corporal, as que se afirmam no peido
e no arroto, e então o peido e o arroto atribuir-se-iam o direito de
soprar para onde quisessem!»
O assassino imaginado por Umberto Eco dá-nos pistas para
entendermos a aparente maldição que persegue a comédia. O
humor antigo sofreu um grande naufrágio. Desapareceram todos os
exemplares do tratado aristotélico sobre o riso e, pelo contrário,
sobreviveu sem problemas a outra metade da obra dedicada à
tragédia. Uma multidão de comediógrafos gregos estreava-se em
teatros repletos e entusiastas, mas só se salvaram obras de um
deles: Aristófanes. A maior parte dos géneros literários compilados
no catálogo alexandrino (a épica, a tragédia, a história, a oratória, a
filosofia) eram sérios, até solenes.
Ainda hoje o cânone tem tendência para expulsar o riso. Uma
comédia tem menos possibilidades de ganhar um Óscar do que um
drama. Surpreende-nos que um escritor com veia humorística aterre
em Estocolmo. Os publicitários e os programadores de televisão
sabem que o humor vende, mas a academia resiste a elevá-lo ao
pódio da arte. A cultura de massas explora o riso, degradando-o.
Entretêm-nos com realities e comédias, enquanto a alta cultura
rejeita a estética parola e franze o sobrolho diante dela. Tanta
diversão insignificante — e o sucesso das sessões de risoterapia —
parece reduzir o riso a um desafogo individual ou uma efémera
distração.
O investigador Luis Beltrán afirma que cometemos um erro ao
considerarmos o humor como um fenómeno marginal e estranho. O
estranho — acrescenta — é a seriedade, que triunfou neste recente
período de desigualdade cultural e económica a que chamamos
«história». Não esqueçamos que esta etapa é apenas uma ponta
visível do icebergue. Vivemos de outra forma durante centenas de
milhares de anos. A cultura primitiva, anterior à escrita, às
monarquias e à acumulação de riqueza, seria essencialmente
igualitária e alegre. O teórico russo Mikhail Bakhtin descreve como
nas suas festas, cobertos com máscaras e disfarces, os nossos
remotos antepassados celebravam, todos juntos numa feliz
confusão, os seus triunfos na luta pela sobrevivência. Existiu um
espírito de igualdade semelhante ao mesmo tempo que as
sociedades foram inevitavelmente pobres e os seus sistemas de
organização, muito simples. Mas, enquanto as novas civilizações
agrícolas e monetárias tornaram possível o enriquecimento, quem
tinha o celeiro mais cheio apressou-se a inventar as hierarquias. Os
sectores que desde então dirigiram a sociedade desigual preferem a
linguagem da seriedade. Porque no riso mais genuíno ainda palpita
a rebeldia face ao domínio, à autoridade e às categorias — o temido
desacato.
O que me atrai nesta teoria bakhtiniana é a revindicação do riso,
mas não acredito nesse mundo essencialmente igualitário e alegre.
Imagino-o terrorífico, autoritário e violento. Estou mais de acordo
com a cena imaginada por Kubrick em 2001: Odisseia no Espaço.
Quando o primeiro indivíduo primitivo descobriu que podia usar um
osso como ferramenta, sem dúvida foi rapidamente estilhaçá-lo na
cabeça de um congénere. As tribos não eram paraísos de
assembleias, pois tinham chefes. É verdade que, em comparação
com a nossa época, quase não existiriam diferenças de riqueza
dentro dos grupos, mas receio que isso não impedisse as
manifestações de despotismo: tu não entras aqui, eu fico com o
pedaço de carne maior, a culpa da nossa maré de azar na caça é
vossa, expulsamos-vos da tribo, massacramos-vos e coisas do
género. Também não me parece que o riso tente sempre restaurar a
igualdade; também há o cruel e reacionário: as troças no recreio do
colégio contra os mais fracos ou as piadas que os nazis contariam
nas suas reuniões enquanto fumavam um cigarro. E, no entanto…
No entanto, existe um humor rebelde que desafia as relações de
domínio, que quebra a aura de um mundo autoritário, que denuncia
o imperador, despindo-o. Como explica Milan Kundera no seu
romance A Brincadeira, o riso tem uma enorme capacidade de
deslegitimar o poder, e por isso inquieta e é castigado. Em geral, os
amados líderes de todas as épocas detestaram e perseguiram os
cómicos que ousavam ridicularizá-los. Os humoristas costumam
tropeçar com os regimes e com os indivíduos mais intransigentes.
Até nas democracias contemporâneas surgem polémicas
acaloradas sobre os limites do humor e da ofensa. Em geral, as
posturas sobre este assunto dependem de se as convicções que
estão em jogo são as nossas ou as de outros. A tolerância tem uma
conjugação irregular: eu indigno-me, tu és suscetível, ele é
dogmático.
Aristófanes, como Chaplin, encarna o riso rebelde e dissidente.
Na verdade, sempre pensei que o humor de ambos tem um toque
familiar, uma família onde Charlie seria o primo bonacheirão e
Aristófanes o avô sarcástico. Estavam os dois interessados nas
pessoas comuns e vulneráveis; os seus heróis nunca são
aristocratas. De acordo com a ocasião, Charlot aparece como
vagabundo, como preso em fuga, como emigrante, como alcoólico,
como desempregado ou como faminto garimpeiro. Os protagonistas
das comédias de Aristófanes são tipos, homens e mulheres, sem
bens nem nobreza, manhosos aflitos com as dívidas que trapaceiam
para não pagar impostos, fartos de guerras, com vontade de sexo e
de festa, desbocados, talvez não esfomeados mas sempre a
fantasiar refastelarem-se com um banquete de lentilhas, carne e
bolos. Charlot simpatiza com os órfãos e com as mães solteiras,
apaixona-se por outras pedintes e, quando tem a oportunidade, dá
um pontapé no rabo dos polícias. Tem o descaramento de
ridicularizar os ricaços, os grandes empresários, os agentes de
imigração, os arrogantes militares da Primeira Guerra Mundial ou o
próprio Hitler. De índole parecida, os seres de Aristófanes tentam
deter a guerra através de uma greve sexual, ocupam a Assembleia
ateniense para decretarem a comunidade de bens, gozam com
Sócrates ou propõem-se curar a miopia ao deus da riqueza para
que distribua melhor os patrimónios. Depois de uma série de
andanças e trapaças excessivas, todas as obras acabam num
banquete pantagruélico, multitudinário e festivo.
Tanto Aristófanes como Chaplin tiveram problemas com a justiça.
As comédias de Aristófanes estavam cheia de alusões pessoais
e caricatura política, como os fantoches da televisão. Do palco, os
atores faziam brincadeiras com o nome e o apelido — ou melhor,
com o nome e o patronímico — das pessoas que seguiam o
espetáculo dos seus lugares: faziam troça de alguém por ser
remeloso e de outro por ser tacanho, por ser feio ou por ser
corrupto. A cidade de Atenas, onde tinham lugar as representações,
considerava-se a metrópole do mundo e a cidade mais importante
do planeta, mas com os seus cem mil habitantes hoje parecer-nos-ia
uma pequena capital de província. Ali, todos conheciam e
praticavam o desporto intemporal da má-língua. Aristófanes
relacionava-se com os seus concidadãos na ágora, onde se reuniam
de manhã para ir às compras, protestar contra os governantes,
vigiar o próximo e coscuvilhar. Dava-se sobretudo com os grupos de
conservadores nostálgicos do passado e pouco amigos das novas
tendências. Depois, no teatro, quase com a mesma liberdade dos
mentirosos de rua, ridicularizava Péricles ou alcunhava outro líder
político de o Salsicheiro. Os intelectuais, os novos educadores e os
ilustrados que confluíam em Atenas pareciam-lhe simples
doidivanas, mas estava-lhes grato pelo jogo que davam para as
comédias. Povoava as suas obras com personagens proeminentes
às quais obrigava a cometer os atos mais ridículos. Utilizava a
linguagem da rua e do campo, até que de repente se lançava a
parodiar as empoladas frases da tragédia ou da épica. De acordo
com as palavras de Andrés Barba, dava respostas materialistas a
perguntas idealistas: «Para nós, Aristófanes inaugurou uma nova
via, estabelecida e criada através da magia do teatro: a paz através
do riso, a liberdade através do riso, a ação política através do riso.»
Este tipo de comédia, chamada comédia antiga, durou o mesmo que
a democracia ateniense, contra a qual tanto arremeteu.
O humor de Aristófanes não teve sucessor. Poderíamos dizer
que acabou, mais do que com ele, antes dele. No final do século V
a. C., Atenas foi vencida por Esparta, que apoiou um golpe de
Estado oligárquico na cidade. Seguiram-se décadas de turbulências
políticas e ânimo quebrado pela derrota. O tempo da crítica
descarada tinha passado. O mesmo Aristófanes continuou a
escrever comédias, mas tornaram-se cautelosas, com argumentos
cada vez mais alegóricos, sem alusões pessoais nem sátira dos
governantes.
Na geração seguinte, os gregos foram anexados ao império de
Alexandre e aos reinos dos seus sucessores. Aqueles monarcas
não toleravam brincadeiras. Nasceu então a comédia nova,
sentimental, costumbrista, de enredo, o tipo de humor em que
Ortega y Gasset pensava ao escrever: «A comédia é o género
literário dos partidos conservadores.» Pelo que sabemos, os
ingredientes das tramas eram repetitivos: protagonistas jovens,
escravos aldrabões, encontros inesperados, gémeos que se
confundem, pais severos, prostitutas de bom coração. O autor mais
conhecido e mais aplaudido daquela época foi Menandro.
Menandro é um caso único na transmissão da literatura antiga.
Lido com entusiasmo durante vários séculos, acabou por
desaparecer, gradual mas completamente. Até os papiros egípcios
nos trazerem de volta amplos fragmentos das suas comédias, só
conhecíamos citações das suas peças. É o único autor essencial do
cânone que foi suprimido e extirpado da tradição manuscrita. Faz
parte do território arrasado da comédia, onde tantos autores se
perderam — há uma longa lista de nomes praticamente mudos:
Magnes, Mulo, Eupólide, Crátinos, Epicarmo, Ferécrates, um tal
Platão que não é o filósofo, Antífanes, Alexis, Dífilo, Filémon,
Apolodoro.
Embora os escritores da comédia nova tentassem divertir o
público de forma inofensiva, acabaram por incomodar. Quando a
sociedade antiga se tornou mais puritana, a imoralidade daqueles
argumentos repetitivos começou a ofender. Os jovens com vontade
de brincadeira, as prostitutas e os pais enganados não ensinavam
nada de edificante às novas gerações. Nas escolas, os professores
escolhiam apenas máximas soltas de Menandro ou fragmentos
selecionados das suas obras, com cuidado para não minarem a
moralidade dos inocentes alunos. E assim, as suas palavras,
lentamente censuradas, perderam-se, tal como aconteceu com a
maior parte do humorismo antigo. O monge destruidor de O Nome
da Rosa teve muitos ajudantes ao longo do tempo. Aqui deparamo-
nos com o paradoxo e o drama do riso: o melhor é aquele que, mais
cedo ou mais tarde, encontra inimigos.

73

Falar de «libros de texto» [livros escolares em português] é tão


redundante como dizer «tábua de madeira», «sair lá para fora»,
«desfecho final» ou «crueldade desnecessária». Apesar desta
revelação supérflua, todos entendemos a que é que a expressão se
refere: aos livros orientados para o ensino. Os gregos já os
conheciam, e talvez os tenham inventado. Neles compilavam-se
passagens literárias para ditados, comentários e exercícios de
escrita. Este tipo de antologias tinha um papel muito importante na
sobrevivência dos livros, porque a maior parte das obras que
chegaram aos nossos dias foram, num momento ou noutro, textos
escolares.
Os sortudos meninos da globalização helenística que podiam
permitir-se estudar para além dos rudimentos básicos, recebiam
uma educação essencialmente literária. Em primeiro lugar, porque
os seus pais valorizavam as palavras — a capacidade de
comunicar, chamaríamos agora —, a fluência no discurso e a
riqueza verbal que se aprendem ao ler os grandes escritores. Os
habitantes do mundo antigo estavam convencidos de que não se
pode pensar bem sem falar bem. «Os livros fazem os lábios», dizia
um provérbio romano.
Em segundo lugar, pela nostalgia. Depois dos passos de
Alexandre, muitos gregos tinham-se instalado em territórios ignotos,
desde o deserto da Líbia até às estepes da Ásia Central. Onde quer
que os gregos aparecessem e se estabelecessem, quer fosse nas
aldeias do Faium, na Babilónia ou na Susiana, alicerçavam de
imediato as suas instituições, as suas escolas primárias e os seus
ginásios. A literatura ajudava os emigrados a manterem uma
linguagem comum, um sistema de referências partilhadas, uma
identidade. Era o instrumento mais seguro de contacto e de
intercâmbio entre os gregos dispersos pela vasta geografia do
império. Perdidos na imensidão, encontravam uma pátria nos livros.
E não faltavam os indígenas que queriam prosperar adotando a
língua e a forma de vida grega. Quem melhor resumiu o novo
conceito de cidadania cultural foi o orador Isócrates: «Nós
chamamos gregos a quem tem em comum connosco a cultura, mais
do que os que partilham o mesmo sangue.»
Que tipo de educação recebiam aqueles gregos? Um banho de
cultura geral. Ao contrário do que nos acontece a nós, não lhes
interessava em absoluto especializarem-se. Menosprezavam a
orientação técnica do conhecimento. Não estavam obcecados com
o emprego; depois de tudo, para trabalhar bastavam-lhes os
escravos. Quem se podia permitir evitava aprender algo tão aviltante
como um ofício. O elegante era o ócio — ou seja, o cultivo da
mente, da amizade e da conversa; a vida contemplativa. Só a
medicina, inquestionavelmente necessária para a sociedade,
conseguiu impor um tipo de formação própria. Pelo contrário, os
médicos tinham um claro complexo de inferioridade cultural. De
Hipócrates a Galeno, todos repetiam nos seus textos o mantra de
que um médico também é um filósofo. Não queriam ficar fechados
dentro da sua esfera particular, pois esforçavam-se por se
mostrarem cultos e usarem alguma citação dos poetas
imprescindíveis nos seus escritos. Para os restantes, os
ensinamentos e as leituras eram, essencialmente, os mesmos em
todo o império, o que criava um poderoso fator de unidade colonial.
Este modelo educativo permaneceu vigente durante muitos
séculos — o sistema romano foi apenas uma adaptação do próprio
conceito —, e encontra-se na raiz da pedagogia europeia. O
imperador Juliano, o Apóstata, explicou num ensaio as saídas
profissionais que se abriam diante de um estudante formado de
acordo com a tradição greco-latina dos conhecimentos amplos.
Juliano diz que quem teve uma educação clássica, ou seja, literária,
poderá contribuir para o avanço da ciência, ser líder político,
guerreiro, explorador e herói. Naquela altura, os leitores aplicados
usufruíam de amplos horizontes laborais.
Já disse que entre os séculos III e I a. C. a alfabetização ganhou
terreno, inclusive para além das classes dirigentes. O Estado
começou a preocupar-se por regulamentar a educação, mas a sua
estrutura era demasiado arcaica e os mecanismos administrativos
demasiado fracos para assumirem o desafio de um autêntico ensino
público. Os estabelecimentos educativos foram incluídos dentro das
competências municipais, e as cidades recorriam à generosidade
dos benfeitores — eles chamavam-lhes evergetes — para
financiarem este e outros serviços de interesse geral. A civilização
helenística, tal como depois a romana, foi essencialmente
personalista e liberal. Naquela altura abundavam os Bill Gates que
exibiam a força das suas enormes fortunas fazendo donativos para
obras públicas — caminhos, escolas, teatros, banhos, bibliotecas ou
salas de concertos — e financiando os gastos das festas padroeiras.
O evergetismo era considerado uma obrigação moral das pessoas
ricas, especialmente quando aspiravam a cargos políticos.
Uma inscrição do século II a. C. encontrada em Theos, uma
cidade da costa da Ásia Menor, recorda um benfeitor que cedeu
uma quantia capaz de assegurar «que todas as crianças nascidas
livres recebam uma educação». O doador deixou estabelecido que
seriam contratados três professores, um para cada grau de
instrução, e para além disso especificava que os três deviam
ensinar meninos e meninas. Em Pérgamo descobriu-se uma
inscrição, datada do século III ou II a. C., que também documenta a
presença de meninas nas escolas, já que estão entre as vencedoras
nas competições escolares de leitura e caligrafia. Gosto de imaginar
essas meninas enquanto desenhavam as letras com ar sério, com a
língua a espreitar entre os lábios entreabertos, prestes a
conseguirem um dos primeiros prémios da História para meninas.
Pergunto-me se sabiam que eram pioneiras, se nas suas fantasias
mais ousadas sonhavam que, vinte e cinco séculos mais tarde,
continuaríamos a recordar as suas vitórias contra a ignorância.

Uma relação apaixonada com as palavras

74

Graças às antigas lixeiras, podemos ter acesso aos textos


escritos por gente comum no Egito. Já expliquei que o papiro, o
material de escrita habitual naquele tempo, se conserva em climas
muito secos, enquanto a humidade de um regime normal de chuvas
o destrói. Em algumas zonas egípcias — infelizmente, não na região
do delta, onde está Alexandria —, foi possível recuperar escritos
abandonados ou deitados para o lixo há dois mil anos. Esses textos
permaneceram onde estavam, sem se deteriorarem nem
desintegrarem, cobrindo-se pouco a pouco, ao longo dos séculos,
com a camada protetora da areia ardente do país. E conservaram-
se intactos. Daí que milhões e milhões de papiros, descobertos por
camponeses e escavados por arqueólogos, tenham chegado às
nossas mãos, às vezes com a tinta quase tão fresca como no dia
em que uma mão antiga os escreveu. O conteúdo dos textos é
muito variado — desde a correspondência de um orgulhoso oficial
até às suas listas de roupa suja para lavar. Quase todos os papiros
estão escritos em grego, a língua do governo e da população culta.
As datas estão compreendidas entre o ano 300 a. C. e o 700 d. C.,
desde a ocupação grega do Egito, passando pelos anos de domínio
ptolemaico e romano, até à conquista árabe.
Os papiros demonstram que muitos gregos sem qualquer cargo
na administração sabiam ler e escrever, ocupavam-se pessoalmente
dos seus trâmites, redigiam documentos mercantis e tratavam da
sua correspondência sem recorrerem a escribas profissionais. E,
para além disso, liam por prazer. Numa carta a um amigo, um
homem, aborrecido, escreve desde a monotonia de uma aldeia
egípcia: «Se copiaste os livros, envia-mos, para termos alguma
coisa que nos ajude a passar o tempo, porque não temos ninguém
com quem falar.» Sim, havia pessoas que procuravam nos livros um
salva-vidas face ao tédio rural. Desenterrámos restos do que liam,
pedaços de livros ou até obras inteiras. Não se encontraram papiros
na húmida Alexandria, que se gabava de ter mais leitores do que
qualquer outro lugar do mundo, mas, ainda assim, as descobertas
nas zonas secas permitem-nos bisbilhotar as leituras da época. E,
se nos fiarmos das estimativas baseadas no número de vestígios
encontrados de cada obra, até podemos saber quais eram os livros
preferidos daqueles leitores.
Reconheço que, perante as leituras alheias, sinto uma
curiosidade desenfreada. Nos autocarros, no elétrico e no comboio,
torço o pescoço em contorções inverosímeis tentando descobrir o
que é que os viajantes à minha volta leem. Acho que os livros
descrevem as pessoas que os têm entre as mãos. Por isso parece-
me emocionante bisbilhotar na intimidade dos leitores da periferia
egípcia através da distância dos séculos. A julgar pela cronologia,
seriam esses mesmos homens e mulheres que nos interpelam com
os seus grandes olhos nostálgicos desde os retratos de Faium, e
estão tão vivos que nos recordam vagamente alguém conhecido.
O que é que os papiros revelam sobre eles? O seu poeta
preferido era, de longe, Homero. Gostavam mais da Ilíada do que da
Odisseia. Também liam Hesíodo, Platão, Menandro, Demóstenes e
Tucídides, mas o segundo no pódio era Eurípides, o que me faz
lembrar um episódio maravilhoso sobre o poder dos livros.
Voltemos um pouco atrás, até aos anos convulsos da Guerra do
Peloponeso. Os governantes da imperialista Atenas, como se não
bastasse lutar contra a poderosa Esparta, lançaram uma expedição
sulcando os mares até à Sicília para cercar Siracusa. A campanha
foi um fracasso devastador: cerca de sete mil atenienses, com os
seus aliados, foram feitos prisioneiros e condenados a trabalhos
forçados nas pedreiras — chamadas «latomias», da pólis
vencedora. Aí, segundo conta Tucídides, trabalharam até à
exaustão. Fechados nas profundezas, expostos ao calor abrasador
ou ao frio, doentes, a conviverem com cadáveres, hediondos pelas
suas próprias fezes e urina, alimentados apenas com um quartilho
de água e dois de cevada por dia, foram morrendo gradualmente.
Plutarco conta que os siracusanos gostavam tanto da poesia que
perdoaram a vida e deixaram partir quem fosse capaz de recitar de
cor algum verso de Eurípides. «Diz-se que muitos dos que
finalmente conseguiram voltar sãos e salvos às suas casas
visitaram Eurípides com a maior gratidão, e alguns contaram-lhe
que se tinham livrado da escravatura a recitar fragmentos das suas
obras que sabiam de cor, e outros, que, dispersos e errantes depois
da batalha, tinham conseguido que lhes dessem comida e água
depois de cantarem os seus versos.» Já agora, nessas mesmas
latomias sicilianas hoje a abarrotar de turistas, São Paulo pregou a
palavra de Jesus e Churchill pintou aguarelas.
Homero e Eurípides eram os grandes vencedores da
competição, os escritores que esculpiam os sonhos dos gregos. Na
infância, todos aprendiam a ler e a escrever copiando os seus
versos, o que explica a quantidade de papiros descobertos. As
crianças não eram introduzidas na leitura com frases fáceis como «a
minha mãe ama-me». O método educativo consistia numa brusca
imersão. Quase desde o início agarravam-nas pelo pescoço e
mergulhavam-nas nas frases belas e difíceis de Eurípides, que mal
conseguiam perceber («Bálsamo precioso do sonho, alívio dos
males, vem a mim» ou «Não desperdices lágrimas frescas em dores
passadas»). Muitos fragmentos encontrados seriam, com grande
probabilidade, cópias de estudantes. Mas também havia leitores
apaixonados pela musicalidade daqueles versos. Há um caso
especialmente comovente. Os arqueólogos encontraram um rolo de
papiro debaixo da cabeça de uma múmia feminina, quase em
contacto com o seu corpo. Esse rolo contém um canto
especialmente belo da Ilíada. Suponho que aquela leitora entusiasta
quis assegurar-se de ter livros na outra vida e de poder recordar as
palavras aladas de Homero para além do rio do esquecimento, que,
segundo as suas crenças, atravessaria para chegar ao mundo dos
mortos.
Apareceram dezenas de escritos debaixo das areias do Egito
que pertenceram a colecionadores privados — comédias, obras
filosóficas, estudos históricos, tratados de matemática e música,
manuais técnicos e até textos de autores desconhecidos para nós
até à sua descoberta. Penso naqueles bibliófilos anónimos e
pergunto-me como é que conseguiram todos esses livros
minoritários. Provavelmente, os rolos de Homero, de Eurípides e de
algum outro autor famoso podiam conseguir-se sem dificuldades
nas livrarias de Alexandria. Mas as cópias de livros pouco comuns
deviam ser feitas por encomenda. É o caso de um exemplar da
Constituição dos Atenienses, de Aristóteles. O mais provável é que
o seu dono encomendasse uma cópia a uma oficina, e
possivelmente o estabelecimento que fez o trabalho teve de enviar
um copista à Biblioteca de Alexandria para trabalhar a partir do
original depositado ali. Essas deslocações aumentariam, sem
dúvida, vertiginosamente o preço da encomenda. Naquele tempo,
conseguir um livro raro podia converter-se numa pequena odisseia
e, sem dúvida, era um desfalque para a bolsa.
Os leitores com a algibeira cheia de teias de aranha tinham de
consolar-se com idas a bibliotecas. Existiram inclusivamente fora de
Alexandria e de Pérgamo. Pequenas e locais, não se podiam
comparar com as assombrosas coleções reais, mas pelo menos
ofereciam aos seus visitantes as obras fundamentais dos grandes
autores. Conhecemos a existência destes estabelecimentos mais
uma vez graças a inscrições em pedra. Sabemos, por exemplo, que
houve uma biblioteca na ilha de Cos, perto da atual Turquia.
Sobreviveu um fragmento de inscrição que enumera uma série de
donativos privados. Um pai e o seu filho financiaram o edifício e,
para além disso, doaram cem dracmas. Outras quatro pessoas
ofereceram duzentos dracmas e cem livros cada uma. Mais duas
proporcionaram duzentos dracmas. O dinheiro estaria destinado,
sem dúvida, à compra de livros. Há evidências parecidas em Atenas
e noutros lugares.
É muito possível que aquelas bibliotecas estivessem associadas
ao gymnasium local da sua cidade. Originalmente, os jovens
praticavam aí atletismo e luta. «Ginásio» deriva da palavra «nudez»,
porque o costume grego era — para escândalo dos bárbaros —
exercitar-se mostrando sem pudor nem rodeios o esplendor do
corpo masculino besuntado de óleo. Na época helenística, os
ginásios já se tinham transformado em centros educativos, com
aulas, recintos para conferências e salas de leitura. Sabemos que
pelo menos o gymnasium de Atenas tinha uma biblioteca, porque se
conserva parte de um catálogo em pedra. Aparentemente, essa lista
de fundos estaria gravada na parede da biblioteca, onde os leitores
podiam consultá-la rapidamente sem o estorvo de terem de abrir e
enrolar um rolo que, para além disso, correria o perigo de se
deteriorar rapidamente pelo uso contínuo. Segundo o catálogo, a
biblioteca estava especializada em comédia e tragédia. Havia mais
de duzentos títulos de Eurípides e mais de uma dúzia de Sófocles.
Também constam quinze comédias de Menandro. Só há dois livros
em prosa, um dos quais é um discurso de Demóstenes. Pelo
contrário, a biblioteca de Rodes, um conhecido centro de estudos
retóricos, quase não tinha peças de teatro — estava especializada
em ensaios de política e história.
Se as evidências de Atenas e Rodes se podem extrapolar a
todas as cidades com ginásios, durante o helenismo haveria mais
de cem bibliotecas, uma delicada rede venosa que bombeava o
oxigénio das palavras e dos relatos de ficção para todos os cantos
do território.

75
Demóstenes ficou órfão aos sete anos. O seu pai, fabricante de
armas, deixou-lhe um património suficiente para viver sem
problemas económicos, mas os seus tutores esbanjaram a herança.
A sua mãe, arruinada, não tinha dinheiro para lhe pagar uma boa
educação. Passavam dificuldades. Os rapazes do bairro riam-se
dele pelo seu aspeto magro, débil e delicado. Até lhe deram uma
alcunha: bátalo, que significava «ânus», ou seja, «maricas». Para
além disso, sofria um penoso defeito que o complexava e paralisava
ao falar. Provavelmente, gaguejava ou tinha dificuldade para
pronunciar certas consoantes.
Contam que Demóstenes venceu os seus problemas com uma
disciplina sádica. Obrigava-se a falar com seixos na boca. Saía a
correr pelo campo para fortalecer os seus pulmões e recitava versos
a arfar, cansado, arquejando enquanto subia. Passeava à beira do
mar em dias de tempestade para melhorar a sua capacidade de
concentração entre o rugido das ondas. Ensaiava em casa em
frente de um espelho de corpo inteiro, repetindo frases desafiantes e
fazendo poses. A cena, contada por Plutarco, parece preparar o
terreno para o «You Talkin’ to me?» de Robert De Niro em Taxi
Driver. Pobre, órfão, gago e humilhado, anos depois converter-se-ia
no orador mais famoso de todos os tempos. Os antigos gregos, tal
como os americanos de hoje, adoravam uma boa história de
superação.
O número dez simboliza a perfeição. Está na base do nosso
sistema decimal. No mundo académico espanhol representa a
qualificação máxima, ou seja, a excelência. Para os pitagóricos era
um número mágico e sagrado. Não é por acaso que foram dez os
oradores áticos canónicos cujas obras mereciam ser conservadas e
estudadas. Os antigos acreditavam que o fascinante poder das
palavras encontrava a sua máxima expressão — precisamente —
nos discursos.
Os gregos sempre tiveram fama de palradores e de litigantes
inesgotáveis. Os heróis dos seus mitos não eram, como no
imaginário de outras culturas, meros guerreiros brutos e
musculados, pois sabiam lançar, quando se proporcionava, uma
arenga bem adornada, já que tinham sido educados para serem
especialistas na palavra. As instituições democráticas de Atenas
ampliaram a esfera dos discursos: todos os atenienses — entenda-
se: os que cumpriam os requisitos de serem livres e homens —
tinham a possibilidade de falar diante dos seus concidadãos na
Assembleia, onde se votavam as decisões políticas, e decidir, como
membros de júris populares, sobre a solidez dos discursos alheios.
Aparentemente, adoravam o falatório ininterrupto que era o
ingrediente principal da sua vida quotidiana, da ágora ao
parlamento. Aristófanes escreveu uma comédia paródica sobre um
indivíduo chamado Filócleon, um autêntico viciado nos julgamentos.
Para ajudá-lo a ultrapassar a compulsão fiscal, o seu filho monta um
tribunal na sua própria casa e oferece a presidência ao pai. À falta
de alguém para julgar, acusam o cão da família, por ter comido um
pedaço de queijo na cozinha, improvisando longas alegações a seu
favor e contra ele. A pantomina alivia Filócleon como um chuto de
metadona alivia um drogado.
Heródoto relata que, na noite anterior à crucial Batalha de
Salamina, à qual deviam chegar frescos e descansados, os generais
envolveram-se numa discussão tumultuária que se prolongou até
altas horas da manhã, enquanto os soldados rasos resmungavam e
criticavam a insensatez dos seus superiores. A discussão não os
impediu de ganhar a batalha, mas Heródoto parece lamentar esse
seu temperamento quezilento, que na sua opinião foi o motivo pelo
qual os gregos nunca conseguiram construir um Estado forte e
unitário. Sim, amavam as palavras e os argumentos incisivos. Por
isso eram capazes de criar poemas de belíssima arte verbal, mas
também de converter qualquer discussão numa briga estéril e
destrutiva.
A oratória dos advogados e estadistas gregos era bastante
diferente da atual. Na ausência de leis contra os libelos e agravos,
os oradores maltratavam-se uns aos outros com um verdadeiro luxo
de injúrias. As intermináveis acusações pessoais e a imputação de
motivos reles ao adversário acrescentavam um interesse mórbido,
quase pugilístico, aos debates. Chegaram a aperfeiçoar a arte de se
criticarem uns aos outros com engenhosos insultos a tal ponto que o
espetáculo devia ser hipnótico. Nos tribunais — todos compostos
por júris —, as questões legais importavam menos do que a astúcia
da argumentação. Para os processos privados, a prática jurídica
exigia que o próprio litigante defendesse o seu caso diante do
tribunal com dois discursos sucessivos. Não existiam advogados
que representassem os seus clientes como se faz hoje em dia. O
habitual era que os litigantes não confiassem em si próprios para
comporem a sua defesa ou o discurso de acusação, e em geral
acabavam por contratar os serviços de uma personagem chamada
«logógrafo» que estudava o caso e escrevia um discurso
convincente, o mais coloquial e simples possível. O cliente aprendia-
o de cor para recitá-lo diante do tribunal. Era assim que a maior
parte dos oradores ganhava a vida. Quanto ao resto, procuravam
defender casos que aumentassem o seu prestígio e contribuíssem
para a descolagem da sua carreira política.
Os melhores discursos políticos e judiciais publicavam-se pouco
tempo depois de serem pronunciados, quando a polémica ainda
estava quente, e as pessoas liam-nos com o mesmo prazer com
que atualmente ficamos colados às séries de advogados. Já agora,
um dos meus filmes judiciais preferidos, Na Sombra e no Silêncio,
contém uma piscadela de olho àquela época. O advogado
protagonista, imaginado por Harper Lee e que sempre recordaremos
com o rosto maduro, suado e paternal de Gregory Peck, chama-se
Atticus Finch, uma referência evidente aos dez grandes oradores
áticos do cânone clássico. E, evidentemente, como qualquer bom
ático que se preze, o herói da pequena Scout sabe pronunciar uma
vibrante alegação — a favor de um homem negro — perante um júri
hostil, na Alabama racista e empobrecida pela Grande Depressão
dos anos trinta do século passado.
Aqueles dez oradores míticos nasceram no decorrer de um
século — entre o V e o IV a. C. — e puderam todos praticamente
conhecer-se e vituperar-se entre si com cólera. Os seus anos de
esplendor coincidiram com a democracia ateniense, e a era das
monarquias helenísticas marcou o fim. Na verdade, entre os
discursos mais famosos de Demóstenes estão as Filípicas, uma
série de ataques furibundos e apocalípticos contra o imperialismo de
Filipe II da Macedónia, pai de Alexandre. Todos nós, os que desde
então nos envolvemos em alguma filípica, somos meros aprendizes
do fascinante Demóstenes.
Outro dos dez oradores, Antifonte, foi um autêntico pioneiro que
poderia estar na vanguarda da psicanálise e das terapias da
palavra. O exercício da sua profissão tinha-lhe ensinado que os
discursos, se forem efetivos, podem influenciar poderosamente o
estado de espírito das pessoas, comovendo, alegrando,
apaixonando, sossegando. Então teve uma ideia nova: inventou um
método para evitar a dor e a aflição comparável à terapia médica
dos doentes. Abriu um estabelecimento na cidade de Corinto e
colocou um rótulo a anunciar que «podia consolar os tristes com
discursos adequados». Quando aparecia algum cliente, ouvia-o com
muita atenção até compreender a desgraça que o afligia. Depois
«apagava-lha do espírito» com conferências consoladoras. Usava o
fármaco da palavra persuasiva para curar a angústia e, de acordo
com os autores antigos, chegou a ser famoso pelos seus raciocínios
sedativos. Depois dele, alguns filósofos afirmaram que a sua tarefa
consistia em «expulsar o rebelde pesar através do raciocínio», mas
Antifonte foi o primeiro a ter a intuição de que curar graças à palavra
se podia converter num ofício. Também compreendeu que a terapia
devia ser um diálogo exploratório. A experiência ensinou-lhe que
convém fazer falar aquele que sofre sobre os motivos da sua dor,
porque, às vezes, procurando as palavras encontra-se o remédio.
Muitos séculos depois, Viktor Frankl, um discípulo de Freud,
sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz e Dachau,
desenvolveria um método parecido para ultrapassar os traumas da
barbárie europeia da sua época.
Seduzidos pela beleza das palavras, os gregos inauguraram o
género da conferência, que teve um surpreendente destino já
durante a Antiguidade. Os sofistas, mestres itinerantes que viajavam
de cidade em cidade à caça de alunos, ofereciam espetáculos para
se darem a conhecer, demonstrarem a qualidade do seu ensino e
provarem as suas habilidades diante do auditório. Umas vezes eram
discursos preparados e, outras, improvisações acerca de temas
sugeridos no momento pelo público — coisas tão descabeladas
como o elogio dos mosquitos ou a calvície. Em algumas daquelas
conferências as portas estavam abertas a todo o tipo de curiosos,
mas em geral as conferências costumavam estar reservadas a um
público mais seleto que pagava um bilhete. Os sofistas cuidavam
com esmero da cenografia dos seus discursos e chegavam até a
comparecer diante dos seus ouvintes com a extravagante
indumentária dos antigos aedos andarilhos, declarando-se herdeiros
daqueles poetas que fascinavam da mesma maneira reis e
camponeses com o feitiço dos seus versos. Na época helenística, o
fenómeno expandiu-se. Havia uma verdadeira tropa de intelectuais
errantes — evidentemente oradores, mas também artistas, filósofos
ou médicos higienistas — que percorriam os caminhos do império,
levando de um lado para o outro o seu experiente talento com a
segurança de encontrarem um auditório solícito até nos recantos
mais empoeirados do mundo conhecido. A conferência converteu-se
no género literário mais vivo, aquele que, de acordo com alguns
especialistas, melhor define a originalidade da cultura daquela
época. Aí começa a rota que conduz às nossas TED Talks e ao
negócio multimilionário dos ex-presidentes conferencistas.
No século V a. C., o formidável sofista Górgias escreveu: «A
palavra é um poderoso soberano; com um corpo pequeníssimo e
totalmente invisível, executa as obras mais divinas: tirar o medo,
eliminar a dor, transmitir alegria e aumentar a compaixão.» O eco
destas ideias gregas está presente naquela que me parece uma das
frases mais belas do evangelho: «mas diz uma só palavra e o meu
servo será curado.»
Porém, aquela genuína paixão pela linguagem gerou toda uma
série de técnicas retóricas que acabaram por gangrenar a sua
espontaneidade. Os oradores aplicaram-se a construir um método
cheio de fórmulas, princípios e procedimentos elaborados até ao
mínimo detalhe. Todas essas disquisições sobre estilo, juntamente
com o asfixiante aparelho de exórdios, provas e refutações, tiveram
consequências em geral nefastas. Infelizmente, durante a
Antiguidade abundavam os mestres pedantes de eloquência e os
artistas do palavreado vão. O amor pelos floreados invadiu e deitou
a perder demasiada literatura. Por vezes, ao traduzir textos gregos
ou romanos, tive de dar uma gargalhada. O escritor está a falar das
suas emoções mais profundas e essenciais — dor, desejo,
abandono, exílio, solidão, medo, tentações de suicídio — quando,
no momento mais inoportuno, intervém um aluno aplicado que
aprendeu de cor as figuras de estilo. E quebra-se o encanto. O
mundo está a afundar-se sob os seus pés e ele conta-o com
antíteses, homeoteleutos e paronomásias.
Desde aquele tempo até ao presente, a nossa fé candorosa nas
receitas para a vida deu de comer a muitos charlatães da retórica.
Hoje somos inundados por decálogos de autoajuda que oferecem as
suas milagrosas listas de sucessos. Dez fórmulas para salvar o
nosso casamento, para esculpir o nosso corpo ou para nos
convertermos em pessoas altamente efetivas, dez chaves para
sermos bons pais, dez truques para fazermos a costeleta perfeita,
dez frases brilhantes para acabar um capítulo. Infelizmente, não
comprei o último.

76

Em 2011, uma editora de Louisville editou os dois romances mais


famosos de Mark Twain, As Aventuras de Huckleberry Finn e As
Aventuras de Tom Sawyer, eliminando a depreciativa palavra nigger
— que se poderia traduzir como «preto» — e substituindo-a pela
mais neutral «escravo». O responsável por esta profilaxia literária,
um professor universitário especialista em Mark Twain, declarou ter
tomado a difícil decisão a pedido de numerosos professores de
escolas secundárias para quem Huck Finn, na sua forma genuína, já
não é aceitável nas aulas pela sua «linguagem racial ofensiva», que
desperta reações de visível incómodo a muitos alunos. Na sua
opinião, fazer esta superficial cirurgia é a melhor forma de evitar que
os clássicos da literatura americana fiquem definitivamente
relegados das escolas atuais. Não é um caso isolado. Nos últimos
anos produziu-se um constante gotejar de polémicas relacionadas
com os clássicos juvenis, sobretudo os que fazem parte dos
programas escolares.
Uma legião de pais angustiados com os traumas incuráveis que
os irmãos Grimm ou Andersen podem provocar aos seus frágeis
rebentos perguntam-se que valores — e terrores — incutem a
Cinderela, a Branca de Neve ou O Soldadinho de Chumbo às
crianças do século XXI. Estes apóstolos da proteção de menores
preferem as adocicadas adaptações da indústria Walt Disney aos
contos originais, tão cruéis, violentos, patriarcais e antiquados.
Muitos deles são partidários, se não de eliminar a literatura
tradicional do nosso imperfeito passado, pelo menos de adaptá-la à
boa consciência pós-moderna.
O humorista e escritor James Finn Garner publicou em meados
dos anos noventa do século passado um livro intitulado Histórias
Tradicionais Politicamente Correctas. Foi o seu contributo cómico
para este debate. A sátira de Finn Garner não é dirigida às crianças,
pois trata-se antes de um monólogo cómico entretecido com os
eufemismos que os adultos do século XXI utilizam. Com uma
impecável ironia sempre à beira do despropósito, reformulava o
início de O Capuchinho Vermelho nestes termos: «Era uma vez uma
pessoa de curta idade chamada Capuchinho Vermelho que vivia
com a mãe no limite de uma floresta. Um dia, a mãe pediu-lhe que
levasse uma cesta com fruta fresca e água mineral à casa da sua
avó, não porque considerasse isso uma tarefa própria de mulheres,
atenção, mas sim porque isso representa um ato generoso que
contribuía para consolidar a sensação de comunidade.»
Na verdade, a controvérsia é mais antiga do que julgamos, e as
legiões de fervorosos partidários da fúria censora e restantes ligas
da decência podem virar-se contra um correligionário enormemente
prestigiado: o filósofo Platão. A educação dos jovens sempre foi
uma das grandes preocupações do aristocrata ateniense, e acabou
por se converter no seu ofício. Depois de sair prejudicado das suas
tentativas de fazer carreira política ou, pelo menos, de influenciar os
governantes, dedicou-se plenamente a ensinar na Academia, a
escola que tinha fundado numa pequena floresta nos arredores de
Atenas. Segundo nos contam, dava as suas aulas sentado num
banco alto, a kathédra, rodeado de cadeiras simbolicamente mais
pequenas ocupadas pelos seus discípulos, um grande quadro
branco, um globo do céu, um modelo mecânico dos planetas, um
relógio do qual se gabava ter sido construído por si próprio e mapas
com as representações dos principais geógrafos. A sua escola
pretendia ser um centro para a formação das elites governantes das
cidades gregas — hoje considerá-la-íamos sobretudo um think tank
antidemocrático.
Os ensinamentos de Platão sempre me pareceram
assombrosamente esquizofrénicos na sua mistura explosiva de livre
pensamento e impulsos autoritários. Entre as suas passagens mais
lidas encontra-se o mito da caverna, um relato ideal do que devia
ser um processo educativo crítico. No interior de uma gruta, uns
indivíduos permanecem acorrentados de costas para uma fogueira
chamejante. Os reclusos só veem o movimento das sombras
projetadas sobre as paredes da caverna, e essas sombras
constituem a sua única realidade. Finalmente, um deles liberta-se da
clausura e aventura-se a sair da caverna, rumo ao mundo que se
estende para além das hipnóticas projeções. Neste relato há um
belíssimo convite à dúvida, à não conformação com as aparências,
à quebra das amarras e ao abandono dos preconceitos para olhar
para a realidade de frente. A saga cinematográfica Matrix adotou a
mensagem rebelde desta alegoria ao mundo contemporâneo da
realidade virtual, da aldeia mediática, dos mundos paralelos da
publicidade e do consumismo, dos boatos da Internet e das
autobiografias maquilhadas que fabricamos para as redes sociais.
No entanto, na mais famosa utopia platónica, A República, o
mesmo ensaio que acolhe o mito da caverna, espreita a escura
antítese da sua mensagem ilustrada. O terceiro livro poderia ser o
manual prático de um ditador em formação. Aí se afirma que, numa
sociedade ideal, a educação devia incutir acima de tudo seriedade,
decoro e coragem. Platão é partidário de uma rígida censura sobre
a literatura que os jovens leem e a música que podem ouvir. As
mães e as amas devem só contar às crianças histórias autorizadas,
e até os jogos infantis estão regulamentados. Homero e Hesíodo
devem ser proibidos como leitura infantil por várias razões. Primeiro,
porque apresentam uns deuses frívolos, hedonistas e propensos ao
mau comportamento, o que não é edificante. É preciso ensinar aos
jovens que o mau nunca procede dos deuses. Em segundo lugar,
porque alguns versos dos poetas falam do medo da morte, algo que
inquieta Platão já que, na sua opinião, se deve procurar que os
jovens morram com prazer na batalha. «Faremos muito bem —
afirma — em suprimir os lamentos dos homens ilustres, para os
atribuirmos, pelo contrário, às mulheres.» Platão também não tem
uma boa opinião sobre o teatro. Do seu ponto de vista, a maior parte
das obras trágicas e cómicas contêm nas suas tramas más pessoas
e, portanto, os atores — todos homens, tal como na Inglaterra
isabelina — têm de se meter na pele de gente indesejável, como
criminosos ou seres inferiores, como mulheres ou escravos. Essa
identificação com as emoções da escória não pode ser nada boa
para a formação das crianças e dos jovens. As peças de teatro,
caso se tolerem, só deviam incluir personagens heroicas,
masculinas, irrepreensíveis e de linhagem nobre. Como nenhuma
peça cumpre os requisitos, Platão desterra do seu perfeito estado os
dramaturgos, juntamente com os outros poetas.
Os anos não apaziguaram o espírito censor de Platão. No seu
último diálogo, Leis, propõe praticamente a criação de uma polícia
poética para vigiar a nova literatura: «O poeta não poderá compor
nada que seja contrário àquilo que a cidade considerar legal, justo,
belo ou bom; depois de escrever o seu poema, não poderá dá-lo a
conhecer a nenhum particular, antes de ter sido lido e aprovado
pelos juízes que para isso teriam designado os guardiães das leis
(…) e aquele a quem escolhemos como diretor de educação.» A
mensagem fica enfaticamente clara: é preciso submeter os textos
poéticos a uma severa censura; às vezes suprimi-los, outras vezes
expurgá-los, aplicar-lhes correções e, sempre que for preciso — sê-
lo-á muitas vezes —, reescrevê-los.
A utopia de Platão é irmã gémea da distopia 1984. A Sociedade
do Partido Único imaginada por George Orwell alberga um
Departamento de Ficção, onde se produz toda a nova literatura. É aí
que trabalha a protagonista, Julia, a quem vemos rondar pelo
escritório com as mãos sempre oleosas e uma chave-inglesa na
mão. Trata da manutenção das máquinas que escrevem romances
de acordo com as orientações ministeriais. O regime também não
põe de lado as obras clássicas. É aqui que Orwell parece tornar
realidade os sonhos eróticos do autoritário Platão: o seu Ministério
da Verdade pôs em funcionamento um grande projeto destinado a
reescrever toda a literatura do passado. Está previsto que a
fabulosa tarefa acabe em 2050. «Nessa altura — diz um dos seus
artífices entusiasmado —, Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron…
só existirão em versões neolinguísticas, convertidos no contrário do
que eram. Todo o clima do pensamento será distinto. Na verdade,
não haverá pensamento no sentido em que agora o entendemos. A
ortodoxia significa não pensar, não precisar do pensamento. A
nossa ortodoxia é a inconsciência.»
Embora as afirmações de Platão não possam ser mais
categóricas e drásticas, deteto uma certa resistência a levar à letra
as suas palavras. Quando os admiradores do ateniense dão de
caras com passagens como esta, começam a olhar para um lado e
para o outro, à procura de escapatória. Whitehead escreveu essa
famosa frase, tantas vezes repetida, que reduz toda a filosofia
ocidental a notas de rodapé da filosofia platónica. Para salvar a sua
pele, dizem-nos que Platão ficava exaltado enquanto escrevia, que
extremava as suas posições como fazemos todos durante as
discussões políticas no final dos almoços de domingo em família.
No entanto, Platão sabia muito bem o que dizia. Nunca gostou
da democracia ateniense, que na sua opinião ficou retratada com o
assassinato de Sócrates. Queria instaurar um modelo imutável, no
qual nunca mais fossem necessárias mudanças sociais nem relatos
impúdicos que minassem os alicerces morais da sociedade. Tinha
vivido tempos convulsos e traumáticos em Atenas. Desejava
estabilidade, desejava o governo dos sábios e não da néscia
maioria. Se esse imobilismo só podia ser defendido por um regime
repressivo, devíamos seguir em frente. Foi assim que Karl Popper o
entendeu quando chamou «O Sortilégio de Platão» à primeira parte
do seu ensaio A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos.
As leituras dos jovens preocupavam Platão por motivos tanto
pedagógicos como pecuniários. Mestre fundador da primeira
academia para os filhos das elites, tentava desacreditar a
concorrência. Não gostava do sistema educativo do seu tempo, no
qual os poetas — gente de ideias erráticas e escassamente
edificantes — eram os educadores dos gregos. Os novos
professores deviam ser filósofos, ou seja, ele. No seu diálogo Leis
diz que propor o estudo dos poetas à juventude «é um grande risco»
e, pelo contrário, sugere — num surpreendente exercício da virtude
da humildade — as suas próprias obras como texto para explicar na
aula: «Ao voltar a ver com um olhar de conjunto estes pensamentos
que são obra nossa, tive uma forte sensação de prazer, pois, dos
múltiplos raciocínios que pude ler nos poemas, nenhum me pareceu
mais sensato e mais conveniente para fazer com que os jovens o
lessem. Não teria melhor modelo do que este para apresentar ao
legislador e ao educador, e o melhor seria que os professores
ensinem estes discursos às crianças, bem como outros que se
relacionem com estes e sejam parecidos com eles.» No fundo, trata-
se de uma luta pelas mentes dos gregos, com a educação como
campo de batalha. E, de passagem, de fazer negócio.
Por esta altura já não preciso de avisar que Platão me interessa
e me irrita ao mesmo tempo. Perante as suas ideias, com frequência
tenho vontade de lhe lançar alguma dessas fantásticas séries de
insultos que aprendi com o Capitão Haddock: filoxera, anacoluto,
bashi-buzouk, ectoplasma! Pergunto-me como é possível que um
filósofo de inteligência tão irreverente defenda um sistema educativo
que condena os alunos a conhecerem apenas textos esterilizados e
fábulas de virtude. O seu programa suprime da literatura todos os
claro-escuros, as excursões ao abismo, a inquietação, a dor, os
paradoxos, as intuições perturbadoras. A poda é arrepiante. Se ele
próprio tivesse escrito de acordo com esses princípios estéticos,
agora estaríamos totalmente aborrecidos. E, no entanto, continua a
fascinar-nos porque, ao contrário do que prescreve, é agudo,
paradoxal, inquietante.
Mas hoje o desafio ainda está no ar, como sabem os professores
de Louisville que quiseram apagar o insulto nigger da obra de Mark
Twain. Os livros infantis e juvenis são obras literárias complexas ou
manuais de comportamento? Um Huck Finn saneado pode ensinar
muito aos jovens leitores, mas rouba-lhes um ensinamento
essencial: que houve um tempo durante o qual quase toda a gente
chamava «pretos» aos seus escravos e que, devido a essa história
de opressão, a palavra se converteu em tabu. Não é por
eliminarmos dos livros tudo o que nos parece inapropriado que
salvaremos os jovens das más ideias. Pelo contrário, tornamo-los
incapazes de reconhecê-las. Ao contrário daquilo em que Platão
acredita, as personagens malvadas são um ingrediente crucial dos
contos tradicionais para que as crianças aprendam que a maldade
existe. Mais cedo ou mais tarde, terão notícias dela (desde os
fanfarrões que as assediam no pátio da escola até aos tiranos
genocidas).
A maravilhosa e perturbadora Flannery O’Connor escreveu que
quem «só lê livros moralizadores está a seguir um caminho seguro,
mas um caminho sem esperança, porque lhe falta a coragem. Se
alguma vez, por acaso, lesse um bom romance, saberia muito bem
que lhe está a acontecer qualquer coisa». Sentir um certo incómodo
faz parte da experiência de ler um livro; há muito mais pedagogia na
inquietação do que no alívio. Podemos mandar para o bloco
operatório toda a literatura do passado para submetê-la a uma
cirurgia estética, mas então deixará de nos explicar o mundo. E se
nos metermos nesse caminho não devemos estranhar que os
jovens abandonem a leitura e, como diz Santiago Roncagliolo, se
entreguem à PlayStation, onde podem matar imensa gente sem que
ninguém levante problemas.
Tenho à minha frente um último artigo de imprensa. Acontece
que, na Universidade de Londres, o sindicato de estudantes da
Escola de Estudos Orientais e Africanos exige que desapareçam do
programa filósofos como Platão, Descartes ou Kant — por serem
racistas e colonialistas.
É irónico: Platão, o caçador caçado.

O veneno dos livros. A sua fragilidade

77
Os bibliotecários de Alexandria não expulsaram os poetas
gregos, nem sequer Platão. Na margem do Nilo, o palácio dos livros
proporcionava hospitalidade aos dois bandos adversários. As suas
prateleiras criaram um desses insólitos espaços de armistício onde
as hostilidades cessam, os inimigos tocam levemente uns nos
outros na promiscuidade das estantes, as fronteiras se dissipam e a
leitura se converte em mais uma forma de reconciliação.
Sabemos que a Grande Biblioteca acolheu as ideias, as
descobertas e os grunhidos de Platão. Não sem uma certa dose de
ironia, pois o sábio Calímaco, autor dos Pínakes e ilustre membro
do Museu, quis deixar expresso o cariz assassino que os livros
platónicos podiam chegar a ter.
O episódio está num brevíssimo texto em verso. Talvez
Calímaco, como poeta que era, quisesse lançar um dardo a Platão
em nome do grémio. O seu poema descreve o suicídio de um tal
Cleômbroto de Ambrácia, que se lançou para o vazio do alto de uma
muralha. Diz-nos que não tinha acontecido nada a este jovem capaz
de empurrá-lo para a morte, exceto que «tinha lido um tratado,
apenas um, de Platão: Acerca da alma». Nós conhecemos o diálogo
que acabou com o pobre Cleômbroto com o título de Fédon. Muitos
se perguntaram porque é que se suicidaria depois de ler essa obra,
que relata as últimas horas de Sócrates antes de tomar a sua dose
de cicuta. Alguns defendem que não conseguiu suportar a morte do
sábio, mas outros argumentam que o seu suicídio se ficou a dever a
um raciocínio do próprio Platão, que afirma que a plenitude da
sabedoria só nos chegará após a morte. Em todo o caso, Calímaco
deixou cair sibilinamente a sua crítica: talvez os jovens estejam mais
em perigo, depois de tudo, ao ler Platão do que os poetas.
Não sabemos se o episódio de Cleômbroto foi um caso isolado,
ou se talvez o Fédon tenha semeado um regueiro de suicídios
parecido com o que, séculos mais tarde, deixaria A Paixão do
Jovem Werther. Desde a sua publicação em 1774, o atormentado
romance de Goethe levou muitos jovens europeus com desgostos
de amor a darem um tiro a si próprios, imitando o protagonista. O
autor viveu com alarme o fenómeno social — e funerário — no qual,
reedição após reedição, se ia convertendo o seu livro. Sabe-se que
as autoridades de alguns países chegaram a proibi-lo por motivos
de saúde pública.
Goethe tinha-se inspirado no suicídio real de um amigo, e nas
suas próprias fantasias adolescentes de morte. Mais de cinquenta
anos depois, na sua biografia Poesia e Verdade reconhece que só
conseguiu apaziguar esse impulso autodestrutivo fazendo com que
Werther disparasse sobre si próprio no seu lugar. Mas o fantasma
que o escritor conseguiu expulsar com esse exorcismo literário
passou a atormentar os seus leitores, alguns dos quais sucumbiram
à sua macabra influência. Duzentos anos depois, em 1974, o
sociólogo David Phillips criou o termo «efeito Werther» para
descrever o misterioso reflexo de imitação que o comportamento
suicida apresenta. Até uma personagem de ficção pode ser o
agente de contágio, desencadeando casos idênticos. Outro
maravilhoso romance inquietante, As Virgens Suicidas, de Jeffrey
Eugenides, indaga no profundo enigma psicológico das mortes por
imitação.
Seja como for, o caso do leitor do Fédon que saltou de uma
muralha — a versão grega do viaduto — ia inaugurar sem pretendê-
lo um novo filão literário: os relatos sobre livros que causam a morte.
Não é de estranhar que o mais famoso de todos, o Necronomicon,
tenha nome grego. Este volume maldito, cuja leitura provoca a
loucura e o suicídio, é uma invenção de H. P. Lovecraft para o
universo terrorífico dos seus Mitos de Cthulhu. Como é evidente,
nunca chegaremos a conhecer o conteúdo do Necronomicon porque
ninguém sobreviveu para revelá-lo. Diz-se persistentemente por aí
que alberga saberes arcanos e feitiços de bruxaria que permitem
estabelecer contacto com seres alienígenas de poderes malignos,
os Antigos. Expulsos em tempos imemoriais do nosso planeta por
praticarem a magia negra, estes seres jazem em letargia no espaço
à espera de uma oportunidade para se apoderarem do mundo, que
uma vez já foi seu.
Lovecraft divertiu-se a escrever uma minuciosa história do
Necronomicon e as suas traduções com tal luxo de detalhes que
alguns leitores acreditaram cegamente na sua existência, e certos
alfarrabistas vigaristas fingiram que possuíam um exemplar, pondo-
o à venda para incautos. A graça bibliófila começa pelo nome do
próprio autor, um suposto poeta árabe louco chamado Abdul Al
Hazred. Na verdade, trata-se de uma alcunha infantil do próprio
Lovecraft, inspirada nos contos de As Mil e Uma Noites. Al Hazred é
uma piscadela de olho ao inglês all has read, «aquele que leu tudo».
Os relatos dos Mitos de Cthulhu são pródigos em avisos sobre
as consequências funestas de ler o Necronomicon. Avisam-nos de
que na Idade Média, devido à sua influência, deram-se
acontecimentos surpreendentes, e o livro foi condenado pela Igreja
em 1050. Sempre de acordo com a versão de Lovecraft, apesar das
maldições, foi impressa uma tradução para latim do livro sacrílego
na Espanha do século XVII. Subsistiriam quatro exemplares dessa
edição, um no Museu Britânico, outro na Biblioteca Nacional de
Paris, outro em Harvard, e o último na fictícia universidade
americana de Miskatonic, na também fictícia cidade de Arkham. Os
seguidores trocistas de Lovecraft falsificaram fichas do livro para os
catálogos de diversas bibliotecas do mundo, atribuindo a origem da
edição proibida à cidade de Toledo. Onde quer que apareça um
suposto exemplar, faz disparar os pedidos de empréstimo —
aparentemente, a curiosidade tem mais poder do que o medo do
rasto de demência e de morte que o Necronomicon deixa à sua
passagem.
Platão, o árabe louco Al Hazred e Goethe escreveram livros
capazes de arrastarem para a perdição com o feitiço obscuro das
suas palavras. Outra faceta curiosa da morte do leitor são os livros
envenenados. Que eu saiba, o aparecimento mais antigo destes
volumes assassinos dá-se em As Mil e Uma Noites. No final da
quarta noite e durante toda a quinta, Xerazade narra a história do rei
Yunan e do médico Ruyan. Depois de curar a lepra do rei, o médico
Ruyan descobre que o ingrato monarca pretende desfazer-se dele,
por isso maquina um plano para castigá-lo. Oferece-lhe um livro,
«extrato dos extratos, raridade das raridades, que contém
maravilhas inestimáveis». Acontece que as folhas estão
impregnadas de veneno e o rei acaba por morrer: «Yunan
surpreendeu-se até ao limite da surpresa. Cheio de impaciência,
pegou no livro e abriu-o, mas encontrou as folhas coladas. Então, a
meter o seu dedo na boca, molhou-o com saliva e conseguiu
descolar a primeira folha. Teve de fazer o mesmo com a segunda e
a terceira, e cada uma se abria com maior dificuldade. Desse modo
o rei abriu seis folhas e tentou lê-las, mas não pôde encontrar
nenhuma escrita. Apenas alguns instantes depois o veneno circulou
pelo seu organismo, pois o livro estava envenenado.»
Se, depois de vermos o Psico, muitos de nós sentimos um
calafrio quando tomamos banho sozinhos num hotel, este conto de
As Mil e Uma Noites pode provocar arrepios semelhantes aos
leitores habituados a humedecerem a ponta do dedo para passarem
as páginas. Várias vezes nas minhas leituras voltei a tropeçar com o
livro besuntado de veneno, como se começasse a converter-se num
clássico do terror bibliófilo. Lembro-me do belíssimo tratado de
falcoaria com o qual a malvada rainha Catarina de Médici mata por
erro o seu filho Carlos em A Rainha Margot, de Alexandre Dumas, e
o tratado sobre o riso de Aristóteles — do qual já falei —, que
provoca uma colheita vermelha na tétrica abadia de O Nome da
Rosa. Gosto especialmente da cena da revelação do segredo:
quando o detetive franciscano Guilherme de Baskerville resolve o
mistério dos crimes, não consegue evitar um instante de admiração
pelo assassino. Reconhece que o livro é uma arma exemplar e
silenciosa com a qual «a vítima se envenena sozinha, precisamente
na medida que quer ler».
Infelizmente, o último capítulo desta história dos livros homicidas
é totalmente verídico. Penso nos livros-bomba, volumes em cujo
interior se colocam explosivos de grande potência para matarem o
seu destinatário ao abri-lo. A Casa Branca recebe, ano após ano,
centenas de livros com bombas, que as forças de segurança
desativam. Centenas de empregados de correio, jornalistas,
porteiros, secretárias, e homens e mulheres dos mais variados
ofícios morreram por este motivo em todo o mundo. Qualquer um
podia ser vítima deste tipo de ataque. O estudioso Fernando Báez
calcula que dezenas de manuais clandestinos na Internet ensinam a
fabricar livros-bomba. Aparentemente, os terroristas expressam
preferências por certos autores, e abundam as listas de títulos,
categorias e tamanhos. Alguns grupos consideram a Bíblia
inadequada e, pelo contrário, sabe-se lá porquê, acham o Dom
Quixote muito útil. A 27 de dezembro de 2003, Romano Prodi,
presidente da Comissão Europeia, esteve prestes a morrer quando
abriu um exemplar-bomba de O Prazer, de Gabriele D’Annunzio.
Como é evidente, os políticos e altos cargos que não leem estão
mais protegidos.

78

Gostamos de imaginá-los perigosos, assassinos, inquietantes,


mas os livros são, sobretudo, frágeis. Enquanto lê estas linhas, arde
uma biblioteca em algum lugar do mundo. Uma editora destrói agora
mesmo os seus fundos não vendidos para voltar a fabricar polpa de
papel. Não longe de si, uma inundação mergulha na água alguma
coleção valiosa. Várias pessoas desfazem-se de uma biblioteca
herdada num contentor próximo. Está rodeado de um exército de
insetos cujas mandíbulas estão a abrir túneis de papel para
depositarem as suas larvas num universo de pequenos labirintos em
infinitas estantes. Há alguém no mundo a ordenar uma purga de
obras incómodas para o poder. Uma pilhagem destruidora acontece
agora mesmo num território instável. Alguém condena uma obra por
ser imoral ou blasfema e lança-a a uma fogueira.
Há uma longa história de horror e fascínio que relaciona o fogo e
os livros. Galeno escreveu que os incêndios, juntamente com os
terramotos, são as causas mais frequentes da sua destruição. As
chamas que aniquilam palavras explodem às vezes de forma
acidental, mas muitas vezes são intencionais. Queimar livros é um
empenho absurdo que se repete com teimosia ao longo dos
séculos, da Mesopotâmia aos nossos dias. O álibi é estabelecer os
alicerces de uma nova ordem sobre as cinzas da anterior, ou
regenerar e purificar um mundo que os escritores contaminaram.
Quando as autoridades censoras insistiam em fazer arder
exemplares do Ulisses, Joyce comentou irónico que, graças a essas
chamas, sem dúvida teria um purgatório menor. Naqueles mesmos
anos, a barbárie nazi executava a sua operação Bücherverbrennung
(«queima de livros») nas praças públicas de dezenas de cidades
alemãs. Eram transferidos milhares de livros em camiões e
empilhados para a sua destruição. Formavam-se cadeias humanas
para levá-los de mão em mão até à fogueira. Os investigadores
calculam que, durante o bibliocausto nazi arderam as obras de mais
de 5500 autores a quem os novos líderes consideravam
degenerados, um prólogo dos fornos crematórios que chegariam
depois, como Heinrich Heine tinha profetizado em 1821 ao escrever:
«Ali onde queimam os livros, acabarão por queimar pessoas.» Já
agora, a famosa frase pertence a uma peça de teatro intitulada
Almansor, onde a obra queimada era o Corão, e os pirómanos,
inquisidores espanhóis.
Em 2010, quando a comunidade internacional se preparava para
comemorar nove anos de luto pelos atentados de 11 de setembro, o
pastor de uma pequena igreja cristã da Florida anunciou que ia
queimar exemplares do Corão no aniversário dos ataques terroristas
— para sermos mais exatos, entre as seis e as nove da noite, na
faixa horária de máxima audiência televisiva. O rosto de Terry
Jones, um irado ministro religioso com bigode em forma de
ferradura, com o seu ar indeciso entre um magnata oitocentista ou
um membro bronzeado dos Hells Angels, começou a aparecer todos
os dias na imprensa mundial e nos telejornais durante aqueles dias
inflamáveis. Anunciou que queria converter o 11-S no dia
internacional da queima do Corão e chamava a celebrar em família
essa alegre festa bárbara: o Burn a Koran Day. As autoridades não
conseguiam deter o seu chamamento provocador — nenhuma lei
impede pegar fogo a um livro adquirido legalmente em terreno
privado. Para evitar uma explosão de protestos e distúrbios em
países islâmicos, o presidente Barack Obama e o presidente da CIA
tentaram dissuadi-lo em nome da segurança das tropas que
estavam no Afeganistão e no Iraque. O assunto converteu-se numa
emergência internacional. O reverendo Jones cedeu às pressões
num primeiro momento, mas em março de 2011 não conseguiu
suportar o peso da capitulação. Como essa personagem de
Aristófanes que organiza um tribunal em casa para processar o seu
cão por ter comido um queijo, Terry Jones encenou uma pantomima
de julgamento ao Corão. Após oito minutos de deliberação, o
autoproclamado tribunal condenou o livro por crimes contra a
humanidade e mandou queimar um exemplar, mostrando as
imagens ao mundo através do correspondente vídeo do YouTube.
Várias pessoas morreram ou ficaram gravemente feridas no
Afeganistão durante os tumultos que a gravação desencadeou.
O rápido caminho para a fama — e para a infâmia — do
reverendo Jones demonstra que lançar um livro à fogueira, mesmo
se a obra não correr o mínimo risco de desaparecer, é um poderoso
ato simbólico, quase mágico. A nossa sociedade global, sofisticada
e tecnológica, pode ainda cambalear pelo impacto de um gesto de
tão antiga barbárie.
As fogueiras de papiro, pergaminho e papel são o emblema de
um velho naufrágio repetido. A história dos primeiros livros termina
com frequência no fogo. Uma melancólica personagem de Borges
reflete: «De tantos em tantos séculos é preciso queimar a Biblioteca
de Alexandria.» É a breve crónica de um desastre imenso: na capital
do delta ardeu várias vezes, até à sua completa devastação, um
grande sonho da Antiguidade. E aquelas chamas alimentadas pelos
livros semearam escuridão.

As três destruições da Biblioteca de Alexandria

79

Cleópatra foi a última rainha do Egito, e a mais nova. Usou a


coroa das Duas Terras com apenas dezoito anos. Para que uma
mulher governasse o país do Nilo, devia cumprir um insignificante
requisito tradicional: casar com o seu irmão, como Ísis com Osíris.
Sem ficar desanimada por insignificâncias, Cleópatra celebrou o seu
casamento com um dos mais novos da família, Ptolomeu XIII, de
dez anos, a quem julgou dominar. Apesar dos longos anos de
convivência prévia, não foi um casamento duradouro. Os reis
crianças envolveram-se rapidamente em lutas pelo poder. Cleópatra
foi mais malsucedida nas intrigas do que o pequeno faraó e foi
dispensada e expulsa do país sob pena de morte. A jovem exilada
aprendeu uma valiosa lição de convivência familiar. Os seus
parentes eram tão capazes de assassiná-la como qualquer outra
pessoa.
Nesse mesmo ano, Júlio César chegou a Alexandria. Roma já
era uma grande potência que se arrogava o papel de polícia mundial
e mediadora nos conflitos alheios. Cleópatra compreendeu que, se
quisesse voltar a reinar, precisava do apoio de César. Viajou às
escondidas desde a Síria, evitando os espias do seu irmão, que
tinham ordem para matá-la se voltasse a pôr os pés no Egito.
Plutarco conta com graça o cómico episódio do encontro entre a
rainha destituída e César. Ao anoitecer de um quente dia de outubro
de ano 48 a. C., uma embarcação atracou silenciosamente no porto
de Alexandria. Dela saiu, com grandes precauções, um mercador de
tapetes que carregava um fardo comprido. Já no palácio, pediu para
ver César para lhe entregar um presente. Admitido no quarto do
general romano, desenrolou o embrulho. Do interior saiu —
acalorada, pequena e suada — uma rapariga de vinte e um anos
que estava a pôr a vida em jogo no epicentro do perigo por pura
ambição de poder. Plutarco diz que César ficou «fascinado pelo
descaramento da jovem». Era um homem de cinquenta e dois anos
com cicatrizes de mil batalhas. Não foi o desejo o que conduziu
Cleópatra até ele, mas sim o instinto de sobrevivência. Tinha pouco
tempo: se o seu irmão a encontrasse, morreria; se César não
ficasse do seu lado, morreria. Nessa mesma noite, Cleópatra
chegou, viu e seduziu.
Júlio César acomodou-se com grande à-vontade no palácio.
Protegida pelo seu poderoso amante, Cleópatra recuperou o trono.
Manteve o pequeno Ptolomeu ao seu lado, mais como refém do que
como rei. Foram dias de vinho e intrigas em Alexandria. Como o
faraó menino não se resignava a ser uma marioneta, começou a
tramar uma revolta egípcia contra os soldados romanos. Quando a
faísca da insurreição saltou, o hóspede estrangeiro ficou fechado no
palácio real com a sua escassa tropa. Como já disse, o palácio
ptolemaico ocupava um bairro inteiro amuralhado ao pé do mar,
onde se erguiam, entre outros edifícios, o Museu e a sua Biblioteca.
Os sábios da gaiola das musas — habituados a que os deixassem
em paz para investigarem e para se difamarem entre si sem
compaixão — ficaram de repente cercados juntamente com o
general romano numa posição estratégica muito desfavorável.
Aqueles que o cercavam atacavam por terra e por mar, com sede de
destruição. Os olhos alarmados dos estudiosos viram desenhar-se
no ar a curva brilhante dos projéteis incendiários que aterravam, um
atrás de outro, ameaçadores, perto do seu tesouro de livros.
Os homens de César contra-atacaram lançando tochas
impregnadas de pez sobre os barcos preparados para o ataque. O
fogo não demorou a deflagrar nos conveses calafetados com cera e
nos colhedores das naus, que se afundaram hipnoticamente no mar,
envolvidos nas chamas. A devastação estendeu-se ao porto e às
casas próximas. O fogo, empurrado pelo vento, brincava sobre os
telhados com a rapidez de uma estrela cadente. As tropas egípcias
correram para apagar o incêndio. César aproveitou esse momento
para correr para a ilha de Faro e controlar a entrada marítima da
cidade, à espera de reforços. Como sempre, o brilhante general
romano acabou por ganhar o jogo tático. Ptolomeu XIII afogou-se
oportunamente no Nilo, deixando a sua irmã viúva e todo-poderosa.
Plutarco, que escreveu século e meio depois de os
acontecimentos terem tido lugar, garante que o fogo daquele
incêndio provocado pelos sequazes de César saltou desde as naus
para a Grande Biblioteca e deixou-a reduzida a cinzas, um
categórico réquiem pelo sonho alexandrino. Foi assim que acabou
tudo?
Há motivos para duvidar disso. César, no seu Guerra Civil, fala
da queima dos barcos, mas não menciona a destruição da
Biblioteca, nem sequer para se justificar. O seu lugar-tenente Hírcio,
que escreveu uma crónica de A Guerra de Alexandria, também não
diz nada a esse respeito. Pelo contrário, afirma que os grandes
edifícios da cidade eram incombustíveis porque os tinham
construído com mármore e argamassa, sem madeira nos tetos e no
chão. Nenhuma personagem contemporânea chora pela aniquilação
do palácio dos livros. O geógrafo Estrabão, que visitou Alexandria
apenas uns lustros depois da revolta contra César, descreveu
pormenorizadamente o Museu sem fazer referência a qualquer
desastre recente. Outros escritores romanos e gregos (Lucano,
Suetónio, Ateneu) também não falam sobre isso. Porém, o filósofo
Séneca complica o puzzle ao escrever: «Arderam em Alexandria
quarenta mil rolos.»
Como num romance policial, cada nova voz conta uma versão
diferente e fornece pistas contraditórias. O que é que podemos
retirar deste quebra-cabeças desconcertante? Qual é a realidade
desfocada que se oculta por trás dos relatos e dos silêncios? Uma
possível solução do enigma baseia-se num detalhe que dois autores
muito posteriores mencionam de passagem: Dião Cássio e Paulo
Orósio. Ambos dizem que o incêndio provocado por César destruiu
o arsenal, os celeiros e uns armazéns do porto, onde se
encontravam — por acaso — vários milhares de rolos, livros que
podiam ser novas aquisições da Biblioteca que esperavam para
serem transferidos definitivamente para o Museu, ou simplesmente
rolos em banco, propriedade dos mercadores, que se destinavam à
venda pelas rotas comerciais do Mediterrâneo.
Talvez Plutarco tenha interpretado mal as fontes que descreviam
a queima desse depósito de livros — que em grego se chamaria
também bibliothéke — e tenha imaginado uma fogueira apocalíptica
no Museu. Talvez esta primeira destruição da Grande Biblioteca
seja, apesar de tudo, uma lembrança inventada, ou um pesadelo
premonitório, ou um incêndio mítico que, no fundo, simbolizava a
queda de uma cidade, de um império e de uma dinastia que
começou com o sonho de Alexandre e terminou com a derrota de
Cleópatra.

80

As alianças políticas e sexuais de Cleópatra — primeiro, com


César e, mais tarde, com Marco António — pretendiam evitar que a
voracidade romana engolisse o reino do Egito. Só conseguiram
adiar a dentada. Depois do suicídio da rainha no ano 30 a. C., o país
do Nilo foi anexado ao nascente Império Romano. Alexandria deixou
de ser a capital de um território orgulhoso para se converter em
periferia da nova globalização.
Os fundos para financiar a comunidade de sábios, que até então
dependiam dos reis Ptolomeus, passaram a ser da responsabilidade
dos imperadores de Roma. O Museu e a sua Biblioteca superaram a
crise dinástica, mas ficou logo evidente que os melhores tempos já
pertenciam ao passado. Aquele ambicioso centro do conhecimento
e da criação tinha vivido os seus dias gloriosos graças a uma
mistura explosiva de riqueza, vaidade e cálculo imperialista por
parte da estirpe macedónica. Mas o dinheiro e a vaidade dos
imperadores romanos tinham muitos outros chamarizes fora de
Alexandria. Não sabemos se o incêndio cesariano chegou a afetar a
Biblioteca, mas sem dúvida o período de escassez de fundos
imperiais desencadeou o lento afundamento da mesma.
Durante os dois primeiros séculos, a Biblioteca ainda encontrou
protetores generosos, como Adriano, mas o terceiro século teve um
começo obscuro com as insensatas ameaças de Caracala. O
imperador julgava saber — à insignificante distância de sete séculos
— que foi Aristóteles quem envenenou Alexandre, o Grande, e, para
vingar o seu ídolo, planeava pegar fogo ao Museu, por onde ainda
vagueava o espectro do filósofo. A nossa fonte, o historiador Dião
Cássio, não esclarece se Caracala chegou a executar tamanha
crueldade, mas precisa que suprimiu o refeitório gratuito dos sábios
e aboliu muitos dos seus privilégios. Algum tempo depois, devido a
um crime trivial, mandou as suas tropas saquearem Alexandria,
matando milhares de inocentes e — numa versão mediterrânica da
Berlim da Guerra Fria — atravessarem-na com um muro patrulhado
por guardas em intervalos regulares, para que a população de um e
de outro sector não se pudesse visitar livremente.
Durante a segunda metade do século III a crise romana agravou-
se. A situação económica do império foi piorando progressivamente,
e o interesse cultural dos imperadores, aflitos devido a críticos
desafios bélicos e políticos, foi decrescendo. Num mundo em que as
glórias de Alexandria não eram mais do que um clarão afastado, as
ajudas para manter a coleção foram sofrendo cortes sucessivos.
Cada vez havia menos dinheiro para repor os rolos deteriorados,
envelhecidos ou perdidos, e para a aquisição de novidades. A
decadência já era imparável.
O que veio de seguida foi um ciclo caótico de pilhagens e
espoliações. Na época do imperador Galiano, o prefeito do Egito
proclamou-se imperador e interrompeu o fornecimento de víveres a
Roma. Como Galiano não se podia permitir abrir mão dos celeiros
alexandrinos, mandou o seu general Teódoto recuperar a cidade. O
violento ataque deixou Alexandria em mau estado. Pouco tempo
depois, conquistou-a e a rainha árabe Zenóbia de Palmira, que dizia
ser descendente de Cleópatra, perdeu-a. O imperador Aureliano, e
depois Diocleciano, juntaram-se à orgia destruidora de cercos e
revoltas sufocadas a ferro e fogo. O soldado e historiador Amiano
Marcelino escreveu, talvez dando um toque dramático, que no final
do século III o bairro amuralhado onde em tempos se erguera o
Museu tinha sido varrido do mapa.
Não temos nenhuma crónica detalhada daquela desgraça, mas
gosto de pensar que era exatamente isso que Paul Auster tentava
descrever no pós-apocalíptico No País das Últimas Coisas. O
romance relata a viagem de uma mulher, Anna Blume, a uma cidade
sem nome, em plena desintegração, abalada pelas sequelas de um
período de conflitos e purgas. Nesse território opressivo, os nomes
das ruas — Alameda Ptolomeu, Avenida Nero, Terminal Diógenes,
Estrada das Pirâmides — sugerem a cartografia impossível de uma
Alexandria saqueada e fantasmagórica, no naufrágio da sua
memória.
Anna chegou à cidade atrás do rasto do seu único irmão, um
jovem jornalista que desapareceu ali sem explicação. A esperança
do reencontro está condenada ao fracasso num lugar onde todas as
certezas se estão a desvanecer e a catástrofe final parece iminente.
Um dia, durante as suas deambulações, Anna percorre a Alameda
Ptolomeu e vai dar por acaso à assolada Biblioteca Nacional («Era
um edifício magnífico, filas de colunas de estilo italiano e belas
incrustações de mármore, um dos edifícios mais distintos da cidade.
Porém, os seus melhores dias tinham ficado para trás, como
acontecia com tudo o resto. Um teto do segundo andar tinha
desabado, as colunas inclinavam-se e tinham gretas, havia livros e
papéis espalhados por todo o lado»).
Anna instala-se nas águas-furtadas da Biblioteca juntamente
com Sam, um correspondente da imprensa estrangeira que
conheceu o seu irmão e dá vida às suas parcas esperanças de
encontrá-lo. Embora a Grande Biblioteca seja pouco mais do que
uma ruína, serve de refúgio para náufragos de tempos melhores. Aí
vive uma pequena comunidade de sábios perseguidos que, numa
provisória trégua às suas fortes discrepâncias, colabora para
proteger o último caudal de palavras, ideias e livros («Não sei
exatamente quantas pessoas viviam na Biblioteca naquela época,
mas acho que mais de cem, talvez muitas mais. Os residentes eram
todos professores ou escritores, sobreviventes do Movimento de
Purificação que teve lugar durante os distúrbios da década anterior.
Entre as diferentes camarilhas da Biblioteca tinha surgido uma certa
camaradagem, pelo menos até ao ponto de muitos deles estarem
dispostos a reunir-se para falar ou trocar ideias. Todas as manhãs
durante duas horas [chamadas “horas peripatéticas”], se levavam a
cabo colóquios públicos. Diziam que numa época a Biblioteca
Nacional albergava mais de um milhão de volumes; este número já
se tinha reduzido muito quando eu cheguei ali, mas ainda restavam
centenas de milhares, uma assombrosa avalancha de palavras
impressas»).
A desordem e a catástrofe também penetraram na Biblioteca.
Anna observa que o sistema de classificação está totalmente
desorganizado e que é quase impossível localizar um livro nos sete
andares de arquivos. Que um livro esteja perdido no labirinto de
salas bolorentas é o mesmo que se tivesse deixado de existir:
ninguém voltará a encontrá-lo.
De repente, abate-se sobre a cidade uma duríssima vaga de frio
que põe em perigo os refugiados da Biblioteca. À falta de outro tipo
de combustível, decidem queimar livros no aquecedor de ferro.
Anna escreve: «Sei que parece horrível, mas não tínhamos outra
opção; era preciso escolher entre isso ou morrer de frio. O curioso é
que, para ser sincera, eu nunca senti remorsos; acho que até
desfrutava a atirar aqueles livros para as chamas. Talvez tenha
manifestado um rancor oculto; talvez fosse apenas o simples
reconhecimento de que não importava o que acontecesse com os
livros. O mundo ao qual esses livros pertenciam tinha terminado. De
qualquer modo, não valia a pena abrir a maior parte deles. Quando
encontrava algum que parecia aceitável, guardava-o para lê-lo.
Assim, li Heródoto. Mas, no fim, acabava tudo no aquecedor, tudo
se transformava em fumo.»
É assim que imagino os cientistas e eruditos do Museu, a
contemplarem com horror como o seu tesouro de descobertas era
sistematicamente saqueado, ardia e se desmoronava. Num
imperdoável anacronismo, parece-me ver aqueles sensatos
intelectuais, vítimas de um ataque de humor negro e niilista, a
imitarem Bakhtin durante os dias obscuros do cerco nazi a
Leningrado. Conta-se que o escritor russo, fumador compulsivo,
estava fechado num apartamento sob o terror quotidiano dos
bombardeamentos. Tinha reservas de tabaco, mas não podia
arranjar mortalhas. Então, para enrolar os seus cigarros, usou as
páginas de um ensaio ao qual tinha dedicado dez anos de trabalho.
Folha a folha, baforada a baforada, fumou grande parte do
manuscrito na segurança de conservar em lugar seguro em
Moscovo outra cópia que, no fim, no caos da guerra, também se
perderia. Lembro-me de que William Hurt conta o episódio — quase
lendário — no fascinante filme Smoke, cujo guião foi escrito por Paul
Auster. Acho que os bibliotecários alexandrinos teriam apreciado a
desesperançada comicidade desse relato de sobrevivência. Afinal
de contas, os livros que eles custodiavam também se estavam a
converter em ar, em fumo, em sopro, em miragem.

81

A Alexandria do século IV era um lugar turbulento. Os seus


habitantes, conhecidos pela sua cultura e a sua sensualidade,
também se dedicavam a passatempos mais brutais. A cidade tinha
um longo historial de revoltas de rua. Os problemas sociais, as
diferenças religiosas e as lutas de poder eclodiam em forma de rixas
tumultuosas e sangrentas ao ar livre. Podemos imaginar algo
parecido aos bairros atravessados pelas selvagens batalhas
urbanas que Scorsese nos mostrou em Gangs of New York.
Na capital egípcia estavam a materializar-se as convulsões de
uma grande crise imperial romana. Por alguma misteriosa lei de
reincidência, certos territórios recebem constantemente as
descargas de tensões mundiais e de conflitos que ninguém
consegue remediar. A zona do Levante mediterrâneo foi, desde
épocas remotas, um desses para-raios geopolíticos.
Pelas artérias de Alexandria fervilhavam exaltados cabecilhas de
diferentes credos (judeus, pagãos e cristãos — que, por sua vez, se
dividiam em fações em confronto: nicenos, arianos, origenistas,
monofisitas e outros). Os ataques entre eles eram habituais, como a
rivalidade mista de combinatória variável. No entanto, nem tudo era
caos, fúria e barulho. Por baixo da violência confusa estava a nascer
uma enorme mudança histórica. No início do século, o imperador
Constantino legalizou o cristianismo, e, em 391, Teodósio I
promulgou uma série de éditos que proibiram os sacrifícios públicos
pagãos e ordenaram o encerramento dos seus principais centros de
culto. Ao longo dessas décadas vertiginosas, perseguidos e
perseguidores trocaram de papéis. Já nada voltaria a ser igual: o
Estado tinha-se convertido à nova fé e tinha iniciado a demolição do
paganismo.
O Museu e a biblioteca filial do Serapeu foram centros
nevrálgicos das batalhas religiosas. Os dois edifícios eram
santuários, e os seus bibliotecários, sacerdotes. Os intelectuais que
trabalhavam nas duas instituições compunham um thíaso, ou seja,
uma comunidade de culto às musas — as nove deusas que
protegiam a criação humana. A sua jornada laboral era passada
entre estátuas de divindades, altares e outros símbolos litúrgicos do
culto pagão, pois os Ptolomeus tinham mantido a antiga tradição
oriental de custodiar os livros no interior dos templos. A continuidade
das bibliotecas, criadas ao serviço da cultura clássica pagã, não era
fácil sob um regime que a perseguia.
O Serapeu — ou Templo de Zeus Serápis —, que albergava a
biblioteca irmã, era uma das maravilhas arquitetónicas de
Alexandria. Com os seus elegantes pátios com pórticos, com os
seus deuses esculpidos, as suas obras de arte e a sua pompa
antiquada, era um lugar de devoção e encontro para os pagãos que
estavam a perder a batalha histórica. Ali se reuniam como veteranos
de uma guerra esquecida, a resmungar, a alimentar a sua saudade
e a clamar — como se fez em todas as épocas — que qualquer
tempo passado foi melhor.
Em 391, foi tudo pelos ares.
O bispo Teófilo, líder espiritual da comunidade cristã alexandrina,
fez cumprir os éditos do imperador Teodósio I com violência. Grupos
de zelotes cristãos lançaram-se a intimidar os pagãos. O pânico e o
ódio começaram a encher a atmosfera de uma perigosa eletricidade.
Nesses momentos de tensão extrema, um escândalo destabilizou a
situação. Durante as obras de renovação de uma basílica cristã
construída sobre uma capela do deus Mitra, os operários
encontraram diversos objetos dos mistérios pagãos. O patriarca
Teófilo ordenou que esses símbolos secretos do culto fossem
exibidos em procissão pelo centro da cidade. Podemos ter uma
ideia do impacto desse gesto se pensarmos no provocador passeio
de Ariel Sharon pelo Monte do Templo que, há apenas duas
décadas, acendeu o rastilho da Segunda Intifada. Os alexandrinos
pagãos — e, em especial, os professores de Filosofia, de acordo
com as especificações das fontes —, vendo como as suas crenças
eram profanadas e expostas à troça da multidão, atacaram os
cristãos com ferocidade. As ruas tingiram-se de sangue. Receando
as possíveis represálias, os amotinados correram para o Serapeu e
atrincheiraram-se nas dependências do santuário. Como escudo,
tinham capturado reféns cristãos e, já lá dentro, obrigaram-nos a
ajoelhar-se diante dos velhos deuses ilegalizados. Do outro lado das
barricadas, uma multidão armada com machados cercava o templo.
O cerco terminou após uns dias de lento compasso. Quando já
parecia impossível, evitou-se o massacre. Chegou uma carta do
imperador que reconhecia como mártires os cristãos mortos na rixa,
perdoava os pagãos rebeldes e mandava acabar com as imagens
do Serapeu, tal como exigia a nova legislação religiosa. Um
destacamento de soldados romanos e um reforço de aguerridos
monges anacoretas chegados do deserto abriram caminho até ao
interior do santuário, destruíram a famosa estátua de mármore,
marfim e ouro do deus Serápis — que uma turbamulta enfurecida
arrastou, pedaço a pedaço, para o teatro para queimá-lo em público
— e destruíram as instalações. Construiu-se uma igreja sobre os
restos do edifício.
O desmembramento da estátua de Serápis e a pilhagem do
templo abalaram os pagãos do Egito, até aqueles que não eram
particularmente devotos. Tinha acontecido algo mais grave, mais
definitivo do que a profanação de um antigo altar e o ataque a uma
valiosa coleção de livros. Interpretaram-no como uma sentença
coletiva. Compreenderam que todos eles, com o seu politeísmo
hedonista, a sua paixão filosófica e a sua bagagem de clássicos,
tinham sido lançados para a valeta da História.
Ainda comove a voz de um desses exilados no tempo, o
professor e poeta pagão Páladas. Nasceu e morreu em Alexandria
na passagem do século IV para o V. O seu profundo
desenraizamento palpita nos epigramas — cerca de cento e
cinquenta — conservados na Antologia Grega. Contemplou como a
cidade fundada por Alexandre, o Grande, para ser a síntese do
Oriente e do Ocidente fervilhava agitada pelos distúrbios e a
intransigência. Viu as ruínas dos seus deuses vencidos.
Testemunhou a destruição da Biblioteca e o brutal assassinato de
Hipátia — à qual chamou nos seus versos «estrela imaculada da
sabedoria». Soube da irrupção dos hunos e da entrada em Roma
dos bárbaros germanos. Lendo-o nos nossos dias, impressiona-nos
o seu testemunho atualíssimo de outro apocalipse. Perante o
trauma do Serapeu, escreveu o seu desconsolado poema
«espectros»: «Não é verdade, gregos, que na profunda noite,
enquanto tudo se afunda no abismo, só vivemos na aparência,
imaginando que a vida é um mero sonho? Ou por acaso estamos
vivos quando a vida morreu?»
O último hóspede do Museu foi o matemático, astrónomo, e
músico Teão, na segunda metade do século IV. É difícil imaginar o
que restaria naquela altura do velho esplendor da instituição, mas
Teão tentou salvar os resquícios. No meio de batalhas de rua
selvagens e lutas sectárias, dedicou-se a prever eclipses solares e
lunares, e a preparar a edição definitiva de Os Elementos de
Euclides. Educou a sua filha Hipátia — o nome significa «a maior»
— na ciência e na filosofia como se tivesse nascido homem. Ela
colaborou com o pai e, na opinião dos seus contemporâneos,
chegou a superá-lo em brilho intelectual.
Hipátia decidiu dedicar a sua vida ao estudo e ao ensino. Nunca
quis casar, provavelmente por vontade de manter a sua
independência e não tanto por amor à virgindade, como as fontes
fazem supor. Embora as suas obras se tenham perdido — exceto
breves fragmentos — no caos desses séculos turbulentos, sabemos
que escreveu sobre geometria, álgebra e astronomia. Reuniu à sua
volta um grupo muito seleto de alunos que acabariam por ocupar
cargos importantes entre as elites do poder do Egito. Por influência
das suas crenças gnósticas — e dos seus preconceitos
aristocráticos —, não aceitavam no seu círculo pessoas de classe
inferior, incapazes de entender as suas excelsas doutrinas. Tudo
indica que Hipátia foi classista, mas não sectária. Não praticava o
paganismo, simplesmente considerava-o mais um elemento da
paisagem cultural grega que era a sua. Entre os seus discípulos
houve cristãos — dois deles chegaram a bispos, como Sinésio de
Cirene —, pagãos e ateus filosóficos. Hipátia fomentava a amizade
entre todos eles. Mas, infelizmente, começava uma dessas épocas
em que os moderados, os que preferem a reflexão pausada, os
conciliadores — aqueles a quem os exaltados chamam mornos —
são um alvo fácil, longe da proteção das fileiras cerradas.
Até ao seu trágico final, conseguiu viver de acordo com as suas
próprias regras, com uma insólita liberdade. Quando era nova foi
uma mulher extremamente atraente, mas com as ideias muito claras
em relação aos homens. Conta-se que um aluno, loucamente
apaixonado por ela, a pediu em casamento. Hipátia, seguidora de
Platão e Plotino, explicou-lhe que ela só aspirava ao elevado mundo
das ideias, que os prazeres baixos e canalhas da matéria, etc., não
a atraíam. Como o pretendente continuava de joelhos no chão, ela
optou por um insólito — e escatológico — gesto para lhe fechar a
boca. Conhecemos o episódio graças a Damáscio, diretor da escola
neoplatónica de Atenas, que, oscilando entre a repugnância e a
admiração, descreve a cena à sua maneira: «Ela pegou nuns panos
que tinha manchado com a menstruação e disse: “É isto que tu
amas, jovem, e não é belo”. Ele sentiu-se tão envergonhado e
assustado diante da horrível visão, que experimentou uma mudança
no seu coração e converteu-se rapidamente num homem melhor.»
Porque a moral da história é esta: intimidado com o pano higiénico,
o aluno de Hipátia deixou de amar a podridão dos corpos e
perseverou na procura da perfeição da beleza em si, através da
filosofia.
Em todo o caso, Hipátia continuou solteira, sem deixar que a
distraíssem das suas paixões intelectuais. Antiga professora de
muitos dirigentes da cidade, intervinha na vida pública, e as
autoridades municipais alexandrinas respeitavam-na. Toda a gente
sabia que os altos funcionários procuravam os seus conselhos, e a
influência política daquela mulher tão segura de si própria começou
a despertar invejas. Circulavam rumores caluniosos sobre os seus
supostos poderes mágicos. O seu interesse pela astronomia e pela
matemática tinha de ocultar obrigatoriamente um fundo mais
sinistro: bruxaria e rituais satânicos.
Num ambiente cada vez mais contaminado, o prefeito Orestes,
cristão moderado, cortou relações como o bispo Cirilo, sobrinho de
Teófilo. A atmosfera explosiva daquele infeliz ano de 415 está bem
retratada no filme Ágora, embora Hipátia, que na verdade
continuava a dar aulas, tivesse naquela altura cerca de setenta
anos. Tinha estalado uma nova onda de distúrbios em Alexandria,
desta vez entre cristãos e judeus. Produziram-se os habituais
episódios de violência no teatro, nas ruas e às portas de igrejas e de
sinagogas. Cirilo exigiu a expulsão da numerosa colónia judaica da
cidade. Orestes, com o apoio de Hipátia e da intelectualidade pagã,
negou-se a aceitar a ingerência do patriarca. Nos mentideiros corria
o boato de que ela era a verdadeira causa da discórdia entre
Orestes e Cirilo.
Em plena quaresma, uma multidão exacerbada, às ordens de um
tal Pedro, seguidor de Cirilo, sequestrou Hipátia, acusando-a de
bruxa. Ela defendeu-se e gritou enquanto os agressores se
lançavam sobre o seu beliche, mas ninguém se atreveu a ajudá-la.
Os fanáticos puderam arrastá-la sem oposição até à igreja de
Cesário, que noutros tempos tinha sido um templo dos deuses da
antiga religião. Aí, à vista de todos, começaram a atirar-lhe
brutalmente com escombros de cerâmica. Arrancaram-lhe os olhos
das órbitas e a língua. Quando já estava morta, levaram o seu corpo
para fora da cidade, extraíram-lhe os órgãos e os ossos e, por fim,
queimaram os restos numa pira. Foram cruéis com o seu cadáver
tentando aniquilar tudo o que Hipátia representava como mulher,
como pagã e como professora. As fontes não estão de acordo
quanto ao grau de responsabilidade de Cirilo como instigador do
crime. As provas do que hoje chamaríamos autoria intelectual são
sempre muito fugidias, mas as suspeitas recaíram imediatamente
nele. Não se levou a cabo uma verdadeira investigação. Orestes foi
transferido para um novo destino, e os terríveis acontecimentos
ficaram impunes. Poucos anos depois, outra turba assassinou o
sucessor de Orestes como prefeito. Cirilo é considerado hoje santo
pelas Igrejas católica, ortodoxa, copta e luterana.
O linchamento de Hipátia marcou o fim de uma esperança. O
Museu e o seu sonho de reunir todos os livros e todas as ideias
tinham sucumbido no brutal ringue dos distúrbios alexandrinos.
Desde então, a Grande Biblioteca deixa de ser referida, como se a
sua grande coleção tivesse desaparecido para sempre.
Não sabemos o que foi dos restos do naufrágio durante esses
séculos de silêncio. As bibliotecas, as escolas e os museus são
instituições frágeis, que não conseguem sobreviver muito tempo
rodeadas por um meio de violência. Na minha imaginação, a antiga
Alexandria tinge-se da tristeza de tantas pessoas calmas, cultas,
pacíficas que se sentiram apátridas na sua própria cidade, perante o
horror, já sem pontos de apoio, dos anos de fanatismo. Páladas,
aquele velho professor de letras, escreveu: «Passei a vida toda a
conversar com os defuntos na paz dos livros. Tentei propagar a
admiração de uma época desdenhosa. Do início ao fim fui apenas o
cônsul dos mortos.»

82

Quando já não esperávamos mais notícias, a Biblioteca


reaparece pela última vez em duas crónicas árabes. O ponto de
vista do relato já não é pagão nem cristão, mas sim muçulmano, e
obriga-nos a saltar no tempo, até ao vigésimo ano da Hégira, ou
seja, o ano 642 da era cristã. «Conquistei Alexandria, a grande
cidade do Ocidente, à força e sem tratado», escreve o comandante
Amr ibn Al-As numa carta ao segundo sucessor de Maomé, o califa
Omar I. Após a feliz notícia, Amr faz um inventário das riquezas e
belezas da cidade: «Dispõe de quatro mil palácios, e quatro mil
banhos públicos, de quatrocentos teatros ou locais de diversão, de
doze mil frutarias e de quarenta mil cobradores hebraicos.»
O cronista e pensador Ali ibn al-Kifti e o douto Abd-al-Lafit
afirmam que, uns dias mais tarde, um velhíssimo erudito cristão
pediu autorização ao comandante muçulmano para usar os livros da
Grande Biblioteca, confiscados desde a invasão. Amr ouviu com
curiosidade as histórias do idoso sobre o antigo esplendor do Museu
e a sua coleção arrasada pelo tempo, mas, ainda assim valiosa.
Amr, que não era um guerreiro inculto, entendia a importância
daquele tesouro empoeirado e cheio de traças, mas não se atreveu
a dispor dele livremente, pois preferiu enviar outra missiva para
pedir instruções a Omar.
Antes de continuarmos em frente, temos de fazer uma
advertência. É verdade que Amr conquistou Alexandria em 642 e o
contexto geral dos factos também parece verídico. Mas muitos
especialistas acreditam que Ali ibn al-Kifti e Abd-al-Latif inventaram
a história do trágico final da Grande Biblioteca. Os dois escreveram
vários séculos depois de os acontecimentos terem lugar e,
aparentemente, tinham interesse em desacreditar a dinastia do
califa Omar, face ao culto sultão saladino. Talvez qualquer
semelhança entre este relato e a realidade seja pura coincidência,
ou talvez não.
Uma carta precisava, em média, de doze dias de navegação e
de outro trajeto equivalente por terra até chegar à Mesopotâmia.
Durante um mês, Amr e o idoso esperaram a resposta do califa.
Entretanto, o comandante pediu para visitar o lascado edifício da
Biblioteca. Guiaram-no por uma rede de pequenas ruelas e
caminhos sujos até um palácio em avançado estado de abandono,
vigiado por um grupo de soldados. Lá dentro, os passos faziam eco
e era quase possível ouvir o sussurro de todas aquelas palavras
adormecidas. Os manuscritos descansam nas estantes como
grandes crisálidas dentro dos seus botões de pó e teias e aranha.
«Convém — diz o idoso — que os livros permaneçam conservados
e custodiados pelos soberanos e pelos seus sucessores até ao fim
dos tempos.»
Amr ficou viciado na conversa do velho e costumava visitá-lo
todos os dias. Ouviu dos seus lábios, como se fosse um conto de As
Mil e uma Noites, a incrível história do rei grego que quis reunir no
seu palácio um exemplar de todos os livros do mundo e as
pesquisas do seu diligente servo Zamira — era assim que Ibn al-Kifti
chamava a Demétrio de Faleros — pela Índia, Pérsia, Babilónia,
Arménia e outros lugares.
Por fim, o enviado de Omar chegou a Alexandria com a resposta
do califa. Amr leu a mensagem com o coração apertado. «No que se
refere aos livros da Biblioteca, aqui está a minha resposta: se o seu
conteúdo coincidir com o Corão, são supérfluos; caso contrário, são
sacrílegos. Destrua-os.»
Desiludido, Amr obedeceu. Distribuiu os livros entre os quatro mil
banhos públicos de Alexandria, onde os utilizaram como
combustível nos aquecedores. Conta-se que foram precisos seis
meses para queimar aquele tesouro de imaginação e sabedoria. Só
foram perdoados os livros de Aristóteles. Entre o vapor daqueles
banhos, a última utopia do seu discípulo Alexandre ardeu a crepitar
até ao silêncio das cinzas sem voz.

83

Após doze anos de obras e 120 milhões de dólares, em outubro


de 2002 foi inaugurada, com pompa e circunstância, a nova
Biblioteca de Alexandria. No mesmo enclave onde um dia esteve a
sua antepassada. O edifício representa o astro do saber a iluminar o
mundo; alberga uma imensa sala de leitura articulada em sete
andares com um único teto formado por milhares de painéis de
cores que regulam a luz solar durante o dia. O presidente do Egito e
cerca de três mil dignatários de todo o mundo assistiram à cerimónia
de inauguração. Os discursos proclamaram, com uma ênfase
oportuna, que era um momento de orgulho para a população
egípcia; que o antigo espaço de diálogo, entendimento e
racionalidade renascia; que dali se daria asas ao espírito crítico. E
certificou-se a ressurreição das glórias passadas. Mas os fantasmas
da intransigência, obstinados, também apareceram. O repórter da
BBC que cobriu as celebrações procurou entre as recém-estreadas
prateleiras os livros do escritor egípcio Naguib Mahfouz, proibido
pelas autoridades religiosas do país. Não encontrou nenhum. Um
alto responsável, questionado sobre a sua ausência, respondeu:
«Os livros difíceis ir-se-ão adquirindo lentamente.» O sonho louco
daquele jovem macedónio continua a sua interminável batalha
contra os velhos preconceitos.

Barcos salva-vidas e borboletas negras

84

As três destruições da Biblioteca de Alexandria podem parecer


confortavelmente antigas, mas, infelizmente, a aversão aos livros é
uma tradição firmemente enraizada na nossa História. A devastação
nunca deixa de ser uma tendência. Como dizia uma vinheta de El
Roto: «As civilizações envelhecem; as barbáries renovam-se.»
Na verdade, o século XX foi um século de aterrorizante
biblioclastia (as bibliotecas bombardeadas nas duas guerras
mundiais, as fogueiras nazis, os regimes censores, a Revolução
Cultural chinesa, as purgas soviéticas, a Caça às Bruxas, as
ditaduras na Europa e na América Latina, as livrarias queimadas ou
atacadas com bombas, os totalitarismos, o apartheid, a vontade
messiânica de certos líderes, os fundamentalismos, os talibãs ou a
fátua contra Salman Rushdie, entre outras subsecções da
catástrofe). E o século XXI começou com a pilhagem consentida
pelas tropas americanas, a museus e bibliotecas do Iraque, onde a
escrita caligrafou o mundo pela primeira vez.
Trabalho neste capítulo durante os últimos dias de agosto,
justamente vinte e cinco anos depois do selvagem ataque à
Biblioteca de Sarajevo. Naquela altura, eu era uma criança e, na
minha memória, aquela guerra significou a descoberta do mundo lá
fora, maior — e também mais obscuro — do que tinha imaginado.
Lembro-me de que naquele verão comecei a interessar-me por
esses livros estaladiços dos mais velhos que antes não me
interessavam. Sim, foi então que li os meus primeiros jornais,
segurando-os diante da minha cara com os braços abertos, como os
espias dos desenhos animados. As primeiras notícias, as primeiras
fotografias que me impressionaram foram as daqueles massacres
do verão de 1992. Ao mesmo tempo, em Espanha vivíamos a
euforia e os faustos dos Jogos Olímpicos de Barcelona, da
Exposição Universal de Sevilha e o triunfalismo repentino de um
país apressadamente moderno e rico. Resta pouco daquele sonho
hipnótico, mas a paisagem de uma Sarajevo cinzenta e
bombardeada permanece na minha retina. Lembro-me de que numa
manhã, na escola, a nossa professora de ética fez-nos fechar os
cadernos — éramos só três ou quatro meninos — e,
surpreendentemente, propôs-nos falar sobre a guerra da antiga
Jugoslávia. Esqueci-me do que dissemos, mas sentimo-nos mais
velhos, importantes e apenas a um passo de nos convertermos em
qualificados especialistas internacionais. Lembro-me de que um dia
abri um atlas e viajei com a ponta do dedo indicador de Saragoça a
Sarajevo. Pensei que os nomes das duas cidades partilhavam a
mesma melodia. Lembro-me das imagens da sua Biblioteca ferida
pelas bombas incendiárias. A fotografia de Gervasio Sánchez — na
qual um raio de sol atravessa o átrio destroçado, acariciando os
escombros amontoados e as colunas mutiladas — é o ícone
daquele agosto quebrado.
O escritor bósnio Ivan Lovrenović contou que, na longa noite de
verão, Sarajevo brilhou com o fogo que brotava de Vijećnica, o
imponente edifício da Biblioteca Nacional ao pé do rio Miljacka.
Primeiro, vinte e cinco obuses incendiários atingiram o telhado,
apesar de as instalações estarem marcadas com bandeiras azuis
para indicarem a sua condição de património cultural. Quando o
resplendor — diz Ivan — alcançou proporções neronianas, começou
um constante bombardeamento maníaco para impedir o acesso à
Vijećnica. Desde as colinas que contemplavam a cidade, os
atiradores furtivos disparavam contra os habitantes de Sarajevo,
magros e esgotados, que saíam dos seus refúgios para tentarem
salvar os livros. A intensidade dos ataques não permitiu os
bombeiros aproximarem-se. Por fim, as colunas mouriscas do
edifício cederam, e as janelas explodiram para deixarem sair as
chamas. Ao amanhecer, tinham ardido centenas de milhares de
volumes — livros raros, documentos da cidade, coleções inteiras de
publicações, manuscritos e edições únicas. «Aqui não resta nada»,
disse Vkekoslav, um bibliotecário. «Eu vi uma coluna de fumo, e os
papéis a voarem por todo o lado, e queria chorar, gritar, mas fiquei
ajoelhado com as mãos na cabeça. Toda a minha vida suportarei
este fardo de recordar como queimaram a Biblioteca Nacional de
Sarajevo.»
Arturo Pérez-Reverte, então correspondente de guerra,
contemplou o fogo de artilharia e o incêndio. Na manhã seguinte
pôde ver, no chão da devastada biblioteca, os escombros das
paredes e das escadas, os restos de manuscritos que ninguém
voltaria a ler, obras de arte desmembradas: «Quando um livro arde,
quando um livro é destruído, quando um livro morre há algo em nós
próprios que se mutila irremediavelmente. Quando um livro arde,
morrem todas as vidas que o tornaram possível. Todas as vidas
contidas nele e todas as vidas às quais esse livro teria podido dar,
no futuro, calor e conhecimentos, inteligência, desfrute e esperança.
Destruir um livro é, literalmente, assassinar a alma do homem.»
Os borralhos arderam durante dias, fumegantes, a pairarem
sobre a cidade como uma nevada obscura. «Borboletas negras»,
chamaram os habitantes de Sarajevo a essas cinzas dos livros
destruídos que caíam sobre os transeuntes, sobre os solares
bombardeados, sobre os passeios, sobre os edifícios
semidestruídos, e no fim desfizeram-se e misturaram-se com os
fantasmas dos mortos.
Coincidência curiosa: o comandante dos bombeiros incendiários
que conhecemos em Fahrenheit 451 utilizava a mesma metáfora.
Com um livro nas mãos, ditava as suas poéticas instruções para
destruí-lo: «Queima a primeira página; depois, a segunda. Cada
uma se converte numa borboleta negra. É bonito, não é?» No
sombrio futuro descrito no romance de Bradbury é terminantemente
proibido ler, e todos os livros são denunciados e destruídos. Aí as
brigadas de bombeiros, em vez de apagarem incêndios, provocam-
nos e deflagram-nos para queimarem as casas que escondem
esses perigosos objetos clandestinos. Só há um livro legal: o
regulamento das próprias brigadas responsáveis por pegarem fogo
a tudo o resto. E, nesse único texto permitido, lê-se que o corpo foi
criado em 1790 para queimar livros ingleses nos Estados Unidos, e
que o primeiro bombeiro foi Benjamin Franklin. Não sobrevive
nenhum escrito para rebater essas informações, e já ninguém as
põe em causa. Quando os documentos se eliminam e os livros não
circulam livremente, é muito fácil modificar, à nossa vontade,
impunemente, o relato da História.
No caso da antiga Jugoslávia, arrasar o passado era uma
finalidade do ódio étnico. Desde 1992 até ao fim da guerra, 188
bibliotecas e arquivos sofreram ataques. Um melancólico relatório
da Comissão de Especialistas das Nações Unidas estabeleceu que
na ex-Jugoslávia houve uma «destruição intencional de bens
culturais que não se pode justificar por necessidade militar». Juan
Goytisolo, que viajou à capital bósnia respondendo ao chamamento
de Susan Sontag, escreveu no seu Caderno de Sarajevo: «Quando
a Biblioteca ardeu, fruto do ódio estéril dos grosseiros lançadores de
mísseis foi pior do que a morte. A raiva e a dor daqueles instantes
perseguir-me-ão até ao túmulo. O objetivo dos sitiadores — varrer a
substância histórica desta terra para montar sobre ela um templo de
patranhas, lendas e mitos — feriu-nos profundamente.»
Pode construir-se uma versão interesseira dos factos sobre as
cinzas dos textos que arderam. Sem dúvida, os livros queimados ou
destruídos por obuses também albergavam as suas próprias
interpretações enviesadas. As obras que fazem parte das coleções
bibliotecárias e repousam nas estantes das livrarias são, por sua
vez, parciais, em algumas ocasiões até propagandísticas — lembro-
me do episódio de um livreiro londrino que, durante os meses dos
bombardeamentos nazis, tapou o telhado do estabelecimento com
os exemplares do Mein Kampf que tinha à venda na loja. Mas é a
multiplicidade de vozes que falam, matizam e se contradizem desde
um número incalculável de páginas que permite confiar em que não
restaram pontos cegos e haverá a possibilidade de detetar as
manipulações. Quem aniquila bibliotecas e arquivos defende um
futuro menos díspar, menos discrepante, menos irónico.
Embora a Biblioteca de Alexandria tenha ardido várias vezes até
à sua completa aniquilação, nem tudo nela foi naufrágio. Séculos de
esforços para salvarem a herança da imaginação não foram em vão.
Muitos dos exemplares que sobreviveram até hoje mantêm marcas
textuais e símbolos que os filólogos alexandrinos costumavam usar
nas suas edições. E isso significa que, num acidentado trajeto,
chegaram às nossas mãos cópias de cópias de cópias cujo primeiro
elo tem origem na Biblioteca perdida. Durante centenas e centenas
de anos, as cuidadas edições de livros disponíveis em Alexandria
copiaram-se e espalharam-se por uma rede de bibliotecas mais
humildes e de coleções privadas, alimentando uma geografia
crescente de leitores. Multiplicar o número de exemplares era a
única — remota — possibilidade de salvaguardar as obras. Se
alguma coisa sobreviveu às devastações foi graças a essa lenta,
suave, fértil irrigação de literatura manuscrita que se propagava com
enorme trabalho e chegava a lugares escondidos, retirados,
seguros; lugares modestos que nunca seriam campos de batalha.
As obras que ainda lemos permaneceram nesses recantos —
refúgios periféricos, marginais — durante os séculos perigosos,
resistindo à devastação, enquanto as destruições, as pilhagens e os
incêndios iam arruinando as grandes concentrações de livros,
localizadas habitualmente em centros de poder.
Durante a antiguidade greco-romana, nasceu na Europa uma
comunidade permanente, uma chama que, embora se encolha,
nunca se apaga totalmente, uma minoria até agora inextinguível.
Desde então, ao longo do tempo, leitores anónimos conseguiram
proteger, por paixão, um frágil legado de palavras. Alexandria foi o
lugar onde aprendemos a preservar os livros ao abrigo das traças,
do óxido, do mofo e dos bárbaros com fósforos.

85

Nos suplementos literários de verão insistem em perguntar a


ilustres literatos que livro levariam para uma ilha deserta. Não sei
quem é que se lembrou pela primeira vez de incluir a famosa ilha na
pergunta e através de que estranho mimetismo ficou aí incorporada,
exótica e incongruente. Devemos a melhor resposta a G. K.
Chesterton: «Nada me faria mais feliz do que um livro intitulado
Manual para a Construção de Lanchas.» Tal como Chesterton, eu
também gostava de fugir de um sítio assim. Não me interessa uma
ilha deserta onde falte — como é evidente — uma livraria com a
Odisseia, o Robinson Crusoe, o Relato de um Náufrago, e o Oceano
Mar.
O mais curioso é que se pode seguir o rasto salvador dos livros
em quase qualquer lugar do mundo, até nos mais sinistros. Como
explica Jesús Marchamalo no seu fantástico Tocar los libros, o poeta
Joseph Brodsky, prisioneiro na Sibéria por um crime de «parasitismo
social», encontrou consolo na leitura de Auden; e Reinaldo Arenas,
encerrado nas prisões castristas, na Eneida. Sabemos também que
Leonora Carrington, internada num hospital psiquiátrico de
Santander durante o imediato pós-guerra, suportou a sórdida
situação lendo Unamuno.
Nos campos de concentração nazi também havia bibliotecas.
Alimentavam-se dos livros confiscados aos prisioneiros à sua
chegada. Com o dinheiro usurpado aos próprios presos pagavam-se
as novas aquisições. Embora as SS investissem grande parte dos
fundos em tratados propagandísticos, não faltavam romances
populares nem os grandes clássicos, junto a dicionários, ensaios
filosóficos e textos científicos, até havia volumes proibidos cujas
encadernações tinham sido camufladas pelos prisioneiros
bibliotecários. A aventura destas bibliotecas começou em 1933, e
sabemos que no outono de 1939 havia seis mil títulos só em
Buchenwald; em Dachau chegou a haver treze mil. As SS usavam-
nas como meros adereços para demonstrar aos visitantes que
naqueles humanitários acampamentos de trabalho nem sequer se
negligenciavam os interesses intelectuais dos prisioneiros. Parece
que durante os primeiros tempos, os reclusos puderam dispor dos
seus próprios livros, mas suprimiram-lhes logo esse privilégio.
Os livros das bibliotecas — próximos mas inacessíveis —
trouxeram algum alívio aos reclusos? E, o que é ainda mais
importante: será que a cultura pode ser um barco salva-vidas para
alguém submetido aos maus-tratos, à fome e à morte?
Temos um testemunho categórico e visceral, Goethe em Dachau.
O seu autor, Nico Rost, foi um tradutor holandês de literatura alemã.
Durante a guerra, inclusivamente depois da invasão do seu país,
contribuiu para a publicação de autores alemães incómodos para os
nazis. Para além disso, era comunista — duplo desafio. Detido em
maio de 1943 e enviado para Dachau, foi internado como paciente
na enfermaria, onde acabaria por desempenhar tarefas
administrativas. Aí evitava as extenuantes jornadas de trabalho ao
ar livre ou como mão de obra escrava nas fábricas de armamento.
Mas permanecer na enfermaria era uma bênção perigosa. Se
reparassem nele, inválido e parasitário, era fácil que o destinassem
aos comboios rumo ao extermínio.
No meio da angústia, sem qualquer informação sobre os
avanços dos Aliados, dizimados por uma epidemia letal de tifo e
com doses reduzidas de alimentos — Nico conta que um colega
emagreceu tanto que até a dentadura postiça lhe ficava grande —,
os presos estavam cada vez mais convencidos de que não
conseguiriam sobreviver. Nessas circunstâncias, Rost tomou várias
decisões perigosas. A primeira, escrever um diário, conseguindo
papel com enormes dificuldades, escondendo-se para escrevinhar
umas linhas todos os dias e guardando as suas notas num
esconderijo. O mais curioso é que esse diário, publicado após a
libertação do campo, não contém o relato das suas penúrias, mas
sim uma crónica dos seus pensamentos. Escreve: «Quem fala da
fome acaba por ter fome. E os que falam da morte são os primeiros
a morrer. Vitamina L (literatura) e F (futuro) parecem-me as
melhores provisões.» Escreve: «Vamos ficar todos contagiados e,
devido à desnutrição, morreremos todos. A ler ainda mais.»
Escreve: «No fundo, é verdade: a literatura clássica pode ajudar a
dar forças.» Cita: «Viver entre os mortos com Tucídides, Tácito e
Plutarco em Maratona ou Salamina é, afinal de contas, o mais
honroso, quando uma pessoa não se permite outra atividade.»
A segunda decisão arriscada de Nico foi organizar um clube de
leitura clandestina. Um preso supervisor amigo e alguns médicos
aceitam pedir livros emprestados da biblioteca para os membros do
grupo. Quando não é possível conseguir textos, eles próprios se
lembram de cor de frases de antigas leituras e comentam-nas. Dão
breves conferências sobre a sua literatura nacional — pertencem a
um mosaico de países europeus. Reúnem-se de pé entre as camas,
disfarçando, assustados, sempre com um vigilante para os avisar
quando um alemão se aproxima. Uma vez, o preso supervisor que
costumava fazer vista grossa zangou-se e dissolveu o grupo entre
insultos: «Calem a boca! Já chega de conversa de chacha! Em
Mauthausen vocês seriam fuzilados por isto. Aqui não há disciplina.
Parece uma creche!»
Dois membros do clube estavam a escrever livros na sua mente:
uma monografia sobre direito de patentes e uma história infantil para
as crianças que crescerão entre as ruínas. Falam de Goethe, de
Rilke, de Stendhal, de Homero, de Vergílio, de Lichtenberg, de
Nietzsche, de Teresa de Ávila, enquanto os bombardeiam e o
barracão treme, enquanto a epidemia de tifo se espalha e alguns
médicos deixam morrer os pacientes para caírem nas graças dos
SS.
A morte muda constantemente a composição do clube. Nico, que
une e sustenta o grupo, esforça-se por sondar e captar os novos
doentes que vão chegando. Os seus amigos chamam-lhe «o
holandês louco que engole papel». Esse diário escrito às
escondidas é um gesto de rebelião através da escrita e da leitura,
que lhe eram proibidas. Enquanto os cadáveres se acumulam, ele
obstina-se em exercer o seu direito de pensar. A 4 de março de
1945, apenas um mês antes de ser libertado — mas sem saber que
a salvação está próxima —, sente-se na fronteira entre a vida e a
morte. Escreve: «Nego-me a falar de tifo, de piolhos, de fome e de
frio.» Sabe e sofre a existência de todos esses tormentos, mas
pensa que os nazis os conceberam para desesperar e animalizar os
presos. Rost não quer centrar a sua atenção na engrenagem do
matadouro; agarra-se à literatura com urgência, sem ceticismo, à
procura de um salva-vidas. Há algo de paradoxal neste comunista
que prega o materialismo mais radical enquanto sobrevive às
condições extremas graças à fé numa ideia.
As pessoas com as quais partilha conversas e leituras são
dissidentes de diversos países (russos, alemães, belgas, franceses,
espanhóis, holandeses, polacos, húngaros). Na entrada de 12 de
julho de 1944, afirma: «Formamos uma espécie de comunidade
europeia — embora seja por obrigação — e poderíamos aprender
muito com a relação com outras nações.» Gosto de pensar que, na
verdade, face ao que os prudentes manuais de história contam, a
União Europeia nasceu num perigoso clube de leitura por trás do
arame farpado de um Lager nazi.
Mais além do fim da Europa — onde quer que esteja a fronteira
imaginária do continente —, no gulag soviético, outras vozes
descobriam naqueles mesmos anos o sentido da cultura quando a
morte está à espreita. Galia Safónovna nasceu nos barracões de um
campo siberiano durante os anos quarenta do século passado.
Passou a sua infância presa entre uivos de vento, ao pé de umas
minas com uma fama assustadora, no país das neves perpétuas. A
mãe, uma prestigiada epidemiologista, foi condenada a trabalhos
forçados por se ter recusado a denunciar um colega de laboratório.
Naquela prisão gelada, onde era proibido escrever mais de duas
cartas por ano e onde escasseavam o papel e os lápis, as
prisioneiras fabricaram às escondidas histórias artesanais para a
menina que só conhecia o gulag, cosidas à mão, com desenhos
trémulos traçados na escuridão e o texto gatafunhado com um
aparo. «Que feliz me fez cada um desses livros!», explicava uma
idosa Galia à escritora Monika Zgustova. «Quando era pequena,
esses foram os meus únicos pontos de referência culturais. Guardei-
os durante toda a minha vida; são o meu tesouro!» Elena Korybut,
que cumpriu uma pena durante mais de dez anos nas minas de
Vorkuta, na tundra que fica muito para além do círculo polar,
mostrou a Zgustova um livro de Pushkin decorado com gravuras
antigas. «No campo, este volume de origem desconhecida passou
por centenas, talvez milhares de mãos. Ninguém consegue imaginar
o que um livro significava para os presos: era a salvação! Era a
beleza, a liberdade e a civilização no meio da barbárie!» Em
Vestidas para uma Dança na Neve, o seu fascinante livro de
entrevistas a mulheres que sobreviveram ao gulag, Monika
Zgustova mostra até que ponto, inclusivamente nos abismos da
vida, somos seres sedentos de histórias. Por isso levamos livros
connosco — ou dentro de nós — para todo o lado; para os territórios
do horror também, como eficazes estojos de primeiros socorros
contra a desesperança.
Nico, Galia e Elena não foram os únicos. Na câmara de
desinfeção de Auschwitz arrebataram a Viktor Frankl um manuscrito
que continha as investigações de toda a sua carreira, e o desejo de
reescrevê-lo atou-o à vida. O filósofo Paul Ricoeur, detido pelo
regime de Vichy, dedicou-se a dar aulas e a organizar a biblioteca
do centro de prisioneiros. A única posse do jovem Michel del Castillo
em Auschwitz foi — simbolicamente — o Ressurreição, de Tolstói.
Mais à frente, afirmou: «A literatura constitui a minha única biografia
e a minha única verdade.» Eulalio Ferrer, filho de um dirigente
socialista cântabro, tinha apenas dezoito anos quando foi levado
para um campo de prisioneiros em França. Um miliciano propôs-lhe
trocar um livro por cigarros. Era o Dom Quixote, que releu durante
meses, «estimulado por uma leitura que se repetia e que me
acompanhava em horas de alento próprio e de delírio alheio». Todos
eles foram como Xerazades, salvaram-se graças ao poder da
imaginação e à fé nas palavras. O próprio Frankl escrevia depois
que, paradoxalmente, muitos intelectuais suportavam melhor a vida
em Auschwitz, apesar de terem uma pior condição física, do que
outros presos mais robustos. Afinal de contas — diz o psiquiatra de
origem judaica —, quem era capaz de se isolar do terrível meio à
sua volta, refugiando-se no seu interior, sofria menos.
Os livros ajudam-nos a sobreviver nas grandes catástrofes
históricas e nas pequenas tragédias da nossa vida. Como escreveu
Cheever, outro explorador do subsolo obscuro: «Não possuímos
mais consciência do que a literatura… A literatura foi a salvação dos
condenados, inspirou e guiou os amantes, venceu o desespero, e
talvez neste caso possa salvar o mundo.»

86

O pior foi o silêncio. Naquela altura, não havia uma palavra para
nomeá-lo. Podíamos dizer: riem-se de mim na aula. Ou de forma
mais dramática: na escola batem-me. Mas isso só arranhava a
superfície da realidade. Não precisávamos de raios-X nos olhos
para vermos formar-se na mente dos adultos um diagnóstico
instantâneo: coisas de crianças.
Era a revelação precoce de um mecanismo tribal, primitivo,
predador. Tinham-me retirado a proteção do grupo. Havia uma cerca
de arame imaginária e eu estava lá fora. Se alguém me insultasse
ou me puxasse a cadeira aos empurrões, os outros não lhe davam
importância. A agressão chegou a adquirir um ar rotineiro, habitual,
pouco chamativo. Não quero dizer que acontecesse todos os dias.
Às vezes, sem saber porquê, declaravam-se estranhos períodos de
calma, o ferrolho da caixa dos trovões permanecia fechado durante
semanas, a trajetória das bolas no recreio deixava de apontar para
mim. Até que, de repente, a professora repreendia na aula algum
dos meus perseguidores, e ao sair, entre a algazarra de crianças
impacientes por brincarem, nos corredores pintados de azul,
devolviam-me a humilhação: marrona, filha da puta, estás a olhar
para onde, queres levar. E começava tudo de novo.
Os perseguidores distribuíam os papéis: um era o líder, e outros
os seus fiéis sequazes. Inventavam alcunhas para mim; faziam
imitações grotescas do meu aparelho de dentes; lançavam-me
essas bolas cujo golpe seco, cujo atordoamento ainda parece que
sinto; partiram-me o dedo mindinho na aula de ginástica;
desfrutavam com o meu medo. Acho que os outros nem sequer se
lembram disso. Talvez, esgaravatando na sua memória, diriam,
bem, pregámos-lhe algumas partidas pesadas. Colaboravam
precisamente assim, com a sua indiferença.
Durante o período mais cruel, entre os meus oito e doze anos,
houve outras marginalizadas; não fui a única. Uma repetente, uma
emigrante chinesa que mal falava a nossa língua, uma rapariga
exuberante com a puberdade adiantada. Éramos os exemplares
débeis da manada, que o predador observa e isola de longe.
Muita gente idealiza a sua infância, converte-a no território
sobrevalorizado da inocência perdida. Eu não tenho qualquer
recordação desta suposta inocência dos outros meninos. A minha
infância é uma estranha confusão de avidez e medo, de fraqueza e
resistência, de dias tenebrosos e de alegrias eufóricas. Estão aí as
brincadeiras, a curiosidade, as primeiras amigas, o amor medular
dos meus pais. E a humilhação quotidiana. Não sei como é que
essas duas partes fraturadas da minha experiência encaixam uma
na outra. A memória arquivou-as separadamente.
Mas o pior, insisto, foi o silêncio. Aceitei o código vigente entre as
crianças, aceitei a mordaça. Toda a gente sabe, desde os quatro
anos, desde sempre, que fazer queixinhas está muito mal. O
queixinhas é um cagarolas, um mau colega, merece levar porrada.
O que acontece no recreio fica no recreio. Não se conta nada aos
adultos — ou, pelo menos, só o mínimo imprescindível para que não
se lembrem de intervir. Era eu que fazia os arranhões sozinha.
Perdia as coisas que, na verdade, me tinham roubado e apareciam
a flutuar na água amarelada do fundo da sanita. Interiorizei que o
único laivo de dignidade ao meu alcance consistia em resistir, em
calar-me, em não chorar à frente dos outros, em não pedir ajuda.
Não sou um caso isolado. A violência entre as crianças, entre os
adolescentes, desenvolve-se protegida por uma barreira de silêncio
duvidoso. Durante anos reconfortou-me não ter sido a queixinhas da
turma, a delatora, a cobarde. Não ter caído tão baixo. Por
autoestima mal interpretada, por vergonha, obedeci à norma: certas
coisas não se contam. Querer ser escritora foi uma rebelião tardia
contra essa lei. Essas coisas que não se contam são precisamente
aquelas que temos obrigação de contar. Decidi converter-me nessa
queixinhas que tanto receei ser. A raiz da escrita é muitas vezes
sombria. Esta é a minha obscuridade. Ela alimenta este livro, talvez
tudo o que escrevo.
Durante os anos humilhantes, para além da minha família,
ajudaram-me quatro pessoas que nunca vi: Robert Louis, Michael,
Jack, Joseph. Mais à frente descobriria que são mais conhecidos
pelos seus apelidos: Stevenson, Ende, London e Conrad. Graças a
eles aprendi que o meu mundo é apenas um dos muitos mundos
simultâneos que existem, incluindo os imaginários. Graças a eles
descobri que podia armazenar fantasias acolhedoras e guardá-las
no meu quarto interior para procurar aí um refúgio quando lá fora
caísse granizo. Essa relação mudou a minha vida.
Remexo entre os meus velhos papéis em busca de um conto
intitulado «As tribos selvagens», que escrevi nos meus primeiros
anos de exploração literária. Ao relê-lo tanto tempo depois, deparo-
me com uma escrita inicial, mas renuncio a introduzir o bisturi. É um
estranho exercício de arqueologia pessoal, a cavar até um extrato
do passado onde a proximidade dos factos ainda me protegia dos
filtros bem-intencionados e enganadores da memória. E, entre as
suas linhas inexperientes, descubro que também eu, na minha
pequena tragédia, encontrei o salva-vidas dos livros.

Era a capitã do barco. Estava no convés quando ouvi um grito. Terra à vista!
Vou até à proa e tiro o telescópio. Na ilha há palmeiras e coqueiros e rochas de
formas estranhas. A ilha do tesouro! Homem do leme, três graus a estibordo.
Arreeiem velas! Vamos atracar. Explorarei a ilha sozinha porque a tripulação tem
medo. Os marinheiros contam histórias terroríficas sobre os selvagens que vivem
na ilha.

— O que é que estás aqui a fazer?


— Está a comer a sandes. Tem de comer muito para ser a mais esperta e
saber tudo.
— Dá aí. Olha, olha, uma sandes de queijo.
— Está boa?
— Humm. Tu vais ver. Agora é que vai estar boa.
— Boa!
— Toma, cospe tu também, assim.
— Agora devolve-lha. Que a coma.
— Isso, come-a. Vá, come, queremos ver-te a comer. Não vais começar a
chorar, pois não?
— Não, não vai chorar. Toda a gente diz que é muito esperta. Vai comer tudo
e não vai fazer queixinhas.

Encontro-me com uma tribo e encho-me de coragem. Tinha de acontecer! É


melhor não irritá-los. Na sua língua chamam-me diabo branco e astuto. Agora
levam-me até aos seus chefes. São dois. Convidam-me a comer a sua comida e,
caso contrário, matam-me. Podem ser amistosos e podem ser muito cruéis. Vejo
os esqueletos das suas vítimas à minha volta. Dão-me minhocas vivas numa folha
grande de planta tropical. A minha barriga contorce-se de nojo, mas tenho de
aguentar e mastigo. Depois engulo. Acabo tudo. Riem-se de alegria e deixam-me
partir. Estou salva! De acordo com o mapa, a aldeia da tribo está perto do
esconderijo do tesouro. Chego a uma gruta de paredes húmidas e desiguais,
avanço com cautela para o caso de haver armadilhas. Depois de dedicar vários
dias a deambular pelos corredores escavados na rocha, encontro o tesouro
precisamente quando ouço a campainha que indica que o recreio acabou.

Assim começámos a ser tão estranhos

87
Na verdade, somos bastante estranhos e, como diz Amelia
Valcárcel, foram os gregos que começaram a ser tão estranhos
como nós. Em Alexandria aconteceram — pela primeira vez e em
grande escala — algumas raridades que hoje fazem parte da nossa
vida normal. O que os Ptolomeus materializaram na sua capital do
Nilo é uma ideia ao mesmo tempo assustadora e familiar para nós.
Após a revolução tecnológica que a escrita e o alfabeto tinham
representado, os sucessores de Alexandre puseram em
funcionamento um ambicioso projeto de acumulação de
conhecimento e de acesso ao saber. O Museu atraiu os melhores
cientistas e inventores da época com a promessa de que poderiam
dedicar a sua vida à investigação — para além disso, apelava-se
aos bolsos das suas túnicas com a aliciante isenção de impostos. A
Grande Biblioteca e a sua filial do Serapeu rebentaram os ferrolhos
que mantinham todas as ideias e todas as descobertas custodiadas.
A atmosfera eletrizante em redor daqueles rolos escritos e a sua
acumulação na gigantesca Biblioteca teve de ser algo parecido à
explosão criativa que significam hoje a Internet e Silicon Valley.
Há mais: os responsáveis pela Biblioteca desenvolveram
sistemas eficazes para se orientarem entre aquela informação que
começava a transbordar por todos os diques da memória. Inventar
métodos como o sistema alfabético de ordenação e os catálogos, e
formar pessoal que cuidaria dos rolos — filólogos para emendarem
os erros nos livros, amanuenses para multiplicá-los, bibliotecários
pedantes e risonhos para guiarem os não iniciados pelo labirinto
virtual dos textos escritos — foi um passo tão importante como
inventar a escrita. Muitos sistemas de escrita surgiram de forma
independente entre si no tempo e no espaço, mas relativamente
poucos conseguiram subsistir. Os arqueólogos conseguiram
descobrir numerosos vestígios de línguas esquecidas que se
extinguiram porque não tinham métodos eficientes para catalogarem
os seus textos e otimizarem as pesquisas. De que serve acumular
documentos se a desordem os baralha, e os dados necessários em
cada momento são como agulhas em palheiros infinitos? O que
distinguiu a Grande Biblioteca no seu tempo, como hoje a Internet,
foram as suas técnicas simplificadas e avançadíssimas para
encontrar o fio na caótica maranha da sabedoria escrita.
Organizar a informação continua a ser um desafio fundamental
na era das novas tecnologias, como já foi na época dos Ptolomeus.
Não é por acaso que em várias línguas — francês, catalão e
espanhol — chamamos aos nossos aparelhos informáticos
precisamente «ordenadores» [«computadores» em português]. Foi
Jacques Perret, um professor de línguas clássicas da Sorbonne,
quem propôs em 1955 aos diretores franceses da IBM, em véspera
de lançarem as novas máquinas no mercado, substituírem o nome
anglo-saxónico computer, que refere apenas as operações de
cálculo, por ordinateur, que incide na função — muito mais
importante e decisiva — de ordenar os dados. A história das
peripécias tecnológicas desde a invenção da escrita até à
informática é, no fundo, a crónica dos métodos criados para dispor
do conhecimento, arquivá-lo e recuperá-lo. A rota de todos estes
avanços contra o esquecimento e a confusão, que começou na
Mesopotâmia, teve o seu auge na Antiguidade, no palácio dos livros
de Alexandria e serpenteia sinuosamente até às redes digitais de
hoje.
Os reis colecionadores deram outro passo anómalo e genial:
traduzir. Nunca ninguém tinha abordado um projeto de tradução
universal com uma curiosidade tão ampla e tanta profusão de
meios. Herdeiros da ambição de Alexandre, os Ptolomeus não se
conformaram com cartografar o mundo inexplorado, pois quiseram
abrir caminhos para as mentes dos outros. E foi uma reviravolta
decisiva porque a civilização europeia se construiu através de
traduções — do grego, do latim, do árabe, do hebreu, das diferentes
línguas de Babel. Sem traduções, teríamos sido outros. Nós, os
habitantes de cada região de uma Europa obstaculizada por
montanhas, rios, mares e fronteiras linguísticas, teríamos ignorado
as descobertas alheias, e as nossas limitações ter-nos-iam isolado
ainda mais. É impossível que todos conheçamos cada uma das
línguas em que a literatura e o saber falam e, infelizmente, a maioria
das pombas não nos conseguem dar o dom de línguas. Mas o
nosso antigo hábito de traduzir criou pontes, amalgamou ideias,
originou uma conversa polifónica infinita, e protegeu-nos dos piores
perigos do nosso chauvinismo provinciano, ensinando-nos que a
nossa língua é mais uma — e, na verdade, mais de uma.
O ato de traduzir, que todos damos por adquirido, alberga
aspetos misteriosos. Em A Invenção da Solidão, Paul Auster reflete
sobre esta experiência quase mágica, este jogo de espelhos. Os
seus recantos intrigam-no porque, durante muitos anos, o escritor
ganhou a vida a traduzir os livros de outros escritores. Sentou-se à
sua escrivaninha, leu um livro em francês e, de seguida, com
esforço, escreveu o mesmo livro em inglês. Na verdade, é e não é o
mesmo livro, e por isso a tarefa nunca deixou de surpreendê-lo. Há
uma fração de segundo em que qualquer tradução toca levemente
na vertigem, no inquietante encontro cara a cara com o próprio
duplo, o desconcerto quântico da sobreposição de estados. Auster
senta-se à sua mesa para traduzir o livro de outra pessoa e, embora
só exista uma presença na divisão, na verdade há duas. Auster
imagina-se a si próprio como uma espécie de fantasma vivo de
outra pessoa — muitas vezes morta —, que está e não está, e cujo
livro é e não é o que traduz nesse mesmo instante. Então, diz a si
próprio que é possível estar sozinho e não estar no mesmo
momento.
O «transvasamento» de línguas é filho de um conceito que, em
grande medida, foi inventado por Alexandre e que ainda
denominamos com um nome grego: o cosmopolitismo. A melhor
parte do sonho megalómano de Alexandre — a realização, como em
qualquer utopia que se preze, coxeou de maneira significativa —
consistia em dar vida a uma união duradoura de todos os povos da
oikoumene, criando uma forma política nova capaz de assegurar a
todos os seres humanos paz, cultura e leis. Plutarco escreveu:
«Alexandre não tratou os gregos como caudilhos e os bárbaros
despoticamente, como Aristóteles lhe tinha aconselhado, nem se
comportou com os outros como se fossem plantas ou animais. Pelo
contrário, ordenou que todos considerassem o mundo como a sua
pátria, parentes dos bons e estranhos dos maus.» Trata-se, sem
dúvida, de um resumo hagiográfico que esconde cuidadosamente
os aspetos mais escabrosos da aventura imperial grega. Porém,
através de um prisma deformado, reflete o excecional processo de
globalização iniciado por Alexandre.
O projeto de criar um reino que se estendesse até aos confins do
mundo habitado morreu com o jovem macedónio, mas as suas
conquistas abriram um espaço ampliado de relações humanas. A
civilização helenística foi, na verdade, a maior rede de intercâmbios
culturais e mercantis que o mundo conhecera até então. E as novas
cidades, fundadas por Alexandre e pelos seus sucessores como
celebração vivente da sua glória, inauguraram uma forma inovadora
de viver na queda da civilização clássica. Enquanto na Grécia
europeia a existência ainda decorria de acordo com normas
tradicionais, nas aglomeradas ruas das grandes cidades
alexandrinas do Médio Oriente e da Ásia Menor, a quotidiana
miscelânea de pessoas com origens, costumes e crenças variadas
abriu caminho a híbridos atrevidos.
Muitos estudiosos acreditam que quem encarnou melhor os
novos horizontes do helenismo foi Eratóstenes, chamado no século
III a. C. pelo rei Ptolomeu III para dirigir a Biblioteca de Alexandria. O

novo diretor retificou o antigo mapa geográfico baseando-se nas


informações trazidas pela expedição de Alexandre. De acordo com
o investigador Luca Scuccimarra, «Eratóstenes expressou, com uma
clareza sem precedentes, o pleno reconhecimento da diversidade
étnica e linguística do género humano». A Alexandria que este novo
cartógrafo da realidade global conheceu era uma projeção do
mundo futuro: uma cidade grega em África, a mais extraordinária
das Babéis, o mais prodigioso ponto de contacto de ideias, artes e
crenças do nosso Velho Mundo.
Ali, à beira do mar Mediterrâneo, nasceu a primeira cultura que
quis acolher os saberes de toda a humanidade. Uma ambição tão
fantástica herdava o desejo de entrar em contacto com os outros
aos quais Heródoto dedicou a sua vida e que Alexandre aguilhoou
na sua galopada rumo aos confins da Terra. Como recorda o
professor George Steiner, Heródoto abordou a questão ao afirmar:
«Todos os anos enviamos os nossos barcos com grande perigo para
as vidas e grandes gastos para África para perguntar: Quem são?
Como são as vossas leis e a vossa língua? Eles nunca nos
enviaram um barco para nos perguntarem isso a nós.» O helenismo
esboçou e estendeu a ideia da viagem de conhecimento, sob duas
formas: a deslocação física — em caravanas, barcos, carroças, ao
lombo de cavalgaduras — e o trajeto imóvel do leitor que vislumbra
a imensidão do mundo desde as veredas de tinta de um livro.
Alexandria, representada pelo Farol e o Museu, foi o símbolo desse
duplo caminhar. Nesta cidade, que sempre acolheu grande mistura
de culturas, encontramos os alicerces de uma Europa que, com as
suas luzes e as suas sombras, as suas tensões e desvarios, até
com a sua periódica inclinação para a barbárie, nunca perdeu a
sede de conhecimento nem o impulso de explorar. Em Visión desde
el fondo del mar, Rafael Argullol reclama para si próprio um epitáfio
simples, composto por uma única palavra: «Viajou!» E acrescenta:
«Viajei para fugir e para tentar ver-me a partir de outro miradouro.
Quando conseguimos ver-nos de fora, contemplamos a existência
com mais humildade e perspicácia do que quando, como um tonto
aplaudido por outros tontos, imaginávamos o nosso eu como o
melhor eu, a nossa cidade como a melhor cidade e isso a que
chamávamos vida como a única vida concebível.»
Alexandria, na sua ambígua condição de cidade grega e origem
da Europa fora da geografia europeia, inaugurou esse olhar exterior
sobre si própria. Durante os melhores tempos da Biblioteca, e
seguindo o rasto de Alexandre, os filósofos estoicos atreveram-se a
mostrar pela primeira vez que todas as pessoas são membros de
uma comunidade sem fronteiras e que são obrigadas a respeitar a
humanidade em qualquer lugar e circunstância em que a encontrem.
Recordemos a capital grega do Delta como o lugar onde fervilhava
todo esse magma, onde começaram a ser importantes as línguas e
as tradições alheias, juntamente com a compreensão do mundo e
do conhecimento como um território partilhado. Nessas aspirações
descobrimos o precedente do grande sonho europeu de uma
cidadania universal. A escrita, o livro e a sua incorporação nas
bibliotecas — foram as tecnologias que tornaram essa utopia
possível.
O mais habitual é o esquecimento, o desaparecimento do legado
de palavras, o chauvinismo e as muralhas linguísticas. Graças a
Alexandria tornámo-nos extremamente estranhos: tradutores,
cosmopolitas, memoriosos. A Grande Biblioteca fascina-me — a
mim, a pequena marginalizada da escola de Saragoça —, porque
inventou uma pátria de papel para os apátridas de todos os tempos.

1 Mais de meio milhão em Portugal, em 2011, ou 5,2% da população (dados do


PORDATA). (N. da E.)
II

OS CAMINHOS DE ROMA
Uma cidade com má reputação
1

O novo centro do mundo era uma cidade com péssima


reputação. Desde as suas origens, os romanos possuíram uma
terrível lenda negra, com a particularidade de esta ter sido inventada
por eles próprios. Para começar, um fratricídio. Conta o mito que os
irmãos Rómulo e Remo, netos impacientes do rei de Alba Longa,
partiram para fundarem a sua própria cidade naquele lendário 21 de
abril de 753 a. C. Estiveram de acordo quanto à escolha da
localização da futura urbe nas margens do rio Tibre, mas
envolveram-se de seguida numa luta pelo poder. Ao serem gémeos,
nenhum tinha a vantagem da idade sobre o outro, e os dois
alegavam presságios divinos a seu favor — os deuses também
sabem jogar pelo seguro. A questão é que Remo saltou de maneira
provocadora sobre as muralhas que Rómulo tinha começado a
construir por sua conta. Tito Lívio diz que na discussão seguinte, o
calor das ambições conduziu ao derramamento de sangue. Rómulo
assassinou o seu irmão e, a tremer de raiva, gritou: «Assim morrerá
todo aquele que saltar por cima destes muros.» Estabeleceu desta
forma um precedente útil para a futura política externa romana que,
depois do golpe, exporia sempre uma agressão ou ilegalidade
prévia da outra parte para se justificar.
O passo seguinte foi organizar um autêntico grupo de
delinquentes. A urbe recém-inaugurada precisava de cidadãos. O
jovem rei, sem hesitar, declarou Roma território de asilo para
criminosos e fugitivos, anunciando que não seriam perseguidos
entre os seus muros. Uma multidão indiscriminada de condenados e
gente de origem duvidosa — conta Tito Lívio — fugiu dos territórios
vizinhos, convertendo-se nos primeiros romanos. O problema mais
premente passou a ser a ausência de mulheres. E assim chegamos
ao terceiro episódio abjeto: uma violação em massa.
Rómulo convidou as famílias das aldeias vizinhas para
celebrarem uns jogos em honra do deus Neptuno. Aparentemente,
as pessoas que moravam ali à volta estavam ansiosas por verem a
nova cidade, que naquela altura ainda era um lamaçal de cabanas
de lodo com uma ou outra ovelha como grande atração. Ainda
assim, no dia previsto, chegou a Roma uma multidão curiosa.
Acompanhados pelas suas mulheres e filhas, apareceram os
habitantes das aldeias próximas com nomes espalhafatosos como
Caenina, Antemnae e Crustumerium — se, em vez de Roma, esta
última tivesse chegado a ser uma grande potência imperial, hoje
seríamos todos crustumerianos. Mas a festa religiosa era, na
verdade, um engodo. Quando chegou a hora dos jogos, e os olhos e
as mentes de todos os convidados sabinos estavam fixos no
espetáculo, foi dado o sinal combinado. Então, os romanos raptaram
as raparigas jovens que tinham ido até lá com as suas famílias. Lívio
comenta que quase todos se apoderaram a olho da primeira mulher
que caiu nas suas mãos, mas, como há hierarquias em tudo, os
patrícios principais reservaram para si as mais bonitas e pagaram
para que lhas levassem a casa. Em inferioridade numérica, os pais
e os maridos das sequestradas fugiram, atordoados pela dor,
lançando amargos insultos aos seus violentos vizinhos.
O historiador apressa-se a explicar, para evitar mal-entendidos,
que o rapto foi uma medida necessária se os romanos quisessem
garantir a sobrevivência da sua cidade. Para além disso, apresenta-
os a fazerem promessas de afeto, reconciliação e amor às
assustadas raparigas. «Esses argumentos — acrescenta — foram
reforçados pela ternura daqueles maridos, que desculparam o seu
comportamento invocando a força irresistível da sua paixão,
argumento sempre efetivo porque apela à natureza feminina.»
Como se não bastasse, esta lendária selvajaria coletiva serviu de
modelo para a cerimónia romana de casamento, que durante
séculos encenou o rapto das mulheres. O ritual exigia que a noiva
se refugiasse nos braços da mãe e que o noivo fingisse retirar-lha à
força enquanto ela chorava, resistia e gritava.
O argumento do mito chegou até Sete Noivas para Sete Irmãos,
uma inofensiva comédia romântica de 1954 na qual uma simpática
canção sobre as sabinas ajuda os rudes rapazes protagonistas a
resolverem de uma vez por todas os seus problemas de solteirismo.
E, aliviados, os alegres compadres cantavam em coro: «Aquelas
sabinas choravam e choravam, mas por dentro estavam contentes.
Gritavam e beijavam, beijavam e guinchavam pela pradaria romana.
Não se esqueçam das disputas sabinas. Nunca se viu nada tão
familiar, um bebé romano em cada perna, chamados Cláudio ou
Brutus. E aquelas choronas sabinas, quando os romanos saíam
para se revezarem e lutarem, passavam as noites muito entretidas a
coserem pequenas togas para os seus filhos.» Pelo que parece, o
pudibundo Hollywood do código Hays, que censurava os beijos e as
camas matrimoniais no ecrã, considerava, pelo contrário, edificante
uma velha história do sequestro múltiplo como passagem prévia
para uma feliz e doméstica vida familiar.
Porém, os inimigos de Roma viam nos seus duvidosos mitos
fundacionais uma antecipação e um aviso do seu posterior ânimo
predador. Séculos depois, um desses adversários escrevia: «Desde
o próprio início, os romanos não possuíram nada, exceto o que
roubaram: o seu lar, as suas esposas, as suas terras, o seu
império.» Então, os descendentes daquele obscuro e nada
escrupuloso Rómulo, em apenas cinquenta e três anos — de acordo
com os cálculos de Políbio —, conquistaram a maior parte do
mundo conhecido.

A criação do grande Império do Mediterrâneo precisou, na


verdade, de vários séculos. Esses cinquenta e três anos do século II
a. C. marcam o período em que todos os outros povos foram
compreendendo com pasmo e terror que Roma tinha fabricado a
engrenagem bélica mais demolidora alguma vez conhecida.
As primeiras batalhas não lendárias de Roma datam de V a. C.
Foram escaramuças quotidianas locais — às vezes defensivas, às
vezes agressivas — nos territórios contíguos. Só em IV a. C. é que a
expansão romana começou a chamar a atenção dos gregos, a força
dominante naquela época. No ano 240 a. C., após uma progressão
vertiginosa de vitórias, o território romano já englobava quase toda a
Itália e Sicília. Um século e meio depois, dominava quase toda a
Península Ibérica, a Provença, a Itália, toda a Costa Adriática, a
Grécia, a Ásia Menor ocidental e o litoral norte-africano entre as
atuais Líbia e Tunísia. Entre 100 e 43 a. C., anexou-se a Gália, o
resto da península da Anatólia, a costa do mar Negro, a Síria, a
Judeia, o Chipre, Creta, a faixa costeira da atual Argélia e parte de
Marrocos. Os habitantes da pequena cidade das marismas do Tibre
tinham passado de viverem encharcados no seu fétido lamaçal a
disporem de todo o mar Mediterrâneo como se se tratasse de um
lago interior para seu usufruto exclusivo.
As campanhas militares converteram-se num traço quotidiano da
vida dos romanos. Um historiador hispânico do século V só consigna
— como uma inaudita raridade — um ano sem guerra ao longo
daquele extenso período de expansão imperial. Aqueles insólitos
meses de vadiagem bélica aconteceram em 235 a. C., durante o
consulado de Caio Atílio e de Tito Mânlio. Porém, o mais habitual
era que dedicassem imensos esforços e recursos a guerrear e,
embora contassem as suas batalhas pelas vitórias, deixaram um
terrível rasto de vítimas próprias pelo caminho — já para não falar
nas alheias. Mary Beard afirma que, durante a etapa de conquistas,
entre 10% e 25% da população masculina adulta tinha de servir nas
legiões todos os anos, numa proporção muito maior do que qualquer
outro Estado pré-industrial e, de acordo com os cálculos mais
elevados, equivalente à taxa de recrutamento da Primeira Guerra
Mundial. Na Batalha de Canas contra Aníbal, que durou apenas
uma tarde, o ritmo de mortes romanas calcula-se em cem por
minuto. E devemos ter em conta que muitos combatentes
sucumbiriam mais tarde devido às feridas, pois as armas antigas
serviam mais para mutilar do que para matar, e a morte aparecia
depois, por infeção.
O sacrifício foi enorme, mas os lucros ultrapassaram as fantasias
mais cobiçosas daqueles legionários implacáveis. Em meados do
século II a. C., a pilhagem de tantas vitórias tinha convertido a
população romana na mais rica do mundo conhecido. A guerra
oleava o negócio lucrativo por excelência da época: a escravatura.
Milhares e milhares de cativos converteram-se em mão de obra
escrava, que trabalhava nos campos, minas e moinhos romanos.
Carroças cheias de lingotes saqueados nas cidades e reinos
orientais juntavam-se ao tesouro romano que já estava a
transbordar. Em 167 a. C., o excesso de ouro era tão ignominioso
que o Estado decidiu suspender os impostos diretos aos seus
cidadãos. É verdade que essas riquezas súbitas também foram
desestabilizadoras para os romanos — sobretudo, para os que não
puderam chegar a elas. Reproduziu-se o panorama habitual: os
ricos tornaram-se mais ricos, e os pobres, ainda mais pobres. As
famílias patrícias lucraram com grandes latifúndios, baratos graças à
mão de obra escrava, enquanto os pequenos agricultores livres,
cujas terras foram arrasadas por Aníbal durante a Segunda Guerra
Púnica, empobreceram ainda mais devido a essa concorrência
desleal. O melhor dos mundos possíveis nunca é para todos.
Desde tempos remotos, uma enorme quantidade de guerras
desencadeou-se com o fim de capturar prisioneiros, possuí-los e
traficar com eles. Com frequência, a riqueza mundial está a par da
escravatura. Esta é uma ligação real entre a Antiguidade e épocas
mais modernas: da Muralha da China à Autoestrada dos Ossos de
Kolimá, do sistema de regadio na Mesopotâmia às plantações de
algodão americanas, dos bordéis romanos ao tráfico de mulheres
nos nossos dias, das pirâmides egípcias à roupa barata made in
Bangladesh. Sem dúvida, na Antiguidade, os escravos eram um dos
principais motivos — e com frequência a única razão — para se
lançar uma expedição de conquista. Representava um impulso
económico tão poderoso que nem sequer se tentava ocultar. Uma
vez, Júlio César, famoso pela sua clemência, vendeu toda a
população de uma aldeia recém-conquistada na Gália, não menos
de 53 000 pessoas. O negócio pôde resolver-se depressa porque os
comerciantes de escravos formavam um segundo exército deixado
para trás pelas legiões para ir comprando a mercadoria fresca assim
que a noite caía nos campos de batalha.
Prisioneiros, vizinhos e adversários sofreram na sua própria pele
a eficiência da organização romana. O novo império tornou
realidade a ambição unificadora que os gregos nunca cumpriram
porque, na hora da verdade, acabavam sempre por ser
politicamente incapazes. Os sucessores de Alexandre, como já
disse, criaram dinastias rivais que se envolveram numa série de
guerras umas contra as outras fragmentando o império herdado e
mergulhando-o no fracasso das suas alianças mutáveis e das suas
constantes explosões de violência brutal. Todos os bandos opostos
se habituaram a recorrer aos romanos como aliados nas suas lutas
locais ou como árbitros dos seus conflitos, e no fim acabaram
engolidos por estes amigos tão perigosos.
Não se pode afirmar que os romanos tenham inventado a
globalização, porque já existia no dividido mundo helenístico, mas
elevaram-na a um grau de perfeição que ainda hoje nos
impressiona. De um confim ao outro do império, de Espanha à
Turquia, uma constelação expansiva de cidades romanas
permanecia comunicada graças a estradas tão sólidas e bem
delineadas que muitas delas ainda existem. Aquelas cidades
expressavam um modelo de urbanismo reconhecível e confortável:
largas avenidas que se cortavam em ângulo reto, ginásios, termas,
fóruns, templos de mármore, teatros, inscrições em latim,
aquedutos, rede de esgotos. Onde quer que fossem, os forasteiros
encontravam uma cartografia uniforme, tal como nós, turistas de
hoje, tropeçamos com franchisings das mesmas marcas de roupa,
informática e hambúrgueres em semelhantes artérias comerciais de
uma ponta a outra do planeta.
Estas transformações provocaram um formigueiro de gente a
andar de um lado para outro como nunca se tinha visto antes no
mundo antigo. No início tratou-se sobretudo de movimentos dos
exércitos e migrações em massa forçadas. Calcula-se que, no
começo do século II a. C., chegavam à Península Itálica uma média
de oito mil escravos todos os anos, capturados na guerra. Por volta
dessa mesma época lançaram-se ao Mediterrâneo viajantes,
comerciantes e aventureiros romanos, que se deslocavam durante
longos períodos fora de Itália. As águas deste mar, que, para não
andarem com rodeios, chamaram nostrum, eram um formigueiro de
homens de negócios que tiravam proveito das oportunidades
comerciais abertas pela conquista. Comercializar com escravos ou
fornecer armas transformaram-se em ofícios com grande procura no
mercado laboral. Em meados desse mesmo século II a. C., mais de
metade dos cidadãos varões adultos tinha visto os horizontes do
mundo exterior e tinha contribuído com gosto para a variedade
étnica deixando à sua passagem — e à sua sorte — muitos filhos
mestiços.
Todo o seu poderio militar, a sua riqueza, as surpreendentes
redes de transporte e as obras de engenharia compunham uma
maquinaria poderosa, invencível mas árida sem o orvalho da poesia,
dos relatos e dos símbolos. As gretas abertas por essa ausência
seriam as rotas imprevisíveis através das quais Édipo, Antígona e
Ulisses se lançaram às estradas de um mundo globalizado.

A literatura da derrota
3

Os romanos conseguiram a sua extraordinária sucessão de


vitórias graças a uma mistura muito eficaz de violência e capacidade
de adaptação, de acordo com a melhor tradição darwiniana. Os
campónios sequazes de Rómulo aprenderam depressa a imitar o
melhor dos seus inimigos, a apoderar-se daquilo de que gostavam
sem a menor teimosia chauvinista e a combinar todos os
ingredientes copiados para criar novas formas próprias. Desde as
primeiras escaramuças, habituaram-se a saquear os seus
adversários vencidos não só no campo material, mas também no
simbólico. Durante as lutas contra os samnitas, imitaram as suas
estratégias bélicas — sobretudo, o manípulo como unidade básica
da legião — e utilizaram-nas de forma muito efetiva para derrotá-los
com as suas próprias armas. Na Primeira Guerra Púnica, os
labregos romanos orientaram-se para construir uma frota o mais
parecida possível com a cartaginesa, e com ela venceram as suas
primeiras batalhas navais. Os latifundiários itálicos de ideias mais
tradicionais e de ascendência mais rançosa alinharam rapidamente
nas modernas explorações agrícolas helenísticas em forma de
plantação.
Graças a todas essas apropriações, criaram uma força invasora
tão invencível como o Exército de Alexandre, e administraram
melhor do que ele as suas conquistas. Mas, para além das suas
incontestáveis habilidades para a guerra e a barbárie, tiveram um
acesso de humildade surpreendente ao assumirem que a cultura
grega era muito superior. Os membros mais lúcidos das classes
dirigentes compreenderam que qualquer grande civilização imperial
precisa de fabricar um relato unificador e vitorioso sustentado por
símbolos, monumentos, arquiteturas, mitos forjadores de
identidades e formas sofisticadas de discurso. E, para consegui-lo
depressa, de acordo com o seu costume, decidiram imitar os
melhores. Sabiam onde encontrar o modelo. Mary Beard resume a
situação daqueles tempos com um aforismo categórico: «A Grécia
inventa-o e Roma deseja-o». Os romanos lançaram-se a falar a
língua dos gregos, a copiar as suas estátuas, a reproduzir a
arquitetura dos seus templos, a escrever poemas de tipo homérico e
a imitar os seus refinamentos com o zelo de novos-ricos.
O poeta Horácio captou esse paradoxo quando escreveu que a
Grécia, a conquistada, tinha invadido o seu feroz vencedor. Hoje é-
nos difícil determinar até que ponto Roma pediu emprestada toda a
cultura grega e em que medida os romanos foram — ou não — uns
bárbaros selvagens até que os gregos os civilizaram, mas foi assim
que as duas partes contaram a História. Os intelectuais e criadores
latinos sempre se apresentaram como discípulos dos clássicos
gregos. Os vestígios de formas culturais autóctones foram evitados
ou apagados. E muitos romanos ricos aprenderam a defender-se na
língua dos seus súbditos helenísticos — embora saibamos que os
verdadeiros gregos faziam troça de maneira despiedada do
macarrónico sotaque romano. Sabe-se que no início do século I a.
C. uma delegação grega tomou a palavra diante do Senado de
Roma sem necessidade de tradutor. O esforço dos conquistadores
por falarem nos seus cenáculos mais cultos na língua de uma das
suas muitas colónias é um gesto surpreendente e extraordinário,
nos antípodas da habitual arrogância cultural das metrópoles
imperiais. Imaginemos os britânicos a manterem as suas tertúlias
literárias de Bloomsbury num esforçado sânscrito, ou Proust a suar
para entabular uma conversa refinada em bantu com os aristocratas
parisienses que tanto o fascinavam.
Pela primeira vez, uma grande superpotência antiga assumia o
legado de um povo estrangeiro — e derrotado — como um
ingrediente essencial da sua própria identidade. Sem se
escandalizarem, os romanos reconheceram a superioridade grega e
atreveram-se a explorar as suas descobertas, a interiorizá-las, a
protegê-las e a prolongar a sua influência. Esta sedução teve
enormes consequências para todos. Foi aí que nasceu a linha que
entretece o nosso presente com o passado, o fio que nos mantém
unidos a um brilhante mundo extinto. Por cima, como funâmbulos,
caminham de um século para outro as ideias, as descobertas da
ciência, os mitos, os pensamentos, a emoção, e também os erros e
as misérias da nossa História. Chamámos clássicos a toda essa fila
de palavras em equilíbrio sobre o vazio. Devido ao fascínio que
ainda despertam em nós, a Grécia perdura como o quilómetro zero
da cultura europeia.

A literatura latina é um caso muito peculiar: não nasceu


espontaneamente, pois foi gerada por encomenda, in vitro. O parto
induzido teve lugar num dia concreto do ano 240 a. C., para celebrar
a vitória de Roma sobre Cartago. Muito antes daquele dia inaugural,
os romanos tinham aprendido a escrever — como não podia deixar
de ser — imitando os gregos, que, desde o século VIII a. C., viviam
nas prósperas colónias do sul da Itália, na região conhecida como
Magna Grécia. Através do comércio e das viagens, a sua cultura e a
sua escrita alfabética tinham desembarcado no Norte. Os primeiros
italianos setentrionais a aprenderem o alfabeto grego e a adaptá-lo
à sua língua foram os etruscos, que dominaram o centro da
península entre o século VII e o IV a. C. Os seus vizinhos do sul, os
romanos — que, embora não gostassem de reconhecê-lo, estiveram
durante décadas submetidos a uma dinastia de Etrúria —, lançaram-
se ávidos sobre aquela maravilhosa inovação e, por sua vez,
adotaram a escrita etrusca com certos ajustes para a adequarem ao
latim. O alfabeto da minha infância, o que me observa agora mesmo
das filas escuras do teclado do meu computador, é uma constelação
de letras errantes que os fenícios embarcaram nas suas naus.
Sulcaram o mar rumo à Grécia, depois navegaram até à Sicília,
procuraram as colinas e os olivais da atual Toscana, rondaram pelo
Lácio e, de mão em mão, foram mudando até alcançarem o traço
que hoje os meus dedos acariciam.
Os testemunhos mais antigos deste alfabeto viajante não deixam
espaço para os sonhos. Os romanos — pragmáticos, organizadores
natos — limitaram o seu uso a registos de factos e normas. Os
textos mais precoces — dos séculos VII e, sobretudo, VI a. C. — são
um grupo de inscrições breves (por exemplo, marcas de
propriedade rabiscadas num recipiente). Quanto aos séculos
seguintes, só conhecemos leis e rituais escritos. Não resta nenhuma
marca de escritos de ficção. Estava a lutar-se até às últimas pelo
poder nos campos de batalha e os tempos não eram favoráveis para
a lírica. A literatura romana teve de esperar; foi um acontecimento
tardio, gerado num intervalo dos guerreiros. Só quando o inimigo
mais perigoso já tinha caído, com a tarefa cumprida, na
descontração e no lazer da vitória, é que os romanos se permitiram
pensar nos jogos da arte e nos prazeres da vida. A Primeira Guerra
Púnica acabou em 241 a. C. Apenas uns meses mais tarde, os
romanos desfrutaram da primeira obra literária em latim. O público
conheceu-a em setembro de 240 a. C., sobre o palco de um teatro
da capital, por ocasião dos Ludi Romani. Como grande atração das
festividades, estreou-se ali um drama — não sabemos se comédia
ou tragédia — traduzido do grego, cujo título caiu no esquecimento.
Não é por acaso que uma tradução marca o arranque da literatura
romana, sempre enfeitiçada pelos mestres gregos, sempre num
ambíguo jogo de ecos, nostalgia, inveja, homenagem e todos os
matizes do amor complexado.
Aquela representação inicial encerra uma estranha história: a
poesia chegou a Roma entre o estrondo das armas, desde o bando
contrário, por obra de um escravo estrangeiro. Lívio Andrónico, o
improvável iniciador da literatura latina, não era romano de
nascimento. Ganhava a vida como ator em Tarento, um dos maiores
enclaves da cultura grega do sul da Itália, cidade sumptuosa,
refinada e amante do teatro. O jovem foi feito prisioneiro durante a
conquista, em 272 a. C., e conheceu o amargo destino dos
vencidos: o mercado de escravos. Imagino-o a vislumbrar a urbe
pela primeira vez entre as frestas da carroça onde o transportavam
como se fosse gado para venda. Algum hábil vendedor conseguiu
colocá-lo na rica mansão dos Lívios. A sua inteligência e o seu
paleio livraram-no dos trabalhos mais penosos. Conta-se que deu
aulas aos filhos do amo e que a família, agradecida, anos mais
tarde, libertou-o. Como era costume entre os libertos, manteve o
apelido de família dos seus antigos amos, ao qual acrescentou uma
alcunha grega que simbolizava a sua identidade cindida. Sob a
proteção da poderosa família que o tinha comprado e depois
libertado, abriu uma escola na capital. À falta de poetas autóctones,
seria este estrangeiro, bilingue à força, quem receberia as
encomendas literárias em Roma. Pergunto-me que emoções
contraditórias o invadiriam ao escrever na língua da sua derrota.
Sabemos que traduziu as primeiras tragédias e comédias que foram
representadas na capital do império. E também a Odisseia
homérica. Graças a ele, foi criada uma congregação de escritores e
atores ao abrigo do Templo de Minerva no Aventino. Quase não
restam fragmentos dos seus versos inaugurais. Gosto do som
evocador de uma frase truncada do seu Odusia: «os montes
abruptos e os campos empoeirados e o imenso mar.»
Resta um pequeno mistério por resolver. Tudo indica que Roma
era, naquela altura, um páramo quase sem livros, nem bibliotecas
públicas nem livreiros. Como é que Lívio Andrónico conseguia os
originais para as suas traduções? Os ricos patrícios podiam permitir-
se enviar mensageiros às cidades gregas do sul da Itália, onde
havia comerciantes de livros, mas essa solução era impensável para
um humilde liberto.
Nós, os amantes da leitura de hoje, quase não conseguimos
imaginar o deserto de livros da época manuscrita. No nosso século
XXI, a catarata da letra impressa faz transbordar todos os diques da
medida. Publica-se um novo título a cada meio minuto, cento e vinte
por hora, dois mil e oitocentos por dia, oitenta e seis mil por mês.
Um leitor médio consegue ler em toda a sua vida o que o mercado
produz numa única jornada laboral, e todos os anos se destroem
milhões de exemplares órfãos. Mas esta abundância é muito
recente. Durante séculos, conseguir livros exigia estar bem
relacionado e, mesmo com os contactos adequados, implicava
gastos, esforços, tempo e, por vezes, suportar os perigos da
viagem.
Pelos seus próprios meios e com o estigma das suas origens,
Lívio Andrónico nunca teria podido dedicar-se a ler, a traduzir e a
dirigir uma escola sem o apoio dos seus poderosos protetores.
Provavelmente, foram os Lívios que suportaram os gastos de reunir
— com a intenção de exibir a sua riqueza e de se gabarem da sua
cultura — uma pequena biblioteca de clássicos gregos. O seu antigo
criado teria de madrugar todas as manhãs para lhes fazer uma visita
de respeito — a salutatio matutina —, aborrecer-se na antessala até
que o seu patrão se dignasse a aparecer e, como ator que foi
quando era novo, inclinar a cabeça e falar num tom apropriado,
diariamente grato por lhe terem permitido sustentar entre as suas
mãos gregas, antes escravas, os rolos da luxuosa coleção.

Os nobres romanos ficaram obcecados com os livros, esses


objetos escassos e exclusivos que não estavam ao alcance de
todos. No início, enviavam pacificamente os seus servidores rumo a
Alexandria e a outros grandes centros culturais, com a missão de
encomendarem cópias aos mercadores especialistas. Descobriram
de imediato que era muito mais prático saquearem bibliotecas
inteiras durante as suas expedições bélicas pelo território grego.
Assim, a literatura converteu-se numa pilhagem de guerra.
Em 168 a. C., o general Emílio Paulo derrotou o último rei da
Macedónia. Permitiu que Cipião Emiliano e outro filho seu, ambos
amantes do saber, levassem para Roma todos os livros da casa real
macedónica, à qual Alexandre pertenceu. Graças a esse valioso
furto, os Cipiões foram proprietários da primeira grande biblioteca
privada da cidade e oficiaram como patrocinadores da jovem
geração de escritores romanos. Um dos escritores-satélite que
gravitava em redor dos seus livros foi o dramaturgo Terêncio, de
quem se dizia que era de origem escrava. A sua alcunha Afer («o
Africano») dá pistas sobre a sua origem e a cor da sua pele.
Naquela altura, impunha-se uma distribuição de tarefas culturais. Os
poderosos patrícios encarregavam-se de saquear livros — às vezes
num alarde de honradez até os compravam — para enriquecerem
as suas coleções privadas e juntarem à sua volta os autores com
mais talento. Os escritores propriamente ditos eram, tirando
exceções, esfarrapados ao seu serviço (escravos, estrangeiros,
prisioneiros de guerra, pobres pluriempregados e restante ralé
social).
Seguindo o exemplo dos Cipiões, outros generais seguiram a
confortável senda da pilhagem de livros. O despiedado Sila
apoderou-se daquele que talvez tenha sido o troféu mais apetecível:
a coleção do próprio Aristóteles, que durante muito tempo
permaneceu escondida e reapareceu a tempo de se converter em
pilhagem de guerra. Em Roma também ficou famosa a biblioteca de
Lúculo, adquirida graças a uma metódica pilhagem durante as suas
vitoriosas campanhas militares no norte da Anatólia. Privado do
comando em 66 a. C., Lúculo dedicou-se a partir desse momento a
uma vida de sumptuosa vadiagem sustentada pelas riquezas que ia
acumulando nos seus anos predadores. Contam que a sua
biblioteca privada seguia o modelo arquitetónico de Pérgamo e
Alexandria: rolos armazenados em salas estreitas, pórticos onde ler,
e salões para se reunirem e conversarem. Lúculo foi um ladrão
generoso: pôs os seus livros à disposição dos seus familiares,
amigos e dos estudiosos residentes em Roma. Plutarco disse que
na sua mansão se reuniam e conferenciavam catervas de
intelectuais, como numa perpétua receção das musas.
A maior parte dos textos que embelezavam as bibliotecas dos
Cipiões, de Sila e de Lúculo eram gregos. Com o tempo, ir-se-iam
acrescentando alguns em latim, mas seriam a minoria. Como os
romanos tinham começado tarde a escrever, toda a sua literatura
junta representava uma fração embaraçosamente minúscula dos
fundos disponíveis.
Imagino que os artistas romanos daquela época se sentissem
ultrapassados e empequenecidos perante o aluvião de obras de arte
que chegavam na bagagem dos ávidos conquistadores. Grande
parte desta pilhagem eram surpreendentes obras-primas. Naquela
altura, a literatura e a arte grega tinham atrás de si mais de meio
milénio de História. Não é fácil competir com quinhentos anos de
criação apaixonada.
O arrebatamento colecionista romano faz lembrar o dos ricos
capitalistas americanos que, maravilhados diante dos longos
séculos de arte europeia e por um punhado de dólares, espoliavam
retábulos, frescos arrancados dos muros, claustros completos,
fachadas de igrejas, frágeis antiguidades e telas dos grandes
mestres. Também bibliotecas inteiras. Foi assim que Scott Fitzgerald
imaginou o jovem milionário Jay Gatsby. A sua fortuna, oriunda de
obscuros contrabandos, brilhava numa grande mansão de Long
Island, onde não faltava nenhum luxo nem requinte. Gatsby era
conhecido pelas suas festas caríssimas e extravagantes nas quais
nunca participava. Na verdade, palpitava por trás das suas exibições
de opulência um amor infantil e comovente. O esbanjamento, a luz,
os bailes até de madrugada, os carros vistosos e a arte europeia
eram fogo de artifício para deslumbrar a rapariga que o abandonou
anos antes, quando ainda não era suficientemente rico. No palácio
que Gatsby tinha construído como celebração kitsch da sua
ascensão social não podia faltar «uma biblioteca gótica, artesoada
com carvalho inglês trabalhado, que provavelmente tinha sido toda
transferida de alguma ruína situada no outro lado do mar».
A perceção mútua dos romanos e gregos alimentava-se de
estereótipos parecidos com os nossos sobre os americanos e os
europeus. Pragmatismo, poder económico e militar, face à bagagem
de uma longa história, de uma grande cultura e da nostalgia de
esplendores passados. Marte e Vénus. Embora em geral
expressassem um respeito recíproco, os dois tinham um repertório
de piadas e caricaturas nacionais para se rirem nas costas do outro.
Consigo imaginar os gregos a fazerem troça na intimidade dos
legionários brutos e acéfalos que não eram capazes de fazer uma
mísera inscrição sem erros ortográficos. Do outro lado da barreira,
os velhos romanos conservadores também os criticavam. Numa das
suas sátiras, Juvenal exclama que não consegue suportar a cidade
cheia de gregos, essa corja tagarela e parasita que trouxe consigo
os seus vícios juntamente com a sua língua, corrompendo os
hábitos e deslocando os autênticos cidadãos.
Na verdade, nem tudo era admiração. Os processos
globalizantes despertam sempre reações contraditórias e
complexas. Algumas das vozes mais cáusticas dos séculos III e II a.
C. atacaram a influência das culturas estrangeiras em geral e a da
grega em particular. Ficavam incomodados com as novidades que
começavam a converter-se em perigosas modas, como a filosofia,
os luxos gastronómicos ou a depilação. O campeão destes críticos
foi Catão, o Velho, contemporâneo e rival de Cipião, o Africano, a
quem ridicularizava por andar aos saltos em ginásios gregos e
misturar-se com a populaça nos teatros sicilianos. De acordo com
este resmungão oficial, os costumes sofisticados dos estrangeiros
acabariam por minar a força do carácter romano. Por outro lado,
sabemos que o próprio Catão ensinou grego ao filho, e os
fragmentos conservados dos seus discursos demonstram que se
apressou a estudar os artifícios da retórica grega que tanto
desprezava em público.
Todas estas ambivalências da identidade romana se refletem na
sua primeira literatura. As obras de teatro de Plauto e Terêncio já
são algo mais do que meras traduções calcadas do grego.
Apresentam-se como adaptações fiéis que respeitam a trama dos
originais helenísticos, mantendo o contexto na Grécia, mas na
verdade são híbridos pensados para agradar o público barulhento e
festivo de Roma. Ao contrário da Atenas clássica, na urbe romana o
teatro tinha de competir com outras diversões populares, como os
combates de luta livre, o funambulismo ou os confrontos entre
gladiadores. Por isso, quase todas as comédias giravam em torno
de um argumento básico e infalível: «rapaz conquista rapariga». As
pessoas esperavam que aparecesse em cada comédia o típico
escravo astuto e embusteiro que causava mil enredos. Para agradar
a todos, o final feliz estava garantido. Mas, por baixo da epiderme
frívola destas obras romanas, havia um ingrediente novo. Através
delas, os espectadores espreitavam para a complexidade cultural do
novo e vasto mundo imperial.
A ação de todas as comédias acontecia na Grécia e, portanto,
exigia ao público certas noções de geografia longínqua. Numa das
suas representações, Plauto atreveu-se a dar protagonismo a um
cartaginês, que se expressa na sua genuína língua púnica — na
verdade, os linguistas atuais encontram aí um testemunho único
para conhecerem essa língua extinta. Noutra, duas personagens
disfarçam-se de persas. No prólogo de várias comédias, aparece
uma piada recorrente sobre as adaptações. Referindo-se à sua
tradução, Plauto diz: «Um grego escreveu isto, e Plauto barbarizou-
o.» Este verso, como explica Mary Beard, era uma sofisticada
piscadela de olho ao público. Ao ouvi-lo, os espectadores de origem
grega esboçavam um risinho dissimulado à custa dos novos e
bárbaros donos do mundo.
Entre risos e piadas, o teatro ajudava a compreender melhor a
nova realidade de horizontes alargados. O público aprendia que as
velhas tradições já não podiam manter a sua pureza ancestral; que,
apesar das resistências conservadoras, a forma mais inteligente de
transitar pelos novos caminhos era adaptar e adaptar-se à
sabedoria do mundo que tinham conquistado. A jovem literatura
híbrida era a vanguarda de uma sociedade cada vez mais mestiça.
Roma estava a descobrir os mecanismos da globalização e o seu
paradoxo essencial: o que adaptamos de outras partes também nos
faz ser quem somos.

Os impérios jovens têm apetites singelos; querem,


simplesmente, tudo. Aspiram à pujança militar, ao poder económico
e, também, aos esplendores do Velho Mundo. Com esse afã, os
Cipiões transferiram a biblioteca real da Macedónia para Roma e, ao
abrigo daqueles valiosos livros, atraíram um círculo de escritores
gregos e latinos. Através das armas e do dinheiro, estavam a tentar
deslocar os centros de gravidade da criação literária. Aconteceu
muitas vezes: a política redefine os mapas culturais.
O desejo de apropriação daqueles romanos ricos não se
diferencia tanto, no fundo, do entusiasmo que levou a americana
Peggy Guggenheim a transferir a pintura abstrata europeia para o
seu país nos anos quarenta do século passado, traçando novas
geografias artísticas. O seu pai, membro de uma dinastia de
magnatas das minas e fundições, morreu no naufrágio do Titanic.
Ela instalou-se em Paris para viver a boémia desde o confortável
miradouro da sua herança milionária. Aí começou a sua famosa
coleção de arte vanguardista. Ainda estava em Paris quando se deu
a invasão nazi de França. Em vez de fugir, aproveitou para comprar
obras de arte como se não houvesse amanhã. O seu lema era «uma
pintura por dia». Com o Exército alemão a irromper pelo norte do
país, não faltavam vendedores. Comprava frequentemente a
famílias judias em fuga desesperada, ou diretamente aos artistas, a
preços muito baixos. Quando faltavam apenas dois dias para a
queda de Paris, escondeu a sua coleção no celeiro de um amigo e
fugiu para Marselha, onde viveu um namorico com Max Ernst,
fugitivo de um campo de concentração. O seu dinheiro permitiu-lhe
resgatar Ernst e um grupo de amigos artistas, com os quais escapou
rumo aos Estados Unidos.
Em Nova Iorque abriu uma galeria onde expunha a arte da
escola parisiense. Foi entre essas obras e com a companhia dos
refugiados europeus que procuravam abrigo na galeria nova-
iorquina de Peggy — Duchamp, Mondrian, Breton, Chagall e Dalí,
entre outros — que nasceu a vanguarda americana. Os jovens
artistas do momento puderam ver as obras da arte nova e ficaram
impressionados. O governo americano, interessado em arrebatar à
Europa a sua primazia artística, tinha criado um programa, o Federal
Art Project, que oferecia um pagamento de vinte e um dólares por
semana a pintores desempregados para que decorassem
instituições públicas. Foi aí que Pollock, Rothko ou De Kooning, que
se converteriam nos novos protegidos de Peggy, se conheceram.
Jackson Pollock declarou numa entrevista: «A pintura mais
importante dos últimos cem anos foi realizada em França. Os
pintores americanos, geralmente, não acertaram em absoluto com a
pintura moderna. É muito importante que os grandes artistas
europeus estejam entre nós.» Estes jovens pintores reuniam-se
durante muitas tardes no MoMA para contemplar o Guernica de
Picasso, refugiado no museu, a salvo das ditaduras e das guerras
da Europa. O expressionismo abstrato americano nasceu à sombra
da vanguarda europeia.
Em maio de 1940, três semanas antes da ocupação de Paris,
fugiu outro exilado para os Estados Unidos naquela que seria a
penúltima viagem do navio Champlain antes de o afundarem. Como
muitos escritores europeus perseguidos, Vladimir Nabokov
encontrou asilo nas universidades americanas. Para além disso,
exilou-se voluntariamente da sua língua, aventurando-se no abismo
de escrever os seus livros decisivos em inglês. Chegou a declarar
que se sentia tão americano como o mês de abril no Arizona. Ao
mesmo tempo, detetava no seu novo país a aura daquela Europa
que as revoluções e as guerras lhe tinham arrebatado. Numa carta à
sua agente literária, escreveu: «O que me cativa da civilização
americana é precisamente esse toque do Velho Mundo, esse aspeto
antiquado que se cola a ela apesar do duro exterior brilhante, da
agitada vida noturna, das casas de banho de último modelo, das
publicidades refulgentes e de tudo o resto.»
O cinema, inventado em França, também transferiu a sua meca
para os Estados Unidos. Os criadores dos grandes estúdios de
cinema clássico de Hollywood foram, na sua maioria, emigrantes da
Europa Central, muitos dos quais camuflaram os seus nomes e a
sua origem sob uma pátina americana. Estes homens de origem
humilde, que desembarcaram em Nova Iorque apenas com um
punhado de dólares cosidos ao forro do colete, ergueram a grande
indústria cinematográfica que atraiu de seguida uma plêiade de
realizadores, atores e técnicos europeus — Fritz Lang, Murnau,
Lubitsch, Chaplin, Frank Capra, Billy Wilder, Preminger, Hitchcock,
Douglas Sirk e tantos outros. Curiosamente, John Ford, numa
operação de camuflagem inversa àquela que os pioneiros dos
estúdios fizeram, disfarçou-se de europeu. O Homero do western
americano, nascido no Maine, fantasiava com um passado em
Innisfree, uma inexistente aldeia irlandesa. Inventou um relato
conscientemente mítico da sua história familiar e, em mais de uma
ocasião, chegou a declarar que tinha nascido numa casa com
telhado de palha que dominava a baía de Galway. Ford, patriarca do
cinema americano, sabia que a era dourada de Hollywood tinha
sido, em grande parte, uma invenção europeia.
Todos estes exemplos — aos quais se poderiam acrescentar os
nomes de filósofos como Hannah Arendt, de cientistas como
Einstein ou Bohr, ou de escritores espanhóis emigrados com a
ditadura, como Juan Ramón Jiménez ou Sender — evidenciam que,
em meados do século XX, graças a um esforço muito calculado de
acolhimento e despesas, o epicentro da arte e do saber mudou de
continente. Na Antiguidade greco-latina, o transvasamento cultural
deu-se em condições mais despiedadas. Não houve sonho romano,
nem galerias de arte, nem universidades ávidas por albergarem o
talento estrangeiro, pois um enorme número de intelectuais e
artistas gregos desembarcou na urbe romana para serem vendidos
como escravos.

O limiar invisível da escravatura

A escravatura era, para gregos e romanos, o monstro que


espreitava por baixo da cama, o terror que rastejava sempre por
perto. Ninguém podia viver totalmente seguro de nunca ser
escravizado, sem importar o quão rica e aristocrática fosse a sua
linhagem. Havia muitas portas abertas para o inferno,
inclusivamente para os que tinham nascido livres. Se a cidade ou o
país de alguém eram assolados pela guerra — uma experiência
quase quotidiana durante a Antiguidade —, a derrota convertia essa
pessoa em pilhagem do exército vitorioso. Vae victis («Ai dos
vencidos!») era uma descritiva máxima latina. As lendas mais
antigas deixavam claro que não haveria compaixão para com aquela
que hoje chamamos «população civil». Em As Troianas, de
Eurípides, passeamos entre as cinzas fumegantes de Troia e a
desolação da sua rainha e das suas princesas, sorteadas entre os
generais invasores. Na véspera ainda vestiam roupas luxuosas e
eram recebidas entre reverências. Após uma noite de matanças e
conquista, os gregos arrastam-nas pelo cabelo, dividem-nas entre si
e violam-nas.
Se, ao viajar por mar, havia um ataque de piratas — um bordão
linguístico para todo o tipo de inimigos ou malfeitores que tivessem
um barco —, havia poucas possibilidades de escapar da
escravatura.
Se alguém era sequestrado em terra firme, provavelmente a
família não receberia um pedido de resgate. Era mais rápido e
menos perigoso vender a pessoa a um negociante. Esse cruel
comércio de gente arrancada das suas casas livres converteu-se
num negócio muito lucrativo, com o qual se podia fazer dinheiro
rápido. Nas comédias de Plauto aparecem com frequência crianças
raptadas, irmãos separados, pais que envelheceram à procura de
filhos desaparecidos e os encontram convertidos em criados ou
prostitutas às ordens do vilão de serviço.
Se uma pessoa atravessava dificuldades económicas, os seus
credores podiam vendê-la como o último recurso para saldarem as
suas dívidas.
Se uma personagem poderosa queria vingar-se de alguém,
podia escolher entre matar essa pessoa ou, se fosse ainda mais
cruel, entregá-la a um negociante. O próprio filósofo Platão sofreu
esse destino na pele. Contam que, durante a sua estadia na Sicília,
enfureceu o tirano Dionísio com uma ressabiada observação sobre
a sua forma de governar e a sua ignorância. Dionísio pretendia
executá-lo, mas o seu cunhado Dion, discípulo do filósofo, insistiu
em que a sua vida fosse perdoada. Como a sua insolência merecia
um castigo, levaram-no para a ilha de Egina para vendê-lo no
animado bazar de escravos. Felizmente para ele, a história teve um
final feliz. Foi comprado por um colega filósofo — partidário de outra
escola de pensamento antagónica à de Platão, embora não de um
modo demasiado feroz — e deixou-o partir, escaldado mas livre, de
regresso à sua casa ateniense.
De acordo com a lei romana, os escravos eram propriedade dos
seus amos e não tinham personalidade legal. Podiam sofrer
castigos corporais e, na verdade, muitos eram açoitados com
frequência, para manterem a disciplina ou como mero desafogo. O
comprador estava no seu direito caso decidisse separá-los dos seus
filhos, dormir com eles, vendê-los, espancá-los ou executá-los
sumariamente. Era permitido tirar partido económico deles de
qualquer forma, incluindo as lutas de gladiadores ou a exploração
sexual — a maior parte das prostitutas eram escravas. Nos
julgamentos, o testemunho de um escravo só tinha validade se
tivesse sido obtido sob tortura.
Machadada. Abismo. Calvário. Como descrever a dolorosa
mudança de vida de todos aqueles cidadãos livres submetidos à
escravatura por causa de um acaso, uma dívida, uma derrota ou um
tráfico despiedado? Pessoas com vidas pacíficas, trabalhadoras, até
felizes, eram arrancadas com extrema violência do amparo das suas
esperanças e dos seus direitos, para serem lançadas ao acaso
infeliz de se converterem em mercadorias para outros homens. O
filme 12 Anos Escravo retrata um contexto parecido, muitos séculos
depois, nas plantações americanas. Acorrentado às escuras numa
cave, Solomon Northup tenta recompor o quebra-cabeças da sua
memória. À medida que as recordações emergem no caos da sua
mente atordoada, este homem negro nascido em liberdade, culto,
violinista, que vivia com a mulher e os dois filhos no estado de Nova
Iorque, compreende que o enganaram, drogaram e sequestraram
para vendê-lo como escravo. Procura em vão os seus documentos,
única prova da sua condição livre. Fechado no subsolo de
Washington, à sombra do Capitólio, Solomon começa a sua
aprendizagem da dor. Os seus carcereiros começam a domar o
rebelde: sovas, chicotadas, doses insuficientes de comida, sujidade,
roupa fedorenta. Numa noite, embarcam-no clandestinamente para
o Sul e aí entregam-no a um negociante de Luisiana. Perderá uma
década da sua juventude a colher algodão nas plantações de
diversos amos do sul do país, que o maltratam constantemente para
vergá-lo, sem notícias dos seus entes queridos. O filme, baseado
numa personagem real, descreve a odisseia de um indivíduo atónito
e indefeso — como qualquer um de nós, se nos arrebatassem toda
a ajuda possível, todo o amparo das leis — a quem tentam
desumanizar através do medo.
No mundo antigo, muitas pessoas atravessaram à força esse
limiar invisível onde perdiam a sua condição de seres livres para se
converterem em mercadorias.
Durante duzentos anos, chegaram a Roma quantidades
gigantescas destes escravos gregos, resultado das vitórias sobre os
reinos helenísticos da Macedónia, da Grécia continental, da Turquia,
da Síria, da Pérsia ou do Egito. A irrupção dos conquistadores
romanos desencadeou um longo período de violência e caos no
Mediterrâneo oriental, criando as condições propícias para a captura
de escravos em massa. O mar estava cheio de piratas. Os exércitos
marchavam através de extensos territórios, ensombrecendo o
horizonte com a sua presença ameaçadora. Cidades e estados
inteiros caíam no abismo das dívidas por causa dos despiedados
impostos que os romanos impunham. Os números são
assustadores. Em meados do século I a. C. devia haver cerca de
dois milhões de escravos em Itália, que rondariam os 20% do censo.
Quando na primeira época imperial alguém teve a brilhante ideia de
os obrigar a usar uniforme, o senado recusou a medida com
assombro — ninguém desejava que a população escrava se
apercebesse do quão numerosa era.
Os gregos não foram o único povo que os romanos
escravizaram, uma multidão de hispânicos, gauleses e cartagineses,
entre outros, também caíram na servidão. A peculiaridade dos
cativos gregos consistia no facto de muitos deles serem mais cultos
do que os seus amos. Em Roma, as profissões de prestígio que
hoje os filhos das classes médias e altas praticam foram exercidas
por escravos. Para nossa surpresa, os médicos, banqueiros,
administradores, notários, assessores fiscais, burocratas e
professores daquela época eram, frequentemente, gregos privados
de liberdade. Os nobres romanos com aspirações culturais podiam ir
numa manhã qualquer aos mercados bem abastecidos da capital
para comprarem um intelectual grego a seu gosto, que educaria os
seus filhos, ou simplesmente lhes daria o prestígio de ter um filósofo
de guarda em casa. Fora das casas, a maior parte dos professores
da escola também eram escravos ou libertos gregos. A sua
especialidade era todo o trabalho de colarinho branco e de
escritório. Para além disso, tratavam da administração do império e
do seu sistema legal.
Cícero deixa entrever nas suas cartas que era proprietário de
cerca de vinte escravos deste tipo, entre secretários, empregados,
bibliotecários, amanuenses, «leitores» — que liam livros ou
documentos em voz alta para maior conforto do seu amo —,
assistentes, contabilistas e moços de recados. O famoso orador
possuía várias bibliotecas, uma na sua casa da capital e outras
distribuídas pelas suas numerosas propriedades rurais. Precisava
de pessoal muito qualificado para gerir tanto essas coleções como a
sua própria obra. Os seus escravos ocupavam-se das tarefas
quotidianas: meter os rolos nas suas respetivas estantes, reparar os
volumes danificados e manter o catálogo em dia. Escrever com uma
caligrafia bonita era parte essencial do seu trabalho. Se os amigos
do amo lhe emprestavam livros nos quais ele estava interessado,
eles faziam cópias à mão de todas as obras, por mais extensas que
fossem. Quando o chefe terminava de redigir um novo ensaio ou
discurso, tinham de elaborar à pressa uma tiragem manuscrita que o
presunçoso autor distribuía entre os seus amigos e colegas.
Tratava-se de uma tarefa árdua (Cícero era um autor muito
convencido, muito prolífico e com muitos amigos).
Para a organização geral da sua biblioteca não lhe bastou o seu
pessoal comum. Apaixonado pelos seus livros, quis contar com os
serviços de um especialista. Recorreu então a Tiranião, um desses
muitos estudiosos gregos arrancados da sua pátria para serem
vendidos como escravos. Apesar do seu duro destino, o escritor
cativo destaca-se pelo seu carácter atencioso. Anteriormente, já
tinha conseguido uma grande reputação ordenando a famosa
biblioteca de Sil de acordo com o modelo de Alexandria. Cícero
escreve a um amigo: «Quando vieres, vais poder ver a maravilhosa
organização que o Tiranião fez dos meus livros na biblioteca.» Mas
nem todos os escravos ilustrados de Cícero foram tão dóceis, nem
lhe deram tantas alegrias. No outono do ano 46 a. C., o orador
escreveu uma carta ao seu amigo e governador de Ilíria (um
território que hoje faz parte da Albânia, Croácia, Sérvia, Bósnia e
Montenegro). Estava irritado e dececionado. O seu bibliotecário-
chefe, um escravo chamado Dionísio, tinha estado a roubar-lhe
livros para vendê-los e, quando finalmente foi descoberto e ia
receber o seu castigo, fugiu. Um conhecido julgava tê-lo visto em
Ilíria. Cícero implora ao seu amigo, general dos exércitos
destacados na zona, que lhe faça o insignificante favor — um
pormenor — de apanhá-lo e trazê-lo de volta. Mas, para desgosto
de Cícero, os ladrões de livros não eram uma das prioridades do
governador romano na província, e as legiões romanas não se
mobilizaram para apanhar o fugitivo.
A história dos livros em Roma tem como protagonistas os
escravos. Participavam em todas as facetas da produção de obras
literárias, desde ensinar a escrever até a elaborar as cópias. O
contraste entre a multidão de escravos gregos ilustrados e o
analfabetismo obrigatório de civilizações posteriores chama a
atenção. Nos Estados Unidos, até à derrota da Confederação, em
1865, era ilegal em muitos estados do Sul que os escravos
aprendessem a ler ou a escrever, e os criados capazes de fazê-lo
eram considerados uma ameaça para a continuidade do sistema
esclavagista. Daniel Doc Dowdy, um homem negro que nasceu
sendo escravo em 1856, descreveu os terríveis castigos reservados
aos infratores dessa lei: «A primeira vez que nos apanhavam a
tentar ler ou escrever açoitavam-nos com uma correia de pele, a
segunda com um chicote de sete pontas e a terceira cortavam-nos a
primeira falange do dedo indicador.» Apesar de tudo, alguns
escravos analfabetos insistiam em aprender a ler, desafiando os
seus amos e arriscando a vida. A tarefa, devido à proibição, durava
vários anos, em paciência e segredo. Os relatos dessas
aprendizagens são muitos e heroicos. Belle Myers, entrevistada nos
anos trinta do século XX, explicou que tinha aprendido as letras
enquanto cuidava do bebé do proprietário, que brincava com um
quebra-cabeças alfabético. O amo, suspeitando das intenções da
sua escrava, deu-lhe vários pontapés preventivos. Contudo, Belle
não desistiu, estudando às escondidas as letras do quebra-cabeças
e algumas palavras de uma cartilha infantil. «Um dia encontrei um
livro de hinos e soletrei: “Quando Leio Com Clareza O Meu Nome”.
Senti-me tão feliz que fui a correr contá-lo aos outros escravos.»
Em 12 Anos Escravo, Solomon deve esconder a todo o custo
que sabe ler e escrever se quiser evitar as selvagens sovas. A sua
tragédia consiste em que, ao mesmo tempo, está obcecado em
fazer chegar à sua família nova-iorquina uma carta em que lhes
explique onde encontrá-lo, para que o resgatem desse inferno de
fome, exploração e brutalidade. Durante anos aproveita qualquer
mínima ocasião para ir roubando pequenos pedaços de papel aos
seus amos e, quando já tem suficientes, fabrica na clandestinidade
da noite uma desajeitada caneta e um sucedâneo de tinta com
sumo de amoras. As mensagens proibidas que consegue redigir
com esforço e enorme perigo representam a sua única e indelével
esperança de conseguir recuperar algum dia a sua vida anterior de
homem livre. Em Uma História da Leitura, Aberto Manguel escreve:
«Por todo o sul dos Estados Unidos, era frequente que os
proprietários das plantações enforcassem qualquer escravo que
tentasse ensinar outros a soletrar. Os proprietários de escravos
(como os ditadores, os tiranos, os monarcas absolutos e outros
ilícitos detentores do poder) acreditavam firmemente na força da
palavra escrita. Sabiam que a leitura é uma força que requer apenas
algumas palavras para ser esmagadora. Alguém que é capaz de ler
uma frase é capaz de ler tudo; uma multidão analfabeta é mais fácil
de governar. Dado que a arte de ler não se pode desaprender
depois de se ter adquirido, o melhor recurso é limitá-la. Por todos
esses motivos era preciso proibir a leitura.»
Pelo contrário, os habitantes da civilização greco-latina
consideravam apropriado que os seus escravos se encarregassem
dos trabalhos de cópia, escrita e documentação, por motivos que
hoje são, no mínimo, surpreendentes.
Como já expliquei, a leitura antiga não era o ato mudo que hoje
praticamos. Exceto em raras ocasiões, naquela altura lia-se sempre
em voz alta, até em privado. Aos olhos dos antigos, a operação de
tornar as letras escritas sonoras continha um feitiço inquietante. As
crenças mais antigas ensinavam que o fôlego era a sede do espírito
de uma pessoa. Nas inscrições funerárias precoces, os mortos, para
reviverem e anunciarem quem jazia no sepulcro, imploravam ao
passeante «empresta-me a tua voz». Os gregos e os romanos
achavam que todo o texto escrito precisa de se apropriar de uma
voz viva com o fim de completar e atingir a sua plenitude. Por isso, o
leitor que observava as palavras e começava a lê-las sofria uma
espécie de posse espiritual e vocal: a sua laringe era invadida pelo
fôlego do escritor. A voz do leitor submetia-se, unia-se ao escrito. O
escritor, mesmo depois da sua morte, usava outros indivíduos como
instrumento vocal, ou seja, punha-os ao seu serviço. Ser lido em voz
alta significava exercer um poder sobre o leitor, mesmo através das
distâncias do espaço e do tempo. Por isso — pensavam os antigos
—, era sempre adequado que os profissionais da leitura e da escrita
fossem escravos. Porque a sua função era precisamente servir e
submeter-se.
Em contrapartida, o amor dos homens livres pela leitura era visto
com um certo receio. Só ficavam a salvo os ouvintes de um texto, os
que ouviam outra pessoa ler sem submeter a sua voz ao escrito.
Quem, como Cícero, dispunha de escravos leitores. Estes
servidores, possuídos pelo livro, deixavam de pertencer a si próprios
durante o instante da leitura. Punham na sua boca um «eu» que não
era seu. Eram meros instrumentos de uma música alheia.
Curiosamente, as metáforas utilizadas para esta atividade na obra
de Platão e de outros autores até Catulo são as mesmas que se
utilizavam para designar a prostituição ou para o companheiro
passivo nas relações sexuais. O leitor é sodomizado pelo texto. Ler
alguém é emprestar o corpo a um escritor desconhecido, um ato
audazmente promíscuo. Não se considerava totalmente
incompatível com a categoria de cidadão, mas os bem-pensantes da
época proclamavam que se devia praticar com uma certa
moderação para não se converter em vício.

No princípio foram as árvores

Os livros são filhos das árvores, que foram o primeiro lar da


nossa espécie e, talvez, o mais antigo recipiente das nossas
palavras escritas. A etimologia da palavra encerra um velho relato
sobre as origens. Em latim, liber, que significava «livro»,
originariamente dava nome à casca da árvore ou, para sermos mais
exatos, à película fibrosa que separa a casca da madeira do tronco.
Plínio, o Velho, afirma que os romanos escreviam sobre cascas
antes de conhecerem os rolos egípcios. Durante muitos séculos,
diversos materiais — o papiro, o pergaminho — deslocariam
aquelas antigas páginas de madeira, mas, numa viagem de ida e
volta, com o triunfo do papel, os livros voltaram a nascer das
árvores.
Como já expliquei, os gregos chamavam biblíon ao livro, em
memória da cidade fenícia de Biblos, famosa pela exportação de
papiros. Na nossa época, o uso do termo, na sua evolução, ficou
reduzido ao título de uma só obra, a Bíblia. Para os romanos, liber
não evocava cidades nem rotas comerciais, mas sim o mistério da
floresta onde os seus antepassados começaram a escrever, entre
os sussurros do vento nas folhas. Os nomes germânicos — book,
Buch, boek — também descendem de uma palavra arbórea: a faia
de tronco esbranquiçado.
Em latim, o termo que significava «livro» soava quase igual ao
adjetivo que significava «livre», embora as raízes indo-europeias de
ambos os vocábulos tivessem origens diferentes. Muitas línguas
românicas, como o espanhol, o francês, o italiano ou o português
herdaram o acaso dessa semelhança fonética, que convida ao jogo
de palavras, identificando a leitura e a liberdade. Para os ilustrados
de todas as épocas, são duas paixões que acabam sempre por
confluir. Embora hoje tenhamos aprendido a escrever com luz sobre
ecrãs de vidro líquido ou de plasma, ainda sentimos a chamada
originária das árvores. Estamos a redigir nas suas cascas um
disperso inventário amoroso da humanidade. Antonio Machado, nos
seus passeios pelos Campos de Castilla, costumava deter-se ao pé
do rio para ler algumas linhas desse livro dos amantes:

Voltei a ver os álamos dourados,


os álamos do caminho na margem
do Douro, entre San Polo e San Saturio,
por trás das muralhas velhas
de Sória (…).
Estes choupos do rio, que acompanham
com esse som das suas folhas secas
o som da água, quando sopra o vento,
têm nas suas cascas
iniciais gravadas de vários nomes
de apaixonados, números de datas.

Quando um adolescente traça com a ponta de uma navalha


umas iniciais na casca prateada de um álamo, reproduz, sem sabê-
lo, um gesto muito antigo. Já no século III a. C., Calímaco, o
bibliotecário de Alexandria, refere uma mensagem amorosa numa
árvore. Não é o único. Uma personagem de Vergílio imagina como a
casca, com os anos, se alargará e corroerá o seu nome e o dela: «E
gravar os meus amores nas jovens árvores; as árvores crescerão e,
com elas, crescerão vocês, meus amores.» Talvez o costume, ainda
vivo, de tatuar letras na pele de um tronco para conservar a
lembrança de alguém que viveu e amou tenha sido um dos
episódios mais precoces da escrita na Europa. Talvez nas margens
de um rio que corre e passa e soa, como dizia Machado, os antigos
gregos e romanos escrevessem os primeiros pensamentos e as
primeiras palavras de amor. Quem sabe quantas dessas árvores
acabaram por se converter em livros.

Escritores pobres, leitores ricos


9

O acesso aos livros no mundo romano era, sobretudo, uma


questão de contactos. Os antigos criaram a sua versão peculiar da
sociedade do conhecimento, baseada em quem conhecia quem.
A literatura antiga nunca chegou a criar um mercado nem uma
indústria tal como hoje os entendemos, e a engrenagem de
circulação de livros sempre funcionou graças a uma combinação de
amizades e copistas. Durante a época das bibliotecas privadas,
quando um indivíduo rico desejava um livro antigo, pedia-o
emprestado a um amigo — se é que algum amigo seu o tinha — e
mandava um empregado, às vezes um escravo próprio, outras
vezes o esforçado amanuense de alguma oficina, copiá-lo.
Chegava-se às novidades contemporâneas através do obséquio.
Naquele tempo, em que não havia editoras, quando um autor dava o
seu livro por terminado encomendava um determinado número de
cópias e começava a oferecê-las a torto e a direito. O destino da sua
obra dependia do perímetro e da importância do seu círculo de
conhecidos, colegas e clientes dispostos a lê-la, por afeto e
sobretudo por compromisso. Contam-nos que um rico orador
chamado Régulo mandou fazer mil cópias do assombroso texto que
tinha escrito sobre o seu filho morto — Plínio comenta
venenosamente que mais parecia um livro escrito por uma criança
do que sobre uma criança — e enviou-as aos seus conhecidos por
toda a Itália e pelas províncias. Para além disso, entrou em contacto
com vários decuriões das legiões romanas, pagando-lhes para que
escolhessem entre as suas tropas os soldados com melhor voz e
organizassem leituras públicas da obra — uma espécie de
apresentações — em diversas regiões do império. Promover e
difundir a literatura ficava a cargo do escritor — caso o pudesse
permitir, como Régulo — ou dos seus protetores aristocráticos —
quando era um forasteiro esfarrapado, como costumava acontecer.
Havia, claro, pessoas que desejavam ler um livro recém-
publicado mas não conheciam pessoalmente o escritor e, portanto,
não estavam nas suas listas de distribuição. Nesses casos, só
restava recorrer a alguém que estivesse no circuito, e encomendar
uma cópia do seu exemplar. Assim que o escritor começava a
«distribuir» uma nova obra, o livro já era considerado de domínio
público, e qualquer um podia reproduzi-lo. O verbo latino que hoje
traduzimos por «editar» — edere — tinha, na verdade, um
significado mais próximo de «donativo» ou «abandono». Implicava
deixar a obra à sua sorte. Não existia nada remotamente parecido
com os direitos de autor ou o copyright. Em toda a cadeia do livro,
só recebia um pagamento direto de tanto por linha quem realizava a
cópia (supondo que não fosse um escravo doméstico), tal como hoje
nos cobram por página quando tiramos fotocópias.
O doutor Johnson, grande ilustrado inglês, dizia que ninguém,
exceto um cepo, escreveu por outra razão que não fosse o dinheiro.
Não sabemos como eram os escritores antigos, mas todos eles
tinham noção de que não existia a mínima esperança de fazer
dinheiro através da venda de volumes. No século I, o humorista
Marcial queixava-se: «As pessoas só gostam das minhas páginas
quando são grátis.» Desde a sua chegada a Roma, o bilbitano,
natural de Calatayud, tinha comprovado na sua própria pele que a
profissão literária não era rentável, nem sequer para um autor de
sucesso. Conta que uma vez um desconhecido ricaço o abordou na
rua, apontando para ele com o dedo e com o olhar, como fazem
hoje os caçadores de selfies com os famosos. «Tu não és, sim, tu,
esse Marcial cujas maldades e piadas toda a gente conhece?»,
disse-lhe. E de seguida acrescentou: «E porque é que tens um
casaco tão gasto?», «Porque sou um mau escritor», respondeu
Marcial com uma intenção dissimulada que antecipava o futuro
humor trocista aragonês (o chamado humor somarda).
O que é que alguém como Cícero pretendia ao publicar os seus
discursos e ensaios? Expandir as suas ambições sociais e políticas,
aumentar a sua fama e a sua influência; fabricar uma imagem
pública à medida dos seus interesses; assegurar-se de que os seus
amigos — e inimigos — conheciam os seus sucessos. Os mecenas
que sustentavam economicamente os brilhantes escritores pobres
procuravam algo parecido: glória, brilho, adulação. Os livros
serviam, sobretudo, para criar ou consolidar o prestígio de certas
pessoas. A literatura circulava livre e voluntariamente, na qualidade
de presente ou de empréstimo pessoal, de umas mãos para as
outras, entre indivíduos interessados, ajudando a demarcar um
pequeno grupo de elite cultural, uma comunidade íntima de gente
rica onde se admitia, pelo seu talento, alguns protegidos de origem
humilde ou escrava. À mercê, sem relações poderosas, tanto os
leitores como os escritores enfrentavam uma difícil sobrevivência.
Após a origem forasteira e servil da cultura literária, tinham
começado a surgir timidamente alguns escritores autóctones, mas
com a condição de escreverem em prosa sobre assuntos
respeitáveis como história, guerra, direito, agricultura ou moral.
Cícero e César foram as duas figuras mais conhecidas nessa
primeira colheita republicana de autores romanos de famílias
abastadas. Face aos poetas escravos trazidos do mundo grego,
eles eram cidadãos que, para além do mais, escreviam. E faziam-no
sobre temas sérios. O estrangeiro não teria podido escrever sobre
leis ou tradições pátrias, mas também não estava bem visto que um
romano de família abastada dedicasse o seu tempo à poesia —
como muitas pessoas nos nossos tempos achariam um disparate
que o chefe de Estado escrevesse letras de canções pop.
Por isso, durante muito tempo, existiram duas literaturas
paralelas e contemporâneas. Por um lado, os versos que os
escravos ou libertos gregos compunham para agradarem aos seus
cultos protetores aristocráticos, e, por outro, a obra diletante —
sempre em prosa — dos cidadãos respeitáveis. «A poesia não está
num lugar de honra e se alguém se dedica a ela chamam-lhe
pedinte», escreveu Catão, o Velho. Desde então, os marionetistas,
músicos e artistas conservaram esta fama de gente de classe baixa,
de Caravaggio a Van Gogh; de Shakespeare e Cervantes a Genet.
Em Roma, os cidadãos de pleno direito podiam dedicar-se a
atividades artísticas e literárias, se assim o desejassem, sempre que
fossem ocasionais e, sobretudo, sem fins lucrativos. Pelo contrário,
pretender ganhar a vida com as letras era um desejo pouco
decoroso para as pessoas abastadas. Quando os conhecimentos se
misturavam com o lucro, ficavam imediatamente desprestigiados. Já
disse que até os ofícios intelectuais de maior sabedoria, como a
arquitetura, a medicina ou o ensino, eram próprios das classes
baixas. Os professores da antiga escola, na sua maioria escravos
ou libertos, tinham uma tarefa humilde e menosprezada. «Tinha
origens obscuras», comenta Tácito sobre um indivíduo — um novo-
rico — que tinha começado a sua carreira com esse ofício plebeu.
Os patrícios e aristocratas valorizavam o saber e a cultura, mas
desprezavam a docência. Verificava-se o paradoxo de ser honorável
aprender o que era ignóbil ensinar.
Quem nos diria que em tempos da grande revolução digital
voltaria a ganhar força a ideia aristocrática da cultura como
passatempo de entusiastas. O velho refrão soa outra vez, repetindo
que se escritores, dramaturgos, músicos, atores, cineastas querem
comer deviam procurar um ofício sério e deixar a arte para os
momentos livres. No novo enquadramento neoliberal e no mundo
em rede — curiosamente, como na Roma patrícia e esclavagista —,
reclama-se que o trabalho criativo seja gratuito.

10

Nesse universo de riqueza e alta sociedade onde a cultura


começou a enraizar-se, também havia mulheres que colecionavam
livros. Graças às cartas de Cícero conhecemos Caerellia, ávida
leitora e proprietária de uma biblioteca filosófica. Acontece que essa
rica dama patrícia conseguiu, de alguma forma — talvez recorrendo
ao suborno —, uma cópia pirata do tratado ciceroniano Sobre a
Finalidade do Bem e do Mal, antes de o autor pôr oficialmente o livro
em circulação. «Sem dúvida, Caerellia transborda de um aceso
entusiasmo pela filosofia», escreveu um irritado Cícero com um tom
sarcástico.
O caso desta leitora impaciente não foi uma exceção. Nas
famílias romanas de classe alta era frequente encontrar mulheres
muito cultas. No século II a. C., Cornélia, mãe dos Gracos, dirigia
pessoalmente os estudos dos seus filhos e preocupava-se em
escolher para eles os professores com melhor preparação. Para
além disso, era a anfitriã de umas reuniões literárias que
antecipavam o salão francês de Madame de Staël, onde se reuniam
os políticos e os escritores da época. Semprónia, mãe daquele
Brutus que assassinou César, amava a leitura, tanto em latim como
em grego. Cícero descreve a sua filha Túlia como doctissima. Uma
das várias esposas — não simultâneas — de Pompeu gostava
muito da literatura, da geografia e da música da lira. Para além
disso, como Caerellia, «estava presente com gosto nas discussões
filosóficas».
Os aristocratas romanos costumavam dar educação às suas
filhas. Em geral, não as levavam à escola, pois preferiam os
precetores privados em casa para manter a castidade das meninas
vigiada. Os antigos sempre se preocuparam com os perigos da rua
para as suas nobres crias. Num mundo onde a pederastia estava
presente no ar, todos os cuidados eram poucos. Por isso as famílias
nobres reservavam um escravo para escoltar os pequenos nos seus
trajetos quotidianos até à escola — chamavam-lhe «pedagogo»,
paedagogus, que originalmente significava apenas «acompanhante
da criança». Porém, a solução doméstica também continha os seus
perigos. As relações entre um célebre professor chamado Quinto
Cecílio Epirota e a filha do seu amo, a quem dava aulas,
despertaram um mar de murmúrios no século I a. C., e acabaram
com o exílio do liberto libertino.
As mulheres não podiam aceder aos últimos degraus do
conhecimento: a educação superior estava limitada aos homens.
Também não lhes permitiam, como aos rapazes, fazer um ano de
estudos em Atenas ou Rodes, o que seria a bolsa Erasmus daquele
tempo. As raparigas de família abastada não iam às aulas de
retórica, não viajavam até à Grécia para melhorar a língua, não
faziam turismo na Acrópole, nem saboreavam a liberdade longe dos
seus pais. Enquanto os seus irmãos estavam a admirar as estátuas
gregas e a desfrutar do amor grego, as adolescentes, a quem
casavam muito novas com homens já maduros, andavam à caça de
marido. Os antigos achavam que o casamento era para as mulheres
o que a guerra era para os homens: o cumprimento da sua autêntica
natureza.
Ao longo dos séculos encontramos marcas de um debate
acalorado sobre as vantagens e perigos de ensinar as letras às
raparigas. A vida noturna teve uma importância decisiva nesta
controvérsia. Os gregos deixavam as mulheres em casa e iam
sozinhos aos banquetes, onde eram bem acolhidos até de
madrugada por heteras contratadas. As romanas, pelo contrário,
iam a jantares fora das suas mansões, e por isso era importante
para os maridos que soubessem manter diálogos inteligentes com
os outros comensais. Por isso, nos lares aristocráticos romanos era
possível encontrar mulheres orgulhosas do seu talento, da sua
conversa e dos seus conhecimentos.
Encontramos um reflexo ácido e caricaturado daquelas damas
cultas nas sátiras de Juvenal. No final do século I, o poeta cómico
lançou-se a escrever uns versos que, segundo ele próprio dizia,
nasciam da indignação. Era um humorista refilão e reacionário
invadido pela nostalgia de um passado inexistente. Não é por acaso
que conservamos tantos manuscritos medievais das suas Sátiras,
pois os monges adoravam as suas surpreendentes denúncias da
depravação humana — um material insuperável para sermões
edificantes. Num dos seus poemas, Juvenal avisa os homens dos
tormentos do casamento. Apresenta um catálogo de «maldades»
femininas: a sua luxúria com os gladiadores, as suas infidelidades
com estrangeiros piolhosos — «serás pai de um etíope, dentro de
pouco tempo um herdeiro negro que nunca poderás ver à luz do dia
encherá o teu testamento» —, os seus gastos extravagantes, a sua
crueldade para com os escravos, as suas superstições, o seu
descaramento, o seu mau humor, os ciúmes… e a cultura («A
mulher que, ao começar o jantar, cita Vergílio e o coloca na balança
com Homero, é uma chata. Os mestres retiram-se, os professores
ficam derrotados, todos se calam, nem o advogado nem o
linguarudo abrirão a boca. Detesto a sabichona que revê e
memoriza a gramática, mantendo sempre as regras e a norma da
linguagem, e que sabe versos que eu ignoro e corrige à saloia da
sua amiga expressões com as quais nenhum marido se preocupa»).
A explosão misógina desta sátira é tão virulenta que alguns
especialistas não sabiam bem se Juvenal era realmente um
retrógrado vociferante ou se dava voz aos argumentos mais
extremistas para ridicularizá-los. É quase impossível julgar a
seriedade ou a ironia de um texto à distância de vinte séculos. Em
todo o caso, o humor de Juvenal não teria triunfado se não
houvesse ingredientes verídicos por trás da troça. Não há dúvida de
que, no início da nossa era, tinha nascido o prazer da leitura em
algumas mulheres romanas. E algumas delas, apaixonadas pela
literatura e pela linguagem, eram capazes de pôr os seus maridos
em apuros. Pela primeira vez houve nas famílias nobres mães e
filhas ilustradas que conversavam, liam, conheciam a liberdade dos
livro e sabiam utilizar o poder indestrutível — «como um deus ou
como um diamante» — da palavra.

11
Quem é que aprendia a ler e tinha livros na civilização romana?
Nada demonstra a existência de algo remotamente parecido à
educação universal na Antiguidade. Só na época contemporânea,
há bem pouco tempo, alguns países conseguiram uma alfabetização
generalizada, e isso não aconteceu de forma espontânea, já que foi
necessário um grande esforço coletivo. Os romanos nunca tentaram
universalizar as letras, nem criar uma escola pública. A educação
era voluntária, não obrigatória. E cara. É difícil reconstruir o grau de
alfabetização da época, que oscila entre aqueles que mal
conseguiam escrever o seu nome aos que devoravam a complexa
prosa de Tácito. As habilidades de escrita e leitura não eram
uniformes entre homens e mulheres, nem entre regiões rurais e
urbanas. Os especialistas são, em geral, cautelosos e vagos nas
suas conjeturas. O historiador W. V. Harris atreve-se a apresentar
valores precisos para a população de Pompeia, que ficou sepultada
pela lava do Vesúvio no século I e onde foi possível estudar
detalhadamente os milhares de grafítis e pinturas nas paredes —
mensagens de gente comum, como o anúncio do arrendamento de
uma casa, declarações de amor, objetos perdidos, insultos e várias
obscenidades parecidas às que encontramos nas portas das nossas
casas de banho públicas, tarifas de prostitutas, um adepto que
incentiva o seu gladiador preferido… Segundo Harris, naquela
cidade teriam estado em condições de ler e escrever pelo menos
60% de homens e 20% das mulheres; no total, não mais do que dois
ou três mil pompeianos. Embora os valores nos possam parecer
baixos, revelam um nível de educação nunca antes alcançado, e um
acesso à cultura mais aberto do que em qualquer época anterior.
A vida das crianças de classe privilegiada sofria uma reviravolta
quando faziam sete anos. A essa idade abandonavam o conforto da
sua casa, onde a sua mãe as educava e algum escravo grego lhes
ensinava a sua língua — como a precetora estrangeira dos
romances oitocentistas. Acabada a época da aprendizagem em
casa, tinham de enfrentar uma experiência dura, até violenta. Até
aos onze ou doze anos iam sofrer a didática obsessiva e monótona
da escola primária. Insistia-se maçadoramente em cada fase — as
letras, as sílabas, os textos —, sem tentar agarrar a curiosidade dos
estudantes, com uma absoluta indiferença para com a psicologia
infantil. Como na Grécia, o método era passivo: a memória e a
imitação eram os talentos mais valorizados.
Para além disso, o professor não costumava tornar a
aprendizagem agradável. Para todos os escritores antigos, a
lembrança da escola está associada à violência e ao terror. No
século IV, o poeta Ausónio enviou uma carta ao seu neto para
incentivá-lo a começar sem medo a sua nova vida de colegial. «Ver
um professor não é uma coisa assim tão assustadora», dizia-lhe.
«Embora tenha uma voz desagradável e ameace com ásperas
repreensões franzindo a testa, vais habituar-te a ele. Não te
assustes se na escola ecoam muitos golpes de chicote. Não fiques
perturbado com a gritaria quando o cabo da vara vibrar e os vossos
banquinhos se mexerem pelo tremor e o medo.» Suponho que estas
palavras supostamente tranquilizadoras provocariam mais de um
pesadelo ao pobre menino. Agostinho de Hipona, que nunca
esqueceu os seus sofrimentos de colegial, escreveu aos setenta e
dois anos: «Quem não recuaria horrorizado e preferiria perecer se
lhe dessem a escolher entre a morte ou voltar à infância!»
O ofício dos professores primários denominava-se em latim
litterator, ou seja, «o que ensina as letras». Aqueles pobres
coitados, em geral severos, desabridos e mal pagos — não nos
devemos surpreender por saber que muitos tiveram vários
empregos —, legaram o seu nome à «literatura», outra profissão
propensa às penúrias. Os estabelecimentos onde davam as suas
aulas também não eram propriamente monumentais: lugares de
aluguer barato, às vezes simples pórticos separados dos barulhos
da rua e dos curiosos por finas cortinas de tecido. Os alunos
sentavam-se em humildes tamboretes sem encosto e escreviam
sobre os seus próprios joelhos, pois não havia mesas. Horácio
descreve-os a caminho da escola «carregando no seu braço
esquerdo a caixinha com as pedras para fazer as contas e a
tabuinha para escrever». Esse foi o conteúdo das primeiras
mochilas infantis.
As crianças precisavam de materiais baratos de escrita para as
suas tarefas escolares, os ditados, as práticas de caligrafia, os
rascunhos. Como o papiro era uma mercadoria luxuosa, as
tabuinhas enceradas foram, desde os romanos, o suporte da escrita
quotidiana e íntima da infância. Nelas aprendiam a ler e nelas
expressavam os seus sucessos, os seus amores, as suas
recordações. Em geral eram simples peças lisas de madeira ou de
metal com uma ligeira parte esvaziada, onde recebiam um
revestimento de cera de abelhas misturada com resina. Sobre essa
camada mole traçavam-se as letras com um estilete afiado de ferro
ou osso. Pelo outro extremo, o buril acabava numa espécie de
espátula com a qual alisar a cera e assim poder reutilizar a tabuinha
ou apagar um erro. O suporte permitia uma reciclagem infinita,
simplesmente trocada a camada de cera. No jazigo de Pompeia
apareceram, quase intactos, dois retratos de mulheres pensativas
com a ponta de um stilus a tocar levemente na sua boca, como
poderia ter feito um intelectual do século XX com os seus óculos, o
seu cigarro e a sua barba esmeradamente descuidada. No mais
conhecido dos dois — que, fantasiando com uma imagem
inexistente, batizámos de «a poeta Safo» —, uma mulher jovem
medita com o estilete apoiado nos lábios e as ceras seguradas
numa mão, enquanto a sua mente cria um verso. Cada vez que
mordiscamos a ponta de uma caneta ou de um lápis, concentrados,
com o olhar perdido, estamos a perpetuar, sem sermos conscientes,
um repertório de gestos tão antigos como a escrita.
A mão da jovem Safo pompeiana segura um bloco de cinco ou
seis tabuinhas. Era habitual perfurar-se pequenos orifícios num
canto das tabuinhas para depois atá-las com argolas, cordões ou
correias. Às vezes, fabricavam-se dípticos ou polípticos unidos por
dobradiças. Graças a um grande depósito de material encontrado
em Vindolanda, ao pé da muralha de Adriano na Grã-Bretanha,
também conhecemos a existência de objetos do tamanho de um
caderno, confecionados com placas de madeira comuns ou tiras de
bétula juntas como um acordeão. A madeira extraía-se das árvores
na primavera, quando a seiva circula por elas e a madeira é mais
flexível para se poder dobrar, como os modernos folhetos
desdobráveis. Nestes conjuntos de tabuinhas encadernadas como
páginas de madeira — em latim, códices —, encontramos o elo
entre o passado mais remoto da escrita e o presente. Foram as
precursoras do livro tal como o conhecemos hoje.
As tabuinhas eram muito comuns e tinham usos muito diversos.
Numerosas certidões de nascimento e documentos de alforria de
escravos — duas maneiras de iniciar uma nova vida — foram
escritos nelas. Também serviram para as anotações pessoais, a
contabilidade doméstica e os apontamentos comerciais de
pequenos negócios, o arquivo, as cartas e as primeiras versões dos
poemas que ainda lemos hoje em dia. No seu manual erótico A Arte
de Amar, Ovídio diz aos amantes clandestinos que devem apagar
as frases comprometedoras com muito cuidado antes de voltarem a
usar uma tabuinha. De acordo com o poeta, muitas infidelidades
descobriam-se por descuidos deste tipo — as ceras antigas eram,
aparentemente, tão delatoras como os telemóveis de hoje. O
assunto provocou, sem dúvida, bastantes desgostos nos nossos
antepassados da era pré-digital, já que o popular Kama Sutra, de
Vatsyayana, também dedica um amplo espaço a instruir as
mulheres na arte de ocultar as cartas incriminatórias das suas
aventuras amorosas.
Às vezes, as tabuinhas levavam uma camada de gesso para se
escrever nelas com tinta usando cálamo, uma cana rígida que
terminava numa ponta fendida com um corte no meio, como o bico
das canetas de tinta permanente. Desta forma, era mais fácil para
uma mão pouco especialista desenhar as letras com riscos e linhas
simples. O poeta Pérsio descreve uma criança em idade escolar a
resmungar e a ficar desesperada com cada grande gota de tinta que
caía da ponta do cálamo e salpicava os seus exercícios de
caligrafia. Essa cena repetiu-se nas aulas durante muitos séculos,
até um passado muito recente. A minha mãe ainda se lembra da
paisagem dos seus cadernos escolares borrifados com aquelas
lágrimas negras.
Eu, pelo contrário, pertenço à era da caneta. Uma invenção
genial do jornalista húngaro László Bíró. Contam que László se
lembrou desta ideia básica — fabricar um novo instrumento de
escrita com uma bola de metal dura dentro de um buraco —
enquanto observava umas crianças a jogarem à bola. Apercebeu-se
de que a bola deixava rasto ao rodar depois de ter passado por uma
poça de água. Imagino aquele jogo de futebol numa cidade chuvosa
— os gritos, os risos, o dia cinzento, o chão salpicado de espelhos,
as marcas húmidas da bola — como um novo alfabeto recém-
inventado. É daí que vêm as inesquecíveis Bic Cristal hexagonais
da minha infância, com a sua tampa azul e o seu buraquinho lateral.
Regressam à minha memória as longas tardes aborrecidas nas
quais as usávamos como sarabatanas para lançar bagos de arroz
contra a nuca dos colegas, e eu apontava — com a falta de jeito
adolescente — tentando chamar a atenção de alguém que talvez
me atraísse.

12

A estética gore e o fascínio pela violência extrema, que tão


contemporâneos nos parecem, já tinham adeptos entre os romanos.
A mitologia grega possui o seu repertório de selvajarias —
violações, olhos arrancados, fígados humanos devorados por
abutres e pessoas esfoladas com ira —, mas no topo do género
reinam, sem dúvida, as crónicas de mártires cristãos, com as suas
descrições explícitas de torturas, desmembramentos, mutilações e
sangue, muito sangue.
Um dos grandes mestres do sadismo e da crueldade nasceu na
Hispânia em meados do século IV, provavelmente em César
Augusta — ou seja, a sua infância deve ter decorrido entre os
mesmos rios e ventos do que a minha. Aurélio Prudêncio Clemente
recebeu dos seus pais um nome pacífico e ocupou diversos cargos
pouco aventureiros como funcionário imperial, mas detrás dessa
fachada rotineira escondia-se o bisavô romano de Tarantino ou
Dario Argento. Já perto dos cinquenta anos, este hispânico calmo
sentiu um forte arrebatamento criativo, deixou as suas
responsabilidades oficiais e escreveu vinte mil versos febris em sete
anos. Entre outros livros, publicou uma coleção de poemas com o
nome grego, Peristephanon, «Sobre as coroas dos mártires», que
relata, com um grande luxo de detalhes e estilizadas coreografias do
tormento, o suplício de catorze cristãos a quem torturaram para que
renegassem a sua fé.
São Cassiano foi vítima de um desses cruéis martírios que tanto
comoviam Prudêncio. A crónica da sua morte é um dos textos mais
terroríficos da literatura latina e, inesperadamente, também um
documento extraordinário para conhecer — de uma perspetiva
macabra — a vida quotidiana da escola antiga e os utensílios de
escrita dos nossos antepassados romanos. Prudêncio conta que
Cassiano era professor primário, e que não era muito atencioso para
com os seus alunos. Dirigia as tarefas dos mais pequenos,
ensinava-lhes a escrever através de ditados, e costumava infligir-
lhes duros castigos. Açoitados diariamente, os seus alunos
albergaram uma perigosa mistura de medo, violência e
ressentimento, como esses meninos louros de olhar gélido que nos
deixam com pele de galinha em O Laço Branco, de Haneke.
Eram os anos obscuros das perseguições religiosas. Quando se
desencadeou a enésima onda de repressão contra os cristãos,
detiveram Cassiano por se negar a prestar culto aos deuses
pagãos. Segundo Prudêncio, as autoridades decidiram entregá-lo,
sem manto e com as mãos atadas às costas, aos rapazinhos da sua
turma, para que fossem eles os seus verdugos. A narração, até este
momento bastante previsível, fica de repente obscura. A morte e a
crueldade têm aqui rosto infantil: «Todos deixam escapar com ânsia
o fel e o ódio que tinham ido armazenando em forma de ira
silenciosa. Lançam e partem, contra a cara do seu professor, frágeis
quadros e o ponteiro salta ao chocar contra a sua testa. Batem-lhe
com as tabuinhas de cera da escrita, e as páginas partidas e
húmidas ficam vermelhas de sangue. Outros fazem vibrar nas suas
mãos estiletes e buris de ferro com cuja ponta, traçando sulcos, se
escreve na cera. Duzentas mãos perfuram, ao mesmo tempo, o seu
corpo; uns penetram em alguma víscera, outros arrancam-lhe a
pele.»
Prudêncio quer abalar o leitor impressionável para que este
fortaleça a sua fé. Utiliza com habilidade os recursos do terror:
prolonga a cena, demora-se nos detalhes, nos movimentos, nos
sons e nos impactos. Converte os objetos quotidianos em armas,
explora a dor que podem causar. Revela-nos que os buris utilizados
para desenhar as palavras na cera estavam afiados como facas.
Essa escrita com punhais simboliza a violência que imperava na
escola romana das letras e do sangue. Assim, o poema converte-se,
paradoxalmente, numa negríssima alegação contra os castigos
físicos infligidos às crianças. Todos os alunos parecem ter suportado
os sarcasmos e os golpes do professor, e o terrível relato da sua
vingança obriga-nos a contemplar a transformação das crianças em
verdugos, dos inocentes em assassinos. É um espetáculo
inquietante, doentio: «De que te queixas? — diz com crueldade um
rapaz ao professor caído em desgraça. — Tu próprio nos entregaste
o buril e armaste as nossas mãos com ele. Agora devolvemos-te os
milhares de sinais que recebemos durante o ensino. Não devias
ficar irritado por escrevermos. Pedimos tantas vezes intervalos que
tu nos negavas, avarento professor dos nossos esforços! Vá, exerce
a tua autoridade, tens direito de castigar o discípulo mais
preguiçoso.» O final do poema é absolutamente macabro. As
crianças divertem-se a prolongar o tormento do seu professor,
enquanto o calor da vida escapa pouco a pouco pelos cortes do
corpo perfurado.
Embora a intenção de Prudêncio fosse denunciar os crimes
contra os cristãos, no seu atroz relato também são divulgadas as
trevas da vida escolar. Outro hispânico, nascido em meados do
século I em Calagurris — a atual Calahorra —, foi um dos primeiros
escritores a questionar os métodos brutais na educação. Nas suas
Instituições Oratórias, Quintiliano afirmava que o desejo de aprender
só depende da vontade, «onde não cabe violência». Opunha-se aos
castigos humilhantes na escola — «apropriados apenas para
escravos», dizia, demonstrando que os seus impulsos humanitários
tinham exceções e brechas. Talvez recordasse a sua própria
infância sofrida quando escrevia que as crianças que recebem
muitas sovas sofrem, com frequência, medo, dor e vergonha, uma
vergonha tão profunda que quebra a felicidade infantil. Por isso,
acrescenta, sendo a infância uma idade desprotegida, ninguém
devia ter um poder ilimitado sobre os seres mais indefesos.
A arrepiante história de Cassiano parece demonstrar que os
açoites e golpes nunca desapareceram das aulas romanas, mas
também detetamos zonas de luz no tétrico panorama. Por volta do
início da nossa era, surgiram defensores de uma pedagogia mais
compassiva e divertida. Esta corrente preferia as recompensas aos
castigos e esforçava-se por despertar nas crianças a sede de
aprender. Sabemos que alguns professores começaram a fabricar
brinquedos educativos para os seus alunos e, para premiarem as
suas primeiras tentativas na leitura, ofereciam-lhes bolinhos e
bolachas com a forma das letras que estavam a aprender. Tais
excessos de indulgência provocaram a reação imediata dos
defensores da velha tradição. Uma personagem do Satíricon de
Petrónio arremete contra os costumes depravados e sentimentais
da sua época — o reinado de Nero, no século I —, e anuncia a
decadência iminente de Roma se — imaginem! — as crianças se
divertirem a estudar. As batalhas entre a velha e a nova escola são
muito antigas.

Uma jovem família

13

Na verdade, se observarmos as nossas origens, descobrimos


que os leitores são uma família muito jovem, uma meteórica
novidade. Há cerca de 3800 milhões de anos no planeta Terra,
certas moléculas uniram-se para formar umas estruturas
particularmente grandes e emaranhadas chamadas organismos
vivos. Animais muito parecidos aos humanos modernos apareceram
pela primeira vez há 2,5 milhões de anos. Há 300 000 anos, os
nossos antepassados domesticaram o fogo. Há cerca de 100 000
anos, a espécie humana conquistou a palavra. Entre os anos 3500 e
3000 a. C., sob o sol abrasador da Mesopotâmia, alguns génios
sumérios anónimos traçaram sobre o barro os primeiros sinais que,
ultrapassando as barreiras temporais e espaciais da voz,
conseguiram deixar uma marca duradoura da linguagem. Só no
século XX, mais de cinco milénios depois, é que a escrita se
converteu numa habilidade estendida, ao alcance da maioria da
população — um longo percurso; uma aquisição muito recente.
Tivemos de esperar até às últimas décadas do século passado,
diante do limiar do século XXI, para que as pessoas de origens muito
humildes, pertencentes às subculturas das grandes cidades,
imersas num mundo de gangs e tribos urbanas, aprendessem o
alfabeto e se apropriassem dele para dar rédea solta aos seus
protestos, ao seu inconformismo e aos seus desencantos. Os
grafítis contemporâneos foram um dos acontecimentos mais
inovadores que, em muitos séculos, o alfabeto romano
experimentou, ícone imprevisto de décadas de duro trabalho para
estender a alfabetização. Pela primeira vez na nossa História, um
grupo de pessoas muito jovens — crianças e adolescentes em idade
escolar, muitos deles nascidos em guetos e periferias —, tiveram os
meios e a segurança em si próprios para inventarem as suas
próprias expressões gráficas, criando uma arte original baseada em
gatafunhos e letras. Jean-Michel Basquiat, um jovem negro de
raízes haitianas, vivia como vagabundo antes de começar a expor,
nos anos oitenta do século passado, os seus grafítis em galerias de
arte. As letras invadem como cataratas muitas das suas telas, talvez
como autoafirmação dentro de um sistema que mantinha os
marginais afastados. Escrevia e depois riscava algumas palavras
para que se vissem mais; dizia que o mero facto de estarem
vedadas nos obriga a lê-las com mais atenção.
Curiosamente, os grafítis — ou writing, como lhe chamavam os
implicados — estenderam-se pelos edifícios, pelas plataformas do
metro, pelos muros e painéis publicitários de Nova Iorque, Los
Angeles e Chicago, e depois pelos de Amesterdão, Madrid, Paris,
Londres e Berlim, nos mesmos anos em que tinha lugar a revolução
informática nas traseiras de Silicon Valley. Enquanto os novos
especialistas em tecnologia exploravam as fronteiras do
ciberespaço, a juventude urbana que vivia nos bairros marginais
conhecia pela primeira vez o prazer de desenhar letras em paredes
e vagões, e a beleza do ato físico de escrever. Nos mesmos anos
em que os teclados começavam a revolucionar os gestos da escrita,
a cultura juvenil alternativa descobriu com paixão a caligrafia, que
até então tinha sido um deleite minoritário. Fascinados com o poder
de dar nome às coisas, com as possibilidades criativas que as letras
têm e com o sentido do risco na escrita — é um ato perigoso,
sempre à beira da fuga —, os adolescentes adotaram o alfabeto
manuscrito como uma nova forma de se expressarem, de utilizarem
o tempo livre e de merecerem o respeito dos seus iguais. O facto de
esta apropriação ser tão atual só se explica pela juventude da
escrita em relação ao longo trajeto da humanidade — a escrita
constitui apenas o último pestanejar da nossa espécie, o palpitar
mais recente de um velho coração.
Vladimir Nabokov tinha razão ao censurar em Fogo Pálido a
nossa falta de assombro diante desta prodigiosa inovação:
«Estamos absurdamente habituados ao milagre de alguns sinais
escritos capazes de conterem uma imaginária imortal, evoluções do
pensamento, novos mundos com pessoas viventes que falam,
choram e se riem.» E lança uma pergunta inquietante: «E se um dia
acordássemos, todos nós, e descobríssemos que somos
absolutamente incapazes de ler?» Seria um regresso a um mundo
não tão longínquo, anterior ao milagre das vozes desenhadas e das
palavras silenciosas.
14

A expansão da leitura provocou um novo equilíbrio dos sentidos.


Até então, a linguagem abria caminho através dos ouvidos. Mas,
depois da descoberta das letras, parte da comunicação emigrou
para o olhar. E os leitores começaram de repente a sofrer problemas
de visão. Pelas queixas de alguns escritores romanos, descobrimos
que o uso quotidiano das tabuinhas enceradas cansava e
«escurecia» a vista. Na superfície de cera, os traços eram simples
fendas sem contraste — trabalhosos sulcos de palavras. O poeta
Marcial mencionou nos seus versos «os olhos esmorecidos» de
quem lê as tabuinhas, e Quintiliano recomenda a todas as pessoas
de vista frágil lerem apenas livros escritos com tinta na superfície do
papiro ou do pergaminho, negro sobre pardo. É assim que
descobrimos que o suporte mais barato e acessível ao alcance dos
nossos antepassados deixava sequelas.
Naquele tempo não havia forma de corrigir as dioptrias. Por isso,
a vista cansada de muitos leitores e estudiosos do passado estava
com frequência condenada a mergulhar lentamente numa neblina
sem regresso ou a desfazer-se numa tormenta de manchas onde as
cores e a luz fugiam. Os óculos ainda não tinham sido inventados.
Conta-se que o imperador Nero olhava através de uma enorme
esmeralda para poder ver desde o camarote os detalhes das suas
amadas lutas entre gladiadores. É possível que não visse bem ao
longe e utilizasse as suas grandes joias trabalhadas como a lente de
um telescópio. Em todo o caso, as pedras preciosas de tamanho
gigantesco estavam ao alcance de imperadores, mas não de
intelectuais com pouca coisa na bolsa e teias de aranha nos bolsos
da túnica.
Muito séculos depois, em 1267, Roger Bacon demonstrou
cientificamente que a letra pequena se podia ver de forma mais
clara e aumentada usando lentes esmeriladas de uma forma
precisa. Devido a esta descoberta, as fábricas de Murano
começaram a fazer experiências com o vidro, convertendo-se no
berço dos óculos. Depois de descobrirem as lentes, era preciso criar
armações confortáveis, leves e que não deixassem os óculos
escorregar. Embora algumas dessas primeiras soluções fossem
chamadas de «aperta-narizes», os novos artefactos converteram-se
rapidamente num apetecível símbolo de prestígio social.
Numa cena de O Nome da Rosa, Guilherme de Baskerville,
perante um maravilhado Adso, tira um par de óculos da bolsa que
tem pendurada do seu casacão à altura do peito e coloca-os no
rosto. No século XIV, quando a história decorre, ainda eram uma
raridade. Os monges da abadia, que nunca antes tinham visto nada
parecido, observam com curiosidade — mas sem se atreverem a
fazer nenhuma pergunta — a estranha prótese de vidro. O jovem
Adso descreve-a como «um gancho, construído de tal forma que se
podia montar no nariz de um homem como o ginete ao lombo do
seu cavalo. Por ambos os lados, o gancho continuava em duas
argolas ovaladas de metal que, situadas em frente de cada olho,
tinham engastadas duas amêndoas de vidro, grossas como fundos
de garrafa». Guilherme explica ao seu atónito ajudante que os anos
endurecem os olhos e que, sem esse prodigioso instrumento, muitos
sábios, ao fazerem cinquenta primaveras, morreriam para a leitura e
a escrita. Os dois dão graças ao Senhor por alguém ter descoberto
e fabricado esses fabulosos discos capazes de ressuscitarem a
visão.
Os leitores ricos da Antiguidade ainda não podiam comprar os
inexistentes óculos, mas tinham à sua disposição os rolos mais
luxuosos do mercado com os quais proteger e cuidar dos seus
olhos. A maior parte dos livros eram elaborados por encomenda, e a
qualidade do produto artesanal dependia, como em todas as
épocas, daquilo que o comprador estava disposto a gastar. Para
começar, havia diferentes qualidades de papiros. Como Plínio
documenta, o mais fino procedia de tiras cortadas da polpa interior
do junco egípcio. Se o colecionador tivesse a bolsa bem cheia, a
caligrafia do copista era maior e mais bela, e o livro ler-se-ia com
mais facilidade e perduraria mais tempo.
Imaginemos por um momento os rolos mais belos, mais
requintados, mais exclusivos. As margens das folhas de papiro,
alisadas laboriosamente com pedra-pomes, decoravam-se com uma
faixa de cor. Para reforçar a consistência dos livros, trabalhavam-se
pequenos paus chamados «umbigos», de marfim ou madeiras
valiosas, às vezes cobertos de folha de ouro. Os remates do umbigo
eram uns punhos muito decorados. Os rolos da Tora judia utilizados
nas sinagogas mantêm vivo o aspeto daqueles primeiros livros. Para
os judeus, os cilindros de madeira com os seus puxadores —
«árvores da vida» — são imprescindíveis pela proibição ritual de
tocar com a mão no pergaminho ou nas letras dos livros sagrados.
Entre os gregos e romanos, acariciar o texto nunca foi um sacrilégio,
e os umbigos ajudavam simplesmente a desdobrar e a enrolar o rolo
com mais facilidade.
Os artesãos inventaram outros caros acessórios para bibliófilos
caprichosos, como caixas de viagem ou estojos de pele para
preservar o papiro das inclemências. Nos exemplares de luxo, esse
estojo era tingido de púrpura, a cor do poder e da riqueza. Sabemos
também que existia um caro unguento — o óleo de cedro — com o
qual untar o papiro com o objetivo de afugentar as traças que
devoravam as palavras.
Só os aristocratas e patrícios romanos é que podiam gabar-se de
terem bibliotecas tão faustosas. Exibiam assim o orgulho da sua
fortuna, como os que hoje se pavoneiam a conduzir um Rolls-
Royce. Os poetas, sábios e filósofos, salvo exceções, não
pertenciam a esses círculos privilegiados. Alguns deles olhavam de
soslaio para os belíssimos livros que estavam fora do seu alcance e,
resmungando entredentes, escreviam como vingança agudas
sátiras contra os colecionadores incultos. Chegou até nós um
desses rancorosos libelos, intitulado Contra um Ignorante que
Comprava Muitos Livros: «Quem não obtém qualquer lucro com os
livros, o que faz ao comprá-los a não ser dar trabalho aos ratos,
refúgio às traças e golpes aos escravos que não cuidam
suficientemente deles? Poderias emprestá-los a quem tiraria mais
proveito, já que não sabes o que fazer com eles. Mas és como o cão
que, estendido na cavalariça, não come a cevada nem deixa que o
cavalo a coma, ele que poderia fazê-lo.» Esta obra-prima da
irritação e do insulto pinta com ira a paisagem de escassez anterior
à imprensa, quando ler era, demasiadas vezes, um sinal de um
privilégio não merecido.

15

Durante muito tempo os livros circularam de mão em mão dentro


dos círculos fechados das amizades e das clientelas mais
exclusivas. Na Roma republicana quem lia eram as elites e os seus
satélites. Passaram vários séculos nos quais, à falta de bibliotecas
públicas na urbe, só era possível apreciar um livro se se possuía um
grande património ou se se tinha habilidade para a adulação.
Por volta do século I a. C. observamos pela primeira vez a
existência de leitores por prazer, sem grande fortuna nem
pretensões sociais. Esta fresta abriu-se graças às livrarias.
Sabemos que já tinha havido comércio de livros na Grécia, mas
quase não possuímos dados para reconstruir a imagem daquelas
primeiras bancas de livros. Sobre o mundo romano, pelo contrário,
chegaram-nos inúmeros detalhes (nomes, moradas, gestos, preços
e até piadas).
O jovem poeta Catulo — sempre foi jovem, pois morreu aos trinta
anos — conta um revelador episódio de amizade e livrarias
ambientado em meados do século I a. C. No final de um frio mês de
dezembro, durante as festas saturnais, recebeu um presente em
tom de brincadeira do seu amigo Licínio Calvo: uma antologia
poética dos autores que ambos consideravam serem os mais
nefastos do momento. «Grandes deuses, que horrível e condenado
livrinho mandaste ao teu Catulo para que morra de uma vez»,
resmunga Catulo. E de seguida trama a sua vingança: «Esta
maldade não te vai sair barata, engraçadinho, porque assim que
amanhecer vou correr às arcas dos livreiros e comprarei os piores
venenos literários para te devolver estes suplícios. Entretanto,
voltem para onde saíram em má hora, calamidade dos nossos
tempos, péssimos poetas.»
Através destes versos brincalhões descobrimos que naquela
época já era um costume habitual oferecer livros adquiridos no
mercado pelas saturnais. Aliás, o vingativo Catulo pode confiar em
que, no amanhecer do dia seguinte, encontrará abertas em Roma
várias livrarias onde comprar o pior e o mais mortífero da produção
poética contemporânea para se vingar da malícia do seu amigo.
Estas livrarias madrugadoras eram, sobretudo, oficinas de cópia
por encomenda. Iam a esses estabelecimentos principalmente
pessoas de classe baixa que não tinham sequer um mau escravo a
quem encomendar a tarefa. Chegavam com um original debaixo do
braço e ordenavam um determinado número de cópias manuscritas,
mais ou menos luxuosas consoante as suas possibilidades
económicas. Os empregados da oficina, na sua maioria escravos,
trabalhavam depressa com o cálamo. O bilbitano Marcial, que foi o
grande defensor antigo da poesia breve, afirmava que uma cópia do
seu segundo livro de epigramas — de trinta páginas na minha
edição impressa — se fazia esperar apenas uma hora. Argumentava
assim as múltiplas vantagens da sua literatura rápida e ecológica:
«Em primeiro lugar, consumo menos papiro; em segundo, o copista
copia os meus versos em apenas uma hora, e não é escravo das
minhas bagatelas durante muito tempo; em terceiro lugar, embora o
livro seja mau de início ao fim, só dará cabo do juízo durante um
momentinho.»
A mesma palavra, librarius, designava o copista e o livreiro,
porque se tratava do mesmo ofício. Antes da invenção da imprensa,
os livros eram reproduzidos um a um, letra a letra, palavra por
palavra. O preço do material e do trabalho eram constantes.
Produzir de uma só vez, como fazemos hoje, uma tiragem de
milhares de exemplares não teria significado qualquer poupança.
Antes pelo contrário, elaborar muitos livros sem um comprador
garantido teria colocado o negócio em risco de falência. Os romanos
teriam arqueado uma sobrancelha incrédula diante dos nossos
conceitos atuais de público potencial e ampliação de mercado.
Porém, o episódio de Catulo dá a entender que se podia ir às
livrarias em busca de algumas obras já prontas para a sua compra,
sem necessidade de levar o original — provavelmente, tratar-se-ia
de um punhado de novidades e de certos clássicos imprescindíveis.
Os livreiros começavam a assumir um certo grau de risco
empresarial, oferecendo livros prêt-à-porter de autores em quem
confiavam.
Marcial foi o primeiro escritor que se gabou de uma relação de
amizade com o grémio dos livreiros. Provavelmente, ele próprio, que
protestava sempre da sovinice dos seus mecenas, abastecer-se-ia
de livros nas lojas. Vários dos seus moderníssimos poemas contêm
publicidade encoberta, talvez paga: «No bairro do Argileto, em frente
do fórum de César, há uma livraria cuja porta está totalmente cheia
de rótulos, de maneira que podes ler rapidamente os nomes de
todos os poetas. Procura-me ali. O Atrecto — é assim que se chama
o dono da livraria — dar-te-á da primeira ou da segunda estante um
Marcial polido com pedra-pomes e decorado com púrpura, por cinco
denários.»
A julgar pelo preço de cinco denários que o poeta menciona para
o seu fraco livrinho — um denário era o salário de uma jornada de
trabalho —, Atrecto e os escribas da sua oficina elaboravam
produtos de luxo, embora suponhamos que também fabricassem
livros baratos para orçamentos mais reduzidos.
Juntamente com Atrecto, Marcial deixa cair nos seus versos os
nomes de outros três livreiros: Trífon, Segundo e Quinto Pólio
Valeriano. Dedicará ao último umas palavras trocistas de gratidão
por manter à venda os seus primeiros livros: «Todas as ninharias
que escrevi quando era jovem, leitor, pedi-las-ás a Quinto Pólio
Valeriano, graças ao qual as minhas tontices não perecem.» E
publicita o negócio de Segundo, com a morada incluída: «Para que
não ignores onde estou à venda e não andes a vaguear de um lado
para o outro pela cidade, segue as minhas instruções: procura o
Segundo, o liberto do culto lucense, atrás do Templo da Paz e do
Fórum de Palas.» Numa sociedade que não reconhecia os direitos
de autor, Marcial não recebia qualquer percentagem pela venda dos
seus livros nessas livrarias — nem em nenhuma outra —, mas
talvez cobrasse por anunciá-las dentro dos seus poemas, o que
converteria o nosso poeta no precursor romano do product
placement das séries de televisão atuais. Para além disso, é
provável que gostasse de rondar por essas lojas nas suas horas de
lazer e que quisesse imortalizá-las nos seus epigramas.
Provavelmente, sentir-se-ia mais à vontade a comentar os últimos
episódios literários na companhia daqueles inteligentes empresários
libertos do que nas mansões dos desdenhosos aristocratas que o
faziam entrar pela porta de serviço.
Os poemas de Marcial ajudam-nos a reconstruir como seriam
aquelas primeiras livrarias: estabelecimentos com letreiros nas
portas e filas de nichos ou estantes lá dentro. Por analogia com
algumas lojas pompeianas preservadas pela lava vulcânica, imagino
uma loja de livros percorrida por um balcão maciço e com
variegados frescos mitológicos nas paredes; uma porta traseira
comunicaria a sala onde o dono atendia o público com a oficina
onde os escravos copistas, encurvados hora após hora sobre as
páginas de papiro ou pergaminhos, a suportarem com estoicismo as
dores nas costas e as cãibras nos braços, trabalhavam a um ritmo
despiedado.
Através dos livreiros, os versos de Marcial começaram a chegar
às mãos de leitores desconhecidos, fora dos círculos dos seus
mecenas, e o poeta estava encantado com essa nova
promiscuidade literária. Contudo, outros escritores viviam com medo
e pudor a abertura descontrolada a um público cada vez mais amplo
e sem rosto. Horácio confessou a sua timidez numa epístola onde
dialoga com o seu próprio livro. Refila com a sua obra mais recente
como se tivesse vida própria ou, para sermos mais exatos, como se
fosse um jovem efebo com muita vontade de sair à rua e de se
exibir em frente do público. A discussão aquece e o poeta manda à
cara da sua vaidosa criatura que está desejoso de chegar à livraria
dos sócios para se prostituir: «Odeias os ferrolhos e carimbos que
agradam ao púdico, queixas-te de ser mostrado a poucos e elogias,
apesar da tua educação, os lugares públicos. “O que é que fiz,
pobre de mim?”, dirás, quando, saciado, a tua amante se cansar.
Quando, manuseado pelo vulgo, te começares a sujar.»
Por trás destas piadas em código erótico, palpita uma mudança
histórica do acesso à leitura. Entre os séculos I a. C e I d. C., nasceu
no Império Romano um novo destinatário, o leitor anónimo. Hoje
poderia ser triste publicar um livro que só vai ser lido por familiares e
amigos; pelo contrário, para os autores romanos era a situação mais
habitual, segura e confortável. Abolir essas fronteiras, aceitar que
qualquer um podia espreitar aos seus pensamentos e emoções em
troca de um punhado de denários, foi uma experiência vivida como
uma traumática nudez por muitos escritores.
A epístola de Horácio anuncia o fim do monopólio aristocrático
sobre os livros. Para além disso, expressa uma profunda
desconfiança para com um público de leitores estranhos — e até
plebeus — alheios às suas relações, longínquos no espaço e no
tempo. O autor acaba por ameaçar o descarado livrinho com um
destino humilhante: «Servirás de pasto em silêncio às desajeitadas
traças ou serás alcançado pela velhice num pequeno canto a
ensinar as letras às crianças, ou serás enviado num embrulho a
Ilerda (a atual Lérida).» A não ser que o desavergonhado exemplar
se comporte com decência, ficando em casa e entre pessoas de
confiança, sofrerá a insuportável vexação de se converter em texto
escolar ou, pior ainda, no ultraje de pertencer à biblioteca de um
rude leitor hispânico.
Face à de Horácio, destaca-se a atitude aberta e irreverente de
Marcial, nascido ainda mais além de Ilerda, na celtibera Bilbilis (hoje
Calatayud) e, portanto, desprovido de preconceitos contra os
provincianos. Começava uma nova época em que já não era preciso
cortejar os ricos para aceder aos livros. Marcial e os livreiros
aplaudiam esta ampliação do campo de batalha.

Livreiro: ofício de risco

16

Helene era filha de emigrantes. O seu pai, um humilde camiseiro,


conseguia bilhetes para os teatros de Filadélfia em troca das peças
de roupa que vendia. Graças a esse comércio, em plena Grande
Depressão americana, Helene podia refastelar-se nos gastos
lugares e, quando as luzes se apagavam na sala para iluminarem o
palco, o seu coração batia depressa, como um cavalo desenfreado
na escuridão do teatro. Com vinte anos e uma bolsa escassa,
instalou-se em Manhattan para inaugurar a sua vida de escritora.
Durante décadas alojou-se em quartos imundos com móveis
desconjuntados e cozinhas cheias de baratas, sem poder prever
como é que pagaria o aluguer de um mês para o outro. Vivia com
dificuldades como guionista de televisão enquanto criava, uma atrás
de outra, dezenas de peças que ninguém queria produzir.
A sua melhor obra, que foi crescendo e ganhando forma
lentamente durante os vinte anos seguintes, nasceu da forma mais
inocente e imprevista. Helene tropeçou com um minúsculo anúncio
de uma livraria londrina especializada em livros esgotados. No
outono de 1949, enviou o seu primeiro pedido para o número 84 de
Charing Cross Road. Os livros, acessíveis graças ao câmbio de
moeda, começaram a viajar através do oceano, rumo às estantes
dos seus sucessivos apartamentos, fabricadas com caixas de
laranjas.
Desde o início, Helene enviou para a livraria algo mais do que
frias listas e o dinheiro dos pagamentos correspondentes. As suas
cartas explicavam o prazer de desembalar o livro recém-chegado e
acariciar as páginas de uma bela cor creme, suaves ao tato; a sua
cómica deceção se a obra não estava à altura das expectativas
prévias; as suas impressões ao ler os textos; as suas dificuldades
económicas; as suas manias — «adoro esses livros em segunda
mão que se abrem na página que o seu anterior proprietário lia com
mais frequência». O tom, no início entorpecido, das respostas que o
livreiro, chamado Frank, enviava, foi-se tornando mais descontraído
com os meses e as cartas. Em dezembro chegou a Charing Cross
Road uma encomenda natalícia de Helene para os empregados da
livraria. Continha presunto, latas de conserva e outros produtos que,
no duro pós-guerra inglês, só se podiam conseguir no mercado
negro. Na primavera, ela pediu a Frank, por favor, uma pequena
antologia de poetas «que saibam falar do amor sem choramingar»
para lê-la ao ar livre, no Central Park.
O extraordinário dessas cartas é como deixam entrever o que
não contam. Frank nunca o diz, mas não há dúvida de que faz os
possíveis, percorrendo grandes distâncias e registando cada canto
de remotas bibliotecas privadas à venda, à procura dos livros mais
belos para Helene. E ela responde com novas encomendas de
oferta, com novas confidências humorísticas sobre si própria, com
novos pedidos urgentes. Uma emoção sem palavras e um desejo
silencioso infiltram-se nesta correspondência comercial que nem
sequer é privada, porque Frank tira uma fotocópia de cada carta
para o arquivo do negócio. Passam os anos e os livros. Frank,
casado, contempla como as suas duas filhas deixam para trás a
infância e a adolescência. Helene, sempre sem um tostão, continua
a sobreviver graças à escrita alimentícia dos guiões televisivos. Os
dois trocam presentes, encomendas e palavras, cada vez mais
espaçados. Depuraram uma linguagem própria para se
comunicarem, limpa de sentimentalismos, hesitante, cheia de frases
engenhosas para tirar importância ao seu amor omitido.
Helene dizia sempre que ia a Londres — e à livraria — assim
que tivesse dinheiro para os bilhetes, mas as eternas penúrias da
escrita, um percalço dentário e os gastos com as suas incessantes
mudanças atrasavam, verão após verão, o encontro. Com frases
sempre cheias de pudor, Frank lamentava que, entre tantos turistas
americanos fascinados com os Beatles, Helene nunca chegasse.
Em 1960 Frank morreu de repente devido a uma peritonite aguda. A
sua viúva escreveu umas linhas à americana: «Não me importo de
reconhecer que às vezes tive muitos ciúmes de ti.» Helene reuniu
todas as cartas e publicou a correspondência dos dois em forma de
livro. Então conheceu o êxito fulgurante que durante anos de
trabalho duro sempre lhe tinha virado as costas. 84, Charing Cross
Road converteu-se de imediato num romance de culto, adaptado ao
cinema e ao teatro. Depois de décadas a escrever peças que
ninguém estava disposto a produzir, Helene Hanff triunfou nos
palcos com uma peça que nunca pretendeu sê-lo. Graças à
publicação do livro, pôde finalmente ir a Londres — pela primeira
vez, mas demasiado tarde: Frank estava morto e a livraria Marks &
Co. já tinha desaparecido.
Só metade da história da escritora e do seu livreiro-confidente
está contida na sua correspondência. A outra metade palpita nos
livros que ele procurou para ela, porque recomendar e entregar a
outro uma leitura escolhida é um poderoso gesto de aproximação,
de comunicação, de intimidade.
Os livros não perderam totalmente esse primitivo valor que
tiveram em Roma, a subtil capacidade de traçar um mapa dos
afetos e das amizades. Quando umas páginas nos comovem, a
primeira pessoa a quem falaremos sobre elas será um ente querido.
Ao oferecer um romance ou um livro de poemas a alguém com
quem nos preocupamos, sabemos que a sua opinião sobre o texto
se refletirá sobre nós. Se um amigo, uma amada ou um amante
coloca um livro nas nossas mãos, rastreamos os seus gostos e as
suas ideias no texto, sentimo-nos intrigados ou visados pelas linhas
sublinhadas, iniciamos uma conversa pessoal com as palavras
escritas, abrimo-nos com maior intensidade ao seu mistério.
Procuramos no seu oceano de letras uma mensagem numa garrafa
para nós.
Quando mal se conheciam, o meu pai ofereceu à minha mãe um
exemplar de Trilce, os poemas de juventude de César Vallejo. Talvez
nada do que aconteceu depois teria sido possível sem a emoção
que esses versos despertaram. Certas leituras são uma forma de
derrubar barreiras, certas leituras recomendam-nos o desconhecido
que as ama. Não tenho qualquer parentesco com o prodigioso
César Vallejo, mas enxertei-o na minha árvore genealógica. Tal
como os meus remotos bisavós, o poeta foi necessário para que eu
existisse.
Apesar do incentivo do marketing, dos blogues e das críticas,
devemos quase sempre as coisas mais belas que lemos a um ente
querido — ou a um livreiro convertido em amigo. Os livros
continuam a unir-nos e a criar laços de forma misteriosa.

17

As livrarias desaparecem rápido, os seus vestígios no tempo são


mais ténues do que as marcas das grandes bibliotecas. No seu
imprescindível ensaio — e rota de viagens bibliófilas —, Jorge
Carrión escreve que o diálogo entre as coleções privadas e as
coleções públicas, entre a livraria e a biblioteca, é tão velho como a
civilização; mas a balança histórica pende sempre para a segunda.
Enquanto o bibliotecário acumula, guarda, no máximo empresta
temporariamente a mercadoria, o livreiro adquire para se livrar do
adquirido, compra e vende, põe em circulação. A sua área é o
trânsito, a passagem. Se as bibliotecas estão atadas ao poder, aos
governos municipais, aos estados e aos seus exércitos, as livrarias
vibram com o nervo do presente, são líquidas, temporárias. E,
acrescentaria eu, perigosas.
Já desde o tempo de Marcial que os livreiros têm um ofício de
risco. O poeta pôde presenciar em Roma a execução de
Hermógenes de Tarso, um historiador que incomodou o imperador
Domiciano com certas alusões contidas na sua obra. Para maior
castigo, também sofreram a pena de morte os copistas e livreiros
que puseram o volume maldito em circulação. Suetónio explicou a
condenação destes últimos com umas palavras que não precisam
de tradução: libbrariis cruci fixis.
Com esses crucificados, Domiciano inaugurou um triste cômputo
de opressões. Desde então, inúmeros censores aplicaram o mesmo
método do imperador, castigando responsabilidades indiretas. O
sucesso do mecanismo repressor baseia-se precisamente em
estender a ameaça de represálias, multas ou prisão a todos os elos
da cadeia de difusão (desde os amanuenses ou impressores de
antigamente ao administrador de um fórum ou fornecedor da
Internet). Amedrontar esses agentes ajuda a silenciar os textos
incómodos, pois é pouco provável que todos os envolvidos estejam
dispostos a correr os mesmos riscos que o autor, mais
visceralmente comprometido com a publicação da sua própria obra.
Portanto, as ameaças aos livreiros são parte essencial desta guerra
sem trégua contra os livros livres.
Não sabemos quase nada sobre os livreiros a quem o imperador
condenou por copiarem e venderem a história de Hermógenes, da
qual talvez nem sequer gostassem. Só os salva do esquecimento
uma frase veloz de Suetónio, num parágrafo sobre o terror que
Domiciano instaurou. Aparecem e desaparecem de seguida,
deixando-nos um laivo de curiosidade insatisfeita. São nomeados
pela primeira vez quando morrem, e fica tudo por aí. Que história
teriam contado eles? Por que dificuldades passaram, e que alegrias
conheceram na sua profissão? Foram vítimas de um castigo
arbitrário ou apoiavam o espírito subversivo do autor do texto que
lhes custou a vida?
Um apaixonante livro de memórias dá voz aos livreiros de outra
época incerta, caótica e autoritária: a Espanha do século XIX que
saía do reinado absolutista de Fernando VII. O autor, George
Borrow, a quem os madrilenos chamavam «don Jorgito el inglés»,
veio para Espanha enviado pela British and Foreign Bible Society
com a missão de divulgar os livros sagrados na sua versão
anglicana. Borrow percorreu a geografia da península por caminhos
empoeirados e quase clandestinos para ir depositando os seus
exemplares da Bíblia nas principais livrarias de capitais e aldeias.
Entre uma paisagem variegada de vendeiros, ciganos, bruxas,
lavradores, arrieiros, soldados, contrabandistas, bandoleiros,
toureiros, milícias carlistas e funcionários demissionários, retrata o
famélico mundo editorial que conheceu. Ao publicar, em 1942, o
relato das suas viagens peregrinas, The Bible in Spain, afirmou sem
rodeios: «A procura de obras literárias de qualquer género é, em
Espanha, miseravelmente reduzida.»
A obra revela um impagável leque de livreiros que falam na
primeira pessoa, teimosos, queixosos, maltratados — e, em algum
caso, inquietantes. O livreiro de Valladolid, «homem simples, de
coração bondoso», só se podia dedicar à venda de livros em
combinação com outros negócios heterogéneos, já que a livraria
não lhe dava para viver. Borrow conseguiu que um intrépido livreiro
de León aceitasse vender as suas bíblias anglicanas e promovê-las.
Mas os leoneses, «furibundos carlistas com raras exceções», deram
início a um processo perante o tribunal eclesiástico contra o seu
heterodoxo convizinho. O livreiro, longe de se acobardar, aceitou o
desafio e chegou até a fixar um anúncio na própria porta da
catedral. Em Santiago de Compostela, Borrow entabulou amizade
com um veterano do ofício, que o levava a percorrer os arredores da
cidade durante os suaves entardeceres de verão. Após várias
caminhadas, atreveu-se a falar de coração aberto e a confiar-lhe as
perseguições sofridas: «Nós, os livreiros espanhóis, somos todos
liberais. Gostamos muito da nossa profissão e todos sofremos, mais
ou menos, devido a ela. Muitos de nós fomos enforcados nos
tempos de terror, por vendermos traduções inofensivas do francês
ou do inglês. Eu tive de fugir de Santiago e de me refugiar na parte
mais agreste da Galiza. Se não fosse pelos bons amigos, não
estaria aqui para contá-lo; porém, custou-me muito dinheiro resolver
o assunto. Enquanto estive escondido, os funcionários da Cúria
Eclesiástica ficaram a cargo da livraria e diziam à minha mulher que
era necessário queimar-me por ter vendido livros maus.»
O mais obscuro de todos — um Sweeney Todd ibérico — foi o
livreiro-barbeiro louco de Vigo, que, segundo contam a Borrow, tanto
podia tentar vender um livro a alguém como cortar-lhe o pescoço
sob o pretexto de lhe fazer a barba. Não fica claro de que é que
dependia a atitude atenciosa ou homicida do bondoso homem.
Pergunto-me se a sua minguante clientela arriscava o pescoço ao
opinar sobre literatura.
Há quase mil e oitocentos anos de distância entre Domiciano e
Fernando VII, mas a história dos seus livreiros respira uma
atmosfera partilhada. Em épocas tirânicas, as livrarias costumam
ser lugares de acesso ao que é proibido e, portanto, levantam
suspeitas. Em épocas de fobia à influência estrangeira, são portos
em terra firme, passagens fronteiriças difíceis de vigiar. As palavras
forasteiras, as palavras repudiadas ou incómodas encontram aí o
seu esconderijo. A minha mãe ainda tem a lembrança intacta das
traseiras de certas livrarias durante a ditadura, do ritual de entrada,
do medo e da alegria rebelde e infantil de ser admitida no
esconderijo, e, por fim, de tocar na mercadoria perigosa: livros
exilados, ensaios revoltosos, romances russos, literatura
experimental, títulos que os censores tinham qualificado como
obscenos. Comprava-se um livro e, para além disso, havia a
necessidade de escondê-lo sempre; comprava-se silêncio e perigo;
pagava-se por serem batizados como proscritos.
Lembro-me de uma manhã dos anos noventa do século
passado, com o meu pai em Madrid. Tínhamos entrado num
alfarrabista dos quais ele tanto gostava (reinos do caos e da
desordem). Podia passar horas ali. Ele chamava-lhe bisbilhotar ou
então farejar, mas mais parecia que estava a cavar numa mina.
Afundava os braços até às axilas para chegar aos livros que jaziam
na base das pilhas, apalpava, tenteava, provocava quedas. Se se
colocasse debaixo do cone de luz de um candeeiro, era possível ver
que à sua volta flutuava uma auréola de pó. Era feliz a remexer nos
montes, nas caixas, nas estantes colonizadas por três filas de
lombadas. O esforço físico da busca fazia parte do prazer
consumista. Naquela manhã dos anos noventa em Madrid, o meu
pai desenterrou uma curiosa pepita. Aparentemente, um Dom
Quixote. O fidalgo magro na capa de tecido, o primeiro capítulo, a
adarga antiga, a panela com mais vaca do que carneiro, os duelos e
as tristezas aos sábados. Mas em vez do segundo capítulo
começava outra obra, O Capital. O meu pai sorriu com uma
plenitude pouco habitual. Iluminou-se. A dupla de Cervantes e Marx
não era um erro exótico de impressão, mas sim um livro clandestino,
uma lembrança viva da juventude do meu pai, um fantasma
chegado dos mesmos anos, ambientes, sussurros e escamoteações
que ele tinha vivido. Centenas de lembranças mínimas inundaram-
no por surpresa. Aquele estranho enxerto — Karl incrustado em
Miguel — significava muito para ele, talvez porque despertou a
nostalgia das suas leituras mascaradas. Eu também fui sobrevoada
pela memória e a ameaça desses anos dos quais não tenho
lembranças, nos quais não nasci — os meus pais não se permitiram
ter filhos enquanto Franco fosse vivo.

18

Pouco tempo antes de escrever este capítulo, veio parar às


minhas mãos Rien où poser sa tête, de Françoise Frenkel, o
absorvente relato autobiográfico de uma livreira judia expropriada e
nómada. Fiquei imediatamente cativada pelas primeiras palavras da
obra: «É dever dos sobreviventes testemunhar para que os mortos
não sejam esquecidos nem os obscuros sacrifícios sejam
desconhecidos. Oxalá estas páginas possam inspirar um
pensamento piedoso para com aqueles que foram silenciados para
sempre, exaustos durante o caminho ou assassinados.»
O livro resume a sua história de desenraizamento. Françoise
nasceu na Polónia, mas os seus passos vagabundos levaram-na a
Paris, onde aprendeu o ofício de livreira e as suas subtilezas
(«Conseguia desvendar um carácter, um estado de espírito ou um
pensamento só pelo modo quase terno como alguém pegava num
volume, pela delicadeza com que passava as suas páginas, por
como as lia piedosamente ou as folheava depressa, sem prestar
atenção, pondo-o de seguida outra vez em cima da mesa, às vezes
tão descuidadamente que chegava a estragar-se essa parte tão
sensível que são os cantos. Discretamente, aventurava-me a
colocar na mão do leitor o livro que eu considerava o mais
adequado para ele, com o fim de lhe evitar o embaraço de ser
influenciado por uma recomendação. Se lhe parecia do seu agrado,
eu sentia-me exultante»).
Anos mais tarde, em 1921, fundou uma livraria francesa em
Berlim, La Maison du Livre. Nela acolhia uma clientela cosmopolita e
organizava conferências de escritores que estavam de passagem
pela Alemanha (Gide, Maurois, Colette). A colónia de russos
brancos estabelecidos em Charlottenburg era o público principal do
negócio de Françoise. Nabokov, que vivia no mesmo bairro,
provavelmente passou ali tristes tardes crepusculares de inverno.
Foram anos efervescentes para a livreira.
Em 1935, com os nazis ao leme do país, as dificuldades
começaram.
Primeiro foi a obrigação de se submeter a um serviço especial
encarregado de avaliar os livros de importação. Às vezes aparecia a
polícia e confiscava alguns volumes e jornais franceses que
estavam na sua lista negra. O número de publicações francesas
autorizadas era cada vez mais limitado, e a mera difusão de obras
proibidas conduzia os livreiros diretamente ao campo de
concentração — mais uma vez, a estratégia de Domiciano.
Depois da aprovação das leis raciais de Nuremberga, o cerco
começou a estreitar-se. Françoise sofreu um interrogatório da
Gestapo. Na escuridão, da cama, ouvia as rondas noturnas dos
camisas pardas. Desafiantes, cantavam hinos que glorificavam a
força, a guerra e o ódio.
Durante a Noite dos Cristais, Berlim crepitou à luz dos archotes e
das sinagogas incendiadas. Ao amanhecer, Françoise, sentada nos
degraus da sua livraria, viu dois indivíduos armados com compridas
barras de ferro aproximarem-se. Paravam em frente de certas
montras e partiam-nas. Os vidros saltavam em pedaços. Entravam
na montra pelo afiado buraco que tinham aberto para pontapear e
pisar a mercadoria. Em frente de La Maison du Livre, consultaram a
sua lista. «Não está», disseram, e continuaram o seu caminho. A
precária proteção da Embaixada Francesa tinha evitado de
momento o assalto da loja. Françoise pensou que, se isso tivesse
acontecido, naquela noite, na sua livraria, teria defendido cada livro
com todas as suas forças, não só pelo apego ao seu ofício, mas
também pela repugnância, «por uma nostalgia infinita da morte».
Foi durante a primavera de 1939 que se rendeu perante a
evidência: em Berlim já não havia lugar para o seu pequeno oásis
de livros franceses. O mais sensato seria fugir. Passou a sua última
noite na Alemanha a velar as estantes repletas, o pequeno
perímetro onde os seus clientes iam para esquecerem, para se
consolarem, para respirarem livremente. Já em Paris ficou a saber
que as coleções de livros e discos, bem como os móveis, tinham
sido confiscados pelo governo alemão por motivos raciais. Tinha
perdido tudo. A guerra começou. A monstruosa termiteira humana
que Françoise tinha visto nascer na Alemanha ameaçava estender-
se pela Europa. Ela, sem casa, quase sem bagagem, sem nenhum
lugar onde descansar, era apenas uma gota na ondulação oceânica
de fugitivos europeus. As suas memórias relatam as suas peripécias
e a sua vida ameaçada até atravessar clandestinamente a fronteira
suíça.
É pouco provável que Hitler tivesse entrado alguma vez pela
porta de La Maison du Livre. Contudo, a literatura também tinha sido
um refúgio para ele. Devido aos seus problemas pulmonares na
adolescência, converteu-se num leitor compulsivo. Segundo os seus
amigos de juventude, frequentava livrarias e bibliotecas que faziam
empréstimos. Recordavam-no rodeado de pilhas de livros,
sobretudo tratados de História e sagas de heróis alemães. Após a
sua morte, deixou uma biblioteca com mais de mil e quinhentos
volumes. O Mein Kampf converteu-o no autor do grande best-seller
em alemão dos anos trinta do século passado. Nessa década, o seu
livro foi o mais vendido depois da Bíblia. Cobrou liquidações
milionárias pelas vendas e, inebriado pelo sucesso e pelo dinheiro,
conseguiu apagar a sua imagem de fanfarrão de cervejaria. Após o
seu fracasso como golpista, a escrita devolveu-lhe a autoestima.
Desde 1925, ano de publicação do primeiro volume de A Minha
Luta, preencheu nas suas declarações de impostos o quadradinho
correspondente à profissão de «escritor» — a liderança de massas,
a intimidação e o genocídio eram naquela altura atividades não
remuneradas. Quando a guerra acabou, calcula-se que tinham sido
distribuídos dez milhões de exemplares da obra, traduzida para
dezasseis línguas. Desde que, em 2015, o livro entrou em domínio
público, venderam-se mais de cem mil exemplares na Alemanha. Os
responsáveis pelas sucessivas edições reconhecem: «Os números
angustiam-nos.»
Em 1920 — quase ao mesmo tempo em que Françoise se
lançava à sua aventura berlinense, e enquanto Hitler pronunciava
com os seus característicos espalhafatos os primeiros discursos
multitudinários —, Mao Tsé-Tung abriu uma livraria em Changsha. O
negócio funcionou tão bem que chegou a ter seis empregados
contratados — essa precoce aventura capitalista foi tão
surpreendentemente rentável que durante anos financiou a sua
incipiente carreira revolucionária. Uns tempos antes tinha trabalhado
numa biblioteca universitária onde era recordado como um leitor
voraz. Quarenta e seis anos mais tarde, com uma inexplicável
brutalidade, impulsionaria a Revolução Cultural, que deixou um
rasto de livros queimados e de intelectuais submetidos a
humilhantes sessões de autocrítica, presos ou assassinados. Como
escreve Jorge Carrión, aqueles que conceberam os maiores
sistemas de controlo, repressão e execução do mundo
contemporâneo, aqueles que demonstraram ser os mais eficientes
censores de livros, eram também estudiosos da cultura, escritores,
grandes leitores.
Embora as livrarias pareçam espaços serenos e afastados do
mundo trepidante, nas suas prateleiras palpitam as lutas de cada
século.

19

Há três anos, o Heraldo de Aragón encomendou-me um artigo


para a secção cultural de um suplemento comemorativo. Decidi
escrever sobre livrarias; sobre a sua silenciosa irradiação, sobre os
campos magnéticos que criam nas ruas e nos bairros onde fazem
ninho. O meu ponto de partida era uma reflexão do livreiro Paco
Puche no seu Memoria de librería: «Não se pode medir o efeito que
uma livraria tem na cidade que a acolhe, nem a energia que
transmite às suas ruas, aos seus habitantes. Sem dúvida, não
bastam números de clientes e vendas, nem valores de negócios,
porque a influência da livraria na cidade é subtil, secreta,
incompreensível.»
Entrevistei cinco livreiros de duas cidades — herdeiros daqueles
que Borrow conheceu. Escolhi-os por motivos íntimos, porque
aprendi a ler com todos eles, em diferentes épocas da minha vida.
Desde a infância que me divirto a entrar nestas lojas-refúgios e a
encontrar os livreiros colocados como sentinelas entre montanhas
de livros que folhear, que farejar, que acariciar, livros arrumados e
desarrumados, livros triunfadores ou órfãos deteriorados, feitos com
delicado artesanato ou acartonados filhos da rentabilidade.
Montanheira de prateleiras, respiro sempre fundo quando observo
essas cordilheiras de papel e pó. Embora pareçam estar a abarrotar,
as livrarias ampliam o espaço.
Foi apaixonante perguntar, ouvir e gatafunhar as páginas de um
caderno com a minha escrita nervosa — folheio-o neste momento:
setas e parênteses retos nas margens, auréolas de uma chávena de
chá sobre as páginas, sublinhados, cantos dobrados e os meus
riscos raivosos. Aí diz que Chema, livreiro desse pequeno torreão
encantado que é a Anónima, me comentou que o movia o apoio às
causas perdidas. É impossível resistir ao filão literário desse
romantismo empedernido. A ironia e a paixão, juntas ou separadas,
foram os registos mais frequentes nas vozes dos meus cinco
entrevistados. Tempos difíceis, claro. Alguns ainda se lembram de
como o negócio das fotocopiadoras os prejudicou; outros lamentam-
se das feridas abertas pela venda na Internet. Risco altíssimo,
repetiam, recordando projetos pessoais e belos que fracassaram.
Que complicado é hoje em dia ter um êxito empresarial como o de
Mao Tsé-Tung, quando criou seis postos de trabalho na sua livraria
e pôde dedicar-se a planear sem pressa a demolição do capitalismo.
Na floresta misteriosa e orgiástica da sua Librería Antígona, Julia
e Pepito disseram sentir-se médicos de família a receitar o
medicamento das leituras — podemos esperar de qualquer um
deles, brincalhões e acratas, a prescrição de um livro recôndito ou a
proibição de um aplaudido. «Conselheiro» era uma palavra
recorrente na boca de Pablo, da mítica Librería París, com a sua
atmosfera de barco pilotado por curtidos e joviais marinheiros. A
coincidência pareceu-me chamativa e levou-me a pensar nas
peculiares habilidades que este ofício milenar requer; gerir
farmácias de livros; compreender os gostos, as opiniões e
tendências dos leitores, entender as razões da sua admiração, do
seu entusiasmo, da sua alegria ou do seu descontentamento a
propósito desta ou daquela obra. Ou seja, penetrar no feudo dos
caprichos e obsessões individuais; e subir a persiana dia após dia
para um trabalho de longos horários, guias de remessa, transportes
e costas doridas, com frequência idealizado. George Orwell, que foi
ajudante em part-time numa livraria entre 1934 e 1936, comentou
nos seus Bookshop Memories que, se nunca trabalhámos numa,
facilmente a representaremos como uma espécie de paraíso onde
velhinhos veneráveis rondam eternamente entre volumes
encadernados com pele de vitela. Mas, na verdade, os clientes não
eram tão excêntricos como Eric Blair — o verdadeiro nome de
Orwell — teria desejado, e o escritor rangia os dentes no seu cargo
ao ver como os títulos que ele amava elanguesciam sem
encontrarem casa. Devemos sublinhar que os seus amigos evocam
Eric como um vendedor altivo e arisco. Parece que lhe faltou
criatividade para construir uma personagem carismática que
tutelasse com graça o seu reino de papel. Talvez não tenha
entendido que o livreiro é um fingidor, o ilusionista de um teatro
mágico.
Diante da ampla montra de Los Portadores de Sueños, que
deixava entrar cascatas de luz para o seu espaço de paz e palavras,
Eva e Félix falaram-me do esforço das livrarias para manterem vivas
as tertúlias artísticas e literárias dos antigos cafés. O desejo de que
aconteçam coisas nelas (o acaso do encontro, a possibilidade dos
reencontros, exposições, planos, efervescências, ideias que
constroem um habitat cultural), rituais nos quais se integram tanto
os tímidos como os que são detentores da palavra exuberante. A
vocação dos nossos livreiros preparou o terreno para o nascimento
de editoras, o auge de ilustradores, a ebulição de escritores.
Quando um refúgio como Los Portadores de Sueños fecha as suas
portas, sentimos uma solidão estranhamente desagradável.
Eu sei que vivo num território de clima áspero e livrarias
acolhedoras, um lugar afortunado para a tribo incorrigível e
reincidente dos leitores que precisam de deixar o tempo passar
entre livros bem escolhidos, a percorrer, a acariciar, a perguntar, à
caça de descobertas. Quem sabe se foi a nortada — que surge nos
nossos invernos e nos açoita, faz as árvores ranger, nos despenteia,
nos rouba a verticalidade e nos lança terra para os olhos,
acostumando-nos a lidar com o invisível — o que fez de nós, no
refúgio das nossas casas, uma das comunidades mais leitoras de
Espanha.
Terminado o aprovisionamento de materiais, quando o artigo já
parecia estar resolvido, descobri de repente um recanto inquietante,
uma curva esquecida, a sombra de outro artigo ainda por escrever.
Aconteceu por acaso, como chega tudo o que depois parece
inevitável. Estava a conversar com o Paco na Librería Cálamo, sem
tomar notas, sem gravador, de forma relaxada, nos pequenos
gestos de encerramento — leve pigarrear, colocação da tampa da
caneta. No seu jardim suspenso de livros e laços de papel
enjaulados, Paco recordava a inauguração da Cálamo há trinta
anos, aquela vontade de participar na vida da cidade através dos
livros, e o medo. Graças a ele descobri que nós também tivemos as
nossas noites dos cristais.
Sempre que evoca a Transição Espanhola, a minha mãe mete
uma mão no peito. É o sublinhado mímico das palavras que usa
sempre para descrever essa etapa da sua juventude: «anos de
enfarte». O que ninguém me tinha contado é que os livreiros
sofreram na linha da frente a angústia dessa taquicardia histórica.
Durante longos meses — o apogeu durou de 1976 à primavera de
1977 —, livrarias de Madrid, Barcelona, Saragoça, Valência,
Pamplona, Tenerife, Córdova, Tolosa, Getxo, Valladolid, entre outras
cidades, foram o alvo de uma série de atentados que fazem lembrar
a atmosfera dos últimos dias berlinenses de Françoise Frenkel. Na
verdade, vários destes assaltos foram reivindicados por um grupo
que se denominava «Comando Adolfo Hitler». Nos seus
comunicados, justificavam as suas ações pela presença de livros
marxistas, liberais e de esquerda nas livrarias. «Uma livraria
atacada de duas em duas semanas», anuncia uma manchete da
imprensa da época. Mais de duzentos estabelecimentos sofreram
sabotagem, e alguns foram vítimas de múltiplos atentados — como
a Librería Pórtico de Saragoça, por exemplo. Os procedimentos de
agressão eram variados: envio de cartas anónimas, ameaças
verbais, chamadas telefónicas a anunciar a explosão de um
artefacto, incêndios provocados, rajadas de metralhadora, tiros de
revólver, lançamento de latas de tinta e colocação de cargas
explosivas, quando não utilizavam excremento para espalhá-lo nas
montras.
A Librería Pórtico ficava na esquina da Rua Baltasar Gracián.
Numa noite de novembro de 1976 explodiu ali um potente artefacto.
A blindagem de aço que havia nas portas e montras do
estabelecimento desfez-se em pedaços, e as grossas chapas
metálicas, convertidas em pedaços de metralha, explodiram em
todas as direções. Os impactos arranharam os alpendres de pedra
que contornavam a praça. Era o quinto atentado em poucos meses.
Não houve detidos. O livreiro José Alcrudo declarou à imprensa:
«Eu só vendo livros. Por isso penso que estes atentados não são
contra mim, embora seja eu quem os sofra, mas sim contra a
cultura. E se não se tomarem medidas claras vamos ter de acabar
por fechar, porque sabemos que não há defesa nem blindagens
possíveis contra as bombas.»
A frágil livraria sobreviveu à violência. Anos mais tarde, eu
brincaria às escondidas pelos seus sinuosos ilhéus de livros, a ouvir
— sem saber quem era — Charlie Parker enquanto o meu pai, com
as mangas arregaçadas até aos cotovelos, praticava a sua paixão
pela mineração livreira ou mantinha longas conversas, cheias de
meandros, com José Alcrudo. Eu, então uma menina, ouvia aquelas
conversas lentas, fluviais, estranhas e indecifráveis como conjuros.
Parecia-me que falar era o objetivo da existência adulta.
As livrarias sempre foram um refúgio cercado. Ainda o são. Os
livreiros definem-se como médicos sem bata, mas não é de
descartar que nos maus tempos precisem de levar colete à prova de
bala para o trabalho. Quando Salman Rushdie publicou em 1988 a
sua obra satírica Os Versículos Satânicos, desencadeou-se uma
acelerada espiral de censura e violência que pela primeira vez teve
um alcance global. Um ministro da Índia acendeu o rastilho ao
condenar a obra por ser blasfema. Uma semana mais tarde,
milhares de fotografias das passagens consideradas mais ofensivas
começaram a circular nos centros de estudos islâmicos. Em janeiro
de 1989, as televisões mostraram imagens de muçulmanos a
queimarem exemplares na rua. Os incidentes espalharam-se por
todo o mundo, e em poucas semanas o autor recebeu ameaças de
morte na sua casa londrina. Uma turbamulta assaltou o Centro de
Informação Americana em Islamabad, onde cinco pessoas
morreram devido aos disparos enquanto a multidão gritava:
«Rushdie, és um homem morto.» Em fevereiro, o aiatola Khomeini
decidiu acabar com as irreverências do livro através de uma fátua
que incitava a executar o autor e todos aqueles que estivessem
relacionados com a edição e a difusão do livro o mais depressa
possível. Um engenho explosivo estourou numa livraria de Berkeley,
e em Londres e na Austrália outros estabelecimentos foram
atacados com bombas incendiárias. O tradutor do livro para
japonês, Hitoshi Igarashi, foi assassinado; o tradutor para italiano,
Ettore Capriolo, foi esfaqueado, e o editor norueguês, William
Nygaard, foi alvo de três disparos na sua própria casa. Várias
livrarias foram destruídas e saqueadas na sua totalidade. Trinta e
sete pessoas morreram noutro protesto. A editora Penguin nunca
equacionou retirar o livro das livrarias, embora isso implicasse que o
seu pessoal tivesse de usar coletes à prova de bala. Rushdie viveu
onze anos escondido. Em 1997, a recompensa pela sua cabeça
chegava aos dois milhões de dólares.
Dias antes de Os Versículos Satânicos chegarem às livrarias, em
plena campanha promocional, um jornalista indiano teve uma
conversa privada com Salman Rushdie: «O senhor tem noção da
confusão que se avizinha?», perguntou-lhe. O romancista foi
taxativo: «É absurdo pensar que um livro possa provocar tumultos.
Que forma tão estranha de ver o mundo!»
Na realidade, revendo a história universal da destruição dos
livros, observa-se que a forma estranha de ver o mundo — o oásis,
o insólito paraíso, Shangri-La, a floresta de Lothlórien — é antes a
liberdade de expressão. A palavra escrita foi tenazmente perseguida
ao longo dos séculos, e são mais depressa estranhos os tempos de
paz nos quais as livrarias só têm visitantes calmos, que não
hasteiam bandeiras, nem agitam dedos fiscalizadores, nem partem
montras, nem acendem fogueiras, nem se abandonam à atávica
paixão de proibir.

20

O caos das livrarias é muito parecido com o caos das


lembranças. Os seus corredores, as suas prateleiras, os seus
limiares são espaços habitados pela memória coletiva e pelas
memórias individuais. Ali tropeçamos com biografias, com
testemunhos e com compridas estantes de ficções onde os
escritores despem a verdade de muitas vidas. As lombadas grossas
dos livros de história, como camelos numa lenta caravana, propõem
guiar-nos na rota para o passado. Investigações, sonhos, mitos e
crónicas dormitam juntos na mesma penumbra. O acaso de um
encontro ou de um resgate é sempre possível.
Não é por acaso que em Austerlitz, de W. G. Sebald, o
protagonista recupera a recordação suprimida da sua infância
precisamente numa livraria. Criado numa pequena aldeia de Gales
por uns idosos pais adotivos que nunca lhe revelaram a sua origem,
Jacques Austerlitz arrastava desde sempre uma tristeza
inexplicável. Como um sonâmbulo que tem medo do seu próprio
despertar, durante anos tinha-se fechado a qualquer conhecimento
da tragédia da qual a sua própria vida era um capítulo arrancado.
Não lia jornais, só ligava o rádio a determinadas horas, aperfeiçoava
um sistema de quarentena que o mantinha a salvo de qualquer
contacto com a sua história anterior. Mas essa tentativa de se
imunizar contra a memória estava acompanhada por alucinações e
sonhos angustiantes, e finalmente explodiu em forma de crise
nervosa. Num dia de primavera em Londres, durante um dos seus
abatidos passeios pela cidade, entrou numa livraria nas
proximidades do Museu Britânico. A proprietária, que estava
sentada ligeiramente de lado ao pé da sua escrivaninha a abarrotar
de papéis e de livros, tinha o mitológico nome de Penélope
Peacefull. Sem sabê-lo, o viajante reticente acabava de encontrar o
caminho de regresso a Ítaca.
Na livraria reinava a calma. Penélope levantava a cabeça de vez
em quando, sorria a Jacques e depois voltava a olhar para a rua,
mergulhada nos seus pensamentos. Do velho rádio ligado brotavam
vozes faiscantes mas suaves, que cativaram o recém-chegado.
Pouco a pouco, este foi ficando imóvel, como se não pudesse
perder nem uma sílaba daquela emissão. Duas mulheres
recordavam como, no verão de 1939, quando eram pequenas, as
tinham mandado para Inglaterra desde a Europa central para as
salvarem da perseguição nazi. Austerlitz, aterrorizado, soube que as
lembranças fragmentárias dessas mulheres eram também as suas.
De repente voltou a ver a água cinzenta do porto, as sogas e
correntes da âncora, a proa do navio, mais alta do que uma casa, as
gaivotas que sobrevoavam a sua cabeça a gritar furiosamente. As
eclusas da sua memória abriram-se sem remédio, libertando uma
catarata de certezas angustiantes. Que era um refugiado judeu. Que
os primeiros tempos da sua infância decorreram em Praga. Que aos
quatro anos foi separado para sempre da sua verdadeira família.
Que o resto da sua vida consistiria em procurar — quase de certeza
inutilmente — o rasto de todas as suas perdas.
— O senhor está bem? — perguntou a livreira Penélope,
preocupada com o seu ar petrificado.
Austerlitz soube por fim o motivo pelo qual sempre se tinha
sentido um transeunte em todo o lado, sem terra nem bússola,
solitário perdido.
A partir dessa manhã na livraria, seguimos o protagonista no seu
deambular por uma dolorosa rota de cidades europeias, rastreando
a identidade que lhe foi arrebatada. Sucedem-se uma série de
epifanias, Jacques consegue reconstruir a figura da mãe, uma atriz
de variedades assassinada no campo de concentração de
Theresienstadt. Em Praga encontra uma velha amiga dos seus pais,
com quem se reúne. Recupera fotografias antigas. Examina em
câmara lenta um documentário propagandístico dos nazis, à procura
de um rosto de mulher que fira a sua memória. Vai a lugares onde
os ecos reverberam: a bibliotecas, a museus, a centros de
documentação, a livrarias. O romance é, no fundo, um elogio desses
territórios onde se conjura o esquecimento.
Na obra de Sebald, a proporção de ficção e não ficção costuma
ser uma incógnita. Temos a sensação de que os seus seres vêm de
zonas fronteiriças entre ambas. Embora não saibamos se o
melancólico Austerlitz é um indivíduo real ou um símbolo,
caminhamos ao pé dele, interpelados pelo assombro e pela tristeza
das suas palavras. Seja como for, fica claro que o escritor, como
personagem, precisa de deixar um testemunho de uma época
infernal que está a desaparecer como a névoa dispersa pelo vento.
A dor que atravessa a História não se pode reparar, os vazios são
impossíveis de preencher, mas a tarefa de se documentar e
testemunhar nunca será em vão. O incessante esquecimento
engolirá tudo, a não ser que lhe oponhamos o esforço abnegado de
registar o que foi. As gerações futuras têm direito de nos reclamar o
relato do passado.
Os livros têm voz e falam salvando épocas e vidas. As livrarias
são esses territórios mágicos onde, no ato de inspiração, ouvimos
os ecos suaves e faiscantes da memória desconhecida.

Infância e sucesso dos livros de páginas

21

Já há muito tempo que os catastrofistas nos avisam com os


piores augúrios: os livros são uma espécie em perigo de extinção e
em algum momento do futuro próximo desaparecerão devorados
pela concorrência de outras formas mais perigosas de lazer e pela
expansão canibal da Internet.
Este prognóstico está de acordo com as nossas sensações como
habitantes do terceiro milénio. Tudo avança cada vez mais rápido.
As últimas tecnologias já estão a meter a um canto as triunfantes
novidades de anteontem. Os prazos da obsolescência são cada vez
mais curtos. O armário deve renovar-se com as tendências da
temporada, o telemóvel mais recente substitui o antigo; os nossos
equipamentos pedem-nos constantemente para atualizarmos
programas e aplicações. As coisas engolem as coisas anteriores. Se
não permanecemos alerta, em tensão e à espreita, o mundo vai
ultrapassar-nos.
Os mass media e as redes sociais, com a sua vertigem
instantânea, alimentam estas perceções. Levam-nos a admirar
todas as inovações que chegam a correr como surfistas na crista da
onda, sustentadas pela velocidade. Mas os historiadores e
antropólogos recordam-nos que, nas águas profundas, as
mudanças são lentas. Víctor Lapuente Giné escreveu que a
sociedade contemporânea sofre de um claro enviesamento futurista.
Quando comparamos algo velho e algo novo — como um livro e um
tablet, ou uma freira sentada ao pé de uma adolescente que está a
falar num chat no metro —, acreditamos que o novo tem mais futuro.
Na verdade, acontece o contrário. Quantos mais anos leva um
objeto ou um hábito entre nós, mais futuro tem. O mais novo, em
média, perece antes. É mais provável que no século XXII existam
freiras e livros do que WhatsApp e tablets. No futuro haverá
cadeiras e mesas, mas plasmas ou telemóveis talvez não.
Continuaremos a celebrar com festas o solstício de inverno quando
já tivermos deixado de torrar com os raios UVA. Uma invenção tão
antediluviana como o dinheiro tem muitas possibilidades de
sobreviver ao cinema 3D, aos drones e aos carros elétricos. Muitas
tendências que nos parecem inquestionáveis — desde o
consumismo desenfreado até às redes sociais — abrandarão. E
velhas tradições que nos acompanham há muitos anos — desde a
música até à procura da espiritualidade — nunca partirão. Ao visitar
as nações socioeconómicas mais avançadas do mundo, na
verdade, o seu amor pelos arcaísmos é surpreendente — desde a
monarquia até ao protocolo e aos rituais sociais, passando pela
arquitetura neoclássica ou pelos vetustos elétricos.
Se o poeta Marcial pudesse arranjar uma máquina do tempo e
visitar esta tarde a minha casa, encontraria poucos objetos
conhecidos. Ficaria surpreendido com os elevadores, a campainha
da porta, o router, os vidros das janelas, o frigorífico, as lâmpadas, o
micro-ondas, as fotografias, as tomadas elétricas, a ventoinha, o
esquentador, o autoclismo, os fechos, os talheres e o abre-latas.
Assustar-se-ia ao ouvir o assobio da panela de pressão e daria um
salto quando as investidas da máquina de lavar roupa começassem.
Alarmado, procuraria o sítio onde as pessoas que falam desde o
rádio se escondem. Ficaria angustiado — aliás, como eu — com o
apito do alarme do despertador. À primeira vista, não teria a mais
remota ideia da utilidade da fita adesiva, dos sprays, do saca-rolhas,
da esfregona, das brocas, do secador, do espremedor, dos vinis, da
máquina de fazer a barba, dos fechos de velcro, do agrafador, do
batom, dos óculos de sol, da bomba de tirar leite ou dos tampões.
Mas, entre os meus livros, sentir-se-ia à vontade. Reconhecê-los-ia.
Saberia segurar neles, abri-los, passar as páginas. Seguiria o sulco
das linhas com o seu dedo indicador. Sentiria alívio — ainda resta
alguma coisa do seu mundo entre nós.
Por isso, perante a catarata de previsões apocalípticas sobre o
futuro do livro, eu digo: um pouco de respeito. Não subsistem tantos
artefactos milenares entre nós. Os que restam demonstraram ser
sobreviventes difíceis de desalojar (a roda, a cadeira, a colher, a
tesoura, o copo, o martelo, o livro…). Há algo no seu design básico
e na sua depurada simplicidade que já não admite melhorias
radicais. Superaram muitas provas — sobretudo, a prova dos
séculos — sem que tenhamos descoberto qualquer engenho melhor
para cumprir a sua função, mais além de pequenos ajustamentos
nos seus materiais ou componentes. Atingem quase a perfeição na
sua humilde esfera utilitária. Por isso acho que o livro vai continuar a
ser o suporte essencial para a leitura — ou algo muito parecido ao
que o livro nunca deixou de ser, até antes da invenção da imprensa.
Aliás, os objetos longevos, aqueles que estão há séculos entre
nós, moldam as novidades e imprimem-lhes o seu selo. Os livros
arcaicos serviram como modelos para os nossos avançados
computadores pessoais. No final dos anos sessenta do século
passado, os grandes computadores ocupavam divisões inteiras e
eram tão caros como casas. Era preciso programar aqueles
cangalhos de dimensões imobiliárias usando cartões perfurados.
Estavam concebidos para uma utilização militar e empresarial. Alan
Kay, quando era um jovem cientista e informático contratado no Palo
Alto Research Center (PARC) da Xerox, teve uma visão que
representaria uma reviravolta espetacular nas nossas vidas.
Refletindo sobre a relação que os seres humanos podiam
estabelecer com os computadores, intuiu o seu potencial como um
meio mais íntimo. Compreendeu que poderiam converter-se num
fenómeno de massas e numa tecnologia situada na sala de estar de
qualquer casa, usada por milhões de pessoas independentemente
da sua profissão. Kay delineou como poderia ser o seu novo
computador: tinha de ser pequeno e portátil como um livro,
acessível e fácil de usar. Construiu modelos de cartão, confiando
que, dentro de poucos anos, a capacidade informática teria
progredido até ao ponto de tornar a sua ideia concretizável. Kay
continuou a desenvolver a sua visão no PARC. Chamou à sua
invenção Dynabook. O nome sugere o que ia ser: um livro dinâmico.
Ou seja, parecido com os códices arcaicos, mas interativo e
controlado pelo leitor. Proporcionaria os suportes cognitivos, da
mesma forma em que os livros e os meios impressos o fizeram nos
últimos séculos, acrescentando as vantagens do novo meio de
computação.
Os primeiros Dynabooks provisórios receberam o nome de
«Alto». Na segunda metade dos anos setenta do século xx, o
computador Alto já estava em funcionamento. Usavam-se quase mil
aparelhos, não só no PARC, mas também em universidades, no
Senado e no Congresso dos Estados Unidos, bem como na Casa
Branca, todos oferecidos pela Xerox. Estava a surgir um novo
mundo. Na maior parte destes centros, apesar das numerosas
funções do Alto, utilizava-se sobretudo para tratamento de textos,
design e comunicação. Essencialmente, como livro informático. Em
1979, Steve Jobs visitou o PARC. Ficou pasmado com o que viu. O
aspeto e a estética do Alto integraram-se em todos os
computadores Apple que viriam depois, e hoje a sua fisionomia
essencial continua presente nos produtos mais recentes. Os
portáteis, os tablets e os smartphones aprofundaram nessa procura
do computador leve, compacto e transportável como o livro de
bolso.
Em 1984 o calígrafo Sumner Stone converteu-se no primeiro
diretor de tipografia da empresa Adobe. Contratou uma equipa de
designers a quem encomendou novas fontes, recomendando-lhes
que se inspirassem nas tradições mais antigas. O programa Adobe
Originals selecionou três referentes estilísticos da evolução da
caligrafia anterior à imprensa: «Lithos», uma forma de inspiração
grega — o designer fixou-se na inscrição da dedicatória do Templo
de Atena em Priene, hoje no Museu Britânico; «Trajan», uma
tentativa meticulosa de transferir para caracteres as letras da coluna
de Trajano em Roma; e «Charlemagne», que, apesar do seu nome,
se inspirava nas letras capitais do anglo-saxónico Benedictional de
Saint Ethelwold. Assim, a tradição ocidental do manuscrito chegou à
era digital. Para além isso, o Adobe desenvolveu nos anos oitenta
do século passado a linguagem de programação PostScript, que
oferecia um aspeto informático muito parecido ao de uma página de
papel. Com a introdução, em 1993, do PDF, um formato de
documento portátil (portable document format), o Adobe deu um
passo atrás. Tornou possível traçar marcas sobre os documentos
eletrónicos, tal como nos originais datilografados ou escritos à mão.
E consolidou uma forma de entender a arquitetura toda de um
documento inspirada nos velhos livros.
Foram decisões inteligentes. Sem introduzir pelo menos uma
certa correspondência entre o aspeto e a sensação do mundo antigo
— em papel — e do novo — no ecrã —, os computadores deviam
ter parecido ao seu público inicial engenhos alheios, confusos e
inviáveis. Sem uma organização visual identificável e uma estreita
relação com os documentos quotidianos, ninguém teria captado tão
depressa o quão útil podia ser o novo meio. Este é o paradoxo do
progresso tecnológico, o facto de conservar umas coordenadas
tradicionais, estruturas de página, convenções tipográficas, formas
de letras e paginações limitadas — foi essencial para abrir caminho
às mudanças transformadoras que a esfera digital trazia. É um erro
pensar que cada novidade apaga e substitui as tradições. O futuro
avança sempre a olhar de soslaio para o passado.

22

Em 1976, o escritor bósnio Izet Sarajlić escreveu um poema


intitulado «Carta ao ano 2176»: «O quê?/ Ainda ouvem
Mendelssohn?/ Ainda apanham margaridas?/ Ainda festejam os
aniversários das crianças?/ Ainda dão nomes de poetas às ruas?/
Nos anos setenta de há dois séculos, garantiam-me que os tempos
da poesia tinham passado — tal como a brincadeira das prendas, ou
ler as estrelas, ou os bailes em casa dos Rostov./ E eu, tonto, quase
acreditei nisso!»

23

O nosso «livro de páginas», que hoje é o livro por definição —


esse que deixamos aberto pela lombada como se fosse o telhado de
um pagode, que marcamos dobrando-lhes os cantos das folhas à
falta de um marcador de páginas e amontoamos em pilhas verticais
como estalagmites de palavras —, tem cerca de dois mil anos de
idade. É uma grande invenção anónima que nunca saberemos a
quem agradecer. Para consegui-lo foram necessários séculos de
pesquisas, ensaios e averiguações. Chegou-se à solução mais
simples, como tantas vezes, através de um itinerário tortuoso.
Desde a invenção da escrita, os nossos antepassados olhavam à
sua volta perguntando-se que superfície conservaria melhor a
fugidia marca das letras (pedra, terra, casca, juncos, pele, madeira,
marfim, tecido, metal…). Pretendiam desafiar as forças do
esquecimento fabricando o livro perfeito, transportável, duradouro e
confortável. No Próximo-Oriente e na Europa, os protagonistas
desta precoce etapa foram os rolos de papiro ou o pergaminho e as
tabuinhas rígidas. Os romanos conviveram com os dois métodos até
que, numa feliz descoberta, inventaram um novo objeto mestiço que
ainda nos acompanha.
Os rolos sempre foram uma mercadoria luxuosa e cara. Para a
escrita mais quotidiana — exercícios escolares, cartas, documentos
oficiais, anotações, rascunhos —, os antigos costumavam recorrer
às tabuinhas. O leitor que quisesse consultá-las numa determinada
ordem conservava-as em caixas ou sacos ou fazia-lhes um buraco
no canto e enlaçava-as juntas com argolas ou correias. Em latim,
chamavam a esses conjuntos de tabuinhas atadas «códices». A
ideia revolucionária consistiu em substituir as pequenas placas de
madeira ou metal por folhas flexíveis de pergaminho ou papiro, o
material dos rolos. O resultado inicial deve ter sido pouco mais do
que um caderno rudimentar, embora carregado de futuro.
Esse primeiro híbrido abriu o caminho até ao códice mais
avançado, composto por folhas de papiro ou pele que se dobravam
ao meio. Os romanos tentaram coser essas folhas de papel
dobradas ao meio e assim nasceu a arte de encadernar.
Aprenderam rapidamente a proteger os caderninhos com capas
duras, geralmente de madeira forrada com couro. O corpo dos livros
desenvolveu um novo elemento anatómico ao qual chamámos
«lombada», como se as nossas leituras fossem sossegados animais
de estimação. Desde então escrevemos nessas dóceis costas o
título de cada obra, e o nosso olhar pode viajar com rapidez ao
longo das estantes de uma biblioteca identificando os exemplares
que dormitam nela pela lombada.
Estamos em dívida para com as pessoas esquecidas que
inventaram o códice. Graças a elas, a esperança de vida dos textos
aumentou. Com o novo formato, a página escrita, protegida pela
encadernação, conseguia durar sem se deteriorar nem rasgar mais
tempo do que nos rolos. Pela sua forma plana e compacta, os novos
livros podiam-se armazenar confortavelmente nas prateleiras das
estantes. Ocupavam menos espaço, transportavam-se melhor e
eram leves. Por acréscimo, podiam utilizar-se os dois lados de cada
folha. Calcula-se que, com a mesma superfície, o códice oferecia
uma capacidade seis vezes superior à do rolo. A poupança de
material abaratou o preço de um produto ainda minoritário, e a sua
flexibilidade favoreceu o aparecimento dos primeiros livros de bolso
dos quais temos conhecimento: os códices pugillares, chamados
assim porque se podiam abranger com o punho. O tamanho dos
códices permitia descer até à miniatura (Cícero afirmou ter visto um
pergaminho da Ilíada de Homero que cabia na casca de uma noz).
As novas invenções e os avanços materiais costumam ir a par
das grandes revoluções do conhecimento. Na civilização romana, o
preço mais acessível dos livros permitiu que muitas pessoas até
então excluídas de qualquer privilégio pudessem ler. Entre os
séculos I e III, há abundantes evidências da ampliação da cultura a
leitores alheios ao círculo da nobreza. Nos muros e casas de
Pompeia — engolida e conservada pela erupção do Vesúvio no ano
de 79 —, os arqueólogos descobriram inscrições que incluem
obscenidades, piadas, slogans políticos e anúncios de bordéis.
Esses grafítis revelam a existência de uma população de classe
média ou média-baixa capaz de compreender a letra escrita. Para
além disso, em todo o Império os mosaicos, os frescos e os relevos
da época mostram cada vez com mais frequência cenas de leitura.
Nos mesmos anos floresceram as bibliotecas públicas romanas.
Temos conhecimento de um livreiro que oferecia a sua mercadoria
de porta em porta, como os nossos obsoletos vendedores de
enciclopédias.
É arriscado conjeturar valores, mas parece evidente que o
número de leitores cresceu de forma chamativa. Esses primeiros
séculos do milénio foram uma época esplendorosa dos panfletos
com afã proselitista — entre eles, chamavam a atenção os textos
subversivos dos rebeldes aquando do domínio de Roma. Também
não foi por acaso que naquela altura triunfou, à margem dos
géneros tradicionais, uma literatura de evasão e consumo (tratados
de cozinha e desporto, relatos eróticos com ilustrações explícitas,
textos mágicos ou de interpretação dos sonhos, horóscopos,
romances de enredo, histórias contadas em vinhetas — precursoras
das novelas gráficas). Alguns autores de prestígio divertiam-se a
escrever obras frívolas ou híbridos de alta e baixa cultura. Ovídio,
antecipando-se aos tutoriais de maquilhagem dos nossos dias,
publicou um livrinho em verso com conselhos de cosmética para
mulheres. Suetónio estava encantado por misturar história e crónica
cor-de-rosa nas suas biografias de imperadores. Petrónio
escandalizou a sociedade bem-pensante com as suas personagens
canalhas, imorais e desbocadas. Os três olhavam amigavelmente
para esses novos leitores livres, não aristocráticos, inexperientes,
homens e mulheres que liam por prazer.

24

Marcial foi um emigrante hispânico em Roma. No ano 64,


quando tinha cerca de vinte e cinco anos, instalou-se naquela que
então era a capital das oportunidades — um precedente do sonho
americano —, que recebia vagas de gente vinda de todas as
províncias do império. Marcial descobriu rapidamente que a urbe era
um lugar duro. Nos seus poemas fala de multidões pálidas de fome.
Não era fácil enriquecer; nem sequer ganhar a vida. Num certo
epigrama, Marcial conta que em Roma havia muitos advogados que
não podiam pagar o arrendamento completo e muitos poetas com
talento a tiritar porque não tinham roupa para se agasalharem. A
concorrência era feroz; todos queriam prosperar. A riqueza do outro
observava-se, invejava-se. Saía-se à caça de heranças, à espreita
dos idosos potentados. O próprio poeta chegou a ter isso em mente,
se acreditarmos nas suas palavras: «Paula deseja casar comigo, eu
não quero casar com Paula: é velha. Quereria, se fosse mais
velha.»
Provavelmente, o bilbitano andava com os dentes a bater de frio,
usando apenas a túnica esburacada nos invernos de Roma. O frio,
os alojamentos sórdidos e as dificuldades para seguir em frente
talvez expliquem as suas decisões literárias insólitas. Decidiu
quebrar o silêncio protocolar e pactuado para dirigir as suas burlas
contra o dinheiro. Na sua poesia, transgredindo os imperativos da
elegância, lançou-se a satirizar os mecenas sovinas, a
intelectualidade dedicada a cravá-los, a paixão social pelo luxo, a
ostentação e a aparência, a vaidade dos ricos, e a grande rede de
donos e aduladores que emaranhava as vidas de todos os
habitantes da urbe imperial.
Marcial foi um poeta cómico, irreverente, sem sentimentalismos,
interessado na dimensão material das coisas e no seu enorme
poder para definir as pessoas que as possuem. Quando, nos seus
poemas, mencionava livros, não eram símbolos abstratos do talento
literário, mas sim objetos concretos que se ofereciam para escalar
socialmente ou se vendiam nas livrarias. Esses livros, que na obra
de Horácio e Ovídio encarnavam a imortalidade do ato criativo,
apareciam nos seus epigramas como livrinhos perecedouros,
manuseados, baratos ou caros, muitas vezes defeituosos por causa
da pressa do copista, à venda nas lojas de Roma — lojas que
Marcial aproveita para anunciar. Eram livros de todos os tipos (de
papiro ou de pergaminho, rolos ou códices que cabiam numa mão
ou que viajavam juntamente com o seu leitor; livros que são a
mercadoria com a qual um liberto ganha ou perde dinheiro — o seu
vendedor; livros de sucesso que todos querem ler grátis, mas pelos
quais não estão dispostos a pagar; livros sem leitores que acabam
numa cozinha preta usados para envolverem com as suas folhas
umas crias de atum ou convertidos num cartucho para guardar a
pimenta).
Marcial foi o primeiro autor que se interessou pela irrupção dos
códices. Fê-lo num dos seus primeiros livros, intitulado ironicamente
Apophoreta, uma palavra pomposa que em grego significava
«presente». O poeta teve a brilhante ideia de publicar no mês de
dezembro — época universal dos presentes — catálogos em verso
de objetos para oferecer (delícias gastronómicas, livros, cosméticos,
tintas do cabelo, roupa, lingerie, utensílios de cozinha, adornos…).
Marcial dedicava a cada produto um epigrama que informava o leitor
sobre os materiais, o preço, as características ou o uso ao qual
estava destinado. No livro, o repertório de presentes organizava-se
numa sequência alternada de propostas caras (para ricos) e baratas
(para ricos sovinas): um broche de ouro e um pauzinho para limpar
as orelhas; uma estátua e um soutien; uma escrava de Cádis e uma
matraca; a última extravagância da moda — um belo frasco para
beber neve — e um bacio de barro. Estes poemas permitem-nos
espreitar hoje para a vida quotidiana da Antiguidade, e
surpreendermo-nos perante a naturalidade descarada e erótica de
Marcial. Sobre o soutien, escreve: «Segura o teu peito com uma
pele de touro, porque a tua pele não sustenta as tuas mamas.» E
sobre a dançarina de Cádis: «Bamboleia-se de forma tão
provocante que faria com que o mais casto se masturbasse.»
Apophoreta era um manual humorístico para indecisos, um
surpreendente exercício de poesia aplicada às necessidades da
vida diária. De certa forma, o poeta estava a inventar as campanhas
publicitárias de Natal, mas fazia-o com uma mordaz proposta
literária. Na sua época implicava um uso transgressor, baixo e
frívolo do verso. Com este livro-catálogo, Marcial expressava a sua
simpatia pelo novo público leitor recém-chegado ao mundo dos
livros, que agradecia a poesia fácil, sem snobismo, o humor sem
rodeios, os toques de realismo reconhecível e a frescura; o público
que era o destinatário natural dos códices.
Em Apophoreta, Marcial propunha ao comprador incauto catorze
obras literárias. Cinco delas, descritas como códices «de bolso» em
pergaminho — pugillares membranei —, ocupavam o lugar dos
presentes baratos. Graças a este testemunho, sabemos que nos
anos oitenta do século I, o livro de páginas já estava no mercado, e
a um preço acessível. As suas vantagens, para além das
económicas, eram evidentes. Vários epigramas expressam o
deslumbramento perante a maior capacidade do códice, comparado
de forma implícita com os rolos: «Vergílio em pergaminho. Que
pequeno pergaminho compila o imenso Vergílio!»; «Tito Lívio em
pergaminho. Nestas pequenas peles condensa-se o grande Lívio».
Marcial afirmava que os quinze livros — equivalentes a quinze rolos
— de As Metamorfoses de Ovídio cabiam num só códice. Esta
condensação não significava apenas uma poupança de espaço e
dinheiro, mas garantiam que as partes de uma mesma obra não se
dispersavam e perdiam. Portanto, aumentava exponencialmente as
possibilidades de sobrevivência dos textos; para o difícil caminho
em direção ao futuro, esse avanço revelar-se-ia decisivo.
O poeta reconheceu no códice um companheiro de rota
confortável e portátil: «Cícero em pergaminho. Se este pergaminho
te acompanha, pensa que empreendes uma longa viagem com
Cícero.» Anos mais tarde, também promoveria a versão em códice
dos seus próprios poemas, com o mesmo argumento: «Tu, que
desejas que os meus livrinhos estejam contigo em todo o lado e
queres tê-los como acompanhantes de uma longa viagem, compra
os exemplares que o pergaminho oprime em pequenas páginas.
Deixa a biblioteca para os livros grandes: eu caibo numa só mão.»
O livro de páginas, tal como nós o conhecemos, tinha surgido
com força no mercado. Alguns autores, como Marcial, recebiam-no
entusiasmados. Outros intelectuais, mais da velha guarda,
agarravam-se ao aristocrático rolo de papiro, lamentando-se porque
os tempos estavam a mudar e tudo degenerava. Supomos que a
maior parte dos romanos simplesmente se habituou a viver com a
variedade de formatos. Nas oficinas de livros, ofereciam-se as duas
variantes, à escolha da clientela.
Nos séculos seguintes, já não temos uma testemunha atenta,
curiosa e aberta às novidades como Marcial. Sabemos que o códice
foi ganhando terreno face ao rolo graças à decidida preferência dos
cristãos. Vítimas de perseguições durante séculos, obrigados a
procurar esconderijos e a interromper bruscamente as suas
reuniões, organizavam-se em grupúsculos clandestinos. O livro de
bolso era mais fácil de esconder rapidamente entre as dobras da
túnica. Permitia localizar mais depressa um determinado parágrafo
de texto — uma epístola, uma parábola evangélica, uma homilia —
e analisá-lo para ter a segurança do que era correto, pois um erro
podia pôr em perigo a salvação da alma. Era possível tirar notas na
margem e deixar marcadores de páginas nas passagens
importantes. Para além do mais, estes livros eram cómodos de
transportar de forma dissimulada em viagens de apostolado. Estas
eram todas grandes vantagens para a comunidade de leitores
furtivos. Por outro lado, os cristãos desejavam quebrar o simbolismo
judaico e pagão do rolo, e afirmar a sua identidade peculiar. Os
leves livros de páginas começaram a circular abundantemente pelas
ávidas mãos de um público de cultura média ou média-baixa, onde a
mensagem cristã encontrava mais prosélitos. O novo formato
favoreceu a leitura individual secreta, bem como a leitura em voz
alta durante as perigosas reuniões comunitárias. Os fiéis
desenvolveram um vínculo muito profundo com esses textos
religiosos, cuidadosamente selecionados. Na verdade, séculos mais
tarde, o Corão descreveria os cristãos como «povos do livro» (ahl al-
kitâb), com uma mistura de respeito e assombro.
Quem leu alguma vez às escondidas, a desafiar a proibição dos
adultos — na calada da noite, a horas intoleráveis para as crianças,
por baixo da camuflagem da manta, com a lanterna acesa,
apagando-a sempre que soavam uns passos que se aproximavam
—, é descendente direto daqueles primeiros leitores. Nunca
devíamos esquecer que o livro de páginas triunfou, em grande
parte, porque favorecia as leituras clandestinas, negadas, não
consentidas.

25

Entre os séculos III e V, o códice impôs-se gradualmente, primeiro


no Ocidente e mais tarde no Oriente. Fora do mundo cristão, os
pioneiros da mudança foram os profissionais do Direito, já que o
livro de páginas os ajudavam a localizar mais depressa artigos
concretos nos repertórios de leis. A compilação legal ordenada pelo
imperador Justiniano foi chamada precisamente Código — ou seja,
o códice por antonomásia —, legando para a posteridade esse
termo para todos os compêndios legais até à atualidade. Também
era muito útil para os livros de estudo pela sua capacidade e
resistência, e os médicos adotaram-no logo para os seus vade-
mécuns, objeto de muitas consultas. A invenção dos índices de
conteúdos facilitou as pesquisas. Com o tempo, os códices
converteram-se no suporte preferido para a literatura — sobretudo
para as longas narrações, conjuntos de tragédias ou comédias e
antologias. Face ao complicado manuseamento do rolo, que exigia o
uso das duas mãos, os leitores sonhadores apaixonaram-se pelos
livros de páginas, que se leem apenas com uma mão, para usar a
expressão de Luis García Berlanga para a literatura erótica. O
códice podia acompanhar o seu leitor a qualquer lado. Graças às
fontes literárias averiguámos que os romanos se sentiram livres
para lerem a toda hora: quando iam caçar, enquanto esperavam que
a peça caísse na rede; ou durante a noite para vencer o tédio das
insónias. Descrevem-nos uma mulher que lê a caminhar, ou um
viajante na sua carruagem, ou um comensal deitado e um
adolescente de pé numa galeria, todos absortos nos seus livros.
Mas nunca houve um afã compulsivo de substituir o antigo pelo
novo. Tal como hoje os livros de papel convivem com os eletrónicos,
durante muitos séculos coexistiram os rolos e os códices. Os
antigos cilindros de escrita usavam-se para textos honoríficos e
diplomáticos — documentos rituais em que o peso da tradição ainda
se fazia sentir. Também fizeram parte da paisagem da vida
quotidiana na Idade Média. As instituições e as ordens monásticas
recorriam a eles por amor à antiga solenidade. As ladainhas e
crónicas prestavam-se a serem copiadas no antigo formato. Os
rolos até espreitavam em território adversário — reconhecemo-los
nas miniaturas que iluminaram os códices medievais mais luxuosos.
Os chamados rotuli mortuorum eram rolos de pergaminho nos
quais se anunciava o falecimento de alguma pessoa ilustre; um
mensageiro, em rotas que por vezes ultrapassavam os mil
quilómetros, ia transportando o rolo por diversas instituições
relacionadas de alguma forma com o defunto, e em cada uma delas
se acrescentava ao rolo uma oração ou outra expressão de
condolências. O «Rolo de Matilde», filha de Guilherme, o
Conquistador, e abadessa da Abadia das Damas, que alcançou os
vinte metros de comprimento, foi destruído durante a Revolução
Francesa. Em Inglaterra e Gales ainda se chama Master of the Rolls
ao arquivista da corte real. À falta de ponto, os autores de teatro na
Idade Média costumavam usar rolos como ajuda para a memória
nas suas representações. Daí deriva o termo «rol» [papel em
português] do ator.
Na verdade, não nos abandonaram totalmente. Nas nossas
tradições, mas também nas nossas palavras, nos nossos
computadores, na Internet, nas projeções de futuro, sobrevive a
lembrança dos rolos. Algumas universidades continuam a outorgar
os seus diplomas com esta arcaica vestimenta. Quando falamos de
um livro «comprido» ou «extenso», de forma involuntária somos
herdeiros da terminologia específica do rolo. Chamamos
impropriamente «volumes» — do latim volvo (dar voltas, girar) —
aos códices, que já não se rebobinam. Na linguagem coloquial em
espanhol ainda dizemos que é um rollo [uma chatice, em português]
algo que nos aborrece, que se desenrola e desenrola e parece
nunca mais acabar. E hoje a palavra scroll, que designava em inglês
o rolo manuscrito, usa-se para descrever o ato de fazer avançar ou
retroceder verticalmente o texto no ecrã de qualquer aparelho
informático, tal como se manejavam os velhos rotuli. Para além
disso, as companhias eletrónicas mais inovadoras estão a
desenvolver ecrãs de televisão que se podem enrolar e guardar
quando não se estão a utilizar. Na história dos formatos, a premissa
é a convivência e a especialização, não a substituição. Os primeiros
livros negam-se a extinguirem-se totalmente.
26

Marcial e Perec têm razão: os objetos, a sua materialidade, as


suas características, os gestos que levam junto a si não são um
mero episódio. Na verdade, são decisivos. Na luta pela
sobrevivência das palavras — tão frágeis, meros pedaços de ar —,
o formato e a matéria-prima dos livros sempre tiveram um papel
crucial: quanto duram, de que materiais são fabricados, quanto
custam, cada quanto tempo é preciso voltar a copiá-los.
As mudanças de formato atiram para a valeta grandes
quantidades de vítimas. Tudo o que não é transferido do velho para
o novo suporte desaparece para sempre. Este perigo continua a
ameaçar-nos no presente. Se, após a chegada dos primeiros
computadores nos anos oitenta do século passado, não fomos
capazes de reciclar a nossa memória informática passando de um
floppy disk para um disco de 31/2, depois para um CD e agora para
uma pen drive, perdemos os nossos dados mil vezes, parcial ou
integralmente. É evidente que já nenhum computador consegue ler
as primeiras disquetes, que pertencem à era pré-histórica da
informática.
No século XX, o cinema sofreu sucessivas ondas de destruição
provocadas por mudanças de suporte. Agustín Sánchez Vidal
contabiliza assim as perdas: «O material mais afetado é o anterior a
1920, já que até essa data as fitas são destruídas ao passar-se dos
filmes de uma ou duas bobinas (com duração de dez a trinta
minutos) para a duração standard de uma hora e meia. A emulsão
aproveita-se para recuperar os sais de prata, e o suporte de
celulose, para confecionar pentes e outros objetos. As perdas daí
geradas rondam os 80%. Por volta de 1930 perdeu-se cerca de 70%
ao produzir-se uma onda de destruições, ainda mais sistemáticas,
devido à passagem do cinema mudo para o sonoro. E na década de
cinquenta tem lugar a terceira, ao substituir-se a película inflamável
de nitrocelulose pela segurança do acetato. Neste caso as perdas
não são fáceis de quantificar. Se tomarmos a Espanha como
exemplo, é possível calcular que se conservam apenas 50% dos
filmes do período sonoro até 1954.» Cada passagem do progresso
implicou, por sua vez, uma devastação.
Martin Scorsese recriou este triste naufrágio em A Invenção de
Hugo. Lembro-me especialmente de uma cena melancólica onde o
celuloide dos deliciosos filmes de Georges Méliès acaba reutilizado
pela indústria do calçado para fabricar saltos. Este é um capítulo
insólito da história dos objetos: a beleza das histórias e das imagens
que habitaram na mente dos pioneiros do cinema acabou reciclada
em pentes e saltos. Nos anos vinte do século passado, pessoas
anónimas caminharam sobre obras de arte. Afundaram-nas nas
poças dos passeios. Pentearam-se com elas. Deixaram ali rastos da
sua caspa. Nunca desconfiaram que esses utensílios eram, na
verdade, pequenos túmulos, monumentos quotidianos da
destruição.
Sem dúvida, com a substituição dos antigos rolos, perdemos
para sempre todo um tesouro de versos, crónicas, aventuras,
ficções, ideias. Ao longo dos séculos, a desídia e o esquecimento
destruíram ainda mais livros do que a censura ou o fanatismo. Mas
também conhecemos grandes esforços para salvar o legado das
palavras. Certas bibliotecas — é impossível averiguar quantas —
embarcaram na paciente tarefa de transcrever os seus fundos para
o suporte vencedor, voltando a copiá-los à mão, traço a traço, frase
por frase, livro por livro. No século IV, o filósofo e alto funcionário
Temístio, deixou escrito que na Biblioteca de Constantinopla
trabalhavam para o imperador Constâncio II artesãos capazes de
«transferirem o pensamento de um embrulho desgastado para outro
novo, recentemente confecionado». No século V, Jerónimo de
Estridão mencionou outra biblioteca, na cidade romana de Cesareia
— situada na costa mediterrânica da atual Israel, entre Telavive e
Haifa —, onde também tinham iniciado a tarefa de transferir todos
os seus livros para o formato códice.
Até ao recente aparecimento dos tablets e dos livros digitais,
durante vinte séculos nós, leitores, não voltámos a sofrer o sismo de
uma grande mudança de formatos. Os livros de páginas que Marcial
acolheu com entusiasmo no século I permanecem ao pé de nós no
século XXI — fiéis, simples, a conservarem a nossa memória, a
transportarem a nossa sabedoria, a suportarem os ultrajes do
tempo.

Bibliotecas públicas nos palácios de água

27

A 15 de março, de 44 a. C. — nos idos de março, segundo o


calendário romano —, assassinaram Júlio César apunhalando-o no
Senado, em frente à estátua do seu velho inimigo Pompeu, que
ficou manchada pelos salpicos do seu sangue. Em nome da
liberdade, um grupo de senadores afundou uma e outra vez as suas
adagas no corpo de um homem de cinquenta e seis anos, no seu
pescoço, nas suas costas, no seu peito e na sua barriga. Vendo
punhais erguidos por todo o lado, o último movimento de César foi
um gesto de pudor. À beira da morte, ofuscado pelo sangue,
preocupou-se em esticar a sua túnica sobre as pernas para cair
mais nobremente, sem mostrar o seu sexo. As adagas continuaram
a acertar-lhe selvagens picadas enquanto jazia indefeso ao pé das
escadas do pórtico. Recebeu vinte e três punhaladas, das quais,
segundo Suetónio, só uma foi mortal.
Os conspiradores gostavam de se referir a si próprios como «os
libertadores». Consideravam César um tirano que aspirava a ser rei.
Aquele assassinato político, talvez o crime mais famoso da História,
despertou tanto admiração como repugnância. Não foi por acaso
que, mil e novecentos anos depois, John Wilkes Booth utilizou
«idos» como palavra-passe para o dia em que matou Abrahan
Lincoln, nem que, enquanto fugia da cena do crime, Booth gritasse
uma frase em latim: Sic sempre tyrannis («Este é o destino dos
tiranos»).
Será que Júlio César era um tirano em ascensão? Sem dúvida,
foi um general carismático e um político sem escrúpulos. Alguns dos
seus contemporâneos qualificaram a sua campanha na Gália como
genocídio. É verdade que, nos seus últimos anos de vida, se
esforçava cada vez menos para dissimular a sua gigantesca
ambição. Tinha sido nomeado ditador vitalício e atribuiu a si próprio
o direito de levar o traje triunfal sempre que quisesse — com a
coroa de louro, que não podia ser mais prática para disfarçar a sua
calvície. Para a posteridade, o seu nome sempre simbolizou um
título de poder autoritário (césar, czar). Porém, o seu assassinato
não salvou a República. O crime dos idos foi um selvagem
derramamento de sangue que não conseguiu atingir nenhum dos
seus objetivos. Desencadeou uma longa guerra civil, mais mortes,
novas destruições e, no fim, sobre as ruínas fumegantes, Augusto
instaurou a monarquia imperial. O jovem imperador, herdeiro e
sucessor do seu tio, mandou colocar uma estrutura de betão para
assinalar e encerrar a cena do crime. Hoje, tantos séculos depois,
os gatos vadios de Roma refugiam-se no Largo di Torre Argentina, o
lugar onde Júlio César agonizou.
Como dano colateral, nos idos de março, os pobres leitores
saíram a perder. Entre outros planos, César tinha previsto construir
a primeira biblioteca pública de Roma, o mais rica possível, e tinha
confiado ao sábio Marco Varrão a tarefa de adquirir e classificar os
livros. A nomeação era lógica, porque Varrão tinha escrito um
ensaio intitulado Sobre Bibliotecas, do qual sobreviveram apenas
uns escassos fragmentos.
Anos depois, Asínio Polião, seguidor de César, tornou realidade
o seu sonho com uma substancial pilhagem de uma expedição
militar de saque. Inaugurou uma biblioteca no mesmo edifício que —
simbolicamente — albergava o santuário da deusa Liberdade. Só
conhecemos este primeiro templo público dos livros através das
menções de vários escritores, já que os seus restos desapareceram
sem deixar marca. Sabemos que o espaço interior estava dividido
em duas secções, uma para obras em grego e outra para obras em
latim. Esta organização bilingue e bimembre repetir-se-á em todas
as bibliotecas romanas posteriores. Por força do amor-próprio
nacional, as duas secções deviam ter dimensões idênticas, embora,
por essa altura, uma estivesse a abarrotar e a outra
acusadoramente vazia. Face a cerca de sete séculos de textos
gregos, para a secção romana só se podia escolher entre dois
séculos de literatura. Sem ter em conta esses detalhes, a
mensagem que a biblioteca oficial de Polião transmitia era dupla: as
obras gregas ficavam incorporadas na sua língua original à
bagagem dos romanos; pelo contrário, era preciso fingir que os
chefes do poderoso império valiam tanto como os seus brilhantes
súbditos helenos. Nenhum aspeto da encenação podia denunciar
que, de facto, os colonizadores se sentiam complexados perante o
surpreendente património intelectual de um território conquistado.
Outro traço que todas as bibliotecas romanas herdariam foram
as estátuas de autores famosos. Em Roma, aqueles bustos nos
espaços públicos eram o equivalente literário das estrelas do
passeio da fama de Hollywood. Quem conseguia essa homenagem
tinha entrado no cânone. Para a sua biblioteca, Polião encomendou
apenas um retrato de um escritor vivo: Varrão. Décadas mais tarde,
o desbocado Marcial, atento a todos os afãs da feira das vaidades
romanas, gabava-se do facto de o seu busto já decorar algumas
mansões aristocráticas. Na verdade, ele ambicionava uma estátua
nas galerias de personagens ilustres das bibliotecas públicas. Tudo
parece indicar que, como os eternos aspirantes ao Prémio Nobel,
ficou sempre à porta. Nos seus epigramas abundam os refrães de
pedinchão, a mendigar sem rodeios honras, bajulação ou dinheiro,
mas em geral, como ele próprio contou com humor e autoironia, a
sua esperança desembocava em grandes deceções.
A biblioteca de Asínio estava aberta aos leitores provavelmente
desde a alvorada até ao meio-dia. Devia ser frequentada por um
público variado: escritores, estudiosos, amantes do conhecimento,
mas também copistas enviados pelos seus amos ou pelos livreiros
com a tarefa de fazerem cópias das obras. O mais provável é que,
para procurar os livros nos armários, houvesse pessoal
especializado. Também sabemos que algumas bibliotecas
autorizavam o empréstimo. O escritor Aulo Gélio conta um episódio
que o prova. Tinha-se reunido com uns amigos para jantar e
conversar. Quando lhes serviram neve derretida para beber, um
convidado especialista em Aristóteles avisou-os de que, segundo o
filósofo, era prejudicial para a saúde. Como alguém negou essa
afirmação, o teimoso comensal, ferido no seu orgulho, deu-se ao
trabalho de ir à biblioteca da cidade, conseguiu que a abrissem para
ele e regressou com um exemplar da obra de Aristóteles que incluía
o parágrafo em questão — essa era a custosa forma de encerrar as
discussões antes de existirem os motores de pesquisa da Internet.
O imperador Marco Aurélio e o seu professor Marco Cornélio
Frontão também referem nas suas cartas que levavam livros para
casa emprestados. Para além desses testemunhos casuais,
conservou-se em Atenas uma inscrição da época imperial avisando
de que os diretores proibiam o serviço de empréstimos, de onde se
deduz que noutros estabelecimentos devia ser permitido. A inscrição
diz textualmente: «Daqui não vai sair nenhum livro; foi isso que
jurámos.»
As duas bibliotecas públicas seguintes da urbe foram construídas
por Augusto, uma no monte Palatino e a outra no Pórtico de
Octávia. Os arqueólogos encontraram vestígios da Biblioteca
Palatina. Graças às escavações temos uma imagem fiável do seu
design arquitetónico e do seu interior. Foram encontradas duas
câmaras contíguas de tamanho idêntico para a coleção bilingue. Em
ambas, os livros repousavam dentro de uns armário de madeira com
estantes e portas, embutidos em grandes nichos, com números que
remetiam para o catálogo. Dada a grande altura dos nichos, deviam
dispor de pequenas escadas portáteis para chegarem às prateleiras
superiores. No seu conjunto, o edifício recorda mais as nossas salas
de leitura contemporâneas do que as bibliotecas gregas, onde não
havia instalações para os leitores. Os leitores gregos escolhiam um
rolo das estantes e iam para um pórtico contíguo. Em Roma, as
divisões são feitas para proporcionar um ambiente amplo, belo e
luxuoso. Os livros descansam nos armários, ao alcance da mão,
mas sem obstruírem a passagem. Havia mesas, cadeiras, madeiras
trabalhadas, mármores: um prazer para a vista e um desperdício de
espaço.
À medida que as coleções cresciam, eram necessários novos
armários. Os problemas de armazenamento eram difíceis de
resolver porque os nichos para livros estavam integrados na
estrutura arquitetónica do edifício e não se podiam improvisar. Era
preciso fundar novas bibliotecas. O imperador Tibério abriu uma ou
talvez duas durante o seu reinado, e Vespasiano ergueu outra no
Templo da Paz, provavelmente para celebrar com livros e
proclamações de concórdia que tinha submetido a ferro e fogo a
revolta da Judeia.
Os vestígios que apresentam uma melhor conservação
correspondem às bibliotecas gémeas construídas por ordem de
Trajano em 112 como parte do seu fórum monumental. A sala grega
e latina ficavam uma em frente da outra, separadas por um pórtico
em cujo centro ainda se ergue a famosa coluna de Trajano. Os
arqueólogos acreditam que o emblemático monumento
representava um grande rolo de pedra, com os seus trinta e oito
metros de cenas em baixo-relevo a cores sobre as Guerras Dácias
— como vinhetas de uma BD bélica. O relato das campanhas
desenvolve-se numa fita contínua que ascende em espiral: milhares
de romanos e dácios esculpidos minuciosamente marcham,
constroem, lutam, navegam, evadem-se, negoceiam, suplicam e
perecem em cento e cinquenta e cinco cenas — um autêntica
novela gráfica.
O interior das duas bibliotecas era um prodígio de luxo aberto a
todos os públicos: dois andares de armários, colunas, galerias,
cornijas, revestimentos de mármore multicolor da Ásia Menor e
estátuas. Imagino os rostos boquiabertos das pessoas comuns
perante uma revelação de beleza estética e de comodidades que
até então tinham sido exclusivas da aristocracia, e uma coleção de
cerca de vinte mil livros acessíveis a qualquer leitor. Graças ao
primeiro imperador hispânico, em Roma já não era preciso cortejar
os ricos para ler num ambiente faustoso.

28

A biblioteca de Trajano foi a última da sua espécie. A partir do


século II, as novas salas de leitura integraram-se nos banhos
públicos imperiais. Para além de proporcionarem todos os serviços
de umas termas — salas temperadas, salas quentes, saunas,
banhos frios, salas de massagens —, aqueles edifícios chegaram a
ser autênticos complexos de lazer, que antecipavam os nossos
centros comerciais. As termas de Caracala, inauguradas em 212,
incluíam ginásios, espaços para a leitura, salas para a conversa, um
teatro, os próprios banhos, jardins, espaços destinados ao exercício
ou ao jogo, estabelecimentos para comer e biblioteca grega e latina
separadas; tudo pago pelo Estado.
Com a construção destes banhos grandiosos e gratuitos, os
imperadores conquistavam os seus súbditos. «O que há pior do que
Nero?», perguntava-se Marcial. «E melhor do que as suas termas?»
Iam até lá todos os romanos, homens e mulheres, jovens e velhos,
ricos e pobres. Alguns tomavam banho e estendiam-se nos leitos de
massagem, outros jogavam à bola ou julgavam o jogo do próximo
com conselhos que ninguém lhes tinha pedido, iam a conferências,
conversavam com os amigos, murmuravam nas costas dos seus
conhecidos, bradavam contra as taxas municipais, queixavam-se do
preço dos cereais, devoravam salsichas ou bisbilhotavam na
biblioteca. O filósofo Séneca, que desesperava a tentar concentrar-
se no seu escritório situado mesmo por cima de umas termas,
escreveu uma divertida descrição da festança e da alegria dos
banhos: «Quando os atletas fazem exercício com pesos de chumbo,
ouço os seus assobios e as suas ofegantes respirações. Ouço o
estalo da mão do massagista ao sacudir umas costas. Se de
repente chega o jogador de bola e começa a contar os golos,
estamos perdidos. Acrescente o brigão, o ladrão apanhado e os que
saltam para a piscina produzindo um grande estrépito com os seus
mergulhos. Pense no depilador que lança um grito agudo para se
fazer notar e obriga os outros a gritar quando lhes depila os
sovacos. Depois o vendedor de bebidas, o salsicheiro, o pasteleiro e
os vendedores que apregoam a sua mercadoria com uma peculiar
modulação.» Sem dúvida, a atmosfera mais adequada para o autor
das reflexões sobre a serenidade em De tranquilitate animi.
Ao contrário das requintadas bibliotecas dos fóruns, as salas de
leitura dos banhos orientavam-se para os gostos de um público
amplo, díspar e frívolo. Os seus leitores deviam ser, acima de tudo,
pessoas curiosas em busca de entretenimento, que recorriam aos
livros como alternativa aos jogos da bola, aos mergulhos e à
conversa pouco substancial. Supomos que as coleções de livros
incluíam sobretudo clássicos de renome nas duas línguas, autores
contemporâneos que estavam na moda e talvez algum filósofo. A
criação de bibliotecas situadas dentro dos banhos romanos a
abarrotar foi um grande sucesso. Uniu cultura, entretenimento,
negócios e educação numa vigorosa fusão sob o mesmo teto.
Traduziu-se por um enorme impulso para universalizar os livros,
colocando-os num meio popular e buliçoso que não intimidava os
leitores inexperientes.
Para além do mais, as bibliotecas das termas levaram a leitura a
todos os cantos do Império. Os centros de ócio não eram exclusivos
da capital, pois formavam uma autêntica rede por todos os territórios
conquistados pelos romanos. Na verdade, alguns especialistas
acreditam que a cultura do banho era a única instituição pública
partilhada que unia os distantes cidadãos imperiais.
O usufruto dos prazeres da água chegou a converter-se numa
marca de identidade da cultura pagã e da civilização de Roma, até
ao ponto de os cristãos mais estritos abominarem as termas como
sintoma de volúpia, de sensualidade e de corrupção espiritual. Ainda
se conserva a carta de um monge camponês do século V que
afirmava: «Não nos queremos lavar nos banhos.» Os homens
santos entenderam o fedor como uma medida de devoção ascética.
Recusavam a limpeza para expressarem a sua oposição ao estilo
de vida dos romanos. Simeão, o Estilita, negava-se a deixar que a
água lhe tocasse e «o fedor era tão potente e hediondo que era
impossível subir nem que fosse até meio das escadas sem
incómodo; alguns dos discípulos que se obrigavam a chegar até ele
só podiam subir depois de terem untado no nariz incenso e
unguentos fragrantes». Após passar dois anos numa gruta, São
Teodoro de Estudita surgiu «com um fedor tal que ninguém
suportava estar perto dele». Clemente de Alexandria escreveu que o
bom gnóstico cristão não quer cheirar bem: «Repudia os prazeres
espetaculares e os restantes requintes do luxo, como os perfumes
que agradam o sentido do olfato ou as atrações dos diversos vinhos
que seduzem o paladar ou as grinaldas fragrantes feitas com
diferentes flores que enfraquecem a alma através dos sentidos.»
Naquela altura, o «cheiro de santidade» era fétido.
Contudo, deixando de lado as minorias rigoristas, os habitantes
das províncias imperiais abraçaram com entusiasmo os prazeres do
banho, e as termas trouxeram consigo, entre outros passatempos e
luxos, uma maré de livros.

29

A cidade das vinte e nove bibliotecas: um catálogo dos edifícios


emblemáticos de Roma datado do ano 350 refere esse número
preciso. No entanto, fora da capital, é difícil seguir o rasto dos livros.
Só possuímos informações caprichosas, incompletas, às vezes
desconcertantes. Em Pompeia, os arqueólogos descobriram
vestígios de uma sala de leitura. Uma inscrição da cidade de
Comum — hoje Como — recorda que o escritor Plínio, o Jovem,
doou à sua cidade de origem uma biblioteca e o montante de cem
mil sestércios para mantê-la. Outra inscrição encontrada na costa,
não longe de Nápoles, fala de uma biblioteca sufragada por
Salonina Matídia, a sogra do imperador Adriano. Há marcas casuais
de outras coleções públicas doadas em Tibur (atual Tivoli) e em
Volsínios (Umbria).
Geralmente, o dinheiro para financiar essas coleções não
provinha do tesouro público, mas sim das arcas de generosos
doadores. Durante toda a Antiguidade, pesava sobre os ricos a
obrigação não escrita de gastar parte da sua riqueza na
comunidade: financiar jogos circenses, construir anfiteatros,
pavimentar caminhos ou erguer aquedutos. Se, como escreveu
Balzac, por trás de qualquer grande fortuna há sempre um crime,
investir em melhorias coletivas parecia aos antigos a melhor forma
de indemnizar a sociedade por aquelas crueldades iniciais. Nos
edifícios públicos abundam as siglas DSPF (de sua pecunia fecit)
juntamente com o nome de um cidadão. Estas ostentações de
filantropia nem sempre eram estritamente voluntárias: os potentados
que resistiam a contribuir sofriam pressões, e não se podiam negar
durante muito tempo, correndo o risco de perderem o seu prestígio.
Se um milionário forreta precisava de um suave empurrão para abrir
os cordões à bolsa, os plebeus iam até à porta da sua casa para lhe
dedicarem cantigas sarcásticas e fazerem troça dele. É muito
provável que alguma biblioteca de província fosse criada numa
dessas antigas manifestações de protesto.
Na zona de fala grega do Império, existiam bibliotecas públicas
desde a época helenística. Os imperadores romanos apoiaram
aqueles prestigiosos centros do saber, investindo nas coleções de
Alexandria e Pérgamo. A venerável cidade de Atenas ganhou duas
novas bibliotecas no século II, uma delas presente de Adriano, e a
outra de um concidadão que pagou um pórtico, uma sala com os
seus livros e toda a decoração do recinto «do seu próprio bolso» —
assim o proclama numa inscrição, com ênfase e aparentemente
com o bolso ainda dorido. Em Éfeso, um tal Tibério Júlio Celso
ergueu uma biblioteca em memória do seu pai, grande amante dos
livros.
Pelo contrário, o Ocidente aparece, à primeira vista, como um
grande baldio. Em toda a zona geográfica que hoje engloba a
Inglaterra, a Espanha, a França e a costa setentrional da África, só
há provas da existência de bibliotecas em dois sítios: Cartago, na
Tunísia, e Timgad, na Argélia. Temos informação sobre a primeira
através da menção de um escritor; sobre a segunda, graças à
arqueologia.
É verdade que, segundo os estereótipos da época, o foco da
civilização estava a Oriente, enquanto os habitantes de Poente
chapinhavam na barbárie, no subdesenvolvimento e na ignorância.
Em todas as épocas, as potências mais poderosas constroem as
suas oposições geográficas — Norte/Sul, Este/Oeste — e não
permitem que os factos lhes arruínem um bom preconceito. Na
Antiguidade, a Europa ocidental conheceu culturas muito
sofisticadas e quase todas elas foram destruídas pelos seus
civilizados invasores. Em todo o caso, no início da época imperial a
globalização romana tinha atenuado as diferenças entre territórios.
Os arquitetos e engenheiros de Roma urbanizaram
conscientemente o Ocidente, substituindo as aldeias nativas por
uma rede de cidades, pequenas e grandes, dotadas de redes de
esgotos, aquedutos, templos, fóruns e termas. Nelas deve ter havido
livros. Durante aqueles anos a cultura escrita, embora não tão
enraizada como no mundo grego, espalhou-se nas comunidades
romanizadas. Havia professores que ensinavam latim nas escolas
das principais povoações, enquanto os grandes centros ofereciam
educação secundária e retórica. Em capitais como Cartago ou
Marselha, os habitantes mais ricos podiam estudar o equivalente à
formação universitária da época. Marcial, que nasceu na celtibera
Bilbilis e chegou a Roma ao fazer vinte anos, demonstrou um
excecional domínio da língua latina. Se não foi no seu município
natal, de certeza que teve acesso a uma biblioteca em César
Augusta ou em Tarraco. E, como Bilbilis ou César Augusta, dezenas
de centros importantes do Ocidente albergaram cidadãos —
homens e mulheres — com riqueza, ambições culturais e apetite de
livros.
Quando caminho pelas ruas de traçado romano da minha cidade
penso que em algum lugar, como na mágica Oxford, dorme uma
grande biblioteca no subsolo. Esmagadas pelo bulício das ruas, sob
o asfalto e a pressa, mil vezes pisadas e saqueadas, sem dúvida
devem sobreviver os últimos fragmentos dos nichos onde os nossos
antepassados remotos conheceram os livros.

Dois hispânicos: o primeiro fã


e o escritor maduro

30

A imagem das adolescentes a gritarem, a soluçarem e a


desmaiarem com a chegada dos seus ídolos musicais não nasceu
com Elvis e os Beatles. Na verdade, nem sequer é um fenómeno
surgido com o rock’n’roll, mas sim com a música clássica. Já no
século XVIII os castratti despertavam paixões. E nas civilizadas salas
de concertos do século XIX, um pianista húngaro que agitava a
melena ao inclinar-se sobre o teclado provocou um autêntico delírio
de massas conhecido como lisztomania, ou «febre Liszt». Se as fãs
das estrelas de rock lhes atiram a sua roupa interior, Franz Liszt via
como lhe atiravam joias. Foi o ícone erótico do século vitoriano. Na
época dizia-se que o seu bambolear e as suas estudadas poses ao
interpretar provocavam êxtases místicos na audiência. Primeiro
menino-prodígio e depois jovem histriónico, protagonizou digressões
multitudinárias pelo continente. Durante os aparecimentos públicos
de Liszt, os seus fãs amontoavam-se a gritar, a suspirar e a sofrer
tonturas. Seguiam-no pelas sucessivas capitais onde dava
concertos. Tentavam roubar-lhe os seus lenços e luvas e usavam o
seu retrato em broches e camafeus. As mulheres tentavam cortar-
lhe madeixas de cabelo, e sempre que uma corda do piano se partia
explodiam autênticas batalhas campais para consegui-la de modo a
fabricarem uma pulseira com ela. Algumas admiradoras
assediavam-no na rua e nos cafés, munidas de frascos de vidro
onde vertiam as borras do café da sua chávena. Uma vez uma
mulher apanhou os restos do seu charuto ao pé do pedal do piano,
e usou-os no decote, dentro de um medalhão, até ao dia da sua
morte. A palavra celebrity foi usada pela primeira vez para se referir
a ele.
Apesar disso, ainda podemos recuar mais no tempo.
Provavelmente, as primeiras estrelas internacionais foram um grupo
de escritores da época imperial romana (Tito Lívio, Vergílio, Horácio,
Propércio e Ovídio).
Na verdade, o primeiro fã conhecido da História foi um hispânico
de Gades, obcecado por conhecer o seu ídolo, o historiador Tito
Lívio. Contam-nos que no início do século I começou uma perigosa
viagem «desde o canto mais remoto do mundo», ou seja, a atual
Cádis, até Roma para ver de perto, com os seus próprios olhos
deslumbrados, o seu artista preferido. Imaginando que fizesse a rota
por terra, o devoto gaditano precisou de mais de quarenta dias de
trajeto para fazer a sua peregrinação idólatra, sofrendo as péssimas
refeições e o suplício dos piolhos nas estalagens empoeiradas,
avançando aos solavancos ao lombo de pilecas e em carroças
velhas, a tremer pelo medo dos salteadores de caminhos nas
florestas solitárias. Percorreu as estradas do império, contornadas
pelos cadáveres de bandidos executados que apodreciam
empalados em estacas no lugar onde tinham cometido o seu crime.
À noite rezava para que os escravos que o escoltavam não
fugissem ou se virassem contra ele em terra estrangeira. Esvaziou
várias bolsas de moedas pelo caminho. Ele próprio emagreceu por
causa de umas gigantescas diarreias provocadas pelo mau estado
das águas. Assim que chegou a Roma, perguntou pelo famoso
Lívio. Conseguiu vê-lo ao longe, talvez se tenha fixado na sua forma
de se pentear e de vestir a toga para imitá-lo e, sem sequer se
atrever a dirigir-lhe a palavra, deu meia-volta, de regresso — outros
quarenta dias de viagem — ao seu lar. Plínio, o Jovem, contou o
episódio numa das suas cartas, sem saber que estava a descrever o
primeiro perseguidor de celebridades conhecido.
A globalização romana criou leitores em territórios muito
afastados da urbe. Horácio gabava-se de que os seus livros fossem
conhecidos no Bósforo, na Líbia, nos atuais Cáucaso e Hungria, no
país do Reno e na Hispânia. Propércio afirmava que a sua glória
tinha chegado às invernais margens do rio Borístenes, hoje Dniepre.
Ovídio escreveu, sem rodeios nem falsa modéstia, que era muito
lido «em todo o mundo». Em geral, os romanos tinham tendência
para confundir os limites do seu império com os do planeta. É um
traço típico das visões imperiais — já o rei Sargão, o Grande, cujos
domínios se estendiam do Golfo Pérsico ao Mediterrâneo, se
gabava de ter conquistado o mundo inteiro. No caso dos escritores
romanos, deixando de lado as imprecisões geográficas e as
fanfarronices, era verdade que as fronteiras da leitura se estavam a
expandir numa progressão assombrosa: os livros de sucesso
começavam a atravessar continentes, mares, desertos, montanhas
e selvas, durante a vida dos seus autores. As ideias e as palavras
circulavam pelas modernas estradas. Os livros de Marcial podiam
comprar-se em Viena e na Britânia; os de Plínio, o Jovem, numa
livraria de Lyon. Juvenal, um conservador que se opunha à nova
cultura inclusiva e global, indignava-se ao imaginar um imundo
cântabro com livros de filosofia romana entre as suas bárbaras
mãos: «Agora o mundo inteiro possui uma cultura grega e romana; a
eloquente Gália formou britanos como advogados e em Thule já se
falava de contratar um professor de retórica. Onde é que havia, na
época do velho Metelo, um estoico cântabro?»
Na capital, nativos e forasteiros eram capazes de reconhecer os
escritores mais famosos na rua, e perseguiam-nos como os
admiradores e os groupies do nosso tempo. Vergílio, que sofria de
uma timidez patológica, fugiu várias vezes dos grupos de
seguidores que o assediavam, apontando com o dedo para ele.
Porém, nem tudo eram inconvenientes. Entre a nobreza romana
existia o costume de legar uma parte dos grandes patrimónios a
indivíduos importantes para a comunidade, e, nesses casos, os
escritores não eram esquecidos. Na verdade, conta-se que os dois
grandes autores rivais Tácito e Plínio, o Jovem, mediam a sua fama
pela quantidade de heranças que davam a um e a outro. Num
tempo em que não era possível competir sobre a quantidade de
exemplares vendidos — era impossível estabelecer um cálculo
fiável —, o top ten das estrelas do firmamento literário media-se
pelas gorjetas que os testamentos aristocráticos lhes deixavam.
De Lívio a Liszt, há uma longa história desconhecida de fama,
fetichismo, fãs avassaladores e paixões assolapadas pelos
clássicos.

31

Esta será a tua última grande viagem. Com quase sessenta


anos, enquanto deixas Roma para trás, sentes-te invadido pelo
entusiasmo da aventura. A navegação de Ostia a Tarraco é calma;
balançando pelas ondas e pelos ventos favoráveis, o barco embala-
te no mar da memória. Viveste trinta e cinco anos na urbe. Chegaste
muito novo à capital do Império, onde conseguiste sobreviver a
escrever livros — e a enganar os ricos. Foste um parasita simpático
e espirituoso nas mansões nobres, o engraçado imprescindível das
suas festas. Tratavam-te um pouco melhor do que a um mordomo,
mas bastante pior do que a um amigo.
Sem contratempos, a nau deixa-te em Hispânia, num dia azul de
luz ofuscante. Em Tarraco contratas um guia com uma carroça e
duas mulas. Iniciam a marcha sem pressa: passarão seis dias nos
caminhos até chegarem à tua terra natal.
Numa tarde são surpreendidos por uma brusca tempestade num
atalho sem pavimentar. Têm de puxar como animais da carroça, que
uma e outra vez fica atolada na lama. Quando atravessas a muralha
de César Augusta, sujo e com os olhos raiados de sangue, mais
pareces um mendigo sarnento do que uma celebridade de Roma.
Vais para as termas, onde suas, conversas e dormitas. Vagueias
entre a confusão do porto, ao pé do rio amarelado, e aproveitas para
comprar dois escravos num leilão. Alguém que triunfou lá fora deve
chegar escoltado por homenzarrões de costas largas e peito
frondoso.
Quando retomas a marcha, ficas emocionado ao contemplar a
solitária silhueta do monte Cayo — aquele ao qual, séculos depois,
chamaremos Moncayo, e cuja sombra oferecerá refúgio e inspiração
a outros escritores, como um tal Bécquer e um tal Machado.
Quando te aproximas do rio Jalón, revives o ruidoso chapinhar da
tua infância ao pé dos outros meninos nas suas águas pouco
profundas. De novo sujo pelo pó do caminho, sonhas voltar ao
calmo balneário de Aquae Bilbitanorum — as mesmas águas
mornas que mais à frente receberão o nome muçulmano de Alhama.
Reconheces a paisagem da tua infância: os outeiros, o meandro do
rio, as minas de ferro, as espigas altas que esperam a ceifa, os
pinheiros, as azinheiras, a sombra dos pâmpanos. Uma lebre
desaparece atrás de um matagal, despertando o teu apetite pelos
manjares da caça. Por fim, ali se ergue a escarpada Bilbilis, os
telhados das casas inclinados, a silhueta do tempo, as recordações.
O teu coração retumba. Tens à espera na tua terra os louros da
glória, ou as dentadas da inveja? Conhecendo os teus vizinhos, é
mais provável alguma frase depreciativa dita entredentes. Pelo
menos, acabarão as insónias de Roma, o concerto de cocheiros que
se insultam à noite, a obrigação de madrugar e de suar a toga a
correr para a casa dos poderosos, as palavras falsas. Sobre o céu
tranquilo da Celtibéria, amigo Marcial, dormirás como uma pedra.
Ainda não sabes, mas vais conhecer uma viúva madura e rica,
chamada Marcela, que admira os teus versos. Lisonjeada pela ideia
de ter um amante famoso em Roma, oferecer-te-á uma propriedade
com os seus prados, com as suas roseiras, uma fonte que sussurra
estrofes de água, tanques cobertos onde nadam as enguias, uma
horta de hortaliças e um branco pombal. Graças e ela — corpo
robusto e quente, a tua última companheira de cama, a tua mecenas
mais generosa —, escaparás por fim da ameaça da miséria, que
nunca te abandonou totalmente em Roma. Comerás numa mesa
farta. Mandriarás. Dormirás longas sestas de barriga para cima sob
as sombras das árvores que atenuam os verões sem nuvens.
Durante o inverno deixarás passar as horas fascinado com o baile
hipnótico da lareira. Conhecerás finalmente a calma, mas deixarás
de escrever. Com o estômago cheio, a tua raiva apaziguar-se-á e
deixarás para trás a tua máscara d’enfant terrible.
Quando estavas em Roma, irritavas-te com a vida artificial e a
hipocrisia que observavas à tua volta. Estavas farto de bajular os
poderosos. Então a nostalgia ditava-te poemas nos quais
enumeravas os ásperos nomes da tua terra. Bem, já regressaste ao
teu pequeno paraíso de sossego. Dentro de pouco tempo vais
começar a resmungar entredentes, a murmurar a tua saudade das
reuniões, dos teatros, das bibliotecas de Roma, da agudeza do teu
círculo social, dos prazeres e do bulício da capital; em suma, de
tudo o que deixaste pelo anseio de tranquilidade.

Herculano: a destruição que preserva


32

As majestosas bibliotecas de Roma que povoavam os sonhos


nostálgicos de Marcial na Hispânia acabariam por sucumbir após
uma sucessão de desastres, pilhagens, incêndios e acidentes.
Paradoxalmente, a única biblioteca antiga que conservamos
sobreviveu graças à ação de forças destruidoras.
A 24 de outubro do ano de 79, sob o Império de Tito, o tempo
deteve-se em Pompeia e Herculano, duas cidades na baía de
Nápoles que estavam na moda. Ali, os cidadãos mais ricos da
capital tinham mandado construir as suas mansões. O sol era
resplandecente, as águas eram de um azul muito puro, o cheiro da
murta adoçava o ar, sucediam-se as festas para divertir os
veraneantes, a vida era relaxada e os prazeres fáceis. Porém,
naquele dia de outono, desde o início da manhã, um fio de fumo
negro alçou-se desafiante da cratera do Vesúvio até ao céu.
Rapidamente começou a cair sobre as estradas de Herculano uma
espécie de lama, mistura de chuva, cinzas e lava. Cobriu os
telhados e entrou por janelas e frestas. Por fim, um fluxo vulcânico a
600 ºC arrasou tudo. Só ficaram os ossos dos seus habitantes.
Pompeia ficou envolvida em vapores de enxofre que tornaram o ar
irrespirável. Depois de um finíssimo chuvisco de cinzas seguiu-se
um de granizo, de pequenas pedras vulcânicas e, por último, de
pedras-pomes de vários quilos. As pessoas saíam horrorizadas das
suas casas, mas já era tarde para fugir.
A cidade, sepultada durante cerca de mil anos sob uma camada
de cinzas solidificadas e lapilli, converteu-se numa espécie de
cápsula do tempo. A temperatura de 300 ºC gerou crostas de cinza
vulcânica em redor dos retorcidos corpos dos seus habitantes. No
século XIX, os arqueólogos injetaram gesso nos buracos
fantasmagóricos que os corpos mortos deixaram nas cinzas. Esses
moldes de gesso permitem-nos contemplar os pompeianos
eternizados no último ato das suas vidas: um casal procura refúgio
num abraço imperecível, um homem morre sozinho com a cabeça
afundada entre as mãos, um cão de guarda tenta freneticamente
libertar-se da sua trela, uma menina abriga-se convulsa no regaço
da sua mãe como se quisesse voltar à sua barriga. Alguns deles
ainda parecem contorcer-se, encolhidos de medo, dois mil anos
depois. Em Romance na Itália, de Rossellini, um casal em crise que
viaja pela Itália assiste com angústia ao esvaziamento das estátuas
de gesso de dois amantes que encontraram a morte juntos,
engolidos pela lava.
Várias gerações antes da catástrofe, Lúcio Calpúrnio Pisão,
sogro de Júlio César, encomendou um palácio de duzentos metros
de fachada em Herculano. Quando, em meados do século XVIII, os
arqueólogos descobriram os restos da fastuosa residência,
encontraram mais de oitenta estátuas de bronze e mármore, e a
única biblioteca sobrevivente do mundo clássico. A coleção contém
cerca de dois mil rolos carbonizados, que a erupção destruiu e
preservou simultaneamente. Devido a esta descoberta sem
precedentes, a grande villa de Pisão é conhecida como a Villa dos
Papiros. Aquela mansão romana sepultada pela lava impressionou
de tal forma o magnata do petróleo Jean Paul Getty que este
mandou construir uma villa idêntica em Malibu — hoje essa réplica
alberga uma sede do Museu Getty.
Durante décadas, a villa de Lúcio Calpúrnio tinha sido um lugar
de reunião para um conhecido círculo de filósofos epicuristas, entre
os quais se encontrava o poeta Vergílio. Pisão foi um poderoso
magistrado e leitor entusiasta das obras do pensamento grego.
Cícero, seu inimigo político, retratou o riquíssimo aristocrata
cantando cantigas obscenas e recriando-se nu «no meio da fetidez
e do lamaçal dos seus queridos gregos» — a subtileza não
abundava nas diatribes políticas da época. Independentemente de
Pisão organizar ou não as suas esporádicas orgias, a julgar pelo
conteúdo da sua biblioteca, parece provável que os convidados da
villa passassem as tardes em Herculano dedicados a
entretenimentos apaixonantes, embora talvez menos sensuais.
Os romanos poderosos do final do período republicano e início
do Império consideravam que o lazer intelectual era um dos seus
privilégios mais queridos. Muitos deles dedicavam longas horas das
suas vidas, por outro lado ocupadíssimas, a debater com talento e
seriedade sobre os deuses, sobre as causas dos terramotos, do
trovão e dos eclipses, sobre a definição do bem e do mal, sobre as
metas legítimas da vida e sobre a arte de morrer. Atendidos por
escravos, no conforto das suas elegantes villas, agarravam-se aos
tesouros das suas bibliotecas e àquelas civilizadas conversas
intelectuais como se, de alguma forma, quisessem acreditar que o
seu velho mundo continuava intacto, apesar das guerras civis, da
violência, das tensões sociais, dos rumores de distúrbios, do
aumento do preço dos cereais e das lentas colunas de fumo que o
Vesúvio vomitava. Esses homens e mulheres privilegiados que
viviam no epicentro da maior potência do mundo refugiavam-se nas
suas luxuosas mansões para esquecerem todos os perigos,
reduzindo-os a ameaças remotas, a assuntos de ínfima importância
pelos quais não valia a pena chatear-se ou interromper uma
conversa especulativa sobre, por exemplo, os testículo dos
castores, tema que tanto interessava a Aristóteles. É desse gosto
dos novos romanos por se deitarem nos seus confortáveis divãs —
triclínios ou três leitos em redor de uma mesa — sobre almofadões
de púrpura bordada, enquanto lhes serviam bebida e iguarias, para
raciocinarem tranquilamente uns com os outros, que vem a nossa
expressão «hablar largo y tendido» [falar longamente em
português].
As escavações da Villa dos Papiros revelaram que os livros do
sibarita Pisão estavam guardados numa divisão de três por três
metros com prateleiras nas paredes e uma estante de madeira de
cedro ao centro com prateleiras dos dois lados. Os rolos eram
transferidos para o pátio contíguo para poderem lê-los com boa luz,
entre luxuosas estátuas. Nesse design, o arquiteto da villa seguia o
precedente grego.
Naquele dia 24 de outubro, a explosão de gás do vulcão
carbonizou os rolos de papiro antes de a cidade ficar enterrada
sobre uma fina cinza vulcânica que depois arrefeceu e solidificou.
Quando os escavadores e caçadores de tesouros exploraram a villa
no século XVIII, confundiram os restos dos rolos com pedaços de
carvão e tronco queimados. Na verdade, chegaram a usar alguns
deles como tochas, onde arderam as antigas palavras de livros
perdidos — um curioso caso de comunicação por sinais de fumo.
Quando compreenderam o que tinham à sua frente, perguntaram-se
se seria possível lê-los. Na euforia da descoberta, recorreram a
métodos pouco delicados (usaram as unhas ou, pior ainda, facas de
talhante para cortá-los, com resultados previsíveis e lamentáveis).
Pouco tempo depois, um italiano inventou uma máquina para tentar
abri-los com delicadeza, mas era um trabalho desesperadamente
lento. Foram necessários quatro anos para abrir o primeiro rolo e, de
qualquer forma, os fragmentos obtidos com a máquina, negros
como um jornal queimado, eram frágeis e difíceis de conservar
porque tinham tendência para se despedaçarem.
Desde então, os investigadores procuraram ferramentas
tecnológicas para decifrarem os segredos ocultos nos rolos
carbonizados de Pisão. Em algumas peças não se distingue nada;
noutras, é possível identificar poucas letras com microscópios. A
manipulação constante implica o risco de que os rolos se convertam
em pó preto em cima da mesa. Em 1999, cientistas da Universidade
Brigham Young, nos Estados Unidos, examinaram os papiros com
radiação infravermelha. A um determinado comprimento de onda,
conseguiam um bom contraste entre o papel e a tinta. Tocadas pela
luz invisível, as letras começaram a aflorar. Em vez de tinta preta
sobre papel preto, os especialistas distinguiram linhas escuras sobre
um fundo cinzento pálido. As possibilidades de reconstruírem os
textos melhoraram substancialmente. Em 2008, as imagens
multiespectrais propiciaram um novo avanço. Porém, nenhum dos
rolos identificados até agora — todos eles em grego — contém um
desses tesouros destruídos que tanto cobiçamos — nem poemas
desconhecidos de Safo, nem tragédias naufragadas de Ésquilo e
Sófocles, nem os diálogos perdidos de Aristóteles. Os livros
recuperados são, na sua maioria, tratados filosóficos sobre assuntos
muito especializados. Provavelmente, a descoberta mais notável foi
o ensaio Sobre a Natureza, de Epicuro. Mas muitos especialistas
suspeitam que na mansão de Lúcio Calpúrnio houve uma biblioteca
latina, ainda por descobrir. Entretanto, a moderna cidade de
Herculano ruge e vibra sobre as velhas ruínas, obstaculizando
escavações mais profundas. Talvez no futuro encontremos ali — e
seja possível lê-los — fascinantes livros perdidos. Talvez nas
próximas décadas vivamos um pequeno milagre literário sob o
vulcão.
Os primeiros arqueólogos de Herculano descobriram um grande
número de rolos espalhados pela propriedade dos Papiros,
empilhados no chão e introduzidos em malas de viagem, como se o
seu dono de então tivesse feito um último esforço para transferir a
coleção antes de esta ficar sepultada sob os vinte metros de detritos
vulcânicos que a cobriram. Imagino esse homem que há dois mil
anos se preocupava em salvar os seus livros enquanto o seu mundo
desaparecia, carbonizado pelo fluxo abrasador de rocha e ar a arder
que se lançou sobre Herculano a trinta metros por segundo e a 600
ºC de temperatura. Por uma estranha ironia histórica, para nós essa
biblioteca do apocalipse é a única sobrevivente de uma extensa
cartografia apagada.

33

As jazidas do passado atraíram as peregrinações de um exército


de novos fãs. Quando o rei de Nápoles e futuro rei de Espanha,
Carlos III, ordenou as escavações de Pompeia, Herculano e Estábia
no século XVIII, desencadeou-se a febre pelas antiguidades. As
cidades conservadas graças à catástrofe fizeram nascer jovens
paixões na Europa. Um mundo até então só imaginado tinha-se
tornado de repente visível, e a civilização antiga foi a última moda
no continente. A partir daquele reduto de uma época perdida,
perfilaram-se e irradiaram certos traços da modernidade: o Grand
Tour e o início do turismo, a arqueologia como disciplina científica,
as gravuras de ruínas, a arquitetura neoclássica dos centros do
poder, a utopia estética de Winckelmann, a vocação greco-latina
que palpitava por trás da alma revolucionária dos ilustrados.

Ovídio choca contra a censura

34

Teve sucesso — muito sucesso —, e desfrutava disso. Não se


envergonhava dos seus leitores sem apelidos aristocráticos. Era
divertido, sociável, hedonista. Gostava da dolce vita romana tal
como era — umas vezes vulgar, fastuosa, glutona; outras,
melancólica, poética e frágil. Escrevia com facilidade, sem
sofrimento e, ainda assim, sabia ser deslumbrante. Era difícil
perdoar um homem tão feliz.
Tinha nascido numa família tradicional de latifundiários. O seu
pai mandou-o estudar para Roma com a esperança de convertê-lo
num grande advogado, rico e respeitável, mas ele malogrou todas
as suas esperanças: gostava mais da poesia do que do direito.
Farto de tribunais e bons propósitos, não demorou a abandonar a
sua promissora carreira para se dedicar totalmente à literatura. Com
a sua poesia, não só defraudou o seu pai biológico, como, algum
tempo depois, também desagradou o pai simbólico de todos os
romanos, o imperador Augusto. Pagaria muito caro pela sua
segunda rebeldia. No entanto, antes de escorregar pelo precipício,
saboreou a fundo a glória e os aplausos.
Ovídio foi um explorador de novos territórios literários, e o
primeiro escritor a prestar uma atenção singularizada às suas
leitoras. Já referi que escreveu um tratado específico dedicado aos
cosméticos e à maquilhagem feminina. Em A Arte de Amar, um
manual em verso para aprender a engatar, dedicava um longo
capítulo — um terço da extensão total da obra — a dar conselhos de
conquista às mulheres, e a explicar-lhes as artimanhas dos
sedutores para enganá-las no amor. Estabeleceu com elas uma
intimidade até então desconhecida entre um autor e as suas
leitoras. Numa época de rápida expansão nos horizontes de leitura,
Ovídio juntou-se com agrado à transgressão dos valores arcaicos e
das velhas normas. A sua literatura jovem, inconformista e erótica
atraía as romanas da época; ele sabia-o e jogava com os limites.
Não via o abismo que pisava.
Alguns contemporâneos acusaram-no de ser frívolo,
esquecendo-se de que a frivolidade pode ser profundamente
subversiva. Ovídio lançou um olhar revolucionário sobre algumas
questões essenciais na Roma do século I a. C.: o prazer, o
consentimento e a beleza. Naquela época, os casamentos eram
uma combinação entre as famílias, que costumavam entregar
raparigas adolescentes a homens poderosos já maduros. Eram
tempos de dívida conjugal, tempos em que os escravos dos dois
sexos estavam à disposição dos apetites dos seus amos, como um
harém em potência. Por definição, as relações sexuais não eram
recíprocas nem igualitárias: era-se passivo ou ativo, era-se
penetrado ou penetrava-se. Existiam distinções muito enraizadas,
regras assumidas e limites codificados — como sempre, o principal
era uma questão de privilégio. O que era aceitável para um homem
rico não o era para um pobre; o que se consentia aos homens era
inadmissível para as mulheres. A pedofilia estava permitida com
alguém de classe inferior — escravo, estrangeiro, não cidadão.
Marcial não se envergonhou de tornar público o desejo e a atração
que sentia por uma escrava que era propriedade sua, à qual nos
seus poemas chama Erótion, morta aos seis anos de idade. Ovídio
desfez todas essas convenções e clichés ao escrever que gostava
de mulheres maduras, não de crianças. E que o seu prazer erótico
precisava do prazer da sua companheira. Eis uma passagem de A
Arte de Amar: «Prefiro uma amante que tenha ultrapassado os trinta
e cinco anos e já tenha cabelos grisalhos na sua melena: que os
apressados bebam o vinho novo; eu gosto mais de uma mulher
madura que conheça o seu prazer. Tem experiência, que constitui
todo o talento, e conhece mil posições no amor. A voluptuosidade
nela não é falsa. E, quando a mulher goza ao mesmo tempo que o
seu amante, é o cúmulo do prazer. Odeio o abraço em que um e
outra não se entregam inteiramente. Odeio essas uniões que não
deixam os dois exaustos. Odeio uma mulher que se entrega porque
tem de fazê-lo, que não se humedece, que pensa nas suas tarefas.
Não quero uma mulher que me dê prazer por dever. Que nenhuma
mulher faça amor comigo por obrigação! Gosto que a sua voz
traduza a sua alegria, que murmure que é preciso ir mais devagar,
que ainda me devo conter. Gosto de ver a minha amante a usufruir
com os olhos vencidos e que desfaleça e não permita que a acaricie
mais.»
A norma tradicional ditava que, para os homens livres, o
sentimento era uma debilidade, e a vontade de se pôr no lugar do
outro, uma loucura. Como escreve Pascal Quignard, Ovídio é o
primeiro porta-estandarte do desejo recíproco, e também o primeiro
romano a defender que é preciso dominar a urgência masculina com
o objetivo de esperar pelo prazer da mulher.
A Arte de Amar foi considerado um livro imoral e perigoso. Anos
mais tarde, Ovídio, recordando o início das suas desgraças,
escreveu que, devido a essa obra, muitos chamaram-lhe «mestre de
adultérios obscenos». É verdade que os jogos eróticos que ele
ensinava a praticar aconteciam fora do casamento. E não podia ser
de outra forma: o desejo e a atração quase nunca entravam no
horizonte da vida em casal. Os casamentos dos romanos ricos eram
sobretudo uma decisão dinástica, um cálculo de alianças e pactos
familiares. Os pais utilizavam as suas filhas como peões das suas
manobras políticas, e não tinham qualquer inconveniente em
divorciá-las do marido para casá-las com outro, mesmo estando
grávidas do primeiro, se isso fosse conveniente para os seus
interesses políticos. Não era de estranhar que dois patrícios
trocassem amistosamente de mulher: Catão de Útica, recordado
como um exemplo de virtudes, «emprestou» a sua esposa Márcia a
um amigo — ou seja, pediu o divórcio para dar lugar ao novo
pretendente — e casou com ela pela segunda vez quando ficou
viúva, amealhando de passagem uma enorme herança. Quando
estava a tramar essa manobra nupcial, Catão consultou o pai de
Márcia, mas não perguntou a opinião dela: para a mentalidade
tradicional, as mulheres eram subalternas e adolescentes para toda
a vida. A forma de agir dos ambiciosos pais de família não
fomentava o afeto nem a lealdade entre maridos e mulheres.
Perante este panorama, as paixões fora do casamento explodiam.
Ovídio teve o descaramento de expressar essa realidade nos seus
versos. Mas fê-lo num mau momento: chocou diretamente com o
programa de moralização do imperador Augusto e, sobretudo, com
as suas Leis Júlias, aprovadas entre o ano 18 a. C. e 9 d. C., que
pretendiam assumir a defesa da família e das tradições antigas,
castigando o adultério com o exílio e multando quem não tinha
filhos.
No ano 8, Ovídio, que tinha acabado de fazer cinquenta anos, foi
desterrado repentinamente, através de édito imperial, para a aldeia
de Tomi — a atual Constança, na Roménia. A sua terceira esposa
permaneceu em Roma, para administrar as propriedades comuns e
suplicar o indulto. O poeta partiu sozinho para o exílio. Nunca
voltariam a encontrar-se. Augusto tinha escolhido para ele um
castigo severo, de crueldade calculada. Não lhe bastou expulsá-lo
para uma das ilhas do Mediterrâneo habitualmente usadas para
estes propósitos, já que o lançou para um território selvagem
situado nos confins do império, fronteiriço com o desconhecido,
onde Ovídio ia ficar separado de tudo aquilo que, na sua opinião,
tornava a vida digna de ser vivida: amigos, amor, livros, conversas
e, sobretudo, paz. Nessa vilória desolada, submetido ao frio de um
clima hostil, entre pessoas que falavam uma língua ininteligível,
receando sempre as razias de exércitos nómadas, Ovídio estava
sentenciado à morte. Sobreviveu nove anos, a enviar constantes
súplicas para Roma e a escrever as suas Tristia, um precedente da
carta De Profundis que séculos mais tarde redigiria desde a prisão
outro grande bon vivant castigado, Oscar Wilde.
Sobre os motivos do seu desterro, Ovídio afirmou que a sua
perdição foram os crimes: «um poema e um erro.» Nunca explica
em que é que consistiu o seu erro para não pôr o dedo na ferida —
provavelmente testemunhou as orgias clandestinas de algumas
pessoas muito importantes ou envolveu-se em alguma conspiração
política. Quanto ao poema, há poucas dúvidas. Trata-se de um
manual para amantes. «Já não sou precetor de amor», escreveu do
exílio, «essa obra pagou o castigo que merecia». Dois séculos
depois, um historiador afirmou, taxativo: «Augusto castigou o poeta
Ovídio com o exílio porque escreveu três livrinhos sobre a arte de
amar.» Ovídio chorou ao saber que na sua ausência foram feitas
represálias contra as suas obras. Augusto assegurou-se de
desterrar os seus versos das bibliotecas públicas, depois do
desterro do homem.
Pelo que sabemos, este episódio inaugurou na Europa a censura
de tipo moralizador, uma obsessão de controlo que encontrou aqui o
seu primeiro fracasso. A Arte de Amar, esse livrinho alegre e erótico,
perseguido por um dos imperadores mais poderosos do Império e
várias vezes proibido em épocas posteriores por ser obsceno e
escandaloso, encontrou o caminho até às nossas bibliotecas. A sua
história é a de um longo salvamento, levado a cabo século após
século pelos leitores em quem Ovídio confiou, contra as
autoridades. A subversão também cria clássicos.

A doce inércia

35

No início do século II, Roma já tinha conhecido uma longa série


de imperadores desconfiados, sem muito sentido de humor. A
censura e o medo começavam a apodrecer a atmosfera. O
historiador Tácito apalpou as cicatrizes da amputação e atreveu-se
a nomeá-las. Nostálgico de um passado inexistente, fantasiava com
«a rara felicidade dos tempos em que é permitido pensar como se
quer e dizer o que se pensa». Decidiu investigar o que fere os
poderosos, porque é que as pessoas que se costumam escandalizar
se escandalizam, quais são as suas proibições e as suas fobias, o
que é que tentam mergulhar no silêncio e tudo o que espreita por
trás dos riscos dos textos mutilados.
Tácito relata detalhadamente um episódio de repressão que
aconteceu durante o mandato de Tibério, pouco tempo depois da
morte de Ovídio no desterro. O historiador Cremúcio Cordo, de
ideias republicanas, foi processado devido a uma frase audaciosa.
Tinha escrito nos seus Anais que Brutus e Cássio, os assassinos de
Júlio César, foram «os últimos romanos». Acusado por essas
palavras de crime de lesa-majestade, teve de comparecer diante do
Senado. Defendeu-se com coragem, mas ao sair do interrogatório já
tinha decidido deixar-se morrer de fome para fugir à sentença que
seria de esperar da independência judicial da época. Como era
habitual, o processo continuou em frente apesar do pequeno
contratempo da morte do acusado. No fim, o veredicto exigiu que se
queimassem todos os exemplares da sua obra. Em Roma, a tarefa
foi atribuída aos edis, e nas restantes cidades do império, aos
magistrados correspondentes.
Os Anais salvaram-se da destruição graças à valentia de Márcia,
filha de Cremúcio, que se arriscou ao esconder um único exemplar.
Márcia conhecia o valor dos livros: era uma grande leitora, com
especial apetite pela filosofia. Séneca dedicou-lhe um ensaio onde
dizia que «as mulheres têm o mesmo poder intelectual do que os
homens, e a mesma capacidade para as ações nobres e
generosas». Sem dúvida, admirava a jovem Márcia por se atrever a
desobedecer. Embora a sua vida estivesse em perigo cada vez que
revistavam a sua casa, guardou escondido o último manuscrito do
pai até que o novo imperador Calígula levantou a proibição. Depois
de conseguir o indulto, a filha encomendou novas cópias da obra e
fê-la circular de novo. As gerações seguintes leram com avidez
aquela crónica histórica que tanto ofendeu o poder. Alguns
fragmentos — os mais polémicos — chegaram até nós.
Os censores de todas as épocas correm o perigo de
desencadear um efeito contraproducente, e este é o seu grande
paradoxo: centram toda a atenção precisamente naquilo que
pretendem ocultar. Tácito escreveu: «É ignorante quem julga que,
com o seu poder do momento, pode até extinguir a recordação da
posteridade. Pelo contrário, a estima pelos talentos castigados
cresce, e aqueles que utilizam a severidade só conseguem a sua
própria desonra e a glória de quem castigaram.» Nos nossos
tempos, a Internet e as redes sociais prestam uma atenção
instantânea a qualquer mensagem proibida pelas autoridades. Se se
mandar retirar uma obra de arte, toda a gente começa a falar dela.
Se se condenar um rapper por injúrias, disparam os downloads das
suas canções. Se uma denúncia leva à decisão judicial de confiscar
um livro, as pessoas vão a correr comprá-lo.
Embora a censura quase nunca faça desaparecer as ideias que
persegue — e, com frequência, dá-lhes asas —, os governantes
possuem uma estranha veia reincidente. Passou pela cabeça de
Calígula a ideia de retirar os exemplares de Homero das bibliotecas,
seguindo à letra as ideias de Platão. Cómodo proibiu a leitura da
biografia de Calígula escrita por Suetónio, sob pena de morrer no
anfiteatro despedaçado pelas feras. Caracala, grande admirador de
Alexandre, o Grande, considerava que Aristóteles não tinha sido
alheio à sua morte e acolheu a ideia de queimar todas as suas
obras. Durante a perseguição de Diocleciano, no início do século IV,
houve um autêntico furor incendiário de livros cristãos comparável
ao dos nazis em 1934. Sabemos de mártires que se sacrificaram
para protegerem as suas escrituras. Três irmãs de Tessalónica,
Ágape, Quiónia e Irene, morreram na fogueira por terem escondido
na sua casa livros proibidos. E, como elas, Filipe, Euplo, Vincêncio,
Félix, Dativo e Ampélio foram mártires por se negarem a entregar os
seus livros. Mais à frente, quando o cristianismo se converteu em
religião oficial, começaram as cremações igualmente violentas de
livros pagãos.
Todos esses esforços destruidores tiveram um escasso efeito: os
imperadores foram bem-sucedidos influenciando os escritores aos
quais protegiam, mas quase nunca conseguiram impor as suas
proibições, como provam as tentativas falhadas de destruírem os
poemas eróticos de Ovídio ou a crónica republicana de Cremúcio
Cordo. Na Antiguidade, o sistema de circulação de livros — sem
distribuidores nem editores — era demasiado incontrolável para que
a censura do poder se conseguisse impor. Através de escravos
treinados para copiarem livros ou dos amanuenses profissionais, era
fácil multiplicar clandestinamente as obras condenadas.
Como Tácito percebeu, o efeito mais poderoso deste impulso
perseguidor é principalmente assustar os outros, os menos
corajosos, a própria criatividade. A autocensura será sempre mais
decisiva do que a censura. O historiador chamou-lhe inertiae
dulcedo («a doce inércia»). Referia-se à renúncia instalada de correr
riscos, à tentação íntima de não transgredir a escala de valores
vigentes para se evitar conflitos ou preocupações; à perigosa
cobardia que ameaça os criadores. Tácito testemunhou uma época
submissa, na qual até os rebeldes se calavam e obedeciam.
Escreveu: «Demos, sem dúvida, grande exemplo de paciência.
Teríamos perdido a memória juntamente com a voz, se tivesse
estado na nossa mão o esquecimento e o silêncio.» Os seus textos
tocam levemente na dolorosa ferida, abrem-nos os olhos: em todas
as épocas, o campo de batalha não é apenas a censura do poder,
mas também os medos interiores.

Viagem ao interior dos livros e como nomeá-los

36

Até à invenção da imprensa, os livros eram objetos artesanais,


ou seja, de laborioso fabrico, únicos e incontroláveis. Copiados um a
um, por encomenda, muitas vezes na própria casa do leitor pelos
seus escravos privados, que ordem podia deter a sua difusão?
Os livros eletrónicos de hoje são a antítese daqueles antigos
manuscritos: objetos baratos, etéreos, sem peso, fáceis de
multiplicar até ao infinito, placidamente albergados em servidores e
unidades de armazenamento em centros de dados por todo o
mundo; mas estritamente controlados. Em 2009, numa disparatada
tentativa de censura, a Amazon apagou sigilosamente dos Kindles
dos seus clientes o romance 1984, de George Orwell, alegando um
suposto conflito de direitos de autor. Milhares de leitores
denunciaram que o livro desapareceu de repente dos seus
dispositivos, sem aviso prévio. Um estudante de Detroit que estava
a fazer um trabalho académico protestou porque, juntamente com o
arquivo, desapareceram todas as suas anotações de leitura. Não
sabemos se a Amazon tinha consciência do simbolismo literário
implícito. Em 1984, os censores governamentais apagam todo o
rasto da literatura incómoda para o Big Brother lançando-a para uma
incineradora à qual chamam «o buraco da memória».
Nos fóruns da Internet, abundam os comentários que denunciam
o desaparecimento de edições digitais de diversos títulos. Na
verdade, quando escolhemos a opção «Comprar agora» para
incorporar um novo livro em formato PDF na nossa conta, não
estamos a adquirir nada tangível. Quase não temos qualquer direito
sobre esses textos que flutuam por trás do vidro do ecrã. O buraco
da memória anda à espreita, e poderia engolir as nossas bibliotecas
virtuais.
Eu, que quando era pequena achava que todos os livros tinham
sido escritos para mim e que o único exemplar do mundo estava na
minha casa, caio com facilidade na tentação de idealizar aqueles
antigos manuscritos irrepetíveis. Na verdade, eram livros muito
menos acolhedores do que os nossos. A antiga escrita adotava a
aparência de uma selva confusa e angustiante, onde as palavras se
amontoavam sem separação, não se distinguiam minúsculas de
maiúsculas, e os sinais de pontuação só se usavam de forma
errática. O leitor devia abrir caminho entre aquela espessura de
letras com esforço, ofegante, a duvidar e a voltar atrás para ter a
certeza de que não se perdia. Porque é que os antigos não
deixavam o texto respirar? Em parte, para aproveitar ao máximo o
papiro ou o pergaminho, materiais caros. Para além disso, os
primeiros livros estavam destinados a pessoas que liam em voz alta,
desvendando com o ouvido o que era uma sucessão ininterrupta de
sinais para o olho. Por último, os aristocratas, orgulhosos da sua
superioridade cultural, não tinham qualquer interesse em dar
facilidades aos leitores incipientes — com menos acesso à
educação —, para que penetrassem no exclusivo feudo dos livros.
Os avanços para a simplificação da leitura foram lentos,
indecisos, graduais. Os eruditos da Biblioteca de Alexandria
inventaram um sistema de acentos e pontuação. São os dois
atribuídos ao bibliotecário de memória fabulosa, Aristófanes de
Bizâncio. Quando as palavras não estavam separadas, colocar
alguns acentos — como indicadores de rota num caminho sinuoso
— proporcionava uma ajuda enorme ao leitor.
A separação das letras em palavras e frases avançou de forma
paulatina. Existiu um método de escrita que consistia em dividir o
texto em linhas com sentido completo, para ajudar os leitores menos
seguros a subirem ou a baixarem a voz quando um pensamento
terminava. No final do século IV, Jerónimo de Estridão, ao descobrir
este sistema em exemplares de Demóstenes e de Cícero, foi o
primeiro a descrevê-lo e a recomendá-lo. Ainda assim, não foi
imposto, e as vicissitudes da pontuação continuaram. A partir do
século VII, uma combinação de pontos e riscos indicava o ponto; um
ponto elevado ou alto equivalia à nossa vírgula, e o ponto e vírgula
já se utilizava como hoje em dia. No século IX, era provável que a
leitura silenciosa fosse suficientemente habitual para que os
escribas ou copistas começassem a separar cada palavra das suas
intrometidas vizinhas, embora talvez também o fizessem por
motivos estéticos.
Nos manuscritos, as ilustrações também eram, obrigatoriamente,
artesanais. Desde as suas origens nos Livros dos Mortos egípcios
havia uma intenção mais explicativa do que ornamental. A imagem
nasceu como uma ajuda visual para esclarecer e complementar os
textos, dado que era difícil lê-los. Quando o conteúdo era científico,
usavam-se diagramas; quando era literário, cenas narrativas. Na
tradição greco-latina, a cabeça ou o busto do escritor aparecia por
vezes desenhado num medalhão como marca de autoria. O primeiro
exemplo conhecido são as Imagines de Varrão, uma obra perdida
mas descrita por Plínio, que explicava as vidas de setecentos
gregos e romanos célebres. Publicado por volta do ano 39 a. C.,
este ambicioso livro combinava um retrato de cada famoso com um
epigrama e uma descrição. A envergadura do projeto sugere que os
romanos talvez tenham desenvolvido algum método de
estampagem destinado ao comércio dos livros.
A apropriação cristã do livro como símbolo teológico abriu novos
caminhos decorativos. As próprias palavras converteram-se em
formas ornamentais. As páginas tingiram-se de púrpura imperial, a
escrita executava-se em tinta de ouro e prata. Os livros já não eram
apenas artefactos de leitura, mas sim relíquias e obras de arte em si
próprios que distinguiam os seus proprietários. O trabalho
especializou-se: o escriba costumava deixar indicações precisas e
reservava os espaços destinados às ilustrações; de seguida, os
pergaminhos eram entregues a miniaturistas e iluminadores. Já no
século XIII, os espaços da página tinham adquirido uma condição
selvática, complexa e utópica. É aí que a BD tem a sua origem
marginal. Literalmente: as primeiras tiras ilustradas da História
apareceram nas margens daqueles antigos manuscritos. Em redor
das letras, surgiram nas páginas incríveis encaixes de dragões,
serpentes e plantas trepadeiras que se enlaçavam e se
entrecruzavam com uma grande riqueza de formas contorcidas.
Povoaram-se de seres humanos, animais, paisagens, cenas vivas
desenvolvidas em séries de desenhos. As pequenas ilustrações
tinham um enquadramento de orlas vegetais — daí deriva o termo
«vinheta», porque cada quadrado era contornado por faixas de
folhas de videira. Desde a época medieval gótica, emergem da boca
das personagens umas pequenas fitas com frases pronunciadas,
antecedentes dos balões das nossas aventuras infantis. Para além
do texto, as miniaturas nasceram para revitalizar o apetite humano
pelo maravilhoso. Minuciosas ou fantasiosas, adquiridas do natural
ou sonhadas pela imaginação, estas ilustrações demonstram como
as novas formas artísticas podem nascer e triunfar partindo de
lugares subordinados. A BD, herdeira desse elegante passado
gráfico, conservou traços que nos recordam quais são as suas
origens. As personagens dos álbuns de hoje, como os seres que
habitam o espaço dos remotos manuscritos, pertencem com
frequência a mundos fronteiriços, estranhos, hipnóticos, distorcidos.
E, como eles, reclamam o nosso olhar, lutando para não ficarem à
margem.
A grande mudança na cartografia interior dos livros chegou com
a página impressa, que tentava facilitar uma leitura ágil através de
uma estrutura diáfana. O texto, até então condensado em blocos
compactos, começou a subdividir-se em parágrafos. Os cabeçalhos,
os capítulos e a paginação eram como uma bússola para a
orientação na leitura. Como a imprensa produzia exemplares
idênticos em qualquer edição, desenvolveu-se uma nova
parafernália de consulta: índices com referências às páginas, notas
de rodapé e acordos duradouros nas convenções de pontuação. Os
livros impressos tornaram-se cada vez mais fáceis de ler e, portanto,
mais acolhedores. Graças aos índices, os leitores possuíam um
mapa do interior dos livros. Podiam entrar e navegar por eles de
maneira cada vez mais livre. Com os séculos, as fechadas selvas de
letras pelas quais se avançava suado, de machete na mão, foram-
se convertendo em ordenados jardins de palavras para calmos
passeantes.

37

Se um livro é uma viagem, o título será a bússola e o astrolábio


de quem se aventura pelos seus caminhos. Porém, nem sempre
esteve ali para orientar os navegantes. Os primeiros relatos, os mais
remotos, chegaram ao mundo sem nome nem batismo. Os nossos
antepassados diriam, por exemplo: «Mãe, conta-me a história da
menina que meteu uma montanha na sua cesta», ou «Queres ouvir
a história do grou que roubava sonhos?»
É verdade que na época mais precoce dos poemas e das
narrações escritas não houve uma única forma de nomeá-los. As
listas de livros das primeiras bibliotecas da História, no Antigo
Oriente, referiam as obras pelo seu tema. «Para rogar ao Deus-
Tempestade», lê-se numa tabuinha de argila encontrada em Hatusa.
A entrada seguinte da lista diz: «Sobre a purificação de um
assassinato.» Contudo, o método mais habitual foi usar as primeiras
palavras do texto: Enûma Elish (em acadiano: «Quando no alto…»).
Como nos velhíssimos catálogos de barro, também os Pínakes da
Biblioteca de Alexandria apresentavam listas de obras identificadas
através da frase inicial. Ainda na Roma do século I detetamos
formas fluidas de nomear os livros. Umas vezes menciona-se a
Odisseia como «Ulisses», antecipando Joyce em vinte séculos.
Marcial chama à Eneida «Arma virumque», e Ovídio «Eneas
desertor». Embora quase desaparecidas, estas fórmulas antigas
sobrevivem em certos redutos: as encíclicas papais ainda retiram o
seu título em latim das palavras iniciais do texto.
Mênin áeide theá. O velho modo de nomear as histórias pelo
início é bonito, como se, sem querer, arrastados pelo seu feitiço,
começássemos já a narrá-las. Italo Calvino resgatou esse antigo
procedimento quando intitulou um dos seus mais fascinantes
romances: Se numa Noite de Inverno um Viajante.
Os primeiros títulos fixos e inamovíveis pertenceram às peças de
teatro. Os dramaturgos atenienses foram pioneiros na atribuição de
títulos às suas peças, com as quais competiam em certames
públicos e deviam ficar a salvo de qualquer confusão ao anunciá-
las, promovê-la ou declará-las vencedoras. Prometeu Agrilhoado,
Rei Édipo ou As Troianas nunca tiveram outro nome ou apelido.
Pelo contrário, a prosa demorou mais tempo a adquirir títulos
duradouros e, quando os teve, foram com frequência meramente
descritivos: História da Guerra do Peloponeso, Metafísica, A Guerra
das Gálias, Sobre o Orador.
Geralmente, os nomes que os gregos e os romanos deram às
peças da sua literatura são concisos, ajustados, desprovidos de
ambição. Parecem monótonos, sem originalidade e burocráticos.
Cumprem uma função essencialmente identificadora. Quase sem
exceções recorrem a nomes próprios ou comuns, sem conjunções
nem verbos — não encontramos nada comparável a O Homem que
Era Quinta-Feira, de Chesterton, ou Na minha Morte, de Faulkner.
Nem os substantivos nem a adjetivação têm uma grande densidade
expressiva, e costumam precisar de qualidades poéticas — não
encontramos nada parecido a Vasto Mar de Sargaços, de Jean
Rhys, ou História Universal da Infâmia, de Borges. Apesar de tudo,
chegou-nos um punhado de títulos misteriosos e cintilantes na sua
simplicidade, como Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo — que
Alejandra Pizarnik reescreveu no seu livro de poemas Os Trabalhos
e as Noites; Vidas Paralelas, de Plutarco; A Arte de Amar, de Ovídio
— que Erich Fromm decalcou; ou A Cidade de Deus, de Agostinho
de Hipona — que deu título ao trepidante filme de Fernando
Meirelles sobre as favelas do Rio de Janeiro.
Nos tempos dos rolos de papiro, o lugar preferido para anotar o
título e o nome do autor era no fim do texto, na parte mais protegida
do livro rebobinado — o começo, no exterior do cilindro, sofria uma
espécie de deterioração, e com frequência rasgava-se. Foi no
formato códice que o título conquistou a posição inicial, o rosto dos
livros — e também se apoderou da lombada, as suas costas.
Agostinho de Hipona deixa claro que já no século IV era habitual
procurar essa informação na «página liminar», ou seja, no início, no
limiar do relato. Hoje é a primeira coisa que lemos quando o livro
ainda é uma incógnita, e esperamos que em menos de dez palavras
defina o seu universo. Se o feitiço tem efeito, alguém levantará o
livro da mesa e quererá saber mais sobre ele.
Na verdade, até ao século XIX os títulos não começaram a
desenvolver a sua própria poesia e os seus chamarizes. Quando os
jornais, o mercado e a concorrência se consolidaram, e, portanto, a
necessidade de chamar a atenção do leitor, os escritores lançaram-
se a seduzir desde a própria capa dos seus livros. No percurso entre
o século XIX e o XXI, surgiram, sem dúvida, os mais belos, os mais
ousados. Traço aqui um catálogo incompleto e rebatível.
Pela densidade poética: O Coração é um Caçador Solitário, de
Carson McCullers; Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust;
Terna é a Noite, de Scott Fitzgerald; Cem Anos de Solidão, de
Gabriel García Márquez; Amanhã na Batalha Pensa em Mim, de
Javier Marías; O General do Exército Morto, de Ismail Kadaré.
Pela ironia: Obras completas (y otros cuentos), de Augusto
Monterroso; Uma Conspiração de Estúpidos, de John Kennedy
Toole; A Vida Modo de Usar, de Georges Perec; Mala noche y parir
hembra, de Angélica Gorodischer; Queres Fazer o Favor de Te
Calares?, de Raymond Carver.
Pelo desassossego: Arranquem as Sementes, Fuzilem as
Crianças, de Kenzaburō Ōe; As Virgens Suicidas, de Jeffrey
Eugenides; Verrà la morte e avrà i tuoi occhi, de Cesare Pavese;
Mataram a Cotovia, de Harper Lee; Os Suicidas do Fim do Mundo,
de Leila Guerriero; Perra mentirosa, de Marta Sanz.
Por serem inesperados e enigmáticos: Junto à Grand Central
Station Sentei-me e Chorei, de Elizabeth Smart; Um Eléctrico
Chamado Desejo, de Tennessee Williams; Todos os Nossos Ontens,
de Natalia Ginzburg; O Barulho das Coisas ao Cair, de Juan Gabriel
Vásquez; Será que os Androides Sonham com Ovelhas Eléctricas,
de Philip K. Dick.
Pelos segredos pressentidos: Debí decir te amo, de Juan
Gelman; Paraíso Inabitado, de Ana María Matute; Cerrado por
melancolía, de Isidoro Blaisten; A Idade da Inocência, de Edith
Wharton; Jogos da Idade Tardia, de Luis Landero; A Ridícula Ideia
de Não Voltar a Ver-te, de Rosa Montero.
É um mistério como se chega a um bom título. Umas vezes é a
primeira coisa que se manifesta — «no início era a palavra» —, e
todo o livro se expande como um big bang verbal a partir desse
estouro diáfano. Outras vezes faz-se esperar e martiriza o escritor
durante um longo périplo de indecisão, ou brota onde menos se
esperava, numa frase ouvida de passagem, ou é proposto por um
terceiro inspirado. Há vários episódios célebres sobre livros que o
seu autor queria intitular com nomes fracos ou impossíveis, e,
graças a outras pessoas — amigos escritores, editores, agentes —,
encontraram o caminho para o seu título imprescindível. Tólstoi
queria chamar Tudo está bem quando acaba bem ao Guerra e Paz;
Baudelaire pensou em As Lésbicas para o livro de poemas que seria
As Flores do Mal; Onetti propôs O Casarão, mas ofereceram-lhe
Cuando ya no importe; avisaram Bolaño de que A Tempestade de
Merda não era uma grande ideia e substituiu-o por Nocturno
Chileno. Em algumas ocasiões, raras, uma tradução livre encontra o
nome feliz que o próprio autor não soube encontrar. The Searchers
é um título pálido para o romance e o filme que John Ford
converteria num clássico. Contudo, uma anónima distribuidora
espanhola, num acesso de inspiração, decidiu estreá-lo com um
maravilhoso Centauros del desierto. Leila Guerriero escreve que,
quando se dá a epifania do nome exato, sente-se algo parecido à
felicidade, porque o título de um livro não é uma sucessão de
palavras hábeis, mas sim «um estame soldado ao coração de uma
história da qual já não poderá voltar a separar-se».
Após uma longa travessia entre a indiferença dos séculos, os
títulos transformaram-se em poemas mínimos; barómetros, olhos
mágicos, buracos da fechadura, cartazes luminosos, anúncios de
néon; a clave musical que define a partitura futura; um espelho de
bolso, um limiar, um farol no nevoeiro, um pressentimento, o vento
que faz girar as pás.
O que é um clássico?

38

O artista moderno tem a obrigação de ser original; deve oferecer


algo novo, nunca visto. Quanto mais transgressora parecer a sua
obra quanto à tradição e às normas, melhores críticas receberá.
Cada criador tenta ser rebelde à sua maneira — como todos os
outros. Continuamos a ser fiéis a um conjunto de ideias românticas:
a liberdade é o oxigénio dos verdadeiros artistas, e a literatura que
nos importa é aquela que constrói mundos próprios, uma linguagem
liberta de convencionalismos e formas inexploradas de narrar.
Não era assim para os romanos. Eles queriam uma literatura o
mais parecida possível à grega. Por isso copiaram um a um os seus
géneros — a épica, a lírica, a tragédia, a comédia, a história, a
filosofia, a oratória. Por isso adotaram as formas métricas dos
gregos, que não encaixavam bem na sua língua e no início faziam
com que os seus poemas soassem artificiais e postiços. Por isso
construíram bibliotecas duplas — como torres gémeas — para
sublinhar a irmandade. Acreditaram que poderiam superar os
melhores se os imitassem sem dissimulação. Assumiram
voluntariamente um conjunto enorme de limitações e moldes
importados. E o mais surpreendente é que, com normas tão rígidas,
esta literatura esquizofrénica tenha criado algumas obras
maravilhosas.
A obsessiva emulação está expressa nas críticas literárias de
uma interessante personagem: Quintiliano. Nasceu em Calagurris
Nassica Iulia — gosto da sonoridade do nome — hoje Calahorra, a
apenas 120 quilómetros de onde escrevo. No ano 35, vir ao mundo
num canto remoto do império não implicava um inconveniente para
triunfar: se pertencêssemos a uma família rica, a geografia não era
o destino. Quintiliano conheceu rapidamente o êxito profissional.
Advogado e professor de eloquência, foi o primeiro catedrático da
História cujo salário se pagava através do erário público. O
imperador Vespasiano concedeu-lhe esta honra sem precedentes, e
Domiciano escolheu-o para educar os seus sobrinhos-netos. Adulou
sem pudor os dois imperadores que lhe deram emprego. Naquele
tempo, a bajulação era a linguagem protocolar de palácio, e era
difícil ascender sem cair no servilismo. Em todo o caso, Quintiliano
gostava da companhia dos poderosos. Era um conservador calmo,
afável, satisfeito com os seus êxitos. Só na maturidade é que foi
assolado pelas desgraças pessoais. Depois de perder a sua
novíssima esposa — de dezanove anos — e os seus dois filhos,
escreveu: «Não sei que inveja secreta corta o fio das nossas
esperanças.»
Os doze livros das Instituições Oratórias, o ensaio pedagógico
onde condensou toda a sua experiência como educador, lançam
mensagens pioneiras. Como já referi, numa época que praticava a
crítica severa sistemática, Quintiliano recusava os castigos violentos
na educação. Achava que os elogios eram mais eficazes do que a
violência, assim como o amor pelo professor, que pouco a pouco se
transforma em amor pela disciplina. Não acreditava na validade
universal dos preceitos, preferia adaptar os seus métodos às
circunstâncias e às capacidades individuais. Afirmou que a
finalidade da pedagogia é deixar que os estudantes encontrem por
si próprios as respostas e tornem o professor supérfluo. Foi um dos
primeiros defensores da educação contínua. Incentivava os
profissionais do discurso a lerem o máximo possível depois de
concluírem os seus estudos, sabia que a leitura ajuda a falar melhor.
E, para guiá-los pelos caminhos da literatura, redigiu duas listas
paralelas dos melhores escritores da Grécia e de Roma (trinta e um
dos primeiros face a trinta e nove dos segundos).
Nas listas de Quintiliano, a competição torna-se obsessiva. Tenta
estabelecer uma simetria perfeita: cada autor grego devia ter um
gémeo latino à sua altura. Vergílio era o Homero romano. Cícero era
o Demóstenes e o Platão romano — quem disse que um dos seus
não podia contar por dois gregos? Tito Lívio era o Heródoto
ressuscitado, e Salústio, o novo Tucídides. Ao ler este texto, temos
a impressão de que o orgulho nacional precisa de clonar um por um
os grandes escritores da Grécia. Estava em marcha uma estranha
experiência de imitação programada. Assim se compreende a
necessidade patriótica da Eneida até antes de estar escrita.
Também explica o sucesso das vidas paralelas que o astuto
Plutarco escreveu com o leitmotiv de emparelhar grandes
personagens de Grécia e de Roma: Teseu e Rómulo; Alexandre e
Júlio César; e assim sucessivamente.
O espírito de emulação, ambição e competição encaixava com a
mentalidade das elites da sociedade romana. Mas a competitividade
desenfreada deve ter sido esgotante para os criadores. Imagino que
por cada escritor estimulado com o desafio, houve outro oprimido
com o peso da tradição. As comparações eram constantes, até à
asfixia. Os poetas e narradores trabalhavam sempre à sombra de
um complexo de inferioridade coletivo.
O paradoxo é que, apesar de tudo, os romanos foram originais.
Criaram uma mestiçagem sem precedentes. Pela primeira vez uma
civilização adotou uma literatura estrangeira, leu-a, conservou-a,
traduziu-a, cuidou dela e amou-a para além das barreiras
chauvinistas. Em Roma atou-se um fio que ainda nos entretece com
o passado e com outras culturas, línguas, horizontes. Por cima do
mesmo, como funambulistas, caminham de um século para o outro
as ideias, as descobertas da ciência, os mitos, os pensamentos, os
sentimentos, para além dos erros (com os quais também se
aprende). Uns escorregam e caem; e outros conseguem manter o
equilíbrio (estes últimos são os clássicos). Essa ligação, essa
transmissão ininterrupta, essa conversa infinita, que ainda continua,
é um prodígio.
A paixão nostálgica, o doloroso complexo dos romanos, a sua
soberania militar, a sua inveja e as suas apropriações são
fenómenos fascinantes. A questão é que esse amor difícil,
construído com desejo e fúria, tecido com retalhos diversos, abriu
caminho para o futuro que somos nós.

39

Até muito recentemente, só se dedicavam à literatura os ricos ou


as pessoas que rondavam à sua volta à espreita das suas
encomendas e do seu dinheiro. Como diz Steven Pinker, não são
tanto os vencedores que escrevem a história, mas sim as pessoas
abastadas, essa pequena fração da humanidade que dispõe do
tempo, do lazer e da educação necessários para se permitir refletir.
Costumamos esquecer a miséria de outras épocas, em parte porque
a literatura, a poesia e as lendas celebram aqueles que viveram
bem e esquecem quem se afogou no silêncio da pobreza. Os
períodos de escassez e de fome foram mitificados e até lembrados
como eras douradas de simplicidade pastoril. Não foram assim.
Qual é o mapa de procedência dos clássicos literários, dos
escritores mais admirados e das suas obras emblemáticas? Não
devíamos ficar surpreendidos por saber que a própria palavra
«clássico» deriva do vocabulário da riqueza e da propriedade. No
início não teve a menor ligação com a criação ou a arte. Estamos a
falar de assuntos sérios; os detalhes chegariam mais tarde. Classici
provém da terminologia específica censual (pertencente ou relativo
ao censo). Os romanos chamavam classis ao estamento mais rico
da sociedade, em contraste com a corja dos restantes cidadãos,
chamados sem rodeios infra classem. O censo tinha uma enorme
importância na Roma Antiga porque definia os direitos e deveres de
cada cidadão, e servia para armar as legiões. A quantidade de bens
— ou, na maioria dos casos, a sua escassez — decidia o lugar que
cada indivíduo ocupava na sociedade.
Segundo uma antiga tradição, o censo tinha sido criado pelo
antigo rei Sérvio Túlio, e devia ser realizado cada cinco anos. Ao
acabar, celebrava-se uma cerimónia de purificação na qual se pedia
aos deuses bênçãos para o cadastro das propriedades e contra as
catástrofes. O ritual chamou-se lustrum e por isso chamamos
«lustros» aos períodos de cinco anos. Cada chefe de família devia
concorrer obrigatoriamente — com o resto do seu corpo — e
declarar sob juramento os seus bens, tal como o número de
membros da sua família, ou seja, os filhos e os escravos com o seu
correspondente valor. Esses dados determinavam quem participava
nas assembleias e quem não podia fazê-lo. Aqueles que não tinham
bens eram proletários, pelo que a sua única posse eram os seus
descendentes (prole). Não eram recrutadas a não ser em situações
de máxima emergência e estavam dispensados de pagar impostos.
Em contrapartida, não participavam na tomada de decisões políticas
através do voto. Quem declarava bens eram os adsidui, aptos para
o serviço militar e membros das assembleias. Em função das suas
propriedades, correspondia-lhes entrar em alguma das seis classes
censitárias. O sistema era diáfano. Os ricos pagavam impostos e,
em compensação, tinham influência na política. Pelo contrário, os
pobres não proporcionavam qualquer contributo e não contavam
para nada.
O advogado e escritor Aulo Gélio esclarece que os chamados
«clássicos» eram a crème de la crème económica, as grandes
fortunas, o sangue azul republicano, os ricos até à extravagância
que monopolizavam a primeira classe. A palavra chegou até à
literatura como metáfora. Com uma gíria que transferia a obsessão
por fazer negócios para a arte, alguns críticos decidiram que havia
autores de primeira classe, ou seja, fiáveis e solventes, aos quais se
podia prestar «atenção» e nos quais era recomendável investir
(tempo). No outro extremo da hierarquia estavam os escritores
«proletários», os pobres que gatafunhavam o papiro sem património
nem padrinhos. Não sabemos se o termo «clássico» chegou a ter
um uso habitual: aparece em apenas dois textos latinos
conservados. O verdadeiro sucesso da palavra chegou quando
vários humanistas a resgataram a partir de 1496 e quando mais
tarde se espalhou por todas as línguas românicas. Durante séculos,
continuou viva e o seu uso extrapolou-se a outros âmbitos. Já não
se aplica apenas à literatura; nem sequer apenas à criação; para
muita gente, um clássico não é mais do que vocabulário
futebolístico.
É verdade que falar de «clássicos» implica utilizar uma
terminologia de origem classista, como o seu próprio nome indica. O
conceito chega-nos de uma época que lançava um olhar hierárquico
sobre o mundo, imbuída por arrogantes noções de privilégio, como,
por outro lado, em quase todas as épocas. Porém, há algo
comovente no facto de considerar as palavras uma forma — embora
metafórica — de riqueza, face à sempre avassaladora soberania da
propriedade imobiliária e do dinheiro.
Tal como as estirpes dos ricos, os clássicos não são livros
isolados, mas sim mapas e constelações. Italo Calvino escreveu que
um clássico é um livro que está antes de outros clássicos; mas
quem tiver lido primeiro os outros e depois ler aquele reconhece de
imediato o seu lugar na genealogia. Graças a eles descobrimos
origens, relações, dependências. Escondem-se nas dobras uns dos
outros: Homero faz parte da genética de Joyce e de Eugenides; o
mito platónico da caverna regressa em Alice no País das Maravilhas
e em Matrix; o doutor Frankenstein de Mary Shelley foi imaginado
como um moderno Prometeu; o velho Édipo reencarna no
desgraçado rei Lear; o conto de Eros e Psique, em A Bela e o
Monstro; Heráclito em Borges; Safo em Leopardi; Gilgamesh no
Super-Homem; Luciano em Cervantes e na Guerra das Estrelas;
Séneca em Montaigne; as Metamorfoses de Ovídio no Orlando, de
Virginia Woolf; Lucrécio em Giordano Bruno e Marx; e Heródoto na
Cidade de Vidro, de Paul Auster. Píndaro canta: «O ser humano é o
sonho de uma sombra.» Shakespeare reformula-o: «Somos da
mesma matéria da qual são feitos os sonhos, e a nossa breve vida
está circundada pelo sonho.» Calderón escreve A Vida é Sonho.
Schopenhauer entra no diálogo: «A vida e os sonhos são páginas
do mesmo livro.» O fio das palavras e das metáforas atravessa o
tempo, enovelando as épocas.
O problema, para alguns, é a chegada aos clássicos. Incrustados
nos programas escolares e universitários, converteram-se em
leituras obrigatórias. Corremos o risco de olhar para eles como
imposições que nos afugentam. Em O Desaparecimento da
Literatura, Mark Twain propunha uma definição irónica: «Clássico é
um livro que toda a gente quer ter lido, mas que ninguém quer ler.»
Pierre Bayard pede emprestado esse toque de humor para o seu
ensaio Como Falar dos Livros que Não Lemos. Aí analisa os
impulsos que nos levam à hipocrisia leitora. Pelo medo infantil de
defraudar, para não ficarmos excluídos de uma conversa, para fazer
bluff num exame, dizemos que sim, quase sem nos apercebermos
da mentira, que sim, que lemos esse livro que nunca esteve nas
nossas mãos. Recém-apaixonados, afirma Bayard, talvez finjamos
ser leitores dos livros que a outra pessoa ama para nos
aproximarmos dela. Ao mentir, já não podemos voltar atrás:
obrigamo-nos a falar sobre certos textos sem conhecê-los, às
apalpadelas, através das opiniões que os outros têm deles. Este tipo
de impostura é mais fácil de defender quando se trata de clássicos,
porque de alguma forma nos são familiares. Se não entraram por
outra rota nas nossas vidas, estão ali como barulho de fundo, como
presença atmosférica. Fazem parte da biblioteca coletiva. Ao
conhecer as coordenadas, conseguimos sair do atoleiro.
Mas, voltando a Italo Calvino, os clássicos são livros que, quanto
mais acreditamos conhecê-los por ouvir falar, mais novos,
inesperados, inéditos são quando os lemos a sério. Nunca acabam
por dizer o que têm de dizer. Naturalmente, isto acontece quando
emocionam e iluminam quem os lê. Não foram os leitores coagidos
aqueles que protegeram esses textos como talismãs nas longas
épocas de perigo, mas sim os apaixonados.
Os clássicos são grandes sobreviventes. Na linguagem
ultracontemporânea das redes sociais, poderíamos dizer que o seu
poder — a sua riqueza, em termos censitários — se mede no
número dos seus seguidores. São livros que continuam a atrair
novos leitores cem, duzentos, dois mil anos depois de serem
escritos. Estão para além das variações do gosto, das mentalidades,
das ideias políticas; das revoluções, dos ciclos mutáveis, do
desapego das novas gerações. E nesse trajeto, onde seria tão fácil
perder-se, conseguem aceder ao universo de outros autores, aos
quais influenciam. Continuam a subir para os palcos dos teatros
mundiais, são adaptados à linguagem do cinema e emitidos pela
televisão, até se desprenderam da encadernação e da tinta para se
mostrarem na Internet. Cada nova forma de expressão — a
publicidade, a manga, o rap, os videojogos — adota-os e realoja-os.
Há uma grande história quase ignorada por trás da sobrevivência
dos clássicos mais antigos, a de todas as pessoas anónimas que
conseguiram conservar, por paixão, um frágil legado de palavras, a
história da sua misteriosa lealdade a esses livros. Enquanto os
textos e até as línguas das primeiras civilizações que inventaram a
escrita no Crescente Fértil — Mesopotâmia e Egito — ficaram
esquecidos no decorrer dos séculos e, no melhor dos casos,
voltaram a ser decifrados muitos séculos depois, a Ilíada e a
Odisseia nunca deixaram de ter leitores. Na Grécia começou uma
cadeia de transmissão e tradução que nunca se quebrou e
conseguiu manter viva a possibilidade de recordar e de conversar
através do tempo, da distância e das fronteiras. Nós, leitores de
hoje, podemos sentir-nos sozinhos, no meio da pressa, ao
cultivarmos os nossos rituais lentos. Mas temos por trás uma longa
genealogia e não devíamos esquecer que, entre todos, sem nos
conhecermos, protagonizámos um fantástico salvamento.

40

Nem tudo o que é novo vale a pena: as armas químicas são uma
invenção mais recente do que a democracia. As tradições também
não são sempre convencionais, espartilhadas e aborrecidas. As
rebeldias de hoje inspiram-se em correntes do passado, como o
movimento abolicionista ou o sufragismo. Uma herança pode ser
revolucionária, mas também pode ser retrógrada. Os clássicos
foram por vezes profundamente críticos, com o seu mundo e com o
nosso. Não avançámos assim tanto ao ponto de prescindirmos das
suas reflexões sobre a corrupção, o militarismo ou a injustiça.
Em 415 a. C., Eurípides apresentou a sua tragédia As Troianas
durante um festival religioso, num teatro a abarrotar. A obra recriava
o fim da Guerra de Troia — o mito fundacional dos gregos, a grande
vitória patriótica dos seus antepassados. A grande maioria dos
atenienses que esperava pelo início da peça nas bancadas a comer
pão, queijo e azeitonas estava tão orgulhosa das façanhas de
Aquiles em Troia como nós de termos derrotado o nazismo na
Segunda Guerra Mundial. Mas, se esperavam um Spielberg ático
que lisonjeasse o seu orgulho de estar no lado correto da História
como em A Lista de Schindler, tinham pela frente uma deceção de
dimensões épicas. Eurípides apresentou diante dos seus olhos uma
feroz matança, um arrebatamento e destruição vingativa, violações
coletivas, o assassinato a sangue frio de uma criança lançada ao
abismo desde as muralhas, os horrores da guerra a caírem sobre as
mulheres derrotadas…
O que os atenienses ouviram naquela tarde convulsa do século V
a. C. foi a raiva e o desespero das mães do bando inimigo, que os
acusavam de crueldade. No fim, a idosa rainha Hécuba, iluminada
por um incêndio apocalíptico, denuncia com a sua boca desdentada
a orfandade universal das vítimas («Ai de mim, o fogo já devora o
elevado alcácer, e a cidade inteira, e as mais altas muralhas. O pó e
o fumo, nas asas dos ventos, roubam-me o meu palácio. O nome
deste lugar será esquecido, como tudo se esquece. Treme, treme a
Terra quando Troia cai; meus membros trémulos, arrastem os meus
pés. Vamos viver na escravatura»).
Nem é preciso dizer que Eurípides não ganhou o prémio no
festival de teatro daquele ano. Em tempos de guerra — o mundo
antigo estava permanentemente em guerra —, numa produção
financiada com dinheiro público, atreveu-se a tomar partido pelas
mulheres perante os homens, pelos inimigos perante os seus
compatriotas, pelas perdedoras perante os vencedores. Não
conseguiu o prémio, mas depois de cada uma das grandes guerras
europeias — recentemente, em honra das viúvas e das mães de
Sarajevo — esta obra voltou a representar-se e a desdentada
Hécuba falou de novo, desde as trincheiras quentes e os escombros
ainda por retirar, em nome das vítimas pela guerra, antes de
começarmos a esquecer.
A imagem consagrada e intocável dos clássicos impede-nos de
imaginarmos o enorme questionamento sofrido por alguns deles e
os tremendos alvoroços que organizaram com as suas obras. Se
houve uma personagem polémica foi o multimilionário Séneca.
Astuto investidor, organizou o que hoje chamaríamos um banco de
crédito e enriqueceu graças à cobrança de juros exorbitantes.
Comprou propriedades no Egito, o paraíso do investimento
imobiliário naquela altura. Multiplicou várias vezes o seu património
e, através de prebendas e redes de contacto, conseguiu acumular
uma das maiores fortunas do século, mais de um décimo da
cobrança anual de impostos de todo o Império Romano. Teria
podido dedicar-se ao luxo, a exibir a sua riqueza em imensas e
caras mansões com milhares de telhas — em Roma, o tamanho das
casas não se media pelos metros quadrados de superfície, mas sim
pelo número de telhas que protegiam a cabeça do proprietário —, a
colecionar antiguidades, escravos e troféus de caça. Mas era
apaixonado pela filosofia, ironicamente, pela filosofia estoica.
Dedicou páginas transbordantes de convicção às suas ideias,
páginas onde afirmava que um homem é rico quando as suas
necessidades são sóbrias. Sem necessidade de listas da revista
Forbes, os seus contemporâneos sabiam que a sua fortuna atingia
níveis fora do comum. Era muito tentador fazer troça e levar na
brincadeira todas aquelas apologias do desapego, da frugalidade e
das vantagens de se conformar com pão tosco. Uma e outra vez,
Séneca foi ridicularizado por defender o seu credo de moderação e
filantropia enquanto administrava os seus negócios com métodos de
capitalista desenfreado. É difícil saber em que acreditar com esta
ambivalente personagem, banqueiro e filósofo, que nunca chegou a
resolver a contradição entre o que pensava e como vivia. Porém,
alguns dos textos que lhe proporcionaram tanta troça em vida
continuam a desafiar-nos hoje. Uma passagem das suas Cartas a
Lucílio marca um ponto sem retorno na história do pacifismo
ocidental: «Castigamos os homicídios individuais, mas o que dizer
das guerras e do glorioso delito de arrasar aldeias inteiras?
Elogiamos factos que se pagariam com a pena de morte porque são
cometidos por quem leva as insígnias de general. A autoridade
pública ordena o que está proibido aos particulares, a violência é
exercida mediante decisões do Senado e decretos da plebe. O ser
humano, o mais doce dos animais, não se envergonha de fazer a
guerra e de mandar os seus filhos para também a fazerem.»
Estes textos acumulam séculos, mas recriam o mundo que nos
rodeia com uma veracidade assombrosa. Como é possível? Porque
desde a Grécia e Roma não parámos de reciclar os nossos sinais,
as nossas ideias e as nossas revoluções. Os três filósofos da
suspeita — Nietzsche na metafísica, Freud na ética e Marx na
política — partiram do estudo dos antigos para concretizarem a
passagem para a modernidade. Até a criação mais inovadora
contém, entre outras coisas, fragmentos e despojos de ideias
anteriores. Os clássicos são esses livros que, como os velhos
roqueiros sempre em ativo, envelhecem em cima do palco e se
adaptam a novos tipos de público. Os mitómanos pagam muito para
irem aos seus concertos, os irreverentes parodiam-nos, mas
ninguém os ignora. Demonstram que o novo mantém com o velho
uma relação mais complexa e criativa do que parece à primeira
vista. Como escreveu Hannah Arendt, «O passado não leva para
trás, mas sim impulsiona para a frente e, ao contrário do que se
poderia esperar, é o futuro que nos conduz para o passado».

Cânone: história de um junco


41

Esta história começa nos canaviais de um rio que parece um


espelho sob o sol, em latitudes orientais quase despidas de
arvoredo. A água banha as margens húmidas, onde nasce uma
vegetação emaranhada, os grilos cantam teimosos e brilha o voo
azul das libélulas. Ao amanhecer, um caçador que espreita as suas
presas ao pé da encosta ouve o chapinhar débil da água e o ranger
dos juncos movidos pela brisa.
Num lugar assim cresciam, erguidos como ciprestes, os caules
das canas orientais (Arundo donax). O nome desta espécie contém
uma raiz semítica muito antiga (na língua assírio-babilónica, qanu;
em hebreu, qaneh; e em aramaico, qanja). Dessa raiz estrangeira
vem o grego kanón, que significa literalmente «reto como uma
cana».
O que era um cânone? Uma vara de medir. Os pedreiros e os
construtores antigos davam esse nome a umas simples ripas de
madeira que serviam para traçar linhas retas e fixar com precisão
tamanhos, proporções e escalas. Na ágora, onde os mercadores e
os seus clientes discutiam aos gritos acusando-se mutuamente de
serem vigaristas, só havia um padrão de pesos e medidas
esculpidos na pedra. Alguém resmungava: «Esta peça de tecido não
mede três cotovelos; bêbado, cara de cão, vais ser a minha ruína!»
E o interpelado uivava: «És um esfomeado, lar de todas as pulgas, e
tu atreves-te a acusar-me de ladrão?» Era através dos cânones —
antecedentes do nosso metro de platina iridiada — que se resolvia a
maior parte das discussões e regateios dos nossos antepassados
gregos. Num salto para a abstração, o escultor Policleto deu o título
de Kanón ao seu tratado sobre as proporções físicas ideais. A figura
humana perfeita mede, afirmou, sete vezes o tamanho da cabeça.
Parece que a sua escultura O Doríforo exemplificava essas medidas
masculinas desejáveis — e inaugurou a ditadura da imagem: os
jovens atormentavam-se no gymnásion a desejarem esculpir o seu
corpo à imagem desse modelo de mármore.
A nossa humilde cana chegou, através de Aristóteles, ao
afastado terreno da ética. O filósofo escreveu que a norma de ação
— o cânone moral — não deviam ser as ideias absolutas e eternas
de Platão, mas sim «a forma de um homem honrado e íntegro se
comportar». Esta receita aristotélica para resolver problemas de
consciência faz-me lembrar uma frase de Cary Grant no filme A Irmã
da Minha Noiva: «Quando estou em apuros, pergunto-me: o que
faria a General Motors no meu lugar? Eu faço o contrário.» Por mais
arcaico que possa parecer, o nosso Código Civil ainda nos exige
que assumamos as nossas obrigações «com a diligência de um
bom pai de família».
As listas dos melhores escritores e das melhores obras nunca se
chamaram cânones no tempo dos gregos e dos romanos. Como é
que chegámos ao nosso controverso conceito de «cânone
literário»? Através do filtro cristão. No meio de agitadas discussões
sobre a autenticidade dos relatos evangélicos, as autoridades
eclesiásticas foram esboçando o conteúdo do Novo Testamento: os
Evangelhos de São Marcos, São Mateus, São Lucas e São João —
esses quatro e não outros —, e os Atos dos Apóstolos e as
Epístolas. O debate entre comunidades cristãs que levou à exclusão
dos textos considerados apócrifos foi longo e muitas vezes
inflamado. No século IV, quando o repertório já estava quase
fechado, o historiador Eusébio de Cesareia chamou «cânone
eclesiástico» à seleção de livros que as autoridades declararam de
inspiração divina e onde os crentes poderiam encontrar uma norma
de vida. Mais de mil anos depois, em 1768, um erudito alemão
utilizou pela primeira vez a expressão «cânone de escritores» no
sentido atual. O problema é que a palavra chegava cheia de traços
e conotações. Pela analogia bíblica, o cânone literário parecia
configurar-se como uma hierarquia vertical, ditada por especialistas,
apoiada na autoridade de um grupo de escolhidos, intencionalmente
fechada, permanente e intemporal. Não é de estranhar que, desde
então, muitos leitores apaixonados, em defesa da sua liberdade,
tenham sentido a tentação, como Cary Grant em relação à General
Motors, de fazer — e ler — precisamente o contrário.
Na verdade muitos clássicos chegaram a sê-lo ganhando o jogo
às autoridades que tentavam destruí-los. Assim, por exemplo, os
livros de Ovídio venceram Augusto; os versos de Safo, o papa
Gregório VII. As ameaças de Platão contra os poetas não tiveram
consequências nem sequer onde o filósofo teve influência política.
Calígula não acabou com os poemas de Homero, nem Caracala
com as obras de Aristóteles. Sobreviveram no cânone obras
consideradas heréticas e perigosas como De rerum natura, de
Lucrécio; Gargântua e Pantagruel, de Rabelais; ou as narrações de
Sade. Os nazis não conseguiram convencer o mundo de que
nenhuma obra escrita por judeus era valiosa.
O cânone literário tem pouco em comum com o religioso. O
repertório bíblico, sustentado pela fé, pretende ser imutável; o
literário não. Com este último encaixa muito melhor a imagem
escolhida pelos romanos: o censo, uma classificação hierárquica,
sim, mas constantemente atualizada. Se consegue chegar a ser
uma ferramenta útil é precisamente porque a sua flexibilidade lhe
permite registar as mudanças. Na cultura não existem as ruturas
totais, nem sequer uma continuidade absoluta. Algumas obras têm
melhor ou pior receção de acordo com as mudanças das
circunstâncias históricas. Os críticos ilustrados, na sua obsessão
pelas obras didáticas e morais, estavam muito menos cativados por
Shakespeare do que nós. Hoje mal nos interessa ler sermões ou
discursos, que foram géneros maiores noutras épocas. No século
XVIII, os intelectuais condenaram de forma bastante unânime o

romance, sem suspeitarem da sua ascensão ao topo do cânone


atual. A literatura infantil só triunfou quando a infância começou a
ser uma etapa vital valorizada — e reinventada. Com o auge do
feminismo, os romances com heroínas perseguidas, como as que
María de Zayas escreveu no século de ouro, deixaram de ser
considerados curiosidades menores e adquiriram uma importância
renovada. Tal como as empresas, alguns autores abrem ou fecham
de acordo com as mudanças de sensibilidade do público. Baltasar
Gracián teve de esperar até aos anos noventa do século passado
para que os executivos agressivos dos Estados Unidos e Japão
convertessem a sua Arte da Prudência num livro de referência e em
best-seller internacional. Quase não se representa o teatro do
flamante Prémio Nobel Jacinto Benavente e, pelo contrário,
apaixona-nos o do seu contemporâneo Valle-Inclán, um
extravagante marginal que manteve uma relação esquiva com o
público e com o sucesso. Marcial só tinha de se defender da
acusação de escrever poemas demasiado curtos, enquanto agora a
brevidade dos seus epigramas — com as dimensões de um tweet —
joga a seu favor. Os romances de cavalaria, que causaram furor
durante séculos, foram ficando de lado enquanto se consagrava a
sua paródia, Dom Quixote. O humor e a ironia ganharam terreno —
hoje preferimos os livros ambíguos aos que nos tentam doutrinar.
Ao longo do tempo conviveram numerosos cânones, com
infinitas ramificações parciais. Em quase todos os períodos,
diversos críticos enfrentam-se e constroem listas rivais. Os objetores
precisam sempre de matéria contra a qual objetar. Cada geração
distingue entre o bom gosto — o meu — e a vulgaridade — a tua.
Cada corrente literária esvazia os pedestais para colocar neles os
seus favoritos. No final, só o tempo tem a última palavra. Cícero
achava que o inovador Catulo era um jovenzinho vaidoso sem uma
pisca de talento, e Catulo detestava Júlio César. Porém, acabaram
os três juntos no cânone romano. Emily Dickinson publicou apenas
sete poemas em vida, e os seus editores consideraram necessário
corrigir-lhe a sintaxe e a pontuação. André Gide recusou o
manuscrito de Proust para a editora Gallimard. Borges publicou na
revista Sur uma crítica demolidora de Citizen Kane, da qual mais
tarde se retrataria.
Como todas as taxonomias, os cânones revelam muito de quem
os formula e da sua época. Assim, nos nomes escolhidos, afloram
preconceitos, aspirações, sentimentos, pontos cegos, estruturas de
poder e autovalidações. O estudo das obras clássicas que deixaram
de sê-lo, daquelas que emergiram depois de serem postas a um
canto e das que mantiveram de forma ininterrupta a sua influência,
ou seja, a história das metamorfoses do cânone através dos
séculos, proporciona uma fascinante perspetiva da nossa vida
cultural. Reconhecer o contexto variável em que os nossos
julgamentos com vocação de eternidade se dão é um avanço na
compreensão histórica, que consiste, segundo J. M. Coetzee, em
entender o passado como uma força que modela o presente. «O
que é que fica do clássico, se há algo que fica depois de ser
historizado, que ainda nos possa continuar a falar através das
épocas?», pergunta-se o escritor sul-africano. O clássico ultrapassa
os limites temporais, retém um significado para as épocas
vindouras, vive. Emerge, ileso, do processo de ser posto à prova dia
após dia. Embora atravesse épocas obscuras, a sua continuidade
não se quebra. Ultrapassa mudanças históricas, até sobrevive ao
beijo da morte da sua consagração por parte de fascismos e
ditaduras. Algo continua a impressionar-nos nos filmes
propagandísticos de Einsestein para os comunistas soviéticos, ou
nos de Leni Riefenstahl para os nazis.
Os estudos culturais atacaram o cânone por ser autoritário e
opressivo, e lançaram-se a propor cânones alternativos dando
protagonismo aos excluídos. O debate, iniciado na década de
setenta, revitalizou-se no final do século XX. No contexto de um
mundo académico que tinha tomado consciência do
multiculturalismo, o crítico americano Harold Bloom, em tom
elegíaco, denunciou a abordagem moralizadora da que chama
«escola do ressentimento» e publicou a sua própria versão —
descaradamente anglo-saxónica, branca e masculina — do cânone
ocidental. Nunca antes tinha havido tantas advertências e ao
mesmo tempo tanta atividade canonizadora. A Internet alberga
infinitas listas de livros, filmes e canções. Os suplementos culturais
classificam sem parar as novidades do ano. Os prémios e festivais
enunciam seleções das melhores obras publicadas. Editam-se
inúmeros livros intitulados Os Cem Melhores… As redes sociais
acolhem milhões de recomendações partilhadas por leitores
especialistas ou amateurs. Detestamos as listas e, ao mesmo
tempo, somos viciados nelas. Imprescindível mas imperfeito, o
cânone expressa essa contraditória paixão. E, no meio da
inundação de livros, aflora o nosso desejo de descansar da agitação
do inalcançável.
Mas voltemos ao canavial onde começou este longo caminho.
Assomada entre os carriço e as espadanas, com as suas rijas
espigas, acho que escolhemos uma metáfora imperfeita. Os caules
retos e rígidos do juncal não evocam o sinuoso caminho do cânone.
Seria antes o rio, que muda o seu curso, serpenteia, desenha
meandros, se enche e se esvazia, mas continua ali e parece sempre
o mesmo que canta a sua inesgotável estrofe, mas com diferente
água.

42

Quando, em algum lugar, o último exemplar de um livro ardia,


molhava-se até à podridão ou era lentamente devorado por insetos,
morria um mundo. Mais ninguém podia lê-lo, copiá-lo e salvá-lo. Ao
longo dos séculos, sobretudo durante a Antiguidade e a Idade
Média, muitas vozes calaram-se para sempre por serem extintas. É
difícil imaginar através de que estranhos caminhos sinuosos
algumas obras minúsculas, infantis ou vulgares chegaram até nós,
enquanto outras sucumbiram, fruto dos mais extravagantes
sistemas destruidores.
Os sábios de Alexandria tinham plena consciência da fragilidade
das palavras. Em princípio, o esquecimento é o destino mais
previsível de qualquer relato, de qualquer metáfora, de qualquer
ideia. Os anos roubados ao silêncio e ao desaparecimento
constituem, pelo contrário, a exceção; uma exceção que, antes da
imprensa, só se podia sustentar graças aos gigantescos esforços de
copiar os textos à mão, letra por letra, para multiplicá-los e mantê-
los em circulação. O cânone dos bibliotecários alexandrinos foi,
sobretudo, um programa de salvação; uma concentração das
energias disponíveis em poucas obras escolhidas, já que era
impensável mantê-las todas vivas; um passaporte para o futuro para
certos relatos, versos e pensamentos, os que mais lhes importavam.
Os mecanismos do cânone foram uma questão de sobrevivência
— naquela época, a palavra escrita era uma espécie em perigo de
extinção. Havia mais exemplares dos livros escolhidos; o seu
prestígio traduzia-se em números, que não eram valores de negócio
mas sim de esperança. Todos eles iam parar às bibliotecas públicas,
que os protegiam do acaso. O outro grande refúgio foi a escola. Os
textos utilizados nas lições de escrita e leitura eram copiados em
todos os cantos do território: o seguro de vida mais duradouro para
um livro. Perante um sistema educativo sem o mínimo indício de
centralização e sem autoridades académicas, cada professor podia
escolher livremente os títulos que lia com os seus alunos. Essa
soma de decisões individuais inspirou-se no cânone e, ao mesmo
tempo, teve influência nele e transformou-o.
Só há um género literário na Grécia e em Roma que, sem
possuir origens aristocráticas nem pretensões de alta cultura,
conseguiu consagrar os seus próprios clássicos: as fábulas de
animais. A figura difusa de Esopo teve — tinha de ser — o seu
gémeo romano: o ex-escravo Fedro. As fábulas antigas olhavam
para a realidade de cima a baixo, como um confronto entre os
animais mais pequenos e humildes — as ovelhas, as galinhas, as
rãs, as andorinhas — e os seres mais poderosos — os leões, as
águias, os lobos. A analogia é transparente, e o diagnóstico
também: os seres desamparados costumam sair prejudicados. Em
poucas ocasiões, e só através da astúcia, é que o fraco consegue
vencer; em geral é derrotado com total desenvoltura pelos fortes.
Numa destas histórias pessimistas, um grou mete a cabeça na
garganta de um leão para lhe tirar um osso com o qual se
engasgou, mas não recebe a recompensa prometida — será que
não é suficiente não lhe ter arrancado a cabeça com uma dentada?
Noutra fábula, um cordeiro tenta rebater as acusações arbitrárias de
um lobo, mas os seus raciocínios só servem para que o predador se
aproxime dele dissimuladamente no calor da discussão e o devore
sem hesitar. A moral final do género parece concluir que cada um
tem de aguentar o seu próprio destino. Os mais vulneráveis não
encontrarão qualquer ajuda nas leis, essa teia da aranha que
apanha as moscas, mas deixa passar cuidadosamente os pássaros.
Não há nada parecido, pela sua crueldade e o seu desencanto, no
cânone. E, se estas fábulas tão alheias à elite abriram um espaço
para si, foi sem dúvida porque durante séculos os professores as
usavam nas suas aulas.
Um desses professores romanos, Quinto Cecílio Epirota, tomou
a revolucionária decisão de estudar com os seus discípulos a obra
de escritores vivos. Graças à escola, alguns autores do século I
começaram a saborear, sem terem de morrer, o estatuto de
clássicos. Vergílio foi o mais favorecido deles. Como explica Mary
Beard, descobriram-se cinquenta citações da poesia vergiliana
gatafunhadas nas paredes de Pompeia. A maior parte dos versos
provém do início dos livros I e II da Eneida, provavelmente as
passagens preferidas dos professores. Parece que no ano 79 toda a
gente conhecia o início do poema, «Arma virumque cano», sem
necessidade de tê-lo lido do início ao fim, tal como hoje não é
preciso ser um especialista em Cervantes para poder citar o lugar
de La Mancha de cujo nome não nos queremos lembrar. Um trocista
parodiou a Eneida na parede de uma lavandaria pompeiana, para
gozar com os donos. Fazendo referência à ave que era o animal de
estimação dos donos do estabelecimento, o desconhecido
humorista escreveu: «Canto os pisões e a sua coruja, não as armas
e o homem.» A piada é muito óbvia, mas Beard destaca que implica
um surpreendente marco de referências partilhadas entre o mundo
da rua e o da literatura clássica. Outros vândalos eram menos subtis
nos seus insultos — e mais parecidos com aqueles que decoram
hoje as portas das casas de banho públicas. Um remoto pompeiano
escreveu na parede de uma taberna: «Eu fodi a dona.»
O século I a. C. foi uma época de esperança para os escritores.
Certos títulos escolhidos copiavam-se e distribuíam-se por uma
geografia imensa, integrando-se numa rede sem precedentes de
bibliotecas públicas e privadas, bem como de escolas. Talvez pela
primeira vez na História, os autores mais aplaudidos tivessem
sólidos motivos para confiarem num longo futuro. A condição para
consegui-lo era, claro, entrar nas listas. Numa das passagens mais
explícitas da ânsia canónica romana, Horácio sugere sem rodeios
ao seu protetor Mecenas que o inclua no pódio dos melhores: «Se
me colocares entre os poetas líricos, tocarei com a minha elevada
testa nas estrelas.» Com o verbo inserere traduzia o grego enkrínein
— separar o trigo do joio, selecionar —, metáfora que na linguagem
dos bibliotecários de Alexandria significava escolher um autor.
Encantado por se ler, Horário considerava-se um digno colega dos
famosos nove líricos gregos, e não hesitou em partilhar com os seus
leitores uma opinião tão imparcial sobre si próprio. No próprio livro
de odes, garante que os seus poemas, escritos sobre frágeis folhas
de papiro sobreviverão ao metal e à pedra: «Concluí um monumento
mais duradouro do que o bronze e mais alto do que os régios
túmulos das pirâmides, que as chuvas persistentes, os ventos frios
ou o tempo com a sua série inumerável de anos não poderão
destruir. Não morrerei totalmente.» Uns anos mais tarde, Ovídio
expressou uma confiança idêntica na duração das suas
Metamorfoses: «Já terminei uma obra que nem a cólera de Júpiter
nem o fogo nem o ferro nem o tempo voraz poderão destruir.»
Embora estas profecias possam parecer imprudentes, a verdade é
que se cumpriram até hoje.
Nem todos os escritores se atreveram a imaginar uma vida tão
longa para as suas obras. Marcial, um autor sem presença na
escola, tinha fantasias menos otimistas. Nos seus Epigramas faz
troça do destino dos livros descartados, do maltratado grupo dos
excluídos do topo: morituri te salutant. Revela-nos que muitos
acabaram a embalar comida ou destinados a outros usos de
escassa solenidade. E este é o fim que ameaça o seu próprio livro:
«Não vá ser que, levado a uma negra cozinha, cubras com as tuas
folhas molhadas umas crias de cavala ou te convertas em cartucho
para o incenso ou a pimenta.» As imagens humorísticas do fracasso
literário sucedem-se nos seus versos: rolos convertidos em togas
para atuns, túnicas para as azeitonas, ou capuzes para o queijo.
Provavelmente, Marcial receava entrar nesse mundo da literatura
que morria nas cozinhas, entre rastos de escamas e fedor a peixe
podre.
Durante séculos, os merceeiros embrulharam as suas
mercadorias em folhas arrancadas de velhos livros. Os sonhos do
escritor e o esforço do copista — ou, mais à frente, do tipógrafo —
pereciam numa mísera revenda. Cervantes conta em Dom Quixote
a mesma triste história que Marcial, mas com final feliz. Recém-
começado o livro, num audacioso capítulo metaliterário,
encontramos o narrador da história a deambular pelas lojas da Rua
Alcaná de Toledo. Vê passar um rapaz carregado com umas pastas
a transbordar de papéis usados para vender a um comerciante de
sedas. Embora ainda não tenha qualquer suspeita, esses velhos
documentos contêm a crónica das aventuras de Dom Quixote de La
Mancha. «Como sou viciado em ler nem que sejam os papéis
rasgados da rua, peguei numa pasta daquelas que o rapaz
oferecia», escreve o narrador. Graças à curiosidade desse leitor in
extremis, o manuscrito salva-se de envolver peças de tecido, e o
romance pode continuar. Este episódio é um jogo literário, uma
ficção maquinada por Cervantes como paródia do recurso aos
manuscritos descobertos que tanto abundam nos romances de
cavalaria. Porém, a imagem do rapazinho que vende papel usado
pelas lojas da Rua Alcaná tem o aroma da vida quotidiana, e deixa
vislumbrar uma realidade paralela na qual o grande clássico
espanhol podia ter sido destruído folha a folha numa anónima loja
de sedas de Toledo.
No limiar do século XX, o bibliómano britânico William Blades
comprou os restos de um valioso livro que fora salvo de um
naufrágio escatológico. Blades conta que, no verão de 1887, um
cavalheiro amigo seu alugou uns quartos em Brighton. Encontrou na
sanita umas folhas de papel disponíveis para se limpar. Colocou-as
sobre os seus joelhos nus e, antes de usá-las com finalidade
higiénica, passou os olhos pelo texto, escrito em letras góticas. Teve
o pressentimento de uma descoberta. Emocionado, resolveu
rapidamente os seus assuntos fisiológicos e os detalhes da limpeza,
e saiu para perguntar se havia mais folhas no lugar de onde tinham
tirado aquelas. A senhoria vendeu-lhe os restos desencadernados
que ainda restavam e contou-lhe que o seu pai, que adorava
antiguidades, teve em tempos uma arca grande cheia de livros.
Após a sua morte ela guardou-os, até que se cansou do estorvo.
Imaginando que não tinha valor, dedicou-os a abastecimento para a
sanita, onde estavam prestes a naufragar os últimos restos da
biblioteca herdada. O livro que tinha nas mãos era um dos
exemplares mais raros e escassos da imprensa de Wynkyn de
Worde, uma obra intitulada Gesta Romanorum na qual Shakespeare
tinha encontrado inspiração para as suas peças de teatro. Imagine-
se os tesouros bibliográficos que estiveram a abastecer diariamente
as latrinas daquela pensão inglesa.
Nos nossos dias, organizámos racionalmente a destruição de
livros. Como diz Alberto Olmos, as nossas sociedades respeitadoras
exterminam anualmente tanta letra escrita como os nazis, a
Inquisição ou Qin Shi Huang juntos. Com sigilo, sem a épica das
fogueiras públicas, todos os anos são eliminados, só em Espanha,
milhões de exemplares. Os armazéns das editoras tornaram-se
casas mortuárias que acolhem os títulos órfãos na sua primeira
morte, ou seja, quando são devolvidos pelas livrarias. O saldo
negativo é enorme: em 2016 foram publicados em Espanha 224
milhões de livros, dos quais quase 90 milhões acabaram no
purgatório. Dos títulos que pretendem ser best-sellers, imprimem-se
com conhecimento de causa muitos mais exemplares do que os que
os seus leitores podem absorver, porque se pensa que são as
gigantescas pilhas de livros que vendem os livros. Os cálculos
erróneos e as esperanças frustradas dos editores também levam
centenas de milhares de livros diretamente para a casa mortuária.
Como o armazenamento tem um custo elevado para as empresas
do sector, esses milhões de despejados acabam em fábricas da
periferia onde são triturados, esmagados e convertidos numa massa
amorfa: a pasta de papel. Silenciosamente, transformam-se noutros
livros, nascidos à custa da canibalização dos seus antecessores
fracassados, ou reciclam-nos noutros produtos novos e úteis como
pacotes, guardanapos, lenços, bases para copos, caixas de
sapatos, embalagens — a versão contemporânea das togas para
atuns de Marcial —, ou até em rolos de papel higiénico, que nos
convertem a todos em émulos intestinais dos hóspedes daquela
pensão de Brighton.
O escritor checo Bohumil Hrabal trabalhou como embalador
numa prensa de reciclagem de papel. Baseado naquela experiência,
o seu romance Uma Solidão Demasiado Ruidosa transcreve o
monólogo de um operário enclausurado num subterrâneo — com as
ratazanas e com as suas reflexões — enquanto forma, um atrás de
outro, fardos de papel velho que deve entregar aos transportadores.
A sua gruta fede como um inferno porque os papéis amontoados
não estão secos, mas sim húmidos e podres, e começam a
fermentar, «espalhando tal fedor que, comparativamente, o esterco
exala um perfume delicioso». Três vezes por semana, os camiões
levam os seus fardos para a estação, metem-nos nos vagões e
transportam-nos para as fábricas de papel onde os operários os
mergulham em turvos tanques de álcalis e ácidos que os dissolvem.
O protagonista, apaixonado pelos livros, sabe que na sua prensa
expiram obras maravilhosas, mas não consegue deter o fluxo da
destruição. «Não passo de um terno carniceiro», escreve. O seu
ritual de sobrevivência consiste em ser o último leitor dos livros que
chegam ao subsolo onde trabalha e em preparar com esmero os
seus túmulos, ou seja, os pacotes que elabora: «Tenho a
necessidade de embelezar cada pacote, de lhe dar o meu carácter,
a minha assinatura. No mês passado atiraram para a minha cave
seiscentos quilos de reproduções de mestres célebres, de modo que
agora embelezo cada um dos meus fardos com os campeões da
pintura europeia e, ao anoitecer, enquanto os meus fardos esperam
em fila indiana em frente do monta-cargas, deleito-me a contemplar
aquela beleza, aqueles pacotes decorados com A Ronda da Noite,
Saskia, Almoço na Relva ou o Guernica. E só eu sei que no coração
de cada pacote descansa, aberto, aqui Fausto, aqui, entre papéis a
pingar sangue dos talhos, Hiperião e Assim falou Zaratustra. Eu sou
ao mesmo tempo o artista e o único espectador.» Hrabal escreveu
este romance quando a sua obra tinha sido proibida pelo regime
comunista. Nesse tempo de escrita prisioneira, estava obcecado
com os problemas da criação e da destruição, a razão de ser da
literatura e o porquê da solidão. O monólogo do velho operário é
uma fábula sobre a crueldade do tempo. E, indiretamente, um
testemunho informado sobre a fantástica e improvável aventura que
implica para um livro sobreviver durante milénios.

Cacos de vozes femininas

43

Numa paisagem de sombras, ela tem corpo, presença, voz. É um


caso único em Roma: uma jovem independente e culta que insiste
no seu direito ao amor; uma poeta de cuja vida e sentimentos ela
própria fala, com as suas próprias palavras, sem mediações
masculinas.
Sulpícia viveu no século esplendoroso do imperador Augusto. Foi
uma mulher excecional por muitos motivos — o mais importante
deles era que pertencia a esse 1% da população romana que hoje
classificamos como elite, situada no topo de um mundo duro e
hierárquico. A sua mãe era irmã de Marco Valério Messala Corvino,
um poderoso general e mecenas literário. Na mansão do seu tio
conheceu alguns dos poetas mais aclamados da época, como
Ovídio ou Tíbulo. Favorecida pela riqueza e pelo parentesco,
Sulpícia atreveu-se a escrever poemas autobiográficos, os únicos
versos de amor escritos por uma mulher romana da época clássica
que chegaram até nós. Nos seus poemas fala uma voz feminina que
reclama algo pouco comum na época: liberdade e prazer.
Convencida de que se podia permitir qualquer atrevimento, queixa-
se da vigilância que o seu tio exerce sobre ela, chamando-lhe —
com ironia e descaramento — «parente desalmado».
Só chegaram até nós seis dos poemas de Sulpícia. No total,
quarenta versos, seis episódios da sua paixão por um homem a
quem chama Cerinto. Fica claro que não é o namorado escolhido
pela família. Pelo contrário, os seus pais e o seu tio-tutor receiam
que durma com ele. Ela própria diz que alguns sofrem perante a
ideia de que sucumba, deixando-se levar a uma «cama não nobre».
É provável que Cerinto pertença a outro mundo, a outra classe
social, talvez até seja um liberto. Quem sabe. Em todo o caso, não
parece ser um pretendente adequado para a aristocrata Sulpícia;
algo que não preocupa minimamente a jovem. Se sofre, e às vezes
sofre, é por outros motivos. Por exemplo, censura a si própria a sua
falta de coragem, sente angústia porque o peso da sua educação
não a deixa mostrar o seu desejo.
O poema de Sulpícia que mais me impressiona é uma
declaração pública, provocadora e desafiante, dos seus
sentimentos. Traduzo livremente os dísticos da elegia:

Finalmente chegaste, Amor!


Chegaste com tal intensidade
que me causa mais vergonha
negar-te
do que afirmar-me.
O Amor cumpriu a sua palavra,
aproximou-te de mim.
Comovido com os meus cantos,
trouxe-te Amor ao meu regaço.
Gosto de ter cometido este erro.
Revelá-lo e gritá-lo.
Não, não quero confiar o meu prazer
à estúpida intimidade das minhas notas.
Vou desafiar a norma,
enoja-me fingir por aquilo dirão.
Fomos uma digna do outro,
que se diga isso.
E aquela que não tiver a sua história
que conte a minha.

O que é que aconteceu com os amantes? Não sabemos, mas é


pouco provável que a sua relação tenha conseguido sobreviver aos
entraves familiares. Mais cedo ou mais tarde, ela teria de claudicar.
Entre as classes altas, às quais Sulpícia pertencia, o páter-famílias
decidia os casamentos baseando-se em motivos estratégicos de
oportunidade. Os clãs uniam assim duas pessoas por conveniência
social, política ou económica, não por paixão. Provavelmente, o
desejado Cerinto foi expulso da vida de Sulpícia, e só restaram a
lembrança e os poemas — «deserta cama e o turvo espelho e o
coração vazio», como escreveu Machado.
Rebelar-se contra a moral sexual, nem que fosse durante um
breve parênteses juvenil, implicou uma viagem à beira do abismo
para Sulpícia. Estava a cometer um crime. Pouco tempo antes,
Augusto tinha aprovado uma lei — a lex Iulia de adulteriis — que
condenava em processos públicos as relações sexuais das
mulheres fora do casamento — também se eram solteiras ou viúvas.
Tanto elas como os seus cúmplices sofriam um severo castigo. Só
ficavam excluídas da condenação as prostitutas e as concubinas.
Por isso, contam as fontes que mulheres patrícias, de categoria
senatorial ou equestre, começaram a declarar em público que
praticavam a prostituição. Tratava-se de um ato de desobediência
civil, de um desafio aberto aos tribunais. Os protestos conseguiram
que, na prática, a norma se aplicasse muito pouco. Já no final do
século I, Juvenal, na sua feroz diatribe contra o género feminino,
exclamava exasperado: «Onde estás, lex Iulia, por acaso a dormir?»
A outra grande transgressão de Sulpícia foi tornar públicos os
seus sentimentos e a sua rebeldia através da escrita. Como os
gregos, também os romanos pensavam que a palavra, ferramenta
fundamental da luta política, era um privilégio masculino. Essas
ideias até ficaram expressas no universo religioso, através do culto
a uma deusa feminina do silêncio, chamada Tácita Muda. Contava a
lenda que Tácita foi uma ninfa descarada que costumava falar
demasiado e, sobretudo, de forma inconveniente. Júpiter, para
acabar com tanta tagarelice e deixar claro a quem correspondia a
jurisdição verbal, arrancou-lhe a língua. Impedida de falar, Tácita
Muda era um símbolo eloquente. As romanas não podiam exercer
cargos públicos nem participar na vida política. Só uma geração
permitiu a existência de oradoras, na primeira metade do século I a.
C., mas essa atividade foi logo legalmente proibida. As mulheres
romanas de famílias abastadas costumavam ter acesso à leitura,
sim, mas encaminhada para aquela que pudessem aplicar na sua
função de mães e professoras de futuros oradores. Educadas para
que educassem, aprendiam a falar bem em benefício dos seus
filhos, não para seu próprio proveito, porque isso significaria saltar o
limite da esfera privada que lhes era própria e usurpar um cargo no
campo dos ofícios masculinos. Tinham poucas oportunidades de se
destacarem ou de se fazerem ouvir fora da demarcação doméstica.
Quando o biógrafo Plutarco tentou repetir o sucesso de Vidas
Paralelas com uma obra sobre proezas protagonizadas por
mulheres gregas, romanas e bárbaras, esta foi acolhida de forma
fria. Na verdade, o livro recebeu pouca atenção e estudo até aos
nossos dias.
É muito revelador estudar os motivos que ajudaram os versos de
Sulpícia a sobreviver. Não chegaram com o seu nome, mas sim
inseridos entre os poemas atribuídos a um escritor do círculo do seu
tio, Tíbulo. As dúvidas sobre a autoria e o grande prestígio de Tíbulo
contribuíram para preservar os textos durante séculos. Hoje, após
atentas análises filológicas, os estudiosos aceitam de forma quase
unânime que os poemas seriam obra de Sulpícia, embora alguns
céticos continuem a objetar que o seu conteúdo é demasiado
atrevido para uma dama romana. Ao mesmo tempo, há poucos anos
era habitual menosprezá-la, como se se tratasse de uma simples
amadora — triste redundância, pois naquela época nenhuma mulher
podia fazer da literatura a sua profissão. As romanas daquele tempo
não tinham meios para conseguirem que as suas obras se
conhecessem e difundissem. A maioria nem sequer equacionava
fazê-lo. E o mais importante: quem valorizava se um livro merecia
passar à posteridade nem sequer tinha em conta o que as mulheres
escreviam. Na verdade, não nos devíamos surpreender por vermos
que estes poemas só sobreviveram incrustados num livro alheio.
Apesar dos impedimentos, Sulpícia não foi a única que tentou.
Restam-nos breves fragmentos, citações ou referências de vinte e
quatro autoras. Todas elas tiveram traços comuns: eram ricas,
pertenciam a famílias importantes e escreveram ao abrigo de
homens poderosos. Como escreve Aurora López, possuíam dote,
fortuna e poder sobre os seus escravos; a cidade facilitou-lhes
tempo livre; geriam um espaço sempre privado, a casa, mas afinal
de contas um espaço no qual eram senhoras. Ou seja, como queria
Virginia Woolf, tiveram dinheiro e um quarto só para si, requisitos
necessários para uma mulher ser escritora. Entre elas, destaca-se
Júlia Agripina — filha de Germânico, esposa de Cláudio, mãe de
Nero —, cujas memórias perdidas só conhecemos por alusões; ou
Cornélia, mãe dos famosos Gracos, da qual se conservam duas
cartas incompletas.
Mas as atrevidas damas patrícias que se lançaram a invadir o
terreno dos homens tiveram de respeitar certas delimitações e leis
fronteiriças. Só podiam praticar géneros considerados menores ou
associados à vida interior: lírica — Hóstia e Perila —, elogios —
Acónia Fábia Paulina —, epigramas — Cornifícia —, elegias —
Sulpícia —, sátira — outra Sulpícia —, cartas — Cornélia, Servília,
Clódia, Pília, Cecília Ática, Terência, Túlia, Publília, Fúlvia, Ácia,
Octávia Menor, Júlia Drusila —, memórias — Agripina. Conhecemos
os nomes de três oradoras que exerceram durante o breve período
em que lhes foi permitido — Hortênsia, Mésia e Carfânia —, mas
não nos chegou nem um parágrafo original dos seus discursos. Não
há qualquer registo sobre autoras de épica, nem sequer de tragédia
ou comédia, pois não teriam podido levar de forma alguma as suas
obras aos palcos.
Os textos que estas mulheres romanas escreveram chegaram
até nós em cacos. Na sua totalidade podem ler-se em apenas uma
ou duas horas. É assim que se vê o alcance do que foi perdido.
Sulpícia tirou proveito de um erro e avançou até ao futuro com o seu
involuntário pseudónimo masculino. As restantes naufragaram
lentamente no silêncio. Dentro do cânone, elas são exceções
fragmentadas. Como Eurídice, voltam a afundar-se na escuridão
quando alguém tenta resgatá-las. Ao seguir o rasto das suas
pegadas apagadas, andamos às apalpadelas numa paisagem de
sombras onde já só é possível conversar com os ecos.

44

E, no entanto, desde tempos remotos, as mulheres contaram


histórias, cantaram romances e criaram versos ao redor da fogueira.
Quando era pequena, a minha mãe abriu perante mim o universo
das histórias sussurradas, e não foi por acaso. Ao longo dos
tempos, foram sobretudo as mulheres que tiveram de desfiar a
memória das histórias à noite. Foram as tecedoras de relatos e
retalhos. Durante séculos enovelaram histórias ao mesmo tempo
que faziam rodar a roca ou trabalhavam com a lançadeira do tear.
Elas foram as primeiras a expressar o Universo como malha e como
redes. Seguravam com nós as suas alegrias, ilusões, angústias,
terrores e crenças mais íntimas. Tingiam a monotonia de cores.
Entrelaçavam verbos, lã, adjetivos e seda. É por isso que os textos
e os tecidos partilham tantas palavras: a trama do relato, o nó do
argumento, o fio de uma história, o desenlace da narração; puxar o
fio da meada, alinhavar uma história, urdir uma intriga. É por isso
que os velhos mitos nos falam da mortalha de Penélope, das túnicas
de Nausícaa, dos bordados de Aracne, do fio de Ariadna, da linha
da vida que as moiras fiavam, da tela dos destinos que as nornas
cosiam, do tapete mágico de Xerazade.
Agora eu e a minha mãe sussurramos as histórias da noite aos
ouvidos do meu filho. Embora eu já não seja aquela menina,
escrevo para que as histórias não acabem. Escrevo porque não sei
coser, nem fazer malha; nunca aprendi a bordar, mas fascina-me a
delicada urdidura das palavras. Conto as minhas fantasias
enoveladas com sonhos e recordações. Sinto-me herdeira dessas
mulheres que, desde sempre, fizeram e desfizeram histórias.
Escrevo para que não se quebre o velho fio de voz.

O que se julgava eterno acabou por ser efémero

45
Num dia do ano 212, mais de trinta milhões de pessoas foram-se
deitar com uma identidade diferente daquela que tinham de manhã
bem cedo. O motivo não foi uma invasão em massa dos ladrões de
corpos, mas sim a surpreendente decisão de um imperador romano.
As fontes não nos dizem como é que a mudança foi recebida, se
ganhou o jogo da desconfiança ou do alvoroço. Provavelmente,
predominaria a surpresa: não havia precedentes históricos para algo
assim — e tenho a certeza de que não verei nada remotamente
parecido no nosso século XXI.
Qual foi o motivo de tanta comoção repentina? O imperador
Caracala tinha decretado que todos os habitantes livres do império,
onde quer que vivessem, desde a Britânia até à Síria, desde a
Capadócia até à Mauritânia, adquiriam a partir desse momento a
cidadania romana. Foi uma decisão revolucionária que apagou sem
mais nem menos a distinção entre autóctones e estrangeiros. Um
longo processo integrador culminou no instante da aprovação do
decreto. Foi uma das maiores concessões de cidadania
documentadas na História, se não a maior: dezenas de milhões de
provincianos converteram-se legalmente em romanos da noite para
o dia. Esse repentino presente ainda desconcerta os historiadores,
porque quebrou com a política antiquíssima — e tão contemporânea
— de converter apenas uma pequena percentagem dos aspirantes,
de forma gradual e restritiva, em cidadãos plenos. O político e
cronista antigo Dião Cássio suspeitava que sob a aparente
generosidade de Caracala se escondia a necessidade de receber
dinheiro, já que os novos romanos contraíam ipso facto a obrigação
de pagar o imposto sucessório e o imposto pela alforria de escravos.
Como afirma Mary Beard, se esse foi o motivo, acabou por ser uma
maneira muito embaraçosa de abordar o assunto. Não me parece
que nenhum estado atual equacione legalizar trinta milhões de
indivíduos de repente, por mais atraente que seja a perspetiva de
lhes cobrar impostos. Sem dúvida, a decisão do imperador teve uma
importante carga simbólica. Em tempos de crise, dar a mais gente
motivos pessoais para se identificar com Roma podia ser uma
medida inteligente.
Como é óbvio, a extensão da cidadania desvalorizou a sua
importância. Ao cair uma barreira de privilégio, rapidamente se
ergueu outra no seu lugar. Ao longo do século III, ganhou
importância a distinção entre os honestiores — a elite enriquecida e
os veteranos do Exército — e os humiliores — os mais humildes,
conceito intemporal que não precisa de tradução. A legislação
reconheceria direitos desiguais a estes dois grupos; os honestiores
ficaram isentos, por lei, de castigos degradantes ou cruéis como a
crucificação ou a flagelação, enquanto os humiliores permaneciam
expostos às humilhações anteriormente reservadas para os
escravos e os não cidadãos. A fronteira da riqueza substituiu as
fronteiras geográficas.
Embora, na prática, não faltassem grandes doses de
preconceitos, fricções e avidez, a civilização romana possuiu desde
as suas origens uma clara vocação integradora. Caracala terminou
uma evolução que, segundo a lenda, tinha sido iniciada por Rómulo
mil anos antes, quando ofereceu acolhimento — sem fazer
perguntas — a todos os forasteiros que aparecessem na recém-
fundada Roma. O que distinguiu a nova cidade foi a sua receção
aos mais desesperados fugitivos e requerentes de asilo. E, na
verdade, os descendentes de Rómulo praticaram uma política de
fusão sem precedentes na História universal: consideravam
irrelevante a pureza da estirpe, não se preocupavam muito com a
cor da pele, libertavam os escravos com procedimentos simples e
reconheciam ao liberto um estatuto quase de cidadão — os filhos
dos libertos eram-no de pleno direito. Não sabemos até que ponto a
população romana era multicultural, entre outras coisas, porque não
se prestava atenção a esse assunto; provavelmente foi o grupo
etnicamente mais diverso antes da idade moderna. Sem dúvida, em
Roma não faltou quem clamasse que tantos escravos acabariam por
minar as essências patrióticas, e muitos acusavam os estrangeiros
de fazerem poucos esforços para se integrarem. Mas nem o mais
teimoso daqueles resmungões com vontade de protestar teria
entendido os nossos conceitos modernos de «imigrantes ilegais» ou
«sem documentos».
É um facto que a população se movia por todo o território
romano como nunca antes: comerciantes, militares, administradores
e burocratas, traficantes de escravos, provinciais ricos com sonhos
de sucesso na capital. Havia cidadãos de classe alta na Britânia
oriundos do Norte de África. Todos os anos, governadores e altos
funcionários eram mandados para destinos longínquos. As legiões
formavam-se com soldados de todas as procedências. Até os mais
necessitados se juntavam ao fluxo de migrações. A moral de uma
fábula dizia: «Os pobres, ao terem uma bagagem mais leve, passam
com facilidade de uma cidade para outra.»
Os imperadores estavam obcecados com a iconografia global, da
qual faziam propaganda. Proclamava-se que Roma não era apenas
a dominadora do mundo, mas sim também a pátria comum de toda
a humanidade; a grande cidade mundial, a cosmópole concretizada,
capaz de oferecer acolhimento no seu interior a todas as pessoas
dispersas por geografias longínquas. Este ideal encontrou talvez a
sua expressão mais característica no pomposo e adulador Encómio
do retórico Élio Aristides: «Nem o mar nem todas as distâncias da
terra impedem de obter a cidadania, e aqui não há distinção entre a
Ásia e a Europa. Está tudo aberto para todos. Em Roma, ninguém
que seja digno de confiança é estrangeiro.» Os filósofos da época
insistiram em que o império realizava o sonho cosmopolita herdado
do helenismo. Com a sua Constitutio antoniniana do ano 212,
Caracala concretizou juridicamente estas ideias. Quanto ao resto,
não deixou uma grande lembrança como governante. Caprichoso e
homicida, acabou assassinado aos vinte e nove anos por um dos
seus guarda-costas enquanto urinava na valeta de uma estrada na
Mesopotâmia. Embora o seu reinado não tenha dado muitos sinais
de idealismo, admirava Alexandre e quis imitar o seu projeto de um
império baseado na cidadania do mundo. Ele próprio, nascido em
Lugdunum — atual Lyon — era filho da mestiçagem: o pai, Septímio
Severo, descendia da estirpe berbere e tinha a pele escura; a mãe,
Júlia Domna, tinha nascido em Emesa — atual Homs, na Síria. E
não foi a exceção. Quando o nomearam, há tempo que os
imperadores já não eram nativos de Roma, nem sequer italianos. As
elites do poder romano não tinham a pele tão branca como o
mármore das suas estátuas.
Se não era a raça, a cor da pele ou o local de nascimento, o que
é que unia os habitantes da Escócia, Gália, Hispânia, Síria,
Capadócia e Mauritânia? Quais eram os vínculos que, ao longo de
extensões tão enormes, ajudavam os romanos a entender-se, a
partilhar aspirações e a descobrir que eram membros de uma
mesma comunidade? Uma urdidura de palavras, ideias, mitos e
livros.
Sentir-se romano consistia em habitar cidades de largas
avenidas que se cruzavam em ângulo reto; em ter acesso a
ginásios, termas, fóruns, templos de mármores, bibliotecas,
inscrições em latim, aquedutos, redes de esgotos; em saber quem
eram Aquiles, Heitor, Eneias e Dido; em contemplar sem estranheza
os rolos e os códices como parte da paisagem quotidiana; em pagar
impostos aos temidos cobradores; em ter desatado a rir com uma
piada de Plauto nas bancadas de um teatro; em conhecer os
episódios da Roma primitiva contados por Tito Lívio em Ab urbe
condita; em ter ouvido um filósofo estoico falar de autodomínio; em
conhecer a — ou até ter servido na — imparável maquinaria bélica
das legiões. Mosaicos, banquetes, estátuas, rituais, frontões,
baixos-relevos, lendas de triunfo e de dor, fábulas, comédias e
tragédias modelavam — com ar, pedra e papiro — aquela
identidade romana ampliada até limites inimagináveis, o primeiro
relato comum europeu.
Pelas estradas do império globalizado, ensaios e ficções
transitaram de um lado para o outro da geografia conhecida.
Encontraram abrigo numa constelação de bibliotecas públicas e
privadas como nunca se tinha visto antes. Foram copiados e postos
à venda em livrarias de cidades longínquas entre si, como Brindisi,
Cartago, Lyon ou Reims. Seduziram pessoas de diversas origens, a
quem as escolas romanas ensinaram a ler após gerações de
imemorial analfabetismo. Tal como os aristocratas da capital, os
provinciais mais ricos compraram escravos especializado em copiar
textos — o inventário dos bens de um abastado cidadão romano,
proprietário de uma quinta no Egito, inclui, entre os seus cinquenta e
nove escravos, cinco notários, dois amanuenses, um escriba e um
restaurador de livros. Eram muitos os copistas que, ao serviço de
particulares ou de comerciantes, passavam longas jornadas diante
da carteira apetrechados de tinteiros, réguas e cálamos de cana
dura, para satisfazerem a procura de letra escrita. Nunca antes tinha
existido uma comunidade semelhante de leitores espalhada por
vários continentes e unida pelos mesmos livros. É verdade que não
eram milhões de pessoas; nem centenas de milhares; talvez, nos
melhores tempos, várias dezenas de milhares. Mas, contemplados à
luz daquela época, estamos a falar de números prodigiosos.
Como diz Stephen Greenblatt, houve no mundo antigo um
período — que foi longuíssimo — no qual pôde parecer que um dos
principais problemas culturais era a inesgotável produção de livros.
Onde se podiam pôr? Como era preciso organizá-los nas estantes?
Como reter na cabeça aquela profusão de conhecimento? A perda
de tanta riqueza teria sido simplesmente inconcebível para qualquer
um que vivesse naquele ambiente. Depois, não repentinamente mas
sim com a lógica gradual de uma extinção em massa, toda aquela
empresa chegou ao fim. O que parecia estável acabou por ser frágil,
e o que se julgava eterno acabou por se demonstrar efémero.

46

O chão tremeu debaixo dos pés. Chegaram séculos de anarquia,


de fracionamento, de invasões bárbaras, de sismos religiosos.
Provavelmente, os copistas foram os primeiros a compreender a
gravidade da situação: cada vez recebiam menos encomendas. O
trabalho de cópia foi quase totalmente interrompido. As bibliotecas
entraram em decadência, foram saqueadas durante as guerras e as
altercações, ou simplesmente deixadas ao abandono. Durante
sucessivas décadas terríveis, sofreram a pilhagem dos bárbaros e a
destruição às mãos de fanáticos cristãos. No final do século IV, o
historiador Amiano Marcelino queixava-se de que os romanos
estavam a abandonar a leitura séria. Com uma abordagem moralista
característica da sua classe social, indignava-se de que os seus
compatriotas se entretivessem na trivialidade mais absurda
enquanto o império se ia desmoronando de modo inexorável, e a
ligação cultural se dissolvia. «Os poucos lares que antes eram
respeitados por apostarem seriamente nos estudos agora deixam-se
levar pelos deleites da preguiça. E assim, em vez de um filósofo,
reclama-se um cantor, e em vez de um orador, um especialista em
artes lúdicas. E, enquanto as bibliotecas permanecem sempre
fechadas como sepulcros, fabricam-se órgãos hidráulicos, enormes
liras que parecem coches e flautas para os histriões.» Para além do
mais, comentava com pena, as pessoas dedicam-se a conduzir as
suas carroças a velocidades loucas — como condutores suicidas —
pelas ruas cheias de gente. A angústia prévia ao naufrágio é
palpável na atmosfera.
No século V, a comunidade da cultura clássica sofreu terríveis
golpes. As invasões bárbaras foram destruindo pouco a pouco o
sistema escolar romano nas províncias do Ocidente. As cidades
declinaram. O público culto diminuiu até valores ínfimos — até nos
melhores momentos tinha sido uma minoria entre a população, mas
era uma minoria tão considerável que em alguns lugares acabava
por ser uma verdadeira multidão. De novo, os leitores voltaram a ser
tão escassos que, nas suas pequenas ilhas, perderam o contacto
uns com os outros.
Após uma longa e lenta agonia, o Império Romano do Ocidente
caiu em 476, quando Rómulo Augusto — o último imperador —
abdicou sem grande alarde. As tribos germânicas que se sucederam
no poder das províncias não se sentiam atraídas pela leitura.
Provavelmente, aqueles bárbaros que assaltaram os edifícios
públicos e confiscaram as mansões particulares não eram
ativamente hostis à ciência nem ao estudo, mas também não tinham
o menor interesse em conservar os livros que albergavam os
tesouros intangíveis do conhecimento e da criação. Os romanos
expropriados das suas mansões, convertidos em escravos ou
relegados para qualquer propriedade rústica perdida, tiveram
necessidades mais urgentes e lutos mais profundos do que a
nostalgia das suas bibliotecas perdidas. As preocupações
angustiantes absorveram os leitores de outro tempo: a insegurança,
as doenças, as más colheitas, a violência dos cobradores de
impostos que exploravam ao máximo o trabalho dos mais humildes,
as pragas, a subida dos preços dos alimentos, o medo de ficar no
lado errado do limiar de subsistência.
Começou uma época, um longo trajeto de centenas de anos, no
qual grande parte das ideias que nos definem esteve à beira do
abismo. Entre as tochas dos soldados e o lento trabalho secreto das
traças, o sonho de Alexandria voltou a correr perigo. Até à invenção
da imprensa, milénios de saber ficaram nas mãos de pouquíssimas
pessoas, envolvidas numa heroica e quase inverosímil tarefa de
salvamento. Se nem tudo se afundou no nada, se as ideias, os
êxitos científicos, a imaginação, as leis e as rebeldias de gregos e
romanos sobreviveram, devemo-lo à simples perfeição que, após
séculos de pesquisa e experimentação, os livros tinham alcançado.
Graças a isso e, apesar das viagens ao fundo da noite, a história
europeia é, como escreveu a filósofa María Zambrano, um caminho
sempre aberto aos renascimentos e às ilustrações.
47

Com o lento desmoronar do Império Romano, começaram os


séculos em que os livros viveram perigosamente. Em 529, o
imperador Justiniano proibiu que se dedicassem ao ensino aqueles
que permanecessem «sob a loucura do paganismo», «para que já
não possam corromper as almas dos discípulos». O seu édito
obrigou a fechar a Academia de Atenas, cujas origens nos levavam
orgulhosamente ao milénio anterior, até ao próprio Platão. As almas
desencaminhadas precisavam da proteção das autoridades face aos
perigos da literatura pagã. Desde o início do século IV, fervorosos
funcionários irrompiam nos banhos e nas casas particulares para
confiscarem livros «heréticos e mágicos», que se convertiam em
fumo nas fogueiras públicas. Não é de estranhar que a cópia de
obras clássicas — e de qualquer texto — caísse a pique.
Imagino um daqueles filósofos proscritos nos seus melancólicos
passeios por uma fantasmagórica Atenas. Tem razões suficientes
para o pessimismo. Os templos pagãos permanecem fechados,
desmoronando-se devido ao abandono, e as maravilhosas estátuas
de outros tempos foram desfiguradas ou retiradas. Os teatros
emudeceram, as bibliotecas são reinos de pós e vermes por trás
dos seus ferrolhos. Na capital das luzes, os últimos discípulos de
Sócrates e Platão não podiam ensinar filosofia. Não conseguem
ganhar a vida. Se se negarem a batizar-se, deverão partir para o
exílio. Os bárbaros que invadem e saqueiam o velho império em
decadência pegam fogo às maravilhas da cultura antiga com
ferocidade ou, pior ainda, com indiferença. Que destino está
reservado às ideias que já não são possíveis de ensinar, aos livros
condenados a arder?
É o fim.
Então, como num sonho, o filósofo é assaltado por uma matilha
de estranhas visões. Numa Europa dominada por caudilhos
guerreiros analfabetos, quando a queda parece inevitável, as
fábulas, ideias e mitos de Roma encontram um refúgio paradoxal
nos mosteiros. Cada abadia, com a sua escola, biblioteca e
scriptorium, alberga um clarão do Museu de Alexandria em tempos
de decadência. Aí, alguns monges — e também freiras —
convertem-se em incansáveis leitores, conservadores e artesãos
dos livros. Aprendem a laboriosa arte do fabrico de pergaminhos.
Letra a letra, palavra por palavra, copiam e preservam os melhores
livros pagãos. Até inventam a arte da iluminura, que transforma as
páginas dos códices medievais em pequenos vitrais onde brilham
selvas de figuras, ouro e cores. Graças à paciência minuciosa
desses copistas e miniaturistas — homens e mulheres —, o saber
resistirá ao embate do caos em cantos isolados e bem defendidos.
Mas tudo isto é tão improvável — diz a si próprio, recaindo no
fatalismo — que só pode ser um sonho.
De repente, o filósofo é invadido pela buliçosa gravura das
primeiras universidades nas cidades de Bolonha e Oxford — a
Academia ressuscitada —, alguns séculos mais tarde. Os
professores e estudantes, sedentos de alegria e de beleza, como se
voltassem a casa, procuram outra vez as palavras dos velhos
clássicos. E novos livreiros abrem de par em par as portas das suas
oficinas para fornecerem o alimento das palavras.
De distâncias inverosímeis, pelas rotas muçulmanas e os
territórios fronteiriços entre várias civilizações, empoeirados
mercadores trazem da China e de Samarcanda uma maravilhosa
novidade até à Península Ibérica: o papel, chamado assim porque
faz lembrar o velho papiro. Se acontece tudo no seu momento
preciso, esse novo material, muito mais barato do que o pergaminho
e mais fácil de produzir em grandes quantidades, chegará às
encruzilhadas da Europa a tempo para alimentar a descolagem das
imprensas que revolucionarão a cultura ocidental.
Mas todas essas fantasias — diz a si próprio, recorrendo à fria
lógica — só podem ser alucinações provocadas por uma indigestão;
imagens geradas por um pedaço de queijo bolorento ou um guisado
com peixe estragado.
Então aparecem-lhe, empunhando penas de ave, as figuras de
uns sonhadores teimosos, os humanistas, empenhados em
restaurar o esplendor da Antiguidade. Lançam-se todos a ler, a
copiar, a editar e a comentar com paixão os textos pagãos ao seu
alcance — os vestígios do naufrágio. Os mais corajosos aventuram-
se a cavalo por rotas afastadas, vales nevados, florestas escuras e
veredas quase apagadas nas pregas das montanhas para
procurarem alguns livros únicos que os isolados mosteiros
medievais ainda custodiam. Com esses manuscritos náufragos da
velha sabedoria tentarão modernizar a Europa.
Entretanto, um lapidador de pedras preciosas chamado
Gutenberg inventa um estranho copista de metal, que nunca
descansa. Os livros voltam a expandir-se. Os europeus recuperam o
sonho alexandrino das bibliotecas infinitas e do saber sem limites. O
papel da imprensa e a curiosidade sem medos e pecados
conduzirão aos mesmos limiares da modernidade.
Mas todas essas visões — diz o filósofo para si, afundando-se
novamente no seu pessimismo — são só disparates.
E, quando a sua imaginação transbordante penetra em séculos
ainda mais longínquos, adivinha uns homens afetados com
estranhas perucas que, em honra da antiga paideia, se envolvem na
aventura da Enciclopédia para espalharem o conhecimento e
derrotarem a teimosa obra da destruição. Os revolucionários
intelectuais desse longínquo século XVIII erguerão o edifício da sua
fé na razão, na ciência e no direito sobre os alicerces do esplendor
antigo.
E, embora as pessoas do futuro século XXI prestem culto às
novidades e às tecnologias — especialmente umas tabuinhas
luminosas estranhas que acariciam com a ponta dos dedos —,
continuarão a dar forma às suas ideias fundamentais sobre o poder,
a cidadania, a responsabilidade, a violência, o império, o luxo e a
beleza em diálogo com os livros onde os clássicos falam. E é assim
que tudo o que amamos se salvará através de um caminho
acidentado e aventureiro, cheio de bifurcações e desvios, que em
muitos momentos ameaçará perder-se no nada.
Mas tudo isto é inverosímil como um sonho, e ninguém no seu
perfeito juízo acreditaria numa hipótese tão descabelada, pensa. Só
um prodígio — ou um desses milagres com os quais os cristãos se
entusiasmam — poderia salvar a nossa sabedoria e abrigá-la nas
bibliotecas impossíveis do amanhã.

Atreva-se a recordar

48
A invenção dos livros foi talvez o maior triunfo na nossa tenaz
luta contra a destruição. Confiámos aos juncos, à pele, aos farrapos,
às árvores e à luz a sabedoria que não estávamos dispostos a
perder. Com a sua ajuda, a humanidade viveu uma fabulosa
aceleração da História, do desenvolvimento e do progresso. A
gramática partilhada que os nossos mitos e os nossos
conhecimentos nos proporcionaram multiplica as nossas
possibilidades de cooperação, unindo leitores de diferentes partes
do mundo e de gerações sucessivas ao longo dos séculos. Como
afirma Stefan Zweig no memorável final de Mendel dos Livros: «Os
livros escrevem-se para unir, por cima do próprio fôlego, os seres
humanos, e assim defendermo-nos face ao inexorável reverso de
toda a existência: a fugacidade e o esquecimento.»
Em diferentes épocas, ensaiámos livros de fumo, de pedra, de
terra, de folhas, de juncos, de seda, de pele, de farrapos, de árvores
e, agora, de luz — os computadores e os e-books. Os gestos de
abrir e fechar os livros ou de viajar pelo texto variaram no tempo.
Mudaram as suas formas, a sua rugosidade ou lisura, o seu interior
labiríntico, a sua maneira de ranger e sussurrar, a sua duração, os
animais que os devoram e a experiência de lê-los em voz alta ou
baixa. Tiveram muitas formas, mas é incontestável que o sucesso
da descoberta é esmagador.
Devemos aos livros a sobrevivência das melhores ideias
fabricadas pela espécie humana. Sem eles, talvez tivéssemos
esquecido aquele punhado de gregos temerários que decidiram
entregar o poder ao povo — e chamaram «democracia» a essa
ousada experiência; os médicos hipocráticos, que criaram o primeiro
código deontológico da História onde se comprometiam a cuidar
também dos pobres e dos escravos: «Tem em conta os meios do
teu paciente. Por vezes deves até prestar os teus serviços
gratuitamente; e, se tiveres oportunidade de auxiliar um estrangeiro
que se encontra em dificuldades económicas, presta-lhe plena
assistência»; Aristóteles, que fundou uma das mais precoces
universidades, e dizia aos seus alunos que a diferença entre o sábio
e o ignorante é a mesma do que entre o vivo e o morto; Eratóstenes,
que usou o poder do raciocínio para calcular a circunferência da
Terra com uma margem de erro de apenas oitenta quilómetros
utilizando somente um pau e um camelo; ou os códigos legais
daqueles loucos romanos que um dia reconheceram a cidadania a
todos os habitantes do seu enorme império; ou esse grego cristão,
Paulo de Tarso, que pronunciou talvez o primeiro discurso igualitário
quando disse: «Não há judeu nem grego, nem escravo nem homem
livre, nem homem nem mulher.» Conhecer todos esses precedentes
inspirou-nos ideias tão extravagantes no reino animal como os
direitos humanos, a democracia, a confiança na ciência, a saúde
universal, a educação obrigatória, o direito a um julgamento justo e
a preocupação social com os mais fracos. Quem seríamos hoje em
dia se tivéssemos perdido a recordação de todas essas
descobertas, tal como esquecemos durante séculos as línguas e os
saberes das civilizações egípcia e mesopotâmica? O escritor Elias
Canetti, búlgaro sefardita de língua alemã com apelido espanhol —
os seus antepassados paternos substituíram Cañete por Canetti —,
respondeu: se cada época perdesse o contacto com as anteriores,
se cada século cortasse o cordão umbilical, só poderíamos construir
uma fábrica sem futuro. Seria a asfixia.
Não pretendo omitir as zonas de sombra desta história. A palavra
«cooperação» tem uma auréola benéfica e altruísta que por vezes
pode encobrir realidades obscuras. Com frequência, as redes de
colaboração também servem para explorar e oprimir o próximo.
Muitas sociedades organizaram-se para garantir a continuidade do
seu sistema esclavagista; e os nazis, para orquestrarem a solução
final. Os livros também podem ser um veículo de ideias prejudiciais.
Platão, que acreditava na reencarnação, inventou um mito para
explicar a existência do sexo feminino: nascer mulher é o castigo e a
expiação para aqueles homens que foram injustos numa vida prévia.
Aristóteles escreveu que os escravos são inferiores por natureza.
Na sua coleção de epigramas, Marcial não parece sentir escrúpulos
morais quando adula até ao enjoo um imperador cruel, nem ao dizer
piadas à custa de pessoas com defeitos físicos. A maioria dos
escritores romanos considerava os combates de gladiadores, onde
o público se divertia a contemplar a agonia dos lutadores, como
parte da sua civilização. Os livros convertem-nos em herdeiros de
todos os relatos: os melhores, os piores, os ambíguos, os
problemáticos, os de duplo sentido. Dispor de todos eles é bom para
pensar, e permite escolher. É difícil evitar o sobressalto perante a
estranha mistura de criatividade, esplendor, violência e agravos
característica das civilizações que estabeleceram os alicerces da
Europa. Este desassossego é quase um axioma da modernidade
tardia. Em 1940, um dos anos mais obscuros da história europeia,
Walter Benjamin, foragido na França ocupada, escreveu a sua
célebre reflexão incendiária: «Não há documento da cultura que não
seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie.» Perante a
desoladora evidência de que a barbárie perseverava nas regiões da
razão e de que o Iluminismo não tinha dissipado o mal, outro
europeu entusiasta, Stefan Zweig, suicidou-se em 1942.
Por esta altura, sabemos que qualquer imagem adocicada ou
reverencial da cultura é ingénua, para além de estéril. Petrarca,
ofuscado pela sua admiração sentimental pela Roma Antiga,
enfureceu-se ao descobrir as epístolas de Cícero, a quem sempre
tinha considerado uma alma gémea. Os documentos íntimos do seu
alter ego revelaram uma personagem ambiciosa, por vezes
mesquinha, por vezes cínica, e muito pouco clarividente nas suas
manobras políticas. Petrarca encerrou o assunto escrevendo uma
carta moralizadora ao morto, cheia de censura. Todos poderíamos
lançar justas recriminações contra os nossos imperfeitos
antepassados — e certamente sofreremos as reprimendas dos
nossos descendentes, que diagnosticarão todas as contradições e
insensibilidades que habitam em nós. Mas, se resistirmos ao
impulso de simplificar a literatura com julgamentos absolutos, lê-la-
emos melhor. Quando mais sensata e perspicaz for a nossa
compreensão histórica, mais seremos capazes de proteger aquilo
que valorizamos. Como escreve o poeta e viajante Fernando
Sanmartín: «O passado define-nos, dá-nos uma identidade,
empurra-nos para a psicanálise ou para o disfarce, para os
narcóticos ou para o misticismo. Quem é leitor tem um passado
dentro dos livros. Para o bem ou para o mal. Porque lemos coisas
que hoje nos causariam perplexidade, até tédio. Mas também lemos
páginas que ainda nos provocam entusiasmo ou certezas. Um livro
é sempre uma mensagem.»
É verdade que os livros legitimaram acontecimentos terríveis,
mas também sustentaram os melhores relatos, símbolos, saberes e
invenções que a humanidade construiu no passado. Na Ilíada
contemplamos a lancinante aproximação entre um idoso e o
assassino do seu filho; nos versos de Safo descobrimos que o
desejo é uma forma de rebeldia; nas Histórias de Heródoto
aprendemos a procurar a versão do outro; na Antígona
vislumbramos a existência da lei internacional; em As Troianas
enfrentamos a própria barbárie; numa epístola de Horácio
encontramos a máxima ilustrada «atreve-te a saber»; em A Arte de
Amar de Ovídio fizemos um curso intensivo de prazer; nos livros de
Tácito compreendemos os mecanismos da ditadura; e na voz de
Séneca ouvimos um primeiro grito pacifista. Os livros legaram-nos
algumas ideias dos nossos antepassados que não envelheceram
muito mal: a igualdade entre os seres humanos, a possibilidade de
escolher os nossos dirigentes, a intuição de que talvez as crianças
estejam melhor na escola do que a trabalhar, a vontade de usar — e
diminuir — o tesouro público para cuidar dos doentes, dos idosos e
dos mais fracos. Todas essas invenções foram descobertas dos
antigos, esses aos quais chamamos clássicos, e chegaram até nós
por um caminho incerto. Sem os livros, as melhores coisas do nosso
mundo teriam caído no esquecimento.
EPÍLOGO
Os esquecidos, as anónimas
Um pequeno exército de cavalos e mulas aventura-se todos os
dias pelas escorregadias encostas e desfiladeiros dos montes
Apalaches, com os alforges carregados de livros. Os ginetes dessa
tropa são, na sua maioria, mulheres — amazonas das letras. No
início, os aldeões do este de Kentucky, nos seus vales isolados dos
Estados Unidos e do resto do mundo, observam-nas com ancestral
desconfiança. Alguém no seu perfeito juízo cavalgaria durante o frio
inverno por este território desprovido de estradas, terra de caminhos
desfocados, frágeis pontes que pendem sobre o abismo e leitos de
arroio onde as patas dos animais derrapam entre cataratas de
seixos? Aguçam o olhar, cospem com energia. Noutros tempos
viram chegar forasteiros que apareciam para trabalharem nas minas
ou nas serrações, mas isso aconteceu antes da Grande Depressão.
Sem dúvida, não estavam habituados ao aspeto sinistro destas
mulheres sozinhas, jovens, com um alarmante ar de servirem
remotas autoridades, a rondarem como caçadores à procura de um
sítio onde colocar uma armadilha. Quando chega uma delas, pesa
no ambiente a presença sombria de uma ameaça. As famílias dos
condados da montanha sentem um medo difuso, primário, com a
chegada de estranhos. São pobres e receiam a autoridade tanto
como os criminosos. Só um terço dessa bondosa gente rural sabe
ler, mas até eles se assustam quando um desconhecido ergue um
papel. Uma dívida por pagar, uma denúncia mal-intencionada ou um
litígio incompreensível poderiam arrasar as suas escassas
propriedades. Jamais o admitiriam, mas essas mulheres a cavalo
inspiram-lhes receio. O medo converte-se em surpresa quando as
veem desmontar, abrir os alforges e tirar — espanto e ranger de
dentes — livros.
O mistério resolve-se e os aldeões não conseguem acreditar. A
sério? Bibliotecárias a cavalo? Fornecimento literário? Não
conseguem perceber a gíria estranha que essas mulheres utilizam:
projeto federal, New Deal, serviço público, planos para favorecer a
leitura. Começam a sentir alívio. Ninguém menciona impostos,
tribunais ou despejos. Para além disso, as jovens bibliotecárias têm
um aspeto amigável. Parecem acreditar em Deus e na bondade.
Combater o desemprego, a crise e o analfabetismo através de
amplas doses de cultura financiada pelo Estado: esse era um dos
deveres da Work Progress Administration. Por volta de 1934,
quando o projeto foi concebido, as estatísticas só registavam um
livro per capita no estado do Kentucky. No empobrecido território
montanhoso do Este, sem estradas nem eletricidade, era
impensável pôr em funcionamento um sistema de bibliotecas móveis
em veículos, que tanto sucesso estava a alcançar noutras zonas do
país. A única alternativa era lançar as aguerridas bibliotecárias pelas
veredas dos Apalaches para que levassem às costas os livros até
aos redutos mais isolados. Uma delas, Nan Milan, brincava dizendo
que os seus cavalos tinham as patas mais curtas num lado do que
noutro, para não escorregarem nos escarpados trilhos da serra.
Cada ginete percorria três ou quatro rotas por semana, com trajetos
de até trinta quilómetros por dia. Os livros, procedentes de
donativos, eram armazenados nos postos de correio, barracões,
igrejas, tribunais ou casas particulares. As mulheres, que levavam o
seu trabalho tão a sério como os incansáveis carteiros da época,
recolhiam os lotes nas diferentes sedes e distribuíam-nos por
escolas rurais, centros comunitários e casas de camponeses. Nas
suas cavalgadas solitárias não faltava a épica: os documentos
compilam episódios de cavalos exaustos no meio do nada, perante
o qual as mulheres continuavam o caminho a pé, a transportarem o
pesado alforge de mundos imaginários. «Traz-me um livro para ler»,
era o grito das crianças que viam as forasteiras chegar. Embora em
1936 o circuito abrangesse 50 000 famílias e 155 escolas, com um
total de 8 000 quilómetros percorridos por mês, as bibliotecárias a
cavalo do Kentucky só conseguiam dar resposta a um décimo dos
pedidos. Depois de vencerem os primeiros surtos de desconfiança,
os montanheiros tinham-se convertido em ávidos leitores. Em
Whitley County, as portadoras literárias encontravam comissões de
boas-vindas de até trinta aldeões. Uma vez, uma família negou-se a
mudar-se para outro condado porque ali não havia serviço
bibliotecário. Uma velha fotografia a preto e branco mostra uma
jovem amazona a ler em voz alta ao pé do catre de um idoso
doente. A afluência de livros melhorou a saúde e os hábitos de
higiene na região — as famílias aprenderam, por exemplo, que lavar
as mãos era muito mais efetivo para evitar cólicas do que soprar
fumo de tabaco sobre uma colherada de leite. Os adultos e as
crianças apaixonaram-se pelo sentido de humor de Mark Twain,
mas o título mais pedido foi, de longe, Robinson Crusoe. Os
clássicos puseram os novos leitores em contacto com um tipo de
magia que sempre lhes tinha sido negado. Os escolares letrados
liam-nos aos seus pais analfabetos. Um jovem disse à sua
bibliotecária: «Os livros que nos trouxeste salvaram-nos a vida.»
O programa deu trabalho a quase mil bibliotecárias hípicas
durante uma década. O financiamento terminou em 1943, o ano da
dissolução da WPA, quando a Guerra Mundial substituiu a cultura
como antídoto face ao desemprego.
Somos os únicos animais que fabulam, que afugentam a
escuridão com histórias, que aprendem a conviver com o caos
graças aos relatos, que atiçam as brasas das fogueiras com o ar
das suas palavras, que percorrem longas distâncias para levarem as
suas histórias aos estranhos. E, quando partilhamos os mesmos
relatos, deixamos de ser estranhos.
Há algo assombroso no facto de termos conseguido preservar as
ficções urdidas há milénios. Desde que alguém narrou pela primeira
vez a Ilíada, as peripécias do velho duelo entre Aquiles e Heitor nas
praias de Troia nunca mais caíram no esquecimento. Como escreve
Harari, um sociólogo arcaico que viveu há cerca de 20 000 anos,
bem se podia ter chegado à conclusão de que a mitologia tinha
pouquíssimas possibilidades de sobreviver. Afinal de contas, o que é
uma história? Uma sequência de palavras. Um sopro. Uma corrente
de ar que sai dos pulmões, atravessa a laringe, vibra nas cordas
vocais e adquire a sua forma definitiva quando a língua acaricia o
paladar, os dentes ou os lábios. Parece impossível salvar algo tão
frágil. Mas a humanidade desafiou a soberania absoluta da
destruição ao inventar a escrita e os livros. Graças a essas
descobertas, nasceu um espaço imenso de encontro com os outros
e produziu-se um fantástico aumento da esperança de vida das
ideias. De alguma forma misteriosa e espontânea, o amor pelos
livros criou uma cadeia invisível de gente — homens e mulheres —
que, sem se conhecerem, salvaram o tesouro dos melhores relatos,
sonhos e pensamentos ao longo do tempo.
Esta é a história de um romance em coro ainda por escrever. O
relato de uma fabulosa aventura coletiva, a paixão calada de tantos
seres humanos unidos por esta misteriosa lealdade: narradoras
orais, inventores, escribas, iluminadores, bibliotecárias, tradutores,
livreiras, vendedores ambulantes, professoras, sábios, espias,
rebeldes, viajantes, freiras, escravos, aventureiras, impressores.
Leitores nos seus clubes, nas suas casas, em cumes de montanhas,
junto ao mar que ruge, nas capitais onde a energia se concentra e
nos enclaves afastados onde, em tempos de caos, o saber se
refugia. Gente comum cujos nomes, em muitos casos, a História
não regista. Os esquecidos, as anónimas. Pessoas que lutaram por
nós, pelos rostos nebulosos do futuro.
AGRADECIMENTOS

Foram muitas as pessoas que, de diversas formas, me ajudaram


na travessia da escrita. O meu agradecimento a todas elas:
Rafael Argullol, que imaginou este livro antes de mim, e
desdobrou perante os meus olhos o mapa desta viagem.
Julio Guerrero, por me estender a mão.
Ofelia Grande, por essa delicada generosidade que me ofereceu
sabedoria e esperança.
Elena Palacios, por uma amizade inesquecível e por tornar
realidade aquilo com que eu não me atrevia a sonhar.
A equipa editorial da Siruela, pela sua prodigiosa magia no velho
ofício dos juncos infinitos.
Marina Penalva, María Lynch, Mercedes Casanovas e tantas
pessoas na Casanovas & Lynch, por serem as asas que fizeram
voar este livro até uma luminosa constelação de países e línguas.
Alfonso Castán e Francisco Muñiz, pela sua insólita
generosidade.
Carlos García Gual, que me guiou com os seus sinais de luz.
Agustín Sánchez Vidal, que partilhou comigo os seus
conhecimentos e a chave-mestra.
Luis Beltrán, por aguçar o meu olhar.
Ana María Moix, que me acolheu num jardim vislumbrado do
exterior.
Guillermo Fatás, pelas suas lições de história, jornalismo e ironia.
Encarna Samitier, pelas primeiras oportunidades e a amizade
duradoura.
Antón Castro, que sustém a nossa frágil paisagem de letras.
Fergus Millar, por me abrir as portas de Oxford e pelas viagens
no tempo.
Mario Citroni, pela sua hospitalidade florentina, a sua sabedoria e
a sua atenção.
Ángel Escobar, por me ensinar o rigor.
Os trabalhadores das bibliotecas de Oxford, Cambridge,
Florença, Bolonha, Roma, Madrid e Saragoça, por me facilitarem a
exploração dessas regiões de papel.
As minhas professoras inesquecíveis Pilar Iranzo, Carmen
Romeo, Inocencia Torres e Carmen Gómez Urdáñez.
Anna Caballé, que alarga horizontes com as suas palavras.
Carmen Peña, Ana López-Navajas, Margarita Borja, Marifé
Santiago, por me inspirarem.
Andrés Barba, pelas conversas sobre o riso e o futuro.
Luis Landero, por acreditar em mim.
Belén Gopegui, pelos ecos de uma conversa e pelo misterioso
princípio da amizade.
Jesús Marchamalo, pela jovialidade e um chapéu partilhado.
Fernando López, pelos dias dionisíacos.
Stefania Ferchedau e Natalie Tchernetska, presenças à
distância.
As minhas amigas criadoras Ana Alcolea, Patricia Esteban, Lina
Vila, Sandra Santana e Laura Bordonaba.
As pessoas que tornam a vida mais acolhedora: María Ángeles
López, Francisco Gan, Teresa Azcona, Valle García, Reyes Lambea,
Leticia Bravo, Albano Hernández, María Luisa Grau, Cristina Martín,
Gloria Labarta, Pilar Pastor, María Jesús Pardos, María Gamón,
Liliana Vargas, Diego Prada, Julio Cristellys e Ricardo Lladosa.
Os primeiros leitores, os livreiros Pepe Fernández, Julia Millán e
Pablo Muñío.
Todos os professores de liceu que semeiam entusiasmo, em
particular Chus Picot, Ana Buñola, Paz Hernández, David Mayor,
Berta Amella, Laura Lahoz, Fernando Escanero, José Antonio
Escrig, Marcos Guillén, Amaia Zubilaga, Eva Ibáñez, Cristóbal
Barea, Irene Ramos, Pilar Gómez, Mercedes Ortiz, Félix Gay e José
Antonio Laín.
A fabulosa equipa de pediatria neonatal do Hospital Miguel
Servet de Saragoça, as enfermeiras que nos ofereceram tanta vida
e todas essas crianças que, também hoje, devem estar a lutar com
todas as suas forças para se agarrarem à vida.
As cuidadoras: Esther, Pilar, Cristina, Zara, Nuria e a minha ama
María.
A minha mãe, Elena, a domadora do caos.
Enrique, o meu farol e a minha bússola.
O pequeno Pedro, doutorando em sabotagem, que me ensinou
em que consiste a esperança.
A minha família, os meus amigos e os leitores, que são outra
família de amigos.
NOTAS

Prólogo

Apuleio, O Asno de Ouro, III 28 (um conto de bandidos da


Antiguidade); Horácio, Sátiras, I 5, 7 (diarreias dos viajantes por
beberem água em mau estado); L. Casson, Las bibliotecas del
mundo antiguo, Bellaterra, Barcelona, 2003, pág. 44 (agentes ao
serviço dos reis do Egito para comprar livros); Carta de Aristeias, 9
(a Biblioteca de Alexandria ambiciona reunir todos os livros do
mundo); Galeno, Comentario a «Sobre los humores de Hipócrates»,
XVII, pág. 607, ed. Kühn (engano aos atenienses para ficarem com
os originais das tragédias); Galeno, Comentario a «Sobre los
humores de Hipócrates», XVII, pág. 601, ed. Kühn (o fundo das
naus); Epifânio, Sobre Medidas e Pesos, XLIII, pág. 252, Migne,
Patrologia Graeca (carta a todos os soberanos da Terra); Galeno,
Comentario a «Sobre los humores de Hipócrates», XV, pág. 109, ed.
Kühn (falsificações); Marcelino, Vida de Tucídides 31-34 (o que
Tucídides não contou); Carta de Aristeias, 10 (quantos livros já
temos?).

I. Grécia
CAPÍTULO 1: Herodas, Mimiambos, I, 26-32 (uma alcoviteira
enumera as seduções de Alexandria).
CAPÍTULO 2: Plínio, o Velho, História Natural, IX, 58, 119-121 (a
pérola dissolvida em vinagre); Plutarco, Vidas Paralelas. António,
58, 5 (Marco António oferece 200 000 livros) e 27 (descrição de
Cleópatra).
CAPÍTULO 3: Plutarco, A Fortuna ou a Virtude de Alexandre Magno,
I, 5 = Moralia 328C (Alexandre fundou setenta cidades); Plutarco,
Vidas Paralelas. Alexandre, 8, 2 (Alexandre dormia com a Ilíada
debaixo da almofada) e 26, 5 (sonho homérico e fundação de
Alexandria); Homero, Odisseia, Canto IV, 351-359 (a ilha de Faro);
Estrabão, Geografia, XVII, 1, 8 (o traçado de Alexandria).
CAPÍTULO 4: Plutarco, Vidas Paralelas. Alexandre, 21
(generosidade para com a família de Dario); 26, 1 (o cofre da Ilíada).
CAPÍTULO 5: Arriano, Anábase de Alexandre, V, 25-29 (os oficiais
macedónios negam-se a seguir em frente).
CAPÍTULO 6: Arriano, Anábase de Alexandre, VII, 4 (casamentos
em Susa).
CAPÍTULO 8: Antigo Testamento, Livro dos Macabeus, 1, 1-9
(Alexandre na Bíblia); Asura XVIII, versículos 82-98 (Alexandre no
Corão); Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, XVII, 72 (Alexandre
incendia Persépolis); Estrabão, Geografia, II, 1, 9 (todos os que
escrevem sobre Alexandre preferem o maravilhoso à verdade).
CAPÍTULO 9: Astronomical Diaries from Babilonia, vol. I, 207, ed. A.

J. Sachs e H. Hunger (um escriba babilónio anota a morte de


Alexandre); Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, XVIII, 1, 4 e ss. (os
combates entre os amigos de Alexandre após a sua morte);
Plutarco, Vidas Paralelas. Alexandre, 77 (Roxana, grávida, elimina a
sua rival, e outros crimes familiares); Estrabão, Geografia, XV, 2, 9
(Seleuco vende a Índia por quinhentos elefantes de guerra).
CAPÍTULO 10: Greek Historical Inscriptions 404-323 BC 433, ed. P.
J. Rhodes e R. G. Osborne (Alexandre declara num decreto que
considera a Terra toda sua); Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica,
XVIII, 4, 4 (Alexandre sonhava criar uma comunidade entre a Ásia e
a Europa); Tzetzes, De comoedia, pág. 43, ed. Koster (traduções
dos livros de todos os povos para a Biblioteca de Alexandria); Carta
de Aristeias, 30 e ss. (a Bíblia dos Setenta); Plínio, o Velho, História
Natural, XXX, 2, 4 (tradução dos textos atribuídos a Zaratustra);
Flávio Josefo, Contra Apião. Sobre a Antiguidade do Povo Judeu, I,
14 (o historiador egípcio Manetão); Flávio Josefo, Antiguidades
Judaicas, III, 6 (a história de Beroso, sacerdote caldeu); Arriano,
Anábase de Alexandre, V, 6, 2 (menção do ensaio sobre a Índia
escrito por Megástenes).
CAPÍTULO 12: Lawrence Durrell, Justine, terceira parte (o khamsin);
Plínio, o Velho, História Natural, XIII, 22, 71 (descrição da planta do
papiro e os seus usos); Antigo Testamento, Êxodo 2, 3 (Moisés
abandonado numa cesta de papiro).
CAPÍTULO 13: Enciclopédia bizantina Suda, sub voce Leonatos (um
comandante de Alexandre imita o seu cabelo e o seu estilo);
Pausânias, Descrição da Grécia, I, 6, 2, e Teócrito, Idílio XVII.
Encómio de Ptolomeu, 20-34 (alusões a Ptolomeu como meio-irmão
de Alexandre); Plutarco, Vidas Paralelas. Eumenes, 13, 6-8
(Eumenes fala em sonhos com Alexandre); Diodoro Sículo,
Biblioteca Histórica, XIX, 15, 3-4 (reunião presidida pelo trono vazio
de Alexandre) e XVIII, 26-28 (o coche fúnebre e o sequestro do
cadáver de Alexandre); Olaf B. Rader, Tumba y poder. El culto
político a los muertos desde Alejandro Magno hasta Lenin, Siruela,
Madrid, 2006, págs. 165-186 (peripécias do cadáver de Alexandre);
Suetónio, Vida dos doze Césares. Augusto, 18, 1 (Augusto diante do
corpo embalsamado de Alexandre); Dião Cássio, História Romana,
LI, 16, 5 (Augusto parte o nariz da múmia); Vita Marciana, 6
(Aristóteles, «o leitor»); Estrabão, Geografia, XIII, 1, 54 (Aristóteles
foi o primeiro a reunir uma coleção de livros e ensinou aos reis do
Egito como organizar uma biblioteca).
CAPÍTULO 14: Carta de Aristeias, 29 (relatório de Demétrio ao rei
sobre as aquisições da biblioteca), 35-40 (carta a Eleazar), 301-307
(a tradução dos Setenta).
CAPÍTULO 15: Plutarco, A Fortuna ou a Virtude de Alexandre

Magno, I, 5 = Moralia 328D (Homero lê-se na Ásia e os trágicos em


Pérsia, Susa e Gedrósia); Flávio Josefo, Contra Apião, II, 35 (os
judeus ocupam o melhor bairro de Alexandria); Diodoro Sículo,
Biblioteca Histórica, XL, 3, 4 (Hecateu queixa-se da xenofobia
judaica), e I, 83, 8-9 (um estrangeiro linchado por matar um gato).
CAPÍTULO 16: Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, II, 41
(Atenas, escola da Grécia); Plutarco, Non posse suaviter vivi
secundum Epicurum 1095d (Ptolomeu I funda o Museu); Estrabão,
Geografia, XVII, 1, 8 (descrição do Museu); Dião Cássio, História
Romana, LXXVIII, 7 (privilégios materiais dos membros do Museu);
Ateneu, Banquete dos eruditos, I, 22D (bicadas na gaiola das
musas); Calímaco, Iambos I (os membros do Museu sentem
ressentimento uns pelos outros outros).
CAPÍTULO 17: Judith McKenzie, Architecture of Alexandria and
Egypt 300 B.C. to A.D. 700, pág. 41 (descrições árabes do Farol).
CAPÍTULO 18: Estrabão, Geografia, XVII, 1, 6 (o dique, o porto e o
Farol de Alexandria); Sinésio, Elogio da Calvície, 6 (estátuas do
Museu de Alexandria).
CAPÍTULO 19: Agostinho de Hipona, Confissões, VI, 3 (leitura
silenciosa de Ambrósio).
CAPÍTULO 20: Estrabão, Geografia, XVII, 1, 8 (o sarcófago de ouro
de Alexandre substituído por um mais barato); Aftónio,
Progymnásmata XII (descrição da biblioteca do Serapeu, que pôs a
cidade em condições de filosofar); Tzetzes, De comoedia, XX
(número de livros das bibliotecas alexandrinas); Epifânio, Sobre
Medidas e Pesos, 324-329 (54 800 livros da Grande Biblioteca);
Carta de Aristeias, 10 (duzentos mil livros da Grande Biblioteca);
Aulo Gélio, Noites Áticas, VII, 17, 3, e Amiano Marcelino, Histórias,
XXII, 16, 13 (setecentos mil livros da Grande Biblioteca).
CAPÍTULO 21: http://www.bodleian.ox.ac.uk/bodley/news/2015/oct-
19 (todos os dias é preciso encontrar espaço para mil livros novos
na Biblioteca Bodleiana);
http://www.oxfordtoday.ox.ac.uk/features/oxfordunderground (túneis
de livros sob a cidade de Oxford).
http://www.cherwell.org/2007/11/16/feature-the-bods-secret-
underbelly/ (uma visita aos túneis).
CAPÍTULO 22: H. M. Vernon, A History of the Oxford Museum, pág.
15 (o primeiro museu no sentido moderno).
CAPÍTULO 23: L. Casson, Las bibliotecas del mundo antiguo,
Bellaterra, Barcelona, 2003, pág. 23 (bibliotecas do Próximo-Oriente
Antigo).
CAPÍTULO 24: Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica, I, 49, 3 (a
biblioteca, «lugar de cuidado da alma»); F. Báez, Los primeros libros
de la humanidad. El mundo antes de la imprenta y el libro
electrónico, Fórcola, Madrid, 2013, pág. 108 (vantagens de ser
escriba no Egito); Bulletin de la Société Française d’Égyptologie,
131, 1994, págs. 16-18 (a última inscrição em escrita hieroglífica);
http://rosettaproject.org (Projeto Roseta).
CAPÍTULO 25: Plínio, o Velho, História Natural, XIII, 23, 74-77 (oito
variedades de papiro); N. Lewis, Papyrus in Classical Antiquity, pág.
92 (comércio de papiro); Enciclopédia Bizantina Suda, sub voce
Aristophanes Byz. (o bibliotecário encarcerado por tentar fugir para
Pérgamo); Plínio, o Velho, História Natural, XIII, 21, 70 (embargo de
papiro à Biblioteca de Pérgamo e descoberta do pergaminho).
CAPÍTULO 26: Heródoto, História, V, 35, 3, e Polieno, Estratagemas
I, 24 (a mensagem tatuada).
CAPÍTULO 27: P. Watson, Ideas, historia intelectual de la
humanidad, 2006, pág. 601 (cálculo do número de peles
necessárias para um manuscrito).
CAPÍTULO 28: P. Nelles, «Renaissance Libraries», em: D. H. Stam,
International Dictionary of Library History, 2001, pág. 151 (a
Biblioteca do Convento de São Marcos e o conceito moderno da
biblioteca pública).
CAPÍTULO 29: Quintiliano, Instituições Oratórias, I, 8, 20 (Dídimo, o
Esquece-Livros); Séneca, Cartas a Lucílio, 88, 37 (Dídimo escreveu
4000 livros); Plínio, o Velho, História Natural, pref. 25 (alcunha de
Apião).
CAPÍTULO 30: Heródoto, História, II, 53, 2 (Homero viveu no século
IX); B. Graziosi, Inventing Homer, 2002, pág. 98 e ss. (discussões
sobre a época e o local de nascimento de Homero); Ateneu,
Banquete dos Eruditos, VIII 277E (as migalhas do banquete de
Homero); Platão, A República, X, 606d-607a (Platão expulsa
Homero da sua república ideal); Vitrúvio, Arquitectura, VII, prefácio
8-9 (Zoilo, o fustigador de Homero); Ilíada, XXIV, 475 e ss. (lágrimas
de Aquiles e do rei troiano); Homero, Odisseia, V, 1-270 (Ulisses
abandona Calipso).
CAPÍTULO 31: Robin Lane Fox, El mundo clásico. La epopeya de
Grecia y Roma, Editorial Crítica, Barcelona, 2007, pág. 52 (o
primeiro herói épico da Europa, um negro); Mathias Murko, La
poésie populaire épique en Yougoslavie au début du XX e siècle,
Librarire Ancienne Honoré Champion, Paris, 1929 (os cantores orais
eslavos).
CAPÍTULO 34: Homero, Odisseia, I, 356-359 (Telémaco manda calar
a sua mãe); Homero, Ilíada, I, 545-550 (Zeus repreende Hera); Mary
Beard, Mujeres y poder. Un manifiesto, Crítica, Barcelona, 2008,
pág. 15 (as vozes das mulheres silenciadas na esfera pública);
Homero, Ilíada, II, 212 e ss. (Ulisses dá uma lição ao plebeu
Térsites).
CAPÍTULO 35: Eric A. Havelock, La musa aprende a escribir,

Paidós, Barcelona, 1994, pág. 135 e ss. (a escrita transforma a


consciência, o pensamento, a sintaxe e o vocabulário); Evangelho
segundo São João, 8, 8 (Jesus escreve na areia); Albert B. Lord,
The Singer of Tales, Harvard University Press, Cambridge
(Massachusetts), 1960, págs. 272-275 (o bardo Milovan Vojicic
compõe em 1933 a «Canção de Milman Parry»); Daniel Sánchez
Salas, La figura del explicador en los inicios del cine español,
Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2002 (a figura do explicador);
vários autores, No lo comprendo, no lo comprendo. Conversaciones
con Akira Kurosawa, Confluencias, 2014, pág. 41 e ss. (Heigo
Kurosawa, narrador de filmes mudos).
CAPÍTULO 38: Fernando Báez, Los primeros libros de la

humanidad, Fórcola, Madrid, 2013, pág. 36 (a origem múltipla da


escrita).
CAPÍTULO 39:Ewan Clayton, La historia de la escritura, Siruela,
Madrid, 2015, pág. 19 e ss. (os alicerces da escrita).
CAPÍTULO 40: Chinua Achebe, Me alegraría de otra muerte,

Debolsillo, Barcelona, 2010, pág. 146 (um nigeriano analfabeto


reflete sobre a palavra escrita).
CAPÍTULO 41: Sergio Pérez Cortés, «Un aliento poético: el

alfabeto», Éndoxa: Séries filológicas n.º 8, 1997, UNED, Madrid (um


grego adapta o sistema de escrita fenício).
CAPÍTULO 42: Sergio Pérez Cortés, «Un aliento poético: el

alfabeto», Éndoxa: Séries filológicas n.º 8, 1997, UNED, Madrid


(inscrições gregas mais antigas); Homero, Odisseia, VIII, 382
(concursos de dança nos banquetes).
CAPÍTULO 43: Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, 633-640 (Hesíodo
critica a sua aldeia natal); Hesíodo, Teogonia, 22 e ss. (Hesíodo
recebe a visita das musas); Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, 27 e
ss. (litígios com o seu irmão Perses).
CAPÍTULO 44: Eric A. Havelock, La musa aprende a escribir,

Paidós, Barcelona, 1994, pág. 123 (lento avanço da alfabetização


na Grécia); Platão, Fedro ou da Beleza, 274d e ss. (Sócrates contra
a escrita); B. Sparrow, J. Liu e D. M. Wegner, «Google Effects on
Memory: Cognitive Consequences of Having Information at Our
Fingertips», Science, agosto de 2011, vol. 333, págs. 776-778;
http://science.sciencemag.org/content/333/6043/776 (Efeito Google).
CAPÍTULO 45: Jorge Luis Borges, Borges oral, Madrid, 1999, pág. 9

(o livro, extensão da memória e da imaginação).


CAPÍTULO 46: Hölderlin, «Grecia», Poesía completa. Edición
bilingue, Ediciones 29, Barcelona, 1995, pág. 37 (Hölderlin sonha
com a Atenas Antiga).
CAPÍTULO 47: Fernando Báez, Nueva historia universal de la
destrucción de libros, Barcelona, 2011, págs. 50 e 102 (incêndio de
Persépolis e fogueiras na China de Shi Huandi); Anna Caballé, El
bolso de Ana Karenina, Barcelona, 2009, pág. 27 (os amigos de
Anna Akhmátova memorizam os seus poemas para salvá-los);
Agostinho de Hipona, Natureza e Origem da Alma, IV, 7, 9
(Simplício, o leitor memorioso).
CAPÍTULO 48: Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, I, 6, 3

(os gregos e as armas); Pausânias, Descrição da Grécia, VI, 9, 6


(matança numa escola do arquipélago do Dodecaneso); Alberto
Manguel, Una historia de la lectura, Alianza Editorial, Madrid, 2002,
pág. 109 (ritual judaico da iniciação à leitura); Herodas, Mimiambos,
III, 59-73 (o mestre bate no seu aluno).
CAPÍTULO 50: Arquíloco, fragmento 6 Diehl (o escudo
abandonado); fragmento 72 Diehl (desejo erótico); fragmento 64
Diehl (ninguém é honrado depois da morte); Richard Jenkyns, Un
paseo por la literatura de Grecia y Roma, Barcelona, 2015, pág. 45
(o primeiro chato da Europa).
CAPÍTULO 51: Diógenes Laércio, Vidas dos Filósofos Ilustres, IX, 5
(Heráclito deposita o seu livro no Templo de Artemisa, e outros
episódios biográficos); IX, 5-6 (Heráclito, o enigmático); Cícero,
Sobre a Finalidade do Bem e do Mal, II, 5, 15 (Heráclito, o escuro);
Heráclito, fragmentos 111 e 62 DK; Platão, Crátilo, 402a (Heráclito
diz que não poderia tomar banho duas vezes no mesmo rio); Jorge
Manrique, Coplas por la muerte de su padre, 25-27 («As nossas
vidas são os rios…»); Jorge Luis Borges, Obra poética, Madrid,
Alianza Editorial, 1993, pág. 322 (poema a Heráclito).
CAPÍTULO 52: Estrabão, Geografia, XIV, 1, 22; Valério Máximo,

Feitos e Dizeres Memoráveis, VIII, 14, ext. 5; e Eliano, História dos


Animais, VI, 40 (o pirómano de Éfeso); Plutarco, Vidas Paralelas.
Alexandre, 3, 5 (Alexandre nasceu na mesma noite em que ardeu o
Templo de Artemisa, uma das maravilhas do mundo).
CAPÍTULO 53: Aristómenes, fr. 9K; Teopompo, fr. 77K; Nicofonte, fr.

19, 4K (os cómicos referem os livreiros de Atenas); Eupólide, fr.


304K e Platão, Apologia de Sócrates, 26 d-e (venda de livros no
mercado da ágora); Luciano, o Solecista, 30 (um livro vendido pela
exorbitante soma de 750 dracmas); Aristófanes, As Rãs 943 (sumo
de livros); Alexis, fr. 135K (Héracles escolhe um livro de cozinha);
Xenofonte, Anábase, 7, 5, 14 (livros entre os restos de um
naufrágio); Zenóbio, 5, 6 (um discípulo de Platão comercializa as
obras deste na Sicília); Diógenes Laércio, Vidas dos Filósofos
Ilustres, IV, 6 (Aristóteles compra a biblioteca de Espeusipo por três
talentos); Estrabão, Geografia, XIII 1, 54 (Aristóteles foi o primeiro a
reunir uma coleção de livros e ensinou os reis de Egito a
organizarem uma biblioteca).
CAPÍTULO 54: Aristóteles, Retórica, 1413b, 12-13 (livros com «uma

grande circulação»); Dionísio de Halicarnasso, Sobre os Oradores


Antigos. Sobre Isócrates, 18 (os livreiros transportam livros em
carroças);
http://elpais.com/elpais/2014/11/24/eps/1416840075_461450.html
(livrarias nómadas, artigo de Jorge Carrión).
CAPÍTULO 55: Aulo Gélio, Noites Áticas, XIII, 17, 1 (paideia

traduzido para latim como humanitas); Pseudo-Platão, Axíoco, 371


cd (a vida após a morte para as pessoas cultas: pradarias, teatros,
coros, concertos, banquetes); H.-I. Marrou, Historia de la educación
en la Antigüedad, Akal, 2004, 136-137 (a religião da cultura);
Pseudo-Plutarco, A Educação dos Filhos, 8 (a única coisa que
realmente vale a pena na vida é a educação);
http://elpais.com/diario/1984/06/27/cultura/457135204_850215.html
(M. Foucault reflete sobre a vida como obra de arte, na sua última
entrevista, concedida pouco antes da sua morte, em 1984).
CAPÍTULO 56: P. E. Easterling e B. M. W. Knox (eds.), Historia de la
literatura clásica, Gredos, 1990, págs. 36-39 (o alcance dos livros na
época helenística); W. Dittemberger, Sylloge inscriptionum
Graecarum, 577-579 (leis escolares de Mileto e Teos).
CAPÍTULO 57: P. E. Easterling e B. M. W. Knox (eds.), Historia de la

literatura clásica, Gredos, 1990, págs. 36-39 (o alcance dos livros na


época helenística); Vitrúvio, Arquitectura, VII, prefácio 4-7
(Aristófanes de Bizâncio e os ladrões de versos); Enciclopédia
Bizantina Suda, sub voce Kallímachos (os Pínakes, um catálogo em
120 livros).
CAPÍTULO 58: Diógenes Laércio, Vidas dos Filósofos Ilustres, III, 4

(o verdadeiro nome de Platão); R. Pfeiffer (ed.), Callimachus I.


Fragmenta, 1949, Oxford (fragmentos das Pínakes de Calímaco);
fragmento 434-435 (secção miscelânea, com os quatro livros de
confeitaria); G. Murray (ed.), Aeschylus: The Creator of Tragedy,
1955, Oxford, pág. 375 (lista das obras de Ésquilo por ordem
alfabética).
CAPÍTULO 59: Bibliotecas públicas espanholas em números:

http://www.mecd.gob.es/cultura-mecd/areas-
cultura/bibliotecas/mc/ebp/portada.html; F. Báez, Nueva historia
universal de la destrucción de libros, Barcelona, 2011, pág. 49
(número de bibliotecas que existiram nas antigas cidades do
Próximo-Oriente); Ángel Esteban, El escritor en su paraíso,
Cáceres, 2014 (escritores bibliotecários); E. Rodríguez Monegal,
Borges por él mismo, Barcelona, Laia-Literatura, 1984, pág. 112
(Borges orienta-se às cegas na Biblioteca Nacional de Buenos
Aires); Julia Wells, «The female librarian in film: Has the image
changed in 60 years?», SLIS Student Research Journal, 2013, 3(2)
(arquétipos das bibliotecárias no cinema); Rosa San Segundo
Manuel, «Mujeres bibliotecarias durante la II República: de
vanguarda intelectual a la depuración», CEE Participación
Educativa, número extraordinário 2010, págs. 143-164
(bibliotecárias no pós-guerra espanhol); Inmaculada de la Fuente, El
exilio interior. La vida de María Moliner, Turner, Madrid, 2011, págs.
175-198 (processo de depuração de María Moliner);
http://www.mecd.gob.es/revista-cee/pdf/extr2010-san-segundo-
manuel.pdf (bibliotecárias na Segunda República Espanhola: da
vanguarda intelectual à depuração).
CAPÍTULO 60: Gabriel Zaid, Los demasiados libros, Debolsillo,
Barcelona, 2010, pág. 20 (um livro por minuto); Enciclopédia
Bizantina Suda, sub voce Deínarchos e Lykourgos; Focio,
Biblioteca, 20b 25 (os enkrithéntes); Enciclopédia Bizantina Suda,
sub voce Télephos (um manual intitulado Conhecer os Livros);
Enciclopédia Bizantina Suda, sub voce Philón (um manual intitulado
Sobre a Escolha e a Aquisição de Livros).
CAPÍTULO 61: Ateneu, Deipnosofistas, IX, 379E (os Sete

Cozinheiros Lendários da Grécia); Plutarco, Moralia, 841f (decreto


para proteger as obras dos três trágicos).
CAPÍTULO 62: Alberto Bernabé Pajares e Helena Rodríguez

Somolinos (eds.), Poetisas griegas, Ediciones Clásicas, Madrid,


1994 (poemas fragmentários das mulheres escritoras).
CAPÍTULO 63: Gwendolyn Leick, The A to Z of Mesopotamia, 2010,

sub voce Enheduanna (a sacerdotisa e poeta Enheduanna); Clara


Janés, Guardar la casa y cerrar la boca, Siruela, Madrid, 2015, pág.
17 e ss. (Enheduanna, a primeira voz poética conhecida);
Demócrito, fragmentos B110 e B274 DK (as mulheres devem falar o
mínimo possível); Platão, A República, IX, 575d (a pátria chamada
«mátria»); Heródoto, Histórias, VII, 99 (Artemísia de Cária), e VIII,
94 (recompensa pela sua cabeça); Plutarco, O Banquete dos Sete
Sábios, 3 = Moralia, 148 c-e (Cleobulina no banquete dos sábios);
Enciclopédia Bizantina Suda, sub voce Kleoboulíne (o livro de
adivinhas de Cleobulina); Diógenes Laércio, Vidas dos Filósofos
Ilustres, I, 89 (comédia de Cratino intitulada As Cleobulinas); Carlos
García Gual, Los siete sabios (y tres más), 2007, pág. 117 (as
mulheres gregas escolhem expressar-se através de enigmas).
CAPÍTULO 64: Séneca, Cartas a Lucílio, 88, 37 (ensaio de Dídimo a
perguntar-se se Safo era uma prostituta); Fernando Báez, Nueva
historia universal de la destrucción de libros, Destino, Barcelona,
2011, pág. 441 (o papa Gregório VII manda destruir todos os
exemplares dos poemas de Safo).
CAPÍTULO 65: Pseudo-Demóstenes, Contra Neera, 122 (heteras,

concubinas, esposas); Plutarco, Vidas Paralelas. Péricles, 24, 8


(Péricles e Aspásia); Platão, Menexeno, 236b (Aspásia compôs,
entre outros, o discurso fúnebre); Tucídides, História da Guerra do
Peloponeso, II, 36 e ss. (discurso fúnebre); Juan Carlos Iglesias-
Zoido, El legado de Tucídides. Discursos e historia, Coimbra, 2011,
pág. 228 (os discursos de Obama e Kennedy procuram modelo no
discurso fúnebre); Eurípides, Medeia, 230 e ss. (queixas de
Medeia); 1088-1089 (uma musa acompanha-nos à procura da
sabedoria); Platão, Timeu, 90e-91d (os homens injustos, mulheres
na seguinte geração); Platão, A República, V, 455c-456b (nenhuma
ocupação corresponde à mulher por ser mulher); Diógenes Laércio,
Vidas dos Filósofos Ilustres, III, 46 (filósofas da Academia); VI, 96-
98 (Hipárquia, a cínica); X, 4-6 (a epicurista Leontina); Cícero, Sobre
a Natureza dos Deuses, I, 93 (uma prostituta como Leontina); José
Solana Dueso, Aspasia de Mileto y la emancipación de las mujeres:
Wilamowitz frente a Bruns, Amazon E-book, 2014 (movimento de
emancipação em Atenas). CAPÍTULO 67: Pseudo-Plutarco, Vidas dos
Dez Oradores. Licurgo, 10 = Moralia, 841F, e Pausânias, Descrição
da Grécia, I, 21, 1-2 (estátuas dos três trágicos na Acrópole de
Atenas); Pausânias, Descrição da Grécia, I, 14, 5 e Ateneu,
Deipnosofistas, XIV, 627C (epitáfio de Ésquilo).
CAPÍTULO 68: Jacques Lacarrière, Heródoto y el descubrimiento de

la tierra, Espasa-Calpe, Madrid, 1973, pág. 56 (as fronteiras entre a


civilização e a barbárie); Heródoto, Histórias, I, 1-5 (origem da
inimizade entre os ocidentais e os orientais).
CAPÍTULO 69: Emmanuel Levinás, Totalidad e infinito. Ensayo
sobre la exterioridad, Sígueme, Salamanca, 2006, pág. 100 (o outro
é o facto decisivo através do qual se iluminam as coisas).
CAPÍTULO 70: Ovídio, Metamorfoses, II, 833 (o rapto de Europa e a
procura de Cadmo); Hatem N. Akil, The Visual Divide between Islam
and the West, 2016, pág. 12 (etimologia de Europa).
CAPÍTULO 71: Ryszard Kapuściński, Viajes con Heródoto, 2006,
págs. 56, 292 e 305 (reivindicação de Heródoto); Heródoto,
Historias, III, 38 (a força do hábito); Luciano Canfora, Conservazione
e perdita dei classici, págs. 9 e 29 (a divisão das obras em rolos e a
importância das caixas para guardá-los); Plínio, o Velho, História
Natural, XIII, 26, 83 (a vida útil de um rolo de papiro); J. M Coetzee,
«¿Qué es un clásico?, una conferencia», em Costas extrañas.
Ensayos 1986-1999, 2004, pág. 27 (o clássico é o que sobrevive a
qualquer barbárie).
CAPÍTULO 72: Umberto Eco, El nombre de la rosa, Lumen,

Barcelona, 1983, págs. 574-577 (a faísca luciferina); Luis Beltrán,


Anatomía de la risa, 2011, págs. 14-25 (a cultura primitiva era,
essencialmente, igualitária e alegre); Andrés Barba, La risa caníbal,
2016, pág. 35 (Aristófanes instaurou a possibilidade do humor como
arma política); Ortega y Gasset, Meditaciones del Quijote, Obras
completas I, 1983, pág. 396 (a comédia é o género dos partidos
conservadores).
CAPÍTULO 73: Isócrates, Panegírico, 50 (cidadania cultural);

Juliano, o Apóstata, Contra os Galileus, 229 E (saídas profissionais


de um estudante grego na Antiguidade); W. Dittenberger, Sylloge
Inscriptionum Graecarum, Leipzig, 1917, 578.2-13 (inscrição de
Teos) e 577.4-5, 50-53 (inscrição de Pérgamo).
CAPÍTULO 74: E. G. Turner, Greek Papyri: An Introduction, Oxford,
1980, pág. 77 (uma múmia acompanhada pela Ilíada para a
eternidade); Plutarco, Vidas Paralelas. Nícias, 29, 2 (perdoa-se a
vida aos gregos que sabem recitar versos de Eurípides); L. Casson,
Las bibliotecas del mundo antiguo, Bellaterra, Barcelona, 2003,
págs. 61-67 (bibliotecas helenísticas).
CAPÍTULO 75: Plutarco, Vidas Paralelas. Nícias, Demóstenes, 4 e
11 (fábula de superação de Demóstenes); Quintiliano, Instituições
Oratórias, X, 3, 30 (Demóstenes aprende a concentrar-se entre o
rugido das ondas); Aristófanes, As Vespas, 836 e ss. (julgamento de
um cão por comer um queijo); Heródoto, Histórias, VIII, 74-83 (briga
tumultuária na véspera da Batalha de Salamina); Pseudo-Plutarco,
Vida dos Dez Oradores, I, 18 (Antifonte abre uma loja de consolos);
H.-I. Marrou, Historia de la educación en la Antigüedad, Akal,
Madrid, 2004, pág. 248 (as conferências itinerantes da Antiguidade);
Górgias, O Elogio de Helena, 8 (a palavra é um soberano
poderoso); Evangelho segundo São Mateus, 8 («mas diz uma só
palavra e o meu servo será curado»).
CAPÍTULO 76:
https://www.nytimes.com/roomfordebate/2011/01/05/does-one-word-
change-huckleberry-finn (debate em torno das edições higienizadas
de Huck Finn e Tom Sawyer, de Mark Twain); James Finn Garner,
Cuentos infantiles políticamente correctos, Barcelona, 1995, pág. 15
(versão de O Capuchinho Vermelho sensível às minorias);
Pausânias, Descrição da Grécia, I, 30, 1 (descrição da Academia
platónica); Platão, A República, VI, 514a-517a (alegoria da caverna);
Platão, A República, III, 386a-398b (censura literária no estado
ideal); Platão, Leis, VII, 801d-802b (os poetas não poderão compor
nada que contradiga o que a cidade considera legal, justo, belo ou
bom); George Orwell, 1984, Barcelona, 2000, págs. 58-60 (em 2050
toda a literatura será reescrita); Platão, Leis, VII, 811 c-e (a sua
própria obra como programa educativo); Flannery O’Connor, «La
esencia y el alcance de la ficción» em El negro artificial y otros
escritos, Ediciones Encuentro, Madrid, 2000, pág. 12 (os livros
moralizadores como via segura, mas sem esperança); Santiago
Roncagliolo, «Cuentos para niños malos», artigo publicado no El
País a 15/12/2013 (censura literária e PlayStation);
http://www.independent.co.uk/news/uk/home-news/soas-university-
oflondon-students-union-white-philosophers-curriculum-syllabus-
a7515716.html (o Sindicato de Estudantes da Universidade de
Londres propõe eliminar Platão, Descartes, Kant e Bertrand Russell
do programa curricular).
CAPÍTULO 77: Calímaco, Epigramas, 25 (morte de Cleômbroto por
ter lido um diálogo de Platão); Ramón Andrés, Semper dolens.
Historia del suicidio en Occidente, Editorial Acantilado, Barcelona,
2015, págs. 325-328 (a febre suicida provocada por Werther); H. P.
Lovecraft, «Historia del Necronomicón» em Narrativa completa.
Volumen 2, Valdemar, Madrid, 2007, págs. 227-229 (história fictícia
do Necronomicon e as suas traduções); Rafael Llopis Paret, prólogo
de Los mitos de Cthulhu, Alianza, Madrid, 1969, págs. 43-44 (piadas
e vigarices em torno do Necronomicon); Las mil y una noches
traduzidas e anotadas por Juan Vernet, Planeta, Barcelona, 1990,
pág. 44 (o livro envenenado do médico Ruyan); Alexandre Dumas,
La reina Margot, Cátedra, Madrid, 1995, págs. 655-663 (o livro de
falcoaria envenenado); Umberto Eco, El nombre de la rosa, Lumen,
Barcelona, 1983, pág. 572 (a vítima envenena-se sozinha, na
medida em que deseja ler); Fernando Báez, Nueva historia universal
de la destrucción de libros, Destino, Barcelona, 2011, págs. 390-391
(os livros-bomba).
CAPÍTULO 78: Galeno, XV, pág. 24, ed. Kühn (o fogo e os
terramotos são as causas mais frequentes da destruição de livros);
F. Báez, Nueva historia universal de la destrucción de libros,
Destino, Barcelona, 2011, págs. 270 e 297 (biblioclastia nazi e os
ataques contra os livros de Joyce); J. Marchamalo, Tocar los libros,
Fórcola, Madrid, 2016, pág. 92 (Joyce confia em passar rápido pelo
purgatório); Heinrich Heine, Almansor, versos 242-243 (Ali onde
queimam livros, acabarão por queimar pessoas); Jorge Luis Borges,
«El congreso» em Obras completas (tomo III), Emecé, Barcelona,
1989, pág. 31 (cada tantos séculos é preciso queimar a Biblioteca
de Alexandria).
CAPÍTULO 79: Plutarco, Vidas Paralelas. César, 49 (Cleópatra
envolvida no tapete); Lucano, Farsália, X, 439-454 (César sitiado no
Palácio de Alexandria) e 486-505 (os soldados de César provocam
o incêndio do porto); César, Guerra Civil, III, 111 (ardem as naus);
Hírcio, Guerra de Alexandria, 1 (os edifícios de Alexandria não
contêm madeira); Séneca, Sobre a Tranquilidade da Alma, 9, 5
(arderam quarenta mil livros em Alexandria); Dião Cássio, História
Romana, XLII, 38, 2 (o incêndio destruiu os celeiros e os livros);
Paulo Orósio, Histórias, VI, 15, 31 (os rolos queimados estavam por
acaso nos armazéns do porto).
CAPÍTULO 80: Dião Cássio, História Romana, LXXVII, 7, 3
(ameaças e ataques de Caracala aos sábios do Museu) e 22, 1-23,
3 (um muro de Berlim em Alexandria); Amiano Marcelino, Histórias,
XXII, 16, 15 (a biblioteca do bairro de Bruquion foi destruída em 272
a. C.), Paul Auster, El país de las últimas cosas, Edhasa, Barcelona,
1989, págs. 106-132 (Anna nas ruínas da Biblioteca Nacional);
Michael Holquist, prólogo à edição de The Dialogic Imagination de
M. Bakhtin, Texas University Press, 1981, pág. 24 (Bakhtin a enrolar
os seus cigarros com as folhas do único manuscrito do seu livro).
CAPÍTULO 81: Amiano Marcelino, Histórias, XXII, 16, 15 (propensão
dos alexandrinos para os alvoroços de rua); Rufino, XI, 22-30 e
Sozomeno, História Eclesiástica, VII, 15 (distúrbios e pilhagem do
Serapeu); Sócrates Escolástico, História Eclesiástica, V, 16
(destruição do Serapeu) e VI, 15 (assassinato de Hipátia);
Enciclopédia Bizantina Suda, sub voce Théon (o último hóspede do
Museu); Damáscio, Vida de Isidoro, fragmento 102 (Hipátia
aterroriza o seu aluno mostrando-lhe o seu sangue menstrual); Juan
de Nikiu, Crónica, LXXXIV, 87-103 (Hipátia, feiticeira que utilizava
estratagemas satânicos); Páladas em Antologia Grega, IX, 400
(poema a Hipátia); Maria Dzielska, Hipatia de Alejandría, Siruela,
Madrid, 2004 (biografia de Hipátia).
CAPÍTULO 82: Eutíquio, Anais, II, pág. 316, ed. Pococke (carta de

Amr: conquistei Alexandria); Ibn al-Kifti, Crónica de Homens Sábios


(encontro de Amr com o erudito cristão e o trágico destino dos
livros); Luciano Canfora, La biblioteca desaparecida, Trea, Gijón,
1998, págs. 79-92 (Amr e Omar); Fernando Báez, Nueva historia
universal de la destrucción de libros, Destino, Barcelona, 2011,
págs. 78-81 (provas a favor e contra a tese da destruição
muçulmana).
CAPÍTULO 83: http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/2334707.stm
(crónica sobre a inauguração da nova Biblioteca de Alexandria).
CAPÍTULO 84: Ivan Lovrenovic, «The Hatred of Memory», New York
Times, 28 de maio de 1994 (uma testemunha descreve o
bombardeamento da Biblioteca de Sarajevo); Arturo Pérez Reverte,
«Asesinos de libros», Patente de corso (1993-1998), Suma de
Letras, Madrid, 2001, págs. 50-53 (impressões sobre o desastre);
Ray Bradbury, Fahrenheit 451, Debolsillo, Barcelona, 2015, pág. 90
(borboletas negras); Nações Unidas, Comissão de Especialistas da
ex-Jugoslávia, 1994, anexo VI, parágrafos 183-193 (destruição
intencional de bens culturais); Juan Goytisolo, Cuaderno de
Sarajevo, anotaciones de un viaje a la barbarie, El País Aguilar,
Madrid, 1993, págs. 56-57 (o dia em que a biblioteca ardeu); Jorge
Carrión, Librerías, Anagrama, Barcelona, 2014, pág. 111 (Mein
Kampf no telhado); L. D. Reynolds e N. G. Wilson, Copistas y
filólogos, Gredos, Madrid, 1995, pág. 18 e ss. (símbolos e marcas
textuais dos trabalhos alexandrinos nas obras sobreviventes).
CAPÍTULO 85: Jesús Marchamalo, Tocar los libros, Fórcola, Madrid,
2016, pág. 51 (lista de livros balsâmicos em lugares sinistros);
Leonora Carrington, Memorias de abajo, Alpha Decay, Barcelona,
2017, pág. 68 (Leonora Carrington lê Unamuno num hospital
psiquiátrico de Santander); Nico Rost, Goethe en Dachau,
ContraEscritura, Barcelona, 2016, pág. 35 (bibliotecas nos campos
de concentração), pág. 237 (vitaminas L e F), pág. 146 (o clube de
leitura), pág. 251 (nego-me), pág. 56 (uma espécie de comunidade
europeia); Monika Zgustova, Vestidas para un baile en la nieve,
Galaxia Gutenberg, Barcelona, 2017, págs. 13-14 e 215 (livros de
Gália e Elena no gulag); Viktor Frankl, El hombre en busca de
sentido, Herder, Barcelona, 1983, pág. 24 (destruição do manuscrito
que continha a sua obra) e pág. 44 (paradoxalmente, os intelectuais
suportavam melhor a vida em Auschwitz do que outros presos mais
fortes); Michel del Castillo, Tanguy, Ikusager, Vitoria-Gasteiz, 2010,
pág. 104 (Tolstói em Auschwitz); Javier Barrio, «Eulalio Ferrer, la
memoria de El Quijote», El País, 26 de abril de 1990 (O Dom Quijote
em troca de cigarros).
CAPÍTULO 87: Amelia Valcárcel em conversa com Emilio Lledó em

«Crise de valores e ética democrática», palestra organizada no dia


22 de novembro de 2013 dentro do ciclo intitulado «O mundo que
queremos», https://www.youtube.com/watch?v=c_gZcZFq-YE (os
gregos começaram a ser tão esquisitos como nós); René Berger e
Solange Ghernaouti-Hélie, Technocivilisation, EPFL Press, 2010,
pág. 1 (etimologia de «ordenador», «computador» em português);
Paul Auster, The invention of Solitude, Sun Publising, 1982, pág.
136 (reflexões sobre a tradução); Plutarco, A Fortuna ou a Virtude
de Alexandre Magno, I, 6, 329cd (ordenou que todos considerassem
o mundo a sua pátria); Luca Scuccimarra, Los confines del mundo.
Historia del cosmopolitismo desde la Antigüedad hasta el siglo XVIII,
KRK Ediciones, Oviedo, 2017, págs. 88-94 (o sonho de Alexandre,
Eratóstenes e o novo mapa); George Steiner, La idea de Europa,
Siruela, Madrid, 2005, pág. 68 (eles nunca enviaram um barco a
perguntar por nós), Rafael Argullol, Visión desde el fondo del mar,
Acantilado, Barcelona, 2010, pág. 708 (Viajou!).
II. Roma

CAPÍTULO 1: Tito Lívio, História de Roma desde a sua Fundação, I,


7 (fratricídio fundacional), 8 (os primeiros romanos, presidiários e
pessoas de origem obscura) e 9 (rapto das sabinas); Mitrídates em
Salústio, Histórias, IV, 69, 17 (não possuíram nada, apenas o que
roubaram).
CAPÍTULO 2: Orósio, Histórias contra os Pagãos, IV, 12 (único ano
sem guerras); Mary Beard, SPQR, Crítica, Barcelona, 2016, pág.
187 e ss. (esforço bélico romano); Júlio César, A Guerra das Gálias,
II, 33 (53 000 prisioneiros vendidos como escravos logo depois da
conquista).
CAPÍTULO 3: Michael von Albrecht, Historia de la literatura romana,

Herder, Barcelona, 1997, pág. 78 (contexto cultural); Mary Beard e


John Henderson, El mundo clásico: Una breve introducción, Alianza
Editorial, Madrid, 2015, pág. 38 (A Grécia inventa-o e Roma deseja-
o); Horácio, Epístolas, II, 1, 156 (a Grécia conquistada invadiu o seu
feroz vencedor); Valério Máximo, Feitos e Dizeres Memoráveis, II, 2,
3 (uma delegação grega dirige-se na sua língua ao Senado
romano); George Steiner e Cécile Ladjali, Elogio de la transmisión,
Siruela, Madrid, 2005, pág. 159 (a fábula sem futuro de Canetti).
CAPÍTULO 4: Cícero, Brutus, 72 (certidão de nascimento da
literatura latina); Hipólito Escolar, Manual de historia del libro,
Gredos, Madrid, 2000, pág. 88 (os romanos adaptam o alfabeto
etrusco); Tito Lívio, Historia de Roma desde a sua Fundação, XXVII,
37, 7 (o poeta Lívio Andrónico recebe encomendas); Michael von
Albrecht, Historia de la literatura romana, Herder, Barcelona, 1997,
pág. 127 (biografia de Lívio Andrónico); Jesús Marchamalo, Tocar
los libros, Fórcola, Madrid, 2016, pág. 62 (um livro cada trinta
segundos).
CAPÍTULO 5: Plutarco, Vidas Paralelas. Paulo Emílio, 28, 6
(biblioteca macedónica); Estrabão, Geografia, XIII, 1, 54 (Biblioteca
de Sila); Luciano Canfora, La biblioteca desaparecida, Trea, Gijón,
1998, págs. 29-32 e 51-56 (peripécias da biblioteca de Aristóteles);
Isidoro, Etimologias, VI, 5, 1 (biblioteca de Lúculo); Plutarco, Vidas
Paralelas. Lúculo, 42, 1 (a receção das musas na biblioteca de
Lúculo); F. Scott Fitzgerald, El gran Gatsby, Plaza y Janés,
Barcelona, 1975, pág. 56 (a biblioteca trazida da Europa para
Gatsby); Juvenal, Sátiras, III, 60 (não consigo suportar a cidade
cheia de gregos); Terêncio, A Sogra, segundo prólogo (o teatro
compete em Roma com os espetáculos de pugilistas e
funambulistas); Mary Beard, SPQR, Crítica, Barcelona, 2016, pág.
215 (Plauto brinca chamando-se a si próprio «bárbaro»).
CAPÍTULO 6: Francine Prose, Peggy Guggenheim: The shock of the

Modern, Yale University Press, 2015, pág. 28 e ss. (Peggy


Guggenheim foge de Paris e Marselha); Serge Gilbaut, De cómo
Nueva York robó la idea de arte moderno, Mondadori, Madrid, 1990,
págs. 86-93 (ansiedade por converter Nova Iorque na nova capital
da cultura); Irving Sandler, El triunfo de la pintura norteamericana,
Alianza Editorial, Madrid, 1996, pág. 65 (relações entre os artistas
emigrados e os americanos); Jackson Pollock, «My Painting», em
Barbara Rose (ed.), Pollock: Painting, Nova Iorque, 1980, pág. 97 (é
muito importante que os grandes artistas europeus estejam entre
nós); Vladimir Nabokov, «Carta a Altagracia de Jannelli del 16 de
noviembre de 1938», em Dmitri Nabokov, Vladimir Nabokov
Selected Letters, 1940-1977, Harcourt Brace Jovanovich Ediciones,
1989 (aquilo que me cativa na civilização americana é precisamente
esse toque do Velho Mundo); Román Gubern, Historia del cine,
Ediciones Dánae, Barcelona, 1971, pág. 117 (origens dos pioneiros
dos grandes estúdios); Agustín Sánchez Vidal, Historia del cine,
Historia 16, Madrid, 1997, pág. 79 (vagas de emigrantes europeus
no cinema dos Estados Unidos); Joseph McBride, Tras la pista de
John Ford, T&B Editores, Madrid, 2004, pág. 40 (mito do nascimento
irlandês de John Ford).
CAPÍTULO 7: Diógenes Laércio, Vidas dos Filósofos Ilustres, III, 19

(Platão vendido como escravo); P. Hunt, Ancient Greek and Roman


Slavery, Wiley-Blackwell editores, Hoboken, 2017, pág. 93 e ss.
(escravos gregos e cultura romana); Mary Beard, SPQR, Crítica,
Barcelona, 2016, pág. 351 (a escravatura em números); L. Casson,
Las bibliotecas del mundo antiguo, Bellaterra, Barcelona, 2003, pág.
76 e ss. (escravos bibliotecários de Cícero); Cícero, Epístolas a
Ático, 4, 4a, 1 (o maravilhoso trabalho bibliotecário de Tiranião);
Cícero, Epístolas Familiares, 13, 77, 3 (Dionísio, o ladrão de livros);
Janet Duisman Cornelius, When I Can Read My Title Clear: Literacy,
Slavery, and Religion in the Antebellum South, Columbia S. C., 1991
(castigos aos escravos americanos por lerem); Alberto Manguel,
Una historia de la lectura, Alianza Editorial, Madrid, 2002, pág. 388
(os proprietários de escravos acreditavam na força da palavra; por
esse motivo proibiam a leitura); Jesper Svenbro, «La Grecia Arcaica
y Clásica: La invención de la lectura silenciosa», em G. Cavallo e R.
Chartier (eds.), Historia de la lectura en el mundo occidental, Taurus,
Madrid, 2001, págs. 81-82 (leitura como sodomização).
CAPÍTULO 8: Plínio, Historia Natural, XIII, 21 (livros escritos em

cascas das árvores); Calímaco, Aitia, fragmento 73 Pfeiffer


(mensagem de amor numa árvore); Vergílio, Églogas, X, 53-54 (os
nomes dos amantes crescem com a casca).
CAPÍTULO 9: Charles W. Hedrick Jr., «Literature and
communication», em Michael Peachin (ed.), The Oxford Handbook
of Social Relations in the Roman World, Oxford University Press,
Nova Iorque, 2011, pág. 180 e ss. (livros e relações sociais); Plínio,
o Jovem, Epístolas, IV, 7, 2 (Régulo organiza a promoção do seu
assombroso livro); Marcial, Epigramas, V, 16, 10 (as minhas páginas
só agradam quando são grátis) e VI, 82 (porque é que vestes um
casaco tão gasto?); Catão citado por Aulo Gélio em Noches Áticas,
X, 2, 5 (a poesia não ocupava uma posição de honra); Mario
Alighiero Manacorda, Historia de la educación, 1. De la antigüedad
al 1500, Siglo XXI Editores, México, 2006, pág. 131 e ss. (a
educação, uma profissão humilde e desprezada); Tácito, Anais, III,
6, 4 (origens obscuras).
CAPÍTULO 10: Cícero, Cartas a Ático, XIII, 21a, 2 (a cópia pirata de

Caerellia). Valério Máximo, Feitos e Dizeres Memoráveis, IV, 4


(Cornélia preocupa-se com a educação dos seus filhos); Plutarco,
Vidas Paralelas. Gayo Graco, 19 (salão literário de Cornélia);
Salústio, A Conspiração de Catilina, 25, 2 (Semprónia, leitora de
latim e grego); Cícero em Lactâncio, Instituições Divinas, I, 15, 20 (a
doutíssima filha de Cícero); Plutarco, Vidas Paralelas. Pompeu, 55
(a mulher de Pompeu tocava a lira e amava a geografia, a literatura
e as discussões filosóficas); Suetónio, Sobre os Gramáticos Ilustres,
16, 1 (relações suspeitas entre um escravo culto e a filha do amo);
Juvenal, Sátiras, VI, 434-456 (caricatura das mulheres que leram
mais do que os homens); Martha Asunción Alonso, Wendy, Pre-
Textos, Valência, 2015, pág. 74 (não sempre nem a todos da mesma
forma,/ permanece indestrutível,/ como um deus ou um diamante,/ a
palavra).
CAPÍTULO 11: W. V. Harris, «Literacy and Epigraphy», ZPE, 1983,
52, págs. 87-111 (dados de alfabetização em Pompeia); Ausónio,
Livro de Exortação ao meu Neto, 2, 15 e ss. (embora ecoem golpes
de chicote, não tenhas medo); Agostinho de Hipona, A Cidade de
Deus, XXI, 14 (quem não preferia perecer se pudesse escolher
entre a morte e voltar à infância?); H.-I. Marrou, Historia de la
educación en la Antigüedad, Akal, Madrid, 2004, pág. 347 (o ofício
mal pago dos professores primários); Horácio, Sátiras, I, 6, 74 (as
crianças a caminho da escola com a sua caixinha e as suas
tabuinhas); Ovídio, A Arte de amar, II, 395 (tabuinhas e
infidelidades); Pérsio, Sátiras, III, 10-14 (grandes pingas de tinta);
Elisa Ruiz García, Introducción a la codicología, Fundación Germán
Sánchez Ruipérez, Madrid, 2002, págs. 96 e 122 (tintas e tabuinhas
antigas).
CAPÍTULO 12: Prudêncio, Peristephanon, IX (martírio do professor

primário São Cassiano, assassinado pelos seus alunos); Quintiliano,


Instituições Oratórias, I, 3, 14-17 (contra os castigos corporais na
escola), Horácio, Sátiras, I, 25-26 (precetores complacentes dão
bolachas às crianças para que aprendam as primeiras letras);
Petrónio, Satíricon, IV, 1 (agora as crianças estudam a brincar); H.-I.
Marrou, Historia de la educación en la Antigüedad, Akal, Madrid,
2004, págs. 352-353 (teorias pedagógicas compassivas na escola
romana).
CAPÍTULO 13: Yuval Noah Harari, Sapiens: de animales a dioses.
Una breve historia de la humanidad, Debate, Barcelona, 2014, pág.
15 (cronologia da humanidade); Ewan Clayton, La historia de la
escritura, Siruela, Madrid, 2015, pág. 328 (grafítis); Vladimir
Nabokov, Pálido fuego, Anagrama, Barcelona, 2006, pág. 143
(estamos absurdamente acostumados ao milagre da escrita).
CAPÍTULO 14: Marcial, Epigramas, XIV, 5 (para que as sombrias
ceras não obscureçam os teus olhos esmorecidos); Quintiliano,
Instituições Oratórias, X, 3, 31 (recomendação para leitores com
problemas de visão); Plínio, o Velho, História Natural, XXXVII, 16, 64
(a esmeralda de Nero); Edward Grom e Leon Broitman, Ensayos
sobre historia, ética, arte y oftalmología, Caracas, 1988 (história dos
óculos); Umberto Eco, El nombre de la rosa, Lumen, Barcelona,
1983, pág. 95 (um misterioso instrumento ótico causa espanto);
Plínio, História Natural, XIII, 23, 74-77 (papiro tosco e papiro fino);
Marcial, Epigramas, I, 117, 16 (rolos alisados com pedra-pomes) e
IV, 89, 2 (os umbigos dos livros); Vitrúvio, Arquitetura, II, 9, 13
(propriedades do óleo de cedro contra os insetos); Luciano de
Samósata, Contra un ignorante que compraba muchos libros,
Barcelona, 2013, págs. 46 e 67 (sátira do colecionista inculto).
CAPÍTULO 15: Marcial, Epigramas, II, 1, 5 (um livro copiado numa
hora); Cátulo, Poemas, XIV (vou correr para as arcas dos livreiros);
Marcial, Epigramas, I, 117, 9 (publicidade encoberta de uma livraria);
I, 2 e 113, e IV, 72 (os livreiros referidos por Marcial); Horácio,
Epístolas, I, 20 (o livro desavergonhado e exibicionista); Mario
Citroni, Poesia e lettori in Roma Antica, ed. Laterza, Roma-Bari,
1995, págs. 12-15 (aparecem os leitores anónimos, para além das
amizades).
CAPÍTULO 17: Jorge Carrión, Librerías, Anagrama, Barcelona,
2014, págs. 53-54 (sobre o diálogo entre bibliotecas e livrarias);
Suetónio, Vida dos Doze Césares. Domiciano, 10, 1 (execução de
um historiador incómodo, dos seus copistas e livreiros); George
Borrow, La Biblia en España, Ediciones Cid, Madrid, 1967, págs.
223, 234, 247, 289 e 300 (retratos de livreiros espanhóis).
CAPÍTULO 18: Françoise Frenkel, Una librería en París, Seix Barral,
Barcelona, 2017, pág. 20 (aprendizagem de livreira); Jorge Carrión,
Librerías, Anagrama, Barcelona, 2013, págs. 112-114 (amor e ódio
para com os livros de Hitler e Mao Tsé-Tung); Jonathan Spence,
Mao Zedong. A Life, Penguin Books, Nova Iorque, 2006 (como Mao
Tsé-Tung abriu uma livraria e graças ao sucesso empresarial dessa
aventura pôde dedicar-se tranquilamente a derrubar o capitalismo);
http://www.abc.es/cultura/libros/abci-mein-kampf-exito-ventas-
alemania-01801180148 (Hitler, autor de best-seller).
CAPÍTULO 19: C. Pascual, F. Puche e A. Rivero, Memoria de la
librería, Trama Editorial, Madrid, 2012 (energia das livrarias,
influência nas ruas); Jon Kimche, em Stephen Wadhams (ed.),
Remembering Orwell, vol. 1: An Age to Read, Harmondsworth, 1984
(experiência de Orwell como livreiro); Barómetro de los hábitos de
lectura y compra de libros en España en 2017 da Federación de
Gremios de Editores de España (número de leitores em Aragão);
Aránzazu Sarría Buil, Atentados contra librerías en la España de los
setenta, la expresión de una violencia política, em Marie-Claude
Chaput, Manuelle Peloille (eds.), Sucesos, guerras, atentados,
PILAR, Paris, 2009, págs. 115-144 (ataques contra livrarias na
Transição Espanhola);
https://elpais.com/diario/1976/11/27/ultima/217897202_850215.html
(novembro de 1976: explode uma bomba na livraria Pórtico de
Saragoça);
https://elpais.com/diario/1976/05/25/sociedad/201823203_850215.ht
ml (maio de 1976: uma livraria assaltada de duas em duas
semanas); Salman Rushdie, Joseph Anton, Barcelona, 2012, e
Fernando Báez, Nueva historia universal de la destrucción de libros,
Barcelona, 2011, págs. 300-301 (o affaire Rushdie).
CAPÍTULO 21: John W. Maxwell, Tracing the Dynabook: A Study of
Technocultural Transformations, University of British Columbia, 2006
(o computador pessoal como evolução do livro); Ewan Clayton, La
historia de la escritura, Siruela, Madrid, 2015, pág. 322 (a tradição
manuscrita chega à era digital).
CAPÍTULO 22: Izet Sarajlić, Después de mil balas, Seix Barral,
Barcelona, 2017, pág. 90 (eu, tonto, quase acreditei nisso).
CAPÍTULO 23: C. H. Roberts e T. C. Skeat, The Birth of the Codex,
Cambridge University Press, Cambridge, 1987, pág. 76 (num códice
cabe seis vezes mais texto do que num rolo); Plínio, História
Natural, VII 21, 85 (Cícero afirma ter visto uma Ilíada que cabia
numa casca de noz); E. G. Turner, Greek Papyri. An introduction,
Oxford, 1980, pág. 204 (um vendedor de livros ao domicílio na
Roma Antiga); Guglielmo Cavallo, «Entre el volumen y el codex. La
lectura en el mundo romano», em G. Cavallo e R. Chartier (eds.),
Historia de la lectura en el mundo occidental, Taurus, Madrid, 2001,
pág. 111 e ss. (nascimento do códice e ampliação do número de
leitores).
CAPÍTULO 24: Marcial, Epigramas, X, 8 (Paula deseja casar
comigo, e eu não quero casar com Paula: é velha. Quereria, se
fosse mais velha); Marcial, Apophoreta, 183-196 (epigramas sobre
livros); Marcial, Epigramas, I, 2 (promoção do seu próprio livro em
formato códice); Guglielmo Cavallo, «Entre el volumen y el codex.
La lectura en el mundo romano», em G. Cavallo e R. Chartier (eds.),
Historia de la lectura en el mundo occidental, Taurus, Madrid, 2001,
pág.143 (preferência dos cristãos pelo códice).
CAPÍTULO 25: Elisa Ruiz García, Introducción a la codicología,

Fundación Germán Sánchez Ruipérez, Madrid, 2002, págs. 120-135


(do rolo ao códice);
https://elpais.com/tecnologia/2019/01/07/actualidad/
1546837065_279280.html (televisões enroláveis); Hipólito Escolar,
Manual de historia del libro, Gredos, Madrid, 2000, págs. 99-100
(substituição e sobrevivência do rolo).
CAPÍTULO 26: Agustín Sánchez Vidal, Historia del cine, Historia 16,
Madrid, 1997, págs. 9-10 (filmes transformados em pentes);
Temístio, Discursos, IV 59d-60c, e Jerónimo, Epístolas, 141 (esforço
de salvação nas bibliotecas de Constantinopla e Cesareia).
CAPÍTULO 27: Suetónio, Vida dos Doze Césares. Caio Júlio César,
82, 2 (assassinato de César); Barry Strauss, La muerte de César,
Palabra, Madrid, 2016 (o assassinato mais famoso da História);
Suetónio, Vida dos Doze Césares. Caio Júlio César, 44, 2 (César
tinha previsto construir a primeira biblioteca pública de Roma);
Jerónimo, Epístolas, 33, 2 (Varrão escreveu um tratado sobre
bibliotecas); Plínio, o Velho, História Natural, VII, 30, 115 e XXXV, 2;
Isidoro, Etimologias, 6, 5, 1 (dados sobre a biblioteca de Asínio
Polião); T. Keith Dix, «Public Libraries in Ancient Rome: Ideology
and Reality», Libraries & Culture 29, 1997, pág. 289 (bibliotecas
como veículo de reconhecimento oficial e para entrar no cânone);
Marcial, Epigramas, IX, prefácio (Marcial e os bustos nas
bibliotecas); Aulo Gélio, Noites Áticas, XIX, 5 (discussão noturna
sobre Aristóteles e a neve); Frontão, Epístolas, IV, 5, 2 (Marco
Aurélio e Frontão levam livros emprestados das bibliotecas
romanas); Filippo Coarelli, La Colonna Traiana, Colombo, Roma,
1999 (a coluna de Trajano como um rolo de pedra); L. Casson, Las
bibliotecas del mundo antiguo, Bellaterra, Barcelona, 2003, págs.
88-94 (reconstrução das bibliotecas romanas).
CAPÍTULO 28: L. Casson, Las bibliotecas del mundo antiguo,
Bellaterra, Barcelona, 2003, págs. 95-98 (as bibliotecas nos banhos
romanos); Marcial, Epigramas, VII, 34, 4-5 (O que há pior do que
Nero? E melhor do que as suas termas?); Séneca, Cartas a Lucílio,
56, 1-2 (gritaria nas termas); Vida de São Teodoro Estudita, 20
(fedor de santidade); Clemente de Alexandria, Stromata, VII, 7, 36 (o
bom cristão não quer cheirar bem); Jerry Tonner, Setenta millones
de romanos, Crítica, Barcelona, 2012, págs. 230-231 (os prazeres
da água em Roma).
CAPÍTULO 29: Corpus Inscriptionum Latinarum (CIL), 5.5262 (Plínio,
o Jovem, doa uma biblioteca à sua cidade natal); CIL 10.4760
(biblioteca doada por Salonina Matídia); CIL 11.2704 (biblioteca de
Volsínios); W. V. Harris, Ancient Literacy, Harvard University Press,
Cambridge (Massachusetts) e Londres, 1989, pág. 273 (apenas
duas bibliotecas conhecidas no Ocidente); Apuleio, Florida XVIII, 8
(Biblioteca de Cartago); L. Casson, Las bibliotecas del mundo
antiguo, Bellaterra, Barcelona, 2003, pág. 113 e ss. (as bibliotecas
fora de Roma).
CAPÍTULO 30: Oliver Hilmes, Franz Liszt: Musician, Celebrity,
Superstar, Yale University Press, 2016 (o fenómeno dos fãs
começou com Liszt); Plínio, o Jovem, Epístolas, II, 3 (a viagem
aventureira de um admirador hispânico de Tito Lívio para conhecer o
seu ídolo); Horácio, Odes, II, 20; Propércio, Elegias, II, 7, e Ovídio,
Tristia, IV 9 e 10 (os autores de sucesso sentem-se estrelas
internacionais); Marcial, Epigramas, VII, 88 e XI, 3 (as novidades de
Marcial podiam comprar-se em Viena e cantavam-se em Britânia);
Plínio, o Jovem, Epístolas, IX, 11 (uma livraria em Lyon); Juvenal,
Sátiras, XV, 108 (onde é que se viu um estoico cântabro); Suetónio,
Vida de Virgílio, 6, 11 (Vergílio foge dos seus admiradores).
CAPÍTULO 31: Marcial, Epigramas, XII, 31 (descrição da
propriedade que a viúva Marcela ofereceu a Marcial); Marcial,
Epigramas, prefácio do livro XII (Marcial tem saudades das
bibliotecas, dos teatros, das reuniões, da subtileza dos assuntos, da
perspicácia das opiniões: dos prazeres de Roma).
CAPÍTULO 32: Cícero, Contra Pisão, 22 (Pisão na fetidez e no
lamaçal dos seus gregos); Stephen Greenblatt, El giro, Crítica,
Barcelona, 2014, pág. 65 e ss. (conversas filosóficas na mansão de
Lúcio Calpúrnio Pisão); Mary Beard, Pompeya, Crítica, Barcelona,
2009, pág. 7 e ss. (vidas interrompidas).
CAPÍTULO 34: Mario Citroni, Poesia e lettori in Roma Antica,
Laterza, Roma-Bari, 1995, págs. 459-464 (Ovídio e a expansão do
público leitor); Ovídio, Tristia, IV, 10, 21-26 (repreensões paternas: a
poesia não alimenta); Marcial, Epigramas, V, 34; V, 37 e X, 61
(paixão de Marcial por Erótion, a sua escrava morta aos seis anos);
Ovídio, A Arte de amar, II, 665 e ss. (prefiro uma amante que tenha
ultrapassado a idade de trinta e cinco anos); Pascal Quignard, El
sexo y el espanto, Minúscula, Barcelona, 2014, pág. 15 (Ovídio é o
primeiro romano que pensa que o desejo é recíproco); Ovídio,
Tristia, II, 212 (mestre de adultérios obscenos); Plutarco, Vidas
Paralelas. Catão, o Jovem, 25 (Márcia, a esposa emprestada);
Ovídio, Tristia, II, 207 (há dois delitos que me levaram à perdição:
um poema e um erro); Ovídio, Tristia, I, 1, 67 (já não sou precetor de
amor; essa obra já pagou o castigo que merecia); Aurélio Victor,
Epítome de los Césares, I, 24 (Augusto castigou com o exílio o
poeta Ovídio por escrever três livrinhos sobre a arte de amar);
Ovídio, Tristia, III, 1 (versos desterrados).
CAPÍTULO 35: Tácito, Histórias, I, 1 (tempos de rara felicidade, nos
quais é permitido pensar como se quer e dizer o que se pensa);
Suetónio, Vida de los doce Césares. Tibério, 45, e Tácito, Anais, IV,
34 (o julgamento de Cremúcio Cordo); Séneca, Consolação a
Márcia, XVI, 1 (as mulheres têm o mesmo poder intelectual do que
os homens, e a mesma capacidade para as ações nobres e
generosas); Tácito, Anais, IV, 35 (cresce a estima pelos talentos
castigados); Luis Gil, Censura en el mundo antiguo, Alianza
Editorial, Madrid, 2007, pág. 190 e ss. (censura imperial romana);
Suetónio, Vida dos Doze Césares. Calígula, 34 (Calígula está
prestes a acabar com os livros de Homero); Élio Lamprídio, História
Augusta. Cómodo, 10, 2 (Cómodo proíbe a leitura de Suetónio sob
pena de morrer no anfiteatro despedaçado pelas feras); Dião
Cássio, História Romana, LXXVIII, 7 (Caracala esteve perto de
queimar todas as obras de Aristóteles); Tácito, Vida de Agrícola, 2
(teríamos perdido a memória juntamente com a voz, se tivesse
estado na nossa mão o esquecimento e o silêncio).
CAPÍTULO 36: K. Houston, The Book: A Cover-to-Cover Exploration
of the Most Powerful Object of Our Time, W. W. Norton & Company,
Londres, 2016, introdução;
https://www.nytimes.com/2009/07/18/technology/companies/18amaz
on.html (a Amazon apaga sem aviso prévio 1984 dos dispositivos de
leitura); L. D. Reynolds e N. G. Wilson, Copistas y filólogos, Gredos,
Madrid, 1995, pág. 19 (Aristófanes de Bizâncio inventa um sistema
de pontuação); Alberto Manguel, Una historia de la lectura, Alianza
Editorial, Madrid, 2002, págs. 76-79 (vicissitudes da pontuação e da
separação de palavras); Elisa Ruiz García, Introducción a la
codicología, Fundación Germán Sánchez Ruipérez, coleção
Biblioteca del libro, Madrid, 2002, pág. 283 (as primeiras ilustrações
dos livros foram uma ajuda à leitura); Plínio, História Natural, XXXV,
11 (Imagens de Varrão); Marcial, Epigramas, XIV, 186 (um retrato de
Vergílio no frontispício de um códice); F. Báez, Los primeros libros
de la humanidad, Fórcola, Madrid, 2013, pág. 501 (manuscritos
iluminados).
CAPÍTULO 37: L. Casson, Las bibliotecas del mundo antiguo,

Bellaterra, Barcelona, 2003, págs. 19-20 (como nomeavam os livros


nas primeiras bibliotecas); Xaverio Ballester, Los mejores títulos y
los peores versos de la literatura latina, Publicacions de la
Universitat de Barcelona, 1998 e «La titulación de las obras en la
literatura romana», Cuadernos de Filología Clásica 24, 1990, págs.
135-156 (monotonia dos títulos da literatura antiga); Agostinho de
Hipona, Epístolas II, 40, 2 (o título na página liminar); Leila
Guerriero, «El alma de los libros», em
http://cultura.elpais.com/cultura/2013/06/26/actualidad/1372256062_
358323.html.
CAPÍTULO 38: Suetónio, Vida de los doce Césares. Vespasiano, 18
(Quintiliano, o primeiro catedrático); Quintiliano, Instituições
Oratórias, I, 3, 14-17 (crítica dos castigos corporais na escola); X, 1,
4 (em defesa da educação permanente); II, 5, 13 (tornar o professor
supérfluo); X, 1, 46-131 (listas paralelas de grandes autores); VI,
prefácio, 10 (não sei que inveja secreta corta o fio das nossas
esperanças).
CAPÍTULO 39: Steven Pinker, En defensa de la Ilustración, Paidós,
Barcelona, 2018, pág. 113 (não são tanto os vencedores que
escrevem a história, mas sim as pessoas abastadas); Aulo Gélio,
Noites Áticas, VI, 13, 1 (clássicos são os donos das grandes
fortunas); Cícero, Academica Priora, 73 (escritores de quinta
classe); Frontão citado por Aulo Gélio, Noites Áticas, XIX, 8, 15
(autores clássicos, não proletários); Silvia Rizzo, Il lessico filológico
degli umanisti, Edizioni di Storia e Letteratura, Roma, 1973, pág. 379
(Filippo Beroaldo, o Velho, recupera o termo «clássico» em 1496);
Irene Vallejo, «Una fábula con porvenir», em Luis Marcelo Martino e
Ana María Risco (compiladores), La profanación del Olimpo, Teseo,
Buenos Aries, 2018, págs. 335-355 (história da palavra «clássico»);
Italo Calvino, Por qué leer los clásicos, Siruela, Madrid, 2009; Mark
Twain, Disappearance of Literature,
https://www.gutenberg.org/files/3188/3188-h/3188-
h.htm#link2H_4_0053; Pierre Bayard, Cómo hablar de los libros que
no se han leído, Anagrama, Barcelona, 2007.
CAPÍTULO 40: Eurípides, As Troianas, 1295 e ss. (lamento de
Hécuba); Séneca, Cartas a Lucílio, 95, 30-31 (sobre a guerra);
Hannah Arendt, Entre el pasado y el presente, Península,
Barcelona, 1996, pág. 16 (é o futuro que nos conduz para o
passado).
CAPÍTULO 41: Herbert Oppel, «KANWN. Zur Bedeutungsgeschichte

des Wortes und seiner lateinischer Entsprechungen (Regula-


norma)», Philologus Supplementband XXX, 1-116 (história da
palavra «cânone»); Plínio, o Velho, História Natural, XXXIV, 19, 55
(o Doríforo representa as proporções do cânone de Policleto);
Aristóteles, Ética nicomaquea, 1113a, 29 (o homem honrado e
íntegro como padrão comportamental); Eusébio, História
Eclesiástica, VI, 25, 3 (cânone eclesiástico); David Ruhnken,
Historia critica oratorum Graecorum, Leiden, 1786, pág. 386
(primeiro aparecimento do conceito de «cânone literário»); Terry
Eagleton, Cómo leer literatura, Península, Barcelona, 2016, págs.
195-227 (mudanças históricas das preferências literárias); J. M
Coetzee, «¿Qué es un clásico?, una conferencia», em Costas
extrañas. Ensayos 1986-1999, 2004, pág. 25: (o passado como uma
força que modela o presente).
CAPÍTULO 42: Suetónio, Sobre os Gramáticos Ilustres, 16, 2 (Quinto
Cecílio Epirota decide estudar autores vivos na escola); Mary Beard,
SPQR, Crítica, Barcelona, 2016, pág. 503 (versos vergilianos em
Pompeia); Horácio, Odes, I, 1, 35-36 (se me incluíres entre os
poetas) e III, 30, 1 (mais duradouro do que o bronze); Ovídio,
Metamorfoses, XV, 871 (uma obra que não poderão destruir nem a
cólera de Júpiter, nem o fogo, nem o ferro, nem o tempo voraz);
Marcial, Epigramas, III, 2 (cartuchos de incenso e pimenta); Miguel
de Cervantes, Don Quijote de la Mancha, primeira parte, capítulo IX
(pastas para o comerciante de sedas da Rua Alcaná); William
Blades, Los enemigos de los libros, Fórcola, Madrid, 2016, pág. 62
(um livro valioso abastece uma latrina);
https://www.elconfidencial.com/cultura/2015-06-27/asi-muerenlos-
libros-que-no-se-venden_899696/ (destruição e reciclagem dos
livros que não se vendem). Alberto Olmos, «Los nazis no quemaron
tantos libros como nosotros», em
https://blogs.elconfidencial.com/cultura/malafama/2016-07-20/nazis-
quemar-destruir-libros_1235594/.
CAPÍTULO 43: Tíbulo, Elegias, III, 13 (= IV, 7) e III, 14, 6 (Sulpícia
proclama a sua paixão e queixa-se da vigilância do seu tio);
tradução livre dos versos de Sulpícia inspirada na reescrita de
Leonor Silvestri; Suetónio, Vida dos Doce Césares. Tibério, 35, 2;
Tácito, Anais, II, 85, 1, e Digesto, 48, 5, 11 (mulheres bem-nascidas
declaram-se publicamente prostitutas para protestarem contra a lei
do adultério); Juvenal, Sátiras, II, 37 (estás a dormir, lex Iulia?);
Ovídio, Fastos, II, 583-616 (lenda da deusa Tácita Muda); Eva
Cantarella, Pasado próximo. Mujeres romanas de Tácita a Sulpicia,
Ediciones Cátedra, Universitat de València e Instituto de la Mujer,
Madrid, 1997, págs. 181-188 (os poemas de Sulpícia sobrevivem
graças a um erro); María Dolores Mirón, «Plutarco y la virtud de las
mujeres», em Marta González González (ed.), Mujeres de la
Antigüedad: texto e imagen, edições eletrónicas da Universidad de
Málaga, 2012 (proezas de mulheres segundo Plutarco); Aurora
López, No sólo hilaron lana. Escritoras romanas en prosa y en
verso, Ediciones Clásicas, Madrid, 1994 (vinte e quatro mulheres
romanas publicaram livros).
CAPÍTULO 44: Agustín Sánchez Vidal, La especie simbólica,
Universidad Pública de Navarra, Cátedra Jorge Oteiza, Pamplona,
2011, pág. 38 e ss. (textos e têxteis).
CAPÍTULO 45: Dião Cássio, História Romana, LXXVIII, 9, 4
(Caracala concede a cidadania a todos os habitantes livres do
império); Mary Beard, SPQR, Crítica, Barcelona, 2016, pág. 561
(édito de Caracala); Élio Aristides, Encómio de Roma, XXVI, 60
(ninguém que mereça confiança é estrangeiro); Luca Scuccimarra,
Los confines del mundo. Historia del cosmopolitismo desde la
Antigüedad hasta el siglo XVIII, KRK Ediciones, Oviedo, 2017, págs.
127-140 (a cosmópole romana); Stephen Greenblatt, El giro. De
cómo un manuscrito olvidado contribuyó a crear el mundo moderno,
Crítica, Barcelona, 2014, pág. 81 (o que parecia estável acabou por
ser frágil).
CAPÍTULO 46: Amiano Marcelino, Histórias, XIV, 6, 18 (as

bibliotecas permaneciam fechadas como sepulcros); Erich


Auerbach, Lenguaje literario y público en la Baja Latinidad y en la
Edad Media, Seix Barral, Barcelona, 1966, pág. 229 e ss. (número
de leitores na passagem da Antiguidade para a Idade Média).
CAPÍTULO 47: Catherine Nixey, La edad de la penumbra. Cómo el
cristianismo destruyó el mundo clásico, Taurus, Barcelona, 2018,
pág. 19 e ss. (o imperador Justiniano proíbe ensinar aos pagãos e
encerra a Academia); L. D. Reynolds e N. G. Wilson, Copistas y
filólogos, Gredos, Madrid, 1995, pág. 81 e ss. (bibliotecas
monásticas nos séculos obscuros); F. Báez, Los primeros libros de
la humanidad, Fórcola, Madrid, 2013, pág. 501 e ss. (iluminação de
manuscritos); S. Greenblatt, El giro, Crítica, Barcelona, 2014, pág.
23 e ss. (buscadores de livros no humanismo); L. D. Reynolds e N.
G. Wilson, Copistas y filólogos, Gredos, Madrid, 1995, pág. 121
(apetite dos humanistas pelos textos clássicos); Reinhard Wittmann,
«¿Hubo una revolución en la lectura a finales del siglo XVIII?», em
G. Cavallo e R. Chartier (eds.), Historia de la lectura en el mundo
occidental, Taurus, Madrid, 2001, págs. 497-537 (a mania leitora e
dados de alfabetização).
CAPÍTULO 48: Stefan Zweig, Mendel el de los libros, Acantilado,
Barcelona, 2015, pág. 57 (os livros escrevem-se para unir os seres
humanos); Walter Benjamin, «Tesis de filosofía de la historia», em
Discursos interrumpidos I, Taurus, Madrid, 1973, pág. 182 (Não há
documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um
documento da barbárie).

Epílogo

Jeanne Cannella Schnitzer, «Reaching Out to the Mountains: The


Pack Horse Library of Eastern Kentucky», The Register of the
Kentucky Historical Society, vol. 95, n.º 1, 1997, págs. 57-77
(bibliotecárias a cavalo de Kentucky); Yuval Noah Harari, Sapiens:
de animales a dioses. Una breve historia de la humanidad, Debate,
Madrid, 2014, pág. 122 (a mitologia tinha muito poucas
possibilidades de se sair bem).
BIBLIOGRAFIA

ADICHIE, Ch. N., El peligro de la historia única, tradução de Cruz


Rodríguez Juiz, Random House, Barcelona, 2018 (edição original:
The Danger of a Single Story, 2009).
AGUIRRE, J., Platón y la poesía, Plaza y Valdés, Madrid, 2013.
ALTARES, G., Una lección olvidada. Viajes por la historia de

Europa, Tusquets Editores, Barcelona, 2018.


ANDRÉS, R., Semper dolens. Historia del suicidio en Occidente,
Acantilado, Barcelona, 2015.
ARGULLOL, R., Visión desde el fondo del mar, Acantilado,
Barcelona, 2010.
AUERBACH, E., Lenguaje literario y público en la Baja Latinidad y
en la Edad Media, tradução de Luis López Molina, Seix Barral,
Barcelona, 1966 (edição original: Literatursprache und Publikum in
der lateinischen Spätantike und im Mittelalter, 1957).
BÁEZ, F., Los primeros libros de la humanidad. El mundo antes de

la imprenta y el libro electrónico, Fórcola, Madrid, 2013.


—, Nueva historia universal de la destrucción de los libros. De las
tablillas sumerias a la era digital, Destino, Barcelona, 2011.
BAJTÍN, M., La cultura popular en la Edad Media y en el
Renacimiento. El contexto de François Rabelais, tradução de Julio
Forcat e César Conroy, Barral Editores, Barcelona, 1971 (edição
original: Tvoscerstvo Fransua Rable i narodnaja kul’tura
srednevekov’ja Renessansa, 1965).
BARBA, A., La risa caníbal. Humor, pensamiento cínico y poder,
Alpha Decay, Barcelona, 2016.
BASANTA, A., (ed.), La lectura, CSIC e Los libros de la Catarata,
Madrid, 2010.
—, Leer contra la nada, Siruela, Madrid, 2017.
BAYARD, P., Cómo hablar de los libros que no se han leído,

tradução de Albert Galvany, Anagrama, Barcelona, 2008 (edição


original: Comment parler des livres que l’on n’a pas lus?, 2007).
BEARD, M., Mujeres y poder: un manifiesto, tradução de Silvia
Furió, Crítica, Barcelona, 2018 (edição original: Women & Power,
2017).
—, SPQR. Una historia de la antigua Roma, tradução de Silvia
Furió, Crítica, Barcelona, 2016 (edição original: SPQR. A History of
Ancient Rome, 2015).
— e J. HENDERSON, El mundo clásico: Una breve introducción,
tradução de Manuel Cuesta, Alianza Editorial, Madrid, 2016 (edição
original: Classics. A Very Short Introduction, 1995).
BELTRÁN, L., Estética de la risa. Genealogía del humorismo
literario, Ficticia Editorial, México, 2016.
—, La imaginación literaria. La seriedad y la risa en la literatura
occidental, Montesinos, Barcelona, 2002.
BENJAMIN, W., Desembalo mi biblioteca. Un discurso sobre el

coleccionismo, tradução de Fernando Ortega, José J. de Olañeta


Editor, Mallorca, 2015 (edição original: Ich packe meine Bibliothek
aus. Eine Rede über das Sammeln, 1931).
—, Discursos interrumpidos I, tradução de Jesús Aguirre, Taurus,
Madrid, 1973.
BERNAL, M., Atenea negra, tradução de Teófilo de Lozoya, Crítica,
Barcelona, 1993 (edição original: Black Athena. The Afroasiatic
Roots of Classical Civilization, 1987).
BLADES, W., Los enemigos de los libros. Contra la biblioclastia, la
ignorancia y otras bibliopatías, tradução de Amelia Pérez de Villar,
Fórcola, Madrid, 2016 (edição original: The Enemies of Books,
1896).
BLOM, P., El coleccionista apasionado. Una historia íntima,
tradução de Daniel Najmías, Anagrama, Barcelona, 2013 (edição
original: To Have and to Hold, 2002).
—, Gente peligrosa. El radicalismo olvidado de la Ilustración
europea, tradução de Daniel Najmías, Anagrama, Barcelona, 2012
(edição original: A Wicked Company, 2010).
BLOOM, H., El canon occidental, tradução de Damián Alou,
Anagrama, Barcelona, 1995 (edição original: The Western Canon:
The Books and School of Ages, 1994).
BOARDMAN, J., J. GRIFFIN e O. MURRAY, Historia Oxford del mundo
clásico, vol.1, Grecia, tradução de Federico Zaragoza, Alianza
Editorial, Madrid, 1993 (edição original: The Oxford History of the
Classical World, 1986).
BROTTMAN, M., Contra la lectura, tradução de Lucía Barahona,
Blackie Books, Barcelona, 2018 (edição original: The Solitary Vice:
Against Reading, 2008).
CABALLÉ, A., Una breve historia de la misoginia, Lumen,
Barcelona, 2005.
CALVINO, I., Por qué leer los clásicos, tradução de Aurora
Bernárdez, Siruela, Madrid, 2009 (edição original: Perché leggere i
classici, 1995).
CANFORA, L., Conservazione e perdita dei classici, Stilo, Bari,
2016.
—, La biblioteca desaparecida, tradução de Xilberto Llano
Caelles, Ediciones Trea, Gijón, 1998 (edição original: La biblioteca
scomparsa, 1990).
CANTARELLA, E., Pasado próximo. Mujeres romanas de Tácita a
Sulpicia, tradução de Isabel Núñez, Ediciones Cátedra, Universitat
de València e Instituto de la Mujer, Madrid, 1997 (edição original:
Passato prossimo: donne romane da Tacita a Sulpicia, 1996).
—, La calamidad ambigua: condición e imagen de la mujer en la
antigüedad griega y romana, tradução de Andrés Pociña, Ediciones
Clásicas, Madrid, 1991 (edição original: L’ambiguo malanno. La
donna nell’antichità greca e romana, 1981).
CARRÈRE, E., El Reino, tradução de Jaime Zulaika, Anagrama,
Barcelona, 2015 (edição original: Le Royaume, 2014).
CARRIÓN, J., Librerías, Anagrama, Barcelona, 2014.
CARSON, A., Eros. Poética del deseo, tradução de Inmaculada C.

Pérez Parra, Dioptrías, Madrid, 2015 (edição original: Eros the


Bittersweet, 1986).
CASSON, L., Las bibliotecas del mundo antiguo, tradução de María
José Aubet, Bellaterra, Barcelona, 2003 (edição original: Libraries in
the Ancient World, 2001).
CAVALLO, G. e R. CHARTIER (eds.), Historia de la lectura en el
mundo occidental, tradução de María Barberán e Mari Pepa
Palomero, Taurus, Madrid, 2001 (edição original: Histoire de la
lecture dans le monde occidental, 1997).
CERVELLÓ, J., Escrituras, lengua y cultura en el antiguo Egipto,
Ediciones UAB, coleção El espejo y la lámpara, Barcelona, 2016.
CITRONI, M., Poesia e lettori in Roma antica, Ediciones Laterza,
Roma-Bari, 1995.
CLAYTON, E., La historia de la escritura, tradução de María
Condor, Siruela, Madrid, 2015 (edição original: The Golden Thread.
The Story of Writing, 2013).
COETZEE, J. M., Costas extrañas. Ensayos 1986-1999, tradução
de Pedro Tena, Debate, Barcelona, 2004 (edição original: Stranger
Shores, 2001).
CRIBIORE, R., Gymnastics of the Mind: Greek Education in

Hellenistic and Roman Egypt, Princeton University Press, Princeton,


2001.
DE LA FUENTE, I., El exilio interior. La vida de María Moliner, Turner,
Madrid, 2011.
DZIELSKA, M., Hipatia de Alejandría, tradução de José Luis López
Muñoz, Siruela, Madrid, 2009 (edição original: Hypatia of Alexandria,
1995).
EAGLETON, T., Cómo leer literatura, tradução de Albert Vitó i
Godina, Península, Barcelona, 2016 (edição original: How to Read
Literature, 2013).
EASTERLING, P. E. e B. M. W. KNOX (eds.), Historia de la literatura
clásica. Cambridge University. 1. Literatura griega, tradução de
Federico Zaragoza Alberich, Gredos, Madrid, 1990 (edição original:
The Cambridge History of Classical Literature. 1. Greek Literature,
1985).
ECO, U., El vértigo de las listas, Lumen, Barcelona, 2009 (edição
original: Vertigine della lista, 2009).
— e J.-C. CARRIÈRE, Nadie acabará con los libros. Entrevistas
realizadas por Jean-Philippe de Tonnac, tradução de Helena Lozano
Miralles, Lumen, Barcelona, 2010 (edição original: N’espérez pas
vous débarraser des livres, 2009).
ESCOLAR, H., Manual de historia del libro, Gredos, Madrid, 2000.
ESTEBAN, Á., El escritor en su paraíso, Periférica, Cáceres, 2014.
FRÄNKEL, H., Poesía y filosofía de la Grecia arcaica, tradução de
Ricardo Sánchez Ortiz, Visor, Madrid, 1993 (edição original:
Dichtung und Philosophie des frühen Griechentums, 1962).
GARCÍA GUAL, C., La muerte de los héroes, Turner, Madrid, 2016.
—, Los siete sabios (y tres más), Alianza Editorial, Madrid, 2007.
GENTILI, B., Poesía y público en la Grecia antigua, tradução de
Xavier Riu, Quaderns Crema, Barcelona, 1996 (edição original:
Poesia e pubblico nella Grecia antica, 1984).
GIL, L., Censura en el mundo antiguo, Alianza Editorial, Madrid,
2007.
GÓMEZ ESPELOSÍN, F. J. e A. Guzmán Guerra, Alejandro Magno,
Alianza Editorial, Madrid, 2005.
GREENBLATT, S., El giro. De cómo un manuscrito olvidado
contribuyó a crear el mundo moderno, tradução de Juan Rabaseda
e Teófilo de Lozoya, Crítica, Barcelona, 2014 (edição original: The
Swerve. How the World Became Modern, 2011).
HARARI, Y. N., Sapiens: de animales a dioses. Una breve historia

de la humanidad, tradução de Joandomènec Ros, Debate, Madrid,


2014 (edição original: Sapiens: A Brief History of Humankind, 2011).
HARRIS, W. V., Ancient Literacy, Harvard University Press,
Cambridge (Massachusetts) e Londres, 1989.
HAVELOCK, E. A., La musa aprende a escribir. Reflexiones sobre
oralidad y escritura desde la Antigüedad hasta el presente, tradução
de Luis Bredlow Wenda, Paidós, Barcelona, 1996 (edição original:
The Muse Learns to Write, 1986).
—, Prefacio a Platón, tradução de Ramón Buenaventura, Visor,
Madrid, 1994 (edição original: Preface to Plato, 1963).
HOUSTON, K., The Book: A Cover-to-Cover Exploration of the Most
Powerful Object of Our Time, W. W. Norton & Company, Londres,
2016.
HUSTVEDT, S., Vivir, pensar, mirar, tradução de Cecilia Ceriani,
Anagrama, Barcelona, 2013 (edição original: Living, Thinking,
Looking, 2012).
JANÉS, C., Guardar la casa y cerrar la boca. En torno a la mujer y
la literatura, Siruela, Madrid, 2015.
JENKYNS, R., Un paseo por la literatura de Grecia y Roma,
tradução de Silvia Furió, Crítica, Barcelona, 2015 (edição original:
Classical Literature, 2015).
JULLIEN, F., De lo universal, de lo uniforme, de lo común y del
diálogo entre las culturas, tradução de Tomás Fernández e Beatriz
Eguibar, Siruela, Madrid, 2010 (edição original: De l’universel, de
l’uniforme, du commun et du dialogue entre les cultures, 2008).
—, La identidad cultural no existe, tradução de Pablo Cuartas,
Taurus, Barcelona, 2017 (edição original: Il n’y a pas d’identité
culturelle, 2016).
KAPUśCIńSKI, R., Viajes con Heródoto, tradução de Agata

Orzeszek, Anagrama, Barcelona, 2006 (edição original: Podróze z


Herodotom, 2004).
LAÍN ENTRALGO, P., La curación por la palabra en la antigüedad

clásica, Anthropos, Barcelona, 2005.


LANDA, J., Canon City, Afínita, México, 2010.
LANDERO, L., El balcón en invierno, Tusquets, Barcelona, 2014.

—, Entre líneas: el cuento o la vida, Tusquets, Barcelona, 2001.


LANE FOX, R., Alejandro Magno. Conquistador del mundo,

tradução de Maite Solana Mir, Acantilado, Barcelona 2007 (edição


original: Alexander the Great, 1973).
LEVINAS, E., Totalidad e infinito. Ensayo sobre la exterioridad,
tradução de Daniel E. Guillot, Ediciones Sígueme, Salamanca, 2006
(edição original: Totalité et infini, 1971).
LEWIS, N., Papyrus in Classical Antiquity, Clarendon Press,
Oxford, 1974.
LLEDÓ, E., Los libros y la libertad, RBA, Barcelona, 2013.

—, El silencio de la escritura, Austral, Barcelona, 2015.


—, Sobre la educación, Taurus, Barcelona, 2018.
LÓPEZ, A., No solo hilaron lana. Escritoras romanas en prosa y en

verso, Ediciones Clásicas, Madrid, 1994.


LORAUX, N., Los hijos de Atenea: Ideas atenienses sobre la

ciudadanía y la división de sexos, tradução de Montserrat Jufresa


Muñoz, Acantilado, Barcelona, 2017 (edição original: Les enfants
d’Athéna. Idées athéniennes sur la citoyenneté et la division des
sexes, 1981).
LORD, A. B., The Singer Resumes the Tale, Cornell University
Press, Ithaca e Londres, 1995.
MADRID, M., La misoginia en Grecia, Cátedra, Madrid, 1999.

MANGUEL, A., Una historia de la lectura, tradução de José Luis


López Muñoz, Alianza Editorial, Madrid, 2002 (edição original: A
History of Reading, 1996).
MARCHAMALO, J., Tocar los libros, Fórcola, Madrid, 2016.

MARROU, H.-I., Historia de la educación en la Antigüedad,


tradução de Yago Barja de Quiroga, Akal, Madrid, 2004 (edição
original: Histoire de l’éducation dans l’Antiquité, 1948).
MARTINO, G. e M. BRUZZESE, Las filósofas: Las mujeres
protagonistas en la historia del pensamiento, tradução de Mercè
Otero Vidal, Cátedra, Madrid, 1996 (edição original: Le filosofe. Le
donne protagonista nella storia del pensiero, 1994).
MÉNAGE, G., Historia de las mujeres filósofas, tradução de Mónica
Poole, Cátedra, Madrid, 2000 (edição original: Historia mulierum
philosopharum, 1690).
MORSON, G. S. e M. SCHAPIRO, Cents and Sensibility. What

Economics Can Learn from the Humanities, Princeton University


Press, Princeton, 2017.
MOVELLÁN, M. e J. PIQUERO (eds.), Los pasos perdidos. Viajes y

viajeros en la Antigüedad, Abada, Madrid, 2017.


MUÑOZ PÁEZ, A., Sabias, Debate, Barcelona, 2017.
MURRAY, S. A. P., Bibliotecas. Una historia ilustrada, tradução de

J. M. Parra Ortiz, La Esfera de los Libros, Madrid, 2014 (edição


original: The Library. An Illustrated History, 2009).
NIXEY, C., La edad de la penumbra. Cómo el cristianismo

destruyó el mundo clásico, tradução de Ramón González Férriz,


Taurus, Barcelona, 2018 (edição original: The Darkening Age, 2017).
ORDINE, N., Clásicos para la vida, tradução de Jordi Bayod Brau,

Acantilado, Barcelona, 2017 (edição original: Classici per la vita,


2017).
OTRANTO, R., Antiche liste di libri su papiro, Edizioni di Storia e

Letteratura, Roma, 2000.


PADRÓ, J., Historia del Egipto faraónico, Alianza Universidad,

Madrid, 1999.
PASCUAL, C., F. PUCHE e A. RIVERO, Memoria de la librería, Trama
Editorial, Madrid, 2012.
PENNAC, D., Como una novela, tradução de Joaquín Jordá,
Anagrama, Barcelona, 1993 (edição original: Comme un roman,
1992).
PFEIFFER, R., Historia de la filología clásica. De los comienzos
hasta el final de la época helenística, tradução de Justo Vicuña e
M.ª Rosa La fuente, Gredos, Madrid, 1981 (edição original: History
of Classical Scholarship. From the Beginnings to the End of the
Hellenistic Age, 1968).
PINKER, S., En defensa de la Ilustración. Por la razón, la ciencia,

el humanismo y el progreso, tradução de Pablo Hermida Lazcano,


Paidós, Barcelona, 2018 (edição original: Enlightment Now, 2018).
POPPER, K. R., La sociedad abierta y sus enemigos, tradução de

Eduardo Loedel Rodríguez, Paidós, Barcelona, 2010 (edição


original: The Open Society and Its Enemies, 1945).
QUIGNARD, P., El sexo y el espanto, tradução de Ana Becciú,

Minúscula, Barcelona, 2014 (edição original: Le sexe et l’effroi,


1994).
RADER, O. B., Tumba y poder. El culto político a los muertos

desde Alejandro Magno hasta Lenin, tradução de María Condor,


Siruela, Madrid, 2006 (edição original: Grab und Herrschaft.
Politischer Totenkult von Alexander dem Großen bis Lenin, 2003).
REYNOLDS, L. D. e N. G. WILSON, Copistas y filólogos, tradução de
Manuel Sánchez Mariana, Gredos, Madrid, 1995 (edição original:
Scribes and Scholars, 1974).
ROBERTS, C. H. e T. C. SKEAT, The Birth of the Codex, Cambridge
University Press, Cambridge, 1987.
ROBINSON, M., Cuando era niña me gustaba leer, tradução de
Vicente Campos González, Galaxia Gutenberg, Barcelona, 2017
(edição original: When I Was a Child I Read Books, 2012).
RUIZ GARCÍA, E., Introducción a la codicología, Fundación Germán
Sánchez Ruipérez, coleção Biblioteca del libro, Madrid, 2002.
SÁNCHEZ VIDAL, A., La especie simbólica, Universidad Pública de

Navarra, Cátedra Jorge Oteiza, Pamplona, 2011.


SAUNDERS, N. J., Alejandro Magno: El destino final de un héroe,
tradução de Emma Fondevila, Círculo de Lectores, Barcelona, 2010
(edição original: Alexander’s Tomb: The Two-Thousand Year
Obsession to Find the Lost Conquerer, 2007).
SCUCCIMARRA, L., Los confines del mundo. Historia del

cosmopolitismo desde la Antigüedad hasta el siglo XVIII, tradução


de Roger Campione, KRK Ediciones, Oviedo, 2017 (edição original:
I confini del mondo. Storia del cosmopolitismo dall’Antichità al
Settecento, 2006).
SOLANA DUESO, J., Aspasia de Mileto. Testimonios y discursos,
Anthropos, Barcelona, 1994.
—, Aspasia de Mileto y la emancipación de las mujeres, Amazon
e-Book, 2014.
STEINER, G., La idea de Europa, tradução de María Condor,

Siruela, Madrid, 2005 (edição original: The Idea of Europe. An


Essay, 2004).
STRATEN, G., Historia de los libros perdidos, tradução de María

Pons, Pasado & Presente Ediciones, Barcelona, 2016 (edição


original: Storie di libri perduti, 2016).
SULLIVAN, J. P., Martial: The Unexpected Classic, Cambridge

University Press, Cambridge, 2004.


TODOROV, T., La literatura en peligro, tradução de Noemí

Sobregués, Galaxia Gutenberg, Barcelona, 2009 (edição original: La


Littérature en péril, 2007).
TONNER, J., Sesenta millones de romanos. La cultura del pueblo

en la antigua Roma, tradução de Luis Noriega, Crítica, Barcelona,


2012 (edição original: Popular Culture in Ancient Rome, 2009).
TURNER, E. G., Greek Papyri: An Introduction, Clarendon Press,

Oxford, 1980.
VALCÁRCEL, A., Sexo y filosofía. Sobre «mujer» y «poder», Horas y
Horas, Madrid, 2013.
VEYNE, P., Sexo y poder en Roma, tradução de María José Furió,

Paidós, Barcelona, 2010 (edição original: Sexe et pouvoir à Rome,


2005).
WATSON, P., Ideas, historia intelectual de la humanidad, tradução

de Luis Noriega, Crítica, Barcelona 2006 (edição original: Ideas: A


History of Thought and Invention, from Fire to Freud, 2006).
ZAFRA, R., El entusiasmo. Precariedad y trabajo creativo en la era

digital, Anagrama, Barcelona, 2017.


ZAID, G., Los demasiados libros, Debolsillo, Barcelona, 2010.

ZAMBRANO, M., La agonía de Europa, Trotta, Madrid, 2000.


ZGUSTOVA, M., Vestidas para un baile en la nieve, Galaxia
Gutenberg, Barcelona, 2017.

Você também pode gostar