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© Ivan Giménez

ALMUDENA GRANDES nasceu em 1960, em Madrid. O seu


primeiro livro, Las Edades de Lulú, foi aclamado e premiado
pela crítica. Posteriormente, romances como Te Llamaré
Viernes, Los Aires Difíciles e Besos en el Pan converteram-na
numa das mais consolidadas e importantes autoras da literatura
espanhola atual.
Em 2010, publicou Inés y la Alegria, o primeiro de uma série
intitulada «Episodios de Una Guerra Interminable», que
continuou com El Lector de Julio Verne (2012), Las Tres Bodas
de Manolita (2014) e Os Doentes do Doutor García (2017),
galardoado no ano seguinte com o Prémio Nacional de
Narrativa e o Prémio Liber, e publicado agora em Portugal pela
Porto Editora.
Os Doentes do Doutor García
Almudena Grandes
Publicado em Portugal por
Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Lisboa
Email: dellisboa@portoeditora.pt
Título original:
Los Pacientes del Doctor García
© Almudena Grandes, 2017
Published by agreement with Tusquets Editores, Barcelona

Tradução: Helena Pitta

Design da capa: Manuel Pessoa


Imagem da capa: Luis Zori Martínez, na zona da igreja de San
José, na calle de Alcalá, em Madrid,
descendo a partir da Gran Vía (1953). © Luis Zori Martínez

1.ª edição em papel: agosto de 2020

Rua da Restauração, 365


4099-023 Porto
Portugal

www.portoeditora.pt

ISBN 978-972-0-67975-8
Para o Luis.
Outra vez, e nunca serão bastantes
Hoje, quando da tua terra já não necessitas,
Ainda nestes livros te é querida e necessária,
Mais real e entressonhada que a outra;
Não essa, mas aquela é hoje a tua terra.
A que Galdós a conhecer te dera,
Como ele tolerante de lealdade contrária,
Segundo a tradição generosa de Cervantes,
Heroica vivendo, heroica lutando
Pelo futuro que era o seu,
Não pelo sinistro passado aonde à outra voltaram.

A real para ti não é essa Espanha obscena e


deprimente
Onde rege hoje a canalha,
Mas esta Espanha viva e sempre nobre
Que Galdós nos seus livros criou.
Daquela nos consola e cura esta.

Luis Cernuda, «Díptico español»,


Desolación de la Quimera (1956-1962)
De todas as histórias da História
a mais triste é sem dúvida a de Espanha,
porque acaba mal.

Jaime Gil de Biedma, «Apología y petición»,


Moralidades (1966)
MADRID, 30 DE MARÇO DE 1947

No último domingo de março de 1947 fui encontrar-me com uma


mulher que conhecia a minha verdadeira identidade.
– Mostre lá, mostre lá. – A porteira saiu do seu cubículo para me
observar de cima a baixo. – O que estreou hoje, don Rafael?
– Nada, Benigna. Os tempos não estão para estreias.
– E eu que o diga, mas… – Rebuscou no avental e mostrou-me
um laço minúsculo, tecido com tiras de folha de palma. – Mas isto
aceita, não aceita? Assim, pelo menos, não ficará maneta.
Domingo de Ramos, caem as mãos a quem não usar uma coisa
nova. Depois de dois anos de seca, com tantos dias de sol radiante
em céus tão azuis que pareciam acabados de pintar, a manhã
prometia mais tristeza do que chuva. Estava frio. As crianças que
cumpriam a tradição caminhavam encolhidas, a tiritar dentro das
meias de algodão, das saias leves e dos calções primaveris que
pareciam arrancá-las do inverno por onde transitavam os adultos,
com gabardinas, chapéus e luvas, a que se agarravam as mãos
nuas das crianças vestidas de verão. Para equilibrar a desgraça, na
outra mão levavam palmas transformadas em flores, laços e fitas
coloridas, o modelo que inspirara a miniatura que Benigna me enfiou
no bolso do casaco. As crianças mais desgraçadas, mais bem
agasalhadas porque não tinham nada para estrear, olhavam-nas
com inveja.
Ao chegar à plaza de las Salesas entrei num bar, quase vazio
entre as missas, pedi um café e sentei-me de costas para o
empregado, observando a porta da igreja de Santa Bárbara através
de uma montra pintada com letras brancas. Assim, entre as duas
metades de um letreiro que prometia as melhores sandes de
calamares de Madrid, vi sair a cabeça da procissão. Uma escolta de
acólitos, munidos de grandes palmas douradas ou de pequenos
incensários de metal, rodeava a meia dúzia de sacerdotes cobertos
com casulas bordadas cujas cores estabeleciam uma hierarquia que
eu não conseguia interpretar. Enquanto desciam a escadaria,
marcando o passo lento, solene, que os fiéis amontoados atrás
seguiriam, paguei o café e atravessei a praça. Quando cheguei
perto do gradeamento, o Santíssimo ainda não tinha descido para a
rua.
Estava tanta gente, tantas palmas, gabardinas, chapéus e
mulheres de todas as idades de cabeça coberta, que receei não me
ser fácil descobri-la. Foi então que a vi, loura como não voltara a ser
desde os doze anos, com o cabelo ainda mais dourado do que na
época em que emanava o aroma intenso a infusão de camomila que
primeiro me impressionou nela. No geral, não tinha mudado muito. À
medida que se aproximava, verifiquei que continuava a ser
igualmente bonita, mais de longe do que de perto. Apesar dos
tempos, e de nenhum homem a acompanhar, continuava a vestir-se
para agradar, com o corpo imponente num conjunto saia-casaco
demasiado justo para os cânones recatados da Vitória, e o rosto
vulgar de camponesa, largo e carnudo, que a sua elegância nunca
conseguira alterar. O enfeite delicado de renda preta, antiga, do véu
que lhe cobria a cabeça favorecia-a, porque realçava o contraste
violento das sobrancelhas escuras com o louro do cabelo, uma
infração suspeita, de mulher de cabaré camuflada, que a maior
parte das mulheres da sua classe social não se teriam permitido.
Mas ela não era qualquer uma, era Amparo Priego Martínez, e a
ousadia que a definia emocionou-me mais do que imaginei. Vivemos
demasiadas coisas juntos, demasiado tempo, para eu conseguir sair
incólume daquele encontro. Por isso, nem me atrevi a olhar para o
menino que ela trazia pela mão.
Deixei-a passar, como se abordá-la pelas costas me fosse mais
fácil, e verifiquei que não tinha vindo sozinha à missa. Ladeavam-na
duas mulheres, outras crianças, e ela não poderia ter desejado uma
companhia mais inofensiva, mas isso bastou para me fazer
fraquejar. Por instantes, interroguei-me sobre o que fazia ali e
cheguei mesmo a ponderar desistir de tudo, dar meia-volta e
regressar imediatamente a casa. Esta debilidade só durou um
minuto. Logo depois, abri caminho por entre as gabardinas e os
véus, alcancei-a e agarrei-a pelo cotovelo.
– Bom dia.
Não disse mais, não foi preciso. Estas duas palavras operaram
uma transformação radical naquele rosto esmagadoramente loução,
de bochechas fofas, rosadas, de que tantas vezes a ouvira queixar-
se. Se naquele momento ela pudesse ver-se ao espelho, teria
contemplado uma versão de si que talvez lhe agradasse mais, com
a pele pálida como uma máscara de cera, tensa e subitamente
delicada, frágil no ligeiro tremor dos lábios, no brilho húmido dos
olhos muito abertos.
– Guillermo… – sussurrou o meu nome num murmúrio quase
impercetível, olhando para a direita e para a esquerda, para ver se
as amigas, indiferentes ao nosso encontro, continuavam a cantar no
falsete estridente que as beatas espanholas associavam à devoção.
– O que fazes aqui?
– O que hei de fazer? O mesmo que tu… – disse num tom neutro
de quem faz conversa, e elas voltaram a cabeça, olharam para mim,
adiantaram-se um pouco, continuaram a cantar. – Honro o Dia do
Senhor.
Aquele comentário, apesar de tudo, fê-la sorrir e tranquilizou-a,
encorajando-a a continuar a marcha. Postei-me à sua esquerda,
como se só quisesse celebrar o Domingo de Ramos ao seu lado, e
durante alguns segundos aspirei em silêncio o seu odor, uma
combinação exata de perfume e de suor que me excitou muito mais
o olfato. Fechei os olhos e pareceu-me mentira estar ali, tão perto
de Amparo, mantendo a distância cautelosa dos desconhecidos,
mas ela encarregou-se imediatamente de desfazer qualquer
equívoco.
– Vai-te embora. – Ao olhar para ela não lhe encontrei os olhos,
fixos na extremidade dourada da custódia que abria a procissão. –
Desaparece, já, agora mesmo.
– Imediatamente – garanti-lhe, usando o mesmo murmúrio com
que ela se dirigira a mim. – Só vim para combinar contigo. Temos de
falar.
– Não me parece.
– Mas eu julgo que te enganas. Convém-te falar comigo, agora a
sério. – Finalmente voltou-se, olhou para mim. – Sei que continuas a
viver no bairro de Salamanca, no número 45 da calle Ayala. Amanhã
à tarde parece-te bem? Estarei lá por volta das seis.
Nunca chegou a recusar, nem a dizer que sim. Antes de
conseguir abrir a boca, senti que me puxavam pela manga da
gabardina.
– Senhor! – Era a mão de uma miúda, com cabelos louros de
camomila, vestida e penteada como uma boneca de cinco anos, tão
parecida com Amparo em criança que achei que fosse filha dela. –
Oiça, senhor! – insistiu com tanto empenho que todos os caracóis
da cabeça se moveram ao mesmo tempo. – Isso que leva aí é muito
bonito. Dá-mo?
– Asun! – Amparo voltou-se rapidamente, e senti que o corpo
dela relaxava, deixando escapar a tensão que o mantinha rígido
como uma estátua no suspiro que precedeu um ralhete excessivo
para tão pouca culpa. – Quantas vezes teremos de dizer que não se
pede? Vou contar à tua mãe.
Ainda me lembrava de tudo e também de que a sua irmã mais
velha se chamava Asunción. Aquela menina, que devia ser filha
dela, encolheu os ombros e continuou de mão estendida na minha
direção, com tanto descaramento que me fez rir. E enquanto tirava
do bolso, com cuidado, o presente de Benigna, a cabeça pequena,
morena, do menino que eu evitara conscienciosamente ao longo
daquele trajeto espreitou do outro lado do corpo da mãe.
– Queres? – Tentei não olhar para ele enquanto a própria
imagem da avidez assentia com a cabeça. – Toma, para ti, porque
tu… – e o coração saltou-me no peito quando me voltei para ele –
és muito grande para estas coisas, não é verdade? Com oito anos…
– Como sabe que tenho oito anos? – Alto para a idade, magro,
tinha a cara comprida, o cabelo escuro, fosco, e prometia
transformar-se num homem de sobrancelhas grossas, nariz reto,
mais para o comprido, suficiente para segurar os óculos que
corrigiriam uma miopia precoce, e muito pouco parecido com a
única família materna que eu conhecera.
– Porque sou muito esperto – sorri e ele, como se quisesse
contrariar as minhas conjeturas, devolveu-me o sorriso da mãe. –
Sei que os fizeste em setembro, que vives na calle Ayala, que és
filho da Amparo, e sei…
Conhecia-a tão bem que não precisei de olhar para ela para lhe
cheirar o medo e adivinhei o ressurgimento da palidez antes de a
ver. Conhecia-a tão bem que antecipei a sua precipitação e rudeza,
a pressa com que me interrompeu quando eu estava prestes a
acrescentar, apenas, que sabia que o filho gostava de jogar futebol
porque tinha crostas nos dois joelhos. O que não teria podido
adivinhar eram as palavras que me fez chegar ao ouvido, cravando-
me as unhas no antebraço com tanta força que me feriram.
– Já não se chama Guillermo.
Aquela frase também me feriu. Tinha cumprido a minha missão e
não precisava de ficar ali nem mais um minuto, mas ainda tinha que
fazer. Antes de me ir embora, dei o laço à menina, acenei para me
despedir do menino e aproximei a boca do ouvido da mãe.
– Eu também não.
Avancei alguns passos e voltei-me, confirmando que a Amparo
continuava a olhar para mim, imóvel como um poste, dividindo em
dois a torrente de fiéis que carregavam as palmas. E então
apareceu o sol. Teria sido uma bela imagem de despedida a que
ainda não me podia permitir.
No último domingo de março de 1947, fui encontrar-me com uma
mulher que conhecia a minha verdadeira identidade. A Amparo
sabia que eu não me chamava Rafael Cuesta Sánchez, mas
Guillermo García Medina. E que era médico, embora já não tivesse
diploma académico e trabalhasse numa empresa de transportes.
O que ignorava é que tinha ido procurá-la para ajudar o Manuel
Arroyo Benítez, um amigo que roubara a identidade de Adrián
Gallardo Ortega para se infiltrar numa organização de fugitivos nazis
e emigrar para a Argentina como se fosse um deles.
Enquanto isso, o verdadeiro Adrián Gallardo mendigava em
Berlim e, quando era parado pela polícia, mostrava a documentação
de um homem chamado Alfonso Navarro López.
A minha história é a história de três impostores.
I

Hospital de sangue
É 25 DE JULHO DE 1936 E JOHANNES BERNHARDT ESTÁ EM BAYREUTH.
O compositor Richard Wagner, a quem esta pequena cidade do
Leste da Alemanha deve a sua fama universal, tem muito que ver
com a visita de Bernhardt. De facto, o carro que o trouxe de
Munique detém-se justamente diante da fachada de Wahnfried, a
bela villa que o músico aqui construiu graças ao patrocínio do Rei
Louco, Luís II da Baviera.
Em 1936, a proprietária de Wahnfried é Winifred Wagner, viúva e
herdeira de Siegfried, único filho varão do compositor, cujo corpo lhe
deu quatro filhos antes de a alma se entregar a outro amor. O
acontecimento mais importante da sua vida dá-se em 1923, quando
um jovem enérgico de trinta e quatro anos se apresenta à família
Wagner, depois de assistir a um espetáculo do Festival de Bayreuth.
É o líder do Partido Nacional-Socialista Operário Alemão, mas o
motivo da sua visita não é político. Está convencido de que não
existe obra comparável à de Richard em toda a história da música e
quer manifestar o seu fervor aos herdeiros do compositor. Em
segundo plano, a jovem esposa de vinte e seis anos assiste a esta
declaração apaixonada que lhe inspira uma paixão ainda mais
desmedida. Desde esse momento, Winifred vive exclusivamente por
e para Adolf Hitler.
Durante mais de uma década, a amizade íntima do Führer com
Winifred Wagner faz circular na Alemanha todo o tipo de rumores.
Johannes Bernhardt conhece-os decerto, e a sua ignorância acerca
da percentagem de verdade que terão talvez lhe aumente o
nervosismo, na antessala onde espera pela chegada do casal, que
assiste nesse momento a uma representação impecável de
Siegfried. Dali não se ouve a orquestra, as vozes dos intérpretes
que conseguiram arrancar Hitler de Berlim, trazendo-o uma vez
mais ao Festival de Bayreuth e à hospitalidade amorosa de Frau
Wagner. Johannes Bernhardt fez uma viagem muito mais longa para
estar ali.
Até à manhã de 23 de julho de 1936, a trajetória deste
empresário alemão de trinta e nove anos é uma sucessão anódina
de fracassos. Sem perspetivas no seu país, na primeira metade dos
anos trinta, emigra para Espanha, mas também não tem sorte na
Península. Vai procurá-la no Protetorado espanhol de Marrocos e
fixa residência em Tetuão, onde não consegue nada melhor do que
um emprego numa empresa alemã de importação e exportação.
Mas Bernhardt, membro veterano do Partido Nazi, opera também
em Tetuão como o homem da AO – Auslandsorganisation der
NSDAP –, a organização exterior do seu partido, mantendo
excelentes relações com o marechal Hermann Göring. Assim, a 17
de julho de 1936, a sublevação do exército espanhol em Marrocos
oferece-lhe a oportunidade que procurou durante anos com muito
esforço e pouco sucesso.
Bernhardt apressa-se a entrar em contacto com os militares
rebeldes. Não é, longe disso, o único nazi a viver em Espanha, nem
sequer o único de Marrocos espanhol, mas é o mais rápido, o mais
audacioso, aquele que, por isso, obterá o favor da fortuna. Sem
outros argumentos, sem nenhuma garantia além da sua própria
veemência, oferece-se como intermediário entre os militares
golpistas e o próprio Führer, e essa bazófia mudar-lhe-á a vida para
sempre.
O primeiro golpe de sorte de Bernhardt reside no facto de o
comandante militar das Canárias ser, justamente, Francisco Franco.
O segundo no facto de este aceder a reunir-se com ele em Tetuão
na manhã de 23 de julho, apesar de não ser, nem de perto, o
principal cabecilha de uma rebelião dirigida pelo general Mola, por
delegação do general Sanjurjo – chefe supremo dos rebeldes, morto
num acidente de avião três dias antes. O terceiro é encontrar um
avião da Lufthansa disponível e convencer o piloto, Alfred Henke, a
levá-lo a Berlim com o chefe do Partido Nazi no Protetorado, Adolf
Langenheim, e o capitão de aviação Francisco Arranz Monasterio,
chefe das forças aéreas sublevadas em Marrocos. Uma vez
completa a tripulação, os membros tiram uma fotografia diante do
aparelho com que vão atravessar meia Europa. Nela, Bernhardt
posa com um sorriso e com um envelope na mão.
A partir desse momento, a sorte, outrora esquiva, alia-se
descaradamente a ele. Às cinco da tarde do próprio dia 23, o
Junkers JU-52 descola do aeródromo de Tetuão rumo a Sevilha,
onde Henke arrisca uma aterragem perigosa porque a pista de
Tablada carece de luzes de sinalização e o motor do aparelho está
com uma avaria. Reparada no próprio aeródromo, prossegue o voo
até Marselha, onde se previa o reabastecimento de combustível. Os
franceses exigem o pagamento em francos, Bernhardt e os
companheiros não conseguem cambiar dinheiro, parece que a
viagem termina ali, mas também esses problemas se resolvem,
novamente por milagre, conseguindo eles prosseguir até Estugarda,
apesar de Henke, inicialmente, se recusar a aterrar em solo alemão
com receio das represálias que a Lufthansa pudesse exercer contra
ele, um piloto civil que saiu da base sem autorização. De Estugarda,
o voo até à capital da Alemanha é um passeio.
Rudolf Hess, responsável máximo do NSDAP em Berlim na
ausência de Hitler, recebe Bernhardt – autoproclamado chefe da
expedição apesar de Langenheim ter um posto superior no Partido –
e decide apoiar a causa. Oferece aos recém-chegados a sua
avioneta particular e acompanha-os a Munique, onde os aguarda
um carro que os deixa em Wahnfried ao cair da tarde do dia 25 de
julho, enquanto Adolf Hitler desfruta da música de Wagner no
camarote da sua amiga Winifred.
Ela organizou uma pequena receção para o convidado, mas o
Führer está mais interessado na carta que Bernhardt lhe traz de
Tetuão. Escrita à mão pelo próprio Franco, o conteúdo não
ultrapassa meia folha, deixando espaço livre para a tradução. No
entanto, o portador, que se deu ao trabalho de a copiar, nunca a
verteu por escrito para alemão. No momento culminante da sua
existência, preferiu ler diretamente na sua língua materna estas
palavras de Francisco Franco.

Excelência,
O nosso movimento nacional e militar tem como obje vo a luta
contra a democracia corrupta no nosso país e contra as forças
destru vas do comunismo, organizadas sob o comando da Rússia.
Permito-me dirigir-me a V. Ex.ª através desta carta, que lhe será
entregue por dois senhores alemães que par lham connosco os
trágicos acontecimentos atuais.
Todos os bons espanhóis decidiram firmemente começar esta
grande luta, para o bem de Espanha e da Europa.
Existem severas dificuldades em transportar rapidamente para a
Península as experientes forças militares de Marrocos, por falta de
lealdade da Marinha de Guerra Espanhola.
Na minha qualidade de chefe supremo destas forças, rogo a V.
Ex.ª que me facilite os seguintes meios de transporte aéreo:
10 aviões de transporte com a maior capacidade possível; além
disso solicito:
20 peças an aéreas de 20 mm.
6 aviões de caça Heinkel.
A maior quan dade possível de metralhadoras e de espingardas
com as suas munições em abundância.
Também bombas aéreas de vários pos, até 500 kg.

Excelência,
Espanha cumpriu em toda a sua história os seus compromissos.

Juntamente com esta carta, Bernhardt entrega a Hitler um


esboço da situação da guerra, também desenhado à mão por
Franco. O Führer, bastante impressionado, guarda ambos os
documentos.
No dia seguinte, ordena que sejam transferidos para Espanha
não dez, mas vinte aviões de transporte com tripulações completas
e todo o material bélico que conseguem transportar.
Ao longo da semana seguinte, esses vinte Junkers alemães
transportam, de Marrocos para Sevilha, cerca de quinze mil
soldados.
Francisco Franco nunca esquecerá o favor que Johannes
Bernhardt lhe fez.
MADRID, 19 DE NOVEMBRO DE 1936

A verdadeira matança começou no dia 16. Na Puerta del Sol,


uma bomba alemã de quinhentos quilos abriu uma cratera que
deixou à mostra os carris do metro, semeados de cadáveres. Desde
então e até o meu chefe me mandar ir para casa dormir, os
bombardeamentos não cessaram, nem de dia, nem de noite.
– Só te quero ver aqui às oito e meia – anunciou, e quando eu
estava prestes a replicar, levantou a mão. – Vai para casa e mete-te
na cama. É uma ordem.
Às duas da manhã de 19 de novembro de 1936, estava no
hospital de San Carlos há quase quarenta e duas horas. Dormi um
pouco num catre do serviço de urgência e bebi litros de café. O
resto foi um inferno.
Quando despi a bata húmida e suja, repleta de manchas de
sangue de muitas pessoas, havia já perdido as contas. Não saberia
calcular quantos membros tinha amputado, quantas feridas tinha
cosido, quantas vezes fora obrigado a escolher entre dois corpos
destroçados, oferecendo a vida a um – vamos lá, acho que esta
conseguimos recuperar – e dando a morte ao outro – a este
deixamo-lo, não há nada a fazer. – No fim, já nem sequer me
lembrava de baixar a voz antes de emitir o veredito.
Estava tão cansado que não chegava a sentir o meu próprio
esgotamento, mas não tinha sono. Sentia-me misteriosamente
acordado, como se me tivessem nascido alguns sentidos, capazes
de superar o nervosismo anterior e de me mergulhar numa vigília
insana e amarela. Os meus olhos viam um brilho apagado,
insuportável, a rodear os contornos de todas as coisas, os meus
ouvidos escutavam um eco em cada som, os meus pés andavam
sobre o chão como se flutuassem, como se nadassem num tanque
de água turva, entre vapores quentes. Tudo era, ao mesmo tempo,
lento e frenético, enquanto continuavam a chegar corpos e mais
corpos, e outros corpos destroçados, com os donos por vezes
conscientes, por vezes não, e quase todos a chorar, a gritar, a
gemer; alguns limitavam-se a olhar em volta em silêncio, com os
olhos muito abertos. Esses eram os piores porque pressentiam que
iam morrer, e eram poucos mas muitos, tantos sendo tão poucos, e
nós tão inúteis para os salvarmos que às vezes me esquecia de
tudo, de quem era, do que fazia ali, do que estava a acontecer-nos.
Até que via uma possibilidade, um corpo quase inteiro, um corte
limpo, um rosário de feridas de metralha, aparatosas mas
superficiais, e então, num instante, lembrava-me de tudo, vamos,
depressa, que com este conseguimos…
– Estou a falar a sério, Guillermo, assim não me serves de nada.
A única coisa que nos falta é que caias ao chão e partas a cabeça.
Ouve o que te digo, por favor.
O último corpo daquela noite era o de um jovem, de um rapaz de
treze ou catorze anos que chegara sem pés, com a perna direita
rebentada mesmo abaixo do joelho e a esquerda a meio da coxa.
– Muito bem. – Movi os olhos daquele destroço para o meu chefe
e assenti com a cabeça. – Acabo este miúdo e vou-me embora,
prometo-te.
Era muito bonito. Tinha o nariz pequeno, a boca carnuda, as
pestanas longas, espessas, a testa alta e um maxilar quadrado,
varonil. Ao vê-lo, a primeira coisa que pensei foi que deixaria as
miúdas da sua rua malucas se a pontaria de um piloto, que nem
sequer saberia pronunciar o seu nome, não o tivesse deixado
entrevado para sempre. Depois reparei no papel que lhe espreitava
pelo bolso da camisa, uma folha quadriculada, arrancada de um
bloco, dobrada em quatro, cinco linhas escritas a lápis numa
caligrafia pontiaguda de colégio de freiras e um único erro
ortográfico. «1/4 de lete. ½ de farinha. ½ de ovos. 2 ossos de
presunto. E o pão.» Depois de a ler, voltei a meter-lha no bolso, e
enquanto lhe cosia os cotos só conseguia pensar na mãe dele, na
mulher que se torturaria para o resto da vida por ter mandado o filho
à rua, às compras, justamente nesse dia, justamente a essa hora,
se é que não morrera no mesmo bombardeamento.
Depois de respirar durante tantas horas o ar viciado, quente, do
hospital, a aragem da rua quase me feriu, porém, ao mesmo tempo,
soube-me bem. Estava muito frio, nessa noite voltaria a gear, mas o
porteiro ofereceu-me um cigarro e eu aceitei-o. Não tinha pressa,
entre outras razões porque não sabia como me arranjar para chegar
a casa.
– Num táxi. – O Bernabé sabia sempre tudo e, a par da solução,
apresentou-me um relatório abreviado de como haviam estado as
coisas durante a minha ausência. – No primeiro que chegar, não se
preocupe. A Câmara Municipal recorreu a eles porque as
ambulâncias não dão vazão, e nem vale a pena falar dos carros
funerários. Andaram todo o dia para cá e para lá, a trazer feridos, a
levar cadáveres. No cemitério começaram a cavar valas comuns,
sabia? Porque não os conseguem enterrar como é devido, tantos
são os mortos…
Acabava de o dizer quando avançou uns passos com o braço
levantado e mandou parar um táxi que ia, de facto, para a morgue
do hospital, convencendo o condutor de que era muito mais
importante levar-me a mim à calle Hermosilla. Ele aceitou sem
reclamar e não quis cobrar-me a corrida.
– Olhe bem para a minha cara – limitou-se a dizer, com um
sorriso – e, se me vir amanhã numa maca, trate-me bem.
– Oxalá não seja preciso. Muito obrigado.
A rua estava deserta, mas o seu aspeto não parecia diferente do
que teria na madrugada de qualquer outra quinta-feira de outono,
exceto pelas detonações das bombas que se ouviam muito ao
longe, pelos clarões que iluminavam o céu de outros bairros da
cidade. Em novembro de 1936, ainda não sabíamos que os pilotos
da Legião Condor tinham instruções para não bombardearem o
bairro de Salamanca, onde residiam as boas famílias da cidade e
um ou outro novo-rico, como o meu avô Guillermo, o
respeitabilíssimo comissário da Polícia que conseguira comprar um
bom andar naquele bairro devido às receitas secretas da sua vida
tripla.
«Tenho um buraquinho, aqui, aqui, que fala comigo à noite e não
me deixa dormir…» Nenhum vizinho do número 49 da calle
Hermosilla teria suspeitado de que a letra daquela canção de
revista, e as de outras ainda mais picantes, era obra de don
Guillermo Medina, polícia a tempo inteiro e dramaturgo por vocação
nos tempos livres, que todas as temporadas tinha muito gosto em
convidá-los para a estreia de um dramalhão histórico, em verso ou
em prosa, que assinava com o seu próprio nome. «E diz-me, que
me diz?, então diz-me, miúda, trata de mim, que não posso
continuar assim…» Mas aquelas obras tão sérias representavam
uma percentagem muito pequena das receitas que o meu avô
recebia por outros textos que assinava com pseudónimo:
vaudevilles, libretos de revistas atrevidas e, sobretudo, letras de
canções de revista como aquela, que se tornou célebre. «E diz que
sim, e diz que sim, tapa-me este buraquinho que não me deixa
viver…»
Aquela produção literária clandestina, de qualidade muito
superior à da sua obra dramática e cuja escrita o divertia muito
mais, embora se sentisse culpado por isso, pagou o bem-estar da
família, uma casinha em Zarauz, o meu curso de medicina e o
apartamento no primeiro andar de um edifício que, naquela noite,
parecia tão tranquilo como se pertencesse a uma realidade à parte,
a uma cidade diferente. Demorei muito pouco tempo a verificar que
não era assim.
– Menino Guillermo! Menino Guillermo!
Nem tive tempo de tirar os sapatos. Estava a pendurar o
sobretudo no bengaleiro quando ouvi o eco apagado de uns nós de
dedos que tateavam a porta como se não se atrevessem a bater, e
um sussurro entrecortado e desconcertante, quase um choro.
– Menino Guillermo, abra, por amor de Deus!
Nem sequer depois de reconhecer aquela voz consegui acreditar
que estivesse realmente a chamar por mim nessa noite, às duas e
meia da madrugada, mas estava tão cansado que abri a porta sem
pensar e verifiquei que acertara. O apartamento da frente estava
vazio desde que o proprietário, com uma pontaria prodigiosa, fora
de férias de verão, três dias antes do golpe de Estado que
desencadeou a guerra. Não me ocorria nenhuma razão para que a
criada me interpelasse, com uma crise nervosa e lavada em
lágrimas, mas assim era.
– O que tens, Experta?
Respondeu deixando-se cair nos meus braços e recomeçando a
chorar com tanta força que os soluços não lhe permitiram dizer uma
palavra. Fechei a porta com o pé, sentei-a numa das cadeiras do
vestíbulo, peguei-lhe na cara com as mãos, pedi-lhe por favor e nem
assim consegui que falasse. Quando voltei da cozinha com um copo
de água e a obriguei a bebê-lo, também não progredi muito.
– Ai, menino Guillermo! Ai, menino! – Agarrou-me nos braços
como se precisasse de se apoiar neles para se levantar e já não me
soltou. – Ajude-me, pelo amor de Deus, menino Guillermo, venha
comigo, venha…
– Experta, estou há dois dias sem dormir. – Mas ela já me
arrastava consigo em direção à porta. – Amanhã…
– Não, não pode ser amanhã, menino, não pode ser amanhã,
venha, venha comigo, pelo que há de mais sagrado…
Até a morte o impedir de cobrar a última desforra, o meu avô
jogou uma partida de xadrez com don Fermín todos os domingos à
tarde, uma semana na nossa casa, outra na dele, alternando os
campos como as equipas de futebol. Conforme acontece aos
eternos rivais, o nível de ambos era bastante equilibrado, embora,
regra geral, don Guillermo ganhasse seis jogos em cada dez. Eu
acabaria por melhorar essa percentagem, mas muito antes de lhe
ocorrer ensinar-me a mover as peças, comecei a gostar de
acompanhar o meu avô nos jogos em campo adversário. A criada
dele não cozinhava tão bem como a nossa e deixava quase sempre
queimar as fatias de pão frito, mas a companhia da Amparito
compensava os desastres culinários da Experta. Aquela menina
também vivia com os avós, embora não fosse órfã. O pai,
engenheiro, trabalhava para uma companhia alemã que explorava
umas jazidas na província de Huelva e a mulher, que morava com
ele numa casa construída ao lado da mina, a quilómetros da
povoação mais próxima, ia deixando os filhos em Madrid à medida
que estes começavam a frequentar a escola. A Amparo era a mais
nova e a única pessoa da minha idade com quem me podia
encontrar nos dias em que não tinha aulas. Estava habituado a
brincar sozinho, mas gostava mais de brincar com ela.
Naquela época dávamo-nos muito bem e inventávamos jogos
novos todas as semanas, embora aquele de que mais gostássemos
fosse o de nos escondermos, fechados num armário da despensa,
atrás dos cestos da roupa por engomar, muito quietos, de mãos
dadas, falando em sussurros até ouvirmos os gritos dos adultos que
nos procuravam por toda a casa. O nosso esconderijo preferido era
a parte inferior de uma gigantesca estante de livros em madeira que
ocupava toda a parede do escritório de don Fermín. Aquele móvel
feito à medida tinha um corpo inferior com quase um metro de altura
por outro de largura, com o interior oco, porque os livros que havia
na casa não chegavam para encher as estantes superiores que
subiam escalonadamente até ao teto, como o perfil de uma pirâmide
asteca. E enquanto os nossos avós permaneciam absortos no
tabuleiro, nós os dois rastejávamos, abríamos a porta central muito
devagar para que os gonzos não chiassem e, depois de a
fecharmos com o mesmo cuidado, sentávamo-nos lá dentro, à
espera.
Aquele jogo que, como quase todos, ocorrera à Amparo tinha a
virtude de juntar a emoção e o silêncio, uma descoberta capaz de
suspender o tempo, o qual deixava de passar quando nos
comprimíamos numa caixa de madeira que me ensinou outra coisa
ainda mais valiosa. O cheiro da cera confundia-se com o da infusão
de camomila com que ela lavava o cabelo e perfumava uma
escuridão compacta, que se tornava ambígua, luminosa, enquanto
ambos respirávamos em uníssono e partilhávamos uma
cumplicidade ainda mais estranha, mais grave também, pela
precariedade da fronteira que nos isolava de tudo o resto. O meu
avô, o dela, a Experta, o lanche e as varandas debruçadas sobre
um passeio repleto de desconhecidos ficavam do outro lado de uma
simples porta de madeira e, no entanto, até alguém a abrir, era
como se a realidade se desvanecesse, deixando-nos sós, deixando-
me só com o corpo da Amparo e com o meu próprio corpo, com as
nossas mãos entrelaçadas, com os nossos dedos a estreitarem-se
como se quisessem fundir-se até alguém, exterior àquele mundo
que era já o único que existia, proferir os nossos nomes. Naquele
móvel do escritório de don Fermín, com a Amparo, pela Amparo, eu
descobri a natureza da intimidade. Depois, de repente, tudo se
acabou.
Ela tinha menos um ano do que eu, mas era muito mais
espevitada. Demonstrou-mo de uma vez por todas num domingo de
outono de 1927, ia eu a caminho dos catorze anos e ela com doze
acabados de fazer, e foi em minha casa, num escritório repleto de
livros do chão ao teto. Nessa altura, já ambos sabíamos jogar
xadrez e até nos entregávamos a uma partida de vez em quando,
embora ela não gostasse porque acabava sempre por perder,
apesar de passar o tempo a fazer batota. Pedia-me que lhe
trouxesse alguma coisa da cozinha, umas bolachas, um copo de
água, um pedaço de chocolate, e trocava a minha rainha de sítio ou
tirava-me uma torre. Ao voltar, eu recuperava a peça que ela me
tirara ou devolvia a rainha ao lugar, para que ela protestasse muito,
me chamasse batoteiro e derrubasse o seu rei, acabando assim a
partida.
Naquela tarde, no entanto, fez de tudo para que nos
sentássemos a ver o jogo frente a frente, como dois escudeiros,
cada qual ao lado do seu avô. E mesmo antes de o meu fazer o
primeiro xeque, num momento em que os nossos olhos se
cruzaram, ela reclinou-se na cadeira, subiu a saia, abriu as pernas e
mostrou-me as cuecas. Era um outro jogo, mas eu não conhecia as
regras e interpretei a visão daquele triângulo imaculado de algodão
branco como uma agressão. Por instantes, a vergonha que me ardia
nas faces contrastou com o assombro que privava de cor o rosto da
Amparo, mas foi só um segundo, e eu não consegui investi-lo em
decifrar a sua palidez, porque precisei dele para me levantar e ir a
correr para o quarto. Depois, deitado na cama de barriga para baixo,
revi a cena, entendi-a pela metade, e uma vergonha diferente, a do
tanso, do burro, do ignorante que tinha acabado de fazer um
papelão, torturou-me durante toda a semana. No domingo seguinte,
não fui com o meu avô a casa de don Fermín. Mais tarde, a avó da
Amparo morreu, e as partidas foram interrompidas durante uma
temporada, recomeçando sem mim. Desde então e até à
madrugada de 19 de novembro de 1936, não voltei a transpor o
umbral daquela casa.
No entanto, ainda me lembrava de tudo, lembrava-me muito
bem, e quando entrei no escritório atrás da Experta tinha a certeza
de que, anteriormente, não havia cadeado na porta. Ainda me
lembrava melhor de que a estante dos livros sempre estivera
encostada a uma parede que agora parecia pintada de fresco, mais
branca do que o resto da casa, e não atrás da secretária,
bloqueando o acesso ao quarto principal, mas a Experta não parou
para me explicar aquelas alterações. Abriu a porta central do corpo
inferior da estante, tão silenciosamente como eu a abrira muitas
vezes, pôs-se de joelhos, entrou de gatas no meu antigo esconderijo
e bateu com os nós dos dedos noutra porta, a do quarto de dormir,
que efetivamente estava atrás do móvel. Alguém a abriu e ela
entrou. Então, quando já não a conseguia ver, voltou a dirigir-se a
mim.
– Entre, menino Guillermo, mas tenha cuidado, não se magoe.
Quando atravessei o buraco, espantei-me com o tamanho do
meu corpo, com a dificuldade com que me movia naquele espaço
onde tantas vezes me sentira tão cómodo. Porém, antes de entrar
no quarto de don Fermín comecei a sentir o cheiro a cadáver, e essa
pestilência sempre urgente, inconfundível para mim na madrugada
de 19 de novembro de 1936, desterrou as minhas lembranças
juvenis para o canto das coisas sem importância.
Ao passar a cabeça pela abertura vi a Experta com as mãos
estendidas, como antigamente, quando nos tirava daquele armário
como se puxasse por dois arenques enroscados num tonel, mas
levantei-me sozinho enquanto o nariz me guiava a cabeça para a
esquerda. Ali, num solene leito matrimonial de madeira trabalhada,
jazia don Fermín, com os olhos fechados, as mãos cruzadas sobre o
peito e um terço entre os dedos rígidos, com as pontas quase tão
azuis como a casaca do traje de diplomata com que o tinham
vestido. Para rematar a extravagância absurda da sua figura, um
sabre repousava paralelo à sua perna direita, enquanto, no outro
lado, um bicorne azul com plumas brancas lhe ladeava a cintura.
Mas o que é isto?, interroguei-me ao vê-lo naquele quarto fechado a
pedra e cal, enquanto respirava um ar venenoso, impregnado dos
vapores da decomposição.
A minha pergunta era mais abrangente porque numa manhã de
julho, quando saía para o hospital, encontrei a Experta à entrada.
Carregava um cesto cheio de trapos, panos do chão e produtos de
limpeza, que me parecia muito pesado e ofereci-me para lho levar
até ao primeiro andar, mas ela não permitiu. Pousou-o enquanto me
explicava, muito mais pormenorizadamente do que seria necessário,
que don Fermín partira para San Rafael porque uma irmã tinha lá
casa e, como seria de crer, compreenderia melhor do que ninguém
o bem que lhe fazia o ar da serra e que, vejam lá a fatalidade, a
frente tinha ficado justamente em San Rafael, quer dizer que don
Fermín estava na outra zona e, embora não soubesse nada dele,
decidira fazer uma limpeza na casa e que, por isso… Que diabo
significa tudo isto?, voltei a interrogar-me, mas como a resposta já
não era urgente, disse o que tinha a dizer enquanto me dirigia para
a cama.
– Abre a porta da varanda, Experta.
– Não, menino, é que…
– Abre imediatamente a porta da varanda. – Tirei o lenço do
bolso e pu-lo sobre a boca antes de examinar o cadáver. – Apaga a
luz, se quiseres, mas abre-a ou tu também vais morrer. É preciso
ventilar este quarto quanto antes…
Embora tenha deixado três quartos da persiana descidos, o ar
gelado encontrou uma passagem através da abertura da estante e
atravessou o quarto como uma bênção. A Experta apagara o
candeeiro do teto para que não se visse luz da rua, mas a pequena
lâmpada de leitura junto à cabeceira bastou-me para comprovar que
o meu vizinho estava morto há mais de vinte e quatro horas.
– Quando morreu? – perguntei, ainda assim, e só ao ouvir uma
voz inesperada me lembrei de que, forçosamente, alguém tivera de
abrir a porta pelo interior.
– Ontem de manhã. – Esse alguém era a Amparo.
Encostado à parede oposta à da cama estava um cadeirão e
dali, mais prostrada do que sentada, com a perna direita sobre o
braço da poltrona e o corpo torcido, uma mulher vestida com um
pijama de homem olhava para mim. Na penumbra espessa do
quarto, a senhorita arrogante em que a minha antiga companheira
de brincadeiras se transformara parecia-se mais com uma
marioneta desconjuntada, abandonada por uma criança caprichosa,
do que consigo própria, embora se tenha endireitado assim que,
também ela, se deu conta disso.
– Ontem, terça-feira, dia 18?
Levantou-se devagar, fechou os olhos e esfregou a testa com
uma mão antes de se aproximar de mim.
– Ontem… – A luz fraca da lâmpada deu um ar quase
fantasmagórico à palidez amarelada da pele. – Não, espera, porque
já…
– Já é quarta-feira – ajudei-a, calculando que não saísse de casa
há mais de quatro meses. – Estamos a 19 de novembro.
– Claro, nesse caso, na segunda-feira… Na segunda-feira de
manhã.
Não trocava tantas palavras com ela desde que a encontrara
sentada na sala da minha casa, numa tarde de outubro de 1933.
Não estava sozinha: entre as mulheres que a acompanhavam
reconheci a sua irmã Asun e julguei que as duas senhoras mais
velhas que ladeavam a minha avó no sofá fossem amigas dela. Não
pretendia interromper o que parecia ser um lanche de vizinhas, mas
enquanto pensava numa fórmula airosa para as cumprimentar e
desaparecer, a intervenção de uma daquelas desconhecidas ativou
o mecanismo misterioso que, de vez em quando, acendia uma luz
ofuscante, impiedosamente branca, entre as minhas sobrancelhas.
Conhecia bem aquele sintoma, o prelúdio da fúria prestes a
apoderar-se de mim e que desencadeava um fenómeno ainda mais
estranho. Eu era um homem tranquilo. Antes disso, fora um menino
prudente, mesmo cobarde, de acordo com os códigos do recreio da
escola. Fui criado entre adultos, uma mãe doente e dois velhos,
evitando as brigas por motivos mais apropriados ao meu avô do que
a um menino daquela idade. Era muito magro, usava óculos e corria
mais depressa do que a maior parte dos meus colegas, de modo
que não me ofendia com facilidade e safava-me das provocações
sem contratempos. Até o bruto da minha turma ter reparado em
mim. Chamava-se Miguel Salcedo e não voltara a dirigir-me a
palavra desde o nosso primeiro dia de aulas. Nessa manhã, o meu
avô parou para cumprimentar o pai dele e entrámos juntos na sala
dos mais pequenos, mas já tínhamos ambos onze anos quando
voltámos a reparar um no outro.
Eu estava sozinho, como quase sempre, olhando para os que
jogavam futebol, quando uma pedrinha me acertou nas costas. Era
tão pequena que não me magoou, porém, quando a segunda me
bateu na barriga da perna, percebi que não estavam a cair-me em
cima por acaso. Antes de ter tempo para planear uma fuga, a
terceira pedrinha acertou-me na nuca e uma brancura desconhecida
brilhou entre as minhas sobrancelhas enquanto sentia que todo o
meu corpo começava a tremer. Não foi bem assim, porque antes de
tirar os óculos olhei para as mãos e vi-as firmes, tão seguras que
continuei a observá-las, vi como os meus dedos dobravam as
hastes dos óculos, como os pousavam cuidadosamente no chão,
verifiquei que tudo isto acontecia a uma velocidade normal, embora
aquela luz branca parecesse imprimir uma lentidão peculiar a tudo o
que me rodeava. E era fria. No último instante em que consegui
raciocinar, apercebi-me de que aquela sensação era tão fria como
se uma gota de água gelada se tivesse infiltrado em cada um dos
meus ossos, mas logo sucumbi ao calor. Sem saber muito bem o
que ia fazer, nem porque o fazia, atravessei o pátio a grande
velocidade, investi de cabeça contra Salcedo e atirei-o ao chão.
Quando nos separaram, o Miguel tinha sangue no lábio inferior e eu
estava incólume, mas no gabinete do diretor a minha vítima teve a
coragem de reconhecer que fora ele a começar. Aquele gesto não
evitou que nos castigassem a ambos, mas deu-nos a oportunidade
de nos tornarmos amigos. O Miguel Salcedo inaugurou uma longa
tradição. A partir daquele dia, os meus melhores amigos seriam
sempre mais baixos e mais fortes do que eu. Todos eles saberiam
desenrascar-se muito melhor numa briga e, no entanto, nenhum
deles teria metade do mau feitio que se apoderava de mim de cada
vez que uma luz branca se acendia entre as minhas sobrancelhas.
– Claro que sim, Aurora, se é por uma boa causa. Imagine,
comprar colchões para essa gente tão necessitada…
Inicialmente, achei que a minha reação se devia ao facto de a
terceira pedra me ter acertado na cabeça, mas depressa descobri
que o contacto físico não era imprescindível e, naquela tarde,
algumas palavras bastaram para acender a luz.
– Porque os enganam ou o que é que acha? Acha que essas
pobres mulheres que se matam a trabalhar para manter os filhos
não são boas cristãs? Mas, claro, os maridos, que são uns vadios,
todo o dia na taberna, a ouvirem disparates…
Em outubro de 1933 já eu tinha aprendido a controlar os meus
acessos de raiva. Isso, contudo, não diminuía a quantidade nem a
qualidade do meu mau feitio, no entanto, ajudava-me a não resolver
os conflitos à cabeçada. Antes de entrar na sala, contei devagar até
cinco e impus aos meus passos uma lentidão exagerada para contar
do seis ao dez enquanto a atravessava. Essa técnica alarmou a
única mulher que a sabia interpretar e encorajou as outras a
receberem-me com um sorriso.
– Os colchões servirão para chegarmos a eles, falarmos com
eles e…
– E para comprarem os seus votos. – Ao ouvir-me, a minha avó
tapou a cara com as mãos enquanto as outras olhavam para mim
como se eu tivesse falado numa língua estrangeira. – Para lhes
darem a escolher entre votarem na CEDA, que só lhes trará mais
miséria, ou continuarem a dormir no chão.
Eu era um homem calmo, e continuei a parecê-lo, mesmo
quando o calor e o frio se digladiavam numa luta de morte no meu
íntimo. Talvez por isso, a Amparo se tenha dirigido a mim com
naturalidade, num tom amável, desprevenido.
– Mas porque dizes isso, Guillermo? Parece mentira, nem que
nos conhecêssemos há um dia… Estás a ser muito injusto. A
Esquerda faz tudo o que quer, ou não? Eles não se põem com
meias-medidas, e nós… É uma obra de caridade.
– É? – Aproximei-me tanto que ela se levantou para me encarar.
– A mim parece-me mais uma pulhice e por isso vou votar em
qualquer partido que acabe para sempre com a vossa caridade. –
Voltei-lhe as costas para me dirigir à única pessoa com poder para
terminar aquela reunião. – O que pretendes, avó? Que o teu marido
se levante do túmulo para nos amaldiçoar?
Nessa noite pedi-lhe perdão de todas as formas possíveis.
Prometi-lhe que nunca mais voltaria a fazer nada semelhante e
cumpri a promessa, no entanto, antes disso, ao aperceber-me de
que a minha intervenção a envergonhava demasiado para pôr as
convidadas na rua, assumi o papel de homem da casa com a minha
única amiga de infância.
– Fora daqui. Bateram à porta errada, e tu sabia-lo muitíssimo
bem, Amparo. Porque tens razão, não nos conhecemos há um dia.
A partir daí deixámos de nos cumprimentar quando nos
cruzávamos nas escadas. Mais tarde, ela radicalizou-se. Eu
também, mas só cheguei a aperceber-me completamente da
intensidade daquela metamorfose mútua quando uma tarde, pouco
antes do fim de 1935, nos encontrámos no patamar. A Amparo saía
de casa dos avós, eu regressava à dos meus e na rua estava muito
frio, mas ela desabotoou o casaco para me mostrar que andava
mascarada, embora faltassem dois meses para o Carnaval.
– Arriba España! – gritou, levantando o braço direito.
Vestia uma camisa azul com o jugo e as flechas bordadas a
vermelho, uma saia cinzenta justíssima, que lhe ficava a matar, e
uns sapatos pretos de saltos muito altos. Pareceu-me tão bonita que
em qualquer outro dia lhe teria lançado um piropo. Em qualquer
outro, não naquele.
– Vai-te foder, Amparito.
Ao ouvir-me, bufou, amarrou o cinto do casaco como se quisesse
cortar a respiração e só me respondeu depois de ter descido três
degraus.
– Parece impossível! – E não se voltou para me ver. – Como te
tornaste ordinário, Guillermo.
Eu olhei-a de cima, apreciando o movimento que aquelas andas
lhe imprimiam às ancas, até ela tropeçar e ter de se agarrar ao
corrimão com ambas as mãos para manter o equilíbrio, deliciando-
me ainda mais. Enquanto olhava para ela, pensei que era uma pena
já não querer mostrar-me as cuecas e envergonhei-me da ordinarice
que acabava de me ocorrer.
Quase um ano depois, enquanto respirávamos ambos a morte
do avô dela, estendi os braços, e ela refugiou-se neles como se
nada tivesse acontecido desde a última vez em que nos
escondemos na estante.
– Tenho muita pena, Amparo. – E ela apertou-me ainda com
mais força porque sabia que eu estava a dizer a verdade.
Os nossos avós mantiveram durante décadas uma amizade
profunda e incompreensível. Além do xadrez, não tinham nada em
comum e, no entanto, apesar das divergências políticas, religiosas e
morais que os levavam a defender posições antagónicas, cultivavam
ambos uma afinidade recôndita, quase secreta, cuja natureza
provavelmente desconheciam. Eram ambos, cada um à sua
maneira, muito simpáticos, homens amáveis, curiosos, amigos da
conversa e das discussões. Sempre senti carinho por don Fermín e
não só lamentei morte dele, como me magoou a fealdade da sua
agonia, a angústia daquela clausura, a solidão que deve ter
partilhado com a neta na tristeza de um quarto asfixiante, o
sofrimento calado e clandestino. Porém, a minha mágoa, além de
sincera, foi muito breve. As sirenes que anunciavam ao longe um
novo bombardeamento devolveram-me de súbito a uma realidade
na qual não sobrava um segundo para recordações e ainda menos
para lamentos.
– Muito bem – disse, libertando suavemente a Amparo do meu
abraço –, agora vamos sair os três deste quarto. Vamos sentar-nos
no escritório, tranquilamente, e vais contar-me o que aconteceu.
Preciso de saber.
A versão que contei no hospital horas depois não era muito fiel
ao relato original, mas acabou por ser muito mais eficaz.
– Não dormiste muito – disparou o meu chefe à laia de
cumprimento.
– Não, de facto, porque ontem à noite me aconteceu uma
coisa… – Fiz uma pausa para endireitar os óculos e beliscar o nariz,
como se precisasse de encontrar o fio de um discurso que havia
ensaiado até saber de cor. – Ao chegar a casa, encontrei a minha
primeira namorada, uma rapariga do bairro, que me contou que o
avô tinha morrido há dois dias, pelo que percebi, de um enfarte.
Estava desesperada porque na agência funerária lhe disseram que
não podiam tratar de nada. Têm a unidade de refrigeração cheia e
não dão vazão. – O meu chefe assentiu com a cabeça, não estava a
dizer-lhe nada de novo e o resto foi fácil porque era verdade. – Ela
estava sozinha com ele, os pais foram de férias antes do golpe, e
ela julga que a família tem um talhão em Madrid, mas não encontra
os papéis. Ou seja, à hora do almoço, se não te importares, vou
levá-lo ao talhão do meu avô e enterrá-lo lá. Já preenchi a certidão
de óbito; na morgue, deram-me um impresso para o cemitério e o
Bernabé ficou de chamar um taxista.
– Procuraste alguém que te ajude a cavar? – Assenti com a
cabeça, e ele fez um gesto com a mão para minimizar tudo o resto.
– Muito bem, Guillermo, faz o que tiveres de fazer, mas agora põe-te
a trabalhar porque nós estamos pior do que as funerárias.
Era tão verdadeiro que enquanto cortava, cosia e cauterizava de
empreitada, quase nem tive tempo de rever o plano. Nem sequer
me lembrei de que a Amparo me tinha obrigado a contar até dez
tantas vezes em tão pouco tempo que, se não fosse pela Experta, a
teria deixado sozinha no meio da rua com o cadáver de don Fermín.
– E o padre?
Até essa altura tinha alternado os acessos de choro com os
arroubos de indignação e recusara-se a enterrar o avô sem as
condecorações, sem o sabre, sem o chapéu e sem caixão.
Enquanto eu e a Experta o embrulhávamos num lençol branco,
depois de o levarmos sem a sua ajuda até ao vestíbulo da minha
casa, ela sentou-se no chão a ver-nos trabalhar e avisou-me de que
nunca me perdoaria. Parecia exausta de raiva e de choro, mas,
quando me ouviu combinar encontrar-me com a Experta no
cemitério às duas e meia, levantou-se de um salto e agarrou-me
pelo sobretudo com tanta força como se tivesse comido ovos
estrelados com bacon ao pequeno-almoço, depois de nove horas de
sono.
– Como vamos enterrá-lo sem um padre?
– O padre procuras tu, Amparo. – Eram oito e dez da manhã, eu
só tinha dormido quatro horas e já estava farto dela até aos cabelos.
– Não sei como o hás de encontrar…
– Pois eu não o enterro sem um padre e, além disso, não penso
ficar aqui sozinha com o avô. – Fez beicinho, apontando para o
cadáver – E com isto. – O seu indicador desceu até um saco de
viagem que não perdera de vista por um instante, enquanto, mais
uma vez, a indignação substituía as lágrimas. – Sabe-se lá que
amigos tens e quem pode aparecer e… Não é assim que se fazem
as coisas, Guillermo.
– Ah não? – Nesse momento deixei de contar, voltei-me para ela
e por pouco não lhe dei um bofetão.
– Deixe-a. – Mas a Experta agarrou-me no braço com as duas
mãos antes que a minha alcançasse o seu destino. – Deixe-a,
menino Guillermo, eu já falo com ela, é que está muito nervosa, não
sabe o que diz.
Esta cidade está em guerra. Os teus amigos nazis bombardeiam,
dia e noite, casas, ruas, escolas, mercados. Não sabemos o que
fazer com os feridos, estamos soterrados em cadáveres, e eu, que
faço imensa falta no hospital, estou disposto a perder tempo contigo,
a assinar uma certidão de óbito com um nome inventado para não te
pôr em perigo, a enterrar o teu avô com as minhas próprias mãos
sem contar a verdade a ninguém. Que no fim de maio ele começou
a comprar ouro como um desaustinado porque sabia que no verão
uns quantos generais se iam sublevar. Que o cretino do teu tio
Ernesto o convenceu de que não valia a pena sair de Madrid porque
o golpe ia triunfar. Que a 21 de julho, já o golpe tinha fracassado,
alguém vos foi visitar da parte dele e vos pediu para não saírem de
casa e que esperassem que vos viessem buscar. Que nunca vieram
buscar-vos. Que, desde então, o único contacto que tiveram com o
mundo foi através de uma pobre mulher que, de dois em dois ou de
três em três dias, vinha de Vallecas de madrugada para vos trazer
comida sem que o porteiro ou os vizinhos a vissem. Calei tudo isso
e nem sequer sei porquê. Não sei porque estou a colaborar contigo,
que és o inimigo, Amparo…
– Eu sei, menino Guillermo, eu sei. – A Experta conseguiu ler-me
o pensamento, pegou-me nas mãos, apertou-as com força e dirigiu-
me um olhar húmido, implorante. – O menino é muito bom, muito
bom, agradecemos-lhe de todo o coração o que está a fazer, como
pode imaginar, mas é que a menina tem um feitio… Desculpe-a,
menino Guillermo, por favor, desculpe-a…
Assenti com a cabeça e fui trabalhar. Quando voltei, no mesmo
táxi que Bernabé me arranjara na noite anterior, já tinha conseguido
recuperar a paciência, blindando-me com um único pensamento.
Uma hora, dizia para comigo, duas no máximo. Duas horas e adeus
para sempre.
– Entre, por favor. – Voltei a repetir tudo isto para mim próprio
enquanto o motorista franzia o nariz ao entrar no vestíbulo. –
Pegamos nele os dois e descemo-lo no elevador, não demoramos
nada…
– Guillermo – a Amparo chamou-me da esquina do corredor com
o seu sorriso mais cativante –, podes chegar aqui um instante, por
favor?
– Espere por mim aqui. – Um, dois, três, quatro, cinco. – Não
demoro nada. – Seis, sete, oito, nove, dez.
Aproximei-me e ela retrocedeu alguns passos, como se
estivesse a jogar às escondidas. Isso não me surpreendeu tanto
como o que me disse num cochichar entrecortado, tão frenético que
se atropelava.
– O cofre, Guillermo, o cofre…
– O quê?
– O cofre. Não têm um? – Tínhamos, mas nem me dei ao
trabalho de confirmar. – Dá-me a chave, depressa, mas sem que
esse homem se aperceba porque não tem boa pinta. Olha que
metê-lo cá em casa! Parece impossível! As coisas de que te
lembras! Não pensaste no ouro do meu avô? E agora, que fazemos
com ele? Não sei onde o pôr, meti-o no armário do…
– Cala-te, Amparo. – Um, dois, três, quatro, cinco.
– … quarto da criada, mas não podemos deixá-lo lá. Onde está o
cofre? No escritório? Se passarmos pelo quarto de vestir…
– Cala-te! – Agarrei-a pelos ombros, abanei-a algumas vezes,
encostei-a à parede. – Fecha o raio dessa boca por uma vez. –
Senti um prazer desconhecido, mórbido, muito mais intenso do que
aquele que encontrava nos números. – Cala-te e não me lixes, se
não queres que atire o teu avô pela varanda. Percebes?
– Mas…
– Perguntei-te se percebes! – Ela cerrou os lábios com força e
anuiu com a cabeça. – Muito bem, nesse caso, vamos fazer o
enterro em paz.
A explosão provocou-me um alívio imediato, como se toda a
tensão que estivera a acumular desde que os bombardeamentos
haviam começado se dissolvesse no ar qual bolha de sabão.
Larguei a Amparo, desfrutei do seu silêncio, ajeitei a roupa, e, no
breve trajeto que me separava do vestíbulo, senti que todas as
minhas vísceras se expandiam e regressavam ao lugar original
dentro de um corpo que voltava a ser húmido e morno, confortável
para mim.
– Desculpe. – O taxista olhou-me discretamente por cima do
ombro, verificando que a Amparo me seguia pelo corredor a arrastar
os pés. – Vamos levantá-lo juntos. Aos três, um, dois… E três, muito
bem.
Antes de meter don Fermín no elevador, pedi à neta que fosse lá
abaixo verificar se a portaria estava fechada, e ela obedeceu sem
reclamar. Depois sentámo-lo no banco e ela própria, do rés do chão,
chamou o elevador. Não vimos nenhum conhecido enquanto
colocávamos o cadáver no banco traseiro, mas nada foi tão eficaz,
nem tão estranho, como o efeito daquela descompostura nos nervos
de uma mulher que, de repente, parecia tão tranquila, tão cómoda
como eu no seu próprio corpo. A princesa malcriada, caprichosa e
histérica, que me deixara fora de mim tantas vezes em tão poucas
horas, já se tinha esfumado quando Amparo se sentou ao meu lado
no banco da frente e se pôs a olhar pela janela sem fazer
comentários. Naquele momento pensei que se parecia com crianças
que só deixam de fazer birra com uma palmada, como se não
fossem capazes de parar de chorar por si próprias, mas não fui
capaz de antecipar as consequências daquela analogia. Tinha
demasiadas coisas em que pensar.
– Se não se importar, vamos passar um instante pelo registo. – O
taxista, que era um santo, assentiu e conduziu até lá sem pôr
entraves, embora a atmosfera no carro se tornasse por vezes
irrespirável. – Deixa-me sair, Amparo, e espera por mim aqui.
– Não, eu…
– Sim. – Quando me voltei, já ela tinha começado a seguir-me,
mas ficou tão imóvel como se a minha voz lhe pregasse os pés ao
chão. – Espera por mim aqui.
Eu tinha boas razões para tratar dos papéis sem a ajuda dela,
porque calculava que a situação da campa do meu avô
desencadearia um novo conflito e queria evitá-lo. Abri caminho por
entre a agitação das pessoas que faziam fila diante do balcão,
gritando que era médico, que vinha do San Carlos e que tinha de
resolver uma urgência para poder voltar ao hospital o mais depressa
possível. A rapariga que me atendeu sentia-se tão assoberbada que
me pôs um carimbo no impresso que lhe estendi antes mesmo de
eu ter tempo de lhe explicar tudo. E, quando voltei a sair, encontrei a
Amparo no sítio onde a deixara, nem um centímetro mais perto, nem
um mais longe.
– Que entrada é esta?
A Experta não era boa cozinheira, mas, vendo-a junto à cancela
com um homem de idade, dois rapazes novos e um carro de mão,
alegrei-me por não existir no mundo outra mulher tão digna do seu
nome.
– Olhe, menino Guillermo, este é o meu filho mais novo, que
trouxe um amigo, e aqui está o Marcial – apontou para o velhote –,
um vizinho que trabalha no cemitério e que se ofereceu para nos
ajudar. A sepultura já está aberta e vamos levar don Fermín muito
bem neste carrinho de mão…
– Que entrada é esta? – perguntou de novo a Amparo, não
obtendo qualquer resposta. – Nunca a tinha visto.
Depois de pedir ao taxista que esperasse por mim, passei por ela
sem a olhar e estuguei o passo até ficar ao lado da sua criada.
– Já lhe disse…? – sussurrou, sem se atrever a olhar-me.
Nem ela chegou a concluir a pergunta, nem eu tive tempo de
responder. A Amparo soltou um grito, mesmo antes de cair de
bruços, com os punhos a baterem no chão, diante do mausoléu de
Pablo Iglesias.
– Ai, minha mãe! – A Experta fez tenção de se aproximar dela,
mas eu detive-a a tempo.
– Não, deixa que eu vou. Trata do resto, mas que não o metam
na sepultura até nós chegarmos, está bem?
A Amparo continuava a bater com as mãos no chão, e eu não
tinha muita certeza de que a minha intervenção fosse surtir efeito,
mas era preciso enterrar-lhe o avô de uma vez, resolver essa
emergência que se estava a tornar um pesadelo demasiado longo
para demasiadas pessoas. Foi o que disse para comigo, e que
qualquer tentativa valeria a pena, mas não era verdade, pelo menos
não totalmente. Naquela altura, a oportunidade de avaliar até que
ponto era eficaz a minha descoberta, comprovar se era verdade que
a minha vizinha respondia muito melhor à firmeza do que à
amabilidade, interessava-me tanto ou mais do que o descanso
definitivo do coitado do don Fermín.
– Amparo! – gritei o nome como se estivesse aborrecido com ela,
e as suas mãos deixaram de se mover. – Amparo, olha para mim!
Quando levantou a cabeça na minha direção, estendi-lhe uma
mão, que ela aceitou para se levantar. Depois, olhando-a de frente,
disse-lhe o que sentia num tom de voz seco, autoritário, que me
surpreendeu mais a mim do que a ela.
– Tenho muita pena. – Ouvindo-me ninguém acreditaria. – Juro-
te que sinto muitíssimo. Mas o talhão do meu avô fica no Cemitério
Civil e não tenho outro para te oferecer. Isto é só terra, igual à do
outro lado da rua. Quando a guerra acabar, ajudo-te a tirar o teu avô
daqui, a levá-lo para o cemitério aqui em frente, assino-te todos os
papéis que me pedires, mas agora vamos enterrá-lo aqui e acabou-
se.
Ela encarou-me, tentou dizer alguma coisa e desatou novamente
a chorar.
– Eu disse que se acabou, Amparo.
Ela assentiu com a cabeça, limpou os olhos com as mãos e ficou
imóvel. Dei-lhe o braço com suavidade e conduzi-a até à sepultura,
de onde a Experta me olhava com os olhos tão abertos como dois
pontos de interrogação. Ao lado repousava a lápide do meu avô,
com o epitáfio que ele escolhera e que eu tinha mandado gravar na
véspera do funeral.
GUILLERMO MEDINA ACERO
(1855-1932)
REPUBLICANO E LIVRE-PENSADOR
A SUA ÚNICA PÁTRIA FOI A HUMANIDADE

Dessa vez também não houvera padre, mas foi uma cerimónia
bonita, até solene, com discursos comoventes, nenhum deles tão
tocante como a carta de despedida que eu não teria conseguido
acabar de ler se Miguel Salcedo não ma tivesse tirado das mãos,
substituindo-me nos parágrafos centrais e deixando-me chorar e
recompor-me antes de, finalmente, ma devolver. Antes, um
organista tocara A Marselhesa. Depois tocou o Hino de Riego e
voltámos todos a chorar, a abraçar-nos, enquanto aquela inscrição
se cobria de coroas de flores com fitas tricolores. A minha avó não
foi ao cemitério. Ficou em casa porque os enterros não lhe pareciam
apropriados às senhoras decentes, mas, quando lhe descrevi a
cerimónia, arrependeu-se de não me ter acompanhado. Tu achas
que será pecado enterrarem-me junto do avô, a mim que estive
sempre tão apaixonada por ele?, perguntou-me, e embora soubesse
que sim, respondi-lhe que era melhor consultar o confessor. Depois
justificou-se dizendo que parecia mentira, mas que saber que toda
aquela gente tinha gostado tanto do marido a consolara muito.
A Amparo, além de falangista, era uma mulher moderna e
recusara-se a ficar em casa. Instantes antes de o avô dela
acompanhar o meu na eternidade, recordei o enterro do comissário
Medina e estremeci ante a solidão de outra neta, uma tristeza que
não cederia perante nada do que fizessem ou dissessem aqueles
que a acompanhavam nesse dia, uma recordação infeliz que a partir
desse momento só iria aumentar, tornar-se cada dia maior, mais
amarga. Por isso, olhei em volta, procurei manchas de cor e não
encontrei nenhuma. Não havia uma única flor nas campas civis da
cidade sitiada, mas a Experta abriu um saco que trazia pendurado
no braço e tirou três molhos de gerânios vermelhos, frescos e
compactos, que cortara dos vasos que já não enfeitariam as
varandas da sua casa. Deu um à sua menina, deu-me outro a mim e
ficou com o terceiro, e aquelas flores caseiras, alegres, sempre tão
baratas, tão valiosas de repente, emocionaram-me por tornarem
maior, mais profunda, a tristeza de uma sepultura aberta, o peso das
palavras inscritas naquela lápide de granito, tão emocionantes para
mim, tão odiosas para ela, que lhe pesariam para sempre na
consciência como uma ignomínia irreparável. Por isso, sem pensar
no que fazia, estreitei a mulher que chorava à minha frente, cruzei
os braços em volta da sua cintura e beijei-lhe o cabelo.
– Reza, Amparo. Reza tudo o que quiseres. Se o teu Deus
existe, está a ver-te. Ele não sentirá a falta de um padre.
Ela voltou-se dentro do meu abraço, olhou para mim, abriu a
boca e não conseguiu falar.
– Pai Nosso, que estás no Céu…
Foi a Experta quem começou a rezar e a Amparo só se lhe
juntou no fim da oração. A seguir, rezaram as duas juntas uma ave-
maria e, finalmente, o bendito cadáver de don Fermín descansou na
terra. Depois de pousar os gerânios na campa, dei uma boa gorjeta
ao coveiro e segui a Experta, que segurava a Amparo nos braços
como se tivesse receio de que ela se desfizesse, até à porta do
cemitério. Já eram quase três e um quarto e eu precisava de voltar a
correr para o hospital, mas também não podia ir-me embora assim.
– Toma, Experta, as chaves da minha casa. Tenho outras no
hospital. Podem ir para lá, comer alguma coisa, descansar um
pouco… Hoje não vou dormir, não sei se conseguirei ir amanhã. A
Amparo que vá buscar tudo o que precisar e depois… Deixa-me o
chaveiro na caixa do correio, está bem? E já sabes onde estou, se
acontecer alguma coisa. – Olhei para Amparo para a incluir na
oferta. – O que quer que seja.
O táxi continuava a cheirar à morte de don Fermín, mas, ao
instalar-me no banco traseiro, entreguei-me a uma sensação mais
parecida com a alegria do que com a tranquilidade. O dia esgotante
de sangue, dor e corpos despedaçados que esperava por mim
parecia um horizonte quase agradável em comparação com o que
tinha vivido nas últimas horas. Sabia que depressa me arrependeria
desse pensamento, mas desfrutei dele em silêncio enquanto o táxi
avançava pela calle Alcalá. Minutos mais tarde, vesti uma bata
branca, a única coisa limpa que teria durante muitas horas, e depois
foi só cortar, coser, cauterizar e amaldiçoar entre dentes os aviões
que passavam, os que continuavam a passar, os que nunca
deixavam de passar.
O dia 20 de novembro já havia começado quando me deixei cair
num catre do serviço de urgências. Minutos depois, começou um
bombardeamento massivo, tão brutal que toda a gente se esqueceu
de mim. Quando uma enfermeira me acordou, eu tinha dormido
quase cinco horas e estava como novo. Desde esse momento até o
meu chefe me mandar novamente para casa, estive mais de vinte e
duas horas a trabalhar, quase sem interrupção.
– Mas são sete da manhã! Vou agora como?
– Com os dois pés, pondo um à frente do outro. Sabes como é,
não sabes? – Fez uma pausa para que eu me risse da piada, antes
de levantar o indicador e de apontar para o teto. – Enquanto aqueles
filhos da puta não distinguirem o dia da noite, nós também não o
podemos fazer. Vai para casa, mete-te na cama, dorme sete horas,
toma um pequeno-almoço como deve ser e volta à tarde. – Dera já
meia-volta quando me encarou novamente. – É uma ordem.
– Muito gostas de dizer isso…
O doutor Quintanilla era um excelente cirurgião e o melhor
professor que tive na faculdade, não só pela qualidade dos seus
conhecimentos, mas também, e sobretudo, pela capacidade de
seduzir os alunos com a sua sabedoria. Escolhi a especialidade só
para fazer o internato na equipa dele e, quando a guerra começou,
ele já tinha tanta autoridade sobre mim que nem sequer teve de se
esforçar para me fazer desistir dos meus objetivos.
– Vais alistar-te? Ah, muito bem! E para quê, para que te matem?
Para que a República ganhe um herói e perca um médico?
Caramba, isso é que é um bom negócio!
– Mas eu ainda estou no internato – tentei argumentar. – Ainda
não sou…
– Diz-me isso daqui a três meses – afirmou com segurança,
como se pudesse prever o futuro. – No internato ou não, é aqui que
fazes falta, Guillermo. Deixa que se alistem aqueles que não podem
salvar vidas, não arrisques a tua, que vale muito mais numa sala de
operações do que na frente, e agora vai à sala de tratamentos.
Chegou uma quantidade de enfermeiras voluntárias que não
pescam nada disto, vê lá o que consegues. – Assenti com a cabeça,
e ele sorriu. – Aviso-te de que algumas são muito jeitosas…
O decurso da guerra dar-lhe-ia razão. Também revelou a
capacidade mais importante do doutor Quintanilla, a de ser um
coordenador extraordinário que não precisava de consultar fosse
que papel fosse para ter presentes as altas e as baixas, os
cirurgiões disponíveis, as salas de operações livres, as ocupadas, e
há quantas horas trabalhava sem descanso cada elemento da sua
equipa. Mais tarde, quando começaram a faltar medicamentos,
instrumentos e até provisões para alimentar os doentes, o talento de
Fortunato Quintanilla manteria em funcionamento o serviço de
cirurgia do San Carlos em condições quase milagrosas. Em
novembro de 1936, quando os fornecimentos ainda não eram um
problema, nenhum dos seus subordinados podia passar mais de
quarenta e oito horas no hospital sem que ele soubesse, procurasse
por eles, os mandasse para casa dormir e acrescentasse sempre no
fim que era uma ordem.
– Para alguma coisa sou o chefe, não me lixem – respondeu-me
com um sorriso quando lho recordei.
E por isso lhe obedeci, fui direito à morgue, tomei o primeiro táxi
que saiu na direção do cemitério do Este e pedi ao motorista que me
deixasse na esquina das ruas Hermosilla e Núñez de Balboa. Dois
dias antes, ao vestir a bata, lembrara-me de ir buscar as chaves de
reserva que guardava numa gaveta da secretária, mas quando
cheguei à entrada do prédio não reconheci o porta-chaves. O
enterro de don Fermín já me parecia tão distante, tão vago, como se
tivesse acontecido noutra vida, mas na caixa do correio encontrei as
chaves que tinha emprestado à Experta.
Ao entrar em casa senti uma presença estranha, como se o ar
tivesse mudado desde que saíra dali. Mal acendi a luz, descobri a
razão. Estava tudo a brilhar, o chão, os móveis, os espelhos. Antes
de ir de férias para Zarauz, a minha avó pediu à empregada que
viesse limpar todos os dias, mas, desde que os bombardeamentos
haviam começado, ela só aparecia de vez em quando. Pensei que
tivesse sido uma dessas vezes, fui para a cama e adormeci mal
fechei os olhos.
Quando voltei a abri-los, o mostrador do relógio assustou-me.
Eram duas e cinco, de modo que me levantei, tomei um duche,
barbeei-me e vesti-me a toda a pressa antes de me lançar escadas
abaixo. Às três em ponto do dia 22 de novembro, vesti uma bata
branca, que iria substituindo por outras limpas, até que, à uma da
tarde do dia 24, o meu chefe voltou a mandar-me para casa.
– Isto já está mais calmo. – Tinha razão, não por os
bombardeamentos terem cessado, mas porque os madrilenos
tinham aprendido a interpretar os alarmes tão bem como nós a gerir
o fluxo de feridos. – Vem à meia-noite. Julgo que na próxima
semana, com um pouco de sorte, já conseguiremos fazer turnos
normais.
Ao cabo de uma semana tudo seria diferente, mas a 24 de
novembro de 1936 cheguei a casa à hora do almoço. Tinha dormido
uma sesta de madrugada e estava bem desperto, mas nem morto
de sono teria deixado de sentir a corrente de ar que me deu as
boas-vindas. Na sala vi uma janela aberta e um cinzeiro com duas
beatas. Antes de ter tempo de verificar que eram da minha marca
preferida, fechou-se uma porta na outra ponta do corredor e percebi
muitas coisas, todas, exceto a euforia espontânea, indomável, que
de repente me avolumou a braguilha. A empregada da minha avó
não fumava e limpava muito menos conscienciosamente do que a
criada do nosso vizinho, mas eu e a minha braguilha sabíamos que
não tinha sido a Experta quem se havia introduzido em minha casa.
Percorri o corredor com passadas fortes para fazer barulho, e ao
passar pela cozinha avistei uma panela no fogão. Pousei a mão em
cima e comprovei que ainda estava quente. Só tinha ouvido o ruído
de uma porta, o que reduzia as minhas opções a duas. Na
despensa não estava ninguém. Ao entrar no quarto da criada, parei
um pouco para pensar e optei pela abordagem frontal.
– Que fazes aqui?
Estava dentro do armário, de pé, com os braços colados ao
corpo, muito quieta. Não consegui ver-lhe os olhos porque, embora
o móvel fosse maior do que ela, a moldura da porta chegava-lhe à
altura do nariz, mas vi como os lábios lhe tremiam antes de se
moverem.
– E tu?
– Como assim? – A reação dela pareceu-me tão absurda que
não tive outro remédio senão rir. – Esta é a minha casa, Amparo,
aqui quem faz as perguntas sou eu.
– Está bem, mas… – Encolheu o corpo como que sacudida por
um calafrio e cruzou as mãos por cima da saia. – Não pensei que
viesses a esta hora.
– Mas cá estou. – Fiz uma pausa que ela não preencheu. – Sai
daí.
– Não posso.
– Não podes como? – Detetei na minha voz, subitamente rouca,
uma excitação de que ela parecia mais consciente do que eu.
– Não posso… – Porque aumentava a cada uma das suas
respostas. – É que tenho vergonha.
– Tens vergonha? Olha, Amparo, ou sais daí agora mesmo ou
tiro-te eu.
– Está bem, mas deixa-me ir à casa de banho, porque… – Os
lábios dela fizeram um beicinho que deu lugar a um ligeiro
choramingar e a mais qualquer coisa. – Porque, com o susto, fiz xixi
pelas pernas abaixo.
– Muito bem. – Não passava de um acidente, de um ato
involuntário, e eu sabia-o de sobra, conhecia o mecanismo que o
provocava, deparava-me diariamente com igual resultado em
pacientes de ambos os sexos e de todas as idades, mas o que
sabia não me explicou o que se estava a passar comigo. – Sai daí e
vai à casa de banho, depois conversamos.
– Está bem, mas antes sai tu… É que estou com muita
vergonha.
– Está bem, já vou. Espero por ti na sala.
Se estivesse em condições de compreendê-la, talvez eu também
sentisse vergonha. Mas a cena do armário, a confissão da Amparo,
a combinação desconcertante de impudor e fragilidade que lhe
palpitava na voz, e aquele choramingar fingido, tão falso como o de
uma criança que um adulto apanha em falta, tinham aumentado a
curva da minha excitação do nível básico, gerível, de uma
travessura, a um patamar em que me era impossível discernir a
minha própria identidade da ereção a que me vi reduzido. O sexo
palpitava-me com muito mais força do que o coração, não deixava
qualquer espaço para o raciocínio, menos ainda para a consciência,
e eu não tinha vontade nenhuma de ir para a sala. Acatei a vontade
dela sem resistência e, sem chegar a dobrar a esquina do corredor,
encostei-me à parede para a ver sair. A casa de banho não ficava
longe da cozinha e ela percorreu aqueles metros com passinhos
curtos, as pernas unidas e a cabeça baixa. Porém, a instantes de
entrar, levantou-a e olhou para mim como se soubesse exatamente
onde me encontrar. Foi um olhar longo, lento e carregado de
sentido. Um olhar manso e curioso, sem vestígios de censura. Um
olhar calculado e calculista, que pressagiava tudo o que aconteceria
mais tarde, embora eu não soubesse, ou não quisesse, dar-me
conta a tempo.
Demorou quase meia hora. Quando finalmente apareceu, já eu
tinha serenado o suficiente para reparar que ela escolhera um
vestido que a favorecia, que se penteara e maquilhara. Eu tinha
preparado o que ia dizer-lhe, mas ela voltou a tomar a iniciativa com
uma proposta desconcertante.
– Estava a preparar-me para almoçar – anunciou, a meio
caminho entre a porta e a poltrona onde me tinha sentado. – Se
quiseres acompanhar-me…
– Bolas, muito obrigado! – Levantei-me. – É a primeira vez que
me convidam para almoçar na minha própria casa.
– Não, queria dizer… – Fechou os olhos e corou. – Aqueci uma
carne guisada que a Experta trouxe.
Noutras circunstâncias, o prato que a Amparo me serviu ter-me-
ia parecido um estufado medíocre, mas, naquele dia, além da
curiosidade, tinha tanta fome que só tratei da primeira depois de
satisfazer a segunda.
– O pão é de hoje. Compraste-o? – Ela negou com a cabeça,
enquanto eu acabava de limpar o prato. – Estou a ver… A Experta,
não é verdade?
– Sim, ela… veio hoje de manhã, antes de abrirem a porta de
entrada.
– Muito bem, então agora que já almoçámos… Posso saber que
diabo fazes em minha casa, Amparo?
Ela improvisou uma careta de tédio genuína, como se tivesse
pensado que, depois de partilhar o seu almoço comigo, se ia livrar
das explicações. Contudo, logo de seguida, esticou-se na cadeira,
apoiou os braços na mesa, olhou para mim e começou a falar num
tom direto, sincero, com uma naturalidade que eu não lhe sentia
desde que a morte do avô voltara a juntar-nos.
– Não tenho para onde ir Guillermo. Fiquei sozinha em Madrid e
não posso viver em casa da Experta, não por ela, que é muito boa e
me ama muito, mas porque… Bom… – Nessa altura parou,
escolhendo as palavras pela primeira vez. – Em Vallecas são todos
de esquerda. Os filhos dela, os irmãos, os vizinhos, e todos me
conhecem. Ali eu chamaria demasiado a atenção e, mais cedo ou
mais tarde… – Fez uma segunda pausa para evitar qualquer
palavra, qualquer verbo que pudesse aborrecer-me. – Não seria
seguro para mim. A Experta foi a primeira a dizê-lo, apesar de
também ela ser vermelha, ou seja, de esquerda, quero dizer…
Podia ter voltado para o apartamento do avô, mas as coisas ali
foram tão más, estava tão só, tinha tanto medo… Cada vez que
ouvia o elevador, pensava que vinham buscar-nos.
– Quem, Amparo?
– Quem? Qualquer pessoa. Aqueles que passam revista às
casas, que prendem gente que não volta a aparecer, não me digas
que não sabes o que se está a passar, Guillermo.
– Claro que sei o que se passa. – Olhei-a com dureza e preparei-
me para ser injusto. – Neste momento, sei que os
bombardeamentos alemães já mataram milhares de pessoas e que
continuam a matá-las diariamente. – Porque ela não se referia a
esse tipo de violência. – Quem não sabe és tu, que não vais à rua
desde 19 de julho.
– Mas a Experta contou-me. – A minha resposta enfureceu-a, e
eu alegrei-me com a sua ferocidade, com a forma como se inclinava
sobre a mesa, com as faíscas que lhe brilhavam nos olhos, porque
precisava de motivos para a expulsar da minha casa. – Quem é que
achas que me proibiu de sair à rua? Nem espreitar pelas janelas do
pátio me deixava. Que o Quintín não a veja, pelo amor de Deus, que
o Quintín não a veja…
– Quintín? – O nome deixou-me perplexo, porque o porteiro do
prédio do número 49 da calle Hermosilla, um velho, sempre fora
amável, pacato, incapaz de fazer mal a fosse a quem fosse. – Mas,
como vos passa pela cabeça…! Coitado do Quintín!
Desconfiarem do porteiro não me magoou tanto pelo que essa
ofensa tinha de injusto, mas por ter sido a Experta a fazê-la. Da
boca da Amparo ter-me-ia parecido natural, porque ela, como todos
os conspiradores que apoiaram o golpe, precisava de o justificar, de
acumular ofensas a qualquer preço, de defender a ação que
desencadeara a tragédia, afirmando que a guerra era
imprescindível, que era uma intervenção sagrada e salvadora, uma
ordem direta de Deus. Reconhecendo os saques, os homicídios, a
vingança criminosa exercida diariamente por gente do seu próprio
bando, do meu, Experta demonstrava mais honra do que eu, mas
essa qualidade, admirável por si, pareceu-me obscura, miserável,
porque estava impregnada de servilismo. Nem numa situação
revolucionária como a que vivíamos, a criada de don Fermín
conseguia livrar-se dos seus amos de toda a vida e renunciava
inclusive a dormir duas, três noites por semana, para vir a pé do seu
bairro alimentar um velho e uma menina inútil que teria sido incapaz
de fazer o mesmo por ela. A mansidão infiltrada na sua bondade,
outra virtude admirável que eu naquele momento não conseguia
admirar, deu-me mais pena do que raiva, porque se situava
exatamente no extremo oposto da vingança, como se nós,
espanhóis, nunca fôssemos capazes de encontrar um ponto justo,
um meio-termo.
– O Quintín já não vive aqui – acabei por dizer, de qualquer
forma. – Há um porteiro novo, chamado Paco, um refugiado que
veio a pé de Córdova com a família, depois de lhe terem matado os
irmãos. Não te conhece, Amparo.
– Está bem, mas é que… – Voltou a reclinar-se na cadeira, a
pousar as mãos no colo, a olhar para mim com olhos de carneiro
mal morto. – É que também não conhecíamos de lado nenhum o
tipo que veio da parte do tio Ernesto. Dizia que era falangista, sim,
mas… – Observou-me pelo canto do olho e a minha expressão não
lhe disse nada. – Não sei, não me caiu no goto. E de cada vez que
ouvia o motor do elevador pensava, pronto. Este já contou a alguém
que conhece um velho que está sozinho em casa com um dinheirão
e vêm roubar-nos. Agora hão de dizer que nos vão tirar daqui, mas
depois levam-nos para um descampado, dão-nos dois tiros e adeus,
passem bem.
– Ou seja, nem nos teus te fias. – Disse-o a sério, porque o
medo dela me pareceu autêntico.
– Enquanto estive sozinha com o avô lá em casa, não. E, se
agora tiver de voltar para lá, também não. Se tiver de voltar agora…
– Os olhos humedeceram-se-lhe só de o pensar. – Morro, Guillermo.
Prefiro ir para a rua e que me aconteça o que tiver de acontecer,
digo-te a sério. Mas confio em ti, mesmo que sejas vermelho, e por
isso pensei… – Fez uma pausa para se recompor e conseguiu
passar num instante do papel de donzela desconsolada para o de
adolescente malandra. – Tu quase nunca estás em casa. Sei porque
passei muitas noites acordada, colada ao óculo da porta, a vigiar as
escadas. Tu só vens dormir. Há dois dias chegaste às sete da
manhã e eu estava acordada, pouco depois levantei-me, fui à
cozinha, tomei o pequeno-almoço, só leite, isso sim, porque não
queria que a casa cheirasse a café, mas tomei o pequeno-almoço,
lavei o copo, voltei para o meu quarto e tu nem deste conta. Ou
deste?
Por essa altura, eu já não sabia quem era a mulher à minha
frente, se era uma ou várias ao mesmo tempo, nem quais eram
falsas, quais autênticas. Aquela ingenuidade repentina parecia-me
incompatível com a astúcia dela, e esta, por sua vez, incompatível
com a soberba que demonstrara aquando do nosso reencontro, uma
altivez imprópria da sua cobardia e mais contraditória ainda com o
método a que eu tivera de recorrer para a acalmar. Contudo, nada
me espantava tanto como a mescla improvável de descaramento e
desamparo que exibira momentos antes, no armário, e que acabava
de inspirar uma gabarolice que eu não estava disposto a deixar
passar.
– O teu quarto? – Ela assentiu com um vislumbre de sorriso. –
Tu não tens nenhum quarto nesta casa, Amparo.
– Eu sei, mas apercebi-me de que agora dormes no quarto da
tua mãe. E instalei-me no teu quarto de criança. Conheço-o porque
brincámos lá muitas vezes. Esta casa é muito grande, Guillermo. Se
tivesses vindo do trabalho a uma hora normal, não me terias
descoberto. Pensava fechar-me todos os dias às escuras, às seis da
tarde, e ficar com a luzinha da cama acesa e as portadas fechadas.
Era o que pensava fazer. Levava uma sandes ou umas bolachas,
não fosse ter fome, não fazia barulho, metia-me na cama, quietinha,
e esperava que tu adormecesses para adormecer também. Teria
aguentado muito tempo assim, tenho a certeza. Se não tivesses
chegado hoje, claro, embora…
Nesse momento, vislumbrou alguma coisa nos meus olhos que a
fez sorrir, mas eu, absorto como estava com a imagem da Amparo
fechada às escuras, todas as tardes, no meu quarto de criança,
nunca cheguei a saber exatamente o quê.
– Ainda podemos fazê-lo, ou não?
Olhou para mim como se soubesse melhor do que eu até que
ponto um plano aparentemente tão inocente me tentava.
– Não.
Neguei com a cabeça para reforçar a minha resposta, mas ela
continuou a sorrir, como se tivesse calculado com muita
antecedência que alguma obscura faculdade do meu cérebro
saberia avaliar a sua oferta, extraindo dela uma conclusão
perturbadora, fascinante.
– E porque não?
– Porque não quero viver contigo, não quero viver com ninguém,
estou muito bem assim. Gosto de viver sozinho e tenho demasiado
trabalho para poder cuidar de ti. – Era isso que tinha pensado dizer-
lhe e declarei-o como um menino que papagueia uma lição, mas tive
de renunciar a olhá-la para o conseguir. – Percebo que não queiras
voltar para casa do teu avô sozinha, mas posso ajudar-te a
encontrar outro sítio. – Nesse ponto, consegui falar como se
acreditasse totalmente no que estava a dizer e voltei a encará-la,
descobrindo-lhe um sorriso quase trocista. – Podemos ir à paróquia
anglicana que fica aqui ao lado. Eles arranjar-te-iam asilo na
embaixada britânica, sei que o fizeram com outras pessoas. Ou
posso oferecer-te um trabalho como enfermeira no meu hospital. Há
um pavilhão com dormitórios para residentes e não há sítio mais
seguro em Madrid. Ninguém te imaginaria a viver ali. E, se não
quiseres trabalhar, poderíamos…
– Seria como um jogo – interrompeu-me ela, continuando a falar
como se eu não tivesse dito nada –, desses de que gostávamos
tanto quando éramos pequenos. Serei um duende, uma fada que
aparece e desaparece num piscar de olhos. Nunca me verás e, se
algum dia me visses…
Deixou o fim daquela frase suspenso no ar e eu quase consegui
ver o fio dourado, transparente, de onde pendia. Pressenti que era
perigoso, que, se cometesse o erro de perguntar, esse fio se iria
multiplicar até tecer uma rede que me tolheria como uma armadilha,
mas não resisti à tentação.
– Se algum dia te visse, o que aconteceria?
– Oh, bom…
Inclinou a cabeça, sorriu e fechou os olhos. Quando voltou a
abri-los, brilhavam mais do que os meus.
– Se algum dia me visses, dava-te uma prenda. O que tu
quisesses, o que me pedisses, qualquer coisa. Como dantes,
lembras-te?
Assenti devagar, olhei para ela ainda mais devagar e rendi-me
muito depressa.
– Mas não quero ver-te, Amparo. – Envolvi essa mentira num
sorriso.
– Claro que não. – Ela sorriu, pagando-me da mesma moeda.
Porque nos lembrávamos ambos de tudo.
Ambos sabíamos que ela sempre fora muito batoteira e que eu
jogava xadrez muito melhor.
É 14 DE DEZEMBRO DE 1936 E NORMAN BETHUNE ESTÁ EM MADRID.
Para este médico e investigador canadiano, nascido no outro
canto do mundo – Gravenhurst, estado de Ontário, Canadá –, em
1890, a capital de Espanha é um objetivo longamente acarinhado.
Não lhe foi fácil chegar aqui. Após semanas de diligências frenéticas
junto do governo do seu país e de campanhas de recolha de fundos
a todos os níveis, desde departamentos governamentais a coletas
populares, para cumprir o seu desejo, o doutor Bethune teve de
cruzar o Atlântico, de atravessar França por estrada numa viagem
de etapas extenuantes, quase sem descanso, e de fazer um
percurso acidentado por uma Espanha dividida em duas. A
satisfação que sente ao sair de um camião diante da porta do
número 36 da calle Príncipe de Vergara compensa-lhe largamente
todos os esforços.
O doutor Bethune chega a Madrid, como tantos outros milhares
de voluntários estrangeiros, para se pôr ao serviço da Junta de
Defesa e do governo da República. No entanto, a sua vontade é
extremamente ambiciosa, a sua colaboração é tão importante que
as autoridades o instalam num apartamento sumptuoso, com quinze
assoalhadas, antiga casa de um diplomata alemão que depois do
golpe de Estado decidiu prolongar indefinidamente as férias. No piso
de cima fica a sede do Socorro Vermelho Internacional, cujos
trabalhadores acolhem de braços abertos esta representação
entusiasta do povo do Canadá.
Em poucas horas, Bethune e os seus colaboradores retiram
móveis, quadros e tapetes, transformando a residência luxuosa num
laboratório com aparelhos desconhecidos na Espanha da época.
Um armário misterioso, que mais não é do que um frigorífico da
marca Electrolux, um autoclave de grandes dimensões e dois
esterilizadores enormes ocupam a maior parte do espaço dos
amplos quartos. Onde antes havia camas, agora há macas, e, nas
paredes, estantes e vitrinas exibem uma coleção exaustiva de
objetos de vidro. Garrafas com tampas a vácuo, frascos com
sangue, sistemas de soro e recipientes partilham as estantes com
seringas, microscópios, conjuntos completos de instrumentos de
cirurgia torácica, hemocitómetros, uma grande provisão de soro e
máscaras de gás. Contudo, o verdadeiro tesouro de Bethune são
quinze mochilas com outros tantos equipamentos portáteis, entre
eles garrafas adicionais, de embalagens de soro fisiológico e de
solução de glicose, juntamente com uma caixa esterilizada com
toalha, uns fórceps, um bisturi, uma seringa e um fio de costura. O
pessoal destinado à manutenção da casa – um cozinheiro, duas
criadas e um homem encarregado da lavandaria – nunca vira nada
assim. Ignoram certamente que mais ninguém vira, em lugar algum
do mundo, o que eles estão a ver em Madrid.
O Instituto Canadiano de Transfusão de Sangue acaba de surgir
e os seus responsáveis não têm tempo a perder. No dia seguinte à
sua chegada, publicam anúncios nos jornais com a mesma
mensagem que se difunde em todas as rádios ao longo de três dias.
Pedem dadores de sangue voluntários para socorrer os soldados na
frente, mas não sabem que resposta terá o seu apelo. Até esse
momento, só são possíveis as transfusões diretas corpo a corpo,
braço a braço. Aquilo a que se propõem implica um avanço
gigantesco deste procedimento, mas o apelo não se faz a partir de
um hospital, pelo que o resultado os inquieta.
A 18 de dezembro, os nervos quase não deixam Norman
Bethune conciliar o sono. A 19, sábado, dia marcado para o início
das doações, levanta-se muito cedo e abre a cortina para, da
varanda, contemplar a rua. Só dali a algumas horas o Instituto abrirá
as portas e a fila de voluntários já dá a volta à esquina. A resposta
dos madrilenos aumenta e reforça a fé deste canadiano, que
começa a sentir-se em casa, embora não perceba uma palavra da
língua falada pelos pacientes que lhe enchem o consultório. O seu
apelo atrai um grupo heterogéneo de civis e de militares de todas as
idades, profissões e condição, embora haja sempre mais mulheres
do que homens a ocupar as macas.
Depois de confirmar que estão em jejum, requisito imprescindível
no qual a publicidade insistiu irritantemente, os voluntários dispõem-
se a doar meio litro de sangue à causa da República. A sua oferta
preciosa flui para uma garrafa a que foi acrescentada uma pequena
quantidade de citrato de sódio e que é identificada, depois de cheia,
com uma etiqueta onde consta o tipo de sangue, a data da recolha e
a identidade do dador. Cada um deles recebe, além do convite para
um gole na garrafa de brandy preparada para a ocasião, um vale
para comprar comida. Mais tarde, à medida que o cerco endurece
as condições de vida na cidade sitiada, será entregue uma lata de
carne de vaca por cada doação.
O Instituto Canadiano de Sangue atrai tamanha quantidade de
madrilenos que, em pouco mais de três dias, as garrafas saturam a
capacidade do maior frigorífico que existe no mercado, continuando
os dadores a fazer fila todas as manhãs, no passeio dos números
pares da calle Príncipe de Vergara. «Não temos a certeza de por
quanto tempo se conservará no frigorífico e em bom estado o
sangue com citrato, mas esperamos que dure várias semanas»,
escreve Normam Bethune no seu primeiro relatório a Benjamin
Spence, presidente do Comité de Ajuda à Democracia Espanhola
em Toronto e, antes do mais, seu amigo, além de protetor e
patrocinador da missão.
A 23 de dezembro de 1936, chega a hora da verdade. De
manhã, muito cedo, a equipa de Bethune enche as garrafas dos
equipamentos portáteis com sangue de todos os grupos, carrega as
mochilas no camião e dirige-se para o Hospital de Sangre de la
Casa de Campo. Ali, na própria linha da frente, o investigador
canadiano examina os corpos dos soldados desenganados que
agonizam no chão. Procura um candidato ideal e tem muito por
onde escolher, mas decide-se imediatamente por um rapaz que, até
esse momento, estava condenado a morrer por choque
hipovolémico, uma perda massiva de sangue.
O médico espanhol que o está a tratar dá-o por perdido, como a
tantos outros que chegaram antes nas mesmas condições. Com o
pulso fraco, tem a pele pálida, húmida e fria, tensa sobre as faces
fundas de um cadáver, sem vestígios de cor nos lábios. No entanto,
o intérprete do recém-chegado aproxima-se do diretor do hospital
para lhe explicar que aquele senhor calvo que não fala castelhano
lhe quer pedir autorização para tentar ressuscitar o ferido. O
espanhol franze os lábios numa expressão cética. Nunca na vida
ouviu semelhante disparate, mas autoriza a intervenção porque tem
a certeza de que, de qualquer maneira, o soldado vai morrer. No
entanto, e por via das dúvidas, fica a assistir.
Bethune pica o soldado num dedo e recolhe a amostra com uma
pipeta de vidro. Dois minutos depois, identificado o grupo
sanguíneo, injeta-lhe uma agulha para fazer a transfusão da
primeira garrafa de sangue. Nesse instante, acontece o impossível.
O cadáver move-se, o morto abre os olhos, mas ainda não é
suficiente. Perdeu tanto sangue que o canadiano faz a transfusão de
uma segunda garrafa. Antes de tudo terminar, o paciente olha para
ele e sorri.
Norman Bethune conseguiu. Pela primeira vez na história, uma
transfusão de sangue conservado em frigorífico devolve a vida a um
paciente sem esperança de salvamento. A partir de então já não é
necessário que o dador esteja junto do recetor, ligado a ele por duas
agulhas e uma borracha. Esta nova técnica torna as transfusões
muito mais fáceis, mais cómodas, mais práticas e mais eficazes.
A descoberta de Bethune salva milhares de soldados do Exército
Popular da República durante a Guerra Civil Espanhola. Mais tarde,
serão incontáveis os milhões de beneficiários desta invenção que
um investigador comunista, internacionalista e canadiano quis
oferecer à capital do NO PASARÁN, aos homens que nela resistem
e que, por ela, continuarão a resistir durante quase três anos. Só no
Hospital de Sangre de la Casa de Campo, só naquela manhã, a sua
intervenção faz reviver doze soldados.
Não se conhece o nome do primeiro sobrevivente. Porém, sabe-
se que, para comemorar o seu regresso à vida, os companheiros lhe
põem, antes de mais, um cigarro aceso na boca. O soldado chupa
com ânsia enquanto, em volta, uma vaga inesperada de alegria, de
esperança, inunda o recinto tristíssimo do hospital de campanha.
Aqueles que assistiram explodem em vivas ao Canadá, em vivas
àquele médico de apelido impronunciável, em vivas à República, à
luta da classe operária e à solidariedade internacional. Então, o
ressuscitado oferece o seu próprio contributo para a festa,
reivindicando a sua participação imprescindível num acontecimento
histórico.
– Viva eu! – exclama.
Norman Bethune não percebe o que ele disse, mas aquelas
palavras fazem dele o homem mais feliz do mundo.
MADRID, 5 DE JANEIRO DE 1937

O motorista dos canadianos tocou-me à campainha às cinco e


meia da manhã.
– O doutor pergunta se quer vir a Majadahonda connosco. Aqui
continua tudo muito calmo, mas parece que por lá houve tomate…
Tomate, na gíria imposta pela guerra, é sangue, uma
oportunidade excelente para praticar numa altura em que as frentes
mais próximas da cidade permanecem numa calma tensa,
aparentemente duradoura.
– Entre, por favor, e espere um momento. – Abrira-lhe a porta
descalço, de tronco nu. – Visto-me e volto já.
Desde que a notícia do milagre da Casa de Campo chegou ao
hospital de San Carlos, o meu chefe dedicou todas as suas energias
a um único objetivo. Nunca o tinha visto tão empenhado em nada
como em conseguir que o nosso serviço tivesse uma unidade de
transfusões que reproduzisse, em pequena escala, aquela que os
canadianos haviam montado na calle Príncipe de Vergara.
– Disseram-me que já não é preciso, acreditas? Mas, quando os
boches voltarem a apertar, porque vão fazê-lo… Imagina se
tivéssemos podido aplicar esta técnica em novembro, a quantidade
de vidas que não teríamos salvado. Parece mentira estes
carunchosos não quererem entender, não sei que diabo fazem aqui.
Deviam estar a dirigir um hospital em Burgos, caramba…
O enorme prestígio do doutor Quintanilla não bastou para
convencer a direção conservadora do San Carlos, mas era preciso
mais do que uma negativa para que ele desse o braço a torcer.
– Vais encarregar-te disto, Guillermo. O Bethune não pesca nada
de espanhol e eu só falo alemão, que não é, digamos, a língua da
moda.
– Mas, assim que se souber, vão cair-nos em cima. Não temos
autorização.
– Claro que temos. – Sorriu. – Eu estou a dar-te autorização a ti
e tive-a do Andrés, que é o superior hierárquico deste bando de
parvos, de modo que…
No início dos anos vinte, Andrés Velázquez havia recebido uma
bolsa da Junta de Ampliação de Estudos para fazer a especialidade
na Universidade de Heidelberg. No mesmo ano, Fortunato
Quintanilla obteve a mesma bolsa e pediu o mesmo destino. Desde
que se encontraram na carruagem do comboio que os levaria à
Alemanha, tornaram-se inseparáveis, com as vidas paralelas até ter
rebentado a guerra. Nessa altura, o doutor Quintanilla continuou no
seu posto, mas o doutor Velázquez deixou a cátedra de Psiquiatria
da Universidade Central para incorporar o Comité Diretivo da Junta
de Defesa de Madrid. A única coisa que não mudou foi a frequência
com que qualquer um dos dois invocava a amizade do outro para
contornar as regras.
– No fim de contas – prosseguiu o meu chefe, todo ufano –, o
Instituto Canadiano já recebeu um pedido cheio de carimbos oficiais.
Esta tarde vais até lá e tentas aprender tudo o que te ensinarem, o
mais rapidamente que puderes. Entendido? – Olhou para mim por
cima dos óculos. – É… como direi?
– Uma ordem?
– Isso mesmo.
Todas as que me deu desde que a guerra começou tinham
redundado a meu favor, mas nenhuma me proporcionou tantos
benefícios como aquela. Uma única tarde no Instituto Canadiano
não só aumentou os meus conhecimentos sobre o sangue, como
me elevou o estado de espírito. O que Bethune estava a fazer por
Madrid comoveu-me tanto que de vez em quanto tinha de controlar
a emoção para compreender o que me explicava em francês. Fazer
parte da sua equipa, mesmo que temporariamente, devolveu-me as
certezas apaixonadas, inocentes, que me haviam amparado nos
dias duríssimos dos bombardeamentos de novembro, antes de a
minha vida se transformar num território inexplorado por onde eu
avançava com a segurança que me teria inspirado um campo de
minas. Por isso, quando me perguntou se conhecia alguma pessoa
de confiança disposta a oferecer-se como voluntária para a minha
primeira recolha, respondi-lhe que sim.
Ao regressar a casa bati com os nós dos dedos naquele que era
já o quarto da Amparo e informei-a num tom neutro, firme mas
amável, de que às oito da manhã tinha de estar preparada para sair
e que não podia comer nada antes. Isso bastou para que os seus
olhos brilhassem.
– É uma prenda?
– Não, é um favor. – E a minha resposta não foi suficiente para
apagar o brilho. – Não queres fazer-me um favor?
– Claro. Mas, se não me disseres mais nada, os nervos não me
vão deixar dormir.
– Isso pouco importa. A única coisa que interessa é que estejas
em jejum.
Pousei a mão na maçaneta e olhei para ela. Deu-me algum
trabalho dominar os dedos, mas desejei-lhe as boas-noites, fechei a
porta e fui para a cama. Na manhã seguinte, quando me levantei, já
ela me esperava na sala.
– Estou bem vestida?
Vestia um conjunto saia-casaco bordeaux, sapatos pretos de
meio salto e uma carteira da mesma cor que parecia nova. Pusera
uns discretos brincos de ouro e um lenço de seda colorido em volta
do pescoço, a elegância sem estridências, pensei, que teria adotado
para assistir ao casamento de um dos filhos da Experta, ou para
alguma reunião matutina de qualquer um dos comités católicos de
caridade de que fazia parte antes da guerra.
– Suponho que sim – acabei por aprovar –, mas a roupa é o que
menos interessa.
Embora habitássemos na mesma casa havia mais de um mês,
gostava tanto de mal-entendidos que eu ainda não tinha aprendido a
antecipar-me. Naquela manhã, também não percebi por que razão,
tão cedo e em jejum, ela arregalava os olhos, engolia em seco e
suspirava, olhando para o teto, qual um mártir prestes a entregar-se
aos leões.
– Vou ter de me despir?
– Não, não te preocupes. – A expressão de alívio fingido já
minha conhecida arrancou-me um sorriso. – Sinto muito, mas vais
ter de o fazer completamente vestida.
O meu comentário, tão ambíguo como tudo entre nós, alimentou
o seu mal-entendido predileto, mas absolvi-me pensando que, se
não fosse por isso, ela não se deixaria levar com tanta mansidão até
ao destino. Não era verdade, mas eu já perdera o respeito à
verdade e interpretava-a como melhor me convinha. O jogo que a
Amparo inventou provocava-me no espírito, e também no corpo, os
mesmos efeitos que as letras picantes das canções de revista
desencadeavam no espírito do meu avô. Divertia-me imenso e
depois sentia-me culpado. Nem sequer podia invocar o capricho da
sorte, a inocência que me tinha amparado enquanto tratava de tudo
para que don Fermín fizesse companhia ao vizinho por toda a
eternidade. Era tão responsável como ela desde que, um dia depois
de ter feito a proposta, a encontrei sentada numa cadeira do
vestíbulo às sete e cinco da tarde.
– Ai! – Recebeu-me com um sorriso. – Apanhaste-me.
– Claro que sim, já estava à espera. – Sorri também. – Sempre
foste uma batoteira, Amparo. Vai já para o teu quarto.
Ela levantou-se muito devagar, olhou-me como se soubesse que
eu estava há três horas com tesão e atravessou o vestíbulo com
parcimónia.
– Mas tu vens agora, não vens? – sugeriu, do umbral da porta.
– Não.
– E a prenda?
– A prenda – repliquei, sorrindo de novo – é que vás para o teu
quarto e só saias amanhã, depois de eu ter ido para o hospital.
– Estás a falar a sério?
– Evidentemente.
– Mas que prenda tão aborrecida…
– Bom, nunca disse que seriam divertidas.
Mas depressa passaram a sê-lo. O suficiente para justificar o
estado de ansiedade deleitosa, cintilante, que lhe entrecortava a
respiração enquanto percorria, pendurada no meu braço, um curto
trajeto a pé.
– Aonde vamos? – À entrada do prédio, todo o corpo se lhe
contraiu. – Não me dizes? – insistiu enquanto subíamos as escadas.
– Diz-me! – Apertou-me o braço quando toquei à campainha. – Nem
sequer me vais dar uma pista?
– Não.
A minha última negativa provocou-lhe uma explosão de riso
nervoso que depressa cessou quando uma jovem sorridente, e
inequivocamente vestida de enfermeira, abriu a porta e se dirigiu a
mim, como se eu houvesse chegado sozinho.
– Bom dia, doutor García. Já tem a sala preparada, estávamos à
sua espera. O doutor Bethune irá imediatamente.
– Um consultório? – sussurrou-me Amparo ao ouvido, e eu senti
a centelha de um medo verdadeiro que crescia velozmente no seu
assombro. – Porque me trouxeste aqui?
Não proferi palavra até abrir a porta, porque as melhores regras
daquele jogo eram as que não tínhamos combinado e nenhuma
delas me agradava tanto como encaminhar Amparo sem
necessidade de lhe tocar, verificar que as minhas palavras tinham
um poder superior ao dos meus atos, que uma única frase bastava
para a excitar ou desanimar, assim eu o desejasse.
– Porque te vou fazer uma coisa incrível. – Aquela vez não foi
exceção. – Entra e tira o casaco.
Um sorriso tão rasgado, que pareceu prescindir da boca que o
sustinha e flutuar no ar, respondeu-me antes de que a sua voz o
fizesse.
– Aviso-te de que por baixo só tenho uma combinação.
– Ainda bem. – Aquele comentário animou-a mais do que o
necessário. – A saia não, Amparo, só o casaco. – Voltou a subir o
fecho e olhou para mim. – Assim, muito bem, deita-te na maca, por
favor.
Antes de o fazer, tirou os sapatos. Depois, alisou a saia, esticou
os braços ao longo do corpo e voltou a olhar para mim.
Naquela altura, a 2 de janeiro de 1937, já eu conhecia muito bem
o seu olhar de pretensa passividade, um truque a que recorria para
justificar-se ante mim, talvez também para si própria, o facto de
estar descontrolada. Ela era a única autora do argumento, das
condições e do ritmo da sua aparente perdição, um processo que
tentava controlar meticulosamente porque tinha muito mais tempo
do que eu para pensar nisso. A guerra proporcionava-lhe um
pretexto insuperável, o cenário ideal para o perpétuo espetáculo
teatral em que transformara a sua vida e em que aspirava
transformar a minha. Presa numa cidade inimiga, numa casa hostil,
atribuiu a si própria a personagem de vítima indefesa, mas, embora
esse papel a tornasse bastante desejável, excitava-a demasiado,
excitava-a tanto que o seu próprio desejo a impedia de o
representar com convicção. Quando chegava ao ponto de rutura,
perdia as estribeiras e acabava a suplicar pelo que inicialmente
declarava temer. Essa era a minha parte favorita da representação
e, para a provocar, reuni os instrumentos, ordenei-os numa bandeja
e anunciei-lhe o que a esperava sem me voltar para a ver.
– Vou tirar-te meio litro de sangue, Amparo.
– O quê? – Quando o fiz, vi-a sentada, com uma expressão
muito diferente nos olhos.
– Porta-te bem. – Pousei-lhe a mão na barriga e empurrei-a
suavemente para baixo. – Tens de estar deitada e calma, muito
quieta, entendido? Só te vou tirar sangue. Não te vai doer, prometo-
te. – Sorri entre dentes enquanto a porta se abria atrás de nós. – Já
te fiz coisas piores.
– Bonjour, Guillaume.
– Bonjour, docteur. – Apertei-lhe a mão e apontei para a maca. –
C’est mon amie Amparo. – Nessa altura voltei-me para ela. –
Apresento-te o doutor Bethune, o diretor do Instituto. – Os dois
apertaram as mãos. – Amparo ne parle pas français.
– Cela n’est pas necessaire. – O canadiano sorriu e ela puxou-
me pela manga.
– Mas és tu que mo vais tirar, certo? – Assenti com um
movimento da cabeça, e ela aprovou, passando a língua pelos
dentes, primeiro pela linha de baixo, depois pela de cima. – Como o
conde Drácula…
– Tal qual – afirmei, enquanto Bethune se ria.
Era a primeira recolha de sangue que fazia na vida, a primeira
vez que o fazia num paciente, instruído numa língua que não era a
minha, e, excetuando as aspirinas que dava à minha avó quando lhe
doía alguma coisa, era a primeira vez que tratava de uma pessoa
com quem mantinha uma relação íntima. Porém, aquela intervenção
simples e inócua acabou por ser mais difícil do que havia imaginado,
por razões alheias à medicina.
– Ai, ainda por cima em francês! – Porque a Amparo se
entrincheirou na nossa língua materna para fazer a guerra por sua
própria conta. – Vou ficar excitada, Guillermo, tu lá sabes…
Decidi ignorá-la enquanto o canadiano me explicava a função do
citrato de sódio que esperava pelo sangue na garrafa, como afetava
a sua densidade, a velocidade a que era normal fluir, os
contratempos que poderiam surgir e os seus motivos, mas Amparo
continuava na sua, enquanto Bethune olhava para ela como se não
precisasse de perceber espanhol para intuir o tipo de relação que
me ligava à paciente. E para se divertir.
– Olha para o estado dos meus mamilos… Esse careca está a
olhar para eles há meia hora, e tudo por tua culpa.
Nesse momento, a garrafa com o sangue ficou cheia. Passados
instantes, retirei a agulha, dei à Amparo um algodão embebido em
álcool e expliquei-lhe o que tinha de fazer com ele. O meu professor
aprovou com um movimento da cabeça, felicitou-me por ser tão bom
aluno e perguntou-me se gostaria de continuar a fazer sozinho as
recolhas daquela sala. Agradeci-lhe a confiança, e ele despediu-se
da Amparo com um aperto de mão. Pediu-me que a acompanhasse
à cozinha para que ela tomasse o pequeno-almoço e deixou-nos
sozinhos.
– Que estás a escrever agora?
– O teu nome – expliquei-lhe, preenchendo a etiqueta –, o teu
grupo sanguíneo, a data de hoje, e um aviso: cuidado, sangue
fascista, muito perigoso.
– Não te atrevias…
– Claro que não. Imagina se este sangue salva a vida do Líster
ou do general Miaja. – Finalmente, olhei para ela. – Isso sim,
deixava-te excitada, hã?
– És muito engraçado, sabes? – Mas, ao mesmo tempo, tentou
introduzir um dedo da mão direita, o braço que eu escolhera para a
recolha, pela cintura das minhas calças.
– Está quieta, Amparo. – Tirei-o, pousei-lhe o algodão na dobra
do braço e levei a sua mão esquerda até lá. – Aperta-o bem porque
senão vais ficar com um hematoma.
Guardei a garrafa no frigorífico e fomos para a cozinha.
– E dão de comer a toda a gente?
– Não, só aos que têm cunhas.
– Ai, quem me dera a mim que me cunhassem.
– Porra, Amparo! – Exclamei, rindo. – Que ordinária me saíste
desde que vives na zona vermelha.
Pousei-lhe um beijo na cara para me despedir e regressei à sala
2. Correu tudo muito melhor sem ela na maca, no entanto, quando
estava a terminar a segunda recolha, a cozinheira bateu à porta com
os nós dos dedos.
– Doutor García, pode ir à casa de banho um instante, por favor?
A menina não se sente bem.
Pedi à enfermeira que instalasse o voluntário seguinte, prometi-
lhe que voltaria o mais breve possível e, como se me tivesse ouvido,
Amparo abriu a porta da casa de banho antes que eu tivesse tempo
de bater.
– Que se passa, sentes-te maldisposta?
– Não, não é isso. – Agarrou-me pela manga, puxou-me para
dentro, fechou a porta e trancou-a. – Mas estou muito mal. – Pousou
as mãos na minha cintura, empurrou-me, obrigando-me a sentar-me
na retrete e começou a levantar a saia. – Estou muito mal, muito
mal…
– Amparo. – Tentei levantar-me, e ela voltou a empurrar-me. –
Amparo, estou a trabalhar…
– Não vamos demorar nada, tolinho. – Sentou-se em cima de
mim e começou a abrir os botões das minhas calças com uma
habilidade espantosa. – Nem três minutos, prometo-te. Se calhar
nem dois. Se tivesse vomitado, demoraríamos muito mais, vais
ver… – Antes de acabar a frase, já tinha conseguido tirar a minha
pila e sentar-se em cima dela. – Fiz um favor à República, não fiz? –
Só olhou para mim antes de começar a mover-se. – Agora, a
República que faça alguma coisa por mim.
Quando comecei a desculpar-me com os estudos para não o
acompanhar a casa de don Fermín, o meu avô pôs-se a observar-
me mais preocupado do que era costume. Estava sempre
preocupado comigo, como antes estivera com a minha mãe, uma
menina presa a uma doença que parecia uma maldição do destino.
A minha avó tivera três filhos antes dela e nenhum chegou a fazer
um ano. Que Rosa, a mais nova, a única que cresceu saudável,
tivesse o seu primeiro ataque epilético com sete anos acabados de
fazer foi uma tragédia da qual não parecia ser fácil recuperar.
Porém, a epilepsia nunca conseguiu destruir a força interior de uma
menina que aprendeu a conviver com ela e que chegou à idade
adulta em condições muito melhores do que se previa. Não o teria
conseguido sem um excelente médico, um neurologista que encarou
o bem-estar da minha mãe como uma questão pessoal, com tanto
êxito que morreu antes dela. Nessa altura, já a encaminhara para o
seu discípulo predileto, tão jovem como ela, chamado Guillermo, à
semelhança do pai da sua paciente.
Os meus avós tinham perdido qualquer esperança de um dia
virem a ser chamados por esse nome, quando a filha lhes anunciou
que se ia casar. Um terramoto teria sido menos surpreendente. Não
tiveram tempo para se pôr de acordo, de modo que a minha avó
chorou de alegria enquanto o marido se opunha energicamente ao
casamento. Rosa sorrira, abanara a cabeça e dissera-lhes que não
tinham percebido. Já tinha trinta anos e não lhes estava a pedir
autorização. Ia casar-se porque estava grávida, e apaixonada,
também, pelo seu médico, e essa segunda comunicação provocou a
reação exatamente oposta. O meu avô, contrário ao casamento
devido às consequências que o sexo poderia ter na saúde da filha,
abraçou-a depois de lhe dizer que aquele era o dia mais feliz da sua
vida. A mulher, enquanto isso, abanava a cabeça, despedindo-se da
ideia de uma vastíssima lista de convidados. Sete meses depois do
casamento, na primavera de 1914, nasci eu. A gravidez correu bem,
mas o parto e a amamentação enfraqueceram muito a primípara. Os
ataques de que padeceu durante o puerpério e a sua própria idade
bastaram para que o meu pai decidisse não a voltar a engravidar.
O instinto de sobrevivência de Rosa Medina não lhe diminuiu a
amargura de ficar viúva em 1919. No hospital, o marido contraiu o
vírus de uma gripe mortal que havia provocado duas grandes
epidemias seguidas em muito pouco tempo e morreu aos trinta e
seis anos. Durante os últimos meses, dormiu sozinho e sempre que
se aproximava da mulher usava uma máscara a cobrir-lhe a boca
para não contagiar aquela que parecia ser a mais fraca dos dois.
Quando ele adoeceu, a minha mãe dormiu com ele todas as noites.
Cuidava dele, lavava-o, alimentava-o, e não adoeceu. Ninguém
percebeu como, nem sequer ela, que quis morrer com ele mas que
lhe sobreviveu, que continuou a desejar a morte, mas que acabou
por ultrapassar a viuvez, que voltou a apreciar a vida, mas que, de
repente, passados sete anos, sentiu os sintomas de um ligeiro
catarro, que se foi fortalecendo e metamorfoseando, até acabar
numa pneumonia que a matou num dia de inverno de 1926. Com
ela, voltei a perder o meu pai.
Fechávamo-nos quase todas as tardes no seu quarto e ela
punha sempre uma fotografia do marido entre nós. Falava com ele
como se estivesse vivo, num tom cúmplice, risonho, tornando-me
partícipe daquilo que mais não era do que uma brincadeira. Viste
como o teu filho gosta que lhe façam cócegas?, perguntava às
vezes, quando a encontrava na cama no regresso da escola e me
deitava a seu lado, deixando-me acariciar. Não havia tristeza, nem
nada de macabro na presença constante de um morto nas nossas
vidas, pelo contrário. Aquele homem a quem chamei papá muito
mais vezes depois de morto do que quando estava vivo era a senha
de um amor mútuo tão grande, que eu e a minha mãe não
chegávamos para o alimentar. E eu amava-a tanto, estava tão
orgulhoso dela, da sua força, do eterno sorriso que era mais forte do
que a dor e que estava sempre pronto a receber-me, que senti que
a morte dela apagava o mundo.
Aos doze anos transformei-me num menino triste, mas era filho
da minha mãe e aprendi a conviver com a mágoa; mais tarde,
aprendi a sobreviver-lhe e, finalmente, a ultrapassá-la. Custou mais
aos meus avós. Eu não podia espirrar, dizer que me doía a cabeça
ou fazer uma ferida no joelho sem que chamassem imediatamente
um médico que me costumava prescrever paciência e, a eles,
calma. Como nunca tive nada mais grave do que uma constipação,
a avó acabou por aceitar a minha saúde, contudo, a minha
adolescência infiltrou no espírito do marido uma preocupação
diferente.
– Vais sair hoje à tarde, Aurora?
Estava quase a fazer dezasseis anos e havia estufado para o
almoço.
– Vou. – A minha avó respondeu sem o olhar, concentrada na
proeza de lhe servir um prato sem cenouras. – Tenho de ir à modista
e, se tiver tempo… – Antes de eliminar do meu prato todas as
ervilhas. – Gostava de passar pela casa da minha irmã.
– Portanto ficamos sozinhos, Guillermo. – O meu avô voltou-se
para mim e sorriu, enquanto a mulher se servia de um prato com
todo o tipo de verduras. – Podemos fazer um programa de homens,
o que achas?
Eu desconfiava de que a grande preocupação do meu avô se
transferira da saúde do meu corpo para a do meu espírito, e julgava
saber o motivo da sua inquietação. Embora nunca tivéssemos
falado nisso, apercebia-me, nos olhos dele, de um ingrediente
húmido e turvo, como um véu esbranquiçado, de cada vez que
olhava para mim, e achava que era tristeza, angústia, pela solidão
de um rapaz metido entre dois velhos. Ainda não havia encontrado
maneira de o tranquilizar, de lhe garantir que não podia sentir falta
do que nunca tivera, mas naquele dia também não percebi o alarme
da mulher dele, que me apertou a mão enquanto observava o
marido com os olhos muito abertos, os ombros muito erguidos e
todo o corpo hirto.
– Guillermo! – Pela forma de o dizer, soube a qual dos dois se
referia. – Não te passou pela cabeça…?
– Claro que não, mulher. – Ele fingiu escandalizar-se, mas não
se saiu muito bem. – Tens com cada uma!
A minha avó conhecia o marido muito melhor do que eu, mas
nunca teria adivinhado a natureza do ritual que ele oficiou para mim
naquela tarde.
– Sabes guardar um segredo?
Julguei que íamos jogar xadrez. No entanto, quando lhe respondi
que sim, abriu com chave uma gaveta do escritório que estava
sempre trancada, tirou uma pasta de cartão repleta de folhas
datilografadas e estendeu-ma. Não, pelo amor de Deus, disse para
comigo, pensando no que me esperava, novamente Inês de Castro,
Joana, a Louca, os Comuneiros, o Cid… No entanto, na capa, topei
com um título surpreendente, Orgia em Constantinopla, e um nome
desconhecido, Federico Ramos, autor também de O capricho do
serralho e de A moleira travessa.
– Que é isto? – Olhei para ele, que desatou a rir. – Foste tu que
escreveste?
– Sim, mas que a tua avó não saiba.
Anos depois, compreendi que o que o angustiava não era a
minha solidão, mas a suspeita de que o meu caráter, a minha
seriedade solitária de filho único, estivesse associado a preferências
sexuais. Tinha medo de que eu não gostasse de mulheres, e o
entusiasmo com que lhe garanti que me rira de todas as piadas, que
as letras das canções me haviam parecido divertidíssimas, que tinha
lido a obra de uma assentada, souberam-lhe a pouco. Quando eu já
só aspirava ler as obras completas de Federico Ramos, ele decidiu
dar mais um passo, que depressa aceleraria o meu ritmo de vida.
– A mim, aqui, ninguém me conhece – avisou-me quando saímos
de um táxi diante da fachada do Teatro Eslava. – De modo que o
melhor é ficares calado e que nem te passe pela cabeça dizer o
meu nome, vê lá não metas o pé na argola.
Não era a primeira vez que o meu avô me levava a ver um
ensaio de uma peça sua, mas aquela tarde foi única, diferente de
qualquer outra, do princípio ao fim. Porque não entrámos pela porta
principal, mas pela dos artistas. Porque não vimos o espetáculo da
plateia, mas de um dos lados do palco. E sobretudo porque, embora
fosse um ensaio geral com vestuário, quem nos deu as boas-vindas
nos bastidores foi uma rapariga muito nova, muito bonita e despida
da cintura para cima. Em baixo, vestia apenas umas minúsculas
cuecas de lantejoulas douradas, terminadas numa grande cauda de
penas de pavão. Eu nunca tinha visto uma mulher assim e, por
instantes, só senti espanto, uma sensação gelada que continha um
germe de calor que me explodiu imediatamente nas faces. Era
vergonha, mas não se assemelhava a nenhuma outra que
anteriormente me tivesse feito corar. Era uma vergonha íntima e, ao
mesmo tempo, alheia, intensa, porém, moderada, simultaneamente
agradável e desagradável, uma sensação nova e tão estranha que
até a mim me pareceu duvidosa, talvez por ninguém ter reparado
nela.
– Ai, don Federico! – A rapariga comportou-se como se eu fosse
invisível. – Que revista tão bonita o senhor escreveu! – E o meu avô
assentiu sem lhe tirar os olhos de cima, a sorrir como um tolo. –
Assim dá gosto trabalhar.
Aproximou-se dele, empoleirada nos saltos, lançando-lhe um
olhar incendiário, atiçado pelos reflexos de uma maquilhagem
dourada, rematada com pequenas penas nas fontes, que lhe
emprestavam aos olhos um aspeto inacreditável, animal e metálico
ao mesmo tempo. Eram tão poderosos que atraíam os meus como
um íman e, embora me desse conta de que deveria aproveitar a
oportunidade para me concentrar nos seios, que lhe saltavam,
elásticos, a cada passo, não conseguia desviar o olhar. Assim,
preso ao chão como um caçador desarmado à espera do tigre que o
vai devorar, vi-a aproximar-se, tão selvagem, tão bonita, tão
perigosa que metia medo.
– Susi. – O meu avô estendeu-lhe os braços e isso ainda me
assustou mais. – Fico contente por, finalmente, te terem dado um
papel.
– Ai, sim! – Ao abraçá-lo, esmagou os seios no peitilho da
camisa dele com uma naturalidade aterradora. – Se soubesse como
estou contente…
– Sim, sim, mas não me beijes, que me sujas.
Naquela tarde, nos bastidores do Teatro Eslava, aprendi mais do
que em algum outro momento até então. Que as mulheres dos
postais que circulavam pelo pátio da escola existiam realmente.
Que, embora estivessem nuas, agiam como se estivessem vestidas.
Que as ereções podiam chegar a doer. Que essa dor, sendo-o,
realmente não doía. Mas o mais importante, que a vida era muito
simples e ao mesmo tempo muito mais complicada do que eu
imaginava, isso, como tantas outras coisas, foi o meu avô quem me
ensinou.
Nunca teria acreditado que o pai abnegado, o funcionário
íntegro, o marido carinhoso, o republicano exemplar, o dramaturgo
patriótico, o homem admirável que don Guillermo Medina sempre
fora e seria até à morte fosse tão suscetível a um bom par de
mamas como um fedelho que as via pela primeira vez. Quando me
recompus do espanto e consegui voltar a raciocinar, a ordenar tudo
o que descobrira numa sequência lógica, compreendi que aquela
fraqueza tão visível tinha a virtude de o definir, de iluminar o caráter
invulgar do comissário da polícia, para cujo gabinete eram levados
todos os carteiristas de Madrid, a fim de que ele os despachasse
com um discurso sobre a responsabilidade da oligarquia no seu
triste destino de analfabetos miseráveis e os mandasse para casa
sempre que possível e, não o podendo, para o julgado do pai do
Miguel Salcedo, que os trataria com idêntica benevolência. Esse
mesmo homem, cuja única pátria era a humanidade, pusera os
cornos à mulher com metade das coristas da cidade. Isso não o
tornava nem mais, nem menos progressista, mas abria uma fissura
inesperada, quase consoladora, na sua integridade monolítica, além
de o associar aos comportamentos dos espanhóis que mais
detestava, os seus próprios vizinhos da calle Hermosilla 49,
fechando o círculo de uma contradição que me pareceu insanável.
No entanto, ele convivia muito harmoniosamente com ela. Porque,
quando a Susi se afastou e ergueu um estranho objeto coberto de
plumas que parecia um sutiã oco, desenhado para mostrar o peito
em vez de o cobrir, a única coisa que lhe faltou foi lamber-se como
um gato.
– O senhor ponha-me isto, ande, que não sei onde a Candi se
terá metido… – Voltando-se, acabou por me ver. – Ah! – Exclamou,
enquanto o meu avô lutava com os colchetes. – E esta lindeza?
– É meu neto, portanto vê lá se te portas bem com ele.
– E porque haveria de me portar mal?
Ele nunca chegou a responder à pergunta porque, naquele
momento, se ouviu um estrépito de saltos que se moviam em
uníssono. Em cima deles, avançava uma revoada de pavões com os
seios descobertos que num instante o rodeou.
– Don Federico!
– Que prazer vê-lo!
– Que bom ter vindo!
A visão de tantas mulheres nuas aparentemente iguais, todas
perfeitas, quase me deixou enjoado. Susi evitou-o, aproximou-se de
mim e acariciou-me a cara com as suas unhas vermelhas, enormes.
– E tu, como te chamas?
– Eu? – Apercebi-me de que não devia dizer o meu verdadeiro
nome, mas estava tão nervoso que não fui capaz de improvisar. –
Bom… Guillermo.
– Ai, que amoroso! – Desatou a rir-se. – Igual ao do avô.
Contudo, as raparigas do Eslava, que sabiam perfeitamente
quem era o autor da revista, depressa me deram outro nome.
Porque, embora o meu avô se tenha dado por satisfeito com o
atordoamento feliz que me acompanhou no caminho de regresso a
casa, a única coisa que eu sabia era que não me contentava com
uma tarde. Perguntei-lhe se podia voltar no dia seguinte, mas ele
disse-me que não, que tinha de dedicar-me aos estudos se queria
entrar na universidade em setembro, embora me tenha oferecido
dois bilhetes para que eu pudesse convidar o Miguel para a estreia.
Agradeci com um abraço aquele prémio de consolação e, no dia
seguinte, a meio da tarde, disse à minha avó que ia estudar para a
biblioteca e postei-me à porta dos artistas do Eslava.
Quando se celebrou a última sessão de Orgia em
Constantinopla, até os maquinistas me chamavam Meri, de
Meritório. A alcunha que a Maruja, a vedeta da companhia, me
pusera teve tanto êxito porque todos no teatro assumiam que eu me
ofereceria para o que quer que fosse: apertar sutiãs ou corpetes, ir à
rua comprar cigarros, trazer café, sandes, enfim, o que fosse preciso
para me tornar meritório. A recompensa à altura de tanta solicitude
inspirava piadas diárias, troças e promessas equívocas, risonhas,
que eu nunca levei a sério. Teria sido mais justo chamarem-me
Bobby porque, na verdade, transformei-me num animal de
estimação durante a longa temporada que a revista permaneceu em
cartaz: um pouco menos do que um irmão mais novo, um pouco
mais do que um admirador. Alguém suficientemente íntimo para
abrir a porta do camarim por onde andavam meio despidas e rir-se
com elas dos velhos brejeiros, que lhes mandavam flores e estojos
com anéis de pechisbeque muito bem feitos, mas que nunca as
enganavam. Alguém suficientemente inofensivo para se sentarem
nos seus joelhos e agitarem um pouco o rabo antes de lhe pedirem
que lhes apertasse uma liga. Felizmente, o meu avô recusara-se a
matricular-me num colégio religioso. Caso contrário, a frequência
simiesca com que cheguei a masturbar-me durante aqueles meses
ter-me-ia provocado pesadelos horrendos e uma crise de
consciência de consequências imprevisíveis. Como era aluno da
Instituição1, inscrevia-me nas caminhadas extenuantes ao fim de
semana pela serra de Guadarrama, que me cansavam o suficiente
para chegar moído ao teatro, à noite. Durante a semana, dedicava
as tardes ao estudo com o mesmo afinco deliberado.
As coristas do Eslava eram perspicazes, engenhosas, divertidas,
perfeitamente capazes de se defenderem sozinhas e muito
conscientes do que queriam. Por isso, nunca tive ilusões. O meu
avô, que sabia tudo e que as conhecia melhor do que eu, limitou-se
a sorrir quando nos encontrámos na festa que se celebrou no palco
depois da última representação. Porém, quando a Candi se
pendurou no meu braço, me levou até um canto do palco e me disse
que a perseverança era a chave do sucesso, tremeram-me as
pernas.
– Diz-me uma coisa, Meri… Já reparaste como a galega é boa?
– Sim – reconheci, porque a galega era a Susi, e a primeira
impressão permanecia inesquecível. – A verdade é que está boa
como o milho.
– Claro que sim – assentiu com a cabeça, aproximando um
pouco mais os lábios do meu ouvido. – Não gostarias de ir para a
cama com ela?
Fiquei tão espantado que nem sequer consegui dizer a verdade.
– Bom… não sei…
– Ah! Não sabes? Nesse caso, devo ter-me enganado.
Afastou-se um pouco, olhou-me como se estivesse aborrecida e,
naquele momento, embora não tivesse a mínima ideia do que ela
queria dizer, apercebi-me de que falava a sério, de que eu estava
com imenso medo e de que ia deixá-la fazer o que quisesse comigo.
– Não, não, não… – Agarrei-a por um braço para impedir que se
fosse embora. – Não te enganaste, quero dizer. Claro que sim,
quero, quero…
– Assim está melhor, não achas? Porque eu também gostava de
ir para a cama com ela, e como comigo ela se arma em difícil, mas
sei que engraça contigo… Tive uma belíssima ideia, vais ver.
Depois de comermos as passas com que demos as boas-vindas
a 1931, o meu avô ergueu solenemente o copo para brindar ao ano
do milagre. Quando o dia 14 de abril2 lhe concedeu o que ele
esperava, eu era o único dos meus amigos ainda virgem. Não tinha
irmãos mais velhos, nem padrinhos, nem tios que me levassem às
putas, e sabia que o meu avô aplicava o discurso que fazia aos
carteiristas àquelas que depunham na esquadra, de modo que não
me atrevi a pedir-lhe. Pensei que o teatro me bastava, porém, nunca
imaginei com que facilidade esse bastante acabaria em demasiado
numa noite de maio. Isso, sim, era um milagre, e não a República,
concluí de madrugada, enquanto regressava a pé para casa. Era
inexperiente, mas não tonto. Dera-me conta desde o princípio de
que o meu papel naquela sessão era o de fazer com que a Susi não
se assustasse por estar na cama com a Candi, mas foi-me
indiferente porque comi as duas.
Mil novecentos e trinta e um foi realmente o ano dos milagres.
Desde aquela noite, e até encontrar a Amparo fechada no armário
do quarto da criada, Espanha mudou tanto que ninguém conseguiria
reconhecê-la. Nem a mim. Quando ela me reformulou as regras do
jogo das escondidas, mal me lembrava do papalvo desajeitado que
em tempos fora. No fim de 1936, alguns dos meus amigos já
estavam casados e eu ainda não tivera uma namorada formal, mas
embora às vezes me preocupasse não ter grande sucesso com as
boas raparigas, as más tinham-me ensinado a brincar a quase tudo.
– Mas, tu… – A Amparo não percebia nada. – Onde aprendeste
todas estas coisas?
– E tu? – Perguntei, embora percebesse ainda menos.
– Eu? – Punha uma mão no decote e olhava para mim, fingindo-
se surpreendida. – Mas se és tu quem decide sempre!
– Não. Tu começaste. Tu tomaste a decisão mais importante.
– Está bem, mas nunca pensei que chegássemos tão longe.
Isso realmente era verdade. Tanto que, ao ouvi-la, pensei que
também eu fora mais longe do que me convinha. Não gostei
daquele pensamento, porque a Amparo me agradava muitíssimo e,
embora estivesse disposto a pagar qualquer preço para que assim
não fosse, não conseguia evitá-lo. Era injusto, absurdo, irritante e de
mau agouro, mas no último dia de 1936, quando tivemos esta
conversa, já eu havia descoberto que, se viera ao mundo para
alguma coisa, era para ir para a cama com a Amparo Priego
Martínez. Se recuperei o discurso bem-intencionado e inocente do
primeiro dia, não foi para contrariar essa convicção, mas para obter
uma resposta que a confirmasse.
– Podes ir embora quando quiseres, Amparo. – Ao ouvir-me, ela
baixou a cabeça. – Estou disposto a ajudar-te, já sabes. Posso
acompanhar-te à igreja anglicana, levar-te ao meu hospital, a uma
casa segura… Só precisas de o dizer. – Quando terminei, ainda não
a tinha levantado.
– Está bem – respondeu passados instantes, com os olhos ainda
fixos no chão.
– O que é que está bem?
– Bom, isto, que… – Olhou para mim e tornou a baixá-los. – Está
bem.
– Não percebo, Amparo.
– Claro que percebes – sorriu. – O que se passa é que queres
que o diga.
– O que é que eu quero que digas?
– Queres que diga… – inclinou a cabeça e olhou para mim pelo
canto do olho – que gosto disto.
– E o que é isto?
– Bom… O que me fazes… O que fazemos. Viver contigo.
– E gostas?
– Sim. – Finalmente, olhou para mim. – Gosto.
– Muito bem. Então vou dizer-te uma coisa. Ainda não fomos a
sítio nenhum.
– Não?
– Não. Ainda podemos chegar muito mais longe…
Também isso era verdade, embora eu me tivesse proposto
exercer um controlo férreo sobre a minha imaginação, a que só
muito de vez em quando renunciava. Entretanto, a minha relação
com a Amparo encaixava no molde daquela que poderiam manter
amantes pouco convencionais. Ela provocava-me constantemente e
eu respondia mandando-a para o seu quarto, para lhe alimentar o
desejo, e o meu, até que a corda imaginária que nos unia, cada um
do seu lado do corredor, se quebrava, incapaz de aguentar tanta
tensão. Tudo o que acontecia entre nós se ajustava a essa pauta, e
o episódio na casa de banho do Instituto Canadiano não foi
exceção.
– Não devias ter feito isto, Amparo.
Tinha cumprido a sua palavra. Não demorámos nem três
minutos, porque a simples vontade de dar uma queca bastara para
ativar uma reação fulminante, incompreensível, mais forte do que a
minha própria vontade de se opor à sua.
– Ah não? Mas parece que gostaste.
Eu não sabia que poder era o dela, mas pressentia que ninguém
lhe havia ensinado nada, que agia por impulsos, por uma
predisposição natural que a tornava ainda mais poderosa. Quando
se instalou em minha casa não era virgem, mas eu tê-lo-ia
adivinhado sem grande dificuldade antes de o comprovar. Tudo o
resto permanecia um mistério insondável para mim.
– Gostei, mas isso não quer dizer que não esteja aborrecido.
Parou de arranjar o cabelo diante do espelho, voltou-se, olhou-
me, e isso bastou para desencadear, como se fosse a primeira vez,
um festival frenético de hormonas, enzimas e fluidos que não se
assemelhava, de modo nenhum, com o que eu havia estudado no
compêndio de fisiologia.
– Estou de castigo?
Já tinha ido para a cama com algumas mulheres mais bonitas do
que a Amparo. Conheci pernas mais longas, cinturas mais estreitas,
seios mais voluptuosos, rostos bonitos de olhos maiores e lábios
mais cheios. Algumas tinham-se aproximado do neto do meu avô
querendo um papel num elenco ou cantar na revista, outras só
queriam divertir-se com o Bobby do Teatro Eslava. Todas elas eram
mais experientes do que eu. Todas elas sabiam usar o seu corpo, e
o meu, melhor do que a Amparo. Porém, o que me acontecia com
ela nunca me acontecera com nenhuma.
– Evidentemente. – Empurrei-a suavemente para a porta. –
Vamo-nos embora.
Antes de sair, deitou-me os braços ao pescoço e beijou-me na
boca como se vivêssemos uma história de amor, embora a única
coisa de que estou certo é de que não estava apaixonado por
aquela mulher. Não a amava, porque o que me acontecia nada tinha
que ver com ela, mas comigo.
– Continuas de castigo.
A Amparo despertara uma parte de mim que eu ignorava e isso
havia feito dela o meu duplo, um molde onde eu encaixava
perfeitamente porque mais não era do que um complemento de mim
próprio.
– E qual vai ser o castigo?
Não sabia se existiria algures uma mulher semelhante, com o
mesmo talento, a mesma intuição, mas sabia que a Amparo não era
imprescindível, que outra com outros talentos, outras intuições,
poderia ter provocado o mesmo fenómeno e que tudo isso
continuaria a estar relacionado comigo, não com ela.
– Ainda não sei, depois logo vejo.
Isso significava que o que sentia pela Amparo, por mais forte,
poderosa, frequentemente irresistível que fosse a atração que ela
exercia sobre mim, não era amor, embora às vezes eu cedesse à
vaidade de pensar que ela, sim, se sentia apaixonada.
– Ai, que medo!
Além disso estávamos em guerra, porra.
– É bom que tenhas medo, porque te portaste muito mal.
Isso, o facto de estarmos em guerra, de qualquer um dos dois
poder morrer no dia seguinte, de uma bomba solucionar todos os
problemas dela, e os meus, num instante, era a única coisa a que
podia agarrar-me quando já não sabia o que pensar.
– Ça va?
Bethune intercetou-nos a meio do corredor, olhou para a Amparo
e sorriu para mim. Calculei que se teria apercebido de tudo e cruzei
os dedos para esconjurar o azar de ter caído em desgraça.
Passados três dias, quando me convidou a acompanhá-lo a
Majadahonda, percebi que acontecera justamente o contrário.
Mal entrei no camião, dei-me conta de que os canadianos
vestiam um fato-macaco, o uniforme dos milicianos, numa exibição
pública do compromisso com a causa da República. O azul-marinho
espreitava sob as camisolas grossas e as samarras de pastor com
que se abrigavam e contrastava com a roupa comum do único
verdadeiro republicano espanhol que viajava naquele veículo. Este
pormenor, em vez de me incomodar, reconfortou-me, enquanto os
ouvia queixarem-se do frio lixado que fazia no país das laranjas.
Estava quase a amanhecer e, na penumbra que a geada deixara
para trás, as ruas da cidade compunham um cenário deserto e
familiar. Porém, ao passar a fronteira da Moncloa, a luz ténue do dia
iluminou a devastação da estrada de La Coruña, aquela paisagem
agradável de casinhas de veraneio e de pequenos restaurantes com
jardim reduzida a montanhas de escombros fumegantes que se
prolongavam até onde a vista alcançava.
Pelas beiras da estrada, duas filas de refugiados avançavam
devagar. Carregavam o que conseguiram trazer de casa, toda a sua
roupa vestida, camadas sobre camadas, casacos sobre casacos, o
resto em cestos, malas, sacos, colchões dobrados às costas dos
homens, crianças pequenas agarradas às saias das mulheres, que
levavam ao colo outras ainda mais pequenas. Julgava estar
familiarizado com eles, porque a sua tristeza, o seu cansaço tinham
colonizado pouco a pouco as entradas dos prédios, os pátios, os
bancos e os passeios de Madrid, mas enquanto o camião passava,
recordei-me dos bombardeamentos de novembro e pensei que,
vista do céu, essa procissão constante de deslocados se
assemelharia a uma fileira de formigas a transportar com afinco as
migalhas espalhadas pela erva depois de uma merenda campestre
e, ao chegar ao Hospital de Sangre de Aravaca, ainda não me tinha
recomposto daquela imagem.
Se Bethune me houvesse convidado a acompanhá-lo ao
entardecer, depois de o fluxo de refugiados ter cessado, talvez a
minha escolha tivesse sido outra, porém, ao deparar com a fileira de
moribundos que ladeava o pátio traseiro como uma bordadura
sangrenta, decidi salvar uma formiga do campo, qualquer soldado
nascido numa família semelhante às que chegavam a Madrid com a
roupa do corpo, e demorei algum tempo a encontrá-lo.
Estava numa ponta, moribundo entre os moribundos, a respirar
ruidosamente nos estertores da morte. Ajoelhei-me a seu lado,
recolhi uma amostra e contemplei-o. Era mais novo do que eu, que
era muito novo, e tinha uma cara de miúdo, com a pele curtida, fios
alourados pelo sol no cabelo castanho e um raminho de oliveira,
como uma insígnia, enfiada na casa do segundo botão. Por isso o
escolhi e receei ter-me enganado porque o primeiro frasco de
transfusão quase não surtiu efeito. O segundo já estava mais vazio
do que cheio quando ele abriu, ao mesmo tempo, os olhos e os
lábios. Os primeiros eram castanhos com reflexos dourados, como o
cabelo, mas chamaram-me mais a atenção os dentes, regulares,
muito brancos, com um dos incisivos partido, quebrado na diagonal
como a lâmina de uma faca. Foi o que consegui ver antes de que
ele olhasse para mim. Depois deixei-me arrebatar por uma
sensação nova e muito doce, por uma euforia tão sólida que se
podia mastigar, tão violenta como uma bebedeira seca. Haviam-me
contado que Bethune desatava a rir-se de cada vez que
ressuscitava um soldado, mas não me lembrei disso nesse
momento, enquanto me ria como se tivesse enlouquecido.
– O que me aconteceu? – Ele falava com um sotaque muito
cerrado, andaluz do interior, calculei, talvez manchego. – Porque te
ris?
Abanei a cabeça porque não podia dar-lhe uma resposta que
nem sequer eu sabia. Ele olhou para a esquerda, para a direita,
compreendeu que tinha sido mais um entre os moribundos que o
rodeavam e um acesso de tosse impediu-o de se rir comigo. Nesse
momento, ouvi um pequeno estalido metálico, que se repetiu
algumas vezes, e apercebi-me de que um canadiano nos estava a
fotografar.
– Maintenant, tu es Dieu aussi.
Norman Bethune consagrou a minha divindade com um epílogo
solene, tão fugaz que, quando regressámos a Madrid, tinha a
sensação de que estava há meia vida a fazer transfusões a
soldados moribundos. Conseguimos salvar dezasseis, cinco deles
tinham ficado por minha conta, mas como já me acontecera em
tempos com uma rapariga de seios nus e cauda de pavão, nenhum
me impressionara tanto como o primeiro. Por isso, antes de me ir
embora, aproximei-me para falar com ele.
– Os selvagens acreditam que, quando alguém lhes salva a vida,
a devem ao seu salvador, que é uma dívida eterna – disse-me.
Continuava pálido, cansado, mas não parava de sorrir. – Sabe
disso, não sabe?
– Que selvagens?
– Não sei, uns, agora não me lembro, mas o que interessa… Se
alguma vez precisar de mim, do que quer que seja… Bom… Já
sabe.
Chamava-se José Moya Aguilera e viera de Torreperogil, uma
povoação de Jaén, defender Madrid. Obrigou-me olhá-lo com toda
atenção antes de me deixar ir e prometeu-me que nos voltaríamos a
encontrar. Ainda não havia passado uma semana quando o
encontrei à porta da sala de operações, exibindo um exemplar de El
Heraldo de Madrid que reproduzia, na primeira página, uma
fotografia em que aparecíamos os dois sob um título muito
aparatoso, propaganda pura, que me identificava como o Bethune
espanhol.
– Se estivesse na minha aldeia, tinha-lhe trazido azeite porque é
muito bom, mas aqui… Pensei que gostaria de ficar com ele.
– Claro que sim. – Dei-lhe um abraço depois de lhe agradecer a
oferta, como se não tivesse outros seis exemplares do jornal na
gaveta da minha mesa. – Muito obrigado, rapaz.
Desde essa altura, Pepe Moya passou a visitar-me de vez em
quando, raramente de mãos vazias, como os selvagens que, a seu
ver, rondavam quem os salvava para velarem pelo seu bem-estar.
Tentei dissuadi-lo porque o trabalho que ele devia ter para arranjar
umas maçãs, um maço de tabaco ou uma lata de carne russa era
muito maior do que a minha necessidade, todavia, não houve
maneira de travar aquela hemorragia de gratidão, que não foi a
única consequência da minha ida a Aravaca. O título de El Heraldo
desarmou a direção do hospital, que acabou por ceder às pressões
do doutor Quintanilla, sobretudo depois de Bethune aparecer no San
Carlos, a 11 de janeiro, para se despedir de mim. Queria percorrer
com a sua equipa outras frentes de batalha e, embora o Instituto
Canadiano continuasse a funcionar com pessoal espanhol, pediu-
me que me encarregasse do serviço ambulante. Aquela reunião,
que voltou a alimentar a máquina propagandística republicana no
dia seguinte, concedeu-me um protagonismo que não merecia. O
procedimento criado por Bethune fora de génio, mas a sua
aplicação era tão simples que em menos de um mês formara já
meia dúzia de unidades móveis, sem deixar o meu trabalho no
hospital. Quando começaram a percorrer as frentes de Madrid, o
doutor Quintanilla ordenou-me que aceitasse chefiar o Serviço de
Transfusões que conseguimos montar no San Carlos, graças a um
donativo do povo abençoado do Canadá, sob a forma de um
frigorífico.
A partir de então, a minha vida recuperou a relativa rotina de um
médico preso numa dupla espiral catastrófica, que a guerra e a
minha relação com a Amparo foram torcendo pouco a pouco em
direções opostas, até se equilibrarem. Os bombardeamentos
quotidianos, as casas em ruínas, as execuções sumárias, o medo e
o racionamento permitiam uma realidade onde cabia qualquer
relação excêntrica, tão desequilibrada e estranha, tão casual e
simultaneamente tão necessária como a que o pacto da nossa
convivência havia estabelecido.
– Estou castigada?
– Sim.
Mas nem sequer aquele ritual de castigos e recompensas
permaneceu imune à passagem do tempo em plena guerra. Não
para mim, que muitas noites, ao regressar a casa, sentia a falta de
uma mulher a quem abraçar, com quem sentar-me no sofá a
descansar sem ter de falar, nem para ela, que começou a vir ao
hospital de vez em quando trazer-me comida, sentando-se ao meu
lado na cantina do pessoal sem se atrever a confessar que tinha
sentido medo ou que não suportava estar sozinha. Nalguns desses
dias, a meio do almoço, dizia-me que acabara de se dar conta de
que tinha saído de casa sem cuecas, mas outras vezes ficávamos
de mãos dadas depois da sobremesa, sem dizer nada, e eu
acompanhava-a à porta, despedindo-me dela com um beijo, como
os outros faziam com as suas mulheres. Essas vezes eram as
piores porque me faziam sentir duplamente fracassado na ficção
amorosa que cobria uma simples história de sexo e no papel que
aceitara representar nesse jogo. E quando ela se voltava para
acenar, sentia-me preso numa ratoeira, cuja porta eu próprio
trancara antes de deitar fora a chave.
Portanto, a minha relação com a Amparo, esse estranho fruto do
acaso e da guerra, foi-se complicando tanto como a silhueta de
qualquer um daqueles refugiados que traziam, camada sobre
camada, toda a roupa que tinham, relegando a própria pele para
uma condição duvidosa, indiscernível da última camisola interior.
Porém, antes do fim daquele inverno, uma outra situação
demonstrou-me que tudo se podia complicar ainda mais.
No início de março, preparei a toda a pressa duas unidades
móveis para a frente de Guadalajara e, como não tinha tempo para
aulas teóricas, levei para a Casa de Campo um grupo heterogéneo
de estudantes de medicina e de enfermeiros inexperientes. Foi uma
boa decisão, porque aprenderam depressa, mas um rapaz a quem
só faltavam três disciplinas para acabar o curso ficou tão nervoso
que deixou cair um frasco de sangue mesmo diante do lugar onde
eu estava ajoelhado. Tinha-me habituado ao cheiro do sangue, mas
aquele acidente encharcou-me as calças de tal maneira que decidi ir
a casa mudar de roupa antes de voltar para o hospital.
Cruzei-me com ele nas escadas e, embora fosse um homem
vulgar, sem nenhuma característica especial, chamou-me a atenção
porque ficou a olhar para mim como se me conhecesse. Passados
uns instantes, desviou os olhos e estugou o passo. Parei entre dois
degraus, voltei a cabeça, vi que ele chegava à rua quase a correr e
tive o pressentimento de que vinha de minha casa. Ao entrar no
prédio, não me dera conta do som de passos. O eco dos pés dele
nos degraus parecia ter começado depois, no momento em que eu
estava prestes a subir, mas não conseguia avaliar a que distância
exata os meus ouvidos detetavam o ruído de sapatos nas escadas,
e a entrada era muito grande. Poderia vir do segundo, do terceiro,
poderia ter parado no patamar do primeiro para amarrar o sapato,
para compor a roupa, e, no entanto, depois de dizer tudo isto para
comigo, continuei com o pressentimento de que vinha da minha
casa e corri mais do que ele. Só parei diante da porta, para pensar
se seria melhor abrir com a chave ou tocar à campainha, mas a
Amparo poupou-me a decisão.
– Guillermo! – Ao ouvir o meu nome, percebi que estava colada
ao óculo. – Graças a Deus…
Abriu a porta, agarrou-me pelos ombros, puxou-me para dentro,
fechou a porta com um pé e abraçou-me como se abraçasse um
saco, porque eu não soube responder àquele abraço.
– Aquele homem… – Afastou a cabeça para me olhar e verifiquei
que estava desfigurada. – Encontraste-o à subida? – Assenti com a
cabeça, e a sua expressão de medo tornou-se mais intensa. – Era
ele, Guillermo, era ele…
Sabia que se referia ao homem que visitara don Fermín da parte
do seu filho Ernesto no início da guerra, àquele indivíduo suspeito,
mal-encarado, que ela me confessara recear tanto durante os
meses que passou escondida com o avô. Sabia isso, mas era o
mesmo que não saber nada.
– Ouvi os passos dele nas escadas. Quando fico sozinha, estou
sempre atenta a quem sobe e a quem desce, é já um hábito. Porque
eu sabia que ele ia voltar, eu sabia e disse-to, Guillermo, ou não
disse?
Acompanhei-a até à cozinha, sentei-a numa cadeira e preparei
uma infusão de camomila para ela, mas, sobretudo, para mim, para
que pudesse voltar-lhe as costas, para deixar de a ver, para
ponderar se estava a dizer-me a verdade ou a mentir-me.
– Eu sabia, e abri o óculo sem fazer barulho. Vi-o bater com os
nós dos dedos na porta do apartamento do meu avô e depois tocar
à campainha, só uma vez, antes de voltar a bater. Tinha-nos dito
que seria esse o sinal. Esteve ali algum tempo e depois,
constatando que ninguém abria, veio para aqui, parou à frente da
porta como se hesitasse entre bater ou não, e eu estive todo o
tempo diante dele, sem fazer barulho, sem me atrever sequer a
respirar… – Nesse momento deixou de olhar para mim, observou a
chávena que tinha entre as mãos, levou-a à boca, bebeu um gole e
fechou os olhos. – Tive tanto medo, Guillermo, tanto medo!
Era evidente que estava muito assustada, quase a chorar, mas,
se as coisas se tivessem passado de outra forma, o seu medo e as
suas lágrimas também teriam sido verosímeis. Se ela se tivesse
encontrado com aquele homem, se depois de se despedir tivesse
ouvido passos na escada, se tivesse calculado que era eu, mesmo
que não estivesse à minha espera, mesmo que não soubesse por
que razão estava de volta, mesmo que não houvesse nenhum
motivo para que eu ali fosse às onze da manhã, ter-se-ia assustado
de igual modo, teria chorado, e, sobretudo, ter-me-ia contado
exatamente o que acabava de me contar. Aquele homem olhara
para mim como se me conhecesse, mas, depois de pensar duas
vezes, também isso não me pareceu muito relevante. Caso se
tratasse de um quinta-coluna, disposto a tirar clandestinamente de
Madrid dois correligionários, teria investigado os moradores do
prédio. Se fosse um delinquente disposto a levar à força o ouro de
don Fermín, com neta ou sem ela, ter-nos-ia investigado. Em ambos
os casos, a última coisa que quereria era que eu me lembrasse da
sua cara, e por isso cometera a aparente idiotice de começar a
correr.
– Não acreditas em mim, pois não?
A Amparo olhou para mim como se me lesse na testa a
sequência arrevesada de somas e de subtrações a que me
entreguei, e empalideceu de repente, tão depressa que parecia que
as minhas dúvidas a haviam deixado exangue. Ao cabo de uns
instantes de imobilidade, pousou a chávena na mesa, levantou-se e
aproximou-se.
– Tens de acreditar em mim, Guillermo. – Aproximara tanto o seu
rosto do meu que parecia que ia beijar-me. – Tens de acreditar em
mim…
Os lábios formaram um beicinho quase infantil, as lágrimas
transformaram-se num pranto verdadeiro, a voz engrossou,
humedeceu, como se chegasse do fundo de uma caverna, e as
mãos agarraram na lapela do meu casaco, abanando-me com uma
força que destoava da fragilidade que tudo o resto transmitia.
– Tens de acreditar em mim, diz-me que acreditas, diz-me, por
tudo o que há de mais sagrado… – Até se cansar, deixar cair os
braços e se encostar ao meu peito como quem se encosta a uma
parede. – Diz-me, por favor, diz-me…
Parecia tão triste, tão só, tão desamparada, que a abracei sem
pensar no que fazia.
– Já passou. – Até a embalei suavemente, como a uma criança
assustada. – Já passou, Amparo, acalma-te. – Ela escondeu a
cabeça no meu pescoço e deixei-a chorar. – Acredito em ti, calma, a
sério que acredito em ti.
Não era verdade, mas o contrário também teria sido mentira. De
tudo o que sabia, a única coisa que se aproximava vagamente de
uma certeza era que a Amparo temia aquele homem e que eu não a
assustava, pelo menos até essa manhã. Enquanto a deixava chorar
nos meus braços, analisei o tabuleiro o mais depressa que pude e
compreendi que só me restava uma opção.
– Vamos fazer uma coisa – propus, acariciando-lhe a cabeça. –
Vamos guardar o ouro no cofre, queres? Para prevenir…
Encobri os meus verdadeiros objetivos com uma longa série de
instruções de segurança. Recordei-lhe que aquela casa tinha duas
portas, que, perante qualquer perigo, a única coisa que tinha de
fazer era sair pela porta de serviço e entrar em casa do avô por uma
porta idêntica. Como o esconderijo criado pela Experta continuava
lá, bastaria fechar-se atrás da estante e esperar que eu a fosse
buscar.
– Mas tu… – Olhou para mim como se eu acabasse de dizer um
disparate. – Tu não tens as chaves da casa do meu avô.
– Mas a Experta tem. – Perante aquelas palavras, sorriu, voltou a
abraçar-me, pareceu tão aliviada que pensei que acreditar nela era
a minha melhor jogada. – Posso ir a casa dela buscá-las, não te
preocupes. Agora o mais importante é guardar bem o ouro. Onde
está?
«O meu nome é Aniceto», dizia o ator cómico vestido de
canalizador, e as coristas, que rodeavam a dona da casa com um
avental branco e uma coifa na cabeça, cantavam: «Rima com quê?
Rima com quê?» Essa era a chave do cofre, os números que
correspondiam à posição alfabética das letras da palavra «Aniceto».
Eu sabia-os de cor e a Amparo nunca adivinharia o código. Também
não quis aproximar-se enquanto eu o abria e fechava, ocultando a
roda com o meu corpo. Quando voltei a tapá-lo com o quadro, tinha
quase a certeza de que ela não me mentira, mas o que me
tranquilizou de vez, independentemente do que acontecera nessa
manhã, foi saber que o ouro de don Fermín não contribuiria para
que os inimigos da República ganhassem a guerra. Em março de
1937, ainda não tinha descoberto que os de dentro eram tão
perigosos como os de fora.
– Desculpe, doutor, mas está um soldado à sua procura. Chama-
se Pepe e diz que é muito urgente. Já lhe expliquei que o senhor vai
começar a operar, mas ele ficou furioso, disse que era uma
prioridade militar…
No início de novembro, quando aquela enfermeira irrompeu na
sala de operações, Norman Bethune já não estava em Espanha.
Tinha vindo despedir-se de mim em maio e não quisera contar-me
as razões da sua partida. Limitou-se a dizer-me que ia fazer
campanha a favor da República pelo mundo, porém, pareceu-me
tão desmoralizado que recordei alguns rumores mais feios do que
tristes, mais miseráveis do que feios. Dizia-se que a Saúde Pública
da República Espanhola deveria estar nas mãos de republicanos
espanhóis, que não era tolerável que um estrangeiro, que nem
sequer falava a nossa língua, tivesse tanto poder. Certa tarde
cheguei a vias de facto com um imbecil que conseguiu acender-me
a luz branca entre as sobrancelhas à força de repetir este último
argumento. Separaram-nos a tempo e desde então alguns dos
meus colegas olhavam-me de esguelha, apesar de a maior parte
estar do meu lado. É provável que Bethune tenha sabido porque,
antes de se ir embora, me entregou as chaves do consultório da
calle Príncipe de Vergara, onde havia ainda muito material que
podíamos aproveitar, e me deu um forte abraço. Todavia, o que
consegui deduzir da sua partida misteriosa foi muito pouco em
comparação com o que me esperava quando me despedi do
paciente na maca.
– Sinto muito, Ignacio, mas tenho de ir ver o que se passa. Vou
chamar um colega para tratar de ti, está bem?
Apesar de não termos frequentado a mesma escola, apesar de
não ter jogado na mesma equipa de futebol do seu irmão Mateo,
apesar de não me ter apaixonado secretamente, como todos os
outros, pela sua irmã Paloma, a rapariga mais bonita de Madrid,
naquela altura eu e o Ignacio Fernández Muñoz éramos amigos
íntimos. No último ano, operara-o sete vezes, todas elas a feridas
que pareciam muito aparatosas, mas que nunca haviam afetado um
órgão vital. O Ignacio, um mero estudante de Direito que se
voluntariou quando as coisas pareciam feias, transformara-se num
daqueles heróis populares, lendários, associados à defesa de
Madrid, e era tão corajoso numa sala de operações como numa
trincheira.
– Claro, manda vir o Arenillas. – Além disso, conhecia o hospital
tão bem como a própria casa. – Isto não é nada, é menos do que a
do outro dia, digo-te eu, que já sei… Arenillas!
O facto de escolher o seu próprio cirurgião fez-me rir, mas
quando saí da sala de operações e vi Pepe Moya, a sua expressão
paralisou-me a meio de uma gargalhada.
– Sinto muito. – Pepe aproximou-se de mim, deu-me o braço e
continuou a falar num sussurro. – É uma emergência, eu… Não
conheço outro médico.
– Mas o que…?
– Não te posso dizer, é segredo e, além disso, não temos tempo.
– Nessa altura apercebi-me de que trazia nas mãos o meu
sobretudo. – Toma, deixa a bata e veste-o por cima. Temos de ir já,
mas antes traz algumas dessas garrafas milagrosas, que nos vão
fazer falta.
– Mas o que se passa, Pepe? Eu não posso…
– Claro que podes. – Estacou, olhou-me nos olhos e percebi que,
além de pressa, sentia medo. – Juro-te que podes. No meu quartel,
em El Pardo, está um homem meio-morto que não pode morrer. Não
te posso dizer mais, mas é um daqueles que não podem morrer,
percebes?
Percebi. Fiz o que me disse o mais depressa que pude, corri até
à porta do hospital e entrei num carro que estava à nossa espera
com o motor ligado.
– Arranca! – ordenou ao condutor antes de fechar a porta. – Já!
– Caramba, Pepe! – protestei, verificando que me tinha entalado
um canto do sobretudo – Na categoria de selvagem grato és um
desastre. Seria de crer que terias de me facilitar a vida e não de a
complicar desta maneira…
– Está bem – limitou-se a replicar, olhando para mim.
Naquela noite, nenhum de nós sabia até que ponto o paciente
que esperava por mim em El Pardo me iria complicar a vida.

1
Institución Libre de Enseñanza. (N. da T.)
2
No dia 14 de abril de 1931, proclamou-se a Segunda República Espanhola.
(N. da T.)
É 6 DE JANEIRO DE 1937 E CLARA STAUFFER ESTÁ EM SALAMANCA.
Hoje, a Secção Feminina da Falange Espanhola realiza o seu
primeiro Congresso Nacional. Mais do que um batizado, é um baile
de debutantes.
O ramo feminino da Falange é fundado em junho de 1934 com
objetivos muito modestos, mais assistenciais do que políticos. Antes
da guerra, as militantes dedicam-se apenas a visitar os presos do
Partido e a acompanhar as respetivas famílias, de acordo com o
princípio orientador do pensamento da sua criadora, Pilar Primo de
Rivera, que repetirá durante toda a vida que a função da mulher é
servir. No entanto, o conflito armado atribui à Secção Feminina uma
relevância que justifica um Congresso, ao qual acorrem delegadas
de todas as províncias situadas na zona franquista. A única exceção
é a direção madrilena, presidida pela própria Pilar, primeira, última e
única Chefe Nacional. À sua direita, Marichu de la Mora
desempenha o cargo de Secretária Nacional. No degrau
imediatamente inferior, Clara Stauffer, Delegada de Imprensa e
Propaganda, ocupa o terceiro lugar na cúpula da organização.
Nenhuma das três é uma mulher comum. Pilar é a filha mais
nova do general Miguel Primo de Rivera, que exerceu uma ditadura
militar entre 1923 e 1930, e a irmã preferida do Grande Ausente,
José Antonio, fundador da Falange, elevado à categoria de mártir da
Cruzada depois de fuzilado na prisão de Alicante, a 20 de novembro
de 1936. Marichu, a única casada das três, é neta de don Antonio
Maura, um notável da direita espanhola, presidente de cinco
governos do Partido Conservador entre 1903 e 1922. Em
comparação com a estirpe aristocrática das duas companheiras, as
origens burguesas de Clara são pouco ilustres, mas irão adquirir
uma importância decisiva para o apogeu do partido e, sobretudo,
para os interesses do exército franquista.
Clara, ou Clarita, como toda a gente continua a chamar-lhe
embora esteja quase com trinta e três anos, é filha de Konrad
Stauffer e de Julia Loewe. O pai é um conceituado mestre cervejeiro
de Nuremberga, que a família Mahou contratou, no fim do século
XIX, para dirigir a moderna fábrica de cervejas que funciona na calle
Amaniel desde 1891. A mãe, madrilena, que conservará sempre a
nacionalidade dos pais, é de uma das grandes famílias que
sustentam o poder económico alemão em Espanha. Clarita, como
Julia uns anos antes, nasceu em Madrid em 1904, mas estudou na
Alemanha e, no dia de Reis de 1937, ainda só tem nacionalidade
alemã.
A condição de estrangeira não representa um obstáculo para a
sua brilhante carreira no meio reduzidíssimo do desporto feminino
espanhol da época, onde sobressai tanto na prática da natação
como na do esqui. Também não lhe prejudica a carreira política.
Embora pareça paradoxal, o seu não é o único apelido estrangeiro,
longe disso – vemos Marjorie Munden, Carmen Werner, Josefina
Veglison –, entre as camisas velhas, militantes femininas de primeira
hora na ultranacionalista Falange Espanhola. A sua nacionalidade,
pelo contrário, depressa faz dela uma peça-chave nas relações
entre o governo de Burgos e o Terceiro Reich. Clara, franquista em
Espanha, nazi na Alemanha, tem vistas largas e percebe o que vê.
Inteligente, capaz, extremamente enérgica e muito simpática, a 6 de
janeiro de 1937 dá um passo atrás para ganhar influência de futuro.
Sem contar com a imperecível Pilar, Marichu de la Mora parece,
à primeira vista, a grande vencedora do I Congresso Nacional da
Secção Feminina. Stauffer relega-se para o lugar de Auxiliar Central
de Imprensa e Propaganda, deixando a Marichu o cargo de
Delegada Nacional, naquilo que pode ser interpretado como um ato
propagandístico. De la Mora parece ter sido a única namorada
conhecida de José Antonio, embora não existam indícios que
comprovem tal relação, exceto o testemunho da dirigente falangista.
De qualquer forma, depressa se torna evidente que a propaganda
da organização continua a estar nas mãos de Clara Stauffer. É ela a
autora de todos os textos não assinados e a editora de todos os
textos assinados do livro oficial da Secção Feminina que se publica
pela primeira vez, sem ficha técnica – Madrid ainda se encontra
dolorosamente nas mãos dos vermelhos –, em 1938, e que será
reeditado amiúde no início dos anos quarenta. Mais a mais, desde
janeiro de 1937, colabora no jornal diário El Adelanto de Salamanca,
enquanto porta-voz das falangistas. Porém, como já se sabe que as
mulheres são capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo,
pouco depois o seu trabalho ultrapassa as fronteiras do país natal
para se focar na pátria do pai.
Clara Stauffer viaja frequentemente à Alemanha, onde se chama
Klara, para trabalhar como guia-intérprete de diversos enviados da
Falange e do governo franquista até ao fim da Guerra Civil e mesmo
depois. A criadora do Auxílio Social, Mercedes Sanz Bachiller, e a
sua colaboradora mais próxima, a aristocrata e romancista Carmen
de Icaza, viajam várias vezes sob a sua tutela, quase sempre para
Hamburgo, a fim de conhecer os programas assistenciais do Partido
Nazi e, mais especificamente, o Auxílio de Inverno – Winterhilfe –,
que adotam como modelo para a sua própria organização. No
entanto, ainda antes, Clara intervinha já também noutro tipo de
missões, em embaixadas mais discretas ou declaradamente
secretas, nas quais representantes do exército franquista
negociavam a ajuda militar que o Terceiro Reich lhes forneceria e a
sua contrapartida em volfrâmio e outras matérias-primas.
Enquanto isso, a sua imagem populariza-se muito entre os
membros da abundante colónia nazi que se move em redor do
governo de Burgos. Veem Klara Stauffer como um deles, nem mais
nem menos correligionária do que Pilar ou Marichu. Assim, na
primavera de 1939, quando volta a instalar-se em Madrid, continua a
exercer sem contratempos uma dupla militância, franquista em
Espanha, nazi na Alemanha, que lhe permite facilitar o contacto da
embaixada de Berlim com o novo governo. A sua casa, no número
14 da calle Galileo, depressa se transforma num ponto de encontro
harmonioso e imprescindível para os seguidores de Hitler e os
seguidores de Franco, a quem se sente unida por laços indistintos,
equitativamente fraternais.
Entre os seus convidados mais assíduos conta-se Johannes
Bernhardt, já então um empresário brilhante e omnipotente,
presidente da Hispano-Marroquí de Transportes (HISMA), empresa
fantasma que o Terceiro Reich utilizou como fachada para canalizar
a ajuda económica e de armamento prestada ao bando de Franco
durante a Guerra Civil. Bernhardt, longe de interromper a sua
atividade após a vitória franquista, fundará, em dezembro de 1939, a
Sociedade Financeira Industrial (SOFINDUS), um consórcio
gigantesco de empresas alemãs que chega a monopolizar o
comércio externo espanhol, encarregando-se também de canalizar
ajuda na direção contrária, com matérias-primas de Espanha para o
exército alemão desde o início da Segunda Guerra Mundial.
Se a vitória de Franco torna Clara Stauffer e Johannes Bernhardt
grandes amigos, a derrota de Hitler irá estreitar definitivamente
esses vínculos de irmandade e de camaradagem, sobretudo a partir
do verão de 1945, quando a primeira Delegada Nacional de
Imprensa e Propaganda da Secção Feminina decide, finalmente,
renunciar à nacionalidade dos pais, solicitando a nacionalidade do
país onde nasceu e viveu desde a adolescência.
Mas a cor do seu passaporte não altera as coisas.
Clara Stauffer permanecerá falangista e nazi, espanhola e
alemã, até ao dia da sua morte.
VALÊNCIA, 29 DE MAIO DE 1937

– Dói-me muito a cabeça, Manolo…


Nem sequer nessa manhã, no seu gabinete do Palácio de
Benicarló, o presidente do governo lhe pareceu tão imponente, tão
elegante e distinto como na primeira vez em que o viu. O primeiro
encontro também havia decorrido num gabinete, o do diretor do
Colégio Sierra Pambley de Villablino. Nessa altura, Manolo tinha
apenas doze anos e Juan Negrín era um jovem investigador,
catedrático de Fisiologia.
– Não me surpreende, senhor.
Manuel Arroyo Benítez tivera sempre muito azar e muita sorte.
Nascera em Robles de Laciana, uma aldeia de León que Deus
havia abençoado com o dom da beleza antes de,
irremediavelmente, a deixar cair das mãos. Se é que uma povoação
minúscula pode ter arredores, era nos arredores de Robles, diante
de um horizonte de montanhas majestosas, ornadas de encostas
suaves e prados altos que revelavam uma gama quase infinita de
tons de verde, que ficava a casa de Juan Arroyo e de Gertrudis
Benítez. Ali nascera Manolo, o sexto de uma família de oito irmãos,
depois de três rapazes e duas meninas. A mãe, que cuidava da
casa e da horta, estava sempre cansada. O pai sempre ausente. As
vacas viam-no mais do que os filhos. Até aos seus sete anos,
lamentavelmente, ninguém prestou muita atenção àquele miúdo
curioso, vivaço e solitário porque na aldeia não havia outros rapazes
da sua idade, só meninas; com os mais novos ele aborrecia-se, e os
mais velhos só o aceitavam muito de vez em quando. Também
ninguém o impediu de viver como lhe apetecia.
Mais tarde, quando o seu azar e a sua sorte lhe permitiram
prosperar mais do que qualquer um dos irmãos, muito mais do que
os pais e avós, descobriria que as mulheres educadas, que falavam
francês e tocavam piano, não faziam distinções entre filhos.
Interpretou a naturalidade com que pareciam amar todos eles por
igual e cada um à sua maneira como uma consequência admirável
da educação formal que a sua mãe não tivera. Nunca lhe bateu,
mas nunca o abraçou. Alimentava-o, vestia-o, cuidava dele quando
adoecia e aproximava a cara dos seus lábios para receber um beijo
protocolar todas as manhãs e todas as noites, mas beijou-o muito
poucas vezes. Nunca lhe passou os braços pelo pescoço ao vê-lo
chegar, nem o abraçou com força, nem dançou com ele na cozinha,
como fazia com Juan e com Toribio. Nunca o sentou ao colo
enquanto arranjava feijão-verde, nem lhe fez bonecos com
pauzinhos e retalhos, nem o embalou cantando, como fazia com
Tula e Asunción. Ele foi sempre dos outros e, por isso, Hermene,
María e Leocadia eram, para ele, mais irmãos do que os preferidos
da mãe. Os quatro amavam-se muitíssimo, cuidavam uns dos
outros, protegiam-se e ajudavam-se no que podiam. O azar de
Manolo e a sua sorte compensaram a desgraça de pertencer ao
grupo dos filhos pouco queridos com o privilégio de ser o mais novo,
o mais mimado dos meninos desgraçados da sua casa.
Até que certa manhã, pouco depois de fazer a primeira
comunhão, a mãe o lavou, penteou, vestiu-lhe a roupa dos
domingos e levou-o a ver o padre.
– Fiquei a saber que o filho da Juana fez catorze anos, como o
meu Hermenegildo, e claro, os dois vão para a mina. De modo que
pensei que o senhor podia ficar com o Manolín. Já sabe como este
meu filho é desembaraçado. É um espertalhão e, se o senhor padre
o ensinar, pode ajudá-lo na missa e tudo…
Embora nenhum dos dois lhe tenha pedido opinião, don Marcos
foi o único que se deu conta de que o menino estava quase a
chorar. O choro não tinha que ver com o assunto abordado na
sacristia, mas com a notícia de que o seu irmão preferido, o seu
apoio, o seu protetor, ia trabalhar nas minas de Villablino. Manolo só
tinha sete anos, mas via todos os dias Juan, que era dois anos mais
velho e mais alto, era mais forte do que o filho que se seguia. O
mais lógico, o mais justo, seria que ele, que já tinha corpo de
homem, fosse para a mina e que Hermene ficasse em Robles, mas
a mãe não os amava a todos por igual e nunca poria em risco o
preferido. Embora Manolo tivesse vontade de chorar pelo destino do
irmão, deu-se conta a tempo de uma coisa mais importante. Entre
ele e Hermene havia Toribio, o outro menino mimado da mãe, e a
sacristia era muito melhor do que a mina. Por isso cerrou os dentes
e não chorou.
Gertrudis Benítez nunca tinha usado tantas palavras para falar
do filho Manuel como no dia em que o deixou como criado na casa
do padre. Ele também não se lembrava de que ela alguma vez o
tivesse elogiado e, talvez por isso, para que o filho não tivesse
ilusões, ao sair agarrou-o pelo braço e abanou-o várias vezes, como
se estivesse aborrecida, apesar de ter conseguido o que pretendia.
– Vê lá como te portas. Que eu não oiça nada, hã? É melhor…
Depois, voltou a agir como se ele não existisse.
Don Marcos, um sacerdote jovem e enérgico, de origens tão
humildes como a paróquia que lhe calhou em desgraça, conhecia
Manolín melhor do que a mãe. Durante os anos de catequese não
lhe ensinou só doutrina, mas também a ler e a escrever. Nunca
tivera um pupilo tão espevitado e decidiu continuar a educá-lo na
esperança de o enviar para o Seminário, obtendo, em troca de um
aluno brilhante, qualquer destino melhor do que aquele buraco
lindíssimo de Robles de Laciana.
– A verdade é que Deus não me chama, padre.
– Há de chamar. Não sejas impaciente, rapaz.
Durante quase três anos, além de lhe dar trabalho, cama e
comida, don Marcos ensinou-lhe Gramática e História, Aritmética e
Geografia, Latim e até Grego. Iniciou-o no estudo dos Evangelhos,
nos princípios da Filosofia e da Teologia, nos labirintos da liturgia
católica, e Manolín aprendeu tudo muito bem, muito depressa, mas
nem sequer à Álgebra resistiu tanto como à vocação.
– Não me chama, padre, não me chama.
– Como te há de chamar se tu não O queres ouvir?
– Não oiço? É que não fala comigo, padre, e se não fala comigo,
deve ser porque Ele não quer, não acha? – O menino fazia um
gesto de impotência, deixando cair os braços. – Vou mandar mais
que Deus?
O padre de Robles lutou contra a evidência com unhas e dentes,
contudo não perdeu a esperança de mandar Manolo, com vocação
ou sem ela, para o Seminário de Gijón, porque o rapaz lhe
recordava muito ele próprio. Também ele tinha sido um menino
inteligente, pobre e desamparado, que só pudera escolher entre a
sotaina e a miséria, nunca se tendo arrependido da escolha. No
entanto, don Marcos era de uma povoação de Zamora, onde, antes
dele, não nascera ninguém semelhante a don Francisco Fernández
Blanco y Sierra-Pambley.
– O que tens hoje que não acertas uma?
Na missa daquela manhã, Manolín, que nunca se enganava,
enganara-se três vezes. Não lhe entregou as hóstias a tempo, não
tocou a sineta durante a consagração e ficou imóvel como um
basbaque com o cesto das esmolas em plena igreja, como se não
se lembrasse da direção que tinha de tomar, estendendo-o aos fiéis.
– Bom… – Quando verificou que também não parecia disposto a
ajudá-lo a despir-se, don Marcos agitou a estola na direção dele e o
menino acabou por reagir.
– É que… – Dobrou com cuidado o paramento, foi até à cómoda,
abriu uma gaveta e, de costas para o patrão, continuou a falar. – O
senhor vai aborrecer-se comigo, padre. Vai aborrecer-se porque… O
meu irmão Hermene disse-me que em Villablino há um colégio para
pobres das aldeias da zona, e como Deus não me chama… –
Voltou-se muito devagar, encostou-se na cómoda e enfrentou um
olhar de granito. – Eu, sozinho, não posso lá ir. Se o senhor
quisesse acompanhar-me, padre, falar por mim…
Don Marcos não lhe respondeu, nem lhe dirigiu a palavra durante
todo o dia, mas naquela noite a consciência não o deixou dormir.
– E os teus pais? – perguntou ao menino no dia seguinte, ao
pequeno-almoço. – Vão ter de dizer o que acham, de decidir o que
preferem, se o Seminário, se…
Manolo acabou de encher a malga com leite, pousou o jarro na
mesa e dirigiu-lhe um sorriso carregado de amargura.
– Há quase um mês que só vejo o meu pai na missa, ao
domingo. E a minha mãe… À minha mãe, se for para me ter longe
da vista, qualquer coisa lhe há de parecer bem. – O padre não
comentou, e ele foi um pouco mais longe. – O senhor sabe como
são as coisas em minha casa, padre. Ou não sabe?
Faça-se a tua vontade, pensou don Marcos então. E a vontade
de Deus matriculou Manuel Arroyo Benítez no Colégio Sierra
Pambley com dez anos acabados de fazer. Quando soube que uns
senhores de Villablino lhe iam educar o filho gratuitamente, dando-
lhe almoço e lanche, a mãe não se opôs. O pai só descobriu que ele
voltara a dormir em casa já ele se levantava há quase dois meses
antes do amanhecer para ir a pé com Hermene até ao cruzamento
onde parava o camião da mina. À noite, regressava a Robles no
camião que transportava os mineiros do turno da tarde, depois de
fazer os deveres na biblioteca do colégio, e jantava sozinho, na
cozinha, aquilo que a irmã María lhe conseguia guardar. Porém, ao
mesmo tempo que vivia na sua própria casa como um hóspede
incómodo, procurando que o vissem o menos possível, continuou a
ajudar don Marcos na missa, todos os domingos, enquanto assim o
quis.
Manolo teria sido um bom aluno do Seminário de Gijón. No
Colégio Sierra Pambley foi, desde o princípio, excecional, porque a
vocação que lhe faltava para o sacerdócio sobrava-lhe para o
estudo, sobretudo desde que compreendera que a educação era o
único caminho possível para sair de Robles, de casa, da armadilha
que era a sua vida. Quando soube que havia três bolsas disponíveis
para fazer o secundário em León, matou-se a estudar e tirou a
melhor nota de entre todos os que haviam concorrido ao exame. A
mãe ficou a par e avisou-o de que naquela casa não sobrava
dinheiro para lhe comprar roupa, que teria de se arranjar com o que
havia porque naquele inverno tinham morrido duas vacas. Contudo,
os professores estavam tão orgulhosos dele que, quando os
membros da Fundação fizeram a sua visita anual a Villablino, o
convocaram ao gabinete do diretor para que o conhecessem.
Os outros dois bolseiros haviam vestido a roupa dos domingos.
Ele tentou, mas a sua melhor camisa tinha tantos buracos no
colarinho que ele pediu uma emprestada a Hermene, que lhe ficava
enorme. As calças ainda passavam, mas levava uns sapatos muito
velhos, rotos de lado, que eram os únicos que tinha. Embora tenha
tentado esconder-se atrás dos colegas, o diretor do colégio obrigou-
o a apresentar-se e foi assim que, pela primeira vez, apertou a mão
aos dois homens que seriam fundamentais na sua vida, os únicos
jovens daquela comissão de barbas brancas e expressões
veneráveis.
– Parabéns, Manolín – disse-lhe o mais magro, já quase
completamente calvo apesar de só ter trinta e dois anos.
– Obrigado, mas… prefiro que me chamem Manolo porque já
sou crescido.
E o outro, que ainda tinha cabelo sobre uma testa muito ampla e
usava óculos redondos, como o amigo, soltou uma gargalhada. Os
dois foram muito simpáticos e, embora por força devessem ter visto
os sapatos que trazia, ele deu-se conta de que o seu aspeto não
lhes interessava.
Em setembro de 1922, Manuel Arroyo Benítez abandonou
Robles de Laciana. A princípio, escrevia para casa duas vezes por
mês, sempre em duplicado, uma carta para a mãe e outra para a
irmã María, dirigida também a Hermenegildo e a Leocadia. Os
irmãos respondiam-lhe sempre. María, que tinha a letra mais bonita
dos três, enchia folha e meia com as últimas novidades, deixando
espaço para que Leo lhe mandasse muitos beijos e abraços num
parágrafo à parte. Hermene, que mal sabia escrever, garatujava
uma frase carinhosa e assinava. Por baixo, numa letra miudinha,
María acrescentava que a mãe mandava lembranças. Ela só lhe
escreveu duas cartas no primeiro ano e nenhuma no seguinte, de
modo que ele começou a espaçar as missivas que lhe dirigia, antes
de as suprimir por completo, limitando-se, também ele, a enviar
lembranças através dos irmãos, até que, em 1926, saiu de León
com destino a Madrid a fim de estudar Direito, sem passar pela
aldeia. Apesar da bolsa, que lhe permitiu acabar o curso tão
rapidamente como o secundário, ser atribuída pelo governo, a
família Azcárate, ligada ao colégio de Villablino desde que o tio
Gumersindo inspirara o amigo Paco Fernández Blanco y Sierra-
Pambley a fundá-lo, amparou-o desde o seu primeiro dia na capital.
Assim, a sua vida mudou tão depressa que a casa paterna, Robles
e a sacristia da paróquia se tornaram peças soltas de uma
lembrança incerta, de um passado tão vago para o jovem advogado
que trabalhava num escritório de advocacia enquanto completava os
anos da Escola Diplomática, que lhe parecia inventado. Até que um
dia, don Marcos telefonou para casa dos Azcárate. Em setembro de
1931, quando se preparava para fazer as malas e partir para
Genebra, Manolo regressou a Robles para assistir ao enterro do pai.
Há anos que se preparava para uma viagem muito diferente.
Pablo de Azcárate, o mais careca e magro dos dois homens que
conhecera em 1922, orientara-lhe a carreira à distância e oferecera-
lhe um lugar na Sociedade das Nações. Para o poder aceitar,
Manolo tinha aperfeiçoado o francês, tinha aprendido alemão e
começava a falar inglês com desembaraço. O Direito Internacional
ocupava-lhe todo o tempo que o trabalho e o estudo das línguas lhe
deixavam livre. O seu quotidiano era tão exigente, tão exaustivo,
que quase não conseguira apreciar Madrid, cortejar as mulheres,
frequentar as festas, ir ao teatro ou fazer amigos que não os colegas
de estudo. Quando saía com eles para uma noite de diversão, a
ressaca com que acordava no dia seguinte parecia-lhe muito mais
tolerável do que a tentação de repetir. Por isso, saía muito pouco.
As recordações da infância prendiam-no mais ao estudo do que
qualquer ambição.
Em Madrid, Manuel Arroyo Benítez obrigava-se a recordar
diariamente de onde vinha e, no entanto, quando desceu de um
comboio na estação de Villablino, tudo lhe pareceu diferente, as
cores mais vivas, o ar mais agradável, as pessoas mais risonhas.
Hermene, em contrapartida, era já um jovem envelhecido, um velho
precoce de vinte e sete anos.
– Ai, Manolín, olha para ti! – Antes de o abraçar, agarrou-lhe nos
braços e ele sentiu a força daquelas mãos enquanto olhava para o
rosto curtido do irmão, para a pele seca, sulcada por rugas
profundas como talhos de uma faca. – Estás um senhor, mas
mesmo um senhor, minha mãe…
De seguida choraram os dois, abraçados como crianças, na
mesma plataforma onde haviam chorado abraçados oito anos antes.
Os abraços e lágrimas repetiram-se na paragem da camioneta onde
se encontraram com Leo, que servia em casa do diretor do colégio
enquanto poupava o pouco que lhe faltava para casar com o noivo
mineiro, e só pararam porque María, já casada e grávida de cinco
meses, os esperava na esquina onde o condutor parou o veículo. Ali
se abraçaram todos como quando eram crianças e, tal qual nessa
altura, foram andando para casa de braço dado: as raparigas no
meio, os rapazes nas pontas, os quatro juntos, enchendo o passeio.
Não esperava muito mais e também não o teve. As raparigas
alegraram-se ao revê-lo, mas os rapazes cumprimentaram-no com o
carinho frio, seco, com que sempre o haviam tratado, embora
daquela vez Manolín tivesse algo mais a seu favor. O aspeto, o fato,
o chapéu que trazia na cabeça com o desembaraço de quem o usa
diariamente apagaram a secreta alegria de Juan e de Toribio, que a
mãe acabava de confirmar como únicos herdeiros das vacas do pai.
Mas aquilo amargou-lhe mais o enterro a ela do que a qualquer
outra pessoa.
Gertrudis Benítez não conseguiria, no tempo de vida que lhe
restava, conformar-se com o facto de uns malditos ateus de Madrid
lhe terem ganhado a partida. Olhava para o filho e não podia
acreditar, nunca compreenderia por que razão aqueles senhores
importantes haviam decidido investir esforço e dinheiro a contrariar
os planos dela, a ordem que havia imposto com tanto empenho no
pequeno mundo da sua casa. Nunca lhe passou pela cabeça que
Manolo tivesse algum mérito na mudança, que fosse o mais
inteligente dos seus filhos, que, mesmo que não tivesse sido tola e
houvesse mandado Juan e Toribio para o colégio que o padre
escolhera para o seu criado, estes pudessem ter fracassado.
Também nunca considerou que a sua conduta não fosse justa, ou
natural, porque ela provinha igualmente de uma família com muitos
filhos, e sofrera as consequências de não ser uma menina desejada.
As coisas eram como sempre tinham sido. A obrigação dos pais
consistia em cuidar e alimentar os filhos; a dos filhos, em respeitar e
obedecer aos pais, e o favoritismo, os mimos, o amor, bem, esses
eram outra coisa, uma escolha livre de cada pai e de cada mãe.
Gertrudis Benítez não inventara nada. Limitara-se a pôr em prática a
norma que aprendera em casa, uns filhos herdavam e outros
aborreciam-se, mas ali ninguém tinha ousado opor-se à vontade dos
pais, nem sequer ela, quando a casaram com um homem que não
amava. Por isso, não festejou a prosperidade do filho pródigo, do
acólito destinado a ser mineiro e que chegara muito mais longe do
que alguma vez chegariam os donos das vacas. E depois de
aproximar a cara dos lábios de Manolín para que este a beijasse, só
se lhe dirigiu para pedir um favor para uma das suas preferidas.
– Agora que a Leo se vai casar – disse-lhe, enquanto
caminhavam até ao cemitério –, podias pôr a Tula em casa do
diretor do teu colégio.
Ele continuou a andar junto dela sem dizer nada, mas ela
insistiu.
– Não é pedir muito, acho eu.
Nesse momento, Manolo lembrou-se mais do que nunca das
mulheres cultas, que falavam francês e tocavam piano, e teve
vontade de chorar, por si próprio e pela mãe, pela mãe e pelos
irmãos, pela dureza de coração que brotava do próprio âmago da
mesquinhez, pela mesquinhez que nascia do hábito e da pobreza,
pela pobreza que tornava duras e mesquinhas mães como a sua.
Tantos anos depois, e como naquele dia em que a mãe o deixara
em casa de don Marcos, ele cerrou os dentes e não chorou, porém,
ao regressar do cemitério, decidiu partir de Robles naquela mesma
tarde e dormir na estalagem de Villablino.
– Eu volto com a Leo, e a senhora que não se preocupe porque
vou falar com o diretor para que ele chame a Tula quando o lugar
ficar disponível. – Ela observou-o como se adivinhasse que havia
mais qualquer coisa, e ele não a defraudou: – Porque a senhora tem
razão, mãe, não é pedir muito. Tudo o que tenho, tudo o que sou, a
si o devo. – Ela aproximou a cara dos lábios dele, mas dessa vez o
filho já não a beijou. – Tudo. Por não me amar.
Aquela foi a última vez que Manuel Arroyo Benítez viu a mãe. No
dia seguinte regressou a Madrid e quarenta e oito horas depois
viajou para Genebra. Viveu na Suíça durante quase seis anos e,
apesar de nunca ter deixado de enviar dinheiro para os irmãos, só
voltou a Espanha em dezembro de 1936, vindo de Londres. Três
meses antes, Pablo de Azcárate renunciara ao cargo na Sociedade
das Nações para aceitar a embaixada da República Espanhola no
Reino Unido e levou o assistente consigo.
Manolo recordaria sempre os anos em Genebra como uma
longa, prazerosa e monótona convalescença. Ali, Monsieur Agoyo
foi sempre um jovem e promissor diplomata, poliglota, encantador e
requintadamente educado, que só tinha um inconveniente para as
mulheres dos altos-funcionários de meio mundo que se matavam à
procura de maridos para as filhas. O problema não residia no facto
de lhe faltarem três centímetros para o metro e setenta, nem
passava por a sua cara, demasiado quadrada, estar
permanentemente velada pela sombra de uma barba negra, tão
cerrada, que resistia ao melhor escanhoamento. Também não era o
corpo maciço, sem um grama de gordura, mas com membros mais
curtos do que compridos, porque a rudeza desses traços
contrastava com a doçura dos seus olhos castanhos e com o
encanto de um sorriso que lhe iluminava o rosto como se acionasse
um foco oculto no seu interior. Manolo não era um homem bonito,
embora, no seu caso, isso não implicasse falta de atrativos.
Contudo, em Genebra já abundavam os conspiradores espanhóis
que se dedicavam a espalhar o boato de que os inimigos da
República estavam dispostos a derrubá-la a qualquer preço, e
Manolo, infelizmente para as mães de muitas jovens casadoiras, era
republicano e espanhol. A nacionalidade livrou-o da caçada
implacável a que eram submetidos outros colegas da sua idade,
mas não impediu que fosse acolhido com muita simpatia nos
cocktails e receções que se celebravam diariamente.
– Hás de cansar-te, vais ver…
A princípio, Azcárate ria-se do entusiasmo dele, da sua
preocupação em não repetir um fato em duas festas seguidas, do
nervosismo prazeroso com que abria os convites que lhe chegavam
todas as manhãs ao gabinete. Para o antigo acólito do padre de
Robles, aquela vida social intensa representava mais do que uma
prenda, era um prémio pelo seu esforço, o culminar de tantas horas
de estudo roubadas ao sono no quarto mais barato de uma pensão
imunda de Madrid. Tudo o fascinava, as fontes de champanhe, a
elegância das mulheres, as joias que ostentavam, e o poder dos
homens que elas acompanhavam naquela Babel deliciosa, onde o
Manolín de outrora saltava de uma língua para outra, de modo a que
os interlocutores se rissem das graças em quatro línguas diferentes.
No entanto, desde que o conhecia, don Pablo nunca falhava.
– Sei que te aborreces, mas agora vais. Lamento, filho, mas eu
tenho de jantar com os húngaros e, da maneira como estão a pôr-se
as coisas em Madrid, não podemos ficar mal com os americanos…
Em dezembro de 1932, quatro meses depois do golpe de Estado
falhado do general Sanjurjo, Manolo já estava farto de cocktails, de
fontes de champanhe, de mulheres elegantes, de joias valiosas e de
homens poderosos. Descobrira que em Genebra havia vida para lá
da Sociedade das Nações, mesmo que pequena, provinciana e não
muito pomposa. Tentava aproveitar o tempo livre para remar no
lago, dar longos passeios com o cão, jogar xadrez numa taberna
onde serviam uma cerveja excelente ou fugir para as montanhas.
Não havia muito mais que fazer, mas teria trocado de bom grado a
festa de Natal da delegação de Washington por qualquer uma
destas modestas diversões. Marcou presença com o objetivo de
detetar possíveis inimigos da República e de estreitar os laços de
amizade com o pessoal norte-americano. Já aborrecido de dar
voltas e distribuir sorrisos, conseguiu ambos os objetivos de uma
tacada.
– É aquele.
Rodou a cabeça sem afastar as costas da coluna a que se tinha
encostado e associou aquele forte sotaque mexicano a uma mulher
pouco mais velha do que ele, muito alta, muito loura, de olhos muito
azuis, nariz comprido, ombros muito largos e um ligeiríssimo, quase
indetetável, ar masculino.
– Desculpe?
Ela sorriu antes de lhe estender a mão.
– Margaret C. Williams, a nova auxiliar do Departamento do
Mediterrâneo. O C é de Carpani, porque a minha mãe é neta de
italianos. E só falo espanhol com este sotaque porque sou do Texas
e fui criada por uma mamita de Monterrey.
Naquele instante, Manolo soltou uma gargalhada e percebeu que
ia dar-se muito bem com aquela mulher.
– Encantado. Eu sou…
– Eu sei quem é. E o pinche pendejo3 que procura é aquele ali,
está a ver? – Apontou com o copo, que chocou depois com o do
espanhol, tentando fazer passar a sua confidência por um brinde. –
O do fato cinzento que está à conversa com o militar alemão. Veio
com uma chamaca4, mas ela já se deve ter ido embora, porque há
um tempinho que não a vejo…
Meg era filha de Hank Williams, um congressista do Partido
Democrata que, para ficar bem-visto aos olhos dos eleitores e
manter aberta a casa do Texas, obrigou os dois filhos a viverem em
Dallas até irem para a universidade. Nessa altura, o primogénito
mudou-se para Washington para ficar perto dos pais. Meg
permaneceu sozinha com a mamita durante mais quatro anos, até
lhe aceitarem a candidatura no Barnard College e ir para Nova
Iorque. Muito perto da sua faculdade, na esquina da Broadway com
a 120 Oeste, havia um pequeno café que fazia desconto às
universitárias. O local era dirigido por dois imigrantes, um polaco e
um galego, pai da empregada de mesa, uma rapariga doce e
corada, de pele clara, cabelo castanho, lábios generosos e peito
avultado.
O pai de Celsa imigrou era ela muito pequena. A mulher seguiu-o
pouco depois. A menina ficou com a avó em Mouruás, a aldeia de
Ourense onde tinha nascido, e só viu o mar aos catorze anos, ao
embarcar com uma irmã da mãe no porto de Vigo. Quando foram
juntas tratar dos papéis, El Barco de Valdeorras pareceu-lhes uma
cidade enorme.
Esta foi a primeira coisa que contou a Meg, a sua cliente mais
simpática e a única sempre disposta a falar com ela em espanhol.
Quando se conheceram, Celsa tinha dezoito anos e falava inglês no
infinitivo, como os índios dos filmes. Meg corrigia-a, ensinava-lhe
palavras, tempos verbais e ofereceu-se para lhe dar aulas de
conversação em troca de ela a ajudar a melhorar o seu espanhol.
Ora essa, tu falas quase melhor do que eu, objetou Celsa. Ni
modo5, replicou a nova amiga, preciso muito de ti…
– Tinha as melhores mamas que vi na vida. – Eis a conclusão
que escolheu para Manolo. – Mas deixou-me para se casar com um
pedreiro polaco.
– Pelo amor de Deus…
– Sim, ela também dizia isso muitas vezes.
Meg estivera muito apaixonada por Celsa, mais ainda do que
pelo amigo do seu irmão, com quem quase se havia casado.
– Nuns dias gosto de homens e noutros de mulheres. O que hei
de fazer? Não tenho culpa, mas o Perry pura e simplesmente não
compreendeu.
– Não devias ter-lhe contado.
– Pois, mas… sou uma gringa louca, não um espanhol ajuizado.
No entanto, ambos tinham muitas coisas em comum, antes de
mais terem sentido a falta de um pai e de uma mãe durante toda a
infância. Além disso, Meg encontrou em Manolo uma fonte preciosa
sobre a existência que a sua amante espanhola vivera antes de a
conhecer. O novo amigo falou-lhe da infância numa aldeia de León,
do frio húmido e da neblina sobre telhados de ardósia que pareciam
decalcados daqueles que uma rapariga criada numa aldeia de
Orense recordava, sempre envoltos na mesma bruma húmida e fria.
A injustiça, a tristeza, a miséria que impregnavam cada pormenor da
história de Celsa, lembrando indícios de um destino irremediável,
transformaram Margaret C. Williams numa partidária convicta da
República antes de conhecer Manolo Arroyo. Ele evocou um destino
idêntico num relato muito diferente, graças à variante afetuosa,
luminosa, proporcionada pela Fundação Sierra Pambley, pelo
colégio de Villablino e pela família Azcárate. A história daquele
jovem diplomata espanhol, resultado perfeito da Institución Libre de
Enseñanza, metamorfoseou as simpatias da norte-americana numa
paixão ardente, que terminaria numa colaboração profissional feliz e
estreita. Porém, mais feliz e ainda mais estreita acabou por ser a
amizade entre eles.
– Esta pinche cidade não é muito divertida, pois não? –
perguntou-lhe, dois dias depois de o conhecer, quando se
reencontraram num cocktail da delegação francesa.
– Não. Esta cidade é chata como a potassa. – Ela soltou uma
gargalhada, como sempre que ouvia alguma frase que lhe
recordava Celsa –, mas além das festas tem os seus recantos,
acredita. Se quiseres, posso mostrar-te alguns.
– Órale6.
A nenhum dos dois convinha que Meg se identificasse
publicamente como partidária da República, de modo que nunca
chegavam juntos aos cocktails, nem saíam dos salões ao mesmo
tempo, embora combinassem tomar um último copo em algum dos
poucos covis noturnos que o corpo diplomático não frequentava. Aí
bebiam como dois camaradas, olhavam para as mulheres,
comentavam-lhes as virtudes, os defeitos, e trocavam informações.
– E o pinche tradutor de Hegel, facho também.
– Não me digas!
– Caraças! O Jack contou-me que ele guarda na carteira uma
cartinha de Alfonso XIII. E que quando a mostrou à embaixadora de
Itália chorou e tudo, o grande panasca.
– Porra! Não temos mãos a medir… E, a propósito, caraças não
se usa nesse contexto.
– A poco no7?
Graças a Miss Williams, a delegação espanhola rejeitou,
protestou e recusou, com a frequência e energia necessárias, os
enviados de golpistas e monárquicos que pretendiam ter assento na
Sociedade das Nações. Além do valor dessa colaboração, Meg
transformou-se ao mesmo tempo no melhor amigo e na melhor
amiga de Manolo Arroyo, na sua única família genebrina.
Ele nunca se havia relacionado muito com mulheres. Em criança,
a irmã María tentou suprir os mimos e as atenções que a mãe lhe
negava, e Leo brincava muito com ele, mas aos sete anos, quando
foi viver com don Marcos, perdeu tudo isso de uma vez. Depois, na
sacristia, no colégio, no instituto, na universidade, estivera sempre
rodeado por homens. Durante muitos anos, as raparigas foram para
ele como os bolos que via nas montras de León quando passeava
aos domingos pela cidade sem um cêntimo no bolso. Admirava-as,
desejava-as, cobiçava-as, mas elas eram-lhe totalmente
inacessíveis. A sua aprendizagem amorosa fora tardia e deficiente,
embora, ao terminar o curso, tenha tido uma relação semelhante a
um namoro com a filha de um dos sócios do escritório de advogados
onde trabalhava. Foi ela quem o procurou, ainda assim não
conseguiu suportar por mais de três meses o exaustivo programa
académico que absorvia o tempo de que Manolo necessitaria para
se comportar como um namorado atencioso. Ela agradava-lhe
muito, mas não o suficiente para o levar a mudar de planos, de
modo que também não lhe custou muito perdê-la. Essa era toda a
experiência que tinha acumulado ao chegar a Genebra e nem as
aventuras esporádicas com mulheres casadas, aborrecidas por
ficarem sozinhas em casa enquanto os maridos viajavam sem parar,
nem as seduções inconclusas com rapariguinhas casadoiras o
haviam preparado para mulher tão particular como Meg Williams.
– Diz-me uma coisa, Manolo… eu agrado-te?
Conheciam-se há exatamente um ano. Estavam nos contrafortes
do maciço do Jura, num pequeno e encantador hotel de montanha
situado em território francês, onde as paredes de pedra, os telhados
de ardósia, a neblina e o frio não eram tristes nem miseráveis, mas
belos e pitorescos. Tinham ido lá outras vezes passar um fim de
semana com os cães, dar longos passeios de dia e embebedar-se à
noite diante da lareira, e ambos gostavam tanto daquele sítio que,
quando Meg o propôs para receberem o ano de 1934, ele acedeu
imediatamente. Dessa vez não levaram os cães. Um dos principais
encantos do hotel era um restaurante esplêndido, que exigia aos
comensais trajes de cerimónia no magnífico jantar que serviam na
noite de Fim de Ano.
– É evidente que me agradas. – Manolo sorriu porque estava
convencido de que, a seguir, ela lhe perguntaria se achava que
também agradava ao empregado de mesa que servia o vinho tinto
ou à rapariga vestida de branco que parecia muito aborrecida por
passar o Fim de Ano com a avó. – Sabes disso.
– Não, não, chamaquito… – Meg bebera bastante, mas depois
de negar, movendo o copo de um lado para o outro, esvaziou-o de
um gole. – Já sei que somos cuates8, mas não é isso… Quero que
me digas se te agrado a ti, ou melhor, se gostarias de me ter.
Ele também tinha bebido bastante e talvez por isso olhou para
ela como se acabasse de a conhecer. Viu uma mulher muito alta e
com muito boa figura, sobretudo dentro no vestido de seda cor de
beringela que trazia essa noite. O rosto oval talvez fosse muito
comprido, o nariz, sem dúvida, mas a boca era bonita, a pele
impecável, e no conjunto transmitia uma personalidade forte que
não era frequente entre as mulheres de cabelo tão louro e olhos tão
claros. Antes de responder, Manolo admitiu para si próprio que, se
estivesse a vê-la pela primeira vez, a teria achado atraente.
Instantes depois, sacudiu a cabeça e desatou-se a rir.
– Margaret Carpani Williams – disse em tom solene, – não
estarás a propor-me o que me pareceu compreender que estás a
propor-me, pois não?
– Dar umas quecas? – perguntou ela por sua vez.
– Assim, no plural…?
– Órale! – Soltou uma gargalhada e ergueu o copo como se
acabasse de fazer um brinde. – Já que falamos nisso…
Ele observou-a com vagar, por instantes, e teve medo. De se
enganar, de estragar tudo, de deitar a perder a relação, de, no fim
de contas, a perder. Ainda se sentia um impostor, um rapaz do
campo desajeitado num fato que lhe ficava grande de mais, e, de
entre todas as virtudes de Meg, a mais valiosa era a sua misteriosa
capacidade para neutralizar essa sensação. Quando estavam
juntos, ele podia mostrar-se tal como era, sem se sentir obrigado a
revelar o à-vontade, a experiência mundana de que na realidade
carecia. Por isso, aquela proposta assustou-o muito, mas, parando
um instante para pensar no pior, pressentiu que se aquela
experiência corresse mal, se não conseguisse ficar excitado, se não
ficasse com tesão, se não fosse capaz de lhe dar prazer, os dois se
fartariam de rir e decidiriam que nada daquilo tinha acontecido.
Então sorriu.
– Isso é um sim ou um não?
Faltavam trinta e cinco minutos para terminar a última noite de
1933 quando Manuel Arroyo Benítez se levantou da cadeira, se
aproximou de Meg e lhe estendeu a mão. Ela soltou uma
gargalhada, aceitou-a, levantou-se e saíram juntos da sala de jantar.
Quando o maître apareceu com um gongo, preparado para marcar
as badaladas que iniciariam o novo ano, a gringa louca e o espanhol
ajuizado passavam do singular ao plural.
– Não podíamos continuar assim – confessou ela depois. –
Precisava de saber o que aconteceria, se conseguia fazê-lo contigo
ou não… Já sabes que em metade dos dias gosto de homens. E em
alguns desses dias, gosto de ti.
Meg nunca se apaixonou por Manolo. Manolo nunca se
apaixonou por Meg. Foram para a cama muitas vezes e, mais vezes
ainda, não o fizeram. O sexo deixou-os mais felizes sem tornar
estranha a relação, porque o faziam como conversavam, bebiam e
se relacionavam, como dois camaradas, porém, reforçou um vínculo
misterioso que prosperou de forma extraordinária na terra de
ninguém onde ambos conseguiram cultivá-lo. Ela nunca acreditou
que uma coisa daquelas fosse possível; ele ainda menos.
Desconfiavam ambos de que Meg gostaria mais de mulheres do que
de homens, no entanto, ela era tão feminina na cama como ele
gostava que fossem as mulheres com quem se deitava, e nunca
lhes passou pela cabeça partilhar nenhuma. A princípio, os dois
dedicavam muito tempo a pensar em tudo isto. Mais tarde, deixaram
de o fazer em simultâneo.
Nalgumas noites, em determinados cocktails elegantes ou em
covis infames, Manolo apontava para alguma mulher que levara
para a cama para que Meg se risse e lhe desse uma cotovelada.
– Hijo de la chingada9!
Noutras noites, era Meg quem agitava o copo no ar como se
estivesse a brindar, para mostrar a Manolo alguma das suas últimas
conquistas, e nessa altura era ele quem se ria.
– Que cabra!
Contudo, em certas ocasiões, nenhum dos dois abria a boca, por
muito boa que fosse ou por muito próxima que estivesse a última
mulher que ela, ou ele, tivesse conquistado, e não sabiam porque se
calavam, mas também não tentavam averiguá-lo. Assim, tornaram-
se imprescindíveis um para o outro, um verdadeiro casal excêntrico,
embora nenhum deles tivesse grande consciência disso até Manolo
ter anunciado, no verão de 1936, que ia para Londres e Meg chorar
a noite inteira.
– Adoro-te, pinche gachupín10 – disse-lhe de manhã.
– E eu adoro-te a ti, gringa louca.
Quando ele lhe acenou um adeus das escadas do avião, ambos
sabiam que aquilo terminara, mas que a amizade, pelo contrário,
viveria até que o último dos dois morresse. Também sabiam que
Manolo não tivera opção.
Na embaixada de Londres esperava-o a emoção e intensidade
que tanta falta lhe fizeram em Genebra. Em setembro de 1936,
Pablo de Azcárate, mais do que embaixador da República no Reino
Unido, era o seu representante perante o Comité de Não
Intervenção em Espanha, que funcionava na capital britânica desde
o mês anterior e que não reagira, nem reagiria até ao fim da guerra,
às violações constantes e descaradas do acordo, patentes nas
ajudas de Berlim e de Roma ao bando golpista. O trabalho de
Manolo consistia em assinalar repetidamente estes incumprimentos,
fornecendo novas provas sobre Bernhardt e a HISMA, sobre Ciano
e os voluntários italianos, sobre envios de aviões, de tropas, de
munições, que Lorde Windsor-Clive, diretor do Comité e o melhor
aliado que Franco poderia desejar, nunca considerava fiáveis,
suficientes ou definitivas.
Na prática, sentia que o haviam arrancado de uma aprazível
estância balnear de luxo e lançado num dos círculos do Inferno,
onde lhe tinham dado um balde não muito grande e a missão de o
usar para esvaziar o mar, tentando, de caminho, mudar a orientação
de um auditório indolente. Eis o que sentia ao devolver os sorrisos e
ao apertar as mãos de todos aqueles trabalhistas, socialistas e
sociais-democratas que se comoviam ante as suas palavras, que
chegavam mesmo a deixar cair uma ou outra lágrima de emoção
entre promessas solenes de solidariedade, e depois não moviam um
dedo pela sua causa. E isso nem sequer era o pior. Em Londres, até
os cocktails eram campos minados para os diplomatas republicanos,
que tinham de medir cada palavra proferida sem nunca
demonstrarem a indignação, o desalento ou a ira que se apoderava
deles enquanto sorriam com um copo na mão. Manuel Arroyo
Benítez nunca atribuíra tantas vezes a uma cara a expressão filho
da puta, mas estas palavras nunca lhe saíram dos lábios enquanto
conversava com o seu interlocutor.
Sem deixar de sentir saudades de Meg por quem era, sentia
muita falta da sua paixão e cumplicidade, do apoio incondicional que
teria tornado mais suportável aquela tarefa esmagadora e infrutífera.
Escrevia-lhe longas cartas nas quais não lhe podia contar nada de
importante e ela respondia-lhe com cartas igualmente longas e tão
triviais como as que recebia de Londres. A única informação
relevante que conseguiu fornecer-lhe foi a constatação de uma
realidade que ele já tinha adivinhado por si mesmo. «Tenho pena de
que te aborreças tanto», escreveu, «mas não tenho nenhum amigo
em Inglaterra que te possa fazer companhia, de modo que vais ter
de te embebedar sozinho…» Ele já intuíra que não podia contar com
ninguém da embaixada norte-americana, onde a República colhia
mais simpatias verbais do que em qualquer outra, mas com as
mesmas, nulas, consequências práticas que nas restantes. Esse era
um dos assuntos que despachava diariamente com o embaixador e,
em dezembro, quando este combinou um jantar dizendo-lhe que lhe
ia propor uma missão especial, não estava à espera de algo muito
diferente. A expressão com que Azcárate o recebeu alertou-o para a
possibilidade de estar enganado antes de o chefe o confirmar com
dois adjetivos muito bem escolhidos.
– É delicado – fez uma pausa para olhar para ele – e pode ser
perigoso.
E, no entanto, ir a Valência uma vez por mês enquanto agente de
ligação entre Pablo de Azcárate e o amigo Juan Negrín, ministro das
Finanças do governo de Largo Caballero, foi o que de mais parecido
com umas férias Manuel Arroyo pôde desfrutar enquanto pertenceu
ao pessoal da embaixada de Londres.
A sua missão era delicada e perigosa pela mesma razão. O
único motivo pelo qual Azcárate queria informar diretamente Negrín
e ficar a par das suas impressões, a única razão pela qual o ministro
das Finanças estava interessado em manter essa via de
comunicação à margem da oficial consistia no facto de ambos
confiarem cegamente um no outro e em nenhum dos seus
superiores comuns. Largo Caballero, presidente do governo e
ministro da Guerra, parecia-lhes incapaz em ambos os cargos, mas,
se alguém descobrisse que o enviado do embaixador em Londres,
que despachava periodicamente com o governo, trocava
informações em paralelo com um dos seus membros, a corrente
partir-se-ia pelo elo mais fraco, que era, evidentemente, Manolo.
– Nesse caso – confessou-lhe Azcárate –, teríamos de te deixar
cair e preciso que saibas disso. Se o Largo descobrir, diremos que
estavas a conspirar por tua conta e que não sabíamos nem porquê
nem para quem, porque nunca te encarreguei de nada e o ministro
das Finanças recebia-te apenas por amizade para comigo. Portanto,
quero que penses bem antes de responderes. Não preciso de te
explicar as consequências que o teu fracasso acarretaria, pelo que
não te censurarei se recusares.
Manolo aceitou a missão e desfrutou da luz e do sabor quase
esquecido das laranjas. Do prazer incomparável de se sentar numa
esplanada à uma da tarde para beber uma cerveja e comer
azeitonas ao sol enquanto olhava para as mulheres, cujos saltos
altos se ouviam pelo passeio. Da felicidade de não ter de falar em
nenhuma língua que não a sua e da cor aprazível do Mediterrâneo.
Ao mesmo tempo, descobriu que tinha capacidades de que nunca
desconfiara para este tipo de trabalho e jamais se arrependeu de ter
aceitado uma tarefa que só cessou com a ascensão do ministro das
Finanças à presidência do governo. No entanto, voltou a Valência a
29 de maio de 1937 porque Negrín, que ainda não tinha cumprido
quinze dias no cargo, o convocou ao seu gabinete do Palácio de
Benicarló para lhe dizer que lhe doía muito a cabeça.
Sentado à sua frente, o jovem diplomata descobriu que a
responsabilidade não lhe fizera bem. Estava perante um homem
mais velho e mais cansado do que o ministro de quarenta e cinco
anos cujos olhos, há apenas um mês e meio, refletiam ainda o
derradeiro brilho do estudioso que conhecera em criança. Esse
rasto apagara-se na expressão grave, na pele mate, nas pálpebras
inchadas de um homem que dormia menos do que devia, que nem
adormecido descansava e que ganhara peso por comer mal, às
vezes pouco, às vezes de mais, sempre fora de horas. Era esse o
preço da sua coragem. Manolo aprendera em Londres que era
preciso muita coragem e um arrojo temerário, mais do que heroico,
quase suicida, para aceitar o governo da República em maio de
1937.
– Não me felicites. – Negrín leu-lhe nos olhos o que estava a
pensar, e ele, que sempre o admirara, admirou-o ainda mais. –
Porque as coisas não estão de molde a que ninguém me felicite. E
tu ainda menos, quando ouvires o que te vou pedir…
A 28 de junho de 1937, Manuel Arroyo Benítez registou-se num
hotel de Madrid com uma documentação impecável, porque
provinha da Direção Geral de Segurança da República, e tão falsa
que o identificava como Rafael Cuesta Sánchez, funcionário do
Ministério da Governação, nascido em Talavera de la Reina a 12 de
janeiro de 1904, filiado na UGT desde 1929, casado e residente em
Valência. Nenhum dos dados que formavam essa identidade, a
primeira de muitas que usaria na vida, era autêntico.
– Chamei-te porque confio em ti, Manolo, e isso faz de ti, para
tua desgraça, um homem excecional. A verdade é que não confio
em quase ninguém. Não conseguirei fazê-lo até impor a ordem na
minha própria circunscrição. A sublevação de Barcelona foi
gravíssima, e não podemos permitir nem mais uma. Se
continuarmos a matar-nos, estamos feitos…
A nomeação de Rafael Cuesta Sánchez como delegado auxiliar
do Governo na Junta de Defesa de Madrid, cargo de natureza vaga
que não existia anteriormente nem voltaria a existir depois de ele o
ocupar, foi publicada no Diário do Governo de segunda-feira, 21 de
junho. Nesse dia, Manolo estava ainda em Londres, a arrumar o
gabinete e a fazer as malas. Sabia que, nos primeiros dias de maio,
trotskistas e anarquistas haviam atacado a tiro, em Barcelona, as
forças da ordem da Generalitat e do governo republicano. Sabia que
tinham proclamado a revolução e sido derrotados ao cabo de seis
dias de luta que deixaram nas ruas da cidade mais de duzentos
cadáveres, todos antifascistas. Sabia que esta crise tinha provocado
a queda de Largo Caballero e a subida de Negrín à Presidência do
Governo. Contudo, ninguém lhe contara que, dias antes da sua
viagem, a cúpula do Partido Operário de Unificação Marxista
(POUM) tinha sido detida como represália, embora ninguém se
atrevesse a dizê-lo em público, nem que Andrés Nin, líder do
POUM, estava desaparecido, até para os organismos civis de
inteligência do governo republicano, desde o dia 18.
– Não te vou enganar. O que te proponho é uma sacanice. O
nosso Serviço de Inteligência Militar é um ninho de víboras. Os
russos metem o bedelho em tudo, os comunistas fingem que não
veem, os meus companheiros do PSOE entretêm-se a passar
rasteiras uns aos outros e, claro, com as coisas neste pé, os
anarquistas e os trotskistas continuam a fazer o raio da revolução
por sua conta e risco, mesmo que o custo seja perdermos a guerra.
A Junta de Defesa fechou as checas de Madrid no fim do ano
passado, mas consta-nos que continua a haver centros de detenção
ilegais, sem qualquer controlo. Quando fechamos um, abrem
outro…
O panorama sombrio que o presidente do governo pintou no fim
de maio era mais agradável do que a paisagem que Manolo
encontrou em Madrid um mês mais tarde. O desaparecimento de
Nin enfurecera os poumistas da capital, muito poucos, embora
dispusessem do apoio de grande parte dos anarquistas madrilenos.
Estes eram muitos, apesar de não tantos como os socialistas, que
estavam muito divididos entre si, e muito menos do que a soma de
socialistas e comunistas, aliados no apoio ao governo de Valência e
à Junta de Defesa, governo paralelo na cidade sitiada, embora esta
fosse praticamente a única coisa em que estavam de acordo, e,
mesmo assim, nem todos.
– Ninguém me informou daquilo que os russos estão a fazer,
mas eu sei, e o que não sei imagino. Tu conheces-me, de modo que
não é necessário dizer-te que não me agrada nada. Daria qualquer
coisa para os pôr a andar, mas não posso. Expulsar os assessores
soviéticos é o mesmo que renunciar à ajuda da URSS, a única que
temos. E, se cortarmos com a URSS, o que faremos? Continuamos
a lutar sem aviões, sem tanques, sem armamento pesado, só com a
dedicação dos brigadistas e com as espingardas que os benditos
mexicanos nos mandam? Seria o mesmo que oferecer Espanha a
Franco e, ao aceitar a Presidência, deixei muito claro que para isso
não contassem comigo. Prefiro matar-me, e mais não digo.
– E é por isso que lhe dói tanto a cabeça, senhor?
– Suponho que sim, sobretudo por isso.
– E que posso fazer por si?
Manuel Arroyo Benítez conhecia bem Madrid, no entanto, era
muito pouco conhecido numa cidade onde tinha vivido quase seis
anos, porque quase não saía do quarto onde estudava exceto para
ir à Faculdade de Direito. Nunca militou em nenhum partido, não
praticou desporto em nenhuma equipa, não integrou nenhum clube
ou associação cujos sócios o pudessem identificar. Não teve
nenhum amigo íntimo e os poucos conhecidos com quem se poderia
cruzar na rua não eram perigosos. Quando Manolo saiu de Madrid
ainda era um saloio de fato e chapéu. O homem que voltaria a viver
ali transformara-se num cidadão do mundo, poliglota, cosmopolita,
experiente e dificilmente associável ao protegido desajeitado de
Azcárate. Apesar disso, Negrín contou-lhe que mandara investigar
os colegas de curso e os advogados do escritório onde tinha
trabalhado, e disse-lhe, de passagem, que a sua efémera namorada
madrilena vivia em Valladolid com toda a família.
– Antes de mais, quero pedir-te um favor. Esquece Villablino,
Manolo. Esquece a tua aldeia, o colégio, esquece o Pablo e
esquece-me a mim. Não tens nada por que nos agradecer. Tudo o
que conseguiste foi por mérito próprio. Não penses que me deves
alguma coisa, isso para começar, e depois, só depois, pensa muito
bem na tua resposta.
De qualquer forma, um mês antes de voltar para Madrid, deixou
crescer o bigode e a barba cerradíssima, cuja sombra negra o
torturava desde a adolescência, o que bastou para lhe pôr em cima
os seis anos que Rafael Cuesta tinha a mais. Além disso,
encomendou em Londres uns óculos redondos, com lentes sem
graduação, que não o favoreciam, mas que lhe davam um aspeto
ainda mais velho. Da última vez que estivera em Madrid não tinha
nenhuma cicatriz. No verão de 1934, um acidente de automóvel
deixara-lhe um pequeno sinal de lembrança, menos percetível do
que a pelada que lhe atravessava a sobrancelha direita num longo
traço. Ao escolher os óculos, pôs de lado todas as armações que a
escondiam.
– E se, apesar de tudo, decidires ajudar-me, o que te vou pedir é
que voltes para Madrid e que integres o Departamento de Ordem
Pública com uma identidade falsa. A única cobertura que te posso
oferecer é um cargo de representante do governo na Junta de
Defesa. Não é grande coisa, sobretudo em comparação com o que
espero de ti, caso aceites. Porque o que espero é que descubras a
verdade, Manolo, e que ma contes. Que me expliques o que está a
acontecer, quantas brigadas fora de controlo continuam ativas,
quem está a limpar a retaguarda por sua própria iniciativa, até que
ponto o SIM deixou de ser um serviço espanhol e se transformou
numa delegação da polícia secreta soviética e, sobretudo,
sobretudo, se é possível que se repita lá o que aconteceu em
Barcelona. Disse-te que não te iria enganar. Estou a pedir-te que
arrisques a vida pela República porque esta tarefa, garanto-te, é
muito mais perigosa do que lutar em qualquer frente. Por isso quero
que penses muito bem no que vais responder.
A 1 de julho de 1937, Rafael Cuesta Sánchez ocupou um
gabinete no Departamento de Ordem Pública da Junta de Defesa de
Madrid. A primeira coisa que fez foi cumprimentar o comissário
Rodríguez, que lhe agradeceu a ajuda, se ofereceu por seu turno
para o auxiliar e não fez perguntas.
– Procurámos como ligação útil, devido à informação que te pode
fornecer, um comissário da polícia com fama de homem íntegro.
Parece-me leal e honrado, como qualquer um dos membros da
Junta, mas, na situação em que estamos, as qualidades pessoais
valem menos do que nunca. Entre os sublevados de Barcelona
havia excelentes pessoas, de honestidade irrepreensível, com
convicções revolucionárias puríssimas, e vê lá o que arranjaram. Em
Madrid julgam que te enviamos para inspecionares as cadeias e
para fazeres relatórios que sirvam para aplacar a campanha contra
a República lançada no estrangeiro. A partir daí, terás de confiar no
teu instinto.
Basilio Rodríguez era polícia havia mais de vinte anos, como o
pai, o avô e o bisavô. Nenhum dos seus antepassados chegara a
dirigir uma esquadra, e esse teria sido também o seu destino, não
fosse o golpe de Estado de 18 de julho ter reduzido bastante o
quadro de pessoal. A deserção de uma boa parte dos seus
superiores e a firmeza com que segurara as rédeas de uma
esquadra onde não restava um único oficial superior tinham
resultado em várias promoções num quarto de hora, até o
transformar em comissário. Rodríguez nunca militara num partido,
contudo, em novembro de 1936, filiou-se no PCE, como tantos
outros madrilenos. Não o movera a admiração pelo Quinto
Regimento ou a gratidão para com os aviadores soviéticos que
haviam enfrentado os alemães no céu da cidade, mas a convicção
de que os comunistas eram os únicos capazes de impor a ordem.
Era um homem sério, mais para o carrancudo e sempre na
defensiva, porque, no exercício do comando, debatia-se
constantemente com o seu complexo de inferioridade, com a
sensação de estar a ocupar um posto que não lhe competia. Não
gostava dos meninos de boas famílias e, para regozijo íntimo do
acólito de Robles, foi essa a categoria que atribuiu ao recém-
chegado. Pouco tempo depois de o conhecer, Manolo cruzou-se
certa noite com ele e reparou na mulher jovem, bonita e sorridente
que levava pelo braço. Um dos seus subordinados apressou-se a
contar-lhe que ela tinha sido puta e que o comissário a tirara dessa
vida. Teria adorado fornecer-lhe mais pormenores, mas o olhar de
Manolo dissuadiu-o a tempo. E passou a gostar ainda mais de
Rodríguez, com quem já simpatizava.
– Terás também um contacto militar, um capitão filiado no Partido
Socialista há pouco tempo, que trabalha como ligação do Rojo com
o SIM. Também tem muito boa fama, mas não o posso garantir. Não
é preciso que te diga que és livre de agir por tua conta. O teu único
chefe nesta missão sou eu.
Jesús Romero, mais novo do que Rafael mas um pouco mais
velho do que Manolo, era militar de carreira, bem-parecido, culto, de
uma boa família burguesa de militares liberais, republicanos há
gerações, e muito mais simpático do que o comissário Rodríguez.
Desde o primeiro instante, Manolo decidiu que não gostava dele e
que o sentimento era mútuo. O capitão ofereceu-se com muito mais
insistência do que o comissário para o acompanhar a almoçar, a
jantar, a passear, porque o recém-chegado o desconcertava.
Romero era um verdadeiro menino de boas famílias e o
desembaraço com que Manolo falava várias línguas, os seus modos
de diplomata, a forma airosa como se comportava não o
conseguiram enganar por completo, embora o tenham feito duvidar
muitas vezes. O homem de Negrín também duvidava, porém, se
tivesse de apostar tudo numa carta, teria apostado que o capitão
Romero trabalhava para a Quinta Coluna. O militar nunca deu um
passo em falso. Aparentava dar-se muito bem com os assessores
militares soviéticos, a quem apresentou o recém-chegado com uma
cordialidade quase íntima, mas nem sequer isso evitou que Manolo
desconfiasse dele.
– Se aceitares, comunicarás diretamente comigo. Elaboraremos
um código cifrado e terás acesso a uma câmara de segurança na
Telefónica, vigiada por homens armados. Para maior segurança,
não haverá operador. Serás tu a compor e a enviar as tuas próprias
mensagens, que chegarão diretamente a este gabinete. Pensa bem
nisto tudo e dá-me uma resposta dentro de dois dias. Gostaria de te
dar mais tempo, mas não posso, porque não o tenho.
Os seus contactos oficiais mantiveram-no sob vigilância desde o
primeiro dia. Rodríguez forneceu-lhe uma empregada que ia todos
os dias limpar o apartamento da calle Infantas onde o haviam
instalado, e Romero disponibilizou-lhe um carro com motorista para
as deslocações pela cidade. Ele teve em conta tanto uma coisa
quanto a outra: nunca deixou em casa nada que o pudesse
comprometer, limitou as conversas com o motorista a futebol e a
mulheres, e trabalhou bem, sem contratempos, durante todo o
verão. Em setembro já tinha a certeza de que em Madrid, que
continuava uma cidade sitiada e rodeada por frentes ativas, nunca
ocorreria nenhum episódio semelhante à sublevação de Barcelona.
Essa certeza poderia ter posto fim à sua missão, mas conseguira
aceder a demasiada informação, e essa informação era valiosa de
mais para ser abandonada.
– Obrigado, Manolo. – Quando voltou ao Palácio de Benicarló
para aceitar a missão, pouco mais de doze horas depois de a ter
recebido, Juan Negrín dirigiu-lhe um olhar cheio de emoção, de
preocupação e de orgulho, que Manuel Arroyo Benítez acharia
certamente paternal se o seu pai alguma vez se tivesse dado ao
trabalho de olhar para ele. – Nunca o esquecerei, prometo-te. E
agora vou pedir-te outro favor. Não corras riscos, não faças isso. Ao
mais pequeno sinal de perigo, foge e volta para cá. És demasiado
valioso para morrer, lembra-te sempre disso.
Em outubro, Manolo apercebeu-se de que estava em sarilhos.
Até àquele momento sentira-se seguro porque aproveitara ao
máximo os canais oficiais para tirar partido do que ia descobrindo.
Tinha contactado com muitas pessoas que se dedicavam a albergar
refugiados políticos, diplomatas, jornalistas estrangeiros,
representantes de igrejas protestantes e até fascistas emboscados,
que o obrigaram a manter a compostura. Ele nunca militara em
nenhum partido porque um vínculo político concreto teria sido
contraproducente para o seu trabalho em Genebra e em Londres,
mas identificava-se com Azcárate e, sobretudo, com Negrín. O
essencial era resistir, salvar a República e vencer a guerra.
Agarrava-se a essa convicção nos momentos difíceis e a isso
dedicou todo o seu esforço. Com a informação que enviava para
Valência, o governo não só pôs de lado a hipótese de uma
hipotética sublevação madrilena, como começou também a
pressionar, com bons resultados, as direções dos partidos, o
Ministério da Governação, o Departamento de Ordem Pública da
Junta e a delegação soviética, até se ter tornado evidente que
alguém trabalhava em Madrid para Negrín.
– Posso fazer-lhe uma pergunta, senhor? – Na véspera da
viagem, jantou com o presidente na sede do governo.
– Claro, o que quiseres.
De manhã, mal chegava ao trabalho, respirava um ar cada vez
mais turvo. Não havia indícios de que alguém suspeitasse dele,
porém, quando deixou de haver conversas nos corredores, cafés em
grupo, ordens dadas aos gritos e brincadeiras, apercebeu-se de que
todos suspeitavam de todos. Redobrou as cautelas e só se sentiu
em perigo a 7 de novembro, quando se sentou ao lado do
comissário Rodríguez numa cerimónia de comemoração do primeiro
aniversário do dia mais glorioso da defesa de Madrid. Não sei se
estou enganado, sussurrou-lhe o polícia antes de os discursos
começarem, mas quem está a fazer o que está a fazer deu um
passo maior do que a perna… Manolo olhou-o e comentou que
estava de acordo, sem enfiar a carapuça. Rodríguez pousou-lhe
uma mão no ombro e não quis continuar. Nesse momento, Manuel
Arroyo compreendeu três coisas. A primeira foi que o comissário era
um excelente polícia, porque soubera relacionar o zelo com que ele
se dedicara a denunciar as brigadas trotskistas e anarquistas, sem
nunca se interessar pela repressão exercida por outros partidos,
com o caudal de informação que chegava a Valência acerca dessas
organizações, que aparentemente não lhe interessavam. A segunda
foi que, embora tivesse descoberto que era impossível dois homens
diferentes estarem a realizar em simultâneo duas investigações
distintas mas admiravelmente complementares entre si, Rodríguez
não o denunciaria. A terceira, e mais importante, foi que chegara o
momento de Rafael Cuesta Sánchez sair de Madrid com fogo no
rabo.
– Quem é o Rafael Cuesta Sánchez?
– Ninguém.
Não teve tempo. Quando a cerimónia terminou, não eram ainda
sete da tarde, já tinha anoitecido. Saiu da sede da Junta, depois de
se despedir de toda a gente com naturalidade, até ao dia seguinte, e
hesitou uns instantes entre passar por casa ou partir imediatamente.
A segunda opção era a melhor, mas na mesa de cabeceira do
quarto repousava a edição em capa mole de Bailén, publicada pelo
Quinto Regimento, o texto que usava para cifrar as suas
mensagens. Se a fuga se complicasse, o livro poderia ser a sua
salvação. Por isso acabou por decidir correr o risco de o ir buscar.
Foi a pé até à calle Infantas e verificou que ninguém o seguia, mas
não conseguiu passar da entrada.
– Inventámo-lo do princípio ao fim, porque nos pareceu ser o
melhor, o mais seguro para ti.
Quando fechou a porta, alguém lhe deu uma pancada na cabeça
que o deixou inconsciente. Antes, só tinha tido tempo de pensar que
fora emboscado. Depois, que iam matá-lo.
– Criámos uma personagem impossível de ser investigada neste
momento. Talavera de la Reina fica na outra zona, e a nossa própria
aviação bombardeou-a em setembro.
No momento em que recobrou os sentidos, tinha as mãos
amarradas e um saco a cobrir-lhe a cabeça. Sentiu algo húmido,
pegajoso, no lado direito da testa, mesmo na fronteira da pele com o
couro cabeludo, e calculou que o sangue se colara ao pano. Poderia
tê-lo comprovado levantando as mãos amarradas à altura da
cabeça, mas preferiu continuar a fingir-se inconsciente.
– Escolhemos uma paróquia que ardeu com todo o seu
conteúdo, de modo que não existe nenhum livro de batismo
disponível, e tu sabes que nas povoações as pessoas não dão
muita importância ao Registo Civil.
Os captores eram, no mínimo, três, todos espanhóis. Quando
conseguiu prestar atenção, ouviu o fim de uma conversa, que não,
caramba, não vamos levá-lo para lado nenhum, pois eu continuo a
achar que devíamos interrogá-lo, mas tu não ouviste, Paco?
Caraças, rapaz, és mesmo chato!
– Os únicos que te poderiam desmascarar são os franquistas,
porque toda a vida do hipotético Cuesta decorreu na outra zona.
Por pura deformação profissional, concentrou-se em averiguar a
que organização pertenciam, até perceber que ia morrer e que os
mortos não podem partilhar informações. Pouco depois, o carro
parou e um dos ocupantes protestou. Vocês estão loucos? Como
vamos fazê-lo aqui? Vê se te calas, caraças! O que o puxou por um
braço não era nem o que protestava nem o que lhe respondeu. O
motor do carro continuava a trabalhar quando o atiraram ao chão.
Ouviu o som do primeiro tiro, sentiu o fogo num dos lados e pensou
que estava a morrer. Depois, nada.
Porém, Manuel Arroyo Benítez sempre tivera muito azar e muita
sorte, porque os mortos não ouvem.
– Deve ter um nome…
Os mortos não abrem os olhos, e ele não conseguia abri-los. Os
mortos não sentem, e ele não sentia. Os mortos não se mexem, e
ele não se mexia.
– Como se chama aquele? Não, esse não, o que está na outra
maca…
Os mortos não ouvem, mas ele ouviu um nome, Felipe
Ballesteros Sánchez, antes de os ouvidos se lhe fecharem muito
devagar. Lutou contra eles, ordenou-lhes que continuassem a ouvir
e, ao fracassar, sentiu que os perdia como se o último fio da corda
que o prendia à vida se desfizesse lentamente entre os seus dedos.
Depois não aconteceu nada, escuridão, quietude, novamente a
morte. Até que uma voz se atreveu a contrariá-lo.
– Não, caramba. Garanto-lhe que há de viver.
Antes de ter consciência de que voltara a ouvir, antes de ter
ouvido essas palavras, sentiu um calor misterioso nas veias e abriu
os olhos sem se dar conta.
Um homem coberto com uma bata branca, cheia de manchas de
sangue, examinava-o com a concentração que teria dedicado a
resolver um problema muito difícil. Era alto, magro, tinha o cabelo
preto, a cara longa e estreita. Parecia o modelo de um retrato de El
Greco, mas os Cavaleiros de Santiago que posaram para o grego
eram tristes, severos, sérios. Este, pelo contrário, desatou a rir de
repente, a despropósito, no instante em que Manuel Arroyo Benítez
sentiu que voltava a estar vivo.

3
Pinche pendejo: grande imbecil (parvo, palerma). A palavra pinche tem
inúmeras aceções que dependem da utilização. Pode ser usada como
aumentativo do substantivo ou adjetivo que precede, ou individualmente, com
o significado de maldito, péssimo, miserável, insignificante… (N. da T.)
4
Chamaca: miúda. (N. da T.)
5
Ni modo: Não há nada a fazer. (N. da T.)
6
Órale: vamos lá. Outro vocábulo mexicano com inúmeros significados.
Dependendo do contexto, órale pode ser uma expressão de estímulo, de
concordância, de alegria. (N. da T.)
7
A poco? / a poco no?: não me digas; a sério. (N. da T.)
8
Cuate: amigo. (N. da T.)
9
Hijo de la chingada!: Grande filho da mãe. Vocábulo com inúmeras
utilizações, chingado/a é sempre utilizado para adjetivar de uma forma
violenta e negativa qualquer expressão. (N. da T.)
10
Pinche gachupín: espanhol de um raio. Gachupín, como galego, é usado
no México para designar os espanhóis. (N. da T.)
PORTUGALETE, 18 DE JULHO DE 1937

Antonio Ochoa Gorostiza aborrecia-se.


Há menos de um mês que a sua brigada ocupara Portugalete e
já estava farto de nada fazer. Os primeiros dias depois da vitória
foram intensos, sim, emocionantes, uma semana frenética de
destruição, restauração, detenções, julgamentos sumários,
execuções, missas solenes e homenagens aos caídos por Deus e
por Espanha, mas a atividade tinha durado pouco. A margem
esquerda do Nervión fora sempre um bastião vermelho, um dos
poucos onde os comunistas tinham importância antes da guerra,
todavia, apesar disso, e do seu valor estratégico, Portugalete não
era uma povoação muito grande e quase não opôs resistência. A
companhia sob o seu comando encarregou-se de fechar sedes, de
arrancar cartazes, e pouco mais. O capitão Ochoa também não
esperava grande coisa da comemoração do primeiro aniversário do
golpe de Estado, mas nesse dia levantou-se com maus fígados por
outra razão.
– E tu que achas? – perguntou ao assistente quando este entrou
no quarto para lhe anunciar que o pequeno-almoço estava pronto. –
Acaso a guerra acabou? Libertámos toda a Espanha? Não.
Continuam a lutar em Madrid, em La Mancha, em Aragão? Sim.
Nesse caso, que diabo fazemos nós aqui? Desfiles militares e
missas solenes, raios partam… Estou até aos cabelos de missas!
Que pretende o comando, que ganhemos a guerra a rezar?
O verdadeiro motivo daquela explosão tinha que ver com o
formigueiro misterioso que começara a sentir uns dois anos antes,
quase sempre a partir da omoplata direita. Não era uma sensação
dolorosa, nem sequer violenta, apenas uma sensibilidade transitória
da pele, como uma carícia traiçoeira, que com o tempo se fora
agravando, mudando de forma, desmentindo-se, deixando-lhe uma
parte das costas completamente insensível antes de desaparecer. A
frequência com que reaparecia era caprichosa e às vezes deixava-o
em paz mais de três meses, embora ultimamente os intervalos
tivessem começado a diminuir. De qualquer forma, só alguém
apelidado Ochoa Gorostiza lhe teria dado importância. Quem
tivesse perdido um irmão aos oito anos, quem tivesse visto outro
sentado numa cadeira de rodas desde os doze anos, quem tivesse
tido uma irmã que, antes de perder o controlo da mão direita, se
havia suicidado engolindo um frasco inteiro de calmantes, como
fizera a coitada da Carmencita quando Antonio tinha dezanove.
Aquele formigueiro não parecia grave, ia e vinha, acentuava-lhe
cada poro da pele antes de a transformar em pedra, em cartão,
numa versão defeituosa de si mesma, mas depois passava,
desaparecia. Só quem acreditasse ter escapado à maldição da
família e acabasse por sentir o primeiro sintoma como uma
punhalada nas costas, aos vinte e oito anos e em vésperas de
casar, teria ficado tão mal-humorado naquela manhã.
Antonio fora sempre o menino saudável, o filho forte, a grande
esperança de uns pais atormentados por uma doença sem nome,
sem regras nem cura, que fora matando todos os outros. A mãe
tinha a certeza de que ele se ia salvar porque rezou muito à Virgem
del Carmen, o pai dava-o como certo porque uma cigana o lera na
palma da mão, e ele pensava, como eles, que o mal o apanhara de
raspão, tão debilitado estava pela sua crueldade qual tirano farto de
presenciar execuções. Enquanto lhe afetasse apenas a omoplata ou
as próprias costas, os três podiam ficar descansados, e assim
parecia o que havia acontecido nessa manhã, quando o aniversário
do Levantamento trouxe consigo a novidade inesperada de uma
coluna de formigas ainda leves, lentas mas tenazes, que lhe
descera pelo braço direito até se instalar no cotovelo, acordando-o
em plena madrugada. E ali continuavam, a dançar ao ritmo de uma
música que só elas ouviam, a mexer incessantemente as patinhas
sob a pele de Antonio Ochoa, enquanto o seu amigo José Luis o
tentava animar a caminho da igreja.
– Não fiques assim, homem! Além da missa, esta noite vai haver
baile e um campeonato de boxe. As eliminatórias começam ao
meio-dia e depois do jantar será a grande final.
– Boa! – Nesse preciso momento, as pequenas invasoras
começaram a retroceder, a empreender o regresso às costas. – E
isso porquê?
– Por nada, é que na minha companhia temos um rapaz, o
Adrián, agora não me lembro do apelido, espera, sim… – O tenente
Barrios fez uma pausa para acender um cigarro. – Garrido? Não,
Gallardo, Adrián Gallardo, é isso. Eu não o vi lutar, mas dizem que é
muito bom. E como na V Brigada Navarra há outro pugilista
chamado Navarro, que chegou a entrar em combates oficiais antes
de se alistar, decidimos organizar combates para o nosso, para ver
se consegue competir com o deles…
Os médicos só sabiam que o mal dos irmãos Ochoa era uma
doença degenerativa que afetava a musculatura. Os músculos, não
os nervos, nem os ossos, que iam perdendo força, elasticidade, até
que pouco a pouco, um por um, todos os membros do corpo se
tornavam inúteis, como se um peixe mantivesse a espinha e a pele
intactas, mas, entre uma e outra, a carne se transformasse numa
massa gelatinosa, mole e amorfa, imprestável. Era a única coisa
que sabiam e também que os compêndios que estudaram na
universidade estavam cheios de nomes próprios, de doenças
degenerativas que haviam afetado uma só família, três pessoas,
duas, um único indivíduo, sem deixarem de se assemelhar com
muitas outras e de, ao mesmo tempo, serem distintas. Don Vicente
Ochoa interpretou a informação à sua maneira. Se o mal estava nos
músculos, disse para consigo, a solução seria fortalecê-los. Alguns
especialistas avisaram-no de que seria inútil, mas outros pensaram
que o exercício físico não faria mal a Antoñito. O pai não prestou
muita atenção nem a uns, nem a outros, e o filho mais novo
começou a frequentar o ginásio aos dez anos. Aos quinze escolheu
boxe e, sem nunca pensar em tornar-se profissional, continuou a
praticá-lo durante mais de dez anos.
– Não é tão bom como dizes – sussurrou ao ouvido de José Luis,
depois do primeiro dos quatro combates que, nesse dia, Adrián
Gallardo ganhou por KO. – Quer dizer, tem muito potencial, mas é
muito mau tecnicamente.
– A sério? – Barrios desatou a rir. – Vais ver como ele os faz cair
a todos…
– Porque são como ele. Lutam como se estivessem à pancada
num descampado do bairro, mas o boxe não é isso. Os punhos
deste rapaz são como dois martelos, mas é lento, não sabe mover
os pés, não tem jogo de cintura… Se o do V Navarra estiver bem
preparado, este não aguenta dois assaltos.
– Não me lixes, Antonio. Está em jogo a honra da Brigada.
– Isso nunca. – O capitão Ochoa sorriu. – Manda-o vir ter comigo
amanhã e deixa o resto por minha conta.
Nessa noite, quando se meteu na cama, Antonio Ochoa
Gorostiza sabia que as formigas não o visitariam de madrugada,
porque tinha um projeto, um plano, uma missão a cumprir. A guerra
provocava-lhe o mesmo efeito. Em plena ofensiva, comendo pouco
e de pé, vivendo à intempérie, esquecia-se de tudo, dos pais, dos
irmãos, da pobre Carmencita. O frio e a chuva, a lama das
trincheiras, a humidade que lhe penetrava na sola das botas, nas
peúgas, na pele e nos ossos enquanto dormia mal, sentado no
chão, com as costas coladas à parede da barraca, eram o melhor
remédio. Quando acordava, entorpecido e gelado, não sabia se as
formigas dançavam ou se estavam imóveis porque lhe doía tudo,
nem mais nem menos do que aos outros, e as ordens que o
punham em marcha antes de conseguir digerir o pequeno-almoço
mantinham-no numa tensão que lhe vibrava em cada um dos
nervos, não dando lugar a mais nada. Por isso a paz lhe caía tão
mal.
– Vamos lá ver, rapaz… Chamas-te Adrián, não é verdade?
– Sim, meu capitão.
– Muito bem, Adrián, vou fazer-te uma pergunta. Queres ser
pugilista?
Era um bom rapaz, um rapaz são, inocente, que não bebia, que
nem sequer fumava, e que tirava a toda a hora de debaixo da
camisa um escapulário que a mãe lhe oferecera para o beijar muitas
vezes. Entre os voluntários do seu exército abundava este tipo de
homens, quase crianças, criados em famílias ultracatólicas de
tradição carlista. Ochoa nunca gostara deles e, no entanto, os
soldados com quem mais confraternizava, antigos legionários,
meninos canalhas de boas famílias que tinham passado diretamente
do cabaré para a frente, sargentos repescados após as campanhas
africanas, nunca lhe teriam dado tanto como Adrián Gallardo.
No dia em que o recebeu no seu escritório, entreteve-se a
elaborar o programa de treinos que cumpririam juntos nos próximos
meses. Nos dias seguintes, apropriou-se de uma cave ampla e bem
ventilada, que transformou num ginásio; tirou dois carpinteiros
vermelhos da cadeia para que lhe construíssem um ringue,
aparelhos e espaldares, e foi com Adrián a Bilbau para arranjar,
sempre através de apropriação forçada, dois bons sacos, luvas e
material de treino. Regressado a Portugalete, selecionou os
sparrings do seu campeão entre os presos e os soldados
disponíveis, impondo-lhes a mesma disciplina que ao seu pupilo.
Todas as manhãs, chovesse, nevasse ou fizesse sol, corriam
duas horas pelos campos. Depois iam até ao campo de futebol da
povoação e faziam provas de velocidade para que Adrián vencesse
todas as corridas. Ochoa apercebia-se de que ele era o único
estimulado para render o máximo, contudo, mesmo assim,
espantava-o a força dele, o mesmo se passando com os colegas
oficiais, que começaram a reunir-se diariamente nas bancadas para
assistir ao treino da estrela da Brigada e o seguirem depois até ao
ginásio. Ali, Gallardo fazia sombra11, saco e exercício até à hora do
almoço. Ao entardecer, depois de uma refeição equilibrada, de duas
horas de descanso e outras duas de exercício, realizavam-se os
combates que se transformaram no passatempo favorito das tropas
estacionadas em Portugalete.
– Posso falar um momento consigo, meu capitão? – Certas
tardes, perante o adversário, uma sombra de pesar instalava-se
entre as sobrancelhas de Gallardo. – Bom, queria perguntar-lhe… A
este, chego-lhe bem ou só ao de leve? É que não me importo de
bater num vermelho, mas este é dos nossos, meu capitão, muito
bom rapaz, o senhor sabe, e eu…
– Pois claro que lhe chegas bem, caramba, claro que lhe chegas
bem! – Antonio Ochoa Gorostiza descobria que a raiva era tão
eficaz como a satisfação para manter as formigas à distância. – É
teu inimigo, Adrián, percebes? Teu inimigo. – Agarrava-o pelos
ombros, abanando-o para não ter de lhe dar uma bofetada. – Tens
de o derrubar por KO no menor tempo possível, percebeste? Deixa
de esfregar esse escapulário e deita a mão ao teu instinto
assassino, porra!
– É como lhe digo, meu capitão… É que não sei se tenho instinto
assassino.
No entanto, acabava por entrar no ringue e despachava o outro
tão depressa como fizera na tarde anterior ao preso da UGT, mesmo
que depois o ajudasse a levantar-se, lhe pedisse desculpa e o
convidasse para umas cervejas na cantina. Bastou isso para que
Ochoa decidisse ir a Pamplona conhecer o campeão da V Brigada
Navarra.
– É o senhor que está a treinar esse pobre saloio que quer
combater comigo?
Porque Alfonso Navarro López não era um bom rapaz.
Bonito, fino, sevilhano, rebento do ramo empobrecido de uma
velha família de aristocratas que perdera o título por falta de dinheiro
para o manter, seguro de si, engraçado e gabarola, Navarro lutava
por diversão, porque mesmo que no fim da guerra não tivesse onde
cair morto, nunca suportaria a humilhação de ganhar a vida com
umas luvas de boxe nas mãos. Além disso, não era bem o campeão
da sua brigada, mas da Falange Espanhola. Menino querido de
Sancho Dávila, o primo sevilhano de José Antonio Primo de Rivera,
teve como primeiro protetor em Pamplona Fernando Villa Ruiz,
paladino em Navarra da pureza falangista até ter sido preso, por
isso mesmo, no mês de abril, depois de se ter oposto ao decreto de
Unificação com o qual Franco fundira todos os partidos legais na
sua zona num único Movimento Nacional. Meses depois, quando o
capitão Ochoa o conheceu em Pamplona, a unificação continuava a
enfurecer os falangistas, os carlistas e os monárquicos, para grande
satisfação dos militares, únicos triunfadores daquela operação.
Antonio Ochoa Gorostiza, que se teria entendido muito bem com
Alfonso Navarro numa noite de farra, percebeu desde o primeiro
instante que qualquer combate entre ele e Adrián se transformaria
numa representação simbólica do confronto entre a Falange e o
Exército. Ora, isso não lhe agradou. Não gostava dos políticos e não
gostava dos falangistas, que passavam a vida a conspirar enquanto
os militares ganhavam a guerra. Não gostava de ingratos, de
cobardes incapazes de mexer um dedo quando um amigo caía em
desgraça, como Navarro fizera quando haviam detido Fernando
Villa. Porém, o que menos lhe agradou foi ver nos olhos dele a
centelha de ferocidade que tantas vezes tinha procurado em vão
nos olhos de Adrián. Porque Alfonso Navarro López, que não era
bom rapaz, tinha, de facto, instinto assassino.
– Que tal, meu capitão? Como é esse Navarro?
Vendo de novo o rosto bochechudo e corado de Adrián Gallardo,
os seus modos toscos de camponês, o cordão do escapulário em
volta do pescoço e aquele olhar límpido, que por vezes lhe parecia
uma marca de inocência e outras um sinal de estupidez, o capitão
Ochoa recordou-se das palavras de Navarro, e o seu campeão
pareceu-lhe, mais do que nunca, um pobre saloio.
– Nada. – Talvez porque na viagem de regresso a Portugalete as
formigas o tivessem visitado novamente e, novamente, tivessem
chegado ao cotovelo e aí tivessem ficado. – Uma merda. Vais dar
cabo dele, rapazote…
E enquanto Adrián se ria que nem um tonto e as formigas
dançavam num ritmo cada vez mais frenético, voltou a dizê-lo, mais
para se convencer do que para animar o seu campeão.
– Vais dar cabo dele. – Revendo a lista de generais que tinha de
convidar para almoçar antes de se marcar a data do combate,
acrescentou ainda num murmúrio: – Vou encarregar-me disso.

11
A sombra é um exercício praticado no boxe em que o pugilista treina golpes
e movimentos com um inimigo imaginário. (N. do E.)
MADRID, 19 DE NOVEMBRO DE 1937

Depois de instalar o paciente no quarto que tinha sido meu antes


de se tornar da Amparo, apaguei a luz para o deixar repousar e
encaminhei-me para a porta, mas a sua voz deteve-me quando já
tinha a mão na maçaneta.
– Espera um momento… – Olhou para mim, fechou os olhos,
reabriu-os e suspirou, como se precisasse de arranjar coragem
antes de continuar. – Não me chamo Rafael, sabes?
– Não. – Sorri. – Chamas-te Felipe Ballesteros Sánchez, lembra-
te.
– Sim, sim, mas… – Ele também sorriu. – A verdade é que me
chamo Manuel. Manuel Arroyo Benítez, Manolo para os amigos.
Mesmo que continues a chamar-me Felipe, salvaste-me a vida e
mereces sabê-lo.
Ainda não sabia quem era. Não sabia a que se dedicava, para
quem trabalhava, porque não usava o verdadeiro nome nem o que
tornava a sua vida tão valiosa, contudo, doze dias antes, quando o
encontrei à beira da morte na enfermaria do quartel de El Pardo, a
primeira coisa que descobri foi que a identidade dele era um
problema.
– Como se chama?
Antes de formular a pergunta, observei-o rapidamente, contei
três tiros, um no lado, outro na zona direita do peito e um terceiro
um pouco mais acima, mesmo por baixo da clavícula; calculei as
trajetórias a olho e verifiquei que a primeira bala não tinha orifício de
saída, que as outras duas haviam saído do corpo depois de o
atravessarem e que, mesmo parecendo mentira, nenhuma das três
afetara qualquer órgão vital. Ele, porém, tinha perdido muito sangue,
tanto que lhe fiz uma transfusão de dador universal antes de o
classificar para não perder os dois minutos que essa operação me
tomaria. Comprovando que era B positivo, perguntei como se
chamava e ninguém me respondeu.
– Preciso de saber o nome dele para o anotar numa ficha,
juntamente com o grupo sanguíneo. Se fizermos uma transfusão
com sangue incompatível, pode morrer.
Nem sequer depois desse esclarecimento consegui uma
resposta, embora um comandante, o militar mais graduado entre os
que me rodeavam, se tenha aproximado de mim com uma passada
vacilante.
– Bem… isso você já sabe. – Nem me dei ao trabalho de lhe
responder e ele explicou-se melhor. – Quero dizer, já está a dar-lhe
sangue dessa garrafa…
– Sim, eu sei – admiti de má vontade. – Eu sei, sei aqui, e sei
agora. Mas este homem levou três tiros. Será necessário transferi-lo
para um hospital, operá-lo, com certeza mais de uma vez, e está
muito fraco, perdeu muito sangue. Precisará de mais transfusões.
Ora, eu não estarei sempre ao seu lado para me lembrar do grupo
sanguíneo, percebe?
Era muito fácil de perceber e, no entanto, tive a sensação de que
ele não o conseguira. O comandante Cuadrado olhou para o chão,
depois para o teto, de seguida, um por um, para os homens que nos
acompanhavam. Parecia perdido no seu próprio desconcerto,
porque abriu a boca algumas vezes sem proferir uma única palavra,
até que fez uma proposta surpreendente.
– Pode acompanhar-me lá fora por um momento, doutor?
– Evidentemente que não. Tenho de estar aqui – apontei para o
paciente –, caso surja algum problema.
– Assim sendo… – voltou-se para o médico do quartel. – Saia,
por favor. – Parou para pensar mais um pouco. – E vocês, todos lá
para fora.
– Não – opus-me novamente, apontando para a única pessoa
naquele aposento em quem confiava. – O Pepe fica.
O comandante acedeu porque o meu bom selvagem, um dos
soldados que estivera de guarda nessa tarde, já estava a par de
quase tudo o que ele me ia contar. Eram oito menos um quarto
quando um carro preto, que circulava a grande velocidade, travou
bruscamente diante da porta do quartel, mantendo o motor ligado.
Pepe tinha declarado que não trazia matrícula nem qualquer outra
identificação. No momento em que fez menção de se aproximar
para lhes perguntar o que faziam ali parados, um dos ocupantes do
banco traseiro saiu muito depressa, puxou pelo braço de um homem
com um saco na cabeça, desferiu três tiros, voltou a entrar no carro
e, antes de fechar a porta, gritou: aqui têm o vosso lixo, filhos da
puta.
– E isso que significa? – Só nessa altura interrompi o relato.
– Eu sei lá… – O militar encolheu os ombros. – Qualquer coisa.
Os soldados de guarda alertaram os paramédicos, que
transportaram para a enfermaria o que julgavam ser um cadáver.
Enquanto o médico comprovava que estavam enganados, o
comandante encontrou na carteira do ferido uma credencial do
Departamento de Ordem Pública da Junta de Defesa. Fez um
telefonema e pediram-lhe que não se fosse embora, desligando
imediatamente a seguir. Dois minutos depois, tocou o telefone e um
comissário da polícia, que se identificou como Basilio Rodríguez,
deu-lhe muitas instruções e nem uma explicação. Se Rafael Cuesta
Sánchez estivesse morto, deveria enterrá-lo como desconhecido,
sem o inscrever em nenhum registo. Se estivesse ferido, tinha de
lhe salvar a vida a qualquer preço, assegurando-se de que não
desse entrada com o seu nome em nenhum hospital, a fim de evitar
que tentassem matá-lo novamente. Quando o comandante quis
saber porquê, o comissário conjeturou que se o seu interlocutor fora
destinado a El Pardo, seria, em princípio, comunista. Eu também
sou, acrescentou, começando a tratá-lo por tu para reforçar o
vínculo, de modo que cumpre as minhas ordens e não faças mais
perguntas. Esse homem é vital para os interesses da República. É
tudo o que precisas saber.
– Não – corrigi-o –, sabemos mais alguma coisa.
– Conhece-o?
– Não, não o conheço – neguei novamente, substituindo a
primeira garrafa de sangue, já vazia, por outra de um dador B
positivo –, mas sei que, se o quisessem matar, teriam apontado à
cabeça. Teria sido mais rápido, mais seguro, e um único tiro
bastaria.
– Talvez não lhes tenha ocorrido. – O comandante contrariou-me
com tão pouca convicção que ele próprio retificou imediatamente. –
Embora, claro, se fossem bandidos…
– Deveriam sabê-lo, não acha? – Repliquei, completando-lhe o
raciocínio. – Essa é a primeira coisa que aprendem, que para matar
garantidamente é preciso atirar à cabeça.
– Mas talvez não fossem profissionais. – Pepe meteu-se na
conversa timidamente, num murmúrio que parecia destinado,
sobretudo, a ordenar ideias. – Se isto foi uma ação política contra o
governo, talvez fossem só militantes armados, até milicianos de
licença. Alguém, em alguma sede de algum partido, pensou em voz
alta, eles ofereceram-se e cumpriram a ordem conforme puderam. –
Deteve-se, olhou para nós, abanou a cabeça. – Acabou de me
ocorrer.
– É possível. – Cuadrado assentiu devagar. – É possível…
– De qualquer forma, isso já é indiferente. O que interessa –
apontei para um corpo que ainda não dera sinais de vida – é que
tem de ficar com um nome.
– Isso já não sei…
Mas eu sabia. A guerra tinha feito de mim um perito em áreas
que nunca havia estudado, sendo a utilidade insuspeitável dos
cadáveres uma delas. Aproximei-me do canto onde repousavam os
corpos de três soldados caídos nesse dia e observei-os um por um.
Depois, tornei a examinar atentamente o rosto do meu paciente, que
me pareceu mais jovem do que calculara de início. Trinta anos,
disse para comigo, talvez menos.
– Como se chama aquele? Não, esse não, o que está na outra
maca…
Pepe aproximou-se do cadáver que, pela idade, estatura e
compleição, me parecera ter mais semelhanças com o homem que
lutava contra a morte, e olhou para o papel preso à camisa com um
alfinete.
– Felipe Ballesteros Sánchez, nascido em…
– Não, isso já não me interessa. – Felipe Ballesteros Sánchez,
escrevi na ficha, grupo B positivo. – Mas passa os dados para um
papel e guarda-os, está bem? Tira-lhe a carteira que tem na camisa
e esconde-a.
– A verdade é que não percebo por que razão é precisa esta
embrulhada. – Mais do que perplexo, o comandante parecia quase
ofendido com a facilidade com que eu havia assumido o comando. –
Se, no fim de contas…
– Não, porra – desmenti-o, sem olhar para ele, atento ao ligeiro
movimento que se insinuava nas pálpebras do meu paciente. –
Digo-lhe que vai viver.
Nesse instante o moribundo abriu os olhos e deu-me razão,
afiançando a minha autoridade e percipitanto o riso eufórico que
coroava as ressurreições mais difíceis. Enquanto lhe dava as
segundas boas-vindas ao mundo lembrei-me, como sempre, do
doutor Bethune, embora nessa tarde tenha verificado que talvez
tivesse aprendido mais com o meu professor.
– Não tentes mexer-te, faz só o que te digo, está bem? – Porque
se o grande coordenador Fortunato Quintanilla me tivesse visto,
ficaria muito orgulhoso de mim. – Vou suturar-te as feridas,
preparar-te para te transferir para uma sala de operações nas
melhores condições possíveis. A única coisa que tens de fazer é
ficar calmo. Consegues falar?
– Sim – respondeu-me num sussurro débil, mas mais audível do
que esperava.
– Bom, então cala-te. Não fales, a não ser que de repente sintas
dor ou qualquer outro sintoma que te alarme. E não te preocupes,
que vais sair desta. – Ele anuiu com a cabeça, e eu voltei-me para o
comandante. – Preciso de água, sabão e toalhas limpas, já.
– Pepe…
– Não, o Pepe não. O Pepe tem de ir agora mesmo à calle
Hermosilla 49. – Voltei-me para eles e vi-os imóveis, parados como
dois basbaques. – Comandante, preciso de água, sabão e toalhas
limpas. Pepe, mexe-te, chega aqui para que te explique, porra…
Às oito e meia da noite mandei-o a minha casa numa mota com
um bilhete para a Amparo. Ela já me viera buscar algumas vezes à
calle Príncipe de Vergara 36 e acompanhara-me ao jantar de
despedida dos canadianos. O Isidro e a Gloria, que viviam no
Instituto e cuidavam das instalações, acreditariam nela porque a
conheciam e porque, quando eu lá ia, mandavam sempre
lembranças para a minha noiva. Apesar de ter transportado para o
meu serviço do San Carlos todo o material útil para as unidades
móveis de transfusão, não tinha tocado em mais nada. Na calle
Príncipe de Vergara continuava a existir uma sala de operações,
instrumentos e um dos esterilizadores originais. Não conhecia
melhor lugar para operar um paciente que não podia ser levado para
o hospital.
– Dizes à Amparo que vá contigo à calle Príncipe de Vergara. Lá,
expliquem o que aconteceu e fiquem à minha espera. Suponho que
não tenham cortado os telefones, de modo que, quando chegares,
liga-me para confirmar que está tudo em ordem. Se não houver
linha, pede ao motorista que me venha informar, de acordo? Tu
desces e esperas por mim à entrada com o Isidro. – Antes que ele
saísse da enfermaria, voltei-me para o comandante. – Se não
podemos interná-lo num hospital, também não devíamos transferi-lo
de ambulância para um prédio onde, em teoria, não o podem
atender. O Instituto Canadiano não é usado desde maio e a sede do
Socorro Vermelho fica no andar de cima, de modo que não
podemos chamar a atenção. Creio que têm aqui uma ambulância.
– Sim, mas se você diz…
– Diga ao motorista que venha falar comigo, por favor.
Quando fiquei sozinho com o paciente, perguntei a mim próprio o
que estava a fazer. Deixara-me arrastar para aquela situação,
tomando uma série de decisões por puro instinto, sem qualquer
informação fiável, como favor a um comissário de polícia comunista
que não conhecia de lado nenhum. Na realidade, nem sequer sabia
ao certo que tipo de homem era o Pepe Moya, apesar de confiar
nele, apesar de sermos amigos. Eu nunca havia militado em
nenhum partido. Por tradição familiar deveria ter sido republicano,
mas antes da guerra os companheiros do meu avô pareciam-me
demasiado brandos e, desde o golpe de Estado, o meu trabalho e a
Amparo mantinham-me suficientemente ocupado para não me
preocupar com pormenores acessórios. O meu trabalho era
essencial para a vitória da República e, para mim, só isso contava.
No hospital nunca me interessei pela filiação política dos meus
pacientes. Entrava numa sala de operações, encontrava um corpo
tão frágil, tão essencialmente humano, tão semelhante a todos os
outros como qualquer ferido grave, e tentava consertá-lo o melhor
possível. Nunca alvitrara sobre a identidade, as virtudes e os
defeitos das pessoas que consegui salvar, porém, isto era diferente.
Tinha assumido a responsabilidade de resgatar da morte um homem
que fora vítima de um crime político, postando-me do seu lado sem
conhecer os motivos que me levaram até ele. Todos os bandidos me
pareciam repugnantes, mas talvez o meu paciente não passasse
também de um facínora de um partido rival, ou mesmo de uma
fação inimiga dos seus frustrados assassinos, sem que tivessem
deixado de ser companheiros de partido. Pensei em tudo isto e, no
entanto, não deixei de trabalhar, tentando lembrar-me de que era
médico e de que a minha única obrigação era salvar vidas. Depois
de verificar até que ponto o exemplo do doutor Quintanilla me havia
ensinado a manter o sangue-frio, a pensar depressa, a organizar
recursos em momentos de crise, compreendi também por que razão
ele se havia transformado num diretor extraordinário.
Numa retaguarda muito mais suja do que a frente, o nosso
hospital representava um oásis moral, um reduto da vida civil, onde
um homem honrado podia agir com serenidade, sem mais conflitos
que não os que lhe advinham da profissão. Enquanto
trabalhássemos com uma bata branca, fazer coisas positivas não só
não comprometia a nossa liberdade como nos absolvia das
consequências que os nossos atos pudessem espoletar. Por isso, o
doutor Quintanilla dedicava muito tempo a pensar, a racionalizar os
horários, a distribuir o trabalho da forma mais eficaz, sem nunca se
dar por satisfeito, corrigindo continuamente as suas próprias
medidas como quem persegue de modo incansável a perfeição.
Tomar decisões descontraía-o, porque o eximia de se interrogar
como eu me interrogava nessa noite. No fundo, e na medida em que
curávamos tanto culpados quanto inocentes sem fazer perguntas,
éramos ambos uns cobardes. Pensei isso e, imediatamente, concluí
que tinha pensado mal. A imensa maioria dos nossos pacientes civis
era vítima dos bombardeamentos e uma percentagem ainda maior
dos militares, chegava diretamente da frente. Nós éramos apenas
médicos, a nossa obrigação consistia em salvar vidas, não em julgar
os feridos de uma guerra desencadeada pela vontade dos golpistas
do 18 de junho de 1936. Eles tinham-na começado, sendo, em
última instância, os responsáveis por tudo. Enquanto recordava a
conclusão tranquilizadora que me resgatava dos momentos de crise,
olhei para o meu paciente e descobri que também ele me olhava.
Nos seus olhos escuros havia medo, mas não pânico, e muito
menos resignação. Porém, o que mais me agradou foi descobrir que
tentava imaginar que tipo de homem eu era. Sorri, ele assentiu com
a cabeça, e nesse instante intuí que tinha acertado, que estava a
salvar um homem que merecia continuar a viver. Entretanto, chegou
o motorista da ambulância e não tive de pensar em mais nada.
– Quero que escolhas um camião, o mais novo que houver, o
que for mais estável. Transfere para lá o conteúdo da tua
ambulância: uma maca, uma caixa de primeiros socorros completa e
material de sutura. Tirem-lhe a matrícula e qualquer outro sinal
identificativo, quero um camião militar que se confunda com
qualquer outro camião militar, entendido? – Depois de resolver o
aspeto sanitário, parei um pouco para pensar. – Pede ao
comandante que nos dispense dois homens armados. Um irá
sentado ao teu lado e o outro atrás, connosco. Quero também um
enfermeiro, o melhor, porque vou precisar que me ajude na sala de
operações. Vai pensando no caminho mais tranquilo e com menos
buracos daqui até ao bairro de Salamanca e pede um salvo-
conduto, ou lá o que é, para que não precisem de inspecionar o
veículo se encontrarmos algum controlo, ou melhor, que te deem o
salvo-conduto e algumas caixas de armas ou de munições que nos
tapem enquanto estivermos lá dentro, mas pede para que as
prendam bem, para não nos caírem em cima… O que interessa é
que ninguém perceba que vamos transferir um doente, e trata disto
o mais depressa possível, está bem?
– Obrigado – disse-me o paciente quando ficámos novamente
sozinhos, com um sotaque seco, neutro, que não consegui
identificar.
– De nada. – Voltei a sorrir. – É o meu trabalho.
A partir desse momento, correu tudo tão bem que parecia que o
destino premiava a minha eficácia. Dali a pouco mais de meia hora,
comecei a operar o novo Felipe Ballesteros Sánchez, numa sala de
operações pequena, mas bem equipada e primorosamente limpa. A
única complicação da transferência foi carregar a maca a pulso até
ao primeiro andar. O Pepe, o Isidro, o enfermeiro e o motorista
trataram disso, enquanto a Amparo vigiava a entrada, a Gloria
mantinha a porta aberta e eu entretinha o pessoal do Socorro
Vermelho, para que ninguém saísse até o meu paciente ter chegado
às instalações do Instituto. A intervenção foi longa mas simples,
porque consegui retirar a bala alojada com facilidade e sem
estragos. À uma e meia da manhã, depois de instalar numa das
antigas salas de recolha aquele que, para mim, já se chamava
Felipe, fui falar com o comandante Cuadrado, que havia chegado
pouco antes.
– Como está?
Tinha a angústia espelhada no rosto, porém, isso preocupou-me
menos do que os dois homens armados, à civil, que o
acompanhavam.
– Vivo. Muito fraco devido à operação, que foi longa, no entanto
está fora de perigo. – Voltei-me, apontando para os seus
acompanhantes, que me inquietavam mais do que o estado do
paciente. – E estes homens?
– São a escolta dele. Ficam aqui, caso alguém o tente matar
outra vez.
Aquilo não me agradou. Sentia-me responsável pelo
apartamento, pela boa reputação do comité de ajuda canadiano,
pela segurança do Isidro e da Gloria, pela relação que mantinham
com quem trabalhava no andar de cima e, perante tal cenário, os
homens armados criavam mais perigo do que aquele que evitavam.
Tentei dissuadir o comandante, mas só consegui que aceitasse
colocá-los no vestíbulo e não no patamar, como inicialmente
pretendia. Nesse momento, percebi que teria de levar o
convalescente dali quanto antes, porque a movimentação nas
escadas, com desconhecidos a entrar e a sair de um andar vazio,
chamaria a atenção dos vizinhos e, mais cedo ou mais tarde,
alguém tocaria à campainha para ver o que se passava ou alertaria
diretamente a polícia. Aquela possibilidade deixou-me angustiado
até conseguir levá-lo para minha casa, doze dias depois, na mesma
ambulância camuflada que o trouxera de El Pardo. Eu e o motorista,
agarrando nos pulsos um do outro, transportámo-lo de cadeirinha no
elevador, situação que o divertiu tanto que tive de lhe pedir que não
se risse, para não abrir os pontos.
Nessa altura, já éramos amigos. Ia visitá-lo todas as tardes,
antes de regressar a casa, e durante algum tempo observávamo-
nos, mantendo uma conversa inofensiva. Perguntava-lhe como
estava e ele respondia-me. Mais tarde, começou a interessar-se
pelo meu trabalho no hospital e eu contava-lhe como me correra o
dia. No fim, costumávamos comentar o decurso da guerra, mas
nunca falávamos de política. O meu paciente tinha muito cuidado
em não dizer o que quer que fosse que me permitisse descobrir a
sua verdadeira identidade, e eu nada fazia para a averiguar. Dessa
forma, as nossas conversas esgotavam-se antes do que teríamos
desejado, porque Felipe se aborrecia muito durante o dia e eu, que
não podia interromper as visitas porque me sentia responsável pelo
seu estado, ficava muito incomodado no papel de eterno suspeito.
No entanto, depois de nos avaliarmos ao longo de quatro serões,
palavras ocas e longos silêncios, ele acertou num comentário que
desbloqueou a situação.
– Isto parece um jogo de xadrez. – Olhou-me a sorrir. – Digo isto
porque nas aberturas os maus jogadores nunca sabem o que fazer
com os peões.
– Eu sei – repliquei também, sorrindo –, porque sou um bom
jogador.
– Não me digas…
A partir de então, tudo se tornou mais fácil. Com um tabuleiro no
meio, não nos limitámos a ter alguma coisa que fazer. O xadrez
permitiu que nos conhecêssemos com uma naturalidade e uma
precisão que não havíamos conseguido com palavras.
Felipe jogava muito bem, melhor com as pretas do que com as
brancas. Isso significava que ninguém lhe havia ensinado as regras
com o método e a dedicação a que o meu avô recorrera para a
minha aprendizagem e que, quando começou, não tinha um
tabuleiro próprio. Tinha aprendido a jogar nos tabuleiros dos outros,
que reservavam para si a vantagem da cor. Por isso havia estudado
tão bem os passos da defesa Alekhine, que os xadrezistas vulgares
só sabiam executar depois do décimo movimento. Quanto ao resto,
era mais lento do que eu, mas muito cuidadoso, tão cauteloso que
quase não cometia erros.
– Não estás a pensar em jogar com isso – disse-me na tarde em
que apareci com o meu relógio. – Sou um pobre convalescente…
Contudo, o relógio que herdei do meu avô, uma caixa de madeira
de cerejeira com duas esferas com números romanos e botões de
latão, era muito bonito e ele nunca vira nenhum parecido. Portanto,
comecei a contar-lhe a história de don Guillermo e de don Fermín,
falei-lhe das partidas de domingo, da estranha amizade que unira
um polícia republicano a um notário de direita, da minha com a
Amparito, e, por fim, da curiosa biografia do comissário que se
distinguira como dramaturgo e, sobretudo, como autor clandestino
de revistas e cançonetas, uma história que o entusiasmou porque
tinha visto Orgia em Constantinopla no galinheiro do Eslava, quando
era um mero estudante de Direito.
– Nem imagino o que seria ver essa revista de um canto do palco
– replicou e desatou a rir. – Que enjoo de mulheres! E de plumas…
Devias passar o espetáculo a espirrar.
– Bom… não propriamente. – Dei-lhe tempo para soltar uma
nova gargalhada antes de me aventurar numa modesta conclusão. –
De modo que és advogado.
– Bom, também não propriamente. – Um olhar, ainda risonho,
avisou-me de que não o apanharia por esse ali. – Estudei Direito,
mas depois continuei a estudar e… Só exerci durante alguns anos,
mal concluí a licenciatura.
Em contrapartida, falou-me da sua aldeia, dos seus anos de
acólito, do colégio de Villablino e das bolsas de estudo que lhe
permitiram continuar a estudar, elementos soltos de um destino
vulgar que o seu talento, e certamente também algum golpe de
sorte, haviam transformado numa vida excecional. A sua história
pessoal tranquilizou-me graças a um mecanismo que, de início, nem
sequer eu saberia explicar. O meu paciente era um homem muito
culto, viajado que vivera no estrangeiro e sabia pronunciar apelidos
e nomes próprios com um sotaque impecável em três ou quatro
línguas. À medida que o ia conhecendo, pensei que o facto de
alguém como ele, que começara muito por baixo e chegara muito lá
acima, se comprometer com a causa republicana a ponto de arriscar
a vida o favorecia tanto como os princípios que defendia. A ideia
reconfortou-me porque, na realidade, me refletia como um espelho e
me consolava da desconfiança com que muitos milicianos, e mesmo
as famílias, me tratavam todos os dias, como se o simples facto de
ser médico, de ter estudado numa universidade em vez de trabalhar
no campo ou numa fábrica, fizesse de mim um potencial traidor, um
fascista que ainda não descobrira que o era. Na realidade, estava a
sucumbir a um preconceito de classe tão intenso, tão injusto
também, como aquele de que era vítima, mas foi precisamente isso
que permitiu que me identificasse com o homem a quem ainda
chamava Felipe, criando um vínculo que nunca mais se quebraria.
– Esse, no meu quarto…? – No dia da mudança para a minha
casa, pedi à Amparo, ao pequeno-almoço, que tirasse as suas
coisas e mudasse os lençóis da cama. – Mas como é possível que o
tragas para viver aqui se nem sequer o conheces, a sério, não
percebo… E dizes-mo agora? Podias ter-me perguntado.
– Refresca-me a memória, Amparo. Quando é que nos
casámos? Porque eu cá não me lembro.
– Uma coisa é não estarmos casados, outra… Outra… – Pensou
durante alguns instantes e não encontrou qualquer final para a frase
que tinha começado. – E onde vou dormir?
– Comigo, receio bem, porque qualquer outra coisa chamaria
muito a atenção.
Tinha calculado que a presença de um estranho em casa
mudaria as regras do nosso jogo, e essa certeza provocou-me um
estranho misto de alívio e melancolia. Enquanto lamentava
antecipadamente as possibilidades dos quartos que já não
poderíamos usar, senti-me ao mesmo tempo livre da obrigação de
imaginar constantemente possíveis usos, e do mal-estar
contraditório que aumentava ante o prazer que descobrira com a
minha vizinha. Contudo, os centros para convalescentes não eram
mais seguros do que os hospitais, Felipe não estava em condições
de viver sozinho, e eu também não podia pedir a quem quer que
fosse que o acolhesse sem dizer porque o fazia, reconhecendo, em
consequência, que era um hóspede perigoso. A nossa rotina era
demasiado estranha por si só para conseguir absorver qualquer
nova estranheza facilmente. Isso preocupava-me menos do que as
consequências que a futura vida conjugal poderia acarretar, no
horizonte de convivência forçada que a guerra nos impusera.
– Se não fosses uma menina tão bem-educada – disse à
Amparo, para que se desse conta de que eu pensara em tudo –,
podia vestir-te uma farda e mandar-te dormir no quarto de serviço,
mas como criada serias um desastre.
– Achas? – Pela forma como me olhou, percebi que a ideia não
lhe desagradava, no entanto acabou por me dar razão. – Sim, a
verdade é que… Não acredito que pegasse.
Talvez por isso se tenha arranjado para receber o Felipe, que só
havia visto uma vez, inconsciente numa maca, como se esperasse
uma visita de cerimónia, lhe tenha estendido a mão com um sorriso
encantador e apresentado como se a sua presença em minha casa
não exigisse qualquer explicação. Depois ofereceu-se para lhe
ajeitar as almofadas, deixou-lhe um sininho na mesa de cabeceira
para que a chamasse se precisasse de qualquer coisa, anunciou
que ia às compras e desculpou-se por não lhe perguntar o que lhe
apetecia comer.
– Porque comeremos lentilhas, como todos os dias. Mas o
Guillermo diz – acrescentou com ironia – que são muito boas porque
têm muito ferro…
– Evidentemente – corroborei –, mas vê se encontras alguma
fruta, maçãs, ou melhor, laranjas.
– Sim, senhor. – Fez uma pequena reverência. – Tentarei.
Quando ficámos sozinhos, o meu paciente olhou para mim a
sorrir, como se a despedida da Amparo o tivesse divertido.
– A neta de don Fermín – deduziu em voz alta, e eu não o
desmenti. – Não me tinhas dito que era tua mulher.
– É que não é minha mulher. É… – Porém, as definições eram
tão problemáticas para mim como para ela. – Vive aqui porque ficou
sozinha no início da guerra, mas… Bom, é complicado.
– Claro – disse a sorrir o desconhecido que estava quase a
deixar de o ser –, mas vais para a cama com ela.
– Sim. – Ri-me porque não consegui evitá-lo. – Isso sim.
– Bem me parecia… – rematou ele também divertido.
Pouco depois, Manuel Arroyo Benítez revelou-me o seu
verdadeiro nome, um segredo sem qualquer relevância para mim,
mas que deveria ser muito importante para o militar que me
esperava comodamente sentado na sala, como um aviso mudo de
que o controlo sobre os meus atos, sobre a minha casa, sobre a
minha vida, começava a escapar-me das mãos.
– Quem é você? – Jovem, bonito e desenvolto, tinha insígnias de
capitão e não se deixou intimidar pela minha presença. – Como
entrou?
– A sua mulher teve a gentileza de me deixar entrar –
respondeu-me, levantando-se, e só então ouvi passos atrás de mim.
– Ia às compras e…
– Guillermo. – O Pepe Moya pousou-me a mão nas costas em
jeito de cumprimento – Guillermo, sou eu, peço desculpa, fui à casa
de banho. O capitão veio comigo. O meu comandante pediu que o
trouxesse para ver o teu paciente. É…
– Chamo-me Jesús Romero, sou capitão de Infantaria,
destacado no Serviço de Informação Militar. – Dirigiu-se para mim e
estendeu-me a mão sem deixar de sorrir. – Vim falar com o Rafael
Cuesta. Trabalhávamos juntos. Estou a investigar o atentado e
preciso de conhecer a versão dele. O comandante Cuadrado
explicou-me que o senhor lhe salvou a vida e o acolheu agora em
sua casa.
– Sim… – Fiz uma pausa para ganhar tempo. – De facto.
Precisava de pensar porque o Pepe deslocara a mão do centro
das minhas costas para o meu ombro e apertava-o com as pontas
dos dedos. Olhei-o e ele franziu o sobrolho por instantes como se
quisesse sublinhar um aviso. Deduzi que não confiava no capitão e
por momentos senti-me tão cansado daquele jogo interminável de
desconfianças que estive prestes a perguntar-lhe o que se passava.
Porém, não o fiz, porque nesse instante o Romero seguiu em
direção ao corredor como se estivesse em sua casa.
– Espere aqui um momento – pedi-lhe, sorrindo-lhe pela primeira
vez. – Vou ver se ele está acordado.
Tive a sensação de que não havia gostado de que o detivesse,
ainda assim não se atreveu a desobedecer-me. Também não
retrocedeu. Ficou diante da porta, a olhar para o corredor, sem
esconder que pretendia identificar o quarto para onde me
encaminhava. Quando o Felipe, ou o Rafael, ou o Manolo, me viu
entrar, apercebeu-se de que algo se passava, porém, nada disse.
Eu fechei a porta com cuidado e, em voz baixa, anunciei-lhe a visita
do Romero.
– Se não quiseres vê-lo, posso dizer-lhe que estás a dormir.
– Não, não, se… – Fez uma pausa, mordeu o lábio inferior,
fechou os olhos por instantes. – É verdade que o conheço e que
trabalhámos juntos, mas… É estranho não me ter visitado até agora
e ter vindo precisamente hoje, não achas? – Encolhi os ombros
porque não podia confirmar ou negar aquela suposição. – Bom, ele
que entre, mas… Importavas-te de voltar dentro de uns cinco
minutos? Talvez me convenha ter uma recaída.
Quando partiu de Madrid, o Manolo Arroyo já me tinha contado
tudo: quem era, para quem trabalhava e em que consistia o seu
trabalho. Fê-lo porque quis. Eu não voltei a questioná-lo desde que,
nessa manhã, antes de voltar ao quarto dele, perguntei ao Pepe
porque não gostava do capitão Romero. Tu não fazes a guerra,
Guillermo, respondeu-me. Se estivesses habituado a não ter nem
um segundo para decidir algo que pode vir a custar-te a vida,
pensarias menos e confiarias mais no que te diz o instinto. E o meu
diz-me que este capitão não é o que parece… Ao cabo de três
minutos, mal abri a porta do quarto, intui uma tensão oculta na
serenidade com que o meu paciente me anunciou que se sentia
febril, mas muito patente na expressão contrariada do visitante, e
posicionei-me do lado do Pepe. À noite, a Amparo foi muito mais
longe.
– Esse tipo é um espião, digo-te eu.
Este comentário teve o condão de acabar com o equívoco
ambiente matrimonial daquela cena, com ela em combinação a
escovar o cabelo, e eu a observá-la da cama em calças de pijama.
– Claro – concordei num tom trocista –, e tu viste filmes a mais.
– Nem penses, Guillermo… – Pousou a escova na mesa de
cabeceira, sentou-se na beira da cama e aproximou-se de mim para
falar num sussurro. – Será que não te dás conta? Vamos lá ver, um
civil em plena guerra, que não pode usar o seu nome, que não pode
ir a um hospital porque tentaram matá-lo, que não se pode saber
que está vivo porque tentariam matá-lo de novo… Se não é isso,
que poderia ser? Tem de ser um espião. Todos os governos têm
espiões, Guillermo, até o vosso, apesar de ser um desastre.
– Não devias ter dito isso, Amparo.
– Porquê? – Sorriu. – Estou castigada?
– Evidentemente.
– Ainda bem! – Tornou a sorrir. – Já estava a preocupar-me, com
tanta novidade…
Mas as coisas não voltaram a ser como dantes. A partir do dia
seguinte, a minha vida começou a encaixar num molde
simultaneamente novo e antigo, que me devolveu a uma época
distante. De repente, tinha uma família, uma mulher, uma espécie
de irmão, e como se quisesse sancionar, certificar essa mudança, o
tempo instalou-se sem estranheza, com uma naturalidade quase
indolente, no ritmo lento e rotineiro que marcava a passagem das
horas quando vivia com a minha mãe e com os meus avós. Estava
tão habituado à solidão que tive de me adaptar à experiência de não
fazer nada sozinho. Tomávamos o pequeno-almoço juntos, os três,
nalguns dias voltávamos a encontrar-nos ao almoço, ao jantar e,
mesmo quando o meu horário de trabalho me impedia de voltar para
casa a meio do dia ou antes da meia-noite, a minha rotina diária
incluía dois jogos de xadrez com o Manolo; a das minhas noites, o
corpo da Amparo nos meus lençóis.
– Julgava que estava de castigo.
– E estás, mas…
Às vezes estava demasiado cansado. Às vezes o Manolo estava
acordado no quarto ao lado. Contudo, quase sempre me parecia
demasiado ridículo entrar no jogo que semanas antes tanto me
entusiasmava, para de manhã deparar com a figura sorridente de
uma rapariga que aquecia leite para três, com um roupão cor-de-
rosa e um lenço florido na cabeça. Os castigos da Amparo não
resistiram à ficção familiar em que a nossa vida se havia
transformado e quase nunca ultrapassavam a fronteira da noite, da
minha cama. Mudando o jogo, mudaram as regras, e a abstinência
deixou de ser excitante, divertida, tornando-se um objetivo muito
difícil de cumprir. Pouco a pouco, embora nunca me tenha
comportado como um marido nem deixado de recorrer aos ataques-
surpresa, as noites foram-se aproximando da natureza dos nossos
dias, e a frequência, as repetições de um sexo que nunca chegou a
ser convencional, compensou o barroquismo perdido sem reduzir a
intensidade, porque o nosso vínculo era tão peculiar, e estava tão
bem definido que até uma queca monótona na posição mais
inocente representava um ato irremediavelmente perverso. Assim,
ambos nos acomodámos tão depressa como o tempo à novidade
imposta pela presença do meu hóspede, e o inevitável acabou por
acontecer, mas antes aconteceram muitas outras coisas.
– Pepe, que bom teres aparecido, porque esta manhã falámos
de ti…
A minha relação com ele também se alterara, porque a irrupção
do Manolo nas nossas vidas tinha-lhe dado, finalmente, a melhor
oportunidade para pagar a dívida dos bons selvagens. Em vez de
me trazer azeite ou tabaco de que eu não precisava, o Pepe
substituiu-me sempre que pôde à cabeceira do doente enquanto
este permaneceu no Instituto Canadiano e depois habituou-se a ir lá
a casa fazer-lhe companhia nos seus dias de licença. Antes de que
nos déssemos conta, já ele se havia integrado na nossa recente
família falsa, com a naturalidade e a pitada de descaramento de um
primo distante recém-chegado da aldeia, que não conhecesse mais
ninguém na capital.
As qualidades do Pepe Moya e a sua facilidade inata de agradar
a toda a gente tiveram um efeito benéfico, até balsâmico, no
estranho ambiente do primeiro andar esquerdo da calle Hermosilla
49, onde era sempre bem-vindo. O Manolo desistiu de o ensinar a
jogar xadrez a partir do momento em que o andaluz lhe confessou
que no início do jogo se desenrascava bem, mas que depois nunca
sabia o que fazer com os peões. No entanto, divertia-se muito a
falar de política com ele. O Pepe tinha um sentido de humor muito
subtil que lhe impregnava todas as opiniões e o dom de arranjar
ótimas alcunhas para toda a gente, porque na minha aldeia,
justificava-se, se não temos uma alcunha, não somos ninguém.
– Eu, por exemplo, em Torreperogil, sou o Português para muita
gente que nem sequer sabe como me chamo.
– Ah sim? – Nem sequer a Amparo era imune ao seu encanto. –
Pois atreve-te a arranjar-me uma a mim, vá lá.
– Já arranjei, sabias? Cá para mim chamo-te «o semáforo»,
como aquela coisa que puseram na Puerta del Sol. Porque quando
te aborreces e oiço os teus passos no corredor, a abanar os braços
como se estivesses a desfilar, penso sempre: que espanto! Se esta
mulher, com a autoridade que tem, atravessasse assim a Gran
Vía… Parava o trânsito.
A alcunha teve sucesso, não só por ter encantado a destinatária,
mas porque nos habituámos a utilizá-la para nos referirmos a ela, a
partir do dia seguinte. Consoante a disposição, a Amparo estava no
verde ou no vermelho. No entanto, a confidência que o Manolo me
fez pouco depois pintou-a de outra cor, uma cor indefinida, só sua.
– Esta tarde estive mais de duas horas a conversar com ela…
Calhara-lhe jogar com as brancas. Eu tinha esperado uma
abertura espanhola, a sua preferida, mas ele optou por uma italiana,
menos agressiva, mais calma. Calculei que o jogo não lhe
interessava muito e depressa percebi porquê.
– Ao fim de muitos rodeios, ela perguntou-me se eu trabalhava
para a Quinta Coluna.
Olhou para mim, sorriu, eu devolvi o sorriso.
– Não me espanta. Está convencida de que és um espião.
– Pois… – Moveu a rainha automaticamente, com uma rapidez
imprópria de um jogador tão cauteloso como ele. – É fascista, mas
não é tonta.
Depois de ouvir aquilo, nem sequer fui capaz de pousar o cavalo
no tabuleiro. Fiquei com ele suspenso na mão, agitando-o no ar
como se não soubesse o que significava, nem o que fazia entre os
meus dedos.
– Não me estás a dizer que trabalhas para a Quinta Coluna?
– Evidentemente que não, mas sou, de facto, uma espécie de
espião.
Aquela foi a pior partida de xadrez que joguei na vida. Enquanto
me contava o que não quisera contar à Amparo, o Manolo
conseguiu um xeque-mate em vinte e dois movimentos. Poderia ter-
me vencido muito antes se o relato não o tivesse afetado, mas
confessou-me que a curiosidade da minha amante o inquietara e
que inicialmente até tivera medo.
– Falava com tanta serenidade que por instantes pensei que a
quinta-colunista era ela. Por isso não lhe confirmei nem neguei
nada. Disse-lhe que, se trabalhasse para a Quinta Coluna, não lhe
podia dizer sem uma garantia, sem uma prova de que ela própria
também o era. Depois deixei-a falar e acabei por descartar essa
ideia. A Amparo é facha, mas inofensiva. De qualquer forma, a única
coisa que sabe a meu respeito é que oficialmente trabalho para o
governo e isso não a desencorajou. Deve ouvir a rádio de Burgos
quando tu não estás, porque me disse que está ao corrente de que
nos infiltraram de cima a baixo, usando frases decalcadas das que
são transmitidas diariamente por aqueles filhos da puta… – Nesse
ponto, fez uma pausa e a voz baixou ao nível das confidências. –
Contudo, quando lhe perguntei qual o motivo do seu interesse, não
me deu uma resposta concreta. Julguei que procurava ajuda para
passar para a outra zona, mas ela não quer sair de Madrid. Disse-
me que és mesmo vermelho, embora sem necessidade nenhuma
porque a tua família tinha dinheiro e tu sempre viveste como um
lorde. Para ela, as tuas crenças são um mistério, mas de resto está
muito bem contigo, apesar de não ter querido avançar mais. Só que
eu nunca conseguiria perceber, porque a vossa história é muito
especial e única no mundo.
A conclusão arrancou-me, finalmente, um sorriso.
– Lembra-me para que um dia te fale da Meg Williams –
acrescentou.
– Fá-lo-ei, no entanto, agora preferia que me falasses de ti, que
me explicasses por que motivo estás em minha casa, quem te quis
matar, enfim…
A partir dessa noite, em sessões que nunca ultrapassavam a
duração habitual das nossas partidas, para que a Amparo não
desconfiasse de que nos dedicávamos a outra coisa, o Manolo foi-
me contando a verdade. Primeiro, que não fazia ideia de quem
disparara contra ele e que nem sequer sabia se tinham querido
matá-lo ou se não passara de um aviso para o assustar. Também
achava estranho que não tivessem apontado à cabeça, contudo,
não descartava a possibilidade da inexperiência de um criminoso
amador. Enquanto trabalhava como delegado do governo na Junta
de Defesa, chateara muita gente. Os seus agressores podiam ser
anarquistas, trotskistas, membros de alguma das brigadas de
retaguarda desmanteladas graças às informações que transmitira.
Pelos mesmos motivos, podia tratar-se de uma operação dos
serviços secretos soviéticos, em colaboração com algum grupo de
comunistas local. Ele tinha enviado informações frequentes sobre as
atividades da polícia secreta de Estaline em Madrid, no entanto,
aqueles que o sequestraram, pelo menos três, eram espanhóis.
Achava muito improvável que os atacantes obedecessem a ordens
diretas da direção do PSOE, muito menos do PCE, partidos que
apoiavam Negrín, mas nem sequer isso poderia pôr de lado. Nem a
hipótese de uma manobra da contraespionagem que a sua
sobrevivência fizera fracassar. Se tivesse morrido, o seu cadáver
poderia ter sido usado como arma de arremesso contra uma fação
rival, e nesse ponto o leque de possibilidades abria-se ainda mais,
incluindo a própria Quinta Coluna. Não era despropositado pensar
que o governo de Burgos tivesse organizado uma ação desse tipo
para difundir mais tarde que os soviéticos haviam mandado eliminar
em Madrid um agente do governo de Valência. Supunha que o
capitão Romero trabalhava para o inimigo e surpreendera-o
bastante a sua visita justamente no dia em que se tinha mudado lá
para casa, o primeiro dia em que não encontraria uma escolta de
homens armados. Mas não tinha a certeza de nada. A sua única
certeza é que corria perigo de vida, e correria ainda mais se usasse
os seus contactos madrilenos para sair da cidade. O Romero havia-
se oferecido para o tirar de Madrid e como resposta tinha simulado
uma recaída.
– E que vamos fazer?
Não chegou a responder-me, porque nessa altura a campainha
tocou. Já passava das onze da noite de 16 de dezembro de 1937 e
a chuva entoava uma canção frenética nas gelosias, no quarto onde
eu e o Manolo conversávamos diante de um tabuleiro de xadrez,
movendo peças ao acaso, de vez em quando. Um repicar ainda
mais frenético, o dos saltos da Amparo no corredor, sobrepôs-se
imediatamente ao som da água.
– Ouviram? – Ficou a olhar para nós sem entrar, com a
expressão desfigurada e a mão na maçaneta da porta entreaberta.
– Sim – respondi, levantando-me sem olhar para o Manolo, uma
versão morena e masculina da própria palidez. – Vou abrir.
Às onze da noite, Madrid era uma cidade deserta, com todas as
luzes apagadas, todas as janelas fechadas, todas as portas
trancadas. Em dezembro de 1937, nenhum visitante com boas
intenções batia à porta a essas horas para pedir um pouco de sal ou
beber um último copo. A noite era o território dos inimigos do
Manolo, e ele sabia-o.
– Não, vou eu. – Agarrou-me no braço. – Com certeza vêm
buscar-me.
– Não, tu ficas aí. – Apontei para a cadeira onde estivera
sentado. – Vamos lá ver se não entramos em histeria. São onze da
noite, não três da manhã… – A campainha tornou a ouvir-se. – Vou
eu, que sou o dono da casa.
Quando alcancei o corredor, já a Amparo se tinha ido esconder
no armário do quarto de serviço. Eu dirigi-me para a porta,
depressa, para que as pernas me tremessem menos.
Se o Manolo não me tivesse contado tudo o que eu quisera
saber, estaria tranquilo, certo de que no outro lado da porta
encontraria alguém que me vinha buscar para que assistisse a um
parto, para que tratasse de uma ferida ou examinasse um doente.
Não seria a primeira vez e, no entanto, desde o início da guerra, não
sentia tanto medo como o que me enrijeceu as pontas dos dedos
enquanto descerrava o postigo de olhos fechados. Ao abri-los, o
coração batia-me no peito como se o quisesse perfurar, mas o
pânico só durou um instante, o tempo de reconhecer por entre as
frestas a cara do Pepe Moya, sempre bem-vindo ao primeiro andar
esquerdo da calle Hermosilla 49, mas nunca tanto como naquela
noite.
– Pepe! – Abri a porta e dei-lhe um abraço absolutamente
desproporcionado, antes de lhe dizer que nessa mesma manhã a
Amparo havia decidido convidá-lo para jantar na noite de Natal.
– Gostaria, mas… – Só nessa altura reparei que tinha o sobrolho
franzido e uma sombra de preocupação entre as sobrancelhas. –
Vim despedir-me.
A sua chegada alegrou-me tanto que não assimilei muito bem as
palavras que acabava de ouvir, de modo que o convidei a sentar-se,
ofereci-lhe um copo de conhaque e fui chamar os outros, que
festejaram a visita tanto ou mais do que eu, embora a alegria deles
também não tenha durado muito.
– Vou para a frente, para Teruel, parto dentro de seis horas.
Falava olhando para o Manolo, que para ele ainda se chamava
Felipe, como se quisesse sugerir que a súbita transferência da sua
unidade poderia estar relacionada com ele. O meu paciente
apercebeu-se e começou a fazer uma série de perguntas breves,
diretas, que interrompi mandando a Amparo para a cozinha.
– Não teremos nada por aí para lhe fazer um pacote? –
Enquanto falava, aproximei-me dela, abracei-a pela cintura, dei-lhe
um beijo na cara e apercebi-me de que começava a comportar-me
como um espião. – Com o frio que faz em Teruel! Vai lá ver, anda.
– Claro. – A Amparo sorriu. – Deve haver alguma coisa. Que
pena, Pepe!
– Pois, eu que o diga. – Sorriu com aquela cara admirável de
tonto que sabia mostrar algumas vezes e esperou que a Amparo
dobrasse a esquina do corredor para se pôr a falar mais depressa,
muito mais baixo e num tom muito diferente. – Cheira-me que a
transferência tem a ver contigo, Felipe, porque, quando soube, o
meu comandante disse: maldita a hora em que me mandou buscar
um médico. E o normal seria que enviassem toda a divisão para a
frente, mas só nós é que vamos, e nem sequer vai o batalhão
completo, apenas algumas unidades, com ele à cabeça, claro.
Cheira-me que foi o Romero, e não sei o que se passa, o que fizeste
para seres tão importante, mas no teu lugar começaria a pensar em
desaparecer.
– Meto também uma das garrafas de conhaque que o teu avô
tinha escondidas?
O grito da Amparo atravessou o corredor e sobrepôs-se às
palavras do Pepe e à expressão do Manolo, como uma agressão
inesperada da realidade.
– Claro – gritei, sem sair do lugar. – Escolhe-a tu… – Enquanto o
Manolo pedia ao Pepe um último favor. – Estão no escritório, no
móvel baixo. – E ele lho concedia. – Mesmo atrás da mesa.
Quando a Amparo regressou da cozinha, já tínhamos averiguado
que no quartel de El Pardo havia duas coleções completas da
primeira série dos Episodios Nacionales, de Galdós, editados pelo
Quinto Regimento. O Pepe comprometeu-se a tirar um exemplar de
Bailén e a entregá-lo a algum soldado de confiança para que no-lo
trouxesse a casa na primeira oportunidade. Depois, esvaziou o copo
e despedimo-nos a toda a pressa porque o motorista que o levaria
de volta ao quartel já devia estar na entrada, à espera.
– Não me digam nada – limitou-se a murmurar enquanto nos
abraçava, um por um. – Não me digam nada, que dá azar… Vemo-
nos dentro em pouco. Saúde.
Desceu as escadas a correr e entreolhámo-nos os três sem nada
dizer. Depois, a Amparo anunciou que se ia deitar e no som oco da
sua voz adivinhei um anúncio de pranto que me apanhou de
surpresa. Talvez nos tivéssemos habituado a viver como se a guerra
fosse uma catástrofe longínqua, que mal tinha capacidade para nos
tocar, pensei. Naquele momento, talvez ela sentisse que a partida
do Pepe destruía essa ilusão, como se uma fera tivesse aparecido
de súbito no vestíbulo da nossa casa, rasgando com uma única
patada as cortinas que nos separavam da frente. Talvez fosse isso,
mas, apesar de tudo, nunca teria antecipado aquela sua reação.
– Oxalá não o matem, porque… – Encostou-se a mim, e eu
passei-lhe um braço pelos ombros. – A verdade é que gosto muito
dele.
– Eu também. – O Manolo juntou-se-lhe com um tom tão
compungido que tive dificuldade em associá-lo à estranha frase que
proferiu a seguir. – Ajuda-me a guardar o tabuleiro, Guillermo, não
me sinto bem. – E como se a ele próprio tivesse parecido
demasiado estranha, pôs-se imediatamente a inventar os sintomas.
– Estou muito enjoado, julgo que foi do susto.
Não acreditei numa palavra, no entanto, segui-o em silêncio e
fechei muito bem a porta do quarto dele antes de lhe dizer, num
sussurro:
– Queres que volte a pedir-te uma escolta?
– Não. – Tirou do bolso uma pistola automática que eu nunca
tinha visto e sorriu com a minha expressão. – Não te assustes, pedi-
a ao Fermín… – Arqueei as sobrancelhas e ele acrescentou um
apelido. – Ao Cuadrado, quando estava na calle Príncipe de
Vergara. Se as coisas ficarem feias, posso defender-me sozinho.
Quanto menos gente intervier, melhor, mas preciso que faças uma
coisa por mim.
Nesse momento assumi, com uma naturalidade que eu próprio
achei espantosa, que seria a única pessoa a par dos seus planos.
No dia seguinte, saí de casa meia hora antes do habitual. O Manolo
avisara-me de que o comissário Rodríguez era muito madrugador.
Às oito em ponto comprovei que, além disso, era bom fisionomista e
tinha uma memória excelente.
– Não será familiar de don Guillermo Medina?
O rosto comprido, o cabelo escuro, os olhos tristes, que quem
me conhecia costumava associar aos modelos de El Greco antes de
me ver rir, eram herança direta do meu pai. Porém, a miopia, o
nariz, a forma da boca e o sorriso herdara-os da minha mãe, que
era uma cópia do meu avô Guillermo. Com isso, o meu nome
próprio e o meu segundo apelido, consegui cair nas boas graças de
Basilio Rodríguez.
– Sim, sou neto dele.
– Um polícia excelente, o seu avô. Inteligente, bondoso,
progressista… Um dia deveríamos fazer uma homenagem a
homens como ele porque agora parece que em Espanha só há
republicanos, socialistas e revolucionários há dois dias. Estes
fedelhos de vinte anos acham que foram eles que inventaram tudo,
porra.
Assim, o comissário Rodríguez não só me agradou também a
mim, como seduziu o meu nariz, que decidiu que ele era de fiar.
Tudo o resto foi mais fácil do que esperava. No fim de contas, a
minha missão limitava-se a contar-lhe a verdade, que o homem que
conhecia como Rafael Cuesta Sánchez estava bem, que vivia em
minha casa, que tinha motivos para temer pela sua vida, que
precisava de sair de Madrid e que só o conseguiria se ele lhe desse
uma mão. Informado da natureza do pedido, o comissário desatou a
rir.
– E porque tem de ser na terceira semana de janeiro? –
perguntou-me, consultando o calendário.
– Ah, isso já não sei.
– Pareces-te muito mais com o teu avô quando sorris – observou
depois de escrever algumas palavras na agenda. Agradeci-lhe o
facto de me ter tratado na segunda pessoa como uma
demonstração de confiança. – Muito bem, diz ao Rafa que na
segunda-feira da terceira semana de janeiro aparecerá um cadáver
com a documentação de Felipe Ballesteros Sánchez. – Sorriu. – Eu
encarrego-me disso, embora não saiba se todos os interessados
acreditarão…
O meu paciente calculara muito bem os prazos. A 22 de
dezembro de 1937, antes de o exemplar de Bailén nos chegar às
mãos, enviei um telegrama – NOIVO MEG MADRID STOP EPISÓDIO VIAJAR
VALÊNCIA STOP CUMPRIMENTOS STOP – da central dos Correios para uma
morada particular de Kensington, a casa que o Manolo havia cedido
ao secretário da embaixada quando regressara a Espanha. No dia
26, de volta à minha, a Amparo informou-me de que havia chegado
um telegrama de Londres para mim.
– Abri-o – confessou –, mas não percebo nada.
– E porque é que o abriste? – Li DOUTOR ESPERA ENVIO STOP BOA
VIAGEM STOP, e alegrei-me por Negrín ser meu colega. – É uma
mensagem para o Quintanilla, que está a pedir dinheiro a meio
mundo para as unidades de transfusão… – Mantive os olhos no
telegrama como se houvesse mais alguma coisa para ler enquanto
mentalmente completava a desculpa. – Como foi viver para o
hospital e lá é uma confusão receber correspondência, deu a minha
morada, mas… Não o devias ter aberto, Amparo. – Olhei para ela,
verificando que esse aviso bastara para a ruborizar. – É muito feio
ler correspondência alheia.
– Está bem.
– Vou ter de te castigar.
Essa promessa foi tão eficaz que ela nem sequer parou para me
perguntar por que razão desejavam, a partir de Londres, boa viagem
ao meu chefe se o que ele queria era angariar dinheiro. Enquanto a
cor das suas faces se alterava do rosa para o vermelho, coçou o
decote com ambas as mãos, sorriu e saiu a correr. Voltando a
cabeça, deparei com o Manolo apoiado na parede do corredor. Com
certeza tinha ouvido tudo, mas não comentou nada além do
conteúdo do telegrama.
A 17 de janeiro de 1938, segunda-feira, o Felipe Ballesteros
Sánchez morreu pela segunda vez, com ele desaparecendo o
homem que lhe havia usurpado a identidade, embora só o
tivéssemos sabido no dia seguinte, quando o comissário Rodríguez
me fez chegar a certidão de óbito ao hospital. Três ou quatro dias
mais tarde, na Secretaria da Presidência do Governo receberam
uma carta de um estranho remetente: «Serviço de Transfusões do
Hospital de San Carlos, Fundação Sierra Pambley, Villablino-
Madrid.» O texto, composto segundo um código baseado na edição
de Bailén que Pepe nos tinha arranjado, era um verdadeiro
imbróglio que, uma vez decifrado, revelaria o meu apelido e o nome
do hospital onde trabalhava.
Essa carta viajou até Valência no correio especial de que a Junta
de Defesa dispunha, graças a um golpe de audácia bem-sucedido.
Eu tinha conhecido o doutor Velázquez, amigo do meu chefe e um
dos responsáveis máximos pela saúde madrilena em tempos de
guerra, numa receção que a Junta oferecera à delegação
canadiana. Mais tarde, vimo-nos cerca de duas vezes, a primeira
quando inaugurámos o nosso próprio serviço no San Carlos, a
segunda quando lhe mostrei as unidades móveis que havia
preparado. Esperava que se lembrasse de mim, mas não contava
que me recebesse de imediato. Quando lhe disse que a carta era
um relatório sobre o serviço móvel de transfusões, deixou-a cair na
bandeja do correio a enviar, sem ler o remetente, poupando-me a
complicada explicação que eu preparara para o justificar.
A partir de então, a única coisa a fazer era esperar. O Manolo
avisou-me de que, a qualquer momento, apareceria alguém no
hospital a perguntar por mim e que o mais provável era que essa
pessoa viesse buscá-lo e o levasse de Madrid no próprio dia.
Embora não deva ser para já, acrescentou. Calculava que, entre
umas coisas e outras, precisariam de uma semana, de cinco dias,
no mínimo, e não foi necessário esperar nem mais um dia para que
um homem à civil aparecesse no hospital, perguntasse por mim e
me dissesse que tinha conhecido a Meg em Genebra. Ao ouvir a
senha, tirei a bata e acompanhei-o a casa. Depois de trocar
algumas palavras com ele, o Manolo foi ao quarto por instantes e,
momentos depois, abraçou a Amparo e despediu-se de mim.
– Lembra-te de que me deves uma desforra. Estamos dois a um
e ainda te ultrapasso porque é a minha vez de jogar com as pretas.
– Claro – respondi-lhe –, não me esqueço disso. Tem cuidado
contigo.
– Vocês ainda mais. Sobretudo tu, Amparo.
Não percebi aquela insistência, contudo, quando me voltei para
ela, reparei novamente num espantoso brilho húmido nos seus
olhos.
– Tem muito cuidado, Felipe… Ou como quer que te chames.
Ele assentiu com a cabeça e começou a descer as escadas a
trote, sem nada dizer, enquanto eu e a Amparo o observávamos em
silêncio.
– E ainda dizes que não é um espião… – Ela foi a primeira a
rompê-lo. – Mais de dois meses aqui fechado, que ou estava
convalescente, ou não lhe convinha ir à rua, ou isto, ou aquilo, e de
repente… Vem um tipo buscá-lo e ele vai-se embora sem levar
nada, nem sequer a roupa que lhe comprámos quando deixou de
estar acamado. Achas que sou tonta? É um espião, soube-o desde
o princípio.
– Achas-te muito esperta, não achas? – repliquei. – Pois vai-te
preparando porque ficámos finalmente sozinhos.
Olhou para mim com uma expressão que eu não esperava.
Corara, mas as minhas palavras não a haviam excitado, pelo
contrário. Parecia preocupada, quase envergonhada, e não fui
capaz de perceber porquê até ela levar uma mão ao abdómen,
acariciando-o com um movimento lento, circular.
– Bem… – Finalmente percebi por que chorava tanto
ultimamente. – Sozinhos, propriamente dito, não ficaremos por
muito tempo, sabes?
BILBAU, 4 DE MARÇO DE 1938

Quando tirou o escapulário que a mãe lhe dera, Adrián Gallardo


Ortega sentiu-se despido.
– Nos teus punhos está a honra do Exército Nacional.
– Não te esqueças disso.
– Avante, campeão!
Enquanto Ochoa acompanhava os comandos militares que
tinham querido cumprimentá-lo até aos lugares reservados na
primeira fila, Adrián tirou o escapulário dos calções. Haveria gostado
de o usar no combate, mas o capitão tinha visto um pouco do
cordão azul-celeste a espreitar-lhe pelo cós e dera-lhe uma
descasca tremenda. Em que estavas a pensar, em lutar com o
Sagrado Coração de Jesus perto dos tomates? Vá lá, não me lixes,
Gallardo! A última coisa que o soldado queria era aborrecer o seu
protetor e, sozinho no vestiário que o Governo Militar improvisara
para ele num armazém de minério de ferro, beijou o escapulário
muitas vezes, dobrou a fita com cuidado e meteu-a entre o dólman e
as calças da farda. Estava a morrer de medo. De repente, não
percebia o que estava ali a fazer, seminu, com os punhos
amarrados, prestes a parti-los contra os de um falangista que não
conhecia de lado nenhum, numa barcaça ancorada no porto de
Bilbau, diante de algumas bancadas a abarrotar de gente que
gritava o seu nome. Não percebia e, no entanto, ninguém o tinha
obrigado a participar naquela luta. Encontrava-se no lugar que lhe
cabia porque, simplesmente, não conseguira estar em nenhum
outro.
A 19 de julho de 1936, Adrián Gallardo foi o segundo rapaz da
sua aldeia a apresentar-se ao oficial de recrutamento. Quando
chegou à praça, ainda não haviam acabado de instalar a mesa
desdobrável onde se processaria o recrutamento em La Puebla de
Arganzón, mas o cabrão do Misitas, neto do sacristão, antecipara-
se-lhe. Felizmente, don Carlos Garrote nunca chegara a saber. O
neto Adrián tinha crescido à sombra de uma árvore lendária, da
genealogia mítica que transbordava de grandeza nas palavras com
que o avô o cumprimentava todas as manhãs e o aconchegava na
cama todas as noites: tu és um Garrote, filho, nunca te esqueças. O
menino nunca esqueceu, mas também só provou o sabor da
deceção quando o professor o ensinou a consultar uma
enciclopédia. Aos nove anos, o pequeno Garrote enfrentou pela
primeira vez os diversos significados do seu nome: pau forte e
grosso que se usa como bengala, procedimento de execução dos
condenados à morte, torniquete para evitar que as feridas sangrem,
enxerto de oliveira… Havia outras definições, mais palavras, mais
exemplos e até desenhos, no entanto, nenhuma mencionava a
célebre dinastia de guerreiros de La Puebla de Arganzón, seus
antepassados por parte de mãe, célebres por lutarem primeiro
contra os franceses; depois, a favor e contra Fernando VII e,
finalmente, na fação de D. Carlos em três guerras diferentes,
sempre a favor de Deus, da pátria e do rei absoluto. Procurando na
enciclopédia da escola, Adrián descobriu que, por melhor que o
lema soasse, os carlistas haviam perdido todas essas guerras. Don
Carlos Garrote nunca lho tinha contado. O rebento mais tenro da
árvore familiar também não se atreveu a confessar-lhe que sabia e
adaptou-se àquele fracasso remoto até o reconciliar com o orgulho
que vibrava nas palavras do avô de cada vez que proferia essa
palavra, Garrote, numa voz rotunda, solene, de juramento. Porque,
além disso, e apesar de os autores das enciclopédias não o
saberem, os Garrotes eram muito famosos em La Puebla de
Arganzón. Tão famosos que, quando se proclamou a República, os
filhos dos vermelhos da povoação puseram o acrescento da moda
ao nome venerável que os seus antepassados tornaram célebre em
toda a comarca.
– Garrote facho!
A primeira vez que o ouviu, Adrián tinha catorze anos. Nunca
tinha brincado com aqueles miúdos, só os conhecia e, ao voltar para
casa, perguntou ao avô o que significava a alcunha que acabara de
ouvir.
– Significa – respondeu-lhe don Carlos, muito devagar – que
esses rapazes são uns filhos da puta.
– Pai, por favor, não diga essas coisas ao miúdo!
María, mãe de Adrián, era a filha mais nova e a mais mimada de
don Carlos, mas não tinha herdado um pingo do ardor guerreiro que
lhe abrilhantava os apelidos, sempre receosa das consequências
das histórias com que o avô enchia a cabeça do menino. O seu
marido, pelo contrário, nascido numa família de novos-ricos sem
história, orgulhoso por sustentar com as rendas das suas terras os
brasões da estirpe da mulher, posicionou-se do lado do sogro.
– Deixa-o. – E assentiu para consigo. – Já é grande para saber a
verdade.
– Teodoro, pelo amor de Deus!
– Nem de Deus, nem da Virgem. Uns filhos da puta, é o que são.
De modo que, a 19 de julho de 1936, o último Garrote correu
pelas ruas de La Puebla para se alistar como miliciano no único
exército possível para ele, o que se revoltara contra o governo de
Madrid como de costume, ao grito de Deus, Pátria e Rei, também
como de costume, e ao abrigo das bandeiras dos seus
antepassados. Uma vida inteira a preparar-se para ser um Garrote
e, todavia, não tinha estofo de guerreiro.
Não era cobarde, mas descobriu imediatamente que aquilo que o
avô lhe havia ensinado não servia para receber medalhas, nem
sequer para uma menção de honra no relatório do dia. Os Garrotes
de outrora, ricos e poderosos, caudilhos naturais do condado de
Treviño, recrutavam em poucas horas uma quadrilha entre
serventes e arrendatários, galopavam por sua conta e risco para
impor a ordem nas terras que conheciam e invadiam povoações,
aldeias, vilas, sem prestar contas a ninguém abaixo do rei. No
entanto, os comandos das tropas rebeldes eram tão ignorantes
quanto os enciclopedistas escolares e desatavam a rir quando
aquele soldado de dezanove anos repetia delicadamente não ser de
Álava, mas burgalês e exigia o cargo de oficial que lhe correspondia
como derradeiro exemplar de uma célebre estirpe de guerreiros.
Ninguém o ouviu, nem o promoveu, nem lhe entregou o comando de
qualquer tropa pelo facto de ser um Garrote. No exército de Franco,
Adrián Gallardo nada foi, nem sequer isso, até Antonio Ochoa fazer
dele campeão da sua brigada. Nessa altura, acreditou que ainda
tinha uma oportunidade.
– Precisamos de uma alcunha, Adrián, de um nome artístico,
para te anunciarmos nos cartazes do combate. – Ouvindo o seu
protetor, viu o céu. – Que achas de O Tigre de Treviño? Soa bem,
não soa?
– Sim, meu capitão, mas, se me permite, eu já tenho um nome, a
alcunha da minha família. – Sorriu como um tolo antes de o dizer. –
Em La Puebla somos os Garrote, de modo que…
– Garrote? – Não agradou ao capitão. – Isso era o que devia dar-
te, garrote! Vá lá, não me lixes, Adrián. Que raio de nome é esse? É
possível ser tão burro? Pareces tonto, porra.
A reação do capitão magoou-o, mas pensou logo que talvez
fosse melhor assim. Praticar boxe não era combater e assemelhava-
se mais a ganhar a vida com as mãos como os jornaleiros vilões
que o avô desprezava do que a lavrar a glória com as armas. A
admiração dos companheiros, as lisonjas dos chefes, o menu
especial que lhe serviam três vezes ao dia na cantina dos oficiais do
quartel de Portugalete destacaram-no no exército, contudo, não o
elevaram à altura dos grandes Garrotes absolutistas e apostólicos
do século anterior. Ou talvez sim. Adrián estava bastante confuso,
porém, por via das dúvidas, não mencionou o boxe nas cartas que
escreveu para casa, explicando que lhe tinham suspendido as
licenças, não por uma coisa má, mas por uma razão muito boa que
ainda não lhes poderia contar porque estava em jogo a honra do
Exército Nacional. As cartas preocuparam tanto a mãe que ela
começou a fazer averiguações, foi a todos os gabinetes, exigiu
todas as audiências, esteve em todas as antessalas necessárias
para saber a verdade. Depois, num domingo de fevereiro de 1938, a
duas escassas semanas do grande combate contra Navarro, toda a
família apareceu em Portugalete.
– Adrián!
O neto tinha acabado de correr vinte quilómetros quando o
avistou à entrada da pista, de braços abertos. Assim, com uma
bengala pendurada no braço esquerdo e um charuto acesso entre
os dedos da mão direita, parecia uma árvore velha, rija, tão temível
que, apesar de esgotado, o pugilista chegou a pensar dar meia-volta
e continuar a correr.
– Adrián, meu filho! – Porém, o avô nunca proferia tais palavras
quando estava aborrecido. – Dá-me um abraço, anda… Se
soubesses como estou orgulhoso de ti!
Nesse instante, enquanto manchava de suor o casaco e a
camisa de don Carlos Garrote, o Tigre de Treviño sentiu uma paz
incomparável, a sensação de estar a fazer o mais correto, de estar a
chegar a algum lado, uma segurança que se evolou, como o fumo
dos charutos do avô, no dia em que saiu de Portugalete:
– É um prazer.
Na cerimónia da pesagem, Alfonso Navarro apertou-lhe a mão
diante dos fotógrafos, com um sorriso radiante, e logo a seguir,
enquanto se abraçavam para as câmaras, segredou-lhe ao ouvido
palavras mais sinceras:
– Não vais aguentar nem dois assaltos. – Adrián não lhe via a
cara, mas teve a sensação de que ele falava sem deixar de sorrir. –
Saloio de merda…
Quando se separaram, o rival continuava a sorrir. A partir de
então, como se aquela bravata fosse uma profecia, a promessa de
uma derrota inevitável, o Tigre de Treviño começou a sentir medo.
Meia hora antes do combate, sozinho no vestiário, sem o
escapulário, sabendo que o avô esperava, na primeira fila, que ele
se comportasse como um verdadeiro Garrote de uma vez por todas,
o medo evoluiu até se transformar em pânico. Felizmente, foi nesse
momento que o capitão Ochoa lhe deu as últimas instruções.
– Vamos lá ver, rapaz… – Sentou-se ao lado dele, rodeou-lhe os
ombros com um braço, dirigiu-lhe um sorriso afetuoso e continuou a
falar, quase num sussurro. – Tu sabes que vais ganhar este
combate, não é verdade?
– Vou fazer tudo o que puder, meu capitão, prometo-lhe.
– Sim, eu sei, mas não estou a falar disso. Tu tens de ganhar,
percebes, Tigre? E vais ganhar porque já tratei do assunto. As
bancadas ficam no molhe, as duas esquinas estão de costas para o
público e dos barquinhos fundeados na ria não se verá o ringue
muito bem porque a barcaça é mais alta. Portanto, só é preciso que
faças o que eu te disser, de acordo?
Foi no quinto assalto. Nos quatro primeiros, o Tigre de Treviño
defendeu-se bem, melhor do que o seu protetor esperava, embora
Navarro lhe estivesse a dar uma sova. O falangista lutava melhor do
que Adrián. Não era tão forte, mas era mais rápido, mais elástico, e
o seu domínio da técnica dava-lhe uma superioridade que já teria
lançado ao tapete qualquer pugilista que não tivesse a força de um
boi. Se o resultado do combate dependesse dos juízes, ganharia de
certeza com vantagem. Mas isso não ia acontecer.
Depois do quarto assalto, enquanto lhe passavam vaselina numa
sobrancelha e no lábio inferior, Gorostiza agarrou na cara de
Gallardo com ambas as mãos, olhou-o nos olhos e proferiu uma
única palavra.
– Agora.
Ao soar a campainha, Adrián levantou-se, dançou um pouco e
encostou-se no lado do quadrilátero que dava para a ria. Navarro
seguiu-o, tentou atirá-lo contra as cordas e não conseguiu. O
adversário safou-se bem, abraçou-o e, quando o árbitro os separou,
deu a volta a toda a pressa. O falangista, sem saber que estava
exatamente onde Ochoa pretendia que estivesse, com as cordas
nas costas, atirou o punho direito e Adrián esquivou-se com a
cabeça. De seguida, Garrote deu um passo em frente e, tentando
tapá-lo com o corpo, desferiu um soco onde o capitão lhe mandara,
mesmo nos tomates, vendo-o cair a direito, num instante, como uma
árvore acabada de cortar.
– Um… Dois… Três…
Não se ia levantar. O Tigre de Treviño sabia que ele não se ia
levantar e o árbitro sabia-o tão bem como ele, mas fez o teatro de
contar até dez, afastou com uma mão o treinador de Navarro
quando este quis aproximar-se para perguntar o que tinha
acontecido, agarrou no braço direito do rival e levantou-o no ar.
Esse foi o momento culminante da existência de Adrián Gallardo
Ortega. Avançando para o centro do ringue com os braços erguidos
e centenas de vozes a gritarem o seu nome, sentiu-se tão feliz como
se todos os seus antepassados o estivessem a aplaudir do céu.
Depois, um bote levou-o a terra firme e, ao pôr o pé no molhe, o
rugido do público ensurdeceu-o enquanto todos os generais o
felicitavam e um don Antonio Ochoa tão exultante como o seu avô
permanecia a seu lado, partilhando discretamente o seu êxito.
Naquele momento, Adrián não se lembrou do que lhe haviam
dito antes, no balneário. Não se lembrou de que o capitão lhe tinha
contado que quem ia arbitrar o combate era um alferes provisório,
filho de um general de Artilharia com tanto interesse como eles
próprios em que o campeão do Exército derrubasse o da Falange.
Não se lembrou de que ele lhe garantira que aquele árbitro não
veria o seu último golpe por mais perto que estivesse, que os juízes
também eram militares e estavam metidos no caldinho, que Navarro
nem sequer teria oportunidade para reclamar. Nem sequer se
lembrou de que ganhara o combate devido a um golpe baixo.
Naquele momento, Adrián Gallardo Ortega sentiu que aquele
triunfo era seu e que jamais alguém lho poderia tirar.
Essa era a única coisa que estaria disposto a recordar durante o
resto da vida.
MADRID, 9 DE FEVEREIRO DE 1939

Já nem sabia se o meu trabalho continuava a fazer sentido.


– Deixe-me morrer, doutor. Cure outro, vá lá…
Não era o primeiro que mo pedia, mas era o mais jovem, um
rapaz da última fornada de voluntários que tinha chegado sem pés,
com uma perna rebentada acima do tornozelo, a outra quase
completamente desaparecida, como aquele miúdo do primeiro de
novembro, que atravessava a Puerta del Sol quando os alemães
nos ofereceram a sua primeira bomba de quinhentos quilos.
– Não digas disparates – respondi-lhe sem pensar, absorto no
dilema de lhe cauterizar as feridas sem anestesia, sem clorofórmio,
sem analgésicos.
– Não são disparates. – Esticou o braço direito, agarrando-me no
pulso, e olhou para mim. – Assim não posso ir para lado nenhum e,
se voltar para a aldeia, fuzilam-me com certeza. Prefiro morrer aqui,
estou a falar a sério.
– Podes ir buscar a garrafa de conhaque? – Voltei-me para a
enfermeira que me ajudava, uma daquelas voluntárias lindíssimas
do verão de 1936 que nos últimos meses envelhecera tão depressa
como todos os outros. – Traz-ma, por favor.
– O que me vai fazer é uma sacanice, sabia? – Quando ela saiu
da sala de operações, o paciente redobrou os pedidos. – O meu pai
é o alcaide da Frente Popular de Fuentidueña, e para que os
fascistas me fuzilem…
– Ninguém te vai fuzilar por seres filho de um alcaide – repliquei,
tentando tranquilizá-lo enquanto lhe examinava as feridas. – É
possível que ele vá para a prisão, mas tu não és mais do que um
soldado e tens muita vida pela frente.
– Doutor…
A enfermeira entregou-me uma garrafa quase vazia juntamente
com um recado a que nesse momento não dei importância. Deitei
um pouco de conhaque num copo e aproximei-o dos lábios do
soldado enquanto ela contornava a maca, postando-se atrás da
cabeça dele. Quando o soldado acabou de beber, escolhi um dos
bocados de madeira que eram, há já alguns meses, um elemento
imprescindível do meu material de trabalho e encaixei-lho entre os
dentes.
– Morde.
Voltei a olhar para a minha ajudante e ela imobilizou o paciente
com as duas mãos enquanto eu lhe aplicava o cauterizador com a
força e a rapidez imprescindíveis para lhe provocar uma dor brutal.
Queria deixá-lo inconsciente e consegui-o sem dificuldade, porque a
falta de fármacos de que sofríamos há meses me tinha
transformado num torturador experiente. Não dispunha de outra
anestesia para os meus pacientes que não a dor, e, para a otimizar,
aprendera a coser cotos a uma velocidade que um ano antes me
teria parecido inverosímil. Quando terminei, remexi nos bolsos até
encontrar duas aspirinas que havia guardado cuidadosamente e dei-
as à enfermeira.
– Não lhe vão servir de muito, mas não tenho outra coisa.
– Está bem. O miúdo está à sua espera lá fora.
– O miúdo? – Olhei para ela e a perplexidade que lhe vi nos
olhos levou-me a reagir. – Ah, sim, já me tinhas dito qualquer coisa
sobre um miúdo…
Devia ter sete ou oito anos, embora aparentasse menos, como
quase todos os miúdos de Madrid nesse inverno. Não se encontrava
desnutrido, mas estava muito magro e, ao cabo de muitos meses
sem provar fruta, carne, açúcar, a dieta forçada de arroz e lentilhas
embaciara-lhe a pele e atrasara-lhe o crescimento. Apesar de tudo
era uma criança saudável, despachada, que se alegrou muito ao
ver-me.
– Já não era sem tempo – censurou-me como único
cumprimento. – Demorou muito, se calhar o homem já se foi embora
e tudo.
Enquanto o seguia até à porta, contou-me que um bom bocado
antes um senhor moreno e bem vestido tinha chegado ao hospital
num carro preto. Ele estava sentado nas escadas com os amigos e,
escolhendo-o, o homem prometera-lhe uma perra chica, uma nota
de cinco cêntimos, se viesse procurar-me e me levasse até ele.
– Pediu-me que lhe dissesse que se chama Manolo.
Ouvir aquele nome injetou-me uma dose inexplicável de bom
humor. O Arroyo não era o único Manolo que eu conhecia, porém,
naquele momento, sem qualquer motivo, tive a certeza de que era
ele o meu visitante. No entanto, chegado à rua duvidei e, se não
tivesse vindo logo ter comigo, teria de olhar para ele duas vezes
para o identificar.
Habituara-me a vê-lo em pijama, mas não se tratava só disso,
nem do facto de, sem barba, parecer cinco ou seis anos mais novo.
A transformação era mais profunda porque quase não reconheci o
homem que se havia despedido de mim em janeiro de 1938 naquele
que me abraçava, antes mesmo de me dar tempo para apreciar a
sua metamorfose. Parecia ter prosperado muito durante o último
ano, o prazo que marcara a minha deterioração e a dos demais,
todos mais velhos, mais magros, mais vergados pela preocupação
dia após dia. Não tinha engordado muito porque o excesso de peso
deixara de ser um problema para os espanhóis que viviam na zona
republicana, mas vestia impecavelmente, com um sobretudo de pelo
de camelo bem escovado e um chapéu de excelente qualidade,
embora o indício mais óbvio da sua mudança fosse a pele lustrosa,
brilhante e elástica, que sugeria uma dieta variada, rica em produtos
frescos, fruta e verduras de que em Madrid já nem nos
lembrávamos.
– Fico muito contente por te ver – disse-lhe, quando consegui
impor-me ao interesse doentio pela comida que irmanava todos os
habitantes da cidade sitiada, uma obsessão coletiva que nos
acompanharia durante muitos anos. – Estás com muito bom aspeto.
– Sim… – Olhou para mim como se a sua sorte o
envergonhasse. – É que em Valência estamos muito melhor do que
aqui, mas vem comigo, despacha-te, não temos muito tempo.
Depois de entregar a recompensa prometida ao mensageiro que
continuava colado a mim, apontou para o único carro estacionado à
frente do hospital. Aquilo espantou-me, porém, não tanto como as
instruções que deu ao motorista quando nos instalámos no banco
traseiro.
– Leva-nos a passear, Paco. – Mas antes de fechar a janelinha
misteriosa que nos separava dele, acrescentou ainda: – Não temos
pressa.
– Mas não acabaste de me dizer que tínhamos pouco tempo? –
perguntei-lhe num tom risonho que iria durar muito pouco. – E essa
janela? Nunca tinha visto um carro assim.
– É do governo – respondeu sem me encarar, abrindo uma
malinha –, pedi-o emprestado para que ninguém saiba o que te vou
contar.
– Um carro do governo?
– Sim. Vim com o Negrín.
– Com o Negrín? Mas…
– Chega, Guillermo. – Antes que eu conseguisse perguntar-lhe o
que fazia o presidente do governo em Madrid, ele fechou a malinha
e observou-me – Cala-te e não me faças mais perguntas. – Só
então me dei conta de que nunca o tinha visto tão sério. – Isto está
a acabar.
– Isto? – Arrisquei uma vez mais.
– A guerra. Está a acabar e perdemo-la. – Franziu os lábios
como se o som daquelas palavras o torturasse. – Perdemos a
guerra e não vai ser igual para todos. Eu vivo em Valência, trabalho
no gabinete do presidente do governo, poderei exilar-me, já tu… –
Olhou para mim e eu não movi um músculo, embora pressentisse o
que acabaria por ouvir. – Quem vive na zona centro não vai
conseguir fugir, está demasiado longe das fronteiras. A estrada de
Levante ficará aberta até ao fim, mas uma vez aí… – Arqueou as
sobrancelhas e o seu ceticismo também não me surpreendeu. –
Não te quero enganar. Para sair de Espanha seria preciso que as
democracias enviassem barcos para Valência ou para Alicante, que
conseguissem ultrapassar o bloqueio dos franquistas, e nem assim
porque… Receio que ninguém pretenda ajudar-nos.
– Como de costume – murmurei.
– É verdade, como de costume – assentiu, dando-me razão, no
entanto, imediatamente se endireitou no banco, ergueu os ombros,
conseguiu insuflar um resto de energia em si próprio. – Mas tu tens-
me a mim, Guillermo. Sem ti, não teria sobrevivido, não estaria aqui
a dar-te más notícias, não poderia pensar no exílio porque estaria
morto. Devo-te a vida e vou pagar-ta.
Aquela declaração deixou-me definitivamente sem palavras. Ele
aproveitou o silêncio para me entregar um envelope branco,
fechado.
– Aqui dentro está um bilhete de identidade em nome de Rafael
Cuesta Sánchez, lembras-te? – Nem sequer aquele nome me fez
mover os lábios, embora tenha assentido com a cabeça, porque
nunca conseguiria esquecê-lo. – É uma identidade fictícia,
totalmente inventada. Quando o Negrín me enviou para Madrid,
certificou-se de que ninguém a pudesse comprovar. A partir de
agora é tua. Tu serás o Rafael Cuesta Sánchez, filho único de pais
falecidos, nascido numa aldeia de Toledo, cuja igreja ardeu num
bombardeamento juntamente com os registos de batismo. Quando
eu fui o Cuesta Sánchez, ele era seis anos mais velho do que eu,
estava casado, filiado na UGT e vivia em Valência. Tu estarás
solteiro, nunca terás pertencido a nenhum partido ou sindicato de
esquerda, terás vivido sempre em Madrid, embora o teu último
domicílio tenha sido Salamanca, e terás a tua idade, vinte e cinco
anos. Anteontem, eu próprio rasguei a tua ficha de filiado na UGT e
ninguém conseguirá distinguir a tua cédula de uma franquista. Como
sabia que, se a pedisse, não ma dariam, trouxe-a emprestada, mas
ninguém dará pela falta porque temos muitas, fazemo-las com um
papel idêntico. Esta preenchi-a eu, imitei a assinatura de um
funcionário real e pus-lhe um carimbo copiado dos de Burgos. A
única coisa que tens de fazer é colocar uma fotografia tua e não te
meteres em confusões. Se a polícia não te detiver, tudo correrá
bem. Dentro de alguns meses, substituirão estes documentos por
outros, definitivos. Tenta ir buscar o teu num dia em que esteja muita
gente e não terás problemas.
– Sim, mas… – Enquanto o ouvia, tinha aberto o envelope, tirado
o bilhete de identidade, comprovado tudo o que me ia dizendo, no
entanto, continuava sem compreender. – E o que faço com isto?
– Vives, Guillermo, ou melhor dizendo, Rafa… – O Manolo
reclinou-se no banco e sorriu, como se o pior já tivesse passado,
porque para ele assim era. – Ou, pelo menos, sobrevives. No
envelope mais pequeno encontram-se francos suíços e libras
esterlinas. Não é muito, metade das minhas poupanças, mas vão
fazer-te mais falta do que a mim e também te tornarão mais rico. Na
nova Espanha, o câmbio de divisas vai disparar, vais ver.
Nesse momento, em vez de pensar no futuro que o Manolo me
estava a oferecer, recordei o meu passado mais recente, o olhar
daquele rapaz que acabara de condenar à vida, o seu desejo de
morrer numa maca, a sua convicção de que o meu trabalho não
valia a pena porque no instante em que pusesse o pé na sua
povoação o fuzilariam por ser filho do alcaide da Frente Popular.
Ouvindo-o, não tinha acreditado. Ainda não acreditava, não
conseguia fazê-lo, e, no entanto, o seu medo dava consistência ao
episódio que eu estava a viver, à visita do Manolo, ao envelope que
tinha nas mãos.
– Mas… – Tentei transpor o meu pensamento em palavras e o
fruto foi mais do que medíocre. – O que se passa comigo? Quero
dizer… Eu não fiz nada.
– Não? – O Manolo voltou a sorrir, porém, desta vez uma tristeza
suja como uma pequena sombra, amarga, encontrou passagem na
curvatura dos seus lábios. – Não foste o Bethune espanhol, a tua
fotografia não apareceu na capa de El Heraldo, não criaste um
serviço de transfusões que salvou milhares de soldados vermelhos,
inimigos de Espanha, não abandonaste o teu hospital uma noite
para ajudares um agente do governo da República, não o instalaste
em tua casa e cuidaste dele até que recuperasse, não há dezenas
de pessoas que poderiam testemunhar que tudo o que digo é
verdade?
– Sim, claro, mas… Não me podem acusar. Sou médico e o meu
trabalho…
– Eras, Guillermo. – E o último sorriso do Manolo extinguiu-se. –
Tu eras médico. Se quiseres continuar vivo, deixarás de o ser assim
que os franquistas entrarem em Madrid. Que nem te passe pela
cabeça ir ao teu hospital, exigir o teu diploma, nada disso. Usa o
dinheiro nesse envelope para te esconderes por alguns meses e
depois transforma-te no Cuesta Sánchez, procura um trabalho,
qualquer coisa que não tenha nada que ver com medicina. Com um
único destes factos que acabo de te recordar, um procurador de
Franco teria material de sobra para pedir a tua condenação à morte.
E o juiz concedê-la-ia de bom grado, não duvides.
Aquelas instruções desmoralizaram-me mais do que a notícia de
que o governo considerava a guerra perdida, e ele deu-se conta
disso. Antes que eu conseguisse adivinhar o que me ia cair em
cima, ele aproximou-se de mim, deu-me o braço e continuou a falar
num tom diferente, impregnado de compaixão.
– Se calhar, estou enganado. – Os seus olhos diziam que
mentia. – Se calhar, é possível que não aconteça nada, que possas
continuar a exercer, que… E vá-se lá saber o que pode acontecer
agora. Talvez os alemães nos invadam ou o Franco entre na guerra
com o Eixo. Talvez ele perca a guerra e a ganhemos nós, ou
voltemos a perdê-la, quem sabe… Mas não corres nenhum risco
ouvindo o que te digo. Se me enganar, não terás perdido nada, uns
meses de férias; se acertar, continuarás vivo. Vale a pena, acho eu.
Fez uma pausa que não soube preencher e acrescentou uma
nota final sombria.
– Não falo por falar. Sei o que aconteceu nas zonas que caíram.
E além disso… Foi menino ou menina?
Sorri, porque desde a última vez que o vira tinha andado muitas
vezes às voltas com as palavras que ele escolheu para se despedir:
tem cuidado, sobretudo tu, Amparo.
– Foi um menino, mas não percebo como soubeste antes de
mim.
– Porque sou espião. – Desatou a rir e negou suavemente com a
cabeça. – Eu estava em casa de manhã e ouvia a Amparo vomitar o
pequeno-almoço. Certo dia, mesmo depois de vomitar, pediu-me
licença para entrar no meu quarto e vi-a remexer na parte superior
do armário até encontrar uma caixa cheia de brinquedos, de modo
que… Não foi muito difícil, de facto.
Naquela tarde, de regresso a casa, assustei-me. À entrada
quase não se sentia, mas, ao dobrar a esquina do corredor, um forte
odor químico acertou-me como um murro. Era amoníaco e mais
qualquer coisa, um cheiro familiar que teria identificado sem
dificuldade não fosse o facto de ter desencadeado um alarme
imediato que se apoderou das minhas pernas e as obrigou a correr
até à cozinha. Ali, na mesa onde tomávamos o pequeno-almoço,
com o tampo cuidadosamente forrado a papel de jornal, voltei a ver
um pequeno comboio de madeira de que me recordava vagamente,
embora pudesse jurar que nos seus tempos áureos tinha uma
carruagem de cada cor. Agora, a locomotiva era preta e as três
carruagens vermelhas, cada uma num tom diferente, embora o
verde original se visse à transparência sob o tom mais claro,
pintado, como os outros dois, com verniz de unhas. O resultado era
uma gritante, e talvez por isso comovente, porcaria que me
tranquilizou por motivos alheios à sua qualidade.
Há quase duas semanas que eu e a Amparo não dirigíamos a
palavra um ao outro. A notícia da sua gravidez, que me confessou
no tom risonho das coisas sem importância, ainda o Manolo Arroyo
não havia acabado de descer as escadas, tinha desencadeado uma
briga monumental, a primeira explosão de cólera mútua e autêntica
depois de um ano e meio de uma estranha convivência. Até àquele
momento, todos os amuos, ameaças e desafios que tinham
caracterizado a nossa relação faziam parte de um fingimento
elaborado, de um simulacro de violência estipulado pelos dois e
proveitoso para ambos. Nesse terreno fictício, a vantagem era
minha. Na realidade que acabava de surgir, a Amparo tinha todo o
poder, mas isso não me enfureceu tanto como a sua vontade
disparatada de ter uma criança na sucursal do inferno onde eu
nunca teria querido gerá-la.
– Bom, são coisas que acontecem… Quando tiveste as últimas
regras?
– Ai, já não me lembro! – A maneira como voltou a cabeça,
evitando olhar-me nos olhos enquanto falava, revelou-me que não
dizia a verdade. – Há um mês e meio ou coisa que o valha.
– Não. – Neguei com a cabeça, antes de ir direto ao assunto. –
Não foi há tanto, mas não tem importância, ainda estamos a tempo.
Se amanhã fores comigo ao hospital…
– Para quê? – Avançou na minha direção, olhou-me de frente e
dirigiu-me aquele sorriso trocista que não voltara a ver desde a tarde
distante em que me havia mostrado as cuecas brancas. – Para
abortar? Nem sonhes, Guillermo. Não estou disposta a cometer um
pecado tão horroroso para que tu fiques de consciência tranquila.
A resposta, a postura, o aprumo com que manteve uma decisão
que nas nossas circunstâncias constituía um desafio brutal
deixaram-me completamente perplexo, como se me tivesse
esquecido do tipo de mulher que tinha à frente, Amparo Priego
Martínez, a mesma que antes de abrir as pernas ao ritmo da minha
vontade tinha encarnado o paradigma exemplar do inimigo. A
menina que dirigia o bando de criadas e recolhia dinheiro para
comprar votos em troca de colchões nos bairros mais pobres de
Madrid, a jovem fascista que levantava o braço no patamar com o
uniforme que a Experta costurara, bordara e engomara no dia
anterior, a menina mimada que franzia o nariz ante qualquer
expressão que lhe recordasse a ordinarice das pessoas normais e
correntes que andavam pela rua havia regressado num instante,
adaptando-se, com a precisão flexível de uma luva feita à medida,
ao corpo e ao espírito da minha amante ideal. A boneca dócil,
complacente, que sabia antecipar-se a todos os meus caprichos
evaporou-se num ápice, sem deixar rasto na matriarca precoce que
se atrevia a observar-me de um improvisado pedestal de dignidade,
como se os passatempos a que se dedicara nos últimos meses não
tivessem representado para ela mais do que uma diversão
superficial, uma vertigem passageira, tão excitante e inócua como
uma viagem na roda gigante da feira. Comprovando que tudo o que
tínhamos vivido juntos lhe deslizava pela verdadeira pele como uma
chuva fraca de primavera, senti-me, novamente e mais do que
nunca, um pobre tanso. No entanto, agarrei-me ao meu papel por
pura e inamovível convicção.
– É uma loucura, Amparo. – Eu sabia que era uma loucura,
embora ela não deixasse de sorrir. – Não falo como culpado pelo
que aconteceu. Não me sinto culpado porque posso remediá-lo e
tenho a consciência muito tranquila, garanto-te. Não acredito em
Deus, nem no pecado, ainda assim quero que saibas que a única
culpada pelo que possa acontecer a partir de agora serás tu, e que
isso será irremediável. Pondo de parte a guerra, os
bombardeamentos, a metralha e tudo o mais, as tuas condições de
vida são muito insuficientes para levar por diante uma gravidez com
garantias. Para que a criança nascesse saudável, seria
imprescindível que estivesses calma e descontraída, coisa que
nesta altura já é difícil, mas, além disso, terias de te alimentar bem,
de comer fruta, verduras, ovos, açúcar, carne e peixe. Ora diz-me lá
onde os vamos desencantar. E se na gravidez surgir alguma
complicação, que em épocas normais se resolveria com facilidade,
agora pode não ter solução. Os hospitais estão a abarrotar, há faltas
de todo o tipo, não há camas, nem pessoal, nem horas de trabalho
suficientes para atender as emergências graves, de modo que…
– E as mulheres pobres? – Antes e depois do que acontecera
connosco, a Amparo fora, era e seria muitas coisas, mas nunca
tonta. – As mulheres pobres nunca comem carne, nem ovos, nem
doces, só legumes e batatas, todos os dias a mesma coisa, nunca
vão ao médico, mas têm filhos saudáveis.
– Metade de metade de metade. – Embora não fosse tão
inteligente como pensava. – Metade dessas mulheres perde a
criança durante a gravidez, metade dos bebés que nascem morre
horas depois do parto e, entre os que sobrevivem, metade nasce
com bócio, com avitaminose, com raquitismo, muitas vezes
causando a morte das mães. Vejo isso todos os dias, Amparo.
– Está bem, mas isso não há de me acontecer. A minha mãe
nunca perdeu um filho, a minha avó também não, e eu estou
tranquila, Guillermo, porque já pensei em tudo. Com dinheiro pode-
se comprar qualquer coisa, tenho um médico em casa, e a guerra…
Esta criança terá sorte, porque ou ganha o bando do pai ou o da
mãe, de modo que não lhe acontecerá nada de mal.
– Esta criança não terá pai, Amparo.
Não proferi a frase para a ofender. Nem sequer pensei nela
quando a deixei escapar. Só estava a pensar em mim, na
paternidade que acabava de me cair em cima à traição, no facto de
não me encontrar em condições de a assumir, de não querer que
aquela criança nascesse. A atitude da Amparo, a certeza com que
falava do que não sabia, a soberba com que tinha decidido tudo
sozinha, invocando a sua consciência sem hesitar um segundo nem
parar para pensar que eu poderia ter outra, minha e diferente da
dela, tornara a acender-me uma luz branca entre as sobrancelhas.
Estava até aos cabelos da consciência de gente como a Amparo,
essa consciência que havia provocado uma guerra e que pretendia
disfarçar a sua culpa com a pele de cordeiro das vítimas escolhidas
pelo seu deus. Nada no mundo me indignava tanto, me enfurecia
tanto, como a invocação da consciência para que uns indivíduos se
elevassem acima dos outros, os forçassem de faca ao peito. Por
isso, deixei que a raiva falasse por mim e para mim.
– Que disseste?
Vi-a atirar-se a mim com o punho fechado, o braço erguido, e,
embora não fosse capaz de interpretar o sentido daquela imagem
revolucionária, levantei-me da poltrona.
– Quem julgas que és?
Compreendi que queria dar-me um murro instantes antes de ser
tarde de mais e segurei-a pelos pulsos, depois de aparar o golpe.
Não pretendia magoá-la, porém, gritando, ela deu-me um pontapé
na canela que me doeu.
– Como te atreves a falar comigo assim, como se fosse uma
qualquer, uma corista daquelas que o teu avô mantinha? Será que
não sabes relacionar-te com outro tipo de mulheres?
– E tu? – Não quis soltá-la porque sabia que, tendo as mãos
livres, me seria difícil não lhe dar um tabefe. – Quem julgas que és?
Como te atreves a pedir-me contas? Estás viva graças a mim,
Amparo. Deves-me tudo, a casa onde vives, a comida que comes, o
ar que respiras, de modo que não tens o direito de me exigir nada e,
muito menos, de decidir por mim.
– És um filho da puta! Um miserável sem coração, um cabrão.
És, és… Um assassino de merda.
Afastei-a com a violência suficiente para a mover sem a deitar ao
chão, e saí.
– Um filho da puta! – Ouvi ao abrir a porta. – Um filho de uma
grande…!
Estive quase uma hora a deambular sem destino, até que o som
das sirenes me deu um pretexto para me refugiar do frio na estação
de metro de Goya. Naquela altura da guerra, os moradores do bairro
de Salamanca ignoravam os alarmes e só algum peão
desprevenido, morador noutra área da cidade, se protegeria de
bombas que nunca beliscavam aquela zona. Porém, nas estações
do meu bairro havia bancos, como em todas as outras, e eu sentei-
me num deles até muito depois de as sirenes deixarem de se fazer
ouvir. Quando me cansei de estar sentado, continuei a vagabundear
sem rumo fixo, até sentir o nariz gelado e, regressado a casa,
encontrei todas as luzes apagadas. Ainda não eram dez da noite, no
entanto, ao entrar no meu quarto, vi a Amparo deitada, de costas
para a porta. Aqueci o resto das lentilhas do almoço e depois de
jantar também me deitei, mas não ao seu lado. De manhã, o som do
choro atravessou sem dificuldade a parede que nos separava.
Durante quase duas semanas, vivi na minha própria casa como
um hóspede indesejável. Enquanto isso, a Amparo chorava,
devolvendo-me à perplexidade dos primeiros dias juntos, porque a
tristeza dela me desconcertou tanto como a falta de pudor que havia
demonstrado então. A princípio pensei que se tratava de uma
estratégia, um truque para me amolecer, mas, quando me cruzava
com ela no corredor, o inchaço dos olhos, o abatimento que lhe
curvava os ombros, o tremor dos lábios quando me olhava e uma
evidente perda de peso, que era a última coisa que lhe convinha,
convenceram-me de que chorava com igual intensidade quando eu
não estava presente. Não a compreendia, mas isso não era
novidade. Nunca a tinha compreendido.
Eu também não estava satisfeito comigo. Continuava a não me
sentir culpado, no entanto isso não me consolava porque tinha
consciência de que ambos, cada um à sua maneira, estávamos a
prolongar uma situação insustentável, baseada em choros, silêncios
e indiferença fingida. Eu nunca a expulsaria de casa, ambos o
sabíamos, tal como sabíamos que aquela criança nunca teria outro
pai que não eu, mesmo que preferisse que não nascesse. Em
tempos de paz teria sido diferente, contudo a guerra não nos daria
qualquer oportunidade. Sentia-se no direito de dispor de nós, uma
vez que ambos lhe pertencíamos. Naquela altura da nossa
insensatez, eu e a Amparo éramos fruto da guerra, um fiapo dos
seus despojos, dois reféns fracos de mais para oporem resistência a
um amo tão poderoso. O ser que havíamos gerado era a prova mais
evidente da nossa escravidão, mas também o único elemento capaz
de alterar, dia após dia, uma situação tão estagnada que começava
a cheirar mal e o único inocente de todos nós. Assim, sem nunca
me sentir culpado, comecei a sentir o peso da responsabilidade,
uma carga mais grave, porém menos amarga. Ainda não me
habituara a tê-la nos ombros quando o odor da aguarrás me
assustou tanto que nem sequer parei para rever o que sabia e
concluir que a Amparo não cumpria nenhum dos requisitos para ser
candidata ao suicídio.
– Não ficou bem, pois não?
Quando lhe ouvi a voz, depois de tantos dias de silêncio, ela
ainda tinha o comboio de madeira nas mãos.
– Não. Ficou pessimamente.
Erguendo os olhos, verifiquei que ela se aproximava muito
devagar, como se a cada passo quisesse auscultar-me o humor, e
que tinha muito má cara, apesar de não se ter suicidado.
– Tenho muita pena, Guillermo. – Aquelas palavras
surpreenderam-me tanto que afastei os meus olhos dos seus,
continuando a examinar os defeitos da madeira pintada. – Tenho
muita pena.
– Não é para tanto – respondi, pensando que mais lhe teria
valido ter começado por aí. – Devias ter lixado bem…
– Não me refiro ao comboio, mas ao bebé, ao que aconteceu.
Sinto muito. – Continuou a repeti-lo até os soluços a impedirem de
falar. – Não tivemos sorte. Se as coisas tivessem sido diferentes,
teríamos podido ser felizes, não achas? Eu poderia ter sido muito
feliz contigo, se tu… Se a guerra… Sinto muito, Guillermo. Não
queria que isto acontecesse, a sério. Sinto muito, sinto muito, sinto
muito…
No dia seguinte, fui ver o homem mais bem informado do
hospital. Não tinha muitas esperanças, mas a sorte de que a
Amparo tanto se queixava sorriu-me por uma vez.
– Claro que sim, doutor, venha comigo. – Bernabé escoltou-me
até um armário que eu sempre vira fechado e ofereceu-me o
conteúdo com a mão aberta. – Lixas, pincéis, tintas, tire o que
quiser. É a única coisa que temos de sobra. Como aqui já ninguém
conserta nada…
Ao lixar a madeira, descobri sob o verniz vestígios da tinta
original e devolvi a cada carruagem a sua cor: vermelha, verde,
amarela. Aquele velho comboio de brincar foi-me muito mais útil aos
vinte e cinco anos, e mais divertido também, do que no dia em que
mo ofereceram porque, enquanto lixava, pintava, e colava uns
pedacinhos de borracha preta à parte exterior das rodas, não
pensava em mais nada. A Amparo sentava-se a meu lado e às
vezes chorava, outras vezes não, mas gabava-me sempre a
qualidade do trabalho. Quando acabei e o fiz rodar pelo corredor
para o experimentar, ia tão depressa que desatei a rir. Haviam
passado pelo menos quinze dias desde a última vez que me rira, e
ela festejou-o soluçando, num desconsolo súbito, profundo.
– Agora, o que se passa?
– Nada, é que ao ver-te com o comboio, e isso… – Limpou os
olhos, assoou o nariz com força, olhou para mim, fechou os olhos,
tornou a abri-los. – Ficas zangado se te perguntar se vais amar o
bebé?
– Sim. – Deixei de me rir, peguei no comboio, e ela voltou a
chorar. – Bolas, Amparo, para! Vais definhar de tanto chorar, isso
não te faz bem. Vamos deixar de falar no assunto.
Porém, aproximei-me dela, passei-lhe um braço pelos ombros e
deixei que ela encostasse a cabeça no meu pescoço. Nesse mesmo
instante, comecei a sentir a falta do trabalho que acabara de fazer,
da oportunidade de me evadir da minha raiva, do seu choro, com
folha de lixa, uns pincéis e umas latas de tinta.
– Ouve, e se for menina?
– Vai ser um rapaz, eu sei, mas se for menina…
A Amparo também havia trazido de casa do avô duas caixas de
brinquedos, dela e das irmãs. Elas tinham sido muito mais
cuidadosas do que eu, e os peluches, os bonecos só estavam sujos.
No entanto, num embrulho à parte descobri uma casa de bonecas
muito maior do que o meu comboio, que precisava de várias
reparações e de uma boa camada de tinta.
– Mas… – Quando a pousei na mesa da cozinha para avaliar
mais atentamente o estado em que estava, a Amparo admirou-se
tanto que deixou de chorar. – E não seria melhor começar pelos
chocalhos? Seja menino ou menina, só conseguirá brincar com isso
aos cinco ou seis anos.
– Está bem, mas… Deixa estar. – Só o telhado, onde faltavam
várias telhas de madeira vermelha, minúsculas, e mais de metade
das sobreviventes dançava, manter-me-ia entretido durante uma
semana. – E outra coisa. Avisa a Experta. Não te importas? Ela que
venha visitar-nos uma destas tardes. Quanto antes, melhor.
Quando se instalou em minha casa, a Amparo pretendia que a
Experta viesse limpar e fazer as compras dia sim, dia não, mas eu
recusei terminantemente. Não preciso de criada, disse-lhe, nem
preciso que estejas aqui a descansar desde que te levantas até que
te deitas, de modo que vais ser tu a tratar de tudo, percebeste?
Percebeu, porque nessa época todas as minhas palavras pareciam
ordens e excitava-me tanto dá-las como à Amparo recebê-las.
Depressa verificámos que tínhamos saído todos a ganhar com essa
mudança. A menina Priego nunca havia estado ao fogão, porém, a
necessidade e os livros de receitas da minha avó fizeram dela uma
cozinheira muito melhor do que a de don Fermín, sendo que as suas
novas habilidades enriqueceram os cenários, as regras do nosso
código de prémios e de castigos. A partir de então, a Experta só
vinha de visita de vez em quando, embora, quando lhe pedi que
viesse, já tivesse passado mais de um mês desde a sua última
visita. A ausência não nos preocupou porque sabíamos que a
guerra fora muito cruel com ela. Dos quatro filhos, um morrera na
frente e outro tinha sido feito prisioneiro depois da queda da frente
norte. Isso, e também que o mais certo era este ter tido a sorte do
irmão mais velho, fora tudo o que a mãe conseguira saber. Talvez
por isso, a senhora que veio visitar-nos dois dias depois de receber
o recado através do rapaz da leitaria da calle Ayala, que ia todos os
domingos a Vallecas ver os pais, me tenha parecido uma versão
defeituosa, apagada e lenta da tão eficaz Experta de outrora.
Depressa descobri que não havia mudado tanto como parecia.
– Mas como vai ter agora um bebé, menina? – Porque a reação
foi exatamente a que eu esperava. – Enlouqueceu? Será que não
anda pela rua? Depois do que passámos quando o seu avô morreu
e agora que estão tão bem… – Como a resposta da Amparo
consistiu em desatar a chorar, ela voltou-se para mim. – Diga-lhe o
menino, o menino que é médico, diga-lhe…
– Não te canses, Experta, porque não vale a pena. – No instante
da minha claudicação definitiva, decidi que aquela era a última
choraminguice que estava disposto a aguentar. – E tu, cala-te já, por
favor! Não quero ver mais uma lágrima, nem uma, percebes?
– Mas é que eu… – balbuciou até onde o beicinho lhe permitiu. –
Vocês não me compreendem, ninguém me compreende. Do
Guillermo, bom, o que se pode esperar de… Mas de ti, Experta, tu
vais à missa, tu acreditas em Deus…
– Eu já não sei em que acredito, menina. – O olhar dela bastou
para me recordar que ainda tinha dois filhos na frente, e deveria ter
bastado para a Amparo descobrir qual das duas sofria mais.
– É que estou tão sozinha! – No entanto, isso não aconteceu. –
Tão sozinha…
– Amparo, cala-te, por favor. – Contar até cinco ajudou-me a falar
sem gritar, sem me alterar, atrevendo-me a ser totalmente sincero. –
Deixemos isto, Experta, porque a discussão não nos leva a lado
nenhum. Queria falar contigo porque continuo todo o dia no hospital
e não me atrevo a perguntar a ninguém como se pode comprar
comida fora do racionamento. A Amparo decidiu ter o bebé, e eu
não tenho tomates para a adormecer com clorofórmio e fazer-lhe um
aborto à traição. – Parei para olhar para ela e vi que não movera um
músculo da cara. – Pensei nisso, podes crer.
– Não me admira. – A Experta assentiu com a cabeça, e a sua
menina tapou a cara com as mãos e saiu da sala a correr. – Estou a
falar a sério.
– Sim, mas não consigo. Pensei muito no assunto e não sirvo
para isso, de modo que esta criança vai nascer. E já que vai nascer,
o que interessa é que nasça saudável. Para isso é fundamental que
a Amparo deixe de chorar e, sobretudo, que se alimente muito
melhor do que agora. Arroz e lentilhas não chegam. Devia beber
leite, comer ovos, carne, enfim… Não faço ideia de onde podemos
arranjar isso, e para pagar… Ainda tenho o ouro de don Fermín no
cofre, no entanto, se tentar vender um lingote em qualquer banco,
vou direito para a cadeia, e com razão. Portanto, teremos de tirar
outras coisas. Também não sei como isso se faz, Experta. Quanto
ao resto… A Amparo é uma inútil, tu sabes. Por isso pensei que
podias ajudar-nos.
– Claro que sim, menino, o dinheiro não é problema. Os ricos
são sempre ricos, mesmo quando ficam pobres, oiça bem o que lhe
digo. Nesta casa e na de don Fermín há muitas coisas de valor.
Agora não pagam muito por nada, mas com certeza nos arranjamos.
Quanto a comprar comida, não sei, mas é uma questão de tentar
saber.
– Pois tenta o mais depressa possível, Experta, por favor, mas
não corras riscos. Comprar no mercado negro também é crime e…
– Bah! O senhor chama crime a qualquer coisa. – Acabou por
sorrir. – Isso agora é tão comum como beber água, não se preocupe
com tão pouco.
A primeira coisa que desapareceu foi o serviço de prata da avó
da Amparo. A Experta foi vendendo as peças uma por uma para
obter melhor preço, e contactou várias mulheres que atravessavam
a frente todas as semanas para comprar víveres na outra zona. A
concha, a colher grande e a espátula de bolos deram para meia
dúzia de ovos, três laranjas, um pacotinho de farinha e umas fatias
de toucinho. A Experta dizia que as suas fornecedoras eram umas
ladras porque lhes pagámos com prata maciça, ainda assim, eu
achei um milagre…
– Não tenho fome…
Mal entrou na cozinha, a futura mãe esboçou uma careta de
fastio que se desvaneceu mal viu os dois ovos estrelados com
toucinho.
– Mas vou acabar tudo, hã? – E atirou-se ao prato como uma
loba esfomeada, acabando a frase com a boca cheia. – Faço isto
pelo bebé.
Imaginava que um dos motivos da sua tristeza fosse a fome e
verifiquei imediatamente que tinha acertado. Embora não
deixássemos de consumir os produtos do racionamento que nos
correspondiam, e eu continuasse a comer todos os dias as lentilhas
com arroz e obrigasse a Amparo a acompanhar-me três vezes por
semana, a minha dieta também melhorou porque, de vez em
quando, caía na panela algum chouriço, uma costeleta de porco ou
um pouco da carne que a Experta continuava a arranjar em troca
dos talheres da sua senhora. Quando estes desapareceram, ela
própria propôs reservar o serviço da minha avó para mais tarde.
– E então? – perguntei. – Vendemos as salvas de prata?
– Nem pensar, deixe-me dar uma vista de olhos a ver o que
encontro. Acontece que, agora, as coisas mais inúteis são as que
mais valem.
Os perfumes da minha avó, por estrear ou abertos. Os chapéus.
As plumas, os alfinetes de peito, os colares, mesmo os de bijuteria.
A assombrosa coleção de maquilhagem da Amparo e os seus
próprios perfumes. Os xailes de seda bordados de ambas as casas.
As estatuetas de porcelana que acumulavam pó nas vitrinas. Caixas
de joias, caixas de música, rendas, xailes, vestidos de noite,
casacos de pele, quadros e tapetes foram-se transformando em
comida, graças a transações bastante vantajosas.
– Ora, é disto que gostam as queridas dos especuladores, e
onde hão de consegui-las se não for assim…
A Experta tinha tanta razão que uma caixa de pó de arroz de
madrepérola nos alimentou durante uma semana, uma carteira de
malha de prata toda rota, dois ou três dias, e as sobrecasacas de
don Fermín deram para comprar três litros de leite. Com a melhoria
na alimentação da Amparo veio também o sono e entre ambos
conseguiram derrotar o choro até o semáforo ficar sempre verde. A
gravidez deixou de me preocupar, contudo, quando a cara dela
recuperou as cores, com as suas bochechas rosadas e cheias de
camponesa, brilhantes como a casca de uma maçã depois de uma
chuvada, ela começou a preocupar-se com outras coisas.
– E se tiver desejos?
– Que nem te passe pela cabeça.
– De comida não, mas do outro, oh se tenho… – Olhou para mim
como se não tivesse qualquer dúvida de que eu conseguiria
identificar imediatamente de que tipo de desejos falava.
– Isso são as hormonas.
– Não digo que não, mas… Este nervosismo que sinto a toda a
hora também não deve ser bom para o bebé.
Voltámos a dormir juntos, e a nossa relação mudou uma vez
mais, ajustando-se finalmente à normalidade que ambos evitáramos
desde o início. Os últimos seis meses de gravidez foram uma época
de convivência plácida e risonha a que nos habituámos mais
depressa do que eu imaginava, talvez porque, sem ser exatamente
a melhor, era a única opção que tínhamos.
Estávamos ambos demasiado cansados de lutar um contra o
outro e contra nós próprios. Cada um tinha os seus motivos para se
preocupar, e a solução mais fácil era deixarmo-nos levar de um
presente por que só parcialmente éramos responsáveis para um
futuro que ambos ignorávamos. Assim, como se executássemos as
etapas de um plano comum previamente traçado, apoiámo-nos na
criança que ia nascer, focando-nos nela e não nos nossos conflitos.
Tivemos de adotar novas personagens e não fomos capazes de
inventar nada tão criativo como as antigas. A Amparo precisava de
fazer algum exercício, e com o primeiro vislumbre de primavera, se
as sirenes não soassem, atrevíamo-nos a dar um passeio. Ela dava-
me o braço, levava a mão ao ventre, como todas as grávidas, e
olhava para mim, convidando-me para o palco em que se
transformara a nossa vida. Então, eu representava o papel que um
ponto imaginário me ia ditando às escondidas do público e parava,
voltava-me para ela, observava-lhe a mão pousada no ventre com
uma expressão de inquietação repentina. Naquela época, poucas
eram as pessoas que circulavam pelas ruas, mas os nossos
espectadores acidentais nunca teriam desconfiado de que viam uma
representação. Se calhar, nem nós tínhamos a certeza de que
aquelas cenas eram fictícias, contudo, ambos sabíamos que sob
aquele invólucro cor-de-rosa palpitavam duas versões antagónicas
da mesma angústia. A de uma guerra que parecia nunca mais
acabar, mas que terminava e não pressagiava nada de bom para o
meu lado. A de uma guerra que estava a durar demasiado para que
uma vitória do lado dela chegasse a tempo de solucionar todos os
problemas da Amparo.
– Guillermo, eu… Eu sei que te peço de mais, mas…
O sexo, incentivado pelo cocktail de hormonas em que o corpo
dela se havia transformado e pelo desejo que despertava no meu,
como se a vontade dela soubesse carregar num botão que eu
desconhecia, continuava a ser pavorosamente autêntico, a única
verdade indiscutível, imune à guerra, à gravidez, aos presságios da
vitória dela, da minha derrota, um vínculo tão forte que enchia tudo.
Por isso, numa noite de abril, Amparo não esperou que eu me
recompusesse para voltar à carga.
– A verdade é que estou muito preocupada com o menino.
– Ou menina – foi tudo o que me lembrei de acrescentar.
– O menino – insistiu, com a mesma certeza que havia
demonstrado desde o primeiro instante. – Vai ser um menino, mas,
se acabares por ter razão, se no fim alguma coisa não correr bem…
Sei que as minhas irmãs o criariam como se fosse delas, que não
lhe faltaria nada, mas não sabem que eu engravidei e… Se um filho
de mãe solteira ficasse sozinho, fosse pelo que fosse, em plena
guerra ou depois, se eu morresse no parto, por exemplo, e te
fuzilassem ou prendessem… – Aquele prognóstico surpreendeu-me
tanto que me endireitei, observando-a. – É uma mera conjetura, vá-
se lá saber o que pode acontecer. Tu sabes como são as coisas,
Guillermo. Não é que um livro de família resolva tudo, mas, se o
menino acabar num orfanato como filho de mãe solteira, se calhar
perde-se-lhe o rasto e as minhas irmãs não conseguem encontrá-lo,
e… – Não tinha deixado de olhar para ela e vi que as lágrimas que
lhe assomavam aos olhos eram verdadeiras. – Se calhar, depois de
tanto trabalho para comprar comida e para que nasça saudável e
tudo o mais, o coitadinho acaba por ser toda a vida um desgraçado.
Casámo-nos a 6 de maio de 1938. A Experta também se
encarregou disso e depois de tratar de toda a papelada foi uma das
duas testemunhas imprescindíveis. A única coisa que fiz foi trazer a
outra, o meu chefe, que me levou à Câmara no seu carro com uma
expressão tão risonha como se eu não lhe tivesse contado que
aquele casamento não passava de uma formalidade, ou como se
soubesse de antemão que o aspeto da noiva lhe daria razão.
– Mas… que fazes com essas flores, Amparo?
Ainda não passara do quinto mês e a barriga não se notava
muito, mas a Experta tinha-lhe feito um vestido, combinando dois
tecidos diferentes, ambos pretos, com uma prega à frente que o
estilizava sem esconder a gravidez. Estava muito elegante, tão
bonita que nem sequer percebi, mas ainda percebi menos o ramo
de três hortênsias cor de malva que a distinguiam, mais até do que
o vestido, das restantes noivas que esperavam a sua vez na sala.
– O que havia de fazer? Vamo-nos casar, ou não? – Dirigiu-me
um sorriso tão radiante como se aquele fosse o dia mais feliz da sua
vida.
– Quanto te custaram essas flores, Experta?
Nunca cheguei a saber porque alguém gritou os nossos nomes
nesse momento. A cerimónia durou o tempo que um funcionário
demora a ler três artigos do Código Civil e quatro pessoas a assinar
um papel, todavia, antes que eu tivesse tempo de levantar a caneta,
a minha nova esposa pediu-me que olhasse para o fotógrafo.
– Mas que diabo…?
Era um soldado muito jovem que fazia algumas pesetas quando
estava de licença com a máquina fotografia que um brigadista lhe
oferecera, uma vistosa máquina fotográfica estrangeira, montada
num tripé velho, tão desconjuntado que ele precisava de o segurar
com a mão esquerda enquanto carregava no botão.
– Não praguejes, que vais ficar mal.
– Mas… A que se deve tudo isto, Amparo?
– Ora, o que haveria de ser? – Ela respondeu em voz alta. – O
nosso filho gostará de saber que os pais eram casados, não achas?
Calei-me, olhei para a máquina e sorri para acabar com aquilo
quanto antes. Mais tarde, quando o juiz nos felicitou e pediu que
saíssemos dali para fora porque tinha muitos casais à espera, vi que
a Experta conversava com ele e não quis pensar em quantas
costeletas teríamos podido comprar com o dinheiro daquele
casamento.
– Bom, já está – resumi à porta, com o livro de família no bolso. –
Nós temos de voltar para o hospital.
– Nada disso. – A Amparo sorriu e olhou para o meu chefe. –
Agora vamos para casa tomar um aperitivo que preparámos. Para
copo d’água não havia, mas…
– Pois claro que sim. – Nessa manhã, o doutor Quintanilla estava
com vontade de brincar. – Temos de brindar, não acham? – Olhou
para mim. – É uma ordem.
Quando lhe pedira que fosse minha testemunha, tinha a certeza
de que ele perceberia que aquele não era um casamento
convencional, mas, se assim foi, guardou para si próprio as suas
perceções. Foi muito carinhoso com a Amparo, agradeceu
sinceramente o vinho que a Experta lhe serviu e, enquanto me
levava de volta para o hospital, agiu como um pai.
– Sabes o que vamos fazer? Daqui a uns dias, à hora do almoço,
vais à Maternidade e falas com eles. Pede-lhes que te deixem
assistir a vários partos e, se possível, que te permitam fazer algum.
– Não é preciso, não é assim tão difícil – protestei. – No curso,
já…
– No curso, a mulher que paria não era a tua, Guillermo, e a
criança também não. Ouve o que te digo, vá lá. Nós, cirurgiões,
estamos habituados a trabalhar com os pacientes sedados, mas as
parturientes não têm tão boas maneiras. Eu trouxe os meus três
filhos ao mundo e não podes imaginar o que saiu da boca da minha
mulher, tão educadinha que parece…
A 11 de setembro de 1938, a Amparo abriu a dela, acordando-
me com um grito às três menos um quarto.
– Começaram as dores? – perguntei-lhe meio adormecido.
– As dores? – O segundo grito foi já um alarido. – Que filho da
puta me saíste… E o pior é que me mijei.
As águas haviam rebentado, porém não perdi tempo a explicar-
lho. Levantei-me para ir à casa de banho e, ao terceiro rugido, ela
agarrou-me no pulso e perguntou-me aonde diabo julgava que ia.
Nesse instante, a Experta, que vivia connosco desde que a Amparo
entrara no oitavo mês, fez de novo honras ao seu nome.
– Vá aonde tem de ir, menino, que eu fico com ela.
O que aconteceu depois foi normal e extraordinário, luminoso e
sangrento, mas sobretudo emocionante. Nunca tinha vivido uma
emoção semelhante, tão essencial e definitiva, tão profunda. O parto
foi longo, mas fácil. O nascimento do menino, um acontecimento
diferente, alheio ao sangue, ao sofrimento, aos gritos da mãe e ao
meu próprio nervosismo. Enquanto o trazia para a luz deste mundo,
eu era ainda um médico a trabalhar, um homem preocupado com os
riscos do processo que dirigia, duas mãos concentradas em exercer
a força precisa, nem pouca nem muita, dois olhos treinados para
examinar o recém-nascido. Porém, depois de comprovar que não
lhe faltava ou sobrava nada, depois de calcular a olho que o peso, o
tamanho e a vitalidade eram normais, envolvi-o num pano, peguei-
lhe ao colo, olhei-lhe para o rosto, para os olhos fechados, para os
punhos apertados e compreendi com uma clareza esmagadora que
sempre, para sempre, seria o pai daquele menino, do rapaz, do
jovem, do homem em que se transformaria. E que sempre, para
sempre, ele seria meu filho.
– É menino, não é? – A voz da Amparo surpreendeu-me como
se de repente me tivesse esquecido de quem era ela, do que fazia
ali e da razão pela qual se imiscuía naquele momento transcendente
para mim e para o meu filho.
– Sim. – Recuperei-me imediatamente desse esquecimento. – É
um menino.
– Eu avisei-te. – Sorriu, erguendo os braços abertos. – Estão
muito bonitos, mas dá-mo, vá lá, que ainda não o conheço.
Cinco meses depois, no banco traseiro de um carro que circulava
preguiçosamente pelo Paseo del Prado, dando voltas e voltas entre
Atocha e Cibeles, o Manolo Arroyo observou-me e franziu o
sobrolho.
– Ia recomendar-te que não te afeiçoasses muito a ele, mas pelo
que vejo já é tarde.
– Tu não tens filhos, Manolo. – Foi a única coisa que me lembrei
de dizer, contudo ele assentiu como se não precisasse de ouvir mais
nada.
– Não, não tenho. Suponho que seja muito bonito, muito
importante e tudo isso, mas… E casaste-te com a mãe, claro.
– Sim. – Apesar de tudo, sorri. – Investigaste-me?
– Não preciso de o fazer, Guillermo. – Ele também sorriu. –
Basta-me conhecer-te.
Fez uma pausa mais longa, olhou de relance para o relógio e
voltou-se no assento para me encarar.
– Tenho de me ir embora, mas antes vou ter de te dizer uma
coisa de que não vais gostar. Não confies na Amparo, Guillermo.
Não lhe digas que me viste, não lhe mostres os documentos que te
dei, nem o dinheiro. Nada. Não confies em ninguém, mas,
sobretudo, tem cuidado com ela. – Quando eu estava prestes a
perguntar-lhe porquê, ele pediu ao motorista que nos levasse ao
hospital e abanou a cabeça. – Não penses que a investiguei, é só
uma intuição, no entanto… Não sei se fazes ideia do que nos cairá
em cima. E se tivesse de arriscar, apostaria qualquer coisa em como
a Amparo não é de fiar.
O meu filho chamava-se Guillermo, como eu, como o meu pai e
como o meu avô. Era um bebé redondo, corado e bonzinho, que
mamava, dormia e não fazia mais nada senão existir. Contudo, a
sua mera existência era tão poderosa que eu passava as horas
mortas a olhar para ele. Se tivesse nascido num tempo de paz, em
qualquer outro momento que não tivesse transformado a sua
presença num facto quase milagroso, talvez o meu vínculo com ele
fosse mais fraco, como ouvia dizer que era o que os homens
mantinham com os filhos. Se estivesse apaixonado pela mãe, se a
minha relação com ela tivesse nascido da minha vontade e não da
vontade dos generais golpistas que provocaram uma guerra, talvez
não me importasse tanto com o meu filho. No entanto, eu estava
sozinho, os meus pais não estavam vivos, o meu avô também não,
havia mais de dois anos que não sabia da minha avó, e naquele
momento a Amparo e o menino eram, para mim, uma só coisa. Por
isso, não gostei de ouvir o conselho do Manolo, embora o desgosto
não bastasse para dissipar o pressentimento de que, com certeza,
teria razão.
– Repito o que já te disse – insistiu. – Ouve o que te digo e, se
me enganar, não perdes nada. Porque vamos ver coisas muito feias,
Guillermo, mulheres que entregam os maridos, irmãos que se
denunciam, ou que denunciam os sogros, ou as namoradas… Isso
já está a acontecer e acontecerá aqui também, tenho a certeza.
– Oxalá que não – foi tudo o que consegui dizer, mas soou-me
tão oco, tão falso, que me assustei.
– Tenho de me ir embora, já estou atrasado – Encontrávamo-nos
diante do hospital. – Estaciona aqui um instante, Paco, por favor.
Despedimo-nos sem palavras, com um longo abraço, mas antes
de ele voltar a entrar no carro, desci os degraus que acabara de
subir.
– Posso pedir-te um favor, Manolo? O último.
– Claro.
– Bom, é que… – Aproximei-me e baixei a voz. – Aqui já não
temos nada. Acabei de amputar duas pernas a um rapazinho, sem
anestesia, sem morfina, não consegui pô-lo a dormir. Como vieste
com o presidente, lembrei-me… Podias arranjar-me calmantes?
Qualquer coisa, nesta altura uma caixa de aspirina seria um tesouro,
é só o que te digo.
– Vou tentar.
Ao cabo de três quartos de hora, encontrei o mesmo miúdo,
sentado no mesmo banco à minha espera, com um pacote nas
pernas. Enquanto injetava uma ampola de morfina ao filho do
alcaide de Fuentidueña, pensei que tivéramos ambos muita sorte
em me ter tornado amigo do Manolo Arroyo. A 28 de março de
1939, aprendi exatamente o que isso significava.
– Doutor García, podemos conversar um momento?
Nessa manhã, quando o Quintanilla me interrompeu, tinha de
fazer a ronda de duas enfermarias e ainda não terminara a primeira,
mas formalidade com que se dirigia a mim alarmou-me mais do que
a pressa.
– Claro – assenti, seguindo-o sem nada dizer até à casa de
banho do primeiro andar. – Vamos conversar aqui? Porque não
vamos para o teu gabinete?
– Porque… – Abriu as portas dos três cubículos, verificando que
ninguém nos podia ouvir. – Já não tenho gabinete, Guillermo. Há
meia hora apareceu-me um comité presidido pelo Francisco Arrieta.
Entraram sem bater, disseram-me que estavam a tomar posse do
hospital em nome do glorioso Exército Nacional e nem sequer me
deixaram tirar as minhas coisas. Vestiam todos uma camisa azul por
baixo da bata e o Arrieta trazia uma pistola à cintura.
– O Arrieta…
– Sim. – O meu chefe assentiu. – Eu também não estava à
espera. Não fazia ideia de que tínhamos tantos cá dentro.
No dia seguinte ao golpe do general Casado, os franquistas
começaram a bombardear-nos diariamente com pão. Não era a
primeira vez que o faziam, mas o que choveu do céu até essa altura
era pão negro, de quartel. A 7 de março de 1939 começaram a
lançar-nos pãezinhos frescos e estaladiços, cozinhados com a
farinha branca que nem sequer a Experta tinha conseguido comprar
com os talheres de prata. Da primeira vez que os vi, o meu filho
estava havia três dias com algumas décimas de temperatura, uma
febre vespertina que não me preocupava muito porque refletia a
febre da mãe. A Amparo tinha bronquite e noutras circunstâncias tê-
la-ia proibido de amamentar o menino, mas resolvi não o fazer
porque não tínhamos outra maneira de o alimentar. Cuidei de tratar
dela e fiz figas, mas ao sair do hospital encontrei-me com o Paco
Arrieta e conversámos sobre o assunto porque tínhamos estudado
juntos, sempre nos déramos bem e ele era um dos melhores
pediatras do hospital.
– Sim, fizeste bem, porque o remédio pode ser pior do que a
doença. Desde que a febre não suba acima dos trinta e sete…
O meu colega calou-se ante a imagem de um pequeno tumulto
de homens e mulheres que disputavam uns pacotes caídos do céu e
deu alguns passos para apanhar um dos que rolara até nós. O
embrulho de papel branco tinha impresso um retrato do chefe dos
rebeldes, uma bandeira monárquica e uma legenda: NA ESPANHA DE
FRANCO, NÃO HÁ UMA CASA SEM LUME NEM UM ESPANHOL SEM PÃO.
– Que cabrões! – exclamei, enquanto o Arrieta tirava o pãozinho
e o partia ao meio.
– Enfim, pelo menos, voltaremos a comer – comentou, levando
um pedaço de pão à boca e oferecendo-me o outro.
– Não, obrigado – recusei. – Não tenho fome.
Quando cheguei a casa, uma Amparo exultante, que havia
deixado o bebé sozinho para descer à rua e apanhar meia dúzia de
pãezinhos, fez-me a mesma oferta.
– Não quero – repeti. – E a Experta?
– Foi para casa esta manhã. Como os comunistas andam aos
tiros com os outros e ela tem dois filhos a lutar aqui mesmo… Que
estupidez, não achas? Ter de morrer mais gente, agora que está
tudo perdido.
Nesse momento, ocorreu-me uma ideia absurda, a mesma que
me ocupou a cabeça vinte dias mais tarde e que o doutor Quintanilla
decifrou com tanta clareza como se a minha testa fosse uma montra
de vidro.
– Também pensei nisso. – Sorriu com amargura, antes de me
oferecer uma versão mais sofisticada, mais elaborada, do mesmo
raciocínio disparatado. – Aproximar-me da frente, arranjar uma
espingarda, uma boa quantidade de munições, escolher uma casa
abandonada, um andar alto, uma janela, e matar fascistas à medida
que estes fossem entrando na rua, até me matarem a mim. É isso,
não é?
– Sim – reconheci. – Cada vez me apetece mais.
– Pois, mas é uma estupidez, Guillermo. – Aproximou-se de mim,
pousou uma mão no meu ombro, apertou-o. – Agora, a única coisa
a fazer é ir para casa e ficar lá até vermos no que isto dá. Neste
hospital, além dos fascistas emboscados, há muitos médicos e
enfermeiras que nunca se comprometeram. Conseguirão gerir tudo
isto durante alguns dias. Estou a mandar os outros para casa, que é
o que vou fazer agora mesmo, de modo que… Tira essa bata. – Ele
tirou a sua. – É uma ordem.
Não me deixou passar pela secretária para tirar as minhas
coisas, nem sequer o sobretudo. Vá-se lá saber se já lá estará
algum, disse-me, a tomar posse… Saímos pela porta das
ambulâncias para uma cidade diferente daquela em que
acordáramos nesse dia. No passeio tinham florescido as bandeiras
monárquicas em varandas onde nunca houvera nenhuma, mas
também noutras que tinham ostentado a tricolor uns meses antes.
Os passeios, no entanto, encontravam-se quase desertos, e os
poucos peões que circulavam estavam sozinhos, caminhavam muito
depressa e olhavam para o chão. Antes de nos juntarmos a eles, o
Fortunato Quintanilla abraçou-me e eu devolvi-lhe o abraço com a
emoção de quem não sabe se será o último. Depois despedimo-nos
com poucas e as mesmas palavras.
– Boa sorte, Guillermo.
– Boa sorte, chefe, e obrigado por tudo.
– Obrigado eu.
Caminhámos em direções opostas, ele para Legazpi e eu para
Cibeles, entrando depois em Alcalá e subindo, rodeando El Retiro,
até à calle Velázquez. Nessa esquina, Madrid voltara a transformar-
se diante dos meus olhos.
No meu bairro, as pessoas tinham saído à rua. O júbilo ruidoso
dos franquistas que se debruçavam nas varandas e se juntavam nos
passeios, erguendo o braço direito, contrastava com as silhuetas
obscuras dos fugitivos, de todas aquelas famílias de refugiados que
haviam ocupado os apartamentos vazios desde o verão de 1936 e
que agora se iam embora rumo a nenhures, levando tudo o que
tinham. Enquanto me esquivava dos primeiros, que já me gritavam
Arriba España!, mas que ainda não me acusavam por não lhes
responder, tentei disfarçar-me atrás dos segundos, avançando
encostado às fachadas dos edifícios. A minha casa ficava muito
perto, contudo, na esquina das ruas Hermosilla e Núñez de Balboa
deixei de sentir pressa.
Primeiro reconheci o saco de viagem de cabedal curtido,
amolecido pelo uso, que um homem metia no banco traseiro de um
carro. Só depois reconheci o homem, que me sorriu por instantes
antes de se juntar ao saque. Quando quis ver a pessoa que ia no
banco da frente, ao lado do condutor, já haviam desaparecido.
Nesse instante, antes de os meus inimigos proclamarem
oficialmente a sua vitória, senti que havia perdido a guerra.
A Amparo nem sequer me concedeu o alívio de deixar a casa em
ordem. Depois de a abrir, tive de empurrar a porta com o ombro
para conseguir entrar, arrastando um monte de roupa atirada para o
vestíbulo. As superfícies disponíveis da sala estavam repletas de
objetos, como se ela tivesse esvaziado todos os armários para lhes
examinar o conteúdo antes de escolher o que ia levar. No chão do
corredor havia entulho, mas isso não me espantou. Saíra de casa às
oito da manhã e ainda não eram duas horas. Não tinham tido tempo
de fazer bem as coisas e haviam destruído com um maço a parede
do escritório do meu avô para levarem o cofre inteiro, quando
alguém trouxera um maçarico que não havia conseguido abrir a
fechadura, embora tenha deixado no quarto um fedor pavoroso a
tinta queimada. Por fim, deve ter vindo um serralheiro que soube
abri-lo, porque foi assim, aberto e vazio, que o encontrei. Só tinham
levado o ouro de don Fermín, porque as cópias dos testamentos dos
meus avós, a escritura da casa e outros documentos da família
encontravam-se espalhados pelo chão. As pegadas escuras dos
sapatos que os tinham pisado magoaram-me como uma afronta
supérflua, desnecessária, embora naquele momento não pudesse
parar para pensar nela.
Antes de me aproximar do escritório respirei fundo, mas logo ao
primeiro olhar verifiquei que não tinham forçado a fechadura da
única gaveta que me interessava. Guardara essa chave no chaveiro
que trazia sempre no bolso, como o meu avô costumava fazer para
preservar a sua obra literária clandestina da curiosidade da mulher,
e usei-a, comprovando que o envelope que o Manolo me dera um
mês e meio antes estava fechado e intacto. Apesar disso, abri-o,
verifiquei com cuidado o conteúdo e acalmei-me. Depois tornei a
guardá-lo na gaveta, a fechá-la à chave e interroguei-me sobre o
que faria. Durante três dias, mantive-me em casa com as persianas
descidas, não acendi nenhuma lâmpada e não fui capaz de
encontrar resposta.
No quarto dia, comecei a fazer uma mala pequena, contudo,
antes de a encher, desisti. Um homem com uma mala parece
sempre um fugitivo, e os fugitivos chamam demasiado a atenção, de
modo que resgatei da parte superior do armário uma maleta de
médico que a minha avó me oferecera quando acabei o curso e que
ainda não tinha usado. Não quis pensar na ironia de a estrear
justamente no primeiro dia da minha vida em que deixaria de ser
médico e meti no fundo os talheres de prata que a Experta não
tivera tempo de vender. Enfiei o documento de identificação de
Rafael Cuesta Sánchez no bolso do casaco onde trazia sempre a
documentação, mas conservei o dinheiro republicano que tinha na
carteira e guardei as divisas num compartimento da pasta. Ali
também foram parar algumas fotografias dos meus pais, dos meus
avós e os documentos que os assaltantes da casa tinham pisado.
Acrescentei duas mudas de roupa e, finalmente, pensei no meu
filho.
Todos os prognósticos do Manolo Arroyo se cumpriram, até a
convicção de ter chegado tarde de mais para me convencer a não
me afeiçoar muito ao menino. Só tinha vivido com ele seis meses e
meio, mas esse tempo sobrava para que nunca me esquecesse de
que existia, de que era meu filho, de que eu era seu pai. Ao iniciar o
seu caminho na nova Espanha, a mãe havia desprezado todas as
provas que testemunhavam a nossa relação. O livro de família, o
registo de nascimento e a fotografia do nosso casamento
continuavam na gaveta onde eu os tinha deixado. Quando decidi
levá-los comigo só estava a pensar no futuro de um menino
chamado Guillermo García Priego, no papel que eu poderia ou não
representar nesse futuro. Naquele momento, não poderia saber que
o meu filho não cresceria com o meu nome nem com o meu apelido,
e menos ainda imaginar que o meu destino, e o de outras pessoas,
dependeria um dia do facto de esses simples, inocentes
documentos estarem em meu poder. Só desejava encontrar o
comboio de madeira que tinha lixado, pintado e consertado, mas
esse, justamente esse, foi o único objeto meu que a Amparo decidiu
levar.
Essa escolha, que garantia que a criança chegaria a recebê-lo e
a brincar com ele, reconfortou-me mais do que o papel amachucado
que encontrei debaixo da cama enquanto o procurava. «Madrid, 28
de março de 1939. Sinto muito, Guillermo», escrevera a Amparo.
«Eu não queria…» A última letra estava deformada. A caneta saltara
sobre o papel, fazendo um borrão, como se alguém tivesse
interrompido a autora antes de ela ter tempo de acabar a frase.
Mesmo que não significasse nada, aquela nota acompanhou, na
minha pasta, os documentos que provavam a relação com a mãe do
meu filho.
Antes de sair, mandei tudo à merda. Depois comi dois pãezinhos
de Franco que continuavam intactos na mesa da cozinha desde que
a Amparo partira, porque estava em jejum havia um dia e meio e
nada mais restava na despensa. O pão estava duro, mas soube-me
muito melhor do que gostaria. Quando terminei, vesti um sobretudo
do meu avô que me ficava largo e curto, muito pior do que aquele
que perdera, agarrei na pasta, dirigi-me para o patamar, atirei com a
porta sem a fechar à chave e tive a sorte de não me cruzar com
ninguém enquanto descia as escadas sem olhar para trás.
Na leitaria da calle Ayala, disseram-me que o rapaz que
costumava levar os nossos recados para a Experta não vinha
trabalhar havia três dias, mas deram-me a morada dele.
Quando voltei a passar pela casa que nunca mais voltaria a ser
minha, vi quatro falangistas parados à entrada. Um deles trazia um
papel escrito à máquina. Mudei de passeio e continuei, sem parar
para averiguar se o meu nome constaria da lista.
MADRID, 12 DE JUNHO DE 1939

Dois minutos depois de entrar naquele gabinete, María Eugenia


León descobriu que a sua elegância inata lhe passara uma rasteira.
– Geni! – Pilar Primo de Rivera levantou-se da cadeira com um
sorriso que se desvaneceu quase de imediato. – Como estás? E em
casa? Todos bem?
– Sim, estão todos muito bem. – Só então, enquanto beijava a
mulher mais poderosa de Espanha, se apercebeu de que tinha
escolhido a cor menos adequada ao objetivo da sua visita.
– Menina, como estás de luto…
– De luto? – María Eugenia olhou para a gardénia de seda cor-
de-rosa que trazia na lapela do casaco, para os sapatos vermelhos
a condizer com a carteira. – Não estou de luto, vesti apenas roupa
preta, Pilar.
– Ah! Bom… Assustei-me. – Porém, a irmã do Ausente não
esperou para lhe oferecer o arremedo de um sorriso astuto e rígido,
demonstrativo de que já sabia por que razão o preto condizia tão
bem com a disposição da outra. – E o Esteban, regressou de Paris?
Senta-te, por favor.
Esteban Maroto era viúvo, tinha trinta e três anos e mais dinheiro
do que o que conseguiria gastar na sua vida, quando os pais de
María Eugenia lhe deram a mão da filha. Ela tinha dezoito anos e
meio, e antes de fazer os vinte teve um filho varão, aos vinte e um,
uma menina, aos vinte e três, outro menino. Esteban, muito
satisfeito com o seu rendimento, que dissipava todas as dúvidas
próprias e alheias sobre a esterilidade do seu primeiro casamento,
não esperou que ela desmamasse o mais novo para lhe explicar
como seriam as coisas daí em diante. Não casámos por amor,
afirmou, e a mulher concordou, mas fomos ambos muito bem-
educados e temos a sorte de nos darmos bem. Portanto, vamos ver
se não estragamos tudo… Aos vinte e três anos, María Eugenia
León voltou a dormir sozinha, a viver sozinha com os filhos na ala
direita de um apartamento enorme da calle Almagro com mais de
quatrocentos metros quadrados, no qual o marido ocupava a ala
esquerda, embora, quando desejava companhia, se instalasse no
último piso, um apartamento que uma criada limpava, que a mulher
não conhecia e do qual só sabia que tinha um terraço espetacular.
María Eugenia só o via ao almoço, desde que ele não tivesse um
encontro de negócios. Mesmo quando ficava a dormir na sua
metade da casa familiar, Esteban preferia jantar sozinho, apesar de
quase todas as semanas levar María Eugenia a alguma festa da alta
sociedade madrilena, onde quase sempre havia alguém interessado
em cortejar-lhe a conta-corrente. Os Primo de Rivera tinham sido
uns apaixonados fiéis, constantes, do dinheiro de Esteban, não por
interesse próprio, diziam, mas pelo de Espanha.
– Não, ainda continua lá. – María Eugenia sentou-se e esforçou-
se por sorrir. – Voltei eu, com as crianças. As empresas francesas
mantêm-no muito ocupado, não sei quando conseguirá voltar.
– Bom, o teu marido prestou um enorme serviço à causa
nacional. – Ao recordá-lo, Pilar Primo exibiu um sorriso verdadeiro,
com a boca toda. – Agora que ganhámos a guerra, bem merece
umas férias.
A 1 de julho de 1936, Esteban Maroto obrigou a mulher a ir com
os filhos para Haro. Ali, os pais dela tinham uma casa de campo
rodeada de vinhedos, perto da empresa familiar, cuja expansão dera
origem ao casamento da sua única filha com um sócio disposto a
investir todo o dinheiro necessário para a colocar à cabeça das
caves de La Rioja. María Eugenia nunca discutia com o marido, mas
perguntou-lhe porque não podiam ir para Pamplona, como todos os
anos. Nascera e crescera nessa cidade. Tinha lá muitos amigos e
uma liberdade quase ilimitada para entrar e sair, enquanto os pais
mimavam os netos. Lá continuava a ser María Eugenia León e não
a senhora Maroto. Em Haro também se sentia livre, mas a sua vida
era mais aborrecida. Esteban sabia disso e nunca havia limitado a
liberdade ou as diversões da mulher, todavia, dessa vez não cedeu,
embora lhe tenha feito em troca uma promessa enigmática. Se tudo
correr bem, este ano vais poder passar muito tempo em Pamplona,
não te preocupes. Ela quis saber porquê, mas o marido não foi mais
explícito. Dias depois, acompanhou-os à estação, ajudou-os a
guardar as malas, deu muitos beijos às crianças e a ela os
necessários. Não se voltaram a ver.
– Claro. E é justamente por isso, porque ninguém pode duvidar
da nossa lealdade à causa nacional, que decidi vir visitar-te.
– Sou toda ouvidos…
Quinze dias depois do golpe de Estado, quando se mudou para a
casa que os pais tinham em Pamplona, María Eugenia León estava
satisfeita com a sua vida. Tinha três filhos bonitos, bons, saudáveis,
uma vida repleta de luxos, todo o tipo de comodidades e o espírito
sereno. Sem nunca ter sido feliz com Esteban, também nunca fora
infeliz e não conhecia o tipo de felicidade de que deveria sentir falta.
Tudo isso mudou de repente numa tarde de agosto de 1936, quando
a sua amiga Pili se levantou da mesa a que tomavam o aperitivo
para cumprimentar dois falangistas fardados que atravessavam a
plaza del Castillo. Um era o seu primo Arturo, que María Eugenia
conhecia desde criança. O outro não era tão alto, nem tão
corpulento como o camarada, mas tinha o cabelo muito escuro, a
pele muito branca, os olhos azuis, da cor do aço, e uns lábios
grossos, vermelhos, que sabiam curvar-se num sorriso difícil de
resistir. Chamava-se Fernando Villa Ruiz, era de Tudela, e
inicialmente Pili não conseguiu acreditar que a amiga não o
conhecesse. Teve de fazer umas contas por alto para concluir que
ela já havia saído de Pamplona para se casar quando a família dele
se instalara na cidade. Aquele cálculo tornou evidente que, no verão
de 1936, Fernando tinha acabado de fazer vinte e cinco anos,
menos quatro anos e meio do que María Eugenia. Não gostou que a
amiga tivesse sido tão indiscreta, mas ele, que se sentou sem pedir
licença na cadeira livre ao seu lado, daquela tarde em diante não se
preocupou com a diferença de idades.
– Venho falar-te de Fernando Villa Ruiz. – Embora não lhe
conviesse que se notasse, María Eugenia sentiu uma doçura
instantânea no palato ao proferir o nome. – Não sei se o conheces.
– Claro que o conheço. – Pilar anuiu com a cabeça, como se
além de o conhecer soubesse tudo o que tinha acontecido, o que
acontecia e o que estava prestes a acontecer. – O camarada mais
bonito de Navarra.
María Eugenia não saberia dizer se era o mais bonito ou não, e
isso também não lhe interessava. A beleza era um pormenor
insignificante para definir o único homem que existia no mundo. Se
Fernando, doce e ácido, cortante e puro, risonho e grave, cândido e
maduro, merecia esse nome, Esteban era apenas uma sombra, um
esboço tosco e mal feito, uma tentativa falhada do modelo que o seu
amante encarnava. A princípio, ela não conseguia acreditar, não
percebia. Não compreendia nada do que lhe estava a acontecer
dentro do corpo, que fora capaz de conceber três filhos sem nunca
ter chegado a ser totalmente um corpo, nem na pele, que só
começou a existir quando os dedos de Fernando a fizeram brotar
das cinzas do couro insensível que a substituíra até então, nem no
coração, que palpitava com uma força torrencial e insuspeitada,
levando tudo pela frente. Foi o seu coração que a arrancou do
comodismo, da serenidade do metrónomo frio, mecânico e exato,
que marcara os dias e as noites do que havia sido apenas um
simulacro de existência, um sucedâneo indesejável da verdadeira
vida que Fernando semeou, cultivou e amadureceu, oferecendo-lhe
uma plenitude com que nem sequer conseguira sonhar. María
Eugenia León sentia que tinha nascido na noite que Fernando Villa
escolheu para a levar a sua casa, para lhe tirar a roupa, para a
abraçar e beijar antes de a possuir com uma emoção festiva que
nunca, jamais, alguém sentira neste mundo. Nesse instante,
Fernando criara-a do nada, porque antes ela não existia.
– Bom… – E o que poderás tu saber, se nem gostas de homens,
filha da puta. – Isso agora pouco importa…
María Eugenia fechou os olhos, cerrou os dentes, desterrou da
cabeça o pensamento que se apoderara dela havia um instante e
recitou a intervenção que tinha escrito previamente, que aprendera
de cor e que ensaiara durante dias, antes de solicitar aquele
encontro a Pilar.
– O Fernando é um falangista íntegro e honrado, sabes disso.
Um verdadeiro camarada, daqueles que se filiaram antes do 18 de
julho, que seria capaz de dar a vida pela memória do José Antonio.
Sei que ele cometeu um erro, mas fê-lo com a melhor das
intenções, por lealdade à figura e à doutrina do teu irmão. Não devia
ter-se oposto ao decreto de Unificação em plena guerra, contudo,
naquele momento, sentiu que estava a fazer o que era melhor para
a Falange, que tinha de lutar para preservar a sua pureza, para
impedir que se dissolvesse nessa união com os monárquicos e com
os requetés, a milícia carlista. Agora sabemos que o Movimento
Nacional fez crescer a figura do José Antonio, mas naquela época
ele via-o como um perigo para a obra dele, para o seu legado e agiu
de boa-fé. Foi tão íntegro e honrado como sempre. Sei disso,
porque nessa altura o via com frequência.
– Eu sei. – Pilar voltou a sorrir dissimuladamente. – Em
Pamplona não se devia falar de outra coisa, porque até eu, que
estava em Salamanca, fiquei a par…
María Eugenia León nunca se tinha interessado por política. Em
Madrid também não sentira simpatia pelos falangistas porque,
embora gostasse de alguns deles, nas reuniões a que ia com
Esteban acabava sempre no grupo das mulheres, uma brigada
marcial de freiras alferes que tentava equilibrar-se numa impossível
corda bamba, oscilando com enorme habilidade entre a
masculinidade e a idiotice, entre o berço aristocrático e a mania de
servir. Com as caras lavadas a água e sabão, as roupas escuras, os
penteados austeros, Pilar e as amigas olhavam com superioridade
para as joias e os vestidos, para a maquilhagem e os penteados
com os quais María Eugenia só tentava ficar bonita e agradar ao
marido, uma sedução que perdoavam de bom grado a algumas das
camaradas, mas nunca a ela. No entanto, na primavera de 1937, ela
amou Fernando também pela paixão dele, pelo fervor que lhe fazia
brilhar os olhos, pelas palavras incendiárias que explodiam nas
reuniões clandestinas às quais o acompanhava, representando um
papel muito diferente daquele que Esteban lhe costumava reservar.
Fernando explicava-lhe o que estava a acontecer, pedia-lhe a sua
opinião, abraçava-a com força quando lhe dava razão. Solicitou-lhe
que o acompanhasse a Salamanca, onde se iria encontrar com
Manuel Hedilla, e ela não hesitou. Quando o detiveram estavam
juntos. Tentou que a detivessem com ele, mas os polícias não a
levaram a sério. Desde então, não fizera outra coisa senão lutar por
Fernando, peregrinar de cadeia em cadeia, recorrer a todos os seus
conhecidos, pressionar todos os seus amigos, bater a todas as
portas, pedir, implorar, mendigar a ajuda que ninguém lhe quis
prestar.
– Posso? – María Eugenia identificou aquela voz ao mesmo
tempo que Pilar.
– Entra, Clarita.
– Queria mostrar-te… – A recém-chegada parou de súbito ao vê-
la. – Geni! Como estás?
– Muito bem – Voltou ela a mentir, beijando novamente a cara de
uma mulher de quem não gostava, enfrentando novamente a
expressão de alarme fingido nos olhos arregalados de Clara quando
esta a examinou.
– E o Esteban? Não aconteceu nada, pois não? Como estás de
luto…
– Não estou de luto. Trouxe apenas um vestido preto.
– Bom, enfim… – Clarita Stauffer, muito mais engenhosa,
engraçada e desenvolta do que Pilar, atreveu-se a ir mais longe do
que a chefe, demonstrando que no esplendor glorioso da Vitória,
nem sequer o dinheiro de Esteban, que tanto tinham adulado e
perseguido no passado, tinha já qualquer importância. – O teu
marido podia ter morrido de um enfartamento de foie.
Pilar por pouco não se engasgou de riso ao ouvir aquele
comentário e não voltou a sentar-se. De pé, ao lado de Clarita,
dirigiu a María Eugenia um olhar ainda divertido antes de a convidar
a sair.
– A Geni já se ia embora. Queria informar-se sobre o Fernando
Villa, sabes… – A menina Stauffer assentiu porque também ela
estava a par. – Mas não podemos fazer nada por ele. Como dizia o
Manuel Hedilla, um grande amigo dele, muito a propósito, na
Falange os erros pagam-se.
– Não – corrigiu-a a amiga, suavemente –, o que o Manolo dizia
é que na Falange as rebeliões se castigam.
– Bom – sentenciou Pilar –, é o mesmo.
María Eugenia León levantou-se da cadeira e saiu daquele
gabinete sem dizer nada, fechando a porta cuidadosamente atrás de
si. Ao sair do edifício onde queimara em vão o seu último cartucho,
sentiu que o mundo se afundava debaixo dos pés, mas isso não
acontecia. Em casa, tentou escrever uma carta para Fernando e não
foi capaz. Amava-o tanto que proibiu a si própria o consolo da
autocomiseração, ainda assim sabia muito bem o que a esperava.
A 15 de julho, Esteban regressou finalmente de Paris. Foi mais
carinhoso do que o costume e não lhe perguntou porque estava
sozinha em Madrid e não em casa dos pais, com as crianças,
embora lhe tenha pedido que o acompanhasse a Pamplona no dia
seguinte porque queria muito vê-los. Era uma maneira de a informar
de que a festa acabara, mas também uma garantia de que não a ia
censurar. Ela ficou mais grata àquela elegância do que a qualquer
outra oferta e não foi capaz de se opor à viagem. A cadeia de
Alicante ficava demasiado longe de Navarra para que María
Eugenia tentasse visitar Fernando. Quando regressou a Madrid, já o
haviam transferido para o destacamento penal de Formentera.
Contudo, ali não durou muito. No inverno de 1941, morreu de
uma pneumonia, fruto da fome, dos trabalhos forçados, da
insalubridade do campo onde vivia. Tinha trinta anos. O pai
reclamou o corpo para o enterrar no jazigo familiar em Tudela, mas
as autoridades comunicaram-lhe que já o haviam enterrado na ilha.
A amante nunca pôde levar flores à sua campa.
Enquanto María Eugenia regressava à morte em vida da calle
Almagro, às festas e receções onde eram agora os generais, e não
os falangistas, a cortejar Esteban e o seu dinheiro, e o seu corpo
deixava de ser um corpo, a sua pele recuperava a condição de
couro, e o seu coração se fechava por vontade própria na caixa de
madeira de um metrónomo, só uma ideia lhe manteve estável a
temperatura do sangue e a cabeça clara.
María Eugenia León vivia à espera de uma oportunidade para se
vingar.
II

Processos infecciosos
ANTUÉRPIA, 20 DE SETEMBRO DE 1941

O oficial encarregado do recrutamento deu-lhe as boas-vindas


com um sorriso.
– Nome?
– Jan Schmitt de Wandaleer.
Para ele, era importante alistar-se com o nome completo, porque
essas quatro palavras o definiam completamente. Chamava-se Jan
porque a mãe reservara para si o direito de escolher o nome do seu
primogénito. Apelidava-se Schmitt porque o pai era alemão. E não
se reconhecia sem o apelido materno porque sempre usara os dois
depois do nome.
– Leva hífen? – perguntou-lhe o tenente com uma expressão de
estranheza.
– Não. Schmitt era o apelido do meu pai. De Wandaleer é o da
minha mãe.
Marijke de Wandaleer nascera num quarto pequeno e interior do
bairro portenho de La Boca. Os pais, que já a esperavam quando
entraram no barco que partira de Antuérpia em 1891, só
encontraram lugar num apartamento onde viviam outras duas
famílias, ambas italianas, católicas, ruidosas e cheias de filhos.
Fartos das canções das mulheres, dos gritos dos homens, do choro
das crianças e do odor permanente a tomate frito que impregnava
todos os recantos da casa, os De Wandaleer, protestantes,
puritanos, austeros e muito sérios, mudaram-se mal puderam para
um pátio de vizinhos do bairro de San Telmo. Ali pelo menos
dispunham de casa própria, embora continuassem a partilhar o pátio
com imigrantes italianos e, como se isso não bastasse, com
espanhóis não menos católicos, nem cantores, nem prolíficos, nem
ruidosos. Naquele caos da calle Defensa cresceu Marijke, a mais
velha dos três filhos, uma menina pálida, de cabelo arruivado, que
estava sempre sozinha porque os pais não gostavam que ela
brincasse com os meninos meridionais, morenos e descalços, que
gritavam, corriam, dançavam e brigavam a toda a hora no pátio de
casa. Quando a filha já sabia de cor O sole mio e Asturias, patria
querida, canções que nunca se atreveria a cantar em voz alta, Peter
de Wandaleer prosperara o suficiente para alugar um apartamento
de três assoalhadas na calle Perú, com um pé em San Telmo e
outro no reconfortante bairro Centro, não muito longe da plaza de
Mayo. O armazém de exportação de grãos, que abrira com outros
três sócios, dois alemães e um belga de Lovaina, já dava para isso
e daria para muito mais, acabando por se transformar numa
referência fundamental para os imigrantes chegados a Buenos
Aires, vindos do Norte e do Centro da Europa.
– O teu pai é alemão? – O oficial, que conhecia Jan de vista
porque militavam ambos no mesmo partido, a União Nacional
Flamenga, tentou encontrar uma explicação para o capricho que o
obrigaria a manuscrever um apelido na ficha daquele recruta.
– Era alemão. Morreu há sete anos, mas não é por isso que uso
dois apelidos. Eu nasci em Buenos Aires e lá sempre me chamei
Schmitt de Wandaleer. – Ao dizê-lo, endireitou os ombros e levantou
o queixo como quem se põe em sentido. – Sou igualmente alemão e
flamengo. Estou filiado na Juventude Hitleriana e podia alistar-me
em qualquer outra divisão das SS, mas escolhi a Legião Flamenga
porque me sinto orgulhoso das minhas duas estirpes.
– Evidentemente. – O oficial olhou para aquele jovem magro, de
cabelo arruivado, rosto redondo, imberbe e cheio de sardas, que lhe
dariam um ar ainda infantil se um brilho de fanatismo não lhe
incendiasse os olhos, e envergonhou-se de lhe ter feito tantas
perguntas. – Não há problema.
Klaus Schmitt escapara por milagre à Grande Guerra que lhe
tinha destroçado a família. Filho mais novo de um próspero joalheiro
de Hamburgo, que morreu em 1913 sem ter conseguido iniciar o
filho no ramo, aos vinte e quatro anos decidiu emigrar quando o
irmão mais velho, Johann, se encarregou do negócio familiar e se
recusou a dar-lhe a sua parte da herança sob pretexto de que a
empresa precisava de investimentos constantes para se manter à
tona. Klaus, o menino mimado da casa, que sempre recebera mais
e rendera bastante menos do que os outros, dava-se muito mal com
Johann e não quis aceitar a oferta de começar como aprendiz e ir
subindo pouco a pouco, como Martin, que já era chefe de oficina. O
gémeo de Martin, Josef, livrara-se da joalharia estudando Direito.
Klaus abandonara a escola antes do tempo e não tinha ofício nem
vontade de aprender, contudo, dispunha de capital próprio, um
tesouro congénito e gratuito que já o livrara de outros apuros.
Quando desembarcou em Buenos Aires, alto, bem-parecido,
corpulento, com o cabelo muito louro e os olhos tão azuis que
qualquer rapariga portenha imaginava num alemão, trazia no bolso
a direção da Exportadora Europeia de Grãos e Sementes. A
secretária que o recebeu, uma rapariga atiradiça e alegre, chamava-
se Helga. Era filha de um dos sócios alemães e Klaus namoriscou
com ela durante alguns meses, no entanto, decidido a obter a
máxima rentabilidade da sua beleza, acabou por escolher a pálida e
delicada Marijke, que não era muito atraente e, justamente por isso,
o recompensou com uma entrega incondicional e a devoção canina
de uma esposa que nunca teve outra ambição que não a de lhe
tornar a vida agradável.
– Nesse caso… – Quando o oficial acabou de anotar à mão o
nome completo, pôs-se a pensar e olhou para Jan. – Falas alemão.
E espanhol, claro.
– Perfeitamente. Também falo alguma coisa de italiano, como
todos os argentinos. – Finalmente, o recruta sorriu. – Nunca o
estudei, mas consigo desenrascar-me.
Martin Schmitt morreu em Verdun poucos dias depois de Jan
fazer seis meses. Marijke voltou imediatamente a engravidar e,
quando Klaus honrou a memória do irmão morto dando o seu nome
ao segundo filho varão, o gémeo de Martin, Josef, vivia numa
cadeira de rodas. Johann livrou-se de ir para a frente, mas a derrota
alemã arruinou-o. Em 1921, quando a sobrinha Josefine tinha três
anos, foi obrigado a fechar a oficina e a loja porque não conseguia
pagar os juros que lhe exigiam os dois prestamistas judeus a quem
havia recorrido para liquidar os créditos que tinha contraído
anteriormente em diversos bancos. Valer-se daqueles empréstimos
privados com juros elevadíssimos tinha sido um suicídio. Johann
deveria ter vendido a empresa para pagar as dívidas e recomeçado,
mas nem ele nem o irmão mais novo pensaram, por um instante que
fosse, que os culpados da ruína haviam sido os seus próprios erros
e não os judeus que acabaram por ficar com o negócio por
incumprimento. O primogénito dos Schmitt enforcou-se dois meses
depois de perder tudo e Klaus não teve mais filhos. Os três que já
haviam nascido cresceram a ouvir os lamentos do pai, a amargura
com que se perguntava a toda a hora para que teria morrido Martin,
para que teria Josef perdido as pernas, para que se suicidara
Johann, e a fúria com que respondia a si próprio que a sua desgraça
só tinha servido para enriquecer os judeus. Os três ouviram-no
muitas vezes, os três aprenderam de cor as palavras, mas só Jan
herdou as dívidas de Klaus Schmitt. Só nele prosperou o ódio do
pai.
– Ena! Com que então és poliglota… – O oficial girou o carreto
da máquina de escrever para avançar até à alínea de observações.
– Vou incluir isso na tua ficha porque não temos muitos como tu por
aqui.
– Bom, o que eu quero é ir lutar para a frente russa – objetou
Jan. – Não sei de que me servirão os idiomas lá.
Quando Adolf Hitler chegou ao poder, Klaus Schmitt
rejuvenesceu como se tivesse bebido uma poção milagrosa. O rosto
recordou-se de que era belo, o corpo recuperou o garbo e o espírito,
o orgulho perdido. Ainda era um homem novo, todavia, em março de
1933 confessou ao filho mais velho que, nos anos que lhe restavam,
não aspirava a outra alegria semelhante: já podia morrer tranquilo.
Ao ouvi-lo, Jan desatou a rir. Vais morrer como, justamente agora
que vamos regressar à Alemanha? Esse era o anseio secreto que
ambos partilhavam, mas Klaus não teve tempo de o cumprir. Contra
todas as expectativas, morreu em 1935, aos quarenta e seis anos,
de uma doença cardíaca que ele próprio desconhecia e que o
fulminou uma manhã, à porta do armazém. Jan chorou-o mais do
que os irmãos, embora menos do que Marijke, que durante meses a
fio se comportou como se o mundo tivesse morrido com Klaus e
estivesse enterrado na mesma campa. No entanto, em 1936,
começou a prestar atenção ao filho mais velho. Tinha muito dinheiro,
estava triste, cansada, os sócios do marido haviam-lhe feito uma
oferta muito generosa para comprar a sua parte do negócio e em
Buenos Aires tudo lhe recordava a viuvez. Por isso se deixou
convencer por Jan, mas não de todo. Sem se lembrar de que
nascera em La Boca, informou que estava disposta a voltar para a
Europa, não para a Alemanha, país onde não tinha amigos nem
família, e sim para a Flandres, onde o irmão Geert vivia há anos.
Jan protestou, invocou a memória do pai, mas depressa se
conformou, porque Antuérpia, pensou, ficava muito mais perto dos
primos de Hamburgo do que de Buenos Aires. No entanto, e contra
tudo o que achava natural, sensato e razoável, os irmãos não
aceitaram facilmente aquela viagem.
– Isso nunca se sabe. Eu tenho a obrigação de anotar na ficha
qualquer habilidade especial dos soldados. Quando chegares à
frente, o comando decidirá o que fazer contigo.
– Mas vou para a Rússia, não vou? – O oficial assentiu com a
cabeça. – Julgo que nos vão enviar para a frente de Leninegrado. –
O outro tornou a assentir.
Jan Schmitt de Wandaleer estava muito orgulhoso das suas duas
estirpes, ainda assim sentia que a genética não tinha sido justa com
ele. Não se considerava baixo, embora a sua estatura só
ultrapassasse a média em dois ou três centímetros, e tinha os olhos
muito azuis, mas tudo o resto era uma réplica quase fiel do seu avô
Peter, pai da mãe. O cabelo cor de cenoura e as sardas do mesmo
tom davam-lhe um aspeto ligeiramente alaranjado à brancura da
pele, diferente do rosto de porcelana, do esplendor branco e corado
que Martin herdara de Klaus Schmitt. Jan invejava a perfeição
genuinamente ariana do rosto e do corpo do irmão, que aos vinte
anos não se distinguia dos retratos juvenis do pai. E, no entanto,
Martin, que já na escola começara a acentuar o i do seu nome, que
montara um grelhador no jardim, que chamava pebetas12 às
raparigas e saía de noite com a camisa aberta, sem gravata, para
dançar tango com mulheres desconhecidas, mais velhas, em locais
escuros, em ruas que a mãe nunca pisara, desatou a rir quando Jan
lhe disse que iam viver para a Bélgica. Che, deixa-me em paz, não
me apalpes os tomates, pelotudo13… Josefine, que acabara de
fazer dezoito anos, não teve outro remédio senão acompanhá-los,
porém não lhes dirigiu a palavra durante toda a travessia, que
passou fechada no camarote, ouvindo discos de Gardel e chorando
ao mesmo tempo pelo seu destino e pela morte do cantor favorito.
– Isto já está. – O oficial tirou o formulário da máquina de
escrever, assinou-o, carimbou-o, ficou com o original e entregou a
cópia a Jan. – Já és um soldado da Legião Flamenga, e com todos
os apelidos. Parabéns.
– Obrigado. – O recruta perfilou-se, fez a saudação fascista e
lembrou-se de Klaus. – O meu pai teria adorado estar aqui hoje,
comigo.
Marijke, pelo contrário, não achou graça nenhuma. Jan era o seu
consolo, a única companhia depois do abandono de Josefine, que
mal pôs um pé em Antuérpia voltou a falar, mas só para se queixar
do frio, da humidade, da escuridão, do tamanho das ruas, da
escassez de teatros e do tédio de uma cidade que, pelo contrário,
compensou largamente a paixão do único Schmitt de Wandaleer
que nunca se tinha sentido portenho. Em maio de 1936, quando
vivia na Europa há cerca de vinte dias, a União Nacional Flamenga,
ultranacionalista e pró-nazi, obteve dezasseis lugares nas eleições
gerais, sendo que o Partido Rex, o ramo valão e ainda mais forte do
mesmo movimento, conseguiu vinte e um. Foi um resultado
esmagador para os dois partidos recém-nascidos, uma promessa de
glórias vindouras e o sinal por que Jan esperava para se sentir em
casa. Depressa compreendeu que a Antuérpia era um lugar tão bom
como qualquer outro para lutar por uma Europa unida sob a
autoridade do Führer e descartou a ideia de se mudar para
Hamburgo. Em 1939, a irmã aproveitou o fervor dele para fugir,
deixando um bilhete escrito em espanhol: «Não te preocupes
comigo, velha, que vou ficar muito bem. O Martín cuidará de mim.
Amo-vos muito, mas não consigo viver aí. Josefina.» Quando o leu,
Jan ficou furioso, no entanto a mãe proibiu-o de recorrer à polícia.
Preferia a distância ao ódio de dois dos seus filhos.
– Já está, mãe, já sou um soldado da Europa. – Regressado a
casa, abraçou Marijke, beijou-a muitas vezes, sorriu. – O papá
ficaria muito orgulhoso de mim. Diz-me que estás orgulhosa tu
também.
Marijke olhou para Jan, devolveu-lhe o abraço, os beijos, e nada
disse. Receava pelo destino do seu primogénito, mas o que lhe via
nos olhos inspirava-lhe um temor mais profundo.
Nesse momento, começou a interrogar-se porque lhe ocorrera
sair de Buenos Aires, a cidade onde tinha nascido e crescido, onde
se tinha casado e fora feliz.
A resposta, tão simples, foi comprar uma passagem em primeira
classe no primeiro transatlântico que zarpou de Antuérpia rumo ao
Rio da Prata, de onde nunca mais voltou.

12
Pebetas: raparigas. (N. da T.)
13
Pelotudo: tonto, estúpido. (N. da T.)
PALÁCIO DE POKROVSKAYA, FRENTE DE LENINEGRADO, NOITE DE NATAL DE
1942

Às quatro da tarde, Adrián Gallardo Ortega fechou-se no antigo


toucador da czarina, o vestiário que lhe atribuíram no palácio onde a
Divisão Azul havia instalado o quartel-general.
Estava sozinho. O capitão Junquera e o tenente Gutiérrez, o
mais parecido com uma equipa que conseguira reunir na Rússia,
tinham ido ao gabinete do coronel a fim de tentarem acalmar o
padre Arribas. O capelão da brigada tinha levado as mãos à cabeça
mal soubera que nessa noite, mesmo antes da ceia de Natal, a
tropa iria desfrutar do espetáculo muito pouco natalício de um
combate de boxe. Mastigando lentamente um dos dois polvorones
do pacote que a Secção Feminina havia enviado para cada
divisionário como presente de Natal, Adrián só desejava que o
padre levasse a sua avante.
Bilbau estava muito longe. Os cartazes que anunciaram aquele
combate em todos os quartéis de Biscaia, a barcaça engalanada, os
generais sentados na primeira fila, as lágrimas de orgulho nos olhos
do avô, pareciam cenas de uma vida inventada, tão falsa como um
combate combinado, entre aquelas paredes forradas de seda
púrpura que brilhavam como a pele das cerejas coberta, não de
açúcar, mas de gelo. O aquecedor que um furriel havia instalado
algumas horas antes ardia como uma caldeira de Satanás, mas só
conseguia aquecer um canto do quarto. Ali, sentado num banco,
Adrián saboreava devagar a doçura das amêndoas e do mel, um
sabor incapaz de compensar a amargura do seu espírito.
As coisas haviam corrido tão mal como se a condição da vitória
de Franco tivesse sido a derrota do Tigre de Treviño. Desde os dias
risonhos que se seguiram ao seu triunfo, a semente do fracasso,
minúscula e traiçoeira, espreitava-lhe cada um dos movimentos.
Espiou-o na primavera de 1938, emboscada entre os aplausos e as
lisonjas, em Bilbau, cidade onde o campeão do Exército Nacional
não podia entrar em nenhum restaurante sem que os comensais se
levantassem para gritar o seu nome. Partilhou com ele, no verão da
Vitória, a receção faustosa que a sua povoação lhe ofereceu, com o
apeadeiro de La Puebla de Arganzón a abarrotar de gente, a banda
municipal a tocar o hino franquista, o alcaide à sua espera com
todos os vereadores. Porém, só estreitou o cerco no inverno
seguinte, numa cidade de Madrid que entrou em 1940 sem nunca
ter ouvido falar do jovem Garrote e na qual o capitão Ochoa tinha
voltado a ser simplesmente don Antonio, num edifício sumptuoso da
calle Velázquez, cujo porteiro o obrigou a subir pela escada de
serviço.
– Que surpresa, rapaz! Que fazes por aqui?
Depois ofereceu-lhe um café, apresentou-lhe a mulher, avisou-o
de que tinha de sair dentro de dez minutos e arqueou as
sobrancelhas pela primeira vez.
– A propósito, como conseguiste a minha morada?
– Deram-ma no Ministério do Exército – respondeu o antigo
protegido com algum receio. – Não queriam, mas encontrei no
corredor um alferes que esteve no combate de Bilbau, me
reconheceu e…
– Claro, homem. – Ochoa sossegou. – Ficaste muito famoso.
Divertimo-nos, não achas?
– Sim. Foi por isso que vim. Na minha terra não tenho nada que
fazer, sabe? A minha família tem uma boa situação, mas o meu pai
chega e sobra para gerir as propriedades e eu não sou adepto do
campo, meu capitão. Quero ser pugilista. Tenho algumas poupanças
e se o senhor me desse uma mão…
Ochoa franziu novamente o sobrolho, abriu a boca, voltou a
fechá-la. Adrián nunca devera nada à inteligência, ainda assim, a
que tinha bastou-lhe para adivinhar que o anfitrião esteve prestes a
mencionar um golpe baixo, aquela batota que ele só recordava
enquanto imagem duvidosa, tal o esforço para a esquecer. No
entanto, o sobrolho do seu treinador depressa se alisou, o sorriso
regressou-lhe aos lábios e, com ele, a paz de espírito de Adrián.
– Está bem, claro, verei o que posso fazer… – Porque don
Antonio se lembrou a tempo de que as formigas já lhe haviam
conquistado o braço esquerdo e às vezes enviavam um
destacamento que lhe chegava a meio das costas. – Um pouco de
diversão não me faria mal. A primeira coisa a fazer é encontrar um
bom ginásio. Farei alguns telefonemas para ver o que
descobrimos…
O Ginástica Ferroviária não era só um bom ginásio. Aquela cave
da calle Barbieri, onde pugilistas profissionais e amadores
treinavam, era o melhor ginásio de Madrid e o cenário onde Gallardo
e Ochoa reviveram os bons tempos de Portugalete durante uma
longa temporada, embora desta vez don Antonio não tenha chegado
a entrar no ringue. Escolheu-lhe um treinador com prestígio e
experiência, um antigo legionário de aspeto tão sinistro que se podia
dar ao luxo de ter uma alcunha infantil, na certeza de que ninguém
se atreveria a gozar.
Juan Manuel Suárez, mais conhecido como Pirulo, estava à beira
dos quarenta anos, combatera como profissional antes da guerra e,
em novembro de 1939, havia calçado as luvas com Max Schmeling,
campeão do mundo de pesos-pesados que viera a Madrid com a
mulher, a atriz Anny Ondra, numa digressão de propaganda
organizada pela embaixada nazi. Quando o alemão visitou o
Ginástica Ferroviária, Pirulo havia posado com ele para os
fotógrafos e, mesmo não tendo havido um combate real, guardava
aquela lembrança como uma das mais preciosas da sua vida. Trazia
sempre consigo, na carteira, as fotografias que o provavam: ele e
Schmeling de calções e luvas, a ameaçarem-se mutuamente,
fingindo lutar, e posando depois abraçados, muito sorridentes.
– Que tipo! – recordava, tirando as fotografias com muito
cuidado, uma por uma, dos seus invólucros de papel de seda. – Que
força, que potência, que inteligência! Um cavalheiro, e a mulher…
loura, branca, com um corpo espetacular e dois olhos azuis que não
lhe cabiam na cara. Uma sereia, ouve o que te digo, uma princesa.
O que o Max merece, nem mais, nem menos.
Quando Pirulo o aceitou como aluno, Adrián percorreu o Rastro
todos os domingos até encontrar um cromo com o retrato de
Schmeling, colorido à mão. A princípio, duvidou de que o pugilista
daquela fotografia fosse o ídolo do seu treinador porque estava à
espera de um homem louro, de olhos claros e deparou com um
moreno de olhos escuros, mas no verso identificavam-no como
Campeão Mundial de Pesos-Pesados em 1930. O dono do cromo
pediu-lhe um preço exorbitante por ele, e Adrián, que não sabia
regatear, nem sabia que o vendedor esperava que o fizesse, pagou
sem reclamar, voltou para a pensão a correr e colocou-o sob uma
trave da cabeceira da cama. Max Schmeling velou pelos sonhos do
Tigre de Treviño durante os dois anos em que este viveu em Madrid,
mas não conseguiu fazer dele um campeão.
– Muito bem, rapaz, muito bem! Dá-lhe aí, dá-lhe… – Pirulo
também não. – Isso não, homem, que é que te tenho dito? Mexe
esses pés, porra!
Adrián fazia tudo o que o treinador lhe ordenava. Levantava-se
de madrugada, comia o que devia, ia correr, depois ao ginásio, fazia
uma sesta, voltava ao ginásio, jantava como um passarinho e metia-
se na cama às nove em ponto. Não cedeu à tentação de mais uma
caloria, nem de menos um metro, nem sequer quando Pirulo decidiu
mudá-lo de categoria, não tanto para tirar o máximo partido da sua
força, mas para minimizar os efeitos da sua falta de agilidade.
Passar dos meio-pesados para os pesados representou um esforço
adicional e uma mudança acelerada de todas as regras, no entanto,
Gallardo cumpriu-as à risca, granjeando a admiração de alguns dos
companheiros de ginásio e a troça da maior parte deles.
– Mas o que é que julgas? Que isto é um Seminário?
Adrián encaixava tão bem as piadas como os golpes e não
vacilava. Também não se afastou um milímetro do seu programa até
ter conseguido o título de campeão provincial de pesos-pesados no
circo Price, em meados de maio de 1940, com don Antonio Ochoa e
os amigos a aplaudirem na primeira fila.
– Vamos lá ver, Adrián – insistira Pirulo. – Tu és um animal, uma
máquina, entendido? Nenhum dos teus adversários é tão forte como
tu, portanto, não percas tempo a pensar. Tu sais, vais direito a eles
e deita-los ao chão no primeiro assalto, sem mais conversas. Está
claro?
Adrián não desconfiou dos conselhos do treinador, que já
descobrira que ele não chegaria muito longe se pensasse. Foi-lhe
muito fácil derrubar o campeão anterior no segundo minuto e,
quando o árbitro lhe levantou o braço direito, deu-se conta de que
aquele combate não estava combinado. Talvez por isso a vitória de
Madrid lhe tenha sabido melhor do que a de Bilbau, embora desta
vez só tivesse dado duas entrevistas e ninguém o houvesse
reconhecido ou aplaudido na rua. Pirulo felicitou-o quanto baste,
mas aconselhou-o a comer antes de o mandar para a aldeia de
férias de verão.
– Hoje come tudo o que quiseres, Tigre, mereceste. Podes
descansar uns dias, mas sem abusar, hã? Apontei aqui – explicou,
entregando-lhe uma pasta por cima da mesa – o que tens de fazer:
dieta, exercício, corda, corrida, tudo… A 25 de agosto quero-te em
Madrid e em forma para preparar o Campeonato de Castela, porque
esse título não nos pode escapar. Na tua aldeia não haverá um
ginásio?
– Não, senhor. Acho que o mais próximo fica em Miranda do
Ebro, mas são treze quilómetros.
– Bom, se os fizeres a correr… – Quando Adrián estava prestes
a perguntar-lhe se devia correr só na ida ou também na volta, o
outro sorriu. – Era uma piada, Gallardo.
Nesse almoço, o campeão de Madrid quase não provou vinho,
porém, o treinador embebedou-se porque também ele tinha vencido.
Por isso, depois da sobremesa, atreveu-se a fazer-lhe uma pergunta
que não lhe saía da cabeça desde que Ochoa lho apresentara.
– E agora que estamos só nós… Diz-me uma coisa, Tigre. –
Inclinou-se, olhando para os olhos límpidos, inocentes, de um bom
rapaz de vinte e três anos que parecia não se ter despedido ainda
da adolescência. – É verdade que derrubaste o Navarro em Bilbau?
– Adrián limitou-se a assentir e Pirulo foi um pouco mais longe. –
Não te ofendas, mas… Foi um golpe limpo ou…?
– Derrubei-o – respondeu Gallardo com voz firme, ainda que
evitando os olhos do treinador. – No quinto assalto. O porto de
Bilbau estava cheio de gente, pergunte a quem quiser.
– Está bem, está bem. Não, se… – Pirulo esfregou a testa com
uma mão, procurou uma saída, não a encontrou, encheu de novo o
copo. – Não te ofendas, Adrián, não tinha intenção… – E esvaziou-o
antes de continuar a falar. – Fico contente que o tenhas derrubado.
Conheço o Navarro desde antes da guerra. É um bom pugilista, mas
um tipo reles, um menino de boas famílias arrevesado e filho da
puta. É isso que o move quando sobe ao ringue, os maus fígados,
mas não é preciso ser mau para se chegar a campeão. O Schmeling
é muito boa pessoa, como tu.
O último copo em que procurou consolo para o seu atrevimento
embebedou definitivamente o antigo legionário, que desatou a falar
sem muita consciência das consequências do que estava a dizer.
– Sei disso porque quando ele veio ao ginásio com a mulher…
Ela é muito bonita, já sabes, e a questão… – Levantou a mão,
chamou um empregado, pediu-lhe um copo de conhaque com a voz
entaramelada pelo álcool. – Nunca contei isto a ninguém, rapaz.
Adrián não prestou muita atenção àquela história. Enquanto a
ouvia, rígido na cadeira, com as mãos escondidas sob a toalha para
ocultar os punhos fechados e as unhas cravadas nas palmas, só
pensava em Alfonso Navarro, no seu cabelo esticado, nos seus
dentes alvos, no tom agudo com que o tinha chamado saloio de
merda.
Havia muito tempo que esperava por ele. Pressentia que aquela
história não acabara, que Navarro voltaria um dia para lhe cobrar a
dívida. Ochoa não tinha dado importância, calma, homem, esse já
não voltas a ver, e durante algumas semanas, enquanto o sucesso
parecia sólido como uma maçã que se come à dentada, conseguiu
acreditar que assim seria. Porém, aquela luz apagou-se muito
depressa e depois da guerra, a sós com as pequenas rotinas do
quotidiano, Adrián começou a pensar em Navarro, a recear e a
desejar o seu regresso. Fora por ele que havia decidido continuar a
lutar, fora por ele que se tornara profissional, sem saber se
procurava redimir-se com um combate limpo ou conquistar uma
serenidade definitiva, mas nunca teria imaginado que ele
ressuscitasse pela voz de Pirulo, o seu treinador, o seu apoio, o
homem que tinha como obrigação estar sempre do seu lado.
Sentindo que Navarro acabara de se sentar àquela mesa, ao seu
lado, Adrián não deu valor à prova de confiança que estava a
receber, no entanto a sombra de Navarro não o impediu de ficar a
saber que Max Schmeling tinha visitado o Ginástica Ferroviária
entre um enxame de uniformes das SS, como se, mais do que um
símbolo da superioridade da raça ariana, fosse um indivíduo
perigoso ou um preso submetido a vigilância.
– Com os nazis vieram também alguns polícias espanhóis da
esquadra aqui do lado e, como dois deles vêm ao ginásio treinar,
uma tarde trouxe o assunto à baila. Ficaram ambos brancos ao
mesmo tempo e nenhum dos dois disse uma palavra. No entanto, à
saída, o que é mais meu amigo contou-me…
Olhou para a esquerda, para a direita, inclinou-se sobre a mesa
enquanto Adrián esperava que ele terminasse de uma vez, que
acabasse de contar aquela história absurda naquele restaurante
onde os homens sentados a todas as mesas tinham já a cara de
Alfonso Navarro. Porém, Pirulo sentia vontade de falar e o discípulo
não se atreveu a impedi-lo.
– A Anny é judia, consegues acreditar? Uma judia polaca,
embora tenha triunfado como estrela de cinema na Alemanha. Por
isso é que os vigiavam tanto. O Max conseguiu mandá-la para os
Estados Unidos juntamente com o treinador, que também era judeu,
quando os nazis enlouqueceram naquela noite em que se puseram
a partir montras e a incendiar metade das lojas da Alemanha. Não
sei o que acontece àqueles tontos com os judeus, agora a sério.
Não digo que não façam coisas bem, mas aquilo… Não percebo. A
questão é que o Max lhes disse que ou deixavam a mulher voltar
para a Alemanha e viver com ele, ou ficavam sem campeão do
mundo. Estava disposto a partir para a América e a continuar a lutar
como norte-americano, e disse-o, vê lá os tomates do gajo, fico com
pele de galinha só de imaginar. Portanto, não é preciso ser-se um
filho da puta para se chegar a campeão. Pode ser-se uma excelente
pessoa, proteger os outros, arriscar-se por eles, e chegar ao topo.
Nunca te esqueças disso, rapaz.
Adrián Gallardo Ortega não chegou a esquecer aquela história,
contudo, relegou-a para um canto poeirento da memória no instante
em que conseguiu levantar-se da mesa e sair do restaurante, para
respirar ar puro. No dia seguinte, no comboio que o levava até
Miranda, a única coisa que o inquietava era não ter uma fotografia
de Navarro nem forma de a obter. Chegado a La Puebla,
desobedeceu ao treinador pela primeira vez.
– Onde posso desencantar um ginásio, pai?
Pirulo tinha-o mandado descansar até ao dia 1 de julho, mas,
antes de entrar em casa para beijar a mãe, Adrián foi dar uma vista
de olhos ao celeiro velho, abandonado e cheio de tralha. Demorou
uma semana a esvaziá-lo, a arejá-lo e a acabar com a palha,
deixando à vista o chão de cimento. Depois, foi ter com o ferreiro da
aldeia para lhe encomendar uns espaldares, um banco de
abdominais e um sistema para prender o saco ao teto. Foi preciso
reforçar o telhado com duas vigas de ferro, mas os Garrote não
olharam a gastos porque Adrián já lhes falara de Juan Manuel
Suárez e da sua grande amizade com Schmeling, e já agora com
Jack Dempsey, que o treinador nunca vira, mas que todos
conheciam muito melhor.
Quando o gancho do teto ficou pronto, pendurou o saco que
havia feito. Numa loja de cabedais de Vitória, comprou a bom preço
mais de uma centena de retalhos de couro que uniu com a máquina
de costura da mãe. Dentro dessa bolsa, metera meia dúzia de sacos
de serapilheira cheios de areia do rio. O resultado foi espetacular,
porque o jovem Garrote tinha muito mais talento para desenhar e
confecionar objetos do que para chegar a campeão do mundo de
pesos-pesados. Todos os habitantes de La Puebla desfilaram pelo
celeiro, admirando-lhe a obra, e algumas jovenzinhas começaram a
frequentá-lo durante a tarde a fim de o verem lutar contra a sua
sombra e um saco que para ele sempre foi a encarnação de Alfonso
Navarro López.
– Olha que a Rosario é muito boa rapariga. – Dona María foi a
única que compreendeu que na cabeça do filho alguma coisa estava
a deixar de funcionar como devia. – Lembra-te de como gostavas
dela há uns anos.
– Deixe-me, mãe, que agora não estou para pensar em
namoradas.
– Se na tua idade não estás, não sei quando estarás…
De cada vez que a mãe lhe falava de raparigas, Adrián desviava
os olhos porque na sua confusão, no fumo avermelhado que lhe
enevoava o raciocínio, pressentia que ela estava certa. Continuava
a gostar de Rosario, porém não conseguia pensar nela, não
conseguia pensar em nada desde que Pirulo lhe tinha feito aquela
maldita pergunta. Na última noite que passou em Madrid, sonhou
com Navarro e o sevilhano nunca mais deixou de o torturar em
sonhos, nem sequer quando começou a vê-lo também de dia, na
pele do saco, nas ruas da aldeia, às vezes escondido entre as
árvores, outras desenhado nitidamente no céu.
Deixa de enganar o pobre velho com a honra dos Garrote,
aquele fantasma sabia falar e o timbre de voz ecoava na cabeça do
adversário a toda a hora, porque tu és o culpado da sua desonra. Tu
arrastaste a fama deles para a lama quando me desferiste um golpe
baixo porque sabias que o árbitro ia fingir que não tinha visto,
porque só conseguias vencer-me fazendo batota, porque, se o
cabrão do Ochoa não tivesse combinado o combate, eu ter-te-ia
derrubado, e ambos sabemos que esta é a verdade… Adrián
tentava silenciar essa voz esmurrando o saco em cima, em baixo,
de lado, diretos com a esquerda, com a direita, ganchos, uppercuts,
crochets, vezes sem conta, esgotando-se no esforço até ficar sem
ar e ter de parar para tomar fôlego, mas Navarro nunca se calava, a
sua voz não se extinguia e não deixou de o atormentar durante todo
o verão.
– Porra, Tigre! – Pirulo elogiou-lhe os progressos quando se
reencontraram em Madrid, no fim de agosto. – Fartaste-te de treinar.
Estás melhor do que nunca, a sério… Não gostaria nada de entrar
num ringue contigo.
Aquele elogio chegou tarde, porque quem coroou o Tigre de
Treviño campeão de Castela em outubro de 1940 foi o espetro vivo
de Alfonso Navarro e não o seu esforço ou os conselhos do
treinador.
– Já sabes o que te digo sempre, Adrián. Se ele gostar de
dançar, que dance, mas tu não percas tempo. Vais direito a ele, sem
arrebiques, sem tateares e sem idiotices. Tens uma marreta em
cada punho, rapaz. Portanto, não precisas de pensar. No primeiro
bom golpe que conseguires, derruba-lo e acabou-se…
O novo título deu início a uma etapa que teria sido risonha e
descontraída para qualquer outro, sessões noturnas por bom
dinheiro, em Ventas ou no Price, cartazes nas ruas, lisonjas no
ginásio, entrevistas e fotógrafos. Adrián quase não a apreciou.
Treinava, combatia, derrubava, continuava a treinar todos os dias
com mais afinco do que no anterior e saiu da pensão, alugou um
apartamento, comprou roupa nova, habituou-se a andar de táxi pela
cidade e a que os empregados de mesa o tratassem por senhor,
mas não descansou. Nunca conseguiu livrar-se de uma obsessão
que era, afinal, a promessa sólida de um fracasso inevitável.
Continuava a bater no saco como um louco, embora já não
combatesse com Navarro mas com o seu próprio medo, com o
pânico de voltar a encontrar-se com ele entre as cordas, com o
dever de finalmente pagar a dívida. Quando esse dia chegasse,
queria ter uma oportunidade de vencer honestamente e, para o
conseguir, matava-se todos os dias no ginásio. Foi assim que
conseguiu transformar-se numa máquina, num prodígio de fúria,
técnica e músculos, num bom pugilista. Melhor do que muitos, igual
a demasiados.
A força permitiu-lhe chegar com algum desafogo à final do
Campeonato de Espanha. Nenhum dos adversários que eliminou
antes do penúltimo combate aguentou mais de um assalto. Para
deixar KO o campeão canário, o semifinalista que lhe calhou por
sorteio, precisou de quatro assaltos porque não era tão forte nem
tão eficaz como ele, no entanto sabia fintar, esquivar-se, dobrar a
cintura e mexer as pernas a uma velocidade inalcançável para o
Tigre de Treviño.
– São favas contadas, Gallardo – encorajava-o Pirulo do canto, a
fingir uma tranquilidade que não sentia –, favas contadas. Uma
lagartixa, é verdade, mas só isso, e, quando lança diretos com a
direita, baixa a guarda mais do que deveria. Só tens de aguentar e
de esperar por uma oportunidade, ouve o que te digo.
Adrián aguentou, esperou e derrubou-o. Em troca, recebeu a
maior sova da sua carreira profissional, embora Pirulo tenha ficado
muito satisfeito com o combate. O Tigre recuperava depressa.
Tinham quase uma semana pela frente e já haviam chegado
suficientemente longe para acharem que a final de Barcelona seria
um sucesso, fosse qual fosse o resultado. O treinador dedicou-se a
mimar e a cuidar do pupilo durante dois dias, intensificando o treino
nos últimos três. Os passeios e as massagens deram-lhes muitas
oportunidades para conversar, e foi assim, conversando, que Pirulo
começou a desconfiar de que tudo se desmoronaria.
– Muito cuidado com o Oñate, Tigre, porque até agora é o melhor
com quem lutaste.
– Melhor do que o Navarro?
Tinham subido até Montjuich para passear pelos arredores do
castelo, e Pirulo, concentrado na difícil missão de revelar a Adrián
que o guipuscoano era tão forte como ele, mas muito mais rápido,
teve de parar e de pensar por alguns segundos para identificar o
homem de que o pupilo lhe falava.
– O Navarro? – respondeu-lhe mais com uma careta indecisa
entre o espanto e a troça do que com a voz. – Pois claro, homem,
muito melhor. Estamos a falar de profissionais.
– Está bem, mas… – Adrián insistiu com os olhos fixos no
horizonte. – Achas que ele virá ao combate?
– Quem?
– Quem haveria de ser? – Quando voltou a cabeça na direção do
treinador, os olhos brilhavam-lhe febris. – O Navarro. Eu, no lugar
dele, viria.
Pirulo sabia há muito tempo que o combate de Bilbau havia sido
combinado. Não tinha dito a ninguém, no entanto conhecia Antonio
Ochoa desde miúdo, quando lutava contra a doença, conhecia
Alfonso Navarro e, sobretudo, conhecia Adrián Gallardo melhor do
que ninguém, incluindo o próprio. Sabia que, nas condições em que
o Tigre lhe havia chegado às mãos, aquele KO não só era um
mistério, como um milagre tão impossível quanto um bebé de seis
meses desatar num belo dia a ler. Adrián nunca o teria conseguido
sozinho, e ele desconfiara desde o início de quem o teria ajudado.
Os anos passados em Marrocos haviam-no familiarizado com o
ambiente dos quartéis, e três anos de guerra no lado franquista
tinham-lhe revelado o que precisava de saber sobre a inimizade
mortal entre os militares e os falangistas. Quando Adrián não
quisera confirmar o que ele pressentia, não precisou de fazer muitas
perguntas para o averiguar. Bastou-lhe saber que o árbitro era um
alferes provisório, que os juízes eram oficiais de Infantaria e que,
quando derrubou Navarro, Adrián o tinha contra as cordas do lado
da ria. Contudo, até à manhã em que lhe ocorreu dar um passeio
por Montjuich, não fazia ideia de que aquela batota estava na base
da obsessão do seu pupilo.
– O quê? – perguntou-lhe ao cabo de algum tempo. – Não dizes
nada?
Pirulo não sabia o que responder. Falar de Navarro só iria
enfraquecer o estado de espírito de Adrián antes do combate mais
importante da sua vida. Prolongar o silêncio alimentaria a sombra do
sevilhano, torná-la-ia maior, mais compacta, mais perigosa. Porém,
o pior era que, no fundo, tanto fazia, porque dissesse o que
dissesse não serviria para nada.
– Vamos lá ver, Tigre. – Apesar de tudo tentou, porque se
afeiçoara muito a ele. – Se não me engano, o teu combate com o
Navarro foi no inverno de 1938 e agora estamos na primavera de
1941, correto? Passaram mais de três anos, mas não é só isso.
Nessa altura, tu eras um simples amador e agora aspiras ao
Campeonato de Espanha. Nessa altura, o Navarro combatia por
diversão, mas tinha aprendido técnicas e truques com profissionais,
e tu não percebias nada deste ofício. Se combatessem agora, tu
levava-lo ao tapete no primeiro assalto, tenho tanta certeza disso
como de que um dia morrerei, e ele também deve sabê-lo porque é
tudo menos parvo. Não vai deixar de andar a cavalo nas quintas do
pai para te vir procurar.
– O pai dele já não tem quintas. – Aquela pareceu ter sido a
única coisa que Adrián reteve do que Pirulo lhe disse. – O Ochoa
contou-me que está arruinado.
– E então? – O treinador teve de se dominar para manter a
calma. – Que diabo queres dizer com isso? É no Oñate que tens de
pensar agora, Tigre, e só nele, porque podes ser campeão de
Espanha, porra. Não te dás conta disso? No teu segundo ano como
profissional, campeão de Espanha… Portanto, não me lixes.
Concentra-te de uma vez e deixa-te de asneiras…
Adrián não voltou a puxar o assunto, mas, à medida que se
aproximava da final, o seu estado de espírito foi-se apagando pouco
a pouco. Pirulo esforçava-se, mimava-o, ralhava-lhe, alternava o
pau e a cenoura tentando erguê-lo de uma prostração fictícia tão
imaginária como a sombra que o atormentava. No entanto,
descobriu que na paixão de Adrián o medo pesava tanto como a
culpa, e ele não sabia como treiná-lo para derrotar esse inimigo,
como prepará-lo para combater um rival cujo poder residia na sua
inexistência, um fantasma sem punhos, sem pernas, sem corpo, que
estava a pôr em perigo o esforço descomunal que aquele rapaz
tinha feito na superação das suas limitações. Pirulo conhecia Adrián
muito bem. Sabia que não era muito esperto, mas que era bom, um
rapaz com bom coração, incapaz de magoar quem quer que fosse.
Por isso gostava dele como de um irmão mais novo, um menino
grande, tão temível como inofensivo, porém, não conseguiu fazer
nada para o salvar.
– O Oñate, Tigre, o Oñate. – À porta do vestiário, agarrou na
cara dele com ambas as mãos, beijou-o na face, abraçou-o. – Atira-
te a ele sem pensar, porque vais dar cabo dele, podes dar cabo
dele, não te esqueças disto. – Se pudesse, teria entrado no ringue
em seu lugar. – Vamos lá, campeão. Lembra-te desta palavra,
campeão, porque foi feita para ti.
Adrián assentiu sem fixar o olhar, e, enquanto descia as escadas
e depois nos preliminares do combate, passeou-o incessantemente
pelas bancadas à procura de Navarro. Durante sete assaltos esteve
mais pendente dele do que do adversário e no oitavo foi ao tapete.
A final do Campeonato de Espanha foi a primeira derrota por KO do
Tigre de Treviño. Não seria a última.
– Vamos lá ver, meu querido, que queres saber? As cartas dizem
tudo…
Pirulo tentou convencê-lo de que o sucedido não fora grave.
Voltou a falar-lhe de Schmeling, de Dempsey, de Joe Louis. Todos
os campeões perderam alguma vez por KO, dizia-lhe, e tu és o vice-
campeão de Espanha, aguardam-te muitos combates, muitas
vitórias, o dinheiro e a glória… Contudo, Adrián já não falava com
ele. Gastou o dinheiro que ganhara em Barcelona em videntes,
tarólogas, em esconjuros milagrosos e rituais de proteção contra a
influência de Navarro. Habituou-se a sair à noite, a beber sozinho,
começou a fumar, engordou, perdeu a figura, a força, os reflexos,
até decair completamente quando descobriu os prazeres do
fracasso, a serenidade da abulia absoluta, a satisfação venenosa de
ficar todo o dia na cama à espera da chegada de uma nova jornada
de passividade, de total indolência. Quando deixou de aparecer no
ginásio, Pirulo foi muitas vezes a casa dele, mas o aluno nunca lhe
quis abrir a porta. Assim, de mal a pior, esteve quase um ano, e na
primavera de 1942 não procurou a ajuda do treinador, mas a de
Ochoa.
Don António também já não era o seu capitão de Portugalete. A
doença, que até então o tratara com pezinhos de lã, acelerou de
repente, sem avisar, transformando as formigas em picadas, mais
tarde em placas de gelo, depois em pedra, finalmente em nada.
Ochoa sentia-se a ficar sem corpo e teve vontade de mandar à
merda o homem mais musculoso que havia conhecido na vida. Não
esperava que, vendo-o arruinado, gordo, balofo, sentisse que estava
a olhar para a sua própria imagem num espelho. Só assim tomou
consciência de que apenas ele e mais ninguém tinha dado corda
àquele boneco passado dos carretos, que estava estragado e já não
se podia consertar.
– No teu lugar, ia para a Rússia como voluntário. Seria feliz a
matar aqueles canalhas comunistas, mas já vês… – Andava com
uma bengala e tinha meio corpo encolhido, um ombro mais alto do
que o outro, a mão direita praticamente inutilizada. – Vai tu por mim,
Adrián. O teu avô ficará muito orgulhoso.
Don Carlos Garrote tinha morrido uns meses antes. O neto não
saberia dizer exatamente quando porque soube tarde de mais,
numa manhã em que se levantou suficientemente sóbrio para dar
uma vista de olhos à correspondência que se amontoava na
mesinha da entrada. Aí encontrou três cartas da mãe: a primeira
preocupada, a pedir notícias; a segunda angustiada, a participar-lhe
a morte do avô; a terceira desesperada, a perguntar-lhe porque não
tinha ido ao funeral. Quando as leu, sentou-se numa poltrona e
esteve horas a chorar, mas não foi capaz de responder e ainda não
o havia feito quando Ochoa lhe ofereceu um caminho inesperado
para expiar as suas culpas. Nessa altura, sim, escreveu, contando
aos pais que abandonara o boxe, que se tinha alistado na Divisão
Azul em honra da memória do avô. Em meados de julho de 1942, ao
chegar ao quartel-general de Pokrovskaya, a vinte e cinco
quilómetros de Leninegrado, muito longe de Madrid, de Sevilha, de
Bilbau, descobriu que o destino estava ali à sua espera.
– Bem, um verdadeiro vice-campeão de Espanha de pesos-
pesados, que honra! – O capitão Junquera levantou-se da mesa
para lhe dar um abraço. – Não foste o primeiro a chegar, acredita. O
tenente Navarro também é pugilista, por isso já temos diversão para
o inverno.
Nesse instante, Adrián sossegou. A certeza de que tinha
chegado a hora por que tanto esperara relaxou-o mais do que uma
boa massagem, mas a sensação não durou muito tempo. Navarro
encontrava-se num outro setor e a ofensiva sobre Leninegrado,
lançada poucos dias antes da sua chegada pelos alemães,
mantinha aquela frente numa tensão constante. A expectativa de
que o desenlace só ocorreria dali a vários meses torturou Adrián
durante algum tempo, transformando-se depois numa fonte de
permanente insatisfação, num pano negro que teria coberto tudo se
a intensidade do fogo de artilharia o tivesse permitido, a vida nas
trincheiras de uma campanha em que o Tigre de Treviño começou
como alferes, posto com que terminou a guerra em Espanha, e
acabou como tenente, sem acumular méritos além da sua fama de
pugilista profissional. A promoção precedeu em poucos dias o
fracasso do assalto a Estalinegrado, o primeiro revés importante
sofrido pelas tropas alemãs na União Soviética, um fracasso
suficiente para que Hitler suspendesse a ofensiva de Leninegrado e
desistisse de avançar para manter a pressão sobre a cidade. Nessa
altura, já com a frente estabilizada, Adrián regressou a Pokrovskaya
para uma semana de licença no quartel-general. Ali, mal entrou na
cantina de oficiais, dois olhos negros como carvão num rosto que
não reconheceu interpelaram-no.
– Anda, Tigre, senta-te aqui…
Uma semana depois de Adrián chegar à frente de Kolpino, uma
bala perdida matou o intérprete da sua companhia. Ao fim de vários
dias de confusão, sem contacto possível com o comando da
Wehrmacht ou com outras divisões de voluntários estrangeiros da
mesma frente, apareceu por ali um rapaz com o cabelo cor de
cenoura, o rosto repleto de sardas e a rara capacidade de falar
perfeitamente várias línguas, todas elas numa variante
equidistantemente afastada do que os ultranacionalistas
consideravam a norma culta. Jan Schmitt apresentou-se com os
seus dois apelidos, mas o segundo era de tal forma impronunciável
que os divisionários decidiram omiti-lo. Falava o espanhol de
Buenos Aires e um alemão com sotaque flamengo, salpicado de
palavras em holandês. Ambos os registos conseguiram desagradar
a todos os interlocutores em igual medida, porém a Wehrmacht não
tinha nenhum homem disponível que falasse castelhano e em
Pokrovskaya também não arranjaram nada melhor, pelo que o
soldado Schmitt deixou de integrar a Legião Flamenga, sendo
colocado provisoriamente na Divisão Azul. A primeira coisa que
aprendeu ao chegar foi que o brigadista Gallardo havia sido vice-
campeão de boxe em Espanha, mas isso não o impressionou.
– Vê lá tu bem que não me interesso muito por boxe –
confessou-lhe com todo o descaramento, à primeira oportunidade. –
Em Buenos Aires, o Firpo é um ídolo, viste14? Muitas minas15, muita
plata16… ganhou dois combates por knock out com mais de
quarenta anos, mas eu prefiro o futebol. Sempre fui do River. Do
que tenho mais saudades é ir ao estádio com o meu velho, aos
domingos… E tu? És adepto?
– Não percebi nada, rapaz. – Gallardo desatou a rir. – Bom,
percebi metade, pouco mais ou menos…
Jan era dois anos mais velho do que Adrián e tinha mais ou
menos a mesma estatura, no entanto parecia mais novo porque não
chegava a um terço do corpo do outro. Faziam uma dupla estranha,
mas depressa se tornaram amigos porque ambos tinham motivos
para se aproximarem. Nas vésperas do encontro com Navarro,
Adrián sentia-se um impostor, um falso ídolo. Incomodavam-lhe as
lisonjas dos aduladores, de todos aqueles soldados que se
arrastavam pela calada da noite e aborreciam quem tentava dormir
na trincheira, sentando-se ao seu lado e pedindo-lhe um autógrafo.
Jan, pelo contrário, só se interessava por política. Era capaz de falar
durante horas da genialidade de Hitler, das ideologias macho e das
ideologias fêmea, da tara genética dos marxistas, e nem sequer se
importava com o facto de o espanhol não abrir a boca durante todo
o tempo em que se supunha que estava a conversar com ele.
Gallardo não prestava muita atenção ao que o outro dizia, mas os
seus discursos faziam-lhe companhia e, à força de o ouvir, começou
a gostar daquela maneira de falar que a maior parte dos espanhóis
detestava. Quando começaram a ir juntos a toda a parte, Schmitt
descobriu que, enquanto os músculos do tenente estivessem ao seu
lado, ninguém se atreveria a meter-se com ele, a imitá-lo, a rir-se da
sua forma de falar, como acontecera nos primeiros dias em Kolpino.
– Che, é impressionante, pibe17, como todos te temem…
Até que um dia, na cantina de oficiais, Jan descobriu que havia
um espanhol a quem Adrián Gallardo não metia medo.
Alfonso Navarro tinha mudado tanto quanto os restantes atores
da sua derrota. Na cabeça de cabelo escuro, reluzente de
brilhantina, que o rival recordava, brilhava agora a pele nua, e a
calvície não era a única novidade. O sevilhano tinha acabado de
fazer trinta anos, mas a passagem do tempo maltratara-o tanto
como a Gallardo, embora noutra direção. Na primavera de 1940, a
mulher fora assassinada numa operação de represália da guerrilha
de Sierra Morena, enquanto recuperava de um aborto na herdade
da família. Desde então, o viúvo perdera muito peso e ganhara um
tique nervoso que o levava a piscar constantemente o olho direito.
Os maus fígados, no entanto, continuavam intactos.
– Homem! – O capitão Ernesto Junquera, que se gabava de ter
assistido ao combate que dera a Paulino Uzcudun o título mundial
de pesos-pesados, em 1933, levantou-se quando Alfonso Navarro
atravessou a cantina muito devagar e parou diante da mesa onde
Adrián comia. – Finalmente chegou o momento pelo qual todos
esperávamos…
Junquera olhou para a esquerda, depois para a frente, viu uns
olhos ardentes, outros gelados, detetou que alguma coisa não
estava bem e acabou por meter ainda mais a pata na poça.
– Mas… deem um abraço. O boxe é um desporto de cavalheiros.
– Justamente por isso. – Navarro não havia perdido a finura
cortante do seu sotaque. – Não abraço batoteiros.
Aquela palavra caiu como uma bomba na cantina e no estado de
espírito de Adrián, mas, embora ele não prestasse atenção aos
discursos de Jan, o flamengo conhecia bem os triunfos do amigo.
– Que estás para aí a dizer, louco? És um perdedor, Navarro.
Como te atreves…?
– Cala-te. – Mas o sevilhano não sabia até que ponto o intérprete
gostava de falar e não esperava que nesse momento ele oferecesse
ao Tigre de Treviño uma proteção muito superior à que dele
recebera.
– O que é que este boludo18 está a dizer?
Schmitt levantou-se, afastou-se da mesa, aproximou-se de
Junquera.
– O porto de Bilbau cheio de gente, três mil pessoas, uma dúzia
de generais, meu capitão, todos viram como o tenente Gallardo
venceu o combate por knock out no quinto assalto. Ou não foi isso
que aconteceu?
A menção aos generais que haviam aplaudido e celebrado
aquela fraude emudeceu Navarro, fê-lo sentir-se de repente em
território inimigo sem desconfiar de que o seu silêncio encorajaria o
tagarela, que foi direito a ele.
– Ouve-me, pelotudo, estou a falar contigo.
– Sai daqui, maricas.
Alfonso Navarro moveu o braço esquerdo para empurrar Jan e
deitou-o ao chão. Nesse instante, Adrián Gallardo Ortega viu o céu.
Contornou a mesa, correu até ao rival e, sem palavras de permeio,
deu-lhe na cabeça um murro com a direita que o derrubou pela
segunda vez desde que se conheciam.
Todos os presentes interpretaram aquele soco como uma reação
instintiva, visceral, de um homem muito forte que não havia
controlado bem a potência dos punhos ao sair em defesa do amigo.
Essa foi também a versão repetida por Adrián, mas não era
verdade. Embora Pirulo o tivesse aconselhado muitas vezes a não
pensar, desta vez fê-lo e saiu-se tão bem que as consequências do
seu raciocínio ultrapassaram largamente a intenção com que o
pusera em marcha. O Tigre de Treviño só pretendia fugir daquela
cantina a qualquer custo, incluindo o calabouço. Se tivesse
encontrado Navarro sozinho, a sua atitude haveria sido outra. Nesse
caso, teria facilitado uma luta para combater com a alma, tanto ou
mais do que com os punhos, mas na cantina de Pokrovskaya, diante
de metade dos oficiais da Divisão, esmurrá-lo foi a única solução
que lhe ocorreu para o calar. Os colegas tiraram as suas próprias
conclusões. Quase todos acreditaram na versão de Schmitt,
acharam que Navarro não sabia perder e ficaram do lado do vice-
campeão de Espanha.
– Vais apanhar um mês de prisão, Gallardo, mas não te
preocupes porque vamos tirar-te daqui. – Junquera informou-o de
tudo ao entardecer, quando o foi visitar ao calabouço. – Formámos
uma comissão para ir falar com o coronel e contar-lhe a verdade,
que só pretendias defender a honra de um camarada indefeso,
agredido sem motivo por Navarro depois de o ter insultado com
menos motivos ainda. Que filho da puta! A verdade é que aquele
argentino é um fartote, com tanto che para aqui e tanto che para
acolá, mas chamar-lhe maricas? Porquê? Pelo que me disseram, na
Argentina falam todos como ele.
Ao ouvir Junquera, Adrián sorriu e animou-se. Tinha-se
habituado a pensar, mas não lhe era natural e não foi capaz de
parar a tempo.
– Ele não me perdoa o combate de Bilbau, meu capitão. – E por
instantes chegou a acreditar nisso. – O Schmitt tem razão, é um
mau perdedor.
– Pois isso tem conserto. Se organizarmos outro combate para
voltares a derrubá-lo, fica tudo arranjado.
Essa foi a última curva do longo e sinuoso caminho que levara
Adrián Gallardo Ortega de La Puebla de Arganzón ao toucador da
czarina no palácio de Pokrovskaya. Não lhe teria custado tanto se
as senhoras da Secção Feminina não lhe tivessem enviado um
pacote natalício, no qual se lembraram de incluir um maçapão de
Soto, precisamente um maçapão de Soto, o doce favorito de dona
María Ortega.
Não se atreveu a comê-lo. Escolheu um bolinho de canela, mas
o efeito foi o mesmo. Sozinho, nu e cheio de frio, imaginou o que
estaria a acontecer nesse momento na sua casa de La Puebla, a
mãe atarefada na cozinha, as irmãs esvoaçando em volta dela, o pai
na cave a escolher o melhor vinho para a ceia, enquanto o cheiro da
hortelã perfumava o caldo e um leitão dourava lentamente no forno.
A alguma distância, na praça, certos moradores proclamariam,
como no ano anterior, como no ano seguinte, que os peixes bebiam
no rio, engolindo sem pausa a água que nunca lhes saciava a
sede19. Também eles não se cansariam de cantar, apesar de na
aldeia estar sempre muito frio no Natal e, quem sabe, poder até ter
nevado. Adrián recordou a neve natalícia da sua infância como um
presente, uma companhia mansa e confortável, quase cálida, em
comparação com aquela que o esmagava no outro lado das janelas
embaciadas, cobertas de gelo, de um palácio dos czares da Rússia.
Na sua aldeia, a neve caía devagar, enfeitava as árvores, orlava os
telhados e prometia um ano de riqueza. Começava por fechar a
escola e por se deixar moldar pelas crianças que brincavam com
ela, e acabava no calor de uma lareira acesa na cozinha de casa,
onde nessa noite estariam todos juntos, a sentir a falta dele, a mãe
mais do que qualquer outro porque decerto chorara muito e ainda
choraria mais pelo filho ausente, aquele que não a fora visitar antes
de partir, aquele que só lhe escrevera duas cartas do outro lado do
mundo, algumas palavras que nunca compensariam os beijos que
lhe apodreciam lentamente no íntimo. Ela, tão afeita às promessas,
teria de certeza prometido à Virgem não comer nenhum maçapão
de Soto durante o Natal em troca da proteção do filho, perdido entre
outras neves. No seu marido preferia não pensar.
Que fizeste, Adrián? Don Teodoro Gallardo começava todos os
ralhetes com essa pergunta, todos os pequenos castigos que lhe
impunha em criança. Que fizeste, Adrián?, perguntou-lhe também
naquela noite, e ele só conseguiu responder o mesmo que outrora,
não sei, pai. Quando era pequeno, isso era mentira porque ele sabia
que tinha puxado a cauda do gato do vizinho, que tinha levado um
punhado de caramelos da mercearia sem pagar, que tinha brigado
com algum colega no recreio. Que fizeste, Adrián? Em Pokrovskaya,
prestes a lutar com um homem com razões para o esmagar, só
sabia que ia perder aquele combate porque não merecia ganhá-lo.
Porém, não era isso, era a lembrança de uma lareira acesa, o sabor
de um bolinho de canela, a cara de dona María que começavam a
encher-lhe os olhos de lágrimas quando, mesmo a tempo, a porta se
abriu.
– Como estás, campeão? – Junquera trazia as ligaduras.
– Disposto a esmagar aquele cabrão, não vês? – Gutiérrez
seguia-o, exultante, com tudo o resto.
– E o padre Arribas? – perguntou Adrián, arrancando de algum
lado uma voz firme que não conseguiu explicar. – Conformou-se?
– Nem pensar! Está furioso. Diz que vai falar com o comando
para pararem o combate…
– Mas já nos certificámos de que não encontra nenhum carro
disponível, de modo que podes ficar tranquilo.
A companhia daqueles treinadores improvisados fez-lhe bem. O
entusiasmo de Jan, que se lhes juntou logo a seguir, animou-o ainda
mais. Os três iam ficar no seu canto do ringue e o otimismo
devolveu-o a Montjuich, à velha certeza de Pirulo, à segurança com
que prognosticara que, se algum dia voltasse a enfrentar Navarro, o
derrubaria pela segunda vez. Nessa tarde, em Barcelona, Adrián
tinha o título de campeão de Espanha ao alcance da mão e um
futuro dourado no horizonte. Desde então, tudo se desmoronara,
mas ao seu rival as coisas não haviam corrido muito melhor.
No último mês e meio, o tenente Gallardo, libertado do serviço,
treinara como nos velhos tempos, a princípio sozinho, fazendo
sombras com a parede do calabouço onde cumpria pena, a seguir
no ginásio onde decorreria o combate, num horário diferente do
sevilhano. Fez dieta, perdeu peso, deixou de fumar, aumentou a
distância das corridas, recuperou músculo, elasticidade, e por fora
quase parecia o mesmo de antes. Sabia que não era assim.
Continuava a sentir-se quebrado, derrotado por dentro, mesmo que
a sua equipa lhe garantisse que Navarro não estava a treinar ao
mesmo nível. Desta vez, o Tigre de Treviño ia à frente em todas as
apostas, mas isso nada significava para ele porque os apostadores
não faziam ideia do que se disputaria nessa noite. No entanto,
quando assumiu que a desforra que tinha receado e desejado com a
mesma intensidade durante tantos anos tinha finalmente chegado,
que daí a meia hora estaria num ringue a bater-se com o homem
que o atormentara até o afundar, Adrián Gallardo Ortega teve um
instante de lucidez.
Não era muito inteligente, ainda assim uma luz imprevista
acendeu-se-lhe entre as sobrancelhas e brilhou como a única
estrela de uma noite sem lua, enquanto Junquera acabava de lhe
calçar as luvas. A essa luz, Adrián percebeu que não era culpado
porque nunca tivera outra opção senão cumprir as ordens de
Ochoa. O facto de o ter feito sem o questionar não alterava as
coisas. Caso se tivesse recusado a vencer um combate combinado,
é muito provável que dele só sobrevivesse a dignidade. Ochoa tê-lo-
ia arruinado, encarcerado, tê-lo-ia acusado do que quer que fosse,
tê-lo-ia inclusive mandado fuzilar. Em guerra essas situações
aconteciam todos os dias, e a única coisa que Adrián lamentou na
noite de Natal de 1942 foi não ter pensado nisso antes. Quando já
era tarde, a cabeça tão lenta como as pernas compreendeu que não
se deveria ter entregado, que não deveria ter-se deixado cair e
sucumbir a uma culpa que não era sua. O passado não tinha
remédio, porém, aferrado a essa ideia, sentiu-se novamente
poderoso, confiante nos seus punhos, em si próprio.
– Vamos lá, Tigre, dá cabo dele ao murro!
– Vamos lá, que vamos trucidá-lo…
– Coragem, campeão! Estamos todos contigo.
Observou-os, assentiu com a cabeça, ergueu as mãos enluvadas
e nada disse, mas o seu gesto aumentou a euforia dos homens que
saíram do vestiário atrás dele. A promessa do triunfo brilhava-lhe
nos olhos quando saiu pela porta que lhe tinham atribuído, e
enquanto Alfonso Navarro atravessava o ginásio vindo da direção
contrária, Adrián apercebeu-se de que deixara de o temer. Tinha
acabado de assinar a paz consigo mesmo e sentiu uma serenidade
que há muito tempo desconhecia. Se tivesse parado para pensar,
talvez tivesse duvidado da sua autenticidade, mas não lhe ocorreu
fazê-lo, e com os punhos erguidos, o corpo tenso, a concentração
que Pirulo não conseguira inculcar-lhe a expandir-se devagarinho,
do centro do estômago às derradeiras extremidades do corpo, em
passos lentos, solenes, subiu ao quadrilátero.
Os juízes ocuparam o respetivo lugar, os pugilistas, as suas
esquinas, e um comandante desconhecido, de microfone na mão,
apresentou o combate enquanto a tropa rugia como se quisesse
deitar abaixo as paredes. Nas bancadas, os oficiais de maior
patente guardavam silêncio. Era sua obrigação manter a
imparcialidade, mas Gallardo sabia que quase todos eles estavam
do seu lado, como os soldados que gritavam ritmicamente o seu
nome. Ele não os via, assim como não via Navarro. Com os olhos
fixos nas cordas, a disposição mais firme a cada segundo, só se
moveu quando o árbitro o exigiu. Limitou-se a assentir, ouvindo
umas regras que teria conseguido repetir de cor até chegar o
momento de chocarem as luvas. Nessa altura, fixou os olhos nos do
rival e não mais os afastou. Sem deixar de olhar para ele,
retrocedeu alguns passos, esperou que o árbitro levantasse o braço
e, pela primeira vez na vida, sentiu o instinto assassino que Ochoa
lhe exigira em vão tantas vezes. Tinha a certeza de que ia ganhar
por KO, mas antes que o árbitro tivesse tempo de dar início ao
combate uma coisa inesperada aconteceu.
– Com licença! Com licença! – Adrián olhou para a frente e não
conseguiu localizar a origem da voz. – Deixem passar!
O árbitro estendeu as mãos no ar a fim de impor uma pausa,
enquanto os soldados sentados à beira do ringue continuavam a
gritar, a cantar, como se não estivessem dispostos a renunciar à
diversão. Até que soou um tiro, depois outro e outro ainda e,
enquanto uma chuvinha de partículas de estuque caía do teto, a
tropa dividiu-se em dois, tão depressa como as águas do mar
Vermelho sob o desígnio de Deus. No corredor central, apareceu o
padre Arribas com o rosto congestionado pela cólera e a pistola na
mão, avançando para o ringue sem deixar de disparar de vez em
quando para as ninfas despidas que ornamentavam o que fora o
salão de baile do palácio.
– É assim que celebram o nascimento do Menino Jesus? –
Olhou uns instantes para o teto, apontou e deixou outra ninfa
zarolha. – Celerados, hereges! Não têm vergonha?
Os juízes do combate tentaram aproximar-se dele, mas o
capelão, escoltado por outros sacerdotes armados, apontou-lhes a
arma antes que conseguissem dar três passos.
– E vocês, onde julgam que vão? Quietos aí, raios vos partam!
Toca a cantar músicas de Natal, vamos, quero ouvir toda a gente a
cantar. Juro pelos meus tomates que este circo pagão acabou.
O padre Arribas entoou «Até Belém vai uma burra» e, antes de
os cantores repetirem o refrão pela segunda vez, o Tigre de Treviño
caiu ao chão como um peso morto. Aproveitando a perplexidade
provocada pelos tiros e pelas canções natalícias, Alfonso Navarro
libertara o braço esquerdo e atingira o rival com um direto
semelhante ao que o havia derrubado dois meses antes na cantina
dos oficiais.
– E com isto ainda não ficámos quites, cabrão – murmurou,
embora o inimigo, inconsciente, não o conseguisse ouvir.
O árbitro, sem deixar de cantar, agarrou-o por um braço e
levantou a outra mão para chamar a polícia militar. Navarro deixou-
se prender com a mesma docilidade que Adrián demonstrara
anteriormente e, enquanto aquela burra carregada de chocolate não
chegava a Belém, o oficial jurista de maior patente, futuro presidente
do tribunal disciplinar, prometeu a si próprio que a detenção duraria
pelo menos três meses, embora ele lhe impusesse o dobro com
muito prazer. Adrián só soube de tudo isto quando acordou na
enfermaria onde os médicos decidiram mantê-lo vinte e quatro horas
em observação.
– Sabias que o padre nem sequer tinha autorização do general
para parar o combate? Mas que raio de fascistas de merda são
vocês, galegos20? Aparece um capelão com uma pistola e, um por
um, põem-se todos a cantar como cordeirinhos, viste? Diz-me uma
coisa, flaco21, como conseguiram ganhar uma guerra a cantar
musiquinhas de Natal?
Ouvindo Jan, Adrián não sabia se deveria alegrar-se por o padre
Arribas ter impedido o combate aos tiros ou se deveria sentir pena
pela interrupção que o tinha privado de uma vitória garantida e da
ceia da Consoada, a melhor refeição do ano. A segurança que o
fortalecera enquanto subia ao ringue não se havia dissipado
totalmente, mas permanecia em segundo plano, como um cenário
diante do qual o seu pensamento não decidia que direção tomar.
Ainda era muito novo. No ano que estava a começar faria vinte e
seis anos, e Firpo, de acordo com Jan, tinha continuado a ganhar
por KO com mais de quarenta. Não sabia que tipo de pugilista era o
campeão argentino porque Pirulo nunca lhe falara dele, mas
confiava na sua própria força, na sua capacidade de recuperação,
que chegara a ser lendária no ginásio de Madrid, e isso encorajou-o
a traçar um plano que compreendia todos os elementos da sua
situação, com uma única exceção. No fervor por assumir a posse de
si próprio de uma vez por todas, o Tigre de Treviño esqueceu-se de
que estava numa guerra.
– Nem penses nisso, Gallardo. – Junquera negou com a cabeça
quando lhe perguntou se poderia pedir um prolongamento da baixa
ao serviço para se dedicar aos treinos até regressar a Espanha. – O
alto-comando deixou de se interessar pelo boxe. O Muñoz Grandes
não quer problemas com os capelães, nem com os beatos que os
apoiam, nem com os falangistas, que estão do lado do Navarro. E,
pelos vistos, as coisas não estão a correr muito bem em
Estalinegrado, de modo que…
– E se eu desistir para regressar a Espanha? – Aquela pergunta
transformou as sobrancelhas do capitão em dois acentos
circunflexos. – É que eu gostava de voltar a combater como
profissional.
– Está bem, mas… Isto é uma guerra, rapaz. Vieste como
voluntário e não podes desistir sem mais nem menos. Voltarás
quando a tua vez chegar, como todos, embora, se guardares
segredo, não creio que falte muito.
Adrián Gallardo geriu aquele contratempo como se se tratasse
de mais um golpe entre os muitos que havia recebido na vida.
Quando terminou a semana de convalescença prescrita pelos
médicos, entregou-se ao seu destino com boa disposição. Antes
disso, escreveu uma longa carta a Pirulo, pedindo-lhe desculpa
pelos seus erros, contando-lhe o reencontro com Navarro, o
combate, a interrupção e, sobretudo, a redescoberta de si próprio
como pugilista, a sua vontade de regressar à disciplina, de voltar a
lutar como profissional. Enviou a carta para o Ginástica Ferroviária
da calle Barbieri, em Madrid, e marchou para a frente com a
convicção de que o mais difícil estava feito. Enganava-se. Tinha
pela frente a batalha de Krasny Bor.
Deter a ofensiva soviética e manter o cerco a Leninegrado
custou à Divisão Azul baixas equivalentes a metade das tropas que
participaram na batalha e cerca de mil prisioneiros em apenas onze
dias de fevereiro de 1943. Adrián foi um dos felizardos que
conseguiram regressar a Pokrovskaya, recebidos como heróis,
apesar de até os mais otimistas considerarem que a derrota era
apenas uma questão de tempo. Esgotado e esfomeado, gelado e
sujo, a primeira coisa que fez ao chegar ao palácio foi dirigir-se ao
posto de correio. Ali tinha à sua espera duas cartas: a que ele
próprio tinha enviado no início de janeiro, com um carimbo
anunciando que o destinatário estava ausente ou era desconhecido
naquela morada, e outra, com o timbre do Ginástica Ferroviária, que
justificava a devolução da anterior. Nela, don Fernando, o dono do
ginásio, informava-o de que Pirulo se encontrava preso. Quem teria
imaginado isso de um homem como ele, de um legionário que fez a
guerra com Franco, acrescentava a seguir, dizendo que o treinador
alegara estar só a fazer um favor a um amigo ao guardar em casa a
propaganda encontrada pela polícia. Como vês, nestes tempos é
preciso cuidado com as amizades, Tigre, embora, quando voltares a
Madrid, possamos encontrar-te outro bom treinador…
Mal leu aquelas linhas, Adrián foi-se abaixo. A notícia que
acabava de receber deixou-o repentinamente consciente do que
havia vivido em Krasny Bor, a batalha em que o seu corpo lutara
quase sem se dar conta, como uma máquina despojada de espírito,
como uma pequena engrenagem de um mecanismo superior e
insensível. Uma voz interior persuadira-o de que estava preso num
pesadelo, num cenário, num inferno fictício, desligado da verdadeira
vida, da realidade que esperava por ele na calle Barbieri, e acabara
de descobrir que essa voz mentia. Acordando bruscamente do
sonho, os olhos de Adrián encheram-se de todo o sangue que
tinham visto, os ouvidos rebentaram-lhe sob a pressão de todos os
gritos que ouvira, o corpo estremeceu no gelo a que havia
conseguido sobreviver. Tudo isso, os mortos, o medo, os corpos
destroçados, o desespero de combater sob vinte e quatro graus
abaixo de zero, regressou de repente e aprisionou-o. Ele
atravessara aquele inferno, percorrera-o, tinha escapado das suas
garras por pensar no futuro que acabara de se esfumar e que o
havia deixado sozinho com uma guerra que, sem nunca o ter
interessado muito, se transformara na única coisa que tinha.
Na penumbra opaca, mortiça, da desesperança, Adrián Gallardo
Ortega recapitulou, reviu os seus erros, reconheceu que a sua vida
tinha sido um equívoco tão gigantesco que não sabia por onde a
agarrar, por onde puxar para abrir uma fenda que lhe permitisse
escorregar para dentro dela, ocupá-la, voltar a sentir que vivia nela.
Que fizeste, Adrián? Não sei, pai. Com as coisas a ficarem cada vez
mais feias, ele não sabia, não percebia onde se tinha metido, mas
depressa até isso deixou de ter importância. Depressa o Tigre de
Treviño não seria mais do que outro espanhol perdido, exausto,
esfomeado, que já não lutava pela civilização cristã, nem pela glória
do Reich, nem pela extinção do comunismo, mas para salvar a vida
numa guerra perdida. Foi, isso sim, um resíduo de si próprio, uma
silhueta imprecisa num exército de sombras, até que a 12 de
outubro de 1943 voltou a ver Alfonso Navarro no pátio de
Pokrovskaya.
Francisco Franco escolheu uma data rutilante, repleta de ecos de
glórias passadas, para assinar o decreto de dissolução da Divisão
Azul. A efeméride da conquista de Granada e da descoberta da
América não matizou a derrota. O anúncio da criação de um novo
corpo de voluntários espanhóis, a Legião Azul, integrado na
Wehrmacht sob comando alemão, ficou atravessado na garganta
dos divisionários como um caramelo amargo que só opunha ao
sabor do fracasso a doçura duvidosa do martírio, de uma resistência
heroica e inútil a milhares de quilómetros de casa. Todos os que
tinham algum motivo, amor, saudades, dinheiro, uma família, uma
vocação, um futuro pelo qual valesse a pena conservar a vida,
ficaram estáticos quando o coronel pediu voluntários. Adrián não
estava entre eles, mas não era o único. Alfonso Navarro foi o
primeiro a dar um passo em frente.
Vendo-o ali, destacado da tropa, tão arrogante como da primeira
vez, com a pele definitivamente escura, tingida da cor sombria,
mate, de quem nada tem a perder, Adrián hesitou. Não se
identificava com o nazismo, nem tinha vínculos sentimentais com a
Alemanha. Odiava Estaline por tudo o que o fizera sofrer e porque
era inimigo do Deus a quem a mãe o ensinara a rezar em criança,
mas também não tinha motivos para regressar a Espanha, onde só
o esperava a vida insípida de camponês que já havia rejeitado em
tempos. Nunca fora muito inteligente, porém, naquela encruzilhada
percebeu que a guerra lhe havia deixado sequelas com que não
contava, golpes que não soubera encaixar. Já não lhe apetecia
voltar a treinar, recuperar, regressar aos ringues como profissional
sem a tutela de Pirulo. Apercebia-se de que a desgraça do treinador
não era motivo suficiente para justificar a sua renúncia, contudo, não
sentia vontade de discutir consigo próprio. Não sentia vontade para
nada e, mais uma vez, a exceção era Alfonso Navarro López.
A única coisa que Adrián sabia era que nunca mais o queria ver,
que não queria estar em lado nenhum onde o pudesse encontrar.
Por isso ficou no mesmo sítio, embora lhe tivesse custado dominar
as pernas, contradizer o corpo enquanto este lhe pedia que desse
um passo em frente para continuar a cair, a cair sem parar até beijar
o chão da morte.
– Maldito Navarro – murmurou, e, quando estava prestes a
lamentar em voz alta os cabrões dos comunistas que, sabendo
matar tantos, não tinham sabido acabar com ele, a solução surgiu-
lhe ao ouvido.
– Anda, Tigre, vem comigo para a Legião Flamenga. – Jan
estava ao seu lado, como sempre. – Vamos juntos para a Ucrânia
continuar a matar russos, anda… Lá ficamos bem. Isto ainda não
acabou, viste?
A guerra ganhara o primeiro assalto sem que Adrián se desse
conta da desigualdade do combate em que se enfrentavam, mas
naquele momento não pensou na desforra.
Aceitou a oferta de Jan porque achou que era uma oportunidade
de ouro para escapar ao seu destino e ao homem que o perseguia
sem tréguas desde que entrara numa barcaça no porto de Bilbau.
Enganava-se.

14
¿Viste?: Sabes? Percebes? Bengala linguística usada na Argentina. (N. da
T.)
15
Mina: miúda, rapariga. (N. da T.)
16
Plata: dinheiro ou riqueza na América do Sul. (N. do E.)
17
Pibe: rapaz. (N. da T.)
18
Boludo: estúpido, tonto. (N. da T.)
19
Referência a uma canção natalícia espanhola. (N. da T.)
20
Nome pelo qual são denominados os espanhóis, independentemente da
sua origem, na Argentina e em muitos outros países da América Latina. (N. da
T.)
21
Forma de tratamento informal entre amigos. (N. da T.)
É 2 DE FEVEREIRO DE 1943 E JOSEF HANS LAZAR ESTÁ EM MADRID.
O assessor de imprensa da embaixada do Terceiro Reich em
Espanha sabe tudo. Sabe que, a 30 de janeiro, promovendo
Friedrich Paulus à patente mais elevada da escala de comando do
exército alemão, o Führer lhe recorda que nenhum marechal de
campo do seu país alguma vez se rendeu. Que essa nomeação
significa que Hitler espera que ele se suicide antes de se deixar
capturar. Que o marechal de campo Paulus acaba de se render em
Estalinegrado, entregando à União Soviética o que resta do VI
Exército depois de ter perdido cerca de duzentos mil homens, dos
quais quase dois terços morreram.
Lazar sabe sempre tudo e sabe que o mais provável é que em
Estalinegrado se tenha perdido a guerra, ainda assim a única coisa
que o preocupa hoje é conseguir que os espanhóis não o saibam.
Fá-lo admiravelmente, como de costume. Na capa do ABC de 3 de
fevereiro, aparece uma fotografia dramática a preto e branco das
ruínas da cidade soviética e, em caixa, sob o nome Estalinegrado,
um breve texto que equipara a resistência dos últimos soldados
alemães à façanha do desfiladeiro das Termópilas e, evidentemente,
à glória pátria do Alcácer de Toledo. Em lado algum surgem
palavras como rendição ou capitulação e muito menos o nome de
Paulus. A 4 de fevereiro, o ABC mente airosamente aos seus
leitores nas páginas interiores, garantindo que o VI Exército se
recompõe a grande velocidade após o revés de Estalinegrado. E, no
dia 5 de fevereiro, surge com três fotografias que ilustram o que um
título qualifica como campanha submarina triunfal das armadas do
Eixo no Atlântico. A imprensa espanhola comportou-se mais uma
vez como um coro de crianças inocentes sob a direção de Hans
Lazar.
Os diplomatas aliados, que nunca conseguem contrabalançar o
descarado tratamento de favoritismo que o Eixo recebe em Espanha
– teoricamente um país neutro –, propagam, após o fim da
contenda, que tudo não passou de uma operação de compra e
venda, mas isto é só parte da verdade. É verdade que Lazar, o
único diplomata alemão em Madrid que se mantém inalterável no
posto, agindo com idêntica eficácia sob as ordens de três
embaixadores sucessivos, sabe gratificar com generosidade os
jornalistas mais influentes de todas as redações. Porém, o facto de
os meios de comunicação que ele comprou não se terem vendido
mais tarde ao melhor licitador, quando uma volumosa lista de
generais franquistas já cobrava gratificações em libras esterlinas, é
mérito exclusivo de um homem fora do vulgar.
Josef Hans Lazar nasceu em 1895, em Istambul, filho de um
diplomata colocado na embaixada austríaca do Império Turco e de
uma albanesa, de origem, pelo menos em parte, judia. Hans mudou-
se para a Áustria na adolescência para completar os estudos,
bruscamente interrompidos em 1914 pela eclosão da Primeira
Guerra Mundial. As feridas graves sofridas em combate nas fileiras
do exército imperial austro-húngaro provocam-lhe dores crónicas e
dependência de morfina. Reintegrado na vida civil, em 1927, aceita
o cargo de correspondente da Deutsches Nachrichtenbüro, a
agência oficial alemã de notícias, em Bucareste. Ali conhece uma
jovem aristocrata romena, a baronesa Elena Petrino Borkowska,
com quem se casa em 1937. Em 1938, muda-se com ela para
Berlim e torna-se assessor de imprensa da embaixada da Áustria
perante Hitler. O governo do seu país escolhe-o para o cargo graças
à simpatia pública que nutre pelo nazismo, esperando que os seus
contactos lhe permitam trabalhar eficazmente na preservação da
independência austríaca, todavia, mal chega à capital alemã, Herr
Lazar dedica-se a fazer exatamente o contrário.
Baixo, rechonchudo e com uma pele muito escura, o novo
diplomata está filiado há anos no partido de Hitler, apesar de a sua
genealogia infringir todas as leis raciais. As origens nunca lhe trarão
qualquer problema. O Terceiro Reich contrai com ele uma dívida
impagável enquanto trabalha sob as ordens de Goebbels no
gabinete da embaixada austríaca, na qualidade de um apaixonado
propagandista da Anschluss, a anexação do seu país pelo Reich
alemão. Quando o processo se consuma, ele próprio comunica em
Viena aos correspondentes estrangeiros que o país dos seus
antepassados é agora mais uma região da Alemanha de Hitler.
Depois do sucesso obtido nesta missão, o Führer decide enviá-lo
para Espanha, onde ele viverá o resto da vida.
Em junho de 1938, Hans Lazar apresenta-se ao governo de
Burgos como correspondente da agência noticiosa Transocean,
fundada poucos anos antes para propagar os ideais da nova
Alemanha em Espanha e na América Latina. Após a vitória de
Franco, ocupa o cargo de assessor de imprensa da embaixada,
onde, a avaliar pelos comentários que circulam pela cidade,
depressa granjeia mais poder do que o próprio embaixador, o
estilizado, bem-parecido, altíssimo e totalmente ariano Eberhard von
Stohrer.
Apesar do evidente aspeto de judeu de leste e do tom aciganado
da sua pele, Hans Lazar transforma-se numa estrela fulgurante da
vida social de Madrid no pós-guerra. Cosmopolita, poliglota,
cultíssimo, sempre vestido com uma elegância extrema e com um
monóculo de ouro no olho direito, sobressai em qualquer salão
graças aos modos imperiais e à cortesia refinada. É um homem
extremamente astuto e tão inteligente que compreende a essência
do regime melhor do que qualquer outro diplomata de qualquer
nacionalidade. Além disso, Hans Lazar – Bam para os amigos – é
muito simpático, engenhoso, divertido. E a mulher, a baronesa
Petrino – Lenta, na intimidade –, uma grande cozinheira com
enorme sucesso nos jantares seletos que o assessor alemão
oferece em casa frequentemente. Aí, alguns jornalistas, escolhidos
entre os obscuros redatores madrilenos que dificilmente sobrevivem
com os seus salários, além de desfrutarem da requintada cozinha
de Frau Lazar enquanto bebem os melhores vinhos, têm a
oportunidade de conviver, de igual para igual, com grandes
personagens do governo franquista e outros diplomatas nazis,
convidados habituais, em cuja companhia se sentem superiores,
escolhidos para roçarem os dedos no verdadeiro poder.
Assim, as habilidades sociais dos Lazar compram mais
vontades, e mais lealdade, do que os envelopes que Hans distribui,
permitindo-lhe concretizar verdadeiras proezas, como infiltrar-se na
recém-criada agência EFE para difundir a opinião de Berlim na
América Latina ou apoiar-se noutras organizações espanholas sem
que ninguém consiga provar que a embaixada, e muito menos o seu
governo, está por detrás de tais operações. Enquanto vai criando a
opinião pública mais favorável ao Eixo entre os países neutrais,
Lazar trabalha também em benefício próprio. A miséria dos
espanhóis nos anos mais duros do pós-guerra oferece-lhe
oportunidades únicas para reunir uma grande coleção de obras de
arte.
Hans Lazar é a peça-chave e insubstituível da embaixada do
Terceiro Reich em Madrid durante a guerra e mesmo depois. Porque
possivelmente o serviço mais valioso, o mais importante que prestou
na sua vida à Alemanha nazi, se consuma a 5 de junho de 1945.
Nesse dia, quase um mês depois da capitulação de Berlim, os
representantes aliados conseguem finalmente entrar na sede da
embaixada alemã depois de ultrapassados os inúmeros obstáculos
burocráticos com que as autoridades franquistas adiaram o mais
possível esse momento, e o que encontram é um edifício que
parece ter sido saqueado. Não resta nada. Nem documentos, nem
registos de qualquer espécie, nem dinheiro, nem ouro, nem
antiguidades, nem as obras de arte que decoravam as salas dias
antes. Os cofres estão vazios, as paredes nuas, e nem sequer os
móveis sobreviveram à derrota.
A única coisa que os aliados ali encontram é um senhor muito
moreno, envolto num roupão de seda, que avança no corredor.
Quando lhe perguntam quem é e o que faz ali, Hans Lazar sorri,
identifica-se e esclarece que não faz nada de especial, uma vez que
a sua residência privada fica no próprio edifício.
E aquele sorriso é a única coisa que os aliados obtêm da
embaixada alemã em Madrid.
MADRID, 16 DE JULHO DE 1943

A casa ficava situada num ponto equidistante entre duas


paragens de elétrico de Ciudad Lineal. Não era tão grande como as
moradias senhoriais daquele bairro, nem tão pequena como as que,
quase sempre nas esquinas, exibiam um único piso sobre as
mercearias ou o bar ocupado pelo rés do chão. Tratava-se de uma
casa discreta mas bonita, com um jardim tão frondoso que a
fachada só se entrevia do passeio, e tão silenciosa que,
aproximando-nos do gradeamento, me pareceu que os ruídos da
rua, as brincadeiras das crianças, os ecos dos rádios dos vizinhos
embatiam como projéteis inimigos contra a imobilidade de um oásis
de calma. Se só tivesse chegado até ali, pensaria que estava diante
de uma casa fechada, até mesmo abandonada, evidentemente
deserta.
– É aqui. – Porém, o Pepe Moya agarrou decididamente no
puxador de metal, olhou para o relógio e abriu a porta do jardim. –
Vamos.
Avancei atrás dele por um caminho de gravilha tão bem cuidado
que nem uma pedrinha saía das duas linhas perfeitamente retas que
o delimitavam, até chegar a uma escada com três degraus. Por ela
se acedia a um alpendre que sobressaía como um pequeno
caramanchão das paredes cobertas por roseiras trepadoras. Não
era uma casa luxuosa, mas cara, tão cara como qualquer moradia
com jardim numa cidade como Madrid, e o último lugar onde teria
esperado que o Pepe me levasse quando me perguntou se tinha
planos para o dia da Virgem del Carmen. Antes mesmo de
alcançarmos a porta, ela abriu-se sozinha, como se do interior
alguém espiasse a nossa chegada.
– Bem-vindo. – Um homem estendeu-me a mão. – Entre, por
favor.
Era alto, corpulento, quase completamente calvo e falava com
um sotaque do Norte de Espanha, talvez basco, modulado com a
suavidade que distingue as vozes das pessoas bem-educadas.
Situei-o perto dos quarenta anos até os seus lábios se curvarem
numa expressão de menino malandro que me revelou que não seria
muito mais velho do que eu, que ainda não tinha trinta. Porém, nada
me deixou mais perplexo do que o seu aspeto saudável,
descontraído, tranquilo, que não deixava transparecer nenhuma dor
e menos ainda a angústia com que costumava ser recebido nas
casas onde o Pepe me havia levado anteriormente. Dissera-me que
um doente grave precisava de mim, mas no vestíbulo onde
estávamos o silêncio do jardim tornara-se mais denso, tão compacto
como se aquela casa fosse um cenário onde ninguém vivia, nem
sequer o homem que nos conduziu, através de um corredor escuro,
até à luz que se adivinhava no fim.
– Vamos até à sala. Lá fora ainda está muito calor.
Segui-o sem nada dizer e apesar da brevidade do trajeto tive
tempo de corrigir a minha primeira impressão. Estava tudo muito
limpo e no ar pairava um cheiro impreciso, vestígios de aromas de
café, de sabão, de colónia, próprio das casas habitadas. O corredor
terminava numa sala ampla, mobilada de forma díspar. De um lado,
dois sofás confortáveis, modernos, diante de uma mesa baixa de
vidro e, do outro, uma mesa de refeições deixavam espaço livre a
janelas de vidro que se abriam para o jardim interdito devido ao
calor. Sentada numa poltrona, junto de uma mesa de apoio, onde
repousava uma jarra de vidro repleta de cravinas de várias cores,
via-se uma mulher nova, morena, que se levantou mal nos viu
chegar.
– Olá – cumprimentou-me sem levantar a voz, aproximando-se e
apertando-me a mão. – Sou a Elena, muito gosto em conhecer-te.
– Igualmente – repeti, por pura conveniência social, reparando
que parecia gozar de tão boa saúde como o homem que nos tinha
recebido.
– E tu, que tal? – Encarou o Pepe e beijou-o na cara. – Como
estás?
– A transpirar, como vês.
– Claro, com este calor…
– O que te apetece beber? – Aquele que parecia o dono da casa
dirigiu-se a mim, convidando-me a sentar-me num sofá. – Uma
cerveja?
Quando aceitei, a Elena e o Pepe desapareceram por uma porta
lateral, embora ela tenha regressado logo de seguida com uma
bandeja que decerto preparara de antemão, dois copos, uma taça
de azeitonas, uns guardanapos e duas garrafas de cerveja geladas,
cobertas por de um véu branco que gelava o vidro cor de mel
escuro. Quando ela voltou a sair, o homem calvo sentou-se diante
de mim e abriu as duas, antes de me oferecer uma.
– Mahou, a melhor que há. – Bebeu um gole e olhou para mim. –
Queria muito conhecer-te.
– Sim, mas antes de continuar… diga-me que sintomas tem ao
certo.
Ante aquelas palavras, soltou uma gargalhada franca e ruidosa,
a primeira reação espontânea a que assistia desde que chegara
àquela casa onde todos falavam sem nada dizer. O riso dissipou-me
a inquietação, o desassossego sem nome nem forma que se tinha
sentado comigo naquele sofá, e agradou-me. Na minha curta
experiência clínica da clandestinidade, nunca vira tanto secretismo
como naquela moradia de Ciudad Lineal, mas também nunca
conhecera ninguém capaz de se rir daquela maneira.
– O Pepe é lixado! Eu bem lho disse, mas qual quê, ele tem de
fazer sempre o que lhe dá na gana… – Olhou finalmente para mim,
dizendo-me: – Não estou doente. Sei que és médico, que trataste
muitos camaradas, que salvaste a vida de outros tantos, mas podes
guardar esse bloco de apontamentos porque não pedi ao nosso
amigo que te trouxesse para falarmos da minha saúde…
No inverno de 1941, quando consegui alugar casa própria,
tornei-me sócio de um clube de xadrez situado num primeiro andar
da calle Bordadores, perto da Puerta del Sol. Nessa altura, já me
tinha habituado a chamar-me Rafael Cuesta Sánchez e nem sequer
ficava nervoso quando me cruzava com um polícia na rua.
– Não pode ficar aqui muito tempo, menino Guillermo, porque
chamaria muito a atenção. – No primeiro dia de abril de 1939,
depois de me receber com um abraço, a Experta baixou a persiana
da única janela da cozinha, instalou-me na única cadeira, ofereceu-
me um copo de água e desculpou-se por não me oferecer outra
coisa. – Mas não se preocupe, que eu tratarei de tudo.
E uma vez mais foi isso que fez.
Ela, a mais esperta dos dois, decidiu que eu não podia andar
pela cidade sem mala. Eu já tinha começado a inventar uma
biografia fictícia a partir da minha nova cédula de identidade, ainda
assim, não me ocorrera pensar que ninguém acreditaria que eu
estava de regresso a Madrid com duas mudas de roupa numa pasta
de médico. A Experta ainda tinha as chaves da casa da Amparo e
com isso e as duas colheres de prata que investiu para convencer
um trapeiro do seu bairro a fazer duas paragens na calle Hermosilla,
uma ao entardecer e outra de madrugada, de volta a Vallecas,
trouxe-me em dois baús que haviam pertencido a don Fermín tudo o
que conseguiu tirar da minha casa, uma mala de roupa e produtos
de higiene em quantidade razoável para uma viagem não muito
longa. Tentei impedi-la porque temia que a parassem nalgum
controlo, no entanto garantiu-me que uma mulher como ela nunca
teria problemas em andar pela cidade.
– Ao menino parariam, mas a mim? Eu tenho ar de criada,
menino, tenho ar do que sou… Se me perguntassem, bastava-me
dizer que a menina Amparo me tinha pedido que lhe fizesse dois
baús para os enviar para a Galiza e já estava.
– És muito inteligente, Experta.
– Acha? Pois serviu-me de muito, nesta vida…
A mim serviu-me. Ao cabo de três noites em casa dela,
acompanhou-me até uma pensão situada no início da avenida
Albufera. Escolhera-a porque conhecia o dono desde sempre e
sabia que era um habitante de Vallecas invulgar, um facho
desgraçado. Estávamos ambos de acordo em que seria melhor
esperar algum tempo antes de procurar alojamento mais perto dos
bairros que eu conhecia.
Na manhã do dia anterior à minha mudança, lavei-me, barbeei-
me, não totalmente porque tinha decidido deixar o bigode dos
vencedores, e saí muito cedo, caminhando durante mais de uma
hora, o insólito período de tempo que decorreu antes de encontrar
um táxi disponível. O motorista observou-me pelo retrovisor e,
depois de me dizer bom dia, manteve-se calado até lhe perguntar o
preço da corrida. Num banco da calle Alcalá troquei uma nota de
cinco libras esterlinas por pesetas republicanas idênticas às que
trazia na carteira. Depois de lhe explicar que tinha ficado sem
dinheiro de Burgos, o empregado garantiu-me que por uma boa
temporada não circulariam outras na cidade. De seguida, pediu-me
os documentos, entreguei-lhe a cédula que o Manolo Arroyo me
oferecera, olhou para ela, tomou nota do número num registo e
devolveu-ma sem mostrar qualquer interesse. No momento em que
me despedi dele, as pernas tremiam-me tanto que julguei não ser
capaz de chegar à porta. O ar da rua espevitou-me, mas não me
devolveu as forças, pelo que entrei num café, escolhi uma mesa
afastada e pedi um pequeno-almoço completo. Ali enfrentei uma
realidade para a qual não estava preparado. Era isso que procurava
quando deixei crescer o bigode, mas perceber que todos os que me
viam me descreveriam como um fascista, o único tipo de homem
que se teria atrevido a entrar calmamente num café do centro de
Madrid para tomar o pequeno-almoço num dia como aquele,
amargurou-me. No dia seguinte seria pior.
– Arriba España! – O Facundo nem sequer me disse bom dia
antes de levantar o braço, e a Experta espetou-me um cotovelo nas
costelas sem necessidade.
– Arriba! – Porque eu erguera o meu como se um mecanismo
autónomo tivesse puxado pelo fio que levanta o braço de uma
marioneta.
Ela não me imitou. Continuava a meu lado com os braços
cruzados sobre o peito, passeando os olhos pelo vestíbulo da
residencial Moderna como uma espectadora alheia ao que
acontecia à sua volta. O Facundo não se admirou por a vizinha não
responder à saudação e não lhe exigia que o fizesse. Reconhecia-a
pelo que era, o inimigo, e a integridade dela envergonhou-me.
Nesse momento, eu já sabia que havia perdido a guerra, mas só
então comecei a vislumbrar o preço que teria de pagar para
sobreviver à derrota.
Antes de seguir o Facundo pelo corredor, despedi-me da Experta
com dois beijos, como em criança. E, como outrora, ela devolveu-
mos e acariciou-me a cara com a ponta dos dedos. Os olhos
despediram-se de mim com mais calor do que as palavras que
proferiu antes de se ir embora, e ao vê-la transpor a porta senti que
ficava sozinho no mundo. No quarto sombrio onde me instalei, a
minha única companhia era um enorme crucifixo pendurado sobre a
cama.
Nunca tinha dormido sob a custódia de um crucifixo. O meu
primeiro impulso foi tirá-lo da parede e até procurei uma gaveta
onde escondê-lo, contudo, às voltas pelo quarto com ele na mão,
apercebi-me de que não poderia fazer isso e voltei a pendurá-lo no
sítio. Depois, tentei arrepender-me de ter dado ouvidos ao doutor
Quintanilla na manhã da consumação da nossa derrota e não
consegui. Salvei-me porque queria viver, porém, naquele momento,
a vida pareceu-me bastante desprezível, um atributo mesquinho da
minha cobardia. Assim, no meu íntimo, foi nascendo uma fantasia
semelhante à que não me atrevera a concretizar enquanto os
soldados de Franco entravam na minha cidade. Tratava-se
simplesmente de aparecer no hospital no dia seguinte, ir ter com
Paco Arrieta, deixar-me prender e acabar numa cadeia, desfrutando
da companhia de milhares de homens com quem tinha partilhado
quase tudo, com quem poderia começar a partilhar absolutamente
tudo, até a promessa de morte, graças a um único gesto de
coerência, dignidade e coragem. Hoje não o farei, disse para
comigo, hoje não, porque estou cansado, mas não há pressa.
Amanhã ou depois, o resultado será o mesmo…
A primeira noite da minha salvação foi a pior que haveria de
recordar na vida. Deveria ter conciliado o sono pacífico dos
privilegiados, mas não preguei olho. A imagem do meu avô
acompanhou-me a insónia, contrapondo a sua soberba integridade
ao meu medo pobre, pequeno, ao dispositivo que me controlava o
instinto de sobrevivência, de que me envergonhava como se fosse
um vício abominável. Às escuras numa cama alheia, com Jesus
Cristo crucificado sobre a minha cabeça, revi tudo o que perdera.
Tinha uma vocação a que renunciei, um bom trabalho para onde
não podia voltar, uma casa que já não me pertencia, uma amante
que me traiu, um filho que nunca saberia que eu era seu pai. Não
havia motivos que me fizessem continuar a fugir, não tinha nenhum
bem que conservar, mas tinha vinte e cinco anos e queria viver.
Queria viver, preferia arrastar uma vida de impostura com um nome
falso a reivindicar o meu próprio nome e enfrentar as
consequências. Sabia que queria viver, e essa certeza torturava-me
como uma prova de fraqueza, de indignidade do neto que o meu
avô não merecia. Nessa noite, não me lembrei das profecias do
Manolo Arroyo, da naturalidade com que a Experta me havia
escondido, do pedido do filho do alcaide de Fuentidueña, nem da
minha própria inocência. Sentia-me culpado por querer viver, e essa
culpa absorvia-me todas as recordações, envilecia-me a vida do
princípio ao fim e transformava-me, na escuridão espessa da noite,
num ser desprezível.
A luz do dia aliviou a minha angústia, mas não conseguiu
extirpar-me aquele pesadelo da consciência. Apesar de tudo,
aprendi a viver como um impostor. Todas as noites, antes de me
deitar, tirava o crucifixo da parede e escondia-o debaixo da cama,
devolvendo-o ao respetivo lugar no dia seguinte. Todas as manhãs
me levantava cedo como se tivesse alguma coisa que fazer e
caminhava pela cidade durante horas sem destino. Nunca parava
até ter atravessado a Castellana, como se já pressentisse que essa
avenida, larga e comprida, caudalosa como um rio, traçaria a
fronteira entre as vidas de Guillermo García Medina e de Rafael
Cuesta Sánchez.
– Já pode ir fazendo as malas porque lhe arranjei um sítio muito
melhor para viver. – Nunca o teria conseguido sem a Experta. – Um
quarto grande, com duas varandas, na calle Españoleto, em
Chamberí. A dona, dona Enriqueta, é viúva de um advogado, muito
monárquica, mas só isso. Conheço-a há anos porque a minha irmã
trabalhava em casa dela antes da guerra. Vive com uma criada
muito velhinha e com uma sobrinha que se chama María Aránzazu e
que é doida varrida, ainda assim ficará muito melhor com elas do
que com este animal do Facundo…
A dona Enriqueta recebeu-me com uma amabilidade maternal e
anacrónica que me reconfortou a ponto de acrescentar um novo
motivo para as minhas insónias, já que se parecia tanto com a
minha avó que fui obrigado a lembrar-me de que não sabia nada
dela desde julho de 1936. A razão pela qual não tentara remediá-lo
prendia-se mais com o cariz dos meus pressentimentos do que com
a minha situação. Confirmá-los foi a primeira coisa que fiz mal me
instalei no número 24 da calle Españoleto, e a carta que enviei para
a minha tia-avó Mercedes foi o primeiro documento que assinei
como Rafael Cuesta Sánchez.
Não tinha ilusões e fiz bem. Se me respeitasse como médico,
coisa que nunca fez, a minha avó não teria ido para Zarauz em
junho de 1936. Quando a vi pela última vez, depois de lhe arrumar
as malas numa carruagem de primeira classe do comboio que a
levaria ao norte, ela estava prestes a fazer oitenta e seis anos.
Nesse inverno tivera uma síncope cerebral tão grave que os
médicos haviam prognosticado que não recuperaria a fala. Ela
decidiu contrariá-los, mas, apesar de ter voltado a falar como um
papagaio, muitas vezes era incapaz de encontrar a palavra que
queria dizer e proferia outra, o que transformava o discurso numa
amálgama de sílabas sem sentido. O corpo não estava muito mais
saudável e receei que não sobrevivesse à viagem. Contudo, uma
das empregadas telefonou para o hospital no dia seguinte, deixando
o recado de que se encontravam todas bem. Como a minha avó
tinha perdido a capacidade de escrever, esse foi o sistema a que
recorreu para me tranquilizar até o golpe de Estado ter interrompido
todas as comunicações entre a República e a zona rebelde.
Mercedes Fernández Sarmiento, a filha mais nova da única irmã
da minha avó, respondeu a Rafael Cuesta Sánchez, que se havia
apresentado como auxiliar do administrador do prédio situado no
número 49 da calle Hermosilla da capital, numa carta escrita em
Valladolid a 24 de abril de 1939. Numa caligrafia esmerada e com as
palavras necessárias, informava-o de que a dona Aurora Sarmiento
Gutiérrez tinha morrido em Zarauz, Guipúzcoa, em janeiro de 1937,
dois meses antes de a sua irmã Mercedes falecer em Valladolid. De
seguida, pedia-lhe informações acerca do seu primo em segundo
grau, Guillermo García Medina, sem esconder que lhe seriam de
extrema importância para se encarregar das propriedades da tia no
caso de este ter morrido ou, considerando as suas ideias políticas,
estar preso, fugido ou em situação de lhe ser impossível herdá-las.
Quando li aquelas palavras, já tinha chorado. Pelo meu avô, pela
minha avó, pelos meus pais, por todos nós. Na residencial Moderna
não tinha chegado a abrir os baús que a Experta me tinha trazido,
mas fi-lo na calle Españoleto, para que a lembrança do número 49
da calle Hermosilla, o cheiro, as cores, os sons daquela casa se
espalhassem à minha volta através dos objetos dolorosamente
familiares que usurparam de chofre um espaço alheio. A Experta
voltou a honrar o seu nome quando selecionou os bens que
continuavam a ter algum valor material – livros encadernados a
pele, canetas, o relógio que estivera sempre em cima da lareira do
escritório do avô e o que costumava trazer no bolso do colete, o
jogo de toucador de prata e cristal da sua mulher, algumas peças
soltas de prata e estatuetas de porcelana que haviam sobrevivido à
gravidez da Amparo – para encher um dos baús. No outro, tinha
guardado outro tipo de objetos, muito mais valiosos para mim do
que para o mercado negro. Um relógio de xadrez, o tabuleiro
arranhado e as peças sujas, mates de tanto uso, que recebi de
presente quando fiz quinze anos, os contos infantis que nunca tirara
das estantes do meu antigo quarto, os compêndios de medicina com
que havia feito o curso, as placas de estanho que don Guillermo
Medina tinha recebido dos seus subordinados em diversas
homenagens, os instrumentos médicos de reserva que guardava no
meu armário, um exemplar da Constituição de 1931, molhos de
cartas, de fotografias, de postais guardados nas gavetas… Além
disso, encontrei cobertores, lençóis e toalhas que cheiravam à
minha avó, à minha mãe, à minha infância. E alguns brinquedos
antigos que tinha trazido para o caso de o meu filho poder um dia
brincar com eles. O comboio elétrico foi a mola que me soltou o
pranto. Chorei até me sentir vazio, e isso fez-me bem. Chorar era
um desafogo próprio de cobardes e durante muito tempo sentiria
que nenhuma palavra me definia melhor. No deserto sentimental
onde me encontrava, o facto de a minha herança ter ido parar às
mãos de uma parente afastada que nem sequer me lembrava de ter
conhecido não mereceu uma única lágrima minha.
O único legado familiar que conseguira conservar cabia em dois
baús e feria-me tanto que o devolvi a eles. Foram poucas as
exceções, apenas as suficientes para que o homem sem horários,
sem amigos, sem verdades, conhecido como Rafael Cuesta
Sánchez, conseguisse iniciar uma nova vida.
– Chama-me bisbilhoteira, se quiseres, é-me indiferente, mas
ontem à tarde quando saíste do quarto deixaste a porta aberta e…
Isso que tens aí dentro é um relógio de xadrez?
A Experta tinha-me avisado de que ela era doida varrida, mas a
María Aránzazu excedia sobejamente essa definição. Quando a
conheci, aparentava uns quarenta e cinco anos e tinha menos três.
Sobravam-lhe quilos, embora não fosse propriamente gorda. O
corpo largo e robusto, como o tronco de uma árvore quase sem
folhas verdes mas ainda com vigor, a força da juventude,
assemelhava-a muito mais às mães camponesas que cavam as
hortas com as próprias mãos do que às meninas solteiras do bairro
onde vivia, sobretudo porque vestia sem preocupações a primeira
coisa que tirava do armário. A sua indumentária consistia num
número limitado de variantes do mesmo uniforme, uma saia larga
até ao meio da perna, cinzenta ou azul-marinho, combinada com
blusas quase sempre brancas, sem qualquer enfeite além de
alguma nódoa de comida no peito, cujas golas espreitavam por
baixo de um casaco de malha de uma só cor. Era uma mulher muito
feia que, tendo consciência disso, se comprazia em conviver
harmoniosamente com a sua fealdade. Muito de vez em quando,
tapava com uma camada de pó de arroz as pequenas veias
avermelhadas que lhe cobriam a base do nariz, e essa era toda a
maquilhagem que usava. Tinha os olhos muito grandes, mas
protuberantes, numa cara larga que se afilava de repente para
terminar num queixo bicudo, minúsculo, que chamava a atenção
para a papada e a desproporção de um pescoço muito curto ante o
tamanho da cabeça. Usava o cabelo castanho, suficientemente
escuro para que se vissem bem os brancos que o salpicavam, solto,
tal qual ficava depois de o lavar, pelos ombros, e ela própria ia
cortando, a olho e com a tesoura da cozinha, as madeixas que
cresciam. No dia em que a conheci, a dona Enriqueta franziu os
lábios numa expressão involuntária de desagrado, como se a
envergonhasse apresentar-ma.
– Que nem te passe pela cabeça chamar-me Arancha. – Mas
apertou energicamente a minha mão, antes de apontar para si
própria. – Era o que me faltava, com esta beleza que Deus me deu.
Até ao princípio de junho, a vida que levei em casa da dona
Enriqueta não divergiu muito da que levava na residencial do
Facundo. Como estava de volta ao centro, andava menos, sem
nunca ultrapassar a margem oeste da Castellana, todavia, o único
objetivo daquelas caminhadas era convencer-me a mim próprio
mas, sobretudo, à minha senhoria, de que fazia alguma coisa. Saía
cedo todas as manhãs, tomava o pequeno-almoço num café e
caminhava por um tempo indeterminado que muitas vezes
terminava de forma abrupta quando via uma mulher a chorar à
entrada de um prédio ou avistava no horizonte um grupo de
soldados ou de polícias armados. A minha fantasia de me entregar
ao Paco Arrieta foi perdendo força, mas nesses momentos era
tentado pela ideia de me aproximar deles e de acabar com a
situação de vez. A certeza de que nunca o faria jamais me torturou
tanto como na manhã que escolhi para ir a uma esquadra a
abarrotar de gente.
– Documentação – ladrou o guarda da porta, mas, ao vê-la, a
expressão e a voz suavizaram-se-lhe ao mesmo tempo, como um
cão que tivesse acabado de mudar de raça. – Vá diretamente para o
guiché 7, senhor. É lá que trocam os documentos da zona nacional,
não terá de esperar muito tempo.
Só tinha três pessoas à minha frente, ainda assim tive tempo de
sobra para observar a multidão de madrilenos que se apinhavam
nas seis primeiras filas. Aqueles homens nervosos que não erguiam
os olhos do chão, aquelas mulheres curvadas pelo cansaço tinham
defendido a cidade comigo durante quase três anos de carestia, de
bombardeamentos e de desesperança que se tornaram eternos.
Eram meus iguais, meus companheiros, os habitantes da verdadeira
Madrid, da única que eu reconhecia, da única que me pertencia, e
vê-los submetidos, esmagados pela minha mesma derrota, na fila
do guiché 7, pôs-me mais uma vez à prova. Ninguém o diria porque,
chegada a minha vez e com um sorriso que desmentia a agitação
interior, com todas as minhas vísceras a competirem ferozmente
para me saírem pela boca, entreguei a cédula de Rafael Cuesta
Sánchez a um funcionário que não me prestou muita atenção
enquanto preenchia uma requisição com os meus dados.
– Aqui está um documento provisório. Pode vir buscar a
documentação daqui a oito dias.
Cheguei à rua sem quaisquer contratempos, tão desmoralizado
que nem sequer me apercebi de que a cena que tinha acabado de
viver representava um enorme sucesso dos serviços de inteligência
da República, que haviam introduzido um inimigo na capital de
Franco sem nenhuma dificuldade. Nesse momento, não conseguia
imaginar quantos antifascistas beneficiariam durante décadas da
astúcia do meu amigo Manolo, porém, é possível que nem isso me
tivesse consolado.
– É que és muito novo, Rafa… ou lá como te chamas. – A María
Aránzazu, que nunca soube a verdade, mas que começou a
desconfiar dela horas antes, atribuía todas as minhas mudanças de
humor à mesma causa. – Mas não te preocupes, filho, que isso
passa-te num instante. Antes de te dares conta disso.
Nesse dia, ao almoço, a dona Enriqueta chamou-me em vão
algumas vezes, e a sua outra hóspede, a Milagritos San Sebastián,
uma soprano relegada pela idade ao coro de uma companhia de
teatro lírico que havia passado a guerra em digressão pela zona
franquista e acabara de chegar a Madrid, teve de me abanar
suavemente para que eu prestasse atenção à nossa senhoria.
Enquanto lhe pedia desculpa e alegava que estava distraído, mas
que adoraria repetir o estufado, a María Aránzazu observou-me com
um interesse que eu nunca lhe havia despertado. Apercebera-se de
que eu não tinha respondido porque a tia me tinha chamado Rafael,
porém nada disse. Nessa noite não consegui dormir e a insónia
aumentou a dor de cabeça com que havia saído da esquadra. Farto
de dar voltas na cama, levantei-me, percorri o corredor sem fazer
barulho e fui à cozinha buscar uma aspirina. A luz estava apagada e
ao pressionar o interruptor ouvi um grito.
– Ai, bolas, que susto!
A María Aránzazu, com uma camisa de noite de corte infantil cor-
de-rosa clara, semicoberta por um roupão da mesma cor, estava
sentada à mesa da cozinha com um cigarro nos lábios, uma garrafa
de anis e um copo pequeno de cristal facetado, que acabou por
beber de um gole, para se acalmar do susto.
– Eu… peço desculpa… – balbuciei. – Como a luz estava
apagada…
– Que queres? – Agitou o queixo pequeno e pontiagudo na
direção da porta do quarto de serviço. – A Severina está surda, mas
não está cega. E não tenho confiança nenhuma na Milagritos.
– Bem, eu… Vinha buscar uma aspirina porque me dói muito a
cabeça.
– Já ta dou, mas… – Levantou-se e olhou para mim. – Não te
apetece um copinho?
– Bem… – Conseguiu ver nos meus olhos que me apetecia.
– Claro, rapaz. – E tirou do armário um copo de cristal igual ao
seu. – Temos de fazer alguma coisa para suportar esta vida de
merda, não achas?
Naquela noite estivemos a conversar, a fumar e a beber na
cozinha até ao amanhecer.
– Gostava de te oferecer uma coisa melhor, mas este anis
horroroso é a única bebida que consigo comprar com o dinheiro que
a forreta da minha tia me dá. Já te deves ter dado conta de que sou
a parente pobre. A minha mãe, única irmã do meu tio, engravidou,
nunca se soube de quem, quase aos quarenta anos. Eu sempre
pensei que o meu pai era basco, sobretudo por causa deste nome
tão estranho que a minha mãe me deu, bom, estranho em Burgo de
Osma, porque aqui em Madrid há de tudo, já se sabe…
Num murmúrio rítmico e entrecortado, que dava um timbre
aveludado, quase doce, à sua voz rouca de fumadora, a María
Aránzazu convidou-me a fazer parte da sua vida sem me exigir que
contasse o que quer que fosse da minha.
– Eu cresci na aldeia, em casa dos meus avós, com a minha
mãe. Mas todos eles foram morrendo, e aos dezasseis anos o meu
tio trouxe-me para aqui. Era um homem bom, muito melhor do que
esta, só que não sabia o que fazer comigo. Em Burgo de Osma
frequentei a escola em criança, mas só aprendi a ler, a escrever e a
contar. Com isso, teria conseguido empregar-me numa loja, mas a
minha tia não achava que fosse um trabalho decente, de modo que
tive de ficar em casa a aborrecer-me e a aturá-la. O meu tio queria
casar-me, mas eu… – Parava de vez em quando para acender um
cigarro com o outro. – Não me apetecia viver com um imbecil que se
achasse no direito de me dar ordens, sempre fui muito
desobediente, sabes, desde pequenina. O único pretendente que
me calhou foi um carniceiro que não podia com uma gata pelo rabo,
mas que passava o dia todo a meter-se no que não devia, põe
chapéu para saíres comigo, em minha casa não gosto que uses
calças, ouve o que te digo, queridinha… Queridinha chamava-me o
tipo, a mim, queridinha… Vá lá, não me lixes.
– Que filho da puta! – comentei com um sorriso. – Olha que
chamar-te queridinha… – E a minha ironia arrancou-lhe um sorriso.
– Não é verdade? Mas não te enganes, hã? Porque não sou
feminista, nem moderna, nem nada disso. Eu não gostava nem um
bocadinho dos vermelhos. Também não gosto dos padres, mas daí
a ver igrejas a arder… Assustavam-me, vê lá bem, a mim que nunca
tive medo de nada, mas aquela mania de acabar com tudo, tanto
tipo mal-encarado de pistola pela rua a gritar que a revolução estava
a chegar… Embora reconheça, de qualquer maneira e para ser
sincera, que durante a guerra até estava bem melhor do que agora.
A minha tia e a Severina ficavam todo o santo dia fechadas a rezar
o terço, mas eu saía, entrava, bebia um copo num café se me
apetecesse, andava pela rua de calças, fumava em público, ia ao
cinema sozinha… Sentia-me no céu, essa é a verdade, só que
neste país de um raio já se sabe que nunca há meio-termo. Aqui, ou
a revolução ou o convento, não temos hipótese.
No dia seguinte, acordei mais tarde do que o costume e saí com
um verdadeiro objetivo. À hora do almoço, quando a María
Aránzazu me disse que sabia jogar xadrez, no armário do meu
quarto estavam já duas garrafas, uma de porto e outra de conhaque,
que havia comprado para ela.
– Ai, que alegria! – exclamou, quando veio jogar uma partida. –
És um santo, um anjo do céu… Vou buscar uma mesa, não demoro
nada.
A partir desse dia, aquela mulher invulgar, áspera até na forma
como demonstrava carinho, dulcíssima na sua constância,
transformou-se no primeiro elemento autêntico da verdadeira vida
do Rafael Cuesta Sánchez, um homem que graças a ela começou a
existir à margem de um desaparecido chamado Guillermo García
Medina e a acreditar na sua própria existência.
– Ai, desculpem, não sabia que estavam aqui.
Antes de os bispos entrarem em campo aberto, a Milagritos San
Sebastián apareceu no umbral do meu quarto, cuja porta tivéramos
a precaução de deixar aberta para dissipar qualquer equívoco.
– Guarda isto. – A minha cúmplice terminou a bebida e passou-
me o copo por baixo da mesa. – Porque esta deve estar a chibar-se
ou não me chame María.
De facto, a dona Enriqueta apareceu imediatamente para
expressar frouxamente a sua desaprovação, mas a sobrinha
antecipou-se a todas as objeções.
– Tia, estamos só a jogar xadrez, como quando eu jogava com o
tio, não te lembras? Se formos para a sala, dentro de um quarto de
hora chega o namorado da Milagritos…
– O noivo, queres dizer.
– Bom, nesse caso, o noivo. A questão é que ele vai sentar-se
ao piano, ela começará a cantar romanças e não haverá meio de
nos concentrarmos. Além disso, tia Enriqueta… – Olhou para ela,
olhou para mim e desatou a rir. – O don Rafael podia ser meu filho!
O que haveria ele de querer de uma velha como eu? Bem que eu
gostava…
– María Aránzazu! – A dona Enriqueta fez aparecer num instante
todo o rubor que jamais colorira as faces da sobrinha.
– Mas, tia, é uma maneira de dizer…
Todas as tardes, a minha nova companheira sentava-se diante
do tabuleiro, numa mesa com um só copo, de onde ambos
bebíamos, e um maço de cigarros que dividíamos, sempre
pendentes do barulho de passos que anunciassem a presença de
intrusos no corredor. A María Aránzazu não jogava tão bem como o
Manolo, mas defendia-se, e, embora eu a deixasse ganhar uma vez
por outra, sobretudo quando ela fazia um jogo mais brilhante do que
o habitual, de vez em quando, conseguia uns empates legítimos,
que festejava como uma vitória. No número 24 da calle Españoleto,
como antes no 49 da calle Hermosilla, o xadrez voltou a ser mais do
que um jogo. Por isso, porque funcionou como um pretexto para
aprofundar uma amizade secreta e benéfica para ambos, de vez em
quando, a María Aránzazu desistia de pedir a desforra.
– Esta noite, às dez e meia, estreiam um filme no Capitol
chamado A voz irresistível. Pelo título, parece ser de freiras, mas eu
estive a ver e não é, porque é americano. E como, nem de
propósito, há uma novena da Imaculada Conceição no convento das
Trinas…
Saíamos sempre antes, por volta das nove menos um quarto,
adaptando-nos ao horário da igreja que servisse de desculpa à
María Aránzazu.
– Como don Rafael combinou encontrar-se com uns amigos,
acompanha-me à ida e depois vai buscar-me.
– Está bem, está bem. – De início, a dona Enriqueta demorou a
morder o anzol. – Muito bem, filha, mas não sei quando te tornaste
tão religiosa.
– Bom… – Embora a sobrinha a soubesse manipular. – Nesse
caso, fico a fazer-te companhia, se preferires. Quem sai a ganhar é
don Rafael.
– Não, não, não. – Já no corredor, de regresso ao quarto, com os
sapatos numa mão e a carteira na outra, a voz da tia detinha-a a
tempo. – Vai à novena, filha, vai…
A primeira vez que representei um papel nesta cena não cheguei
a percebê-la, porque podíamos ter ido ao cinema à tarde sem
nenhum pretexto tão elaborado como a devoção repentina da María
Aránzazu. No entanto, à noite, ao voltarmos para casa, apercebi-me
de que havia mais qualquer coisa.
– Sobe, que eu vou mais tarde – disse-me diante do elevador,
tirando da carteira uma chave grande, antiga. – Não esperes por
mim a pé porque vou demorar algum tempo.
Continuou a percorrer o corredor que ligava a entrada ao pátio,
para onde davam as antigas cocheiras, e abriu com essa chave uma
cancela de ferro por onde se acedia ao pátio do edifício contíguo.
Antes de entrar, encarou-me e, num sussurro, disse uma frase que
ouvi perfeitamente no silêncio compacto da noite.
– Temos de fazer alguma coisa para suportar esta vida de
merda, não achas?
E foi assim que me tornei cúmplice e encobridor dos amores
clandestinos da María Aránzazu e do Matías, o porteiro do número
26, um bêbedo pequeno e careca, mais velho e mais baixo do que
ela, mas muito divertido, que tinha aproveitado a guerra para deixar
a mulher esquecida numa aldeia de Alicante. As nossas noites de
cinema garantiam à minha amiga encontros tranquilos e seguros,
sem necessidade de se manter acordada horas a fio para poder sair
em bicos de pés, arriscando-se a ser descoberta e sobretudo a que
o seu amante ferrasse no sono antes de ela chegar. Ainda assim,
não foi a única que saiu a ganhar.
– Espera um pouco…
Numa noite de agosto, enquanto prolongávamos o caminho de
regresso a casa pela calle Alcalá para fugirmos ao calor, vi um
cartaz colado à entrada de um prédio. Li: EMPRESA DE TRANSPORTES LA
MERIDIANA. REABERTURA IMEDIATA DEPOIS DA VITÓRIA DO NOSSO GLORIOSO
EXÉRCITO NACIONAL. PRECISA-SE DE FUNCIONÁRIOS PARA OS DEPARTAMENTOS
DE TRANSPORTES NACIONAIS E INTERNACIONAIS. IMPRESCINDÍVEL FALAR
LÍNGUAS.
No primeiro dia de setembro de 1939, apresentei-me às oito da
manhã. Tinha madrugado para ser dos primeiros, mas mais de trinta
pessoas, quase todos homens, tinham chegado antes de mim. Era a
primeira vez que atravessava a Castellana desde o fim da guerra,
porém não me arrependi.
– Por favor, deem um passo em frente os candidatos que falam
uma língua estrangeira. – Só seis pessoas avançaram. – Muito bem,
agora os que falam duas.
Eu fui o único a dar outro passo e o primeiro a entrar no
escritório do don Gabino de la Fuente, dono da empresa.
– Muito bem – disse-me ele, depois de preencher um formulário
com os meus dados – Agora, fale-me em todas as línguas que sabe.
– La cigale, ayant chanté tout l´été, se trouva fort dépourvue
quand la bise fut venue, pas un seul petit morceau de mouche ou de
vermisseau…
– Isso o que é? – perguntou-me com o sobrolho franzido. –
Francês?
– Sim, é uma fábula de La Fontaine que aprendi em criança.
– Bom, agora diga-me alguma coisa em inglês, e que não seja
um poemazito.
O meu inglês era bastante pior do que o francês. Por isso, havia
escolhido esta língua para falar com o doutor Bethune; no entanto,
enquanto o Instituto funcionou, pratiquei conversação com alguns
canadianos. O meu sotaque era horrível, mas tive a impressão de
que o meu interlocutor não estava em condições de avaliar
semelhantes deficiências.
– Bem… – Tinha pensado em recitar-lhe Humpty Dumpty, mas
felizmente tinha outra frase preparada. – The first sentence that
Spanish students usually learn when they begin to speak English is
my tailor is rich.
– É suficiente – avaliou o homem que, de facto, não tinha
percebido uma única palavra do que eu havia dito, antes de levantar
a cabeça como se uma vespa o tivesse picado na nuca. – Você não
é vermelho, pois não?
– O quê? – Assustei-me tanto que fiquei desfigurado, no entanto,
ele confundiu o meu pavor com indignação. – Mas porque me
pergunta isso?
– Desculpe, não queria ofendê-lo, mas como me disse que tinha
aprendido francês em criança e o fala tão bem… – Esboçou um
sorriso desconfiado. – Os vermelhos eram os únicos que se
interessavam por línguas, era nas escolas deles que se aprendiam,
e como você não fala alemão…
– Bem… – Nunca me ocorrera que alguém pudesse pensar
assim e não tinha resposta preparada, contudo, nesse instante o
telefone tocou. – Se quiser, conto-lhe a minha vida – propus quando
ele desligou, depois de me ter dado uns minutos preciosos. – Veja, o
meu pai era professor…
– Não, por favor, não é preciso. – Estendeu-me a mão por cima
da mesa. – O lugar é seu. Precisamos mais de poliglotas do que de
pão para a boca.
No dia seguinte, comecei a trabalhar em La Meridiana como
funcionário de transportes internacionais, um trabalho de escritório
monótono, entediante e muito pouco exigente em que não foi muito
difícil destacar-me. Apesar de me ter permitido matricular-me numa
escola de línguas para aperfeiçoar o inglês, o salário inicial não era
muito alto, no entanto o meu chefe estava tão satisfeito comigo que,
em fevereiro de 1940, me atribuiu uma comissão por cada tonelada
de mercadoria transacionada e a minha vida ancorou na margem
plácida de uma existência tão vulgar e tranquila como os assuntos
dos quais tratava no escritório. Porém, sentia saudades do
Guillermo. Sentia falta da vida dele, dos seus amigos, do trabalho no
hospital. Sentia falta do sexo com a Amparo e de um menino que
fizera dois anos em setembro de 1940 e que eu não conseguiria
reconhecer se o visse na rua.
– Mas é a sua cara chapada, menino Guillermo.
Ela continuava a ser a única ponte entre as minhas duas vidas, a
única pessoa que conhecia as duas identidades de um homem que
sempre fui eu.
– Chama-me Rafael, Experta, por favor.
– Ai, é que não me sai! Conheço-o desde que nasceu e agora…
Mas por isso é que sei que o menino é igualzinho a si, mas igual
igual. É o que a menina Amparo diz sempre. Vejam só! Com o
poucochinho que pôs e é cuspido escarrado.
– Eu não pus pouco, Experta. Tu bem sabes.
– Sim, mas o menino também sabe como ela é. E como voltou a
viver com a família, em que todos acham que descendem do sovaco
de Cristo…
Ia visitá-la a Vallecas quase todos os domingos à hora de almoço
e costumava convidá-la a comer nalguma tasca próxima, com as
filhas, se elas quisessem. Já não tinha em casa nenhum filho varão
porque os dois que haviam sobrevivido estavam a cumprir pena na
mesma penitenciária militar e, quando conseguia ir visitá-los, ela
faltava ao nosso encontro. Eu nunca faltei porque sem a Experta
não teria ido a lado nenhum, porém só conseguia diminuir com o
bem mais barato, o dinheiro, uma dívida que nunca poderia saldar.
– E tu…? Aonde vais todos os domingos, pode-se saber? –
perguntava-me a María Aránzazu de vez em quando.
– Imagina – respondia-lhe com um sorrisinho. – Ou será que os
outros não podem fazer alguma coisa para suportar esta vida de
merda?
Em 1940, estive quase a morrer de tédio. O casamento
primaveril da Milagritos San Sebastián com o seu noivo pianista foi o
que de mais interessante me aconteceu na primeira metade do ano.
No fim de agosto, a chegada de um novo hóspede provocou, no
entanto, alterações relevantes, que se foram tornando mais notórias
à medida que nos aproximávamos de 1941.
– Quero que saibas antes dos outros, Rafa. – A primeira
verificou-se na cabeça da María Aránzazu, que naquele outono foi
todas as semanas ao cabeleireiro e não só para pintar os brancos. –
Vou casar-me com o Amador. – Depois, começou a deixar-me
pendurado diante do tabuleiro durante a tarde. – Ele está decidido,
eu, de início, não queria, mas não te vou mentir… – Até que numa
noite de dezembro a encontrei a conversar com ele de madrugada,
numa cozinha sem copos nem cinzeiros. – A verdade é que tenho
medo. Sou velha, sou feia, estou sozinha e a minha tia não vai viver
muito mais. Hoje também não quis levantar-se da cama e, quando
morrer, não sei… Ela tem outros sobrinhos, sabias? Diz-me que me
vai deixar tudo, mas não me fio nisso e tenho medo de ficar na rua,
sem ofício nem benefício, de um dia para o outro. Não sou tão
corajosa como aparento, essa é a verdade.
O Amador Fernández rondava os sessenta anos e o seu aspeto
não diferia muito do do Matías, mas não era nada divertido.
Compensava um feitio seco, árido, com uma cortesia melíflua que
não escondia a educação seminarista. Embora tivesse renunciado
ao sacerdócio, praticava um catolicismo rigoroso com laivos de
virilidade, numa mão a Bíblia e na outra a espingarda, tão na moda
à época. Viúvo sem filhos, o seu afeto pela María Aránzazu era um
daqueles mistérios desconcertantes da alma humana contra os
quais embatem quer a razão quer a intuição. Para mim, que naquela
casa a conhecia melhor do que ninguém, era difícil imaginar uma
mulher menos compatível com ele do que a sobrinha da dona
Enriqueta e, no entanto, fui testemunha das atenções e lisonjas com
que a tratou desde o primeiro dia.
– Então vais ter de ir realmente às novenas. – Foi tudo o que me
ocorreu dizer quando ela me deu a notícia.
– Até me casar, porque depois ‘tá quieto… – Desatámos ambos
a rir ao mesmo tempo, mas o seu bom humor depressa se extinguiu.
– É um bom homem, sabias? Vou ter de voltar a fazer tudo às
escondidas como quando tinha catorze anos, mas hei de aguentar.
Tu, no entanto… Olha, Rafa, não sei quem és. Não sei de onde
saíste e nunca me interessou, mas pelo que conheço de ti… O
Amador fez a guerra como ajudante de um coronel de Artilharia.
Passa a vida a dizer que aqui as coisas não foram bem feitas, que é
preciso limpar Espanha, desmascarar os vermelhos que continuam
escondidos e já me interrogou algumas vezes a teu respeito. Diz
que um homem da sua posição tem de ter a certeza da honestidade
das pessoas com quem vive, que, quando te pergunta onde fizeste
a guerra, não respondes com clareza, é uma coisa, é outra…
Enquanto eu estiver nesta casa, não te acontecerá nada, já sabes.
És o meu único amigo e nem imaginas como vou sentir a tua falta,
mas estive a pensar e creio que é melhor que te vás embora. Quem
evita a tentação…
Não acabou de dizer o provérbio porque os olhos se lhe
marejaram de lágrimas. Eu sabia que não chorava por mim, mas por
si própria, pela derrota que pressupunha um casamento no qual
expiravam os seus vícios inocentes, a pequena liberdade da sua
vida de solteira. Conhecia muito bem o significado do verbo
claudicar, pagava o preço diariamente e, naquele momento, senti-
me mais próximo da María Aránzazu do que de qualquer outra
pessoa desde o fim da guerra. Para um fugitivo que julgava ter
renunciado aos sentimentos, essa emoção nostálgica, cálida, era
um bem precioso. Foi assim que me dei conta do muito que devia
àquela mulher e do quanto gostava dela.
– Eu também vou sentir muito a tua falta, mas não te preocupes
– disse-lhe ao ouvido, abraçando-a e embalando-a como uma
criança. – Temos muitos dias pela frente para voltarmos a jogar e a
embebedar-nos juntos.
– Não tenhas ilusões – murmurou. – Isso poderia acontecer
noutra época, noutro país, mas aqui, agora… Esta vida é uma
merda, Rafa. E o pior é que não temos outra.
A 1 de fevereiro de 1941, mudei-me para um apartamento que
encontrei através do Matías. Paguei-lhe uma renda e meia de
comissão, que ele dividiu com a porteira do número 5 da calle
Apodaca. Não me custou fazê-lo porque, se a dona Benigna não
tivesse guardado durante algumas horas o cartaz a dizer ALUGA-SE
que o administrador lhe tinha dado para pendurar à entrada, eu teria
demorado meses a encontrar uma casa pior do que aquele segundo
andar, que fazia esquina e tinha muita luz. Para o mobilar precisei
de esvaziar o baú que a Experta chamava das coisas caras, porém
não me importei com isso. Com o meu salário e sem a obrigação de
manter uma família, tinha de sobra para viver sem apertos, sendo
que a sensação de voltar a ter casa própria me tranquilizou tanto
como se chegasse a bom porto depois de uma longa travessia. No
número 5 da calle Apodaca, soltei-me definitivamente do rasto de
Guillermo García Medina, uma identidade que para mim era um
invólucro, um agasalho que podia pendurar num cabide e guardar
num armário, vestindo-o só quando ninguém me visse. E, no
entanto, justamente nessa altura, num clube de xadrez da calle
Bordadores, o passado alcançou-me.
– Pretas ou brancas, tanto me faz. Vais ganhar-me de qualquer
maneira…
Tinha empatado na última partida daquela tarde e estava furioso
comigo próprio porque, segundos depois de sacrificar uma torre, me
apercebi do erro irremediável. Acabei por culpar a primavera, fui
lavar a cara à casa de banho e, regressado à mesa para recolher as
minhas coisas, deparei com um novo adversário. Não era o
procedimento habitual do local, onde as partidas se programavam
com antecedência, mas a minha desatenção tinha-me aborrecido
tanto que decidi aceitar o desafio daquele voluntário. Antes de lhe
ver a cara, ouvi-lhe a voz, luminosa e juvenil, como um eco de
tempos melhores. De seguida, emocionei-me tanto que tive de me
sentar.
– Pepe Moya! O que fazes aqui?
O meu primeiro ressuscitado estava com bom aspeto. Muito
magro, como todos nós, mas a roupa civil assentava-lhe bem, a
franja ladeada na testa, o sorriso com que respondeu ao meu
assombro e no qual não me detive muito tempo.
– Dá-me um abraço, homem – disse, levantando-me. Quando ele
me obedeceu, acrescentei num sussurro: – Não me chames
Guillermo. – Senti que abanava a cabeça. – Agora chamo-me Rafa.
– Já calculava – murmurou-me ao ouvido, dizendo depois em
voz alta: – Bom, uma vez que não queres ganhar-me, vamos beber
alguma coisa, que me dizes?
Saímos juntos, sem falar, para uma esplendorosa tarde de abril e
só ao chegarmos ao bulício da calle Arenal nos voltámos a abraçar
para celebrarmos o nosso encontro. Depois, numa mesa isolada de
um café meio vazio, ele contou-me que andava há três meses à
minha procura.
– A varanda da tua casa tem um cartaz a dizer VENDE-SE. O
porteiro, que só trabalha lá há uns meses, disse-me que a
proprietária, a dona Mercedes, conta coisas horríveis do dono
anterior, apesar de ele ser primo dela. Já tinham dado um sinal, mas
eu insisti em vê-lo como se estivesse muito interessado e puxei-lhe
pela língua. Contou-me que quase metade dos moradores são
novos, que depois da guerra se venderam muitos dos andares, mas,
de qualquer forma…
– Não te preocupes. – Sorri. – Só atravesso a Castellana para ir
trabalhar e nem me aproximo da Puerta de Alcalá.
– Ainda bem. – Ele devolveu-me o sorriso. – Embora não creia
que corras muito perigo. A tua prima andou a dizer que foste para
França ou para a América, mas eu tinha quase a certeza de que, se
ainda estivesses vivo, estarias aqui. Não apareces na lista de
nenhum barco, em nenhum comité de exílio, os nossos presos
também não te conhecem, de Madrid ninguém conseguiu sair para o
estrangeiro e numa cidade mais pequena chamarias muito a
atenção, pelo que continuei à tua procura. Lembrei-me do Felipe,
mas nunca soube o verdadeiro nome dele e pela descrição não
consegui identificá-lo, de modo que… tentei os hospitais. Fui
perguntando por ti com muito cuidado e encontrei muita gente que
te conhecia. Sim, claro, aquele filho da puta que ressuscitava os
vermelhos!, disse-me o diretor do teu hospital, mas aqueles que não
te davam como morto julgavam que estavas na prisão. Tentei os
dispensários, as Casas de Socorro, nada… A Universidade
Complutense anulou-te a licenciatura no verão de 1939 e a Ordem
dos Médicos cancelou-te a licença um mês depois. Oficialmente já
não és médico, não sei se sabes.
– Não – neguei com a cabeça, enquanto a amargura me
arrepanhava os lábios –, não sabia. O Felipe encontrou-se comigo
um mês e meio antes de os fascistas entrarem em Madrid e avisou-
me de que nem me passasse pela cabeça reivindicar o diploma,
mas… Não imaginava que as coisas estivessem assim.
– Não estão assim, estão piores. – Pepe levantou a mão, tão
sorridente como se tivesse acabado de contar uma anedota,
chamou o empregado, pediu duas cervejas. – Estão a purgar
profissões inteiras: médicos, professores universitários, ferroviários,
professores primários, juízes, advogados, não escapa ninguém. A
boa notícia é que te escondeste como o caraças, não há maneira de
te encontrar. Ainda bem que me lembrei do xadrez, caso contrário…
– Felizmente, porque fico muito contente por te ver. O que não
percebo… – Parei para escolher bem as palavras. – Por que razão
procuraste tanto por mim?
– Porque sou o raio de um selvagem, sabes disso – Soltou uma
gargalhada e senti o impulso de fechar os olhos para que o som me
devolvesse ao primeiro andar da calle Hermosilla 49, ao cheiro da
Amparo, à companhia do Manolo Arroyo, à esperança de ganhar a
guerra. – Devia facilitar-te a vida, mas a única coisa que faço é lixá-
la. Quando me pedem que descubra um médico, só consigo pensar
em ti porque és o único que conheço… – Olhou para um lado,
depois para o outro, inclinou-se, baixou a voz, e uma luz antiga,
conhecida, cintilou-lhe nos olhos. – Precisamos de médicos porque
não nos rendemos. Temos gente a lutar na serra e aqui, na cidade.
Além das feridas causadas pelas balas, os guerrilheiros adoecem e
não podem ir tratar-se ao hospital. Morrem camaradas que
poderiam continuar vivos porque não sabemos o que fazer com
eles, e depois há as famílias dos presos, que não têm um cêntimo,
que não sabem a quem recorrer, que só têm o Partido… Tu és um
médico muito bom, sei-o porque é graças a ti que estou vivo.
Sempre foste corajoso e agora, além disso, não existes, pelo que
não conseguiríamos arranjar ninguém melhor. Para nós seria ótimo,
para ti… Não te vou enganar. Não temos dinheiro para te pagar e
também não posso garantir-te que este seja um trabalho isento de
riscos. Não se espera que aconteça nada, não exporíamos alguém
tão valioso para nós, mas, se um dia fizerem uma rusga num
apartamento clandestino e tu estiveres lá, a tratar de alguém… –
Nesse momento deixei de o ver bem. – Que tens? – Baixei a cabeça
e senti a mão dele no meu antebraço. – Estás a chorar?
– Não, que ideia! – Claro que estava a chorar. – Vou um instante
à casa de banho.
Mais tarde, falei-lhe muitas vezes daquilo. Tentei explicar-lhe o
que a oferta representou para mim, o que senti quando me fechei na
casa de banho aceitando um golpe de sorte que me redimia aos
meus olhos, que me devolvia o que tinha de mais valioso, que me
devolvia à vida de Guillermo García Medina quando julgava tê-la
perdido para sempre. Voltar a exercer medicina era um prémio, uma
oferenda de valor incalculável que significava muito pouco, quase
nada, em comparação com a dignidade recuperada, com a
possibilidade de voltar a ser mais um e de ser útil, de correr riscos
pelos outros e de me sentir novamente orgulhoso do neto do meu
avô. A luz que brilhava nos olhos do Pepe dissolvera num instante a
sombra do meu egoísmo, a miragem da minha cobardia e solidão, a
sensação de ter mudado de lado para jogar com vantagem num
tabuleiro que não era o meu. No lavabo daquele café, enquanto
chorava e parava de chorar, reconciliei-me comigo próprio por não
ter voltado ao hospital, por não me ter entregado ao Arrieta, por não
ter avançado com os pulsos unidos na direção de qualquer um dos
polícias com quem me cruzei na rua. De um recanto já fraco da
memória, o velho argumento do doutor Quintanilla irradiou uma luz
ainda mais forte e recordou-me de que eu teria sido tão inútil na
cadeia como na frente, que o meu lugar era numa sala de
operações ou em qualquer outro sítio semelhante. Naquela tarde, o
Pepe Moya pagou sobejamente a dívida que nunca tivera comigo e
comportou-se como o mais magnífico dos selvagens.
O homem que saiu daquele café a caminhar como se o corpo
não lhe pesasse, como se flutuasse num caminho de espuma leve e
rosada, parecia o mesmo que tinha entrado meia hora antes, mas
não era, nunca mais voltaria a ser. No meu íntimo, havia ocorrido
uma transformação fundamental que me dediquei a fazer crescer
com todas as forças, com todas as minhas capacidades. Naquela
tarde voltei a sentir-me satisfeito, a encaixar-me no meu corpo e no
meu espírito pela primeira vez em dois anos, e a consciência de que
acabara de me integrar numa organização clandestina não só não
me diminuiu a alegria como a agigantou. No lugar onde eu sentia
que devia estar, trabalhei tanto e tão bem quanto pude, por mim e
pelos outros, pelo meu próprio bem-estar e pelo bem-estar dos
meus pacientes.
És um exagerado!, protestava o Pepe quando me ouvia. Depois
dava-me a morada de um ferido, de uma parturiente, de um pedreiro
que tinha caído de um andaime, de um miúdo a quem a febre não
baixava. De início, vinha buscar-me à saída do trabalho ou esperava
por mim à entrada da minha casa, mas com o tempo aperfeiçoámos
tanto o procedimento que às vezes até me telefonava para o
trabalho, como se quisesse tratar de um envio, e eu apontava a
morada onde se supunha que seria recolhido. Levava o meu
material médico todos os dias numa pasta de empregado de
escritório e, quando recebia um aviso, ia diretamente atendê-lo. Na
morada indicada aparecia, antes ou depois, uma pessoa que
recebia a receita com os medicamentos necessários e que os trazia
de volta o mais depressa possível. Nunca soube que farmácia
aviava os pedidos. Nenhum farmacêutico chegou a conhecer a
minha identidade.
– Boa tarde – cumprimentava quem quer que me abrisse a porta
e comentava o tempo que fazia nesse dia. – Parece que está a
refrescar.
Se não te responderem com qualquer frase relacionada com a
meteorologia, desandas dali, disse-me o Pepe, mas, da única vez
em que isso aconteceu, eu fiquei.
– Vem pelo Partido? – Tinha doze anos, os olhos inchados de
chorar e muito medo. – Venha, por favor, o meu pai está a morrer…
Nessa tarde, operei um homem de trinta e cinco anos com
apendicite, numa casinha baixa junto ao rio, a cair aos bocados
devido à humidade. Foi a primeira vez que não cumpri os protocolos
de segurança e não me arrependi. Da segunda vez foi o próprio
Pepe o causador, naquela tarde de julho de 1943 em que me levou
a uma casa em Ciudad Lineal onde não morava nenhum doente
grave, mesmo que todos tivessem começado por falar do tempo.
– Interessa-me muito saber a tua opinião sobre a situação atual.
– Até que o homem alto, calvo e risonho, que me ofereceu uma
cerveja, começou a falar de outras coisas como se soubesse tudo a
meu respeito e como se fosse ponto assente eu não saber nada
dele. – Estou a falar com muitas pessoas, não necessariamente
comunistas ou afins, algumas nem sequer de esquerda. O decurso
da guerra mudou. Depois de Estalinegrado tudo será diferente e,
quando os aliados derrotarem o Eixo, o destino de Franco está
traçado. Convém ir preparando esse momento, estabelecendo
alianças entre as diversas forças democráticas, refletir com cuidado
sobre os passos necessários para restaurar a República e as
liberdades o mais depressa possível. Estou a trabalhar num projeto
de unidade de todos os democratas, desde nacionalistas bascos a
anarquistas da CNT, incluindo setores não fascistas de círculos
monárquicos e conservadores. Sou comunista, claro, mas agora o
interesse do país está acima do interesse do Partido. A União
Nacional Espanhola trabalhará na clandestinidade contra a ditadura
até ao momento de as forças democráticas voltarem a assumir o
poder. Pedi ao Pepe que te trouxesse esta tarde porque gostaria
que te juntasses a nós.
Aquele homem decerto estaria habituado a falar em público,
porque o fazia muito bem e nem sequer precisava de levantar a voz
para convencer. Bastava-lhe olhar as pessoas nos olhos, porque
sabia transmitir sinceridade e honestidade com o olhar. Além disso,
estava tão convicto da sua causa que me emocionou tê-la
identificado com a minha. Impressionou-me tanto que nem sequer
parei para pensar que o meu entusiasmo se poderia dever a um
desejo, longo e quase desesperado, de que alguém proferisse
aquelas palavras na minha presença, embora depressa tenha tido
oportunidade de descobrir que não soavam da mesma forma
quando não eram ditas por ele.
– Eu? – Apesar de tudo, a proposta desconcertou-me. – E em
que posso contribuir? Eu não sou ninguém.
– Não? – Sorriu. – Claro que és alguém, um homem capaz de
salvar vidas, achas pouco? Além disso, trabalhas numa empresa de
transportes. Na tua profissão, lidas diariamente com muitas
pessoas, ricas, pobres, bem relacionadas com o regime ou
perseguidas… És muito valioso para mim, porque eu não posso
atuar com a liberdade de que gostaria, preciso de mais olhos, de
mais ouvidos, da ajuda de pessoas inteligentes que sejam capazes
de interpretar o que não se diz, que respirem o ar da rua e tirem as
suas próprias conclusões. Tu és muito útil, para mim e para a União
Nacional.
– Nesse caso, conta comigo – aceitei sem pensar. – Para o que
quer que seja.
Quando me despedi dele com um abraço, não sabia que acabara
de ser recrutado por Jesús Monzón, secretário-geral do Partido
Comunista de Espanha em França e no interior. Se o soubesse,
teria agido da mesma forma. Depois de o ouvir falar, não teria
duvidado de que os interesses do meu país estavam muito acima
dos meus próprios interesses porque ele era capaz disso e de muito
mais.
A partir daquela tarde regressei muitas vezes à moradia de
Ciudad Lineal, sempre ao entardecer. Marcavam-me um encontro
com três ou quatro dias de antecedência, eu comparecia
pontualmente à hora indicada e a porta abria-se do interior com
igual pontualidade. Encontrava-me lá com dez ou doze pessoas, no
máximo, que não diziam o nome nem esperavam ouvir o meu.
Conversávamos durante umas duas horas, expúnhamos pontos de
vista diferentes, discutíamo-los num ambiente cordial, embora não
propriamente entre amigos, e saíamos sozinhos, um por um, tão
intervaladamente como havíamos chegado. Aquelas convocatórias
prolongaram-se por mais de um ano. Não sabia quantas reuniões se
efetuavam, nem com quem, porque os convidados variavam muito
de uma para outra. Na primeira a que compareci, a Elena era a
única mulher presente. Mais tarde, cruzei-me com outras, nunca
muitas, algumas já velhas, com ar de funcionárias públicas ou de
professoras, outras muito novas, com os olhos brilhantes de fervor
militante. Em fevereiro de 1944, uma mulher diferente, tão rica e
elegante que o seu mero aspeto era um mistério naquele círculo, fez
uma entrada espetacular.
– Sito!
Vestia um conjunto saia-casaco azul-cobalto com uma gola de
raposa prateada em volta do pescoço, uma pulseira de ouro no
pulso direito, luvas de pelica e brincos compridos. A avaliar pelo
aspeto do penteado, muito elaborado e armado, acabara de sair do
cabeleireiro e deixava um rasto delicioso de perfume caro à sua
passagem. Calçava sapatos de salto alto e usava pouca
maquilhagem, embora os lábios estivessem pintados de um
vermelho muito intenso. Cada uma das coisas que trazia custava
mais do que o salário de qualquer um dos homens presentes, que
assistiam, atónitos, ao encontro do presidente da União Nacional
com a única pessoa que se atrevera a tratá-lo, se não pelo nome,
por uma alcunha tão conhecida que o reduzia a um entre cinco ou
seis possíveis.
– Geni! – Mas ele não se incomodou e levantou-se da cadeira
para a abraçar e beijar nas duas faces. – Que alegria ver-te! Estás
magnífica, a propósito. – Enquanto ela se ria, indicou-lhe uma
cadeira vazia ao seu lado. – Senta-te, por favor, mas não é
necessário que te apresentes, hã? Aqui estamos à vontade.
Ela assentiu, sorriu, sentou-se ao meu lado e pediu-me lume.
Nessa noite, saímos juntos e ela ofereceu-se para me levar de carro
até ao centro. Éramos quase vizinhos e encontrámo-nos outras
vezes ao longo de 1944. No fim de setembro, o dono da casa falou-
nos, pela primeira vez, da possibilidade de deslocar tropas do outro
lado dos Pirenéus para invadir parte do território espanhol.
Vinte dias depois, o exército da União Nacional ocupou o vale de
Arán.
Nunca mais voltei a ver Jesús Monzón.
É VERÃO DE 1943 E INAUGURA-SE O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DE
KLOOGA, NO NORTE DA ESTÓNIA.
Este local, situado junto da pequena aldeia da qual adota o
nome, é um subcampo, ou instalação satélite, do campo de Vaivara,
núcleo principal do sistema concentracionário gerido pelas SS na
Estónia. Vaivara, o maior município do condado de Ida-Virumaa,
dista apenas 27 quilómetros de Narva, cidade fronteiriça com a
União Soviética, onde o exército alemão do Leste, bastante
diminuído, resiste com desespero crescente ao avanço das tropas
de Estaline.
Durante o ano em que permanece em funcionamento, a
população do campo de Klooga oscila entre as duas mil e as três mil
pessoas. A maior parte dos prisioneiros são cidadãos judeus
provenientes do gueto de Vilnius, capital da vizinha Lituânia,
transportados para lá em comboios de mercadorias ao longo dos
meses de agosto e de setembro de 1943. Mais tarde, juntam-se em
Klooga outros dois contingentes consideráveis, embora menos
numerosos, de judeus retirados, respetivamente, dos guetos de
Kaunas, cidade da Lituânia central, e de Salaspils, na Letónia. O
campo alberga também judeus e ciganos de outras procedências,
originários da Roménia, da Rússia e da própria Estónia, assim como
uma centena de prisioneiros de guerra soviéticos.
O Reichskommissariat Ostland, divisão administrativa civil alemã
que governa os países bálticos e o Oeste da Bielorrússia, implanta
cerca de vinte campos de trabalho na Estónia para explorar as
matérias-primas do país. Alguns só funcionam durante uns meses,
os necessários para que os ocupantes esgotem as riquezas naturais
da zona onde se encontram. Outros, como o de Klooga, são
permanentes, mas todos funcionam sob a autoridade do mesmo
homem, o Hauptsturmführer das SS Hans Aumeier, comandante-
chefe do sistema concentracionário estónio que chega no verão de
1943 para supervisionar a construção do campo de Vaiara e os
inúmeros satélites, continuando no cargo até as tropas do Terceiro
Reich se retirarem das margens do mar Báltico. Antes desta
nomeação, Aumeier serve durante um ano e meio em Auschwitz-
Birkenau, onde se estreia como chefe do Departamento III, atingindo
posteriormente o cargo de Schutzhaftlagerführer, chefe do Corpo de
Prisioneiros de Auschwitz I, no qual a sua eficiência criminosa faz
dele uma figura lendária.
Os presos de Klooga trabalham nas fortificações destinadas a
travar o avanço soviético e em fábricas criadas para apoiar o
esforço de guerra alemão. As principais indústrias do campo são as
serrações, onde se processa a madeira dos bosques circundantes,
bem como várias unidades de produção de materiais de construção,
sobretudo tijolos e cimento. Também funciona durante algum tempo
uma pequena fábrica artesanal de tamancos de madeira.
As condições de vida dos reclusos assemelham-se, na sua
brutalidade, às de outros campos de trabalho nazis. Têm de cumprir
jornas extenuantes, recebem rações de comida exíguas e, quando
adoecem, são obrigados a trabalhar as mesmas horas e nas
mesmas condições que os companheiros saudáveis. Estas normas
aumentam a mortalidade para números elevadíssimos. A curta
esperança de vida dos prisioneiros e a frequência com que são
designados para destacamentos nos bosques, onde dormem ao ar
livre, fora do campo, impedem que uma pequena organização
clandestina que chega a contar com umas 75 pessoas prospere e
consiga liderar uma rebelião.
No mês de julho de 1944, o exército soviético começa a avançar
através da Estónia ocupada. Em agosto, as SS preparam-se para
evacuar o campo. Não é uma operação fácil porque as tropas
alemãs retrocedem incessantemente, a frente desloca-se quase
todos os dias, sendo que as possibilidades de transporte se
reduzem na mesma proporção, mas uns quinhentos presos de
Klooga são transferidos por mar para oeste e acabam noutros
campos de concentração. Parte deles vão parar a Stutthof, perto de
Danzig, e os restantes, a um campo situado numa cidade então
alemã conhecida como Freiburg in Schlesien, atualmente a polaca
Świebodzice.
A evacuação suspende-se em meados de setembro, com os
soviéticos já muito perto de Narva. Nesse momento, Aumeier decide
exterminar os prisioneiros, em vez de os libertar ou abandonar à sua
sorte, como se faz noutros sítios. Na madrugada de 19 de setembro,
todo o perímetro do campo de Klooga é rodeado por guardas
armados. De seguida, os reclusos são levados em grupos para os
bosques próximos e assassinados indiscriminadamente. A matança
dura quatro dias. Nos primeiros, as tropas das SS obrigam os
próprios presos a amontoar os cadáveres dos companheiros em
piras que logo são incendiadas. No dia 23, têm tempo de fazer
algumas, mas não de lhes deitar fogo. Mal acabam de matar os
últimos, juntam-se a toda a pressa às forças alemãs que se retiram
para oeste.
A 28 de setembro de 1944, o Exército Vermelho chega a Klooga
e só lá encontra oitenta e cinco pessoas vivas, em vez das duas mil
e quatrocentas com que contavam já que lhes tinha constado que
era essa a população do campo após a última evacuação. Os
sobreviventes, que haviam conseguido esconder-se nos barracões
ou fugir durante a transferência, guiam as tropas soviéticas pelos
cenários do massacre.
Num bosque, os recém-chegados encontram algumas piras
preparadas para o fogo. Perfeitamente dispostas, as fileiras de
cadáveres colocados de barriga para baixo alternam com troncos
cortados à medida e distribuídos entre os corpos em camadas
regulares, ora horizontais, ora verticais. As fotografias que os
soldados russos tiram e que hoje podem encontrar-se facilmente na
internet revelam a eficácia industrial a que as SS recorrem para
produzir as montanhas de cinzas e de ossos carbonizados que
enchem, como uma sementeira macabra, os bosques que
circundam o campo de Klooga.
Após a retirada do Báltico, Hans Aumeier regressa à Alemanha.
Em janeiro de 1945, é enviado como comandante para o campo de
concentração de Mysen, na Noruega. A sua atuação nos últimos
meses da guerra é completamente diferente da que o notabilizou na
Polónia e na Estónia, a ponto de, a 7 de maio, dia da capitulação do
Terceiro Reich, abrir as portas e libertar todos os prisioneiros.
A 11 de junho de 1945, prisioneiro no campo de Terningmoen,
Aumeier é detido na sequência da passagem dos arquivos da
Gestapo para os Serviços Secretos de Inteligência britânicos MI6.
Extraditado para a Polónia em 1946, é julgado como criminoso de
guerra, entre novembro e dezembro de 1947, pela sua atuação em
Auschwitz. No julgamento, declara-se inocente, nega a existência de
câmaras de gás no campo e afirma que se considera um bode
expiatório da derrota da Alemanha. Condenado à morte a 22 de
dezembro, é enforcado a 28 de janeiro de 1948 numa prisão de
Cracóvia.
Os crimes que comete em Auschwitz impedem que Hans
Aumeier seja julgado pela matança de Klooga.
No local do antigo campo, um monólito recorda que ali foram
assassinadas, pelo simples facto de terem nascido, mais de duas
mil pessoas inocentes.
FRENTE DE NARVA, ESTÓNIA, 20 DE SETEMBRO DE 1944

Adrián Gallardo Ortega não estava a perceber.


Só tinha reconhecido meia dúzia das palavras proferidas pelo
comandante flamengo ao obrigá-los a formar no pátio. Entendeu
melhor o Hauptsturmführer Ernst Kleiber, o capitão alheio à sua
unidade que tinha acabado de chegar num camião, porque Jan lhe
estava a ensinar alemão. Havia pedido voluntários, disso tinha a
certeza, mas não explicou para quê ou ele não ouviu. Por isso,
manteve-se no seu lugar até o amigo lhe dar uma cotovelada.
– Anda, Tigre, vamos dar uma mãozinha aos rapazes.
– Mas em quê? – Avançou um passo sem refletir muito.
– Não sei – reconheceu Schmitt. – Não disseram.
O III Panzerkorps das SS já era, naquela altura da guerra, um
exército heterogéneo, a que se foram juntando grupos dispersos de
voluntários europeus de diferentes nacionalidades, reforçados por
homens dos últimos e agonizantes recrutamentos do Reich. Adrián
não era o único divisionário que ali tinha ido parar, mas na sua
companhia não havia mais espanhóis. Rodeado de alemães,
flamengos, valões, finlandeses, húngaros e bálticos, não tivera outro
remédio senão aprender um alemão básico, imprescindível para
compreender as ordens que recebia. Depois, Jan empenhara-se em
que ele aperfeiçoasse o domínio da língua para se desenrascar
sozinho se algum dia o matassem. Adrián não queria ouvir falar
disso e esforçava-se, embora lhe custasse.
– Mas como hei de falar bem se dizem tudo ao contrário? A sol e
o lua, imagina lá… Assim não consigo.
No entanto, ia conseguindo. Tinha decorrido quase um ano
desde que saíra de Pokrovskaya, transferido primeiro para a
Ucrânia, depois para a Estónia com o que restava da Legião
Flamenga, e de início o intérprete portenho fora não só o seu único
amigo, mas também a única pessoa com quem conseguia
comunicar. Porém, quando desatou a falar alemão como os índios
dos filmes, sem conjugar os verbos e enganando-se em quase
todos os artigos, descobriu que as prostitutas ucranianas o
entendiam, as estónias também e que os outros estrangeiros do III
Panzerkorps, à exceção dos holandeses e dos flamengos, cuja
língua materna era muito parecida, não falavam a língua do Führer
muito melhor do que ele. Nessa manhã, devem ter percebido mais
ou menos o mesmo, mas os homens que se voluntariaram no pátio
do quartel não ultrapassavam a vintena.
Adrián compreendia. Estavam todos fartos da guerra, de missões
suicidas, de cruzes de ferro simbólicas porque já nem sequer
restavam condecorações de metal suficientes no peito dos
cadáveres, porém, quando o oficial alemão tornou a pedir, quase a
exigir, voluntários, com uma energia que rasava a cólera, convenceu
menos de uma dúzia e isso já o surpreendeu um pouco mais. Entre
os antigos companheiros da Divisão Azul e os homens que o
rodeavam nesse momento havia uma diferença fundamental. Os
estrangeiros que resistiam na frente de Narva eram, sem exceção,
voluntários das SS, nazis convictos que lutavam pela supremacia
ariana, por uma Europa unida e racialmente homogénea, expurgada
de judeus, de ciganos, até de eslavos, sob o poder de Hitler, ideais
que muitos espanhóis só conheciam de ouvido. Eles haviam ido
para a Rússia matar todos os comunistas que pudessem enquanto
davam vivas a Cristo Rei, a Santiago Mata-Mouros e à Virgem do
Pilar, por isso Jan lhes chamava fascistas de merda e recebia
ovações entusiastas quando contava a história daquele padre que
travara um combate de boxe, obrigando três mil homens a entoar
cânticos de Natal com uma pistola na mão. Ouvindo-o, Adrián ria-se
tanto como os outros porque no Norte da Estónia aquele episódio
parecia cómico, uma caricatura ridícula e incompreensível. Porém,
não tanto como um oficial das SS exigir a colaboração desses
mesmos homens e eles não correrem a oferecer-se de livre
vontade. Adrián Gallardo Ortega não foi capaz de compreender os
motivos daquela indolência. Nunca fora muito inteligente.
O Haupststurmführer Kleiber olhou para o relógio, bateu com a
bota no chão e voltou-se para os compatriotas, rapazes muito
novos, quase crianças, assim como homens de muita idade, quase
velhos, que haviam chegado na última remessa de tropas de
substituição. Escolheu a dedo os que faltavam para completar a
meia centena de soldados de que necessitava e Adrián reconheceu
três dos eleitos. Aqueles rapazes andavam sempre juntos porque
eram da mesma zona do Sul da Baviera, e chamaram-lhe a atenção
porque o mais baixo trazia um escapulário ao pescoço com um
cordão carmesim. Certo dia, enquanto o fogo de artilharia
aumentava, Adrián viu-o tirá-lo da camisa, levá-lo à boca e beijá-lo.
Depois, numa pausa, aproximou-se dele e ouviu outra versão da
sua própria história.
Chamava-se Heinrich Beyer e tinha nascido numa quinta isolada,
perto da cidade de Bad Tölz. Era o filho mais novo de uma família
de proprietários rurais, abastada e católica, onde, felizmente,
esclareceu com um sorriso, haviam nascido mais raparigas do que
rapazes. Tinha dois irmãos, ambos mobilizados, um no Norte de
Itália e o outro, engenheiro químico, a salvo em Berlim, pois fora
nomeado diretor de uma fábrica militarizada nos arredores da
capital. Ele era o mais novo, e a mãe tinha esperança de o manter
junto de si porque ele tinha dezassete anos, estava ainda a estudar
e a quinta ficava longe de estradas principais, escondida entre
campos de cevada e pomares. Desde que a guerra começara, Frau
Beyer caminhava todos os dias até à estrada para dali ver a sua
casa e confirmar que as pilhas de feno, de lenha, e os escombros
de um velho estábulo abandonado continuavam a esconder a
fachada. O filho sorriu ao recordar aquele estratagema amoroso e
ingénuo antes de acrescentar que, evidentemente, quando quiseram
ir buscá-lo, o encontraram. Depois, deram-lhe uma espingarda, uma
farda, duas escassas semanas de instrução e mandaram-no para a
frente Leste.
Adrián perguntou-lhe pelo escapulário e Heinrich tirou-o da
camisa e beijou-o antes de lho mostrar. Era um pedacinho de seda
branca, já amarelada do suor e do pó da frente, onde estava
impresso o Sagrado Coração de Jesus, bordado por cima com linha
vermelha e dourada. Ele tinha um muito parecido e em Espanha
beijara-o muitas vezes desde que a mãe lho pendurara ao pescoço
ao despedir-se dele no apeadeiro de La Puebla de Arganzón, em
julho de 1936. Contudo, tinha-se esquecido de o levar para a Rússia
e já nem sequer sabia onde estava. Não se lembrava de o ter
metido nas malas que havia deixado guardadas no Ginástica
Ferroviária, pelo que é provável que alguém o tenha encontrado
entre as bugigangas do seu apartamento da calle Almirante e
deitado para o lixo antes da chegada do novo inquilino. Enquanto
Beyer voltava a guardá-lo, Adrián sentiu tanto a falta do seu como
naquela época em que se sentia despido, desarmado, se não o
tivesse ao peito.
– Queres rezar? – Heinrich encarou-o com os seus olhos
esverdeados, muito claros, quase transparentes, e Adrián sentiu um
gosto amargo, podre, que lhe subia a toda a velocidade das tripas
até à garganta e lhe secava a boca.
Teria gostado de falar bem alemão para lhe explicar que já não
rezava, que na guerra de Espanha havia perdido o hábito e em
Krasny Bor, a fé. Ali deixou de acreditar que pudesse existir um
Deus capaz de assistir àquela carnificina sem a deter, e mais tarde
pensou que, se existisse, não era digno da adoração fosse de quem
fosse. Teria de falar um alemão quase perfeito para lhe dizer que,
apesar de tudo, gostaria de o acompanhar, de sussurrar em
espanhol ao ritmo de uma oração que conseguiria reconhecer,
embora não entendesse, mas que não se atrevia porque seria tudo
uma mentira e ele já tinha demasiadas às costas, demasiadas
fraudes para uma só vida. Uma coisa assim não podia ser dita de
qualquer maneira; por isso, limitou-se a negar devagar com a
cabeça. A sua resposta não desanimou Heinrich Beyer.
– Eu vou rezar. Faz-me bem.
Adrián ficou uns instantes a seu lado, olhando para as mãos
juntas, para os olhos fechados, para a velocidade a que se moviam
os lábios mudos do rapaz, e foi-se embora depressa como se
aquela oração encarnasse uma ameaça terrível, uma profecia cruel,
destinada a cumprir-se mais cedo ou mais tarde. Perdendo a fé, o
Tigre de Treviño aumentara a sua já abundante coleção de
superstições, tendo sido uma delas, sem nome, sem forma, a levá-lo
a evitar o soldado Beyer desde aquele dia. Não o voltou a ver até 20
de setembro de 1944, quando o bávaro levantou a mão para o
cumprimentar da ponta da caixa do camião para onde o fizeram
subir à força. O espanhol devolveu-lhe o cumprimento sem reparar
que tinha empreendido aquela viagem por vontade própria.
O trajeto não foi longo, pouco mais de vinte e cinco quilómetros
por uma estrada estranha, demasiado movimentada a meia hora do
amanhecer. O camião teve de parar várias vezes, a fim de permitir
que diversos comboios, sempre rumo a oeste, o ultrapassassem. Só
se cruzou com dois veículos a circular no sentido oposto, Mercedes
limpos e bem cuidados que decerto transportariam oficiais ou
correios do Estado-Maior. A claridade leitosa do dia que começava
iluminou uma paisagem cruel de troncos cortados, um bosque
mutilado, despojado de árvores, sem outro verde que não o da erva
rala que tivera o capricho de nascer entre os tocos. Adrián, que
tinha nascido entre bosques de faias e de carvalhos, amava os
bosques da Estónia, espessos, vigorosos, repletos de pinheiros e de
abetos gigantescos, tão altos que as suas copas invisíveis pareciam
penetrar nas nuvens, tão robustos que a sua mera existência o
consolava como uma promessa da vida que continuaria a existir
quando todos os exércitos se retirassem, como uma garantia do
futuro que sobreviveria à desolação dos campos arrasados,
semeados de cadáveres. Embora tivesse perdido pelo caminho o
rasto de um menino que ia com o avô apanhar cogumelos, pescar
trutas e procurar raminhos para acender a lareira, a ruína dos
bosques de Klooga, tão longe de Treviño, doeu-lhe como uma
chaga.
Aquela destruição acentuou o aspeto apressado, transfigurado,
dos comboios que passavam incessantemente e que deixavam os
homens que viajavam em silêncio ainda mais sombrios, absortos
nos seus negros pensamentos. Mais tarde, Adrián interrogar-se-ia
durante meses, quase diariamente, se saberiam o que os esperava,
se ao menos conseguiriam imaginá-lo. Ele não foi capaz, nem
sequer percebeu porque os mandavam descer do camião numa
clareira ocupada por duas centenas de cadáveres anunciados,
duzentos mortos em vida que milagrosamente ainda se mantinham
de pé, duzentos pares de olhos enormes em duzentos crânios
cobertos de pele seca, esticada, com o sexo dos homens tão
relevantemente obsceno na cavidade ossuda dos ventres como os
seios das mulheres, peles exaustas, vazias, que se adivinhavam
sob os farrapos que mal os cobriam. Eram cem homens, cem
mulheres, que tiritavam de frio numa manhã amena de fim de verão,
esperando.
O Hauptsturmführer Kleiber ordenou-lhes que esperassem,
também eles, ao lado do camião. Enquanto se afastava, Adrián
pensou que ele era novo de mais para o cargo que desempenhava.
A sua estatura impressionou-o porque media mais de um metro e
noventa, mas não era um homem bonito. Tinha a cabeça estreita,
demasiado pequena para o tamanho do corpo, e uns olhos
minúsculos, redondos como botões, que também não
harmonizavam com o seu maxilar poderoso, de perfil cavalar. A pele
era tão pálida que não chegava a esconder a sombra violácea das
veias. Contudo, apesar disso, era extremamente elegante, muito
distinto no seu imaculado uniforme de campanha de algodão
cinzento acabado de escovar, sem uma mancha, sem um cabelo,
sem um único desleixo, num dólman cujos botões brilhavam todos
por igual. Quando se juntou ao chefe dos guardas que vigiavam os
prisioneiros, o primeiro raio de sol iluminou-lhe o fio dos galões
como se o portador fosse um ser eleito, superior, de uma espécie
diferente daquela a que pertenciam as suas vítimas. O que fizeste,
Adrián? Não sei, pai.
Não sabia porque não quisera saber, mas naquele momento
começou a desconfiar de que a ignorância não o eximiria da culpa.
Algumas horas antes, quando se tinha voluntariado, desconhecia a
existência de um campo de concentração escondido nos bosques, o
nome desse campo, o número de pessoas, contudo, desde que
travara amizade com ele em Kolpino, Jan falara-lhe muitas vezes da
tragédia da sua família, da morte de Martin, da cadeira de rodas de
Josep, do suicídio de Johann e da amargura enraivecida, perpétua,
com que Klaus os chorara sempre enquanto semeava no
primogénito um ódio incondicional, herança que este reivindicava
com orgulho. Enquanto o ouvia como quem ouve chover, Adrián
pensava noutras coisas, no entanto, embora a sua consciência não
tivesse absorvido a chuva fina das palavras do jovem Schmitt, a
memória fê-lo.
– Mas como é que os eslavos são infra-humanos se estão a dar-
nos uma sova do caraças? – De início levava-o na brincadeira.
– Bolas, Tigre, és muito básico, tu, hã? – Contudo, para Jan não
havia assunto mais sério. – Pensa, pibe. Um grupo de leões
também pode matar muitos humanos. E obviamente são animais,
seres inferiores, viste? Falo-te de ciência, de uma verdade científica,
não me lixes.
Com o tempo, Adrián deixou de puxar o assunto porque a
veemência do amigo o assustava. Sabia que o outro era um bom
rapaz, radicalmente ateu, mais portenho do que assumia e com uma
variante diferente da bondade que tinha reconhecido em Beyer, mas
bom ao fim e ao cabo. Leal, corajoso, solidário na batalha, incapaz
de deixar um companheiro para trás e generoso nas trincheiras. Jan
tinha um sentido de humor tão peculiar como a sua maneira de falar
espanhol e era muito divertido, mas nunca pregara uma partida
desagradável a ninguém. Gostava muito de se rir, no entanto era
capaz de derramar lágrimas de compaixão pelos camaradas
moribundos e até de arriscar a vida para ajudar os mais fracos.
Bem-humorado e otimista, partilhava o que tinha, pagava as suas
dívidas e nem sequer cigarros cravava, porém, numa zona obscura
e remota da sua cabeça, alimentava um ódio selvagem, uma paixão
feroz, com raízes tão profundas que se tornava inexplicável para o
pugilista.
Na longa viagem da frente de Leninegrado à Ucrânia, dali até ao
mar Báltico, haviam-se cruzado com comboios a abarrotar parados
nas estações, com cercas longuíssimas de arame farpado e
barracões ao fundo, com os muros que delimitavam os guetos das
cidades. Nesses lugares, Jan parecia nunca ver o que Adrián via.
Para ele, a silhueta encolhida, imprecisa, dos judeus marcados com
uma estrela amarela, o medo que lhes deformava os rostos, a
arbitrariedade com que qualquer soldado podia espancar, violar ou
despir em plena rua qualquer habitante de qualquer gueto só para
se divertir vendo-o tiritar tinham outro significado. Não são seres
humanos, limitava-se a dizer, são mamíferos bípedes, sim, mas não
são humanos. Não se dava ao trabalho de justificar a afirmação
porque para ele era uma verdade científica, e o ódio que lhe
inspiravam era um sentimento tão justo, tão evidente, que não exigia
justificação. Apesar de ser capaz de observar impávido qualquer
humilhação, nunca tomou parte ativa nelas. Dizia que não estava
disposto a sujar as mãos, e o amigo, que precisava dele para não se
perder naquele exército nórdico e estranho, acabou por se habituar
aos seus excessos verbais, tranquilizando-se com a ideia de que
aquelas teorias não passavam disso mesmo, de ideias cruéis,
perversas e simultaneamente absurdas, de um fruto podre da guerra
que nunca tomaria corpo numa realidade que ele não pudesse
evitar. Quando teve de a enfrentar, estava de pé ao lado de um
camião, num bosque do Norte da Estónia, com o uniforme de um
país estranho e muito longe de casa. O que fizeste, Adrián? Não sei,
pai.
– Que se passa aqui? – Um medo que nunca havia sentido até
então tremeu-lhe na voz.
– Não sei. – Também na de Jan, apesar da expressão arrogante,
do queixo levantado, erguido para o céu como se posasse para um
cartaz da Luftwaffe.
O capitão Kleiber aproximou-se deles muito devagar, como se
precisasse de tempo para os olhar nos olhos. Depois, com as
pernas afastadas num perfeito compasso, acendeu um cigarro,
inalou o fumo e, sem se voltar, moveu um braço para trás,
apontando para os prisioneiros. Até o seu gesto ter desencadeado
um rumor espesso, compacto, entre a tropa, estava bastante calmo.
Depois, quase não se alterou.
É preciso eliminá-los, disse, e foi tudo. Não lhes chamou
prisioneiros, nem presos, nem hebreus, nem judeus, nem não
humanos. Não recorreu a qualquer substantivo, a qualquer adjetivo
para se referir aos cem homens, às cem mulheres que se
amontoavam naquela clareira. Aquelas palavras apagaram o
murmúrio inquieto dos soldados e provocaram um silêncio absoluto,
quase litúrgico, no qual a sua voz adquiriu uma solenidade
desfasada do tecnicismo das instruções que dava. Os guardas do
campo não são suficientes e vamos ajudá-los a terminar o trabalho
a tempo. Vou formar dois pelotões de vinte e cinco atiradores cada
para procedermos por turnos, e novamente omitiu os substantivos,
os adjetivos. Será limpo, fácil e rápido. À tarde repetiremos a
operação e regressamos ao quartel para dormir. Acabou o cigarro,
atirou a beata para o chão e esmagou-a cuidadosamente com o
sapato. Eis o plano de operações. Alguma pergunta?
Voltou a olhar para eles devagar, um por um, e ninguém fez
perguntas. Adrián nem sequer se atreveu a suster-lhe o olhar.
Observou os sapatos durante algum tempo e não se deu conta de
que era a primeira vez que entendia um discurso em alemão sem
qualquer dúvida, do princípio ao fim. De seguida, olhou para Jan,
que tinha os olhos fixos nos guardas que selecionavam os judeus,
separando os homens das mulheres que iam morrer primeiro. O
amigo não se voltou para ele, mas sentiu que o observava porque
respondeu a uma pergunta que não tinha ouvido.
– Não são humanos – murmurou em espanhol. – Sei que
parecem. São mamíferos, bípedes, mas não…
– Não? – Adrián não se atreveu a levantar a voz. – O caralho é
que não são.
Já fuzilara anteriormente. Um era largo e baixo como um
sempre-em-pé e chamou-lhe a atenção porque se parecia com o
padeiro da sua aldeia. Outro chamava-se Enrique. Um amigo dele,
um rapaz que também não era basco, abraçou-o no último
momento, ai, Quique, que nos matam!, ai, que nos vão matar!
Quique nada disse. Não chorou, não se voltou para ele, mas
passou-lhe um braço pelos ombros e estreitou-o contra si sem
deixar de olhar para o pelotão. Uma mulher feia e desgrenhada,
vestida como uma aldeã, falava com a mãe dele. Coitadinha de ti,
que vais ficar sozinha, perdoa-me, patroa, perdoa-me… Também
havia um homem novo, com um fato barato, que no último momento
tirou um livro do bolso e o encostou ao peito como se fosse um
escudo. As balas desfizeram-no em pedacinhos tão pequenos que
nem conseguiram identificar o título. No dia seguinte, um padre
abençoou-os do paredão, enquanto pronunciava uma frase
incompreensível naquela maldita língua do demónio, mas a maior
parte deles eram tão parecidos com os outros que se tornava
impossível recordá-los individualmente, homens jovens, magros,
mal vestidos, de cabelo escuro, olhos castanhos, mais baixos do
que altos… Eram todos seres humanos, exatamente como aqueles
que talvez o tivessem fuzilado a ele se as coisas houvessem corrido
de outro modo. Nunca ninguém se atrevera a sugerir, nem na zona
vermelha, nem na sua, que os condenados à morte não eram
pessoas, apesar de os levarem de pistola apontada até um muro
para os liquidarem. O sempre-em-pé, Quique e o amigo, a mulher
feia, o homem de óculos, o padre basco e todos os outros eram
humanos, os seus mortos, o prémio que lhe calhou na rifa da morte
na guerra de Espanha, mas pouquíssimos dias depois de os fuzilar,
quando Ochoa decidiu transformá-lo num pugilista, exigiu muitas
vezes de Adrián uma qualidade que julgava não ter. É como lhe
digo, meu capitão, é que não sei se tenho instinto assassino…
A clareira daquele bosque pareceu-lhe tão diferente do muro que
Ochoa tinha escolhido para os fuzilamentos, como se Klooga e
Portugalete não pertencessem ao mesmo planeta. Na margem
esquerda do Nervión, ele nunca havia duvidado de que as suas
vítimas eram pessoas, nem de que eram culpadas, porque eram
vermelhos, inimigos de Deus, da Pátria e do Rei, descendentes
diretos dos liberais que os Garrotes absolutistas, lendários lutadores
da sua estirpe, tinham combatido. Nunca lhe ocorreu que o delito
não fosse suficientemente grave para o pagarem com a vida ou que
os seus inimigos, todos eles, fossem piores do que os seus
camaradas. A questão não residia na bondade ou na maldade das
pessoas, mas na natureza das suas ideias. Ele limitou-se a ser leal
à fé da sua mãe, aos princípios que o avô lhe havia inculcado, à
causa dos seus antepassados, e nunca duvidou de que agia bem.
Por isso tinha matado sem se sentir um assassino.
Em Espanha, os presos republicanos chegavam ao paredão
algemados e acorrentados uns aos outros porque todos sabiam que
à mais pequena oportunidade desarmariam o guarda que estivesse
mais perto, não para se suicidarem, mas para o levarem à frente.
Quase todos gritavam a caminho do patíbulo e no último instante de
vida muitos insultavam os verdugos, ameaçavam-nos com a
vingança que os companheiros consumariam, cantavam hinos ou
davam vivas à República, à Frente Popular, à Internacional, à
anarquia ou à luta da classe operária. Em Espanha, os membros
dos pelotões duplicavam sempre o número de vítimas, pois não
confiavam nelas nem algemadas e acorrentadas. Na Rússia, Adrián
aprendeu que aquela falta de respeito pela morte não era uma
especialidade espanhola. Embora a limpeza do território fosse um
assunto dos alemães, certa vez calhou-lhe comandar um pelotão e
ordenar a morte de sete civis, cinco homens e duas mulheres,
declarados culpados de sabotagem e terrorismo por pressionarem
os ocupantes da sua terra a ajudarem os compatriotas a recuperá-
la. O tenente Gallardo compreendeu que, no outro lado da frente,
seriam considerados heróis, e leu essa certeza nos olhos que o
observavam com um misto perfeito de ódio e orgulho, uns olhos que
só lamentavam não terem visto a morte dos assassinos antes de
enfrentarem a sua. Eles também gritaram, levantaram o punho,
insultaram-no numa língua indecifrável e no entanto universal, a
mesma que ouvira em Portugalete. Porém, no Norte da Estónia tudo
era diferente.
Ele não tinha nenhuma conta pendente com os condenados de
Klooga. Não sabia quem eram, o que haviam feito, que ideias
tinham, se eram bons ou maus, ateus ou crentes. Não compreendia
porque não tentavam fugir, porque não desatavam a correr para
serem alvejados pelas costas, uma morte mais cómoda, mais
rápida, do que o fuzilamento que os esperava. Aqueles condenados
não gritavam, não blasfemavam, não os insultavam, não
reivindicavam aos gritos a sua condição, nem os cobriam de
ameaças violentas. Adrián não compreendia aquela resignação, a
mansidão com que haviam acatado o seu destino quando o
Hauptsturmführer Kleiber selecionou os homens que não tinham
querido voluntariar-se para integrar o primeiro pelotão e ordenou
aos restantes que se pusessem a um lado, num local de onde
pudessem ver quer os verdugos quer as vítimas, dispostas pelos
guardas do campo diante de uma longa fila de troncos com metro e
meio de largura.
No primeiro grupo, viu uma mulher a quem uma das
companheiras chamou Esther. Parecia muito jovem. Ladeando-a
estavam duas raparigas muito baixas, crianças certamente, cujo
crescimento fora truncado antes do tempo, e dezassete velhas,
algumas com traços juvenis, velhas que talvez não ultrapassassem
os trinta anos, mas ela aparentava a idade que tinha, pouco mais de
vinte. Era alta, embora os ombros estivessem encurvados. Era
bonita, se é que um crânio coberto de pele o pode ser. Tinha o
cabelo tão claro que quase não se distinguia na cabeça rapada, e a
cara ovalada, o nariz pequeno, reto, os lábios grossos, uns olhos
enormes, de um azul muito intenso. Os seios grandes, redondos,
haviam descaído mas ainda existiam, e de ambos os lados de uma
cintura famélica, os ossos das ancas desenhavam duas curvas
harmoniosas de onde partiam duas pernas muito altas que alguns
meses antes talvez fossem bonitas. Adrián não foi o único a reparar
nela. Dois dos guardas também a observavam, troçavam, faziam
gestos obscenos com as mãos. Não conseguia ouvir o que diziam.
Os outros nunca conseguiriam adivinhar no que ele estava a pensar.
Muito longe de Klooga, noutro tempo, noutra vida, Pirulo
descrevera-lhe uma mulher muito parecida com esta que rodou a
cabeça para olhar para ele. Um segundo antes de falar dela, estava
bêbedo. Adrián vira-o esvaziar repetidamente o copo, ouvira uma
versão irreconhecível da sua voz, o tom mole, pastoso, que
alongava o fim de cada sílaba como se fosse pastilha elástica, mas
tudo isso cessara de chofre. Nos olhos aquáticos, sem lágrimas, da
desconhecida que olhava para ele, Adrián viu a mesma sobriedade,
a mesma integridade com que o treinador lhe tinha revelado um
segredo que naquele remoto jantar madrileno lhe parecera uma
tontice. Porque a Anny era judia, Tigre, uma judia polaca… A mulher
que ia morrer em Klooga levantou a cabeça, olhou para o céu, e
Adrián compreendeu que estava a despedir-se do mundo, das
árvores, dos pássaros, porque tapou a cara com as mãos para que
os verdugos não assistissem à triste cerimónia do seu adeus. Para
se ser um campeão não é preciso ter-se maus fígados, pode ser-se
boa pessoa e chegar-se ao cume, nunca te esqueças disso. A bela
judia de Klooga, com as mãos firmes contra a cara, agitava-se,
movia a cabeça para a frente e para trás, soluçava e rezava. Max
Schmeling, o melhor pugilista europeu de todos os tempos, a lenda
que havia derrubado Joe Louis, um ídolo que tinha tudo a seu favor
e nenhum motivo para arranjar problemas, meteu a mulher num
avião, sentou o seu treinador ao lado e foi diretamente fazer frente
ao Terceiro Reich. O que fizeste, Adrián? Não sei, pai.
Max Schmeling, com as pernas abertas, os punhos erguidos, o
rosto simultaneamente sereno e feroz, estava com ele, atrás dele,
tão perto como quando lhe velava o sono na cabeceira da cama de
uma pensão de Madrid. E então disse-lhes que, se não deixassem
Anny regressar à Alemanha, viver com ele, ficavam sem campeão
do mundo, vê lá bem os tomates do tipo… A voz de Pirulo, fresca e
viva, soava-lhe nos ouvidos, sussurrava, falava, gritava, por fim, e o
Tigre de Treviño não a ouvia. O que estás a fazer, Adrián? Não sei,
Max. E Max ria-se com um riso profundo, ácido e amargo, e falava
com ele com sotaque sevilhano, claro que sabes, cabrão, com a voz
de Alfonso Navarro, sabes muito bem o que és, um cobarde, uma
fraude, um campeão a fingir, mas isso nada é em comparação com
o que serás…
Ao ver Heinrich Beyer no centro do pelotão, diante dos vultos de
pele e osso, exaustos, consumidos, que iam morrer, Adrián viu a
cara da mãe, a sua silhueta rechonchuda, doméstica, sob o avental
que usava sempre, o sorriso aprazível com que dona María
costumava queixar-se de que até o ar que respirava a engordava. A
senhora Gallardo não deveria ser muito diferente de Frau Beyer,
pensou o filho de uma ao ver o da outra, hirto como um poste, com
a espingarda nas mãos e os olhos fixos no horizonte, entre vinte e
cinco silhuetas idênticas. Olhando para ele, Adrián voltou a pensar
que era um duplo quase idêntico de si próprio, um bom rapaz do
campo, capaz de sentir a dor dos bosques que o rodeavam,
inocente da matança em que iria participar à força, traidor do
escapulário que trazia ao pescoço. Aquele cordão carmesim que o
salvara da morte, mas que não o ia livrar da morte alheia, das cem
mortes das cem mulheres que ia assassinar a sangue-frio antes de
Adrián ter de assassinar os cem homens que esperavam a sua vez
sem gritar, sem chorar, sem saírem do lugar onde os haviam
mandado ficar. Era isso que ia acontecer, o que tinha de acontecer,
uma cena escrita de antemão no argumento das vidas de ambos, e
Adrián, pensando nisso, comparando-se com ele, sentiu um calor
misterioso, como se a presença de Heinrich naquela clareira o
absolvesse do pecado horrível que o Deus em que o alemão ainda
acreditava ia contemplar, o Deus em que ele próprio havia
acreditado durante tantos anos, o Deus a quem rezavam a sua mãe
e a mãe daquele rapaz bom que estava prestes a transformar-se
num assassino, que tinha de se transformar num assassino, que
não encontraria solução para escapar ao seu destino porque não
existia e que por isso chorava. Enquanto os guardas corrigiam as
posições das vinte mulheres desarmadas, alinhando-as numa fila
perfeitamente reta, Heinrich Beyer chorava em silêncio. Adrián via-
lhe as lágrimas grossas, mudas, via-as escorregar pelos pómulos,
sulcar-lhe as faces lisas de adolescente, estancarem na comissura
dos lábios. Não se dava ao trabalho de limpar a cara. Tinha as mãos
na espingarda, os ombros erguidos, o olhar cravado no horizonte, os
olhos firmes. Demasiado firmes naquela fileira de olhares nervosos,
fugidios, que não encontravam lugar onde pousar.
Adrián não percebeu. Nunca tinha sido muito inteligente, mas
não percebeu porque não quis, porque não estava disposto a aceitar
o que em breve veria, porque se recusou a admitir que Heinrich
Beyer tivesse encontrado uma porta aberta na consciência. Lera-o
decerto nos olhos dele, naquele olhar imperturbável, na expressão
tão imperturbável como um relevo gravado em granito, mas não quis
ver, não quis saber, não quis perceber até Kleiber dar a ordem, e
todos os elementos do pelotão levantarem a espingarda, abrirem
ligeiramente as pernas, encostarem a coronha ao ombro e
aproximarem a cara do visor. Todos fizeram isto menos um, todos
menos o soldado Beyer, que continuou em sentido, hirto, as mãos a
segurarem a espingarda apoiada no chão enquanto movia os lábios
tão depressa como as mulheres que o observavam rezando a outro
Deus, quem sabe se ao mesmo. Já não chorava. Adrián apercebeu-
se de que ele estava a rezar e de que tinha parado de chorar, como
se a oração retirasse sentido ao pranto.
Kleiber ordenou aos outros que ficassem à vontade e aproximou-
se dele por trás. De seguida tirou a pistola do coldre, levantou-a no
ar e apontou-a à cabeça do rapaz, que continuava a olhar para a
frente.
– Nome e unidade.
Heinrich respondeu sem se alterar, como se já tivesse dado tudo
por perdido e estivesse satisfeito com o balanço.
– Dê a volta, soldado Beyer, quero vê-lo.
E ele voltou a comprazê-lo sem hesitar.
– Dei-lhe uma ordem. Não a ouviu?
– Sim, meu capitão, ouvi-a.
– E porque não a cumpriu?
– Porque não posso cumpri-la, meu capitão. A minha consciência
não me permite disparar sobre essas mulheres.
– Você compreende o significado do que acaba de dizer, correto?
– Sim, meu capitão – retorquiu e assentiu com a cabeça para
esclarecer qualquer dúvida. – Cometi um delito de insubordinação
ao não obedecer às ordens de um superior.
– Muito bem, soldado. – O oficial sorriu. – Como é tão esperto,
com certeza conhece o castigo previsto para esse delito.
– Conheço, meu capitão.
Kleiber encostou a pistola à testa de Beyer, disparou, a vítima
desmoronou-se num instante, como uma marioneta a que tivessem
acabado de cortar os fios que a sustinham. Depois, voltou-se para
as tropas que esperavam a um lado.
– Tu – disse, escolhendo um alemão –, vem ocupar o lugar dele.
E vocês os dois – apontou para dois voluntários estónios,
empurrando o cadáver com a bota –, tirem esta merda daqui.
Enquanto transportavam o cadáver, Adrián olhou para a mão
direita de Heinrich Beyer fechada à altura do pescoço. Teve tempo
para agarrar no cordão do escapulário. Não teve tempo para o
beijar.
– Não são seres humanos. – Jan repetiu-o num sussurro
ritmado, tão monocórdico como o murmúrio quase musical das
mulheres e dos homens que rezavam em hebraico. – Não são
humanos. Parecem, mas não são…
Nessa altura, ouviu-se a primeira descarga, e uma beldade judia
digna de passear pelo braço de um campeão do mundo pelos
tapetes dos casinos mais luxuosos do planeta caiu sem vida,
amontoada entre as outras, enquanto as pernas do Tigre de Treviño
se dobravam sozinhas e a sua pele se alagava numa onda de suor
frio que lhe encharcou a camisa como se a tivesse acabado de tirar
de um alguidar com água. Os guardas do campo colocaram os
cadáveres de barriga para baixo sobre os troncos, trouxeram outras
vinte mulheres, alinharam-nas numa fila afastada da anterior, diante
de um segmento de troncos ainda vazio, certificaram-se de que
formavam uma reta perfeita, Kleiber deu a ordem, os soldados
carregaram, apontaram, dispararam e tudo recomeçou. Em menos
de uma hora, as cem mulheres estavam mortas, os cadáveres
empilhados numa pira comprida de duas camadas de corpos,
rematada por uma última camada de troncos com metro e meio de
comprimento. E chegou a vez dos homens.
Nessa noite, quando voltou a entrar no camião que o devolveria
à frente de Narva, Adrián Gallardo Ortega havia participado na
matança de duzentas pessoas desarmadas, cem homens de
manhã, cem mulheres à tarde. Ao meio-dia, levaram-nos para uma
clareira sem troncos nem prisioneiros e forneceram-lhes rações
mais abundantes do que as habituais, carne guisada com batatas,
meia tablete de chocolate para cada dois homens, uma garrafa de
vodka para cada quatro. Começaram todos por comer em silêncio,
mas a vodka soltou a língua de um cabo que celebrou em voz alta o
bem que lhe tinham feito os judeus de Klooga, arrancando risos a
alguns companheiros, não todos.
Nesse momento, Adrián levantou-se e pôs-se a caminhar pelo
bosque arrasado até sentir o cheiro a carne queimada. Vomitou o
almoço, sentou-se num toco e tentou concentrar-se naquele mal-
estar, no sabor amargo da bílis, mas as imagens da sua vida
sulcaram-lhe em série o pensamento a uma velocidade tão
vertiginosa como se a morte espreitasse atrás da última. Pensou
que não se importaria de morrer, porém deu-se conta de que queria
continuar vivo. Pensou que adoraria suicidar-se, ou melhor, que
adoraria provocar a sua morte, como Beyer naquela manhã, mas
Max Schmeling riu-se dele e Pirulo lembrou-o de que para isso lhe
faziam falta os tomates que não tinha. A senhora Gallardo precisou
que o suicídio era um pecado, mas Heinrich não se havia suicidado.
Heinrich preferira morrer como um inocente a viver como um
assassino, o que era diferente, um gesto admirável, digno, corajoso,
que não o devolveria vivo à mãe, mas que talvez a consolasse
durante o resto da vida.
– Grande estúpido – murmurou Adrián, embora ninguém
conseguisse ouvi-lo –, um tonto de merda, beato de um raio, parvo
do caraças que morreu para nada porque se julgava melhor do que
os outros…
Quando se cansou de falar, levantou-se e voltou para a clareira.
Jan fumava, sentado num tronco onde também havia espaço para
ele.
– Que fazes?
– Nada – replicou, mas estendeu-lhe uma garrafa de vodka. –
Bebe, não quero mais.
Acabou-a de um gole e não lhe caiu bem. O que fizeste, Adrián?
Matei alguns homens, pai, não foram assim tantos, em Kolpino
matei mais russos, em Krasny Bor muitos mais, se não o fizesse,
eles matavam-me a mim, isto é uma guerra, a guerra é assim…
Nunca havia sido muito inteligente, no entanto as luzes que tinha
bastaram-lhe para iluminar a verdade, para o privar do consolo
injusto da mentira. Foi talvez por isso que não conseguiu chorar.
Nessa tarde, quando integrou o primeiro pelotão diante de vinte
mulheres mortas em vida, o ar continuava a cheirar a carne
queimada e Adrián estava bêbedo. Talvez por isso tenha fantasiado
durante alguns segundos com a possibilidade de seguir o exemplo
de Heinrich. Tinha a espingarda entre as mãos, a coronha apoiada
no chão, e, quando Kleiber desse a ordem, ficaria imóvel como uma
estátua, a olhar para a frente, e o capitão aproximar-se-ia,
perguntar-lhe-ia se não tinha ouvido, ele diria que sim, mas que não
ia disparar porque já tinha matado demasiados inocentes nessa
manhã… Imaginar esta cena aqueceu-lhe o coração, suavizou-lhe
os olhos, devolveu-lhe aos lábios o primeiro verso do pai-nosso,
porém, quando Kleiber deu a ordem, o soldado Gallardo carregou,
apontou e abriu fogo sobre vinte mulheres; de seguida sobre outras
vinte, e depois vinte, e vinte mais, até chegar às cem, sem chorar,
sem rezar, sem arriscar a vida. O que fizeste, Adrián? O que fizeste,
meu filho? O que fizeste? Aquela voz foi-se apagando pouco a
pouco, até emudecer por completo. Adrián Gallardo Ortega não
respondeu e nunca mais a ouviu. A dada altura daquela tarde,
conseguiu elaborar uma teoria que lhe iluminou a mente com a luz
que mais lhe convinha, um lubrificante poderosíssimo que oleou
todas as peças do quebra-cabeças, permitindo que se encaixassem
perfeitamente umas nas outras. De um momento para o outro,
Adrián convenceu-se de que compreendia tudo e pagou sem refilar
o preço do conhecimento.
Enquanto disparava sobre aquelas mulheres, imbuiu-se da
certeza de que os judeus de Klooga eram os inimigos mais ferozes,
mais impiedosos e odiosos que jamais combatera. Estavam a
transformá-lo num assassino, só eles, com a sua passividade, com
a sua indolência, com aquela inconcebível aceitação do martírio que
não tinha outro objetivo, outro fim, senão afirmar na sua inocência a
culpabilidade dos verdugos. Na turbulência desordenada que aquela
ideia desencadeou, com a cabeça a fervilhar como uma panela de
pressão, Adrián decidiu que Jan estava duplamente enganado. As
mulheres que caíam sob as suas balas, os homens que as
precederam e os que lhes sucederiam na morte, eram seres
humanos, e nada inferiores. Pelo contrário, eram de tal forma
superiores que se arrogavam o privilégio de transformar a sua morte
num ato supremo de desprezo, de condenação e de rancor para
com os verdugos.
Juan Manuel Suárez, mais conhecido nos ginásios de Espanha
como Pirulo, havia vaticinado que o Tigre de Treviño nunca chegaria
muito longe pensando, mas nesse dia o pensamento levou-o, a uma
velocidade vertiginosa, da compaixão mais intensa que alguma vez
sentira ao ódio mais extremo que experimentaria na vida. O soldado
Gallardo, que carecia de coragem, da inteligência necessária para
aceitar a sua natureza e conviver com ela daí para a frente, nunca
se quis transformar num assassino, não escolhera sê-lo, não tinha
procurado sê-lo, mas disse para consigo que, se aqueles judeus
queriam morrer, era evidente que levariam a sua avante. A pirueta
que lhe permitiu transferir a sua culpabilidade para as vítimas
concedeu-lhe uma recompensa inesperada. Uma alegria selvagem,
próxima do prazer, percorreu-o como uma corrente elétrica
enquanto participava num massacre que o igualava a Jan, que o
identificava com ele, com os companheiros que um dia teriam de
pagar pelo que estavam a fazer. Adrián sabia que um dia lhes
pediriam contas por aquelas mortes, mas não voltou a ter medo,
nem sequer de si próprio. Embriagado de vodka e arrebatado pelo
próprio raciocínio, carregou, apontou e disparou, uma e outra vez, e
mais outra, sobre aqueles cadáveres ambulantes, sobre aquelas
mulheres que haviam morrido muito antes de ele acabar com elas,
porque queriam morrer, porque morriam só para o transformarem
num assassino. Modulou essa palavra com cuidado, sílaba a sílaba,
aplicou-a a si próprio e nada aconteceu. Compreendeu que nunca
mais seria outra coisa que não um assassino e a ideia não o
surpreendeu, não o assustou, não o repugnou. Aí acabou tudo.
Pirulo, Max, Heinrich, Frau Beyer, a senhora Gallardo e o marido
desvaneceram-se como personagens de um pesadelo, de uma
história de terror que não voltaria a repetir-se. O sono e a vigília
tinham trocado de posições, e a vida de Adrián transformou-se num
pesadelo no qual nenhum sonho, nenhuma lembrança, nenhum
remorso teriam poder suficiente para voltar a inquietá-lo. Quando
entrou no camião que o devolveria ao quartel, deu-se conta de que
não fora o único trespassado por aquele entusiasmo feroz e
inaudito, por aquela alegria turva que contrastava com o silêncio
ominoso de todos na viagem de ida.
– Deixa-me, boludo, que é que te deu? – Quando se aproximou
de Jan para o abraçar, porque precisava de lhe dizer que gostava
dele, que nunca o abandonaria, que já eram iguais e ficariam unidos
para sempre, o amigo afastou-o imediatamente, mas sorria. –
Tornaste-te maricas?
A vodka continuou a correr, não deixou de correr enquanto
regressavam à frente e continuou a correr no dia seguinte. Durante
três dias, 20, 21 e 22 de setembro de 1944, os homens de Kleiber,
como lhes começaram a chamar no III Panzerkorps das SS, tiveram
vodka ao pequeno-almoço, almoçaram com vodka e adormeceram
bêbedos de vodka. Entretanto, ajudaram os guardas do campo de
Klooga na tarefa de assassinar cerca de quinhentos e cinquenta
prisioneiros por dia, correspondendo-lhes quatrocentos diariamente,
mil e duzentos no total. Jan Schmitt de Wandaleer deixou de sentir
necessidade de afirmar a cada descarga que não eram humanos.
Adrián Gallardo Ortega continuava convencido de que não eram
outra coisa, mas tanto lhe fazia.
No dia 23, com a última ressaca às costas e o cheiro a carne
queimada a suplantar qualquer outro odor dentro de cada nariz, os
homens de Kleiber, juntamente com o que restava do Exército de
Leste, abandonaram a toda a pressa a frente de Narva. Foi uma
retirada ordeira, que só se antecipou à debandada em três dias. Os
soviéticos pisavam-lhes os calcanhares, mas, quando o exército de
Estaline entrou na Estónia, o III Panzerkorps acabava de entrar na
Letónia. A partir do momento em que Adrián chegou à frente de
Leninegrado, as unidades em que combateu não fizeram outra coisa
senão retroceder, contudo esta retirada era diferente porque todos
sabiam que só terminaria em Berlim.
O fantasma de Klooga viajava com eles. A euforia repentina dos
assassinos bêbedos e felizes que haviam esbanjado abraços e
gargalhadas no camião que ia e vinha do campo esfumou-se na
fronteira, como se não conseguisse sobreviver fora do país onde
tudo acontecera. Os homens de Kleiber não voltaram a falar com
naturalidade do que tinha acontecido naquele bosque, mas de vez
em quando um deles interrogava-se em voz alta se os russos teriam
chegado a Klooga, se teriam encontrado os cadáveres, se aqueles
guardas tão perfeccionistas, tão obcecados com a eficácia do seu
trabalho, teriam deixado algum sobrevivente para trás. De vez em
quando, outro respondia que, mesmo que os russos tivessem
encontrado sobreviventes, não conseguiriam identificar os culpados
porque os judeus bálticos não distinguiam as insígnias, os símbolos
do exército alemão. Inicialmente, a resposta tranquilizava-os por uns
dias, depois só por umas horas, e tudo recomeçava.
O soldado Gallardo nunca participava naquelas conversas,
embora às vezes tivesse de morder a língua para não perguntar aos
companheiros o que receavam, se antes tinham tanta certeza de
que os judeus não eram seres humanos. Ouvia em silêncio as
perguntas, as respostas, detetava o temor que as originava,
compreendia que o fantasma da derrota final o aumentava a cada
dia, mas sentia-se à margem de qualquer inquietação, de qualquer
ameaça que teria contorcido até às lágrimas o outro Adrián, o neto
ingénuo de don Carlos Garrote que mal recordava ter sido.
O soldado Gallardo nunca falava de Klooga porque falar era para
imbecis. Um dia teriam de pagar pelo que haviam feito, estava tão
certo disso como de que um dia haveria de morrer, porque a
Alemanha ia perder a guerra, o que significava que, muito antes de
os pinheiros e de os abetos voltarem a crescer, alguém descobriria
as piras de ossos carbonizados ou algum prisioneiro falaria.
Qualquer um deles, talvez o próprio Kleiber, lançar-se-ia a debitar
números, nomes, apelidos, e a ele não iam confundi-lo com mais
ninguém porque era o único espanhol do grupo.
Com uma agudeza, com uma serenidade que o pobre saloio
conhecido como Tigre de Treviño nunca tivera, o soldado Gallardo
compreendia de súbito todas as coisas e compreendia também que,
sem nunca ter morrido, era já um morto em vida, como os homens e
as mulheres que fuzilara no fim de setembro. Já não tinha país,
aldeia, casa a que voltar, porque tornara a nascer, completamente
só e alagado em sangue, nos bosques de Klooga.
Também não contava sobreviver àquela guerra. Merecia a morte
e sabia-o, ainda assim, nos últimos meses de 1944 e nos primeiros
de 1945, lutou como uma máquina na Letónia, na Lituânia, na
Polónia, finalmente na Alemanha, para a atrasar o máximo possível.
Tinha decidido morrer em Berlim para completar o caminho, para
retroceder até ao último limite possível, até ao ponto ótimo em que o
seu corpo atingiria finalmente o espírito, ambos mortos e unos de
uma vez para sempre.
Só esperava por isso quando chegou, finalmente, a 2 de abril de
1945, a um imenso amontoado de escombros, a um cenário
gigantesco de edifícios ocos, desmoronados, de ruas desaparecidas
sob o entulho, de entulho transformado em trincheiras, de vida
ausente, sem uma única árvore, sem um único cão, sem uma única
criança.
Não havia lugar melhor do que a capital do Reich para se
despedir do mundo naquela primavera da derrota absoluta.
Porém, Adrián Gallardo Ortega não tinha sido o único a decidir
morrer em Berlim.
BERLIM, 25 DE ABRIL DE 1945

Naquela manhã, Agneta Müller acordou hora e meia antes de o


despertador tocar.
Do outro lado da janela do quarto ainda era noite. Estava frio.
Imóvel sob os cobertores, esgotando o calor da cama no quarto
infantil que nunca se atrevera a renovar, esperou pela tosse do pai.
Todos os dias, Rudolf Müller tinha um acesso de tosse seca,
nervosa, às seis menos um quarto da manhã. Antes não tossia, mas
também não estava na portaria da Câmara Municipal de
Schöneberg, nem entrava no trabalho às seis e meia. Antes era o
chefe de imprensa, mas um posto como aquele, tão delicado, não
podia ser confiado a um homem de lealdade duvidosa. Foi o que lhe
disse a mulher no verão de 1934, depois de um vereador seu amigo
a ter avisado de que corriam demasiados boatos sobre a resistência
do chefe de imprensa a filiar-se no NSDAP. Beate Müller pertencia
ao círculo dos fundadores do Partido naquele distrito e achou muito
razoável a destituição de Rudi. Tens muita sorte em não te porem na
rua, vindo da família que vens… Nesse dia, Agneta assustou-se e
perguntou à mãe se os Müller eram judeus. Beate respondeu-lhe
que não, mas que dois tios, arianos puríssimos, tinham estado
filiados em partidos de esquerda, um no social-democrata, a outra
no comunista.
Antes de os aliados desembarcarem na Normandia e enquanto
os soviéticos avançavam sobre a Alemanha em marcha forçada,
Rudolf Müller, um homem culto, sociável, que conservava os hábitos
noctívagos, razoavelmente boémios, do cronista de espetáculos do
Berliner Morgenpost que tinha sido na juventude, constituía a
grande preocupação da única filha. Agneta sempre gostara mais
dele do que da mãe, mas teria dado qualquer coisa para ter tido
outro pai, até menos digno do seu amor.
– Bom dia, ratinha.
A 25 de abril de 1945, Rudolf abriu a porta do quarto de Agneta
às seis e um quarto da manhã, como todos os dias. Quando
encontrava a filha a dormir, voltava a fechá-la sem fazer barulho,
porém, caso ela estivesse acordada, gostava de lhe dar um beijo
antes de ir trabalhar.
– Bom dia, papá – Quando ele se sentou na beira da cama a seu
lado, ela agradeceu o calor daquele corpo. – Amo-te muito, sabias?
Agneta aproveitava todos os momentos em que estava sozinha
com ele para lhe dizer que o amava, mas nessa manhã as palavras
tinham um significado especial. Rudolf Müller ignorava-o e limitou-se
a sorrir antes de garantir à filha que a amava muito mais. Depois,
foi-se embora. Só ao ouvir o ruído da porta da rua, Agneta se
levantou sem fazer barulho, foi descalça até ao armário e abriu-o,
tirando o cabide com a antiga farda da Liga das Raparigas Alemãs,
que havia escovado e engomado no dia anterior.
Aquela roupa guardava a lembrança da época mais feliz da sua
vida. Por isso, quando o estado da mãe a obrigou a abandonar a
organização antes do tempo, não se quis desfazer dela. Mentiu a
Beate, que a instara a devolver o uniforme à sede, e escondeu-o na
parte superior do armário entre as dobras de um cobertor velho. Na
tarde anterior, revendo-o, a emoção encheu-lhe os olhos de
lágrimas. Se não tivesse tido tão pouca sorte, não teria deixado de o
usar todos os dias que haviam decorrido desde que Beate fora
atropelada por um elétrico.
– Agneta! – Nessa manhã, também ela madrugou.
– Já vou, mamã.
Enquanto executava a cerimónia que inaugurava o dia na ordem
estrita imposta pela inválida, abrindo primeiro a persiana da janela à
direita da cama, aproximando-se depois dela para a beijar, para lhe
perguntar como tinha dormido e para ouvir, invariavelmente, que
dormira muito mal, para a ajudar a endireitar-se, bater as almofadas,
abrir a persiana da outra janela e, finalmente, saber o que lhe
apetecia para o pequeno-almoço, Agneta Müller desconfiou, como
todas as manhãs, de que a mãe se tinha atravessado de propósito
na trajetória daquele elétrico para amargurar a vida de todos os que
a rodeavam. Passados uns instantes, também como todas as
manhãs, arrependeu-se de ter sido capaz de albergar semelhante
suspeita.
Beate Spitzer estava quase a fazer quarenta anos quando Rudi
Müller, um pouco mais velho, mais atraente e muito mais pobre, se
casara com ela. Nenhum dos dois esperava ter descendência, mas
Agneta nasceu no verão de 1925, três dias antes de celebrarem
nove meses de casamento. Filha inesperada, quase milagrosa,
luminosa e perfeita, na sua primeira infância poucas vezes transpôs
as portas de casa, a amorosa prisão onde a mãe pretendia protegê-
la dos perigos obscuros que lhe torturavam a imaginação. A sua
obsessão em preservar Agneta do contacto com os filhos de
estrangeiros, de comunistas e de judeus, todos igualmente sujos e
imorais, portadores de doenças atrozes do corpo e do espírito, abriu
a porta a uma mudança que transformaria a vida de ambas. No
início dos anos trinta, Beate Müller descobriu uma doutrina
concebida expressamente para ela e entregou-se ao Führer sem
condições, pelo futuro da sua e de todas as crianças da Alemanha.
– Faz-me um ovo escalfado, mas tem cuidado para não cozer de
mais. Traz-me duas fatias de pão branco…
– Já não há pão branco em parte nenhuma, mamã. Disse-to
ontem. Só se encontra pão de centeio.
– Bom, então traz-me pão de centeio com manteiga e…
– Não há manteiga, mamã. Resta apenas um pouco da compota
que a Roswitha nos ofereceu. Também tive de lhe pedir o ovo.
Trago-te o pão, a compota, o ovo e um café, está bem?
Também não era café, mas um sucedâneo de má qualidade,
embora não tenha perdido tempo a explicar-lho, nem a dizer-lhe que
no dia anterior não havia leite em loja nenhuma. O mundo, o mundo
dela, estava a desmoronar-se. A cada minuto aumentavam as
fendas por onde ascendia o magma ardente, vermelho e infernal,
que o iria devorar, e ela tinha pressa em estar no lugar que lhe
correspondia, aquele que tinha conquistado desde o seu décimo
aniversário.
Nessa tarde, em vez de lhe organizar uma festa com balões e
um bolo, Beate inscrevera-a na Jungmädelbund, a Liga de Meninas,
organização infantil do ramo feminino da Juventude Hitleriana. Ali, a
criatura expectante que olhava para a selva proibida da rua através
da janela do quarto encontrou mais do que um mero local onde
passar as tardes. A Jungmädelbund depressa se transformou no
seu verdadeiro lar, na casa de uma grande família que lhe
proporcionou outras mães, avós, tias e todas as irmãs que não
tivera. Agneta depressa se destacou graças à capacidade de
trabalhar incansavelmente e de assumir responsabilidades. Aos
catorze anos, quando passou a militar com as companheiras na
Bund Deutscher Mädel, a Liga de Raparigas Alemãs, essas
qualidades ajudá-la-iam a ascender muito depressa.
– E o leite? Ainda passa o que me dás não ser café, mas sabes
muito bem que não suporto esta mistela sem leite. Não sei…
– Ontem não consegui comprar leite, mamã. Saí de manhã e à
tarde várias vezes, mas não havia leite em Schöneberg.
– Que disparate! Como é que poderia não haver leite em Berlim?
Se me dissesses outra coisa, mas leite? As quintas dos arredores…
– Os camiões não conseguiram entrar na cidade, mãe. Ninguém
consegue entrar nem sair. Os russos já estão aqui. Estamos
cercados.
A 3 de fevereiro de 1942, quando um elétrico descarrilou
esmagando as pernas de Beate Müller, Agneta ocupava o posto de
Untergauführerin de Schöneberg e, encontrando-se no quarto
escalão do organigrama da BDM, estava ao comando de três mil
raparigas que viviam na sua área. Desde que a guerra a obrigara a
abandonar os estudos, havia-se consagrado ao Partido,
transformando a sua sede num modelo de união, atividade e
eficácia, na secção favorita da sua chefe direta, a
Hauptmädelführerin, a quem sonhava suceder um dia.
Agneta guardava segredo destas ambições políticas porque
sabia que a mãe não as aprovava. Frau Müller era partidária de que
a sua filha escolhesse outro caminho para servir a pátria, a via
preferida do Führer para garantir o Reich dos Mil Anos. Mas a
Untergauführerin Müller, que ostentava com grande orgulho os
galões e as insígnias da sua condição de dirigente, não nutria
qualquer desejo de se acorrentar a um casamento precoce a fim de
procriar, no mais curto espaço de tempo possível, uma dúzia de
crianças para cuidar e educar na fé nacional-socialista. Era esse o
destino que esperava as raparigas obrigadas a abandonar a
militância aos dezoito anos. O partido carecia de uma organização
específica para mulheres adultas, mas Agneta tinha esperança de
que a sua dedicação e a excelência precoce do seu trabalho lhe
franqueassem o acesso à direção da BDM. O acidente destruiu
tanto os seus sonhos como os da mãe. Frau Müller, que ao cabo de
um ano de reabilitação conseguia mover-se pela casa com muletas,
mas que só voltou a ir à rua numa cadeira de rodas, não hesitou em
transformar a filha em enfermeira, massagista, menina de recados e
criada para tudo. Agneta tentou compatibilizar a nova situação com
a militância, no entanto descobriu rapidamente que as suas
ausências provocavam agravamentos súbitos e inexplicáveis na
doente. A admiração que Beate, nazi de primeira hora, suscitava
entre as companheiras, e o desprestígio que lhe acarretavam as
presumíveis desatenções, convenceu-a de que o mais conveniente
para a sua carreira política seria vergar-se aos desejos da mãe.
Desde então, estes não haviam parado de crescer em exigência e
complexidade.
– Não te admito que fales assim comigo. Essas fantasias
derrotistas põem-me doente. Quem te disse isso, o teu pai? Deve
ter ido contente para o trabalho, o grande cabrão…
– Não estava contente, mamã, estava como sempre.
– Mentira! Deve estar encantado porque é um mau alemão. Em
má hora me casei com ele. Devia denunciá-lo por te encher a
cabeça de porcarias.
– O que estás a dizer, mãe? Ele não me disse nada. Toda a
gente sabe. A porteira, que tem um filho na frente, disse-me ontem
que temos os russos à porta há mais de uma semana, quando
fizeram aquele bombardeamento pavoroso. Não ouviste as bombas,
mamã?
– Não, não oiço nada e não quero ouvir nem mais uma palavra.
Vai, anda, e leva isto porque me tiraste o apetite…
Agneta não replicou. Reorganizou o conteúdo da mesa de
cabeceira, pousou nela a bandeja e saiu em silêncio do quarto. Teria
gostado de beijar a mãe, mas não se atreveu. Também não lhe
pareceu importante já que estava certa de que ela compreenderia,
de que se sentiria orgulhosa por a sua única filha ter morrido numa
trincheira, defendendo o bunker de Hitler, o último reduto do mundo
com o qual haviam sonhado juntas durante tantos anos. Com essa
esperança, voltou ao quarto e vestiu-se devagar, de costas para o
armário, acariciando cada peça de roupa antes de a vestir. Só
depois de prender o lenço em volta do pescoço com a anilha que
identificava a patente, girou sobre os calcanhares para se
contemplar ao espelho. Da superfície lisa, uma desconhecida
devolveu-lhe o olhar.
Estava certa de não ter crescido um milímetro nos últimos três
anos, mas o seu corpo tinha mudado tanto que parecia outro. A saia
dançava-lhe na cintura, contudo, um pouco mais abaixo, o tecido
apertava-lhe as ancas, subindo a bainha vários centímetros acima
do seu comprimento original. As pregas que se formavam em
ambos os lados não eram, no entanto, tão evidentes como as
aberturas entre os botões da blusa, que deixavam entrever a renda
do sutiã. Até esse momento, Agneta nem sequer tinha consciência
de ter ganhado aquelas curvas que cobriam com um verniz
voluptuoso, quase obsceno, a imagem inocente que recordava. No
seu lugar, via a figura de uma artista de cabaré, de qualquer uma
daquelas amigas do pai que parodiavam as raparigas do Partido
Nazi antes de as terem metido a todas na cadeia. Não lhe agradava,
mas cada novo pormenor aumentava o efeito escandaloso do seu
corpo naquele uniforme. Já não conseguia calçar os sapatos rasos
da adolescência, e as peúgas brancas que espreitavam pelo cano
das suas botas mais cómodas, de meio tacão, pareciam parte de
um disfarce. Pensou em tirá-las, mas sem elas ficaria com os pés
cheios de bolhas antes de chegar ao destino e não estava disposta
a enfrentar um fim tão ridículo. Finalmente, escovou muito bem o
cabelo e prendeu-o em duas tranças grossas, uma homenagem
expressa ao passado que rematou o impudor extravagante do seu
aspeto.
Antes de sair de casa, cobriu-se com o velho blusão ocre,
abotoou todos os botões e o resultado pouco melhorou, mas já eram
sete e meia, a mãe voltaria a chamá-la dentro de um quarto de hora,
e não podia perder mais tempo. Tirou de um livro o bilhete que havia
escrito à vizinha Roswitha a explicar-lhe tudo e saiu do quarto sem
se despedir dos botões cor-de-rosa e azuis que decoravam as
paredes.
– Vou um instante à rua, mamã, volto já.
– Não demores.
O som da voz dela tranquilizou-a porque percebeu que Frau
Müller estava a mastigar. Percorreu o corredor sem fazer barulho,
abriu a porta com cuidado, fechou-a da mesma maneira e
atravessou o patamar, fazendo deslizar o bilhete por debaixo da
porta da vizinha da frente. Depois, desceu as escadas a correr e
chegou à rua sem olhar para trás.
Calculara que o trajeto a pé até à Chancelaria levaria pouco mais
de meia hora, mas as ruas de Berlim eram já um jardim de
escombros. A necessidade de ver onde punha os pés para não
partir uma perna atrasou-lhe a marcha, mesmo assim não foi
responsável por a Untergauführerin Müller não ter chegado ao
destino.
Poucos metros antes de alcançar a Porta de Brandeburgo, ouviu
as sirenes de alerta de um ataque aéreo e a sua primeira intenção
foi continuar a andar e morrer sob as bombas, porém, quando um
soldado a chamou de uma trincheira improvisada com
paralelepípedos em plena Wilhelmstrasse, deteve-se uns instantes a
pensar, deixou imediatamente de o fazer e correu para ele.
Refugiada naquela trincheira, Agneta Müller compreendeu que
acabava de se juntar à defesa de Berlim e morrer deixou de lhe
parecer uma tarefa muito urgente.
BERLIM, 2 DE MAIO DE 1945

Um tanque soviético solitário, o primeiro que viam, avançava


com parcimónia pelo bulevar Unter den Linden rumo à Porta de
Brandeburgo. Da sua posição, numa esquina da Wilhelmstrasse, os
dois únicos ocupantes do posto seguiram-lhe a trajetória sem
dificuldade.
– Finalmente – disse um deles em espanhol. – Preparado.
E Adrián Gallardo Ortega preparou-se.
Tirou a pistola do coldre, certificou-se de que estava carregada,
apontou à cabeça do homem agachado, disposto a usar a única
metralhadora útil que lhe restava, e apertou o gatilho. Depois,
remexeu no dólman do morto até encontrar a documentação e
guardou-a na carteira, uma vez queimados os seus próprios
documentos na fogueira que ardia dentro do bidão esburacado que
usavam como lareira. Só quando Adrián Gallardo Ortega havia
deixado oficialmente de existir, afastou o cadáver, ocupou o seu
lugar e concentrou-se no visor da metralhadora até ter o tanque na
linha de tiro, mas não disparou. O blindado russo passou ao largo
sem se aperceber do perigo que espreitava num ninho de
paralelepípedos da Wilhelmstrasse e o seu único ocupante esperou
por uma ocasião melhor para entrar em combate.
Porque já não queria morrer, não tinha motivos para isso.
– Heil Hitler!
Ele viu-a primeiro. A 25 de abril ainda estavam seis homens no
buraco que eles próprios haviam fortificado com paralelepípedos
para improvisar um parapeito, mas naquela manhã branca,
brumosa, ninguém reparou nela antes de Adrián.
Ainda faltavam alguns minutos para as oito quando avistou ao
longe uma mancha castanha e preta a avançar tortuosamente na
sua direção, aparecendo e escondendo-se ao ritmo caprichoso das
ruínas. Uma cordilheira desolada de escombros tinha enterrado as
ruas de Berlim, criando montes, lombas, colinas de pedras e tijolos
atravessadas por ferros, vigas de madeira, restos carbonizados de
móveis e objetos fundidos em amálgamas indiscerníveis, que faziam
de qualquer trajeto uma aventura perigosa. Adrián já se tinha
habituado à transparência hesitante da luz do norte, tão enganadora
quando comparada com a precisão dos jogos de luzes e de
sombras que o sol desenhava no seu país; por isso, não confiou
muito nos seus olhos ao descobrir a mancha amarela que coroava a
cabeça de uma presença inexplicável e que se derramava sobre o
peito em dois longos traços que pareciam tranças. Aquele mistério
devolveu-lhe a recordação antiga das meninas da sua aldeia, que
usavam um pau para desenhar na terra o jogo da macaca, a escada
plana por onde avançavam, saltando ao pé-coxinho, até
conquistarem o céu na última casa. A figura que se aproximava
como se lhe chegasse de outros tempos era grande de mais para
ser de uma menina e, no entanto, antes de admitir que estava a
olhar para uma mulher adulta vestida de colegial, descobriu que
aquelas manchas louras que lhe dançavam sobre o peito eram
realmente duas tranças. Nessa altura, perdeu-a de vista e instantes
depois começaram a soar as sirenes. Quando voltou a vê-la, ela
estava muito perto, tão calma como se não as ouvisse. Começou a
chamá-la aos gritos, em espanhol, o que acabou por chamar a
atenção de Jan.
– Que fazes, flaco? Porque…? – Emudecendo-o de assombro. –
O que é isso, uma mina?
Se a tivesse conhecido noutras circunstâncias, a atender numa
loja, a entrar num baile, sentada à mesa de um café, talvez não
tivesse olhado duas vezes. Não era uma rapariga feia, mas também
não era bonita, embora por cada um dos defeitos exibisse uma
virtude, um traço de beleza que o compensava. Tinha os olhos mais
aguados do que claros e o maxilar proeminente, quase equino,
recordava o do Hauptsturmführer Kleiber, porém o cabelo parecia
uma meada de ouro fiado, como o das princesas dos contos de
fadas alemães, e os lábios grossos, encarnados, haviam sido feitos
para serem beijados. No entanto, não foi nada disto que Adrián
sentiu ao olhar para ela. O impacto foi muito mais complexo, mais
intenso do que aquele que lhe provocavam as mulheres bonitas.
Aquela miúda loura, de ar inocente, que antes de se apresentar
ergueu o braço para fazer a saudação nazi com tanto vigor como se
a sua causa não estivesse perdida, trazia uma roupa que a
favorecia de um modo estranho e irresistível. O seu aspeto
envergonharia se a camisa do uniforme não lhe estivesse a castigar
os seios, grandes e redondos, com uma pressão que os unia e
levantava em simultâneo de forma quase dolorosa, enquanto a saia
se lhe apertava as ancas como um invólucro prestes a rebentar
sobre a planície do seu ventre. Despenteada, ofegante do esforço
de caminhar pela cidade destruída, coberta de um pó que lhe
desenhava uma linha castanha entre os seios, com as pernas
arranhadas e as botas sujas, parecia um anjo descido diretamente
de uma nuvem para um bordel, escondendo a nudez com a primeira
coisa à mão, e com um penteado infantil que sugeria o contrário do
que pretendia mostrar. Adrián não conseguia perceber se a
temperatura daquela imagem que lhe acendeu uma fogueira
ardente, capaz de queimar, no centro das tripas, era intencional ou
acidental, não sabia se o fervor daquele rosto era mais ou menos
autêntico do que a sofisticação perversa que transmitia a roupa
simples que a cobria, mas não se lembrava de ter visto nada tão
excitante na vida como aquela figura inverosímil, como aquela
manifestação categórica da vida que se apoderou dele numa altura
em que já só aguardava a chegada da morte.
– O que fazes aqui? – Ele vira-a primeiro e foi o primeiro a dirigir-
se-lhe, no seu alemão rudimentar. – De onde vens?
– Eu… – Ela parou por instantes a pensar, endireitou-se,
levantou a cabeça e adotou uma expressão desafiadora. – Chamo-
me Agneta Müller. Sou Untergauführerin da BDM. Venho de casa e
vim morrer pelo Führer.
Uma gargalhada sonora, cortante como uma faca, esmagou a
solenidade daquela declaração, e Adrián reconheceu nela Alfonso
Navarro ainda antes de lhe ouvir a voz, numas palavras que a
destinatária não poderia perceber.
– Nesse caso estás no lugar certo para isso, evidentemente.
Dos cinquenta homens que Kleiber havia recrutado para levar a
Klooga, só cinco tinham chegado a Berlim. Durante a última fase da
retirada, nenhum inimigo causou tantas baixas como a imagem
pacífica das estações de caminho de ferro, uma promessa que
iluminava diariamente o olhar de alguns soldados, que deixavam de
ver, ouvir, cumprir ordens, empenhando todo o seu engenho a
elaborar um plano de fuga. Todas as manhãs, alguma moradora se
queixava de que na noite anterior lhe haviam roubado a roupa do
marido, ou dos filhos, que estava a secar no quintal. Os culpados,
que já a vestiam sob o uniforme ou que a escondiam no fundo das
mochilas, fugiam de dia, desaparecendo silenciosamente numa
esquina de qualquer povoação, e de noite, já à civil, depois de
subornarem os guardas que, em vez de os deterem, se lhes
juntavam na fuga. Os desertores capturados eram fuzilados
imediatamente, ainda assim, o número dos que conseguiam entrar
num comboio ou na caixa de um camião era muito superior. Em abril
de 1945, os civis alemães só esperavam pela rendição. Denunciar
um desertor era um problema e eles já tinham bastantes. Os oficiais
das SS desesperavam quando calculavam a percentagem de
estrangeiros que defenderia o coração do Terceiro Reich, mas esse
número aumentava diariamente porque os voluntários vindos de fora
da Alemanha eram os únicos sem interesse em desertar, sem
caminho por onde regressar a casa.
Só um dos soldados de Klooga que chegou ao fim era alemão,
mas tinha nascido em Potsdam, a uns quarenta quilómetros da
capital, e casado com uma berlinense. Chamava-se Fritz Weber e
era sociável, muito falador, contudo, à medida que avançavam sobre
a cidade, foi-se fechando num silêncio carrancudo, calculista e
ausente, que só se desfez quando souberam que iriam ser
destinados às tropas de reserva concentradas no distrito central
para travar a última fase da batalha final. A notícia devolveu-lhe o
sorriso por motivos muito diferentes dos da euforia feroz daqueles
que festejaram aos gritos a glória de enriquecerem com o seu
martírio a lenda da sua causa. Fritz voltou a falar pelos cotovelos, a
dizer piadas, a sorrir, até a coluna chegar ao centro de Berlim.
Depois disso, não decorreu nem uma hora até ele se despedir dos
homens com quem havia retrocedido desde Narva. O tenente, ao
comando do grupo heterogéneo de soldados de todas as
procedências onde os tinham enquadrado, saiu para pedir
instruções e ele aproveitou o momento para fugir.
– Foi uma honra acompanhar-vos, mas vou para casa – disse-
lhes num sussurro, apertando a mão de cada um deles. – E vocês
deviam pensar em fazer o mesmo porque não nos vão perdoar
aquilo da Estónia.
Nenhum dos cúmplices se atreveu a censurá-lo. Jan, que no
início da guerra era um dos mais fanáticos, limitou-se a desejar-lhe
boa sorte. Ele assentiu com a cabeça, afastou-se um pouco e
segundos depois gritou, como se tivesse visto alguma coisa entre as
ruínas do edifício em frente.
– Ei, quem anda aí?
Desatou a correr e nenhum dos companheiros o seguiu. Alguns
deles, nessa altura de costas voltadas porque se tinham sentado
nalguma pedra a descansar, nem sequer voltaram a cabeça para
ver o que se passava. Outros observaram a fuga sem interesse.
Fritz Weber partiu tranquilamente, e quando o tenente regressou
nem deu pela falta dele porque quase não conhecia a maior parte
dos homens sob o seu comando.
Durante uma semana, estiveram aquartelados num dos palácios
de Unter den Linden que melhor havia resistido às bombas russas.
A primeira missão da tropa consistiu em limpar os escombros do
chão para o ocuparem, e, enquanto trabalhavam em cadeia a
carregar entulho, todos se aperceberam de que a fragilidade das
paredes, tão danificadas que era impossível encostar-lhes algum
objeto sem provocar logo uma chuva de pó e pedras, transformaria
o edifício num túmulo, caso houvesse um novo bombardeamento.
Mas os chefes, que fumavam tranquilamente enquanto os viam
trabalhar, descartavam a hipótese de um novo ataque aéreo. A
razão, que ninguém se atrevia a dizer em voz alta, prendia-se com o
facto de a infantaria soviética avançar a um ritmo tão vertiginoso
sobre Berlim que não parecia lógico Estaline desperdiçar recursos
aéreos quando o assalto terrestre das suas forças, que superavam
em muito as dos defensores, estava iminente. Não contavam com o
facto de o líder comunista não ser um homem inclinado a perdoar. A
10 de abril de 1945, mais de mil e duzentos aviões soviéticos
desencadearam um inferno atroz e simultâneo sobre o último reduto
do Terceiro Reich. O derradeiro bombardeamento massivo foi tão
brutal que os seus efeitos se tornaram visíveis numa cidade que já
parecia destruída até aos alicerces.
Nesse dia, Adrián Gallardo Ortega julgou que tinha chegado a
sua hora. A calma tensa de uma derrota garantida mantivera-o
inativo durante os últimos dias. Os víveres escasseavam e não fazia
sentido desperdiçar as energias da tropa, de modo que os chefes
permitiam que os homens passassem a maior parte do tempo a
descansar, sentados no quartel ou ao ar livre, entre os escombros
amontoados no jardim. Para prevenir deserções, proibiram-nos de
sair de um recinto onde ninguém podia entrar e o tédio chegou a ser
tão insuportável que, se pudessem, eles próprios teriam empurrado
o inimigo até ao Spree para que tudo acabasse de uma vez. Porém,
os russos chegavam e não chegavam, estavam à porta, mas nunca
mais entravam. Enquanto isso, Adrián e Jan, indiferentes ao esforço
agónico das tropas que resistiam na periferia, matavam o tempo a
conversar sem parar.
No jardim, sob o sol morno da primavera alemã, voltaram a
contar um ao outro as suas vidas, partilhando os cigarros que lhes
restavam. Estavam ambos tão convencidos de que qualquer
conversa poderia ser a última que foram aprofundando pouco a
pouco a gravidade e a intimidade das confidências. Finalmente,
Adrián confessou em voz alta que a sua vitória sobre Navarro em
Bilbau fora uma fraude. Jan correspondeu-lhe, contando-lhe que a
mãe o tinha abandonado.
– Já nem sequer me escreve, viste? – Nessa manhã, depois de
terminar a dose da beberagem castanha que lhes davam ao
pequeno-almoço, queixou-se mais uma vez. – Deve lá estar, a
velha, a felicitar o meu irmão pelo churrasco dos domingos, a ouvir o
maricas do Gardel, felicíssima. Eu aqui a lutar pela salvação da
Europa, e ela… Que nojo – Fez uma pausa e o rosto contraiu-se-lhe
numa careta. – Acho que vou descer mais uma vez.
Desde que havia chegado à frente russa, Jan Schmitt tivera de
combater dois inimigos: um comum, outro privado. Não tinha muita
certeza sobre que fator agravara a prisão de ventre de que padecia
desde criança, mas a alimentação, ou o frio, ou o medo, haviam-lhe
transformado os intestinos num instrumento de tortura, e a
imobilidade dos últimos dias tinha agravado a crueldade. Todas as
manhãs descia à cave, onde as velhas latrinas da criadagem
permaneciam intactas e lá ficava durante algum tempo. O dia 10 de
abril não foi exceção.
Aconteceu num instante. Antes que tivessem tempo para
reconhecer o som de outras explosões, o que restava do edifício
veio abaixo. Adrián teve sorte, mas demorou muito a percebê-lo. O
impacto arrancou-o do sono enquanto em seu redor tudo estremecia
e uma viga de ferro lhe caía em cima, numa posição
extraordinariamente oportuna. As extremidades encaixaram nos
escombros e protegeram-no da queda de uma parede, cujos restos
sepultaram tudo segundos depois. Fechado num sepulcro de
entulho que nunca conseguiria abrir com as próprias mãos, julgou
que finalmente o destino o apanhara, uma morte certa, tonta e nada
heroica, porque viria devagar, por asfixia, fome ou sede, ao cabo de
longas horas, mesmo dias de agonia. Queria morrer em Berlim, mas
não assim, e pediu ajuda aos gritos, em todas as línguas que
conhecia, até ouvir a voz de Lazlo, um voluntário húngaro que tinha
estado com ele em Klooga, e, rapidamente, também a de Schmitt.
Entre ambos abriram um buraco suficiente para chegarem até ele, o
tirarem de debaixo da viga e o içarem até à superfície.
– Estava a cagar, sabes? – Como de costume, Jan não parou de
falar, mas nesse dia Adrián abençoou aquela verborreia. – Que
sorte a minha! Incrível! Há seis dias que não fazia, tu sabes, e de
repente veio-me a vontade e chegaram os vermelhos. Desci à cave
e, olha, nem um arranhão. Livrei-me por uma merda, flaco…
Ao sair do sepulcro sentiu uma dor lancinante no ombro
esquerdo. Tinha o osso deslocado e uma ferida muito feia,
provocada pelas pedras que lhe haviam aberto um buraco na parte
superior do braço onde cabia a ponta de um dedo. Doía-lhe muito,
mas sempre resistira bem às pancadas. Lazlo, que tinha sobrevivido
ao bombardeamento por pura sorte sem a colaboração dos
intestinos nem a intervenção de uma viga salvadora, ligou-lhe a
ferida conforme pôde e foram à procura dos enfermeiros. Não os
encontraram. Poucos eram os sobreviventes e, entre eles, nenhum
oficial. O ordenança do comandante disse-lhes que na última vez
que o viu ele estava reunido com os outros chefes em volta de uma
mesa, no único quarto que mantinha o teto. Tinha-lhe mandado
trazer cigarros e aquele pedido salvara-lhe a vida. Quando voltou,
com dois cigarros russos que tinha roubado a um sargento,
encontrou apenas um túmulo de pedra gigantesco, sem qualquer
indício de vida sepultada. O privilégio de viverem sob um teto tinha
exterminado os oficiais num instante.
Num posto de socorro improvisado junto das ruínas de um
hospital, um médico encaixou o osso de Adrián, tratou-lhe da ferida
e enfaixou-lhe o braço ao peito. Enquanto o instruía sobre como o
manter o melhor possível, Lazlo entrou no edifício e regressou com
duas aspirinas que conseguira requisitar de pistola em punho. O
médico não teceu comentários sobre o procedimento. Aconselhou
Adrián a tomar só uma e a guardar a outra para mais tarde,
recomendando-lhes que voltassem para o quartel à espera de novas
ordens. Quando regressaram ao palácio, já entardecia. Durante todo
o dia só tinham comido uns pedaços de pão conseguidos à força,
impondo-se a uma multidão que assaltava as ruínas de uma
padaria, mas até nisso foram afortunados porque os companheiros
jejuaram todo o dia. As bombas haviam soterrado a cozinha e só se
lembraram deles na manhã seguinte. Nessa altura, distribuíram-nos
por diversos quartéis a funcionar em edifícios tão ruinosos como
aquele que tinham acabado de abandonar, e tudo – a inação, a
fome, o tédio – recomeçou, até que a 24 de abril ouviram algumas
palavras que já lhes pareciam o estribilho de uma velha canção fora
de moda e que, no entanto, nunca mais voltariam a ouvir.
– Já cá estão.
Dessa vez era verdade. Os russos tinham-se alinhado diante do
último anel defensivo da cidade. Depois disso, avistava-se Berlim, e
em Berlim só estavam eles. Não precisavam de que ninguém lho
recordasse, mas um coronel subiu para uma mesa para discursar,
antes de os mandar sair.
– Os nossos camaradas lutam nos arredores, perdem a vida a
defender quintas e estábulos, protegem cada cerca, cada colina, o
mais insignificante palmo de terreno. Nós honraremos esse
exemplo, defendendo Berlim até ao último suspiro, rua a rua, casa a
casa, da cave ao sótão. Não pensem que tudo está perdido porque
este sacrifício não será em vão. As gerações vindouras cantarão a
nossa gesta e os vossos filhos crescerão à sombra do heroísmo dos
pais. Ninguém nos derrotará senão a morte e nem sequer ela
conseguirá arrebatar-nos a glória…
Perante aquele discurso, Adrián Gallardo Ortega sentiu-se muito
velho, apesar de só ter vinte e oito anos. As lágrimas estremeciam
nos olhos do coronel, corriam pelas faces de Lazlo, provocavam
soluços muito pouco viris em Jan e assomavam a muitos outros
olhos, mas ele só conseguia lamentar o sabor repugnante do líquido
castanho que lhe restava na caneca, olhando em volta como se
fosse um simples espectador de uma cena para a qual já lhe havia
sido atribuído o papel de protagonista. Apercebia-se da solenidade e
da transcendência daquele instante, mas não acreditava nelas. A
expressão do coronel, o tom do discurso, a gravidade de palavras
como glória, heróis ou honra tiveram nele um efeito tão pouco
dramático que chegava a ser quase cómico. Sentia aquele discurso
como a casca artificiosa, teatral, de um fruto muito amargo, uma
tentativa falhada de maquilhar com purpurina barata o desfecho sujo
que esperava por eles. Não foi apanhado de surpresa. Sabia que a
palavra de ordem era morrer sem rendição e não tinha medo.
Klooga arrebatara-lhe para sempre a capacidade de o sentir, de
acusar qualquer sensação mais complexa do que a fome ou a sede,
do que o calor ou o frio. Também não pensou em recuar porque
para ele não havia caminho de volta. No momento da despedida,
Fritz tinha proferido em voz alta um aviso que ele já dirigira a si
próprio demasiadas vezes para duvidar da sua eficácia. A palavra
de ordem era morrer sem se renderem, mas a rendição não lhe
prolongaria muito mais a vida porque, mais cedo ou mais tarde, teria
de pagar com ela a dívida que contraíra nos bosques da Estónia.
Adrián ia morrer em terra estranha, por uma causa alheia, e nem
isso lhe parecia mal. Essa conclusão impressionou-o mais do que o
discurso do coronel.
Enquanto caminhava entre Lazlo e Jan até à esquina da
Wilhelmstrasse com a Porta de Brandeburgo, a localização do posto
antitanque que lhes fora atribuído, tentou dissecar-se, determinar a
verdadeira consistência da sua impassibilidade, provocar em si
emoções. Selecionou memórias e impôs-se as mais dolorosas,
aquelas que há pouco tempo teriam bastado para o fazer soluçar,
como a honra e a glória haviam comovido Jan pouco antes. Pensou
na mãe, no seu avental, na cozinha de casa. Pensou no pai, nas
perguntas a que não sabia responder. Pensou no avô, outra honra,
outra glória que lhe humedeceram muitas vezes os olhos em
criança, e nada aconteceu. Ia morrer muito longe da mãe,
destroçando-lhe o coração, nunca poderia confessar ao pai que
tinha desperdiçado a vida em vão, encadeando um erro atrás do
outro, como se os seus equívocos fossem as contas de um terço
maldito, e não conseguia chorar. Não conseguia sentir e nem sequer
se alterou ao chegar ao destino daquela longa caminhada.
Alfonso Navarro López não o viu chegar. Quando os três homens
de Kleiber alcançaram o enorme buraco que teriam de fortificar com
escombros para criar um ninho de metralhadoras em plena rua, já
ele havia começado a trabalhar na construção do parapeito.
Enquanto os dois companheiros se aproximavam para
cumprimentar os recém-chegados, Alfonso pousou com cuidado a
pedra que trazia nas mãos e só depois olhou para eles, os
reconheceu, se lhes dirigiu com uma expressão mais trocista do que
desafiadora. Adrián achou-o bastante envelhecido. Tinha o rosto
desfigurado pelo cansaço, os olhos avermelhados, umas olheiras
que jamais lhe vira, e percebeu que ele era o seu reflexo num
espelho.
– Deves estar a brincar, Gallardo! Com milhares de camaradas
que os russos nos mataram e a imensidão de Berlim… – O cansaço
também tinha enfraquecido a sua voz, roubando-lhe a fanfarronice
de outrora. – Até parece que és minha namorada e não desse
maricas.
– És um bom filho da puta, Navarro! – Jan também estava
cansado. Por isso não se mexeu, nem sequer se aproximou dele
quando lhe devolveu o insulto.
– Não confundas. O único filho da puta aqui é o teu amiguinho
batoteiro.
– Já chega, Alfonso. – Era a primeira vez na vida que o tratava
pelo nome próprio. – Isso agora é indiferente, vamos morrer.
Façamos a festa em paz no tempo que nos resta… – Fez uma
pausa, olhou para Jan e tornou a encarar Alfonso. – O Schmitt já
sabe que ganhei o combate de Bilbau com um golpe baixo. Dei-te
um murro nos colhões, sim, mas o plano era do capitão Ochoa. Ele
disse-me o que teria de fazer e quando, e que o árbitro não veria
nada porque era um alferes provisório que odiava os falangistas
tanto quanto ele. Para eles, a luta não era entre nós, mas entre o
Exército e a Falange, e, se não tivesse obedecido, ele ter-me-ia
fuzilado. Sabes disso, sabes como eram as coisas naquela guerra,
como nesta… O que podia fazer? Tinha vinte e um anos, era
soldado raso, cumpri ordens de um superior, nada mais.
Quando acabou, olhou em volta. A seu lado, Jan assentia. Diante
dele, Navarro olhava-o como se não conseguisse digerir o que
acabara de ouvir. Os outros quatro não tinham compreendido nada
e Adrián sorria ao dar-se conta disso.
– Falas alemão, Navarro?
– Pouco.
– Bom, então espero que chegue para me entenderes porque
vou repetir tudo em alemão para que eles saibam e tu fiques feliz.
Adrián Gallardo Ortega não tinha planeado aquela confissão que
fluiu como um vómito, um coágulo antigo e espesso que ao
desaparecer lhe devolveu ao estômago um bem-estar que já não
recordava. Enquanto carregava pedras para fortificar o buraco no
lado oposto àquele em que Navarro e os companheiros
trabalhavam, atribuiu tal impulso ao esgotamento, à preguiça de
passar as últimas horas de vida a discutir num buraco de cinco
metros de diâmetro, a pegar-se com ele agora ou mais tarde para
liquidar uma última conta pendente, enquanto os russos avançavam
para os matarem. Nunca falaste tão bem alemão, comentou Jan
com um sorriso, e ele devolveu-lho porque estava tranquilo,
satisfeito por ter resolvido só com palavras o irritante capricho do
acaso que tinha voltado a juntá-los.
Quase não conversou com Navarro, mas soube imediatamente
que o caminho que o levara até ali era uma réplica quase exata
daquele que ele próprio havia percorrido. Um dos dois SS que o
acompanhavam era um voluntário da 28.ª Divisão de Granadeiros
Valões, o corpo equivalente à Legião Flamenga que Léon Degrelle
tinha criado no Sul da Bélgica. Chamava-se Robert e contou àquele
argentino estranho de apelido alemão que dizia ser seu compatriota
que em março de 1944, quando Franco extinguiu a Legião Azul,
Degrelle tinha recrutado os espanhóis que preferiam continuar a
lutar a regressar a casa. Quando Navarro decidiu ficar, passou a
integrar a Legião Valona, tal como o seu rival fora parar à Legião
Flamenga. Tudo o resto havia sido fruto do acaso. Ou, pelo menos,
foi o que Adrián achou, até ter conhecido Agneta Müller.
– Devem estar a questionar-se sobre o que faço aqui, claro. Por
estes dias não devem encontrar muitas raparigas na rua, mas eu
não podia fazer outra coisa porque… – Fez uma pausa, fechando os
olhos e esfregando o nariz, como se a inspiração pudesse brotar
daí. – Comecei a militar aos dez anos e aos catorze passei para a
Liga de Raparigas. Foi a época mais feliz da minha vida. Por isso,
hoje de manhã voltei a vestir o uniforme. Já sei que me está
pequeno, que não me fica bem, mas… Quero morrer como uma
mulher nacional-socialista.
Estava sentada numa pedra com as pernas muito juntas. A saia,
de tão estreita, subia acima dos joelhos, deixando à mostra uma
faixa branquíssima de cada perna. Acalorada pela caminhada, tinha
desabotoado o blusão, deixando-os ver o esplendor dos seus seios
comprimidos, com os botões da blusa quase a rebentar devido à
deliciosa pressão da carne. Tinha as faces coradas pelo esforço, ou
pela paixão, e a brisa brincava com os cabelos que tinham
escapado à disciplina das tranças, acariciando-lhe o rosto,
engastando-o com o reflexo de uma auréola dourada. A
desproporção entre o tamanho do corpo e da roupa que a cobria
colocava-a num ponto impossível entre a doçura da adolescência e
a maturidade de uma mulher que age como se ignorasse até que
ponto encarna a tentação. Era, de qualquer modo, o espetáculo
mais bonito que Adrián Gallardo Ortega havia contemplado em
muito tempo.
– Nem pense nisso. – Portanto, pôde mentir, dizendo também a
verdade. – O uniforme fica-te muito bem.
– Sim, estás muito bonita.
A voz de Jan surpreendeu-o porque não estava à espera. As
palavras feriram-no como uma dentada, como uma picada traidora,
inesperada. Eram ciúmes, mas antes de os reconhecer já se tinha
apaixonado por Agneta Müller. Quando percebeu que o
aparecimento dela provocara no amigo um impacto semelhante,
recusou-se a admitir que também pudesse ser amor.
Teria gostado de o chamar à parte, de o avisar de que aquela
rapariga era muito importante para si, confessar-lhe que não tinha
decidido morrer a defender Berlim por amor a Hitler, à sua causa ou
à sua doutrina, mas porque sentia que a vida se lhe esgotara, que
não havia nada por que valesse a pena acordar todas as manhãs,
mas que tudo isso tinha mudado no instante em que Agneta lhe
havia aparecido diante dos olhos como que caída do céu, em vez de
ter descido por uma montanha de escombros. Precisava de lhe dizer
isto, de lhe contar que, de repente, já não tinha a certeza se
desejava a morte, nem sequer se a merecia, como se o bem que ela
prometia tivesse o poder de anular todo o mal que ele havia feito.
Gostaria de ter partilhado com Jan a repentina convicção de que já
não precisava de morrer, de que não podia fazê-lo sem antes beijar
aqueles lábios, sem ter decifrado o mistério daquela blusa cheia,
sem ter pousado a cabeça, pelo menos uma vez, na brancura
imaculada das suas coxas. Ele era o seu único amigo, confidente,
cúmplice, e só conseguiria confiar-lhe aquele segredo súbito e
prazeroso em espanhol porque não era capaz de expressar um
conceito tão complexo noutra língua, mas não encontrou o momento
certo porque nem ele se separou de Agneta, nem Jan o largou a ele.
Até que teve uma ideia.
– Já é meio-dia menos um quarto – disse em voz alta no seu
mau alemão, sem deixar de olhar para ela. – Vou buscar comida,
queres vir comigo?
– Acompanho-vos. – Schmitt ofereceu-se antes de ela aceitar,
estendendo-lhe a mão para a ajudar a levantar-se.
As cozinhas do Adlon, que antes da guerra era o hotel mais
luxuoso, mais exclusivo do Reich, funcionavam como posto de
abastecimento dos últimos defensores do centro. Num mapa, a
distância que os separava de lá era muito curta, mas as bombas
russas tinham enrugado todos os mapas, como se pretendessem
atirar Berlim para o cesto dos papéis, e eles tiveram de trepar, subir,
descer continuamente, atravessar uma cordilheira abrupta de
escombros que lhes deu oportunidades de disputarem a mão de
uma rapariga que nessa mesma manhã havia percorrido um trajeto
mais longo sem a ajuda deles, mas que soube aceitar a galanteria
de ambos com um sorriso equidistante de agrado. Chegados ao
hotel, deixou-os sozinhos para procurar uma casa de banho e,
enquanto faziam fila à porta da cozinha, Adrián encontrou a
oportunidade por que esperava.
– A Agneta foi um milagre, não achas? Quando apareceu esta
manhã com aquele uniforme…
– Sim. – Jan olhou para ele, sorrindo. – Foi como se caísse do
céu, viste? Uma miúda como ela, tão loura, tão branquinha. Muito
bonita, não achas?
Para Adrián, seria indiferente que ela tivesse o cabelo preto e a
pele escura, mas o facto de Jan ter usado as mesmas palavras que
ele pensara ao vê-la chegar, como se caísse do céu, voltou a
acender aquele alarme interior que noutras ocasiões o tinha alertado
para um ataque inimigo, pelo que decidiu ir ao que interessava.
– Ela agrada-me muito, sabes? Parece estupidez, mas acho que
me apaixonei.
Schmitt não respondeu. Olhou em frente, para as costas do cabo
que se identificava naquele momento e pedia cinco rações de
rancho e só voltou a abrir os lábios quando Agneta levantou a mão,
acenando-lhes do umbral da cozinha.
– Vê lá tu que altura para nos metermos com uma pebeta! Não
temos tempo para isso, loco. – Nesse momento voltou a sorrir, mas
só para ela. – Vamos morrer e, no entanto… Ela já tem idade para
escolher, viste?
O cabo recebeu as rações e Jan avançou até ao balcão
enquanto Adrián permanecia imóvel como se a última frase que
ouvira fosse um martelo capaz de lhe pregar de uma só vez os dois
pés ao chão. Enquanto tentava decidir a que tipo de escolha se
referia o amigo, sem se atrever a eleger nenhuma, Schmitt trocou
umas palavras com o oficial subalterno encarregado da distribuição,
apontou para Agneta, elogiou-lhe o fervor, o sacrifício, e conseguiu
sete rações em vez de seis.
– Hoje dou-te mais comida porque posso – acedeu o sargento a
contragosto –, mas o que a tua amiga devia fazer era voltar para
casa porque não sei se amanhã haverá alguma coisa para ela.
– Amanhã logo que se vê. Onde estão os russos?
– Perto!
Porém, um capitão que avançara um lugar, ficando ao lado de
Adrián, respondeu de bom grado:
– Ainda muito longe. – E sorriu. – Ocuparam a maior parte de
Pankow e avançam em Spandau e em Köpenick, mas os nossos
resistem como leões.
– Pankow – repetiu Jan, saboreando aquele nome como se fosse
um caramelo. – Nesse caso, devem demorar quatro ou cinco dias a
chegar.
– No mínimo. Querem tomar Berlim a 1 de maio devido à festa, a
dos comunistas, sabes? De modo que a palavra de ordem é
aguentar até dia 2.
– Naturalmente. Vamos lixá-los até ao fim.
Schmitt assentiu, como se a partida estivesse empatada, voltou-
se para a porta e só depois de alguns passos deu pela falta do
companheiro.
– Ouve lá, Tigre, que fazes aí? O amor deixou-te tolo ou quê?
Anda, não faças a tua dama esperar.
Naquele momento, o soldado Gallardo decidiu que o verbo
escolher só se prendia com ele, que Jan não o utilizara antes por
pretender assumir-se como rival pelo amor de Agneta, mas por
querer avisá-lo de que ela era já uma mulher adulta, livre para
aceitar ou recusar a sua companhia nas últimas horas de vida de
ambos. A conclusão teve a virtude de esticar o tempo como se fosse
uma pastilha elástica, transformando os quatro ou cinco dias de que
os russos precisariam para lhes cair em cima numa temporada
alegre e plácida. Quando saiu do Adlon, Adrián sentiu uma
sensação misteriosa de leveza, os pés tão ligeiros como se o
transportassem sem necessidade de pousar no chão e uma euforia
total, ao mesmo tempo íntima e alheia, que não recordava desde
que era menino, ao sair da escola numa manhã quente de junho,
com o verão todo pela frente.
– A comida não estava muito boa, pois não? – Depois de acabar
as duas conchas de arroz demasiado cozido com uns fiapos de
carne de origem duvidosa que lhe couberam, Agneta fez uma
careta. – Parece um daqueles guisados que dão aos cães. Devia ter
trazido alguma coisa de casa, apesar de a despensa estar quase
vazia, no entanto… A verdade é que pensava que a estas horas já
estaria morta. Foi uma sorte encontrá-los.
– É verdade – admitiu Jan –, embora, se não te tivéssemos visto,
em vez de completamente morta, estarias morta de fome. Os russos
ameaçam, sobrevoam a Chancelaria diariamente, mas estão há
vários dias sem bombardear.
– A guerra pode ser muito aborrecida – acrescentou Adrián. –
Ainda bem que chegaste antes dos tanques.
– Ah! – Voltou-se para ele, sorriu-lhe, e o apaixonado deu-se
conta de que lhe bastaria inclinar a cabeça uns dois centímetros
para a beijar. – Ou seja, achas-me divertida…
– Muito. Alegraste-nos o dia.
Depois de almoçarem, reclinaram-se na base do buraco
desfrutando de um sol que não chegava a aquecê-los, mas que
provocava um incêndio de reflexos dourados nas duas tranças muito
louras. Ela sentara-se entre os dois, e Adrián não precisava de
mover a cabeça, de a rodar na direção dela, para aspirar o perfume
da sua colónia. De vez em quando, concentrava-se no ponto em
que a sua perna roçava na da rapariga, fechava os olhos e
imaginava que estavam sozinhos, juntos, ao sol, muito longe da
Berlim assediada. Esta fantasia enchia-lhe o peito de paz, e um
bem-estar desconhecido acariciava-o por dentro, provocando-lhe
um súbito arrepio em cada poro da pele, iluminando tudo aquilo que
o rodeava com uma luz distinta, ténue e rosada, que faiscava de
puro prazer quando Agneta se ria.
Adrián nunca tinha tido namorada. Antes de se entregar às
ordens de Ochoa nunca havia encontrado na aldeia uma rapariga de
quem gostasse o suficiente e depois tinha estado demasiado
concentrado nos treinos para procurar uma. A sua obsessão com
Navarro fora capaz de superar tudo, de preencher cada vazio,
dotando de sentido toda a sua existência. Saber que ele também ali
estava, que lhe bastaria abrir os olhos para o ver no momento mais
feliz de que se recordava, ter-lhe-ia parecido uma sacanice do
acaso, uma piada cruel, até macabra, se o amor que Agneta lhe
inspirava não houvesse preenchido em poucas horas o espaço
imenso que o rival tinha ocupado durante sete anos, longos como
quinquénios, na sua cabeça e no seu coração. Até àquele momento
não lhe ocorrera pensar que havia chegado a Berlim para morrer
sem nunca ter estado apaixonado e, como nos velhos tempos em
que confiava o futuro à vontade de um baralho de cartas, concluiu
que Agneta fora um sinal do destino, a oferta de um mundo que não
queria perder tão depressa.
– Sabem o que gostaria de fazer? – Ela espreguiçou-se,
endireitou-se e não olhou para a direita, onde estava Jan, mas para
a esquerda, diretamente para os olhos de Adrián. – É outra
parvoíce, como o uniforme, mas se os russos ainda estão em
Pankow e aqui não há nada que fazer… Se calhar não é possível,
mas eu gostaria de ir até à Chancelaria. A verdade é que passei lá à
frente milhares de vezes e nunca me chamou a atenção, mas agora
que sei que o Führer lá está, no seu bunker, não sei… Se
conseguisse ver o que ele vê quando vem cá fora, e a porta por
onde entram aqueles que têm a sorte de o poder visitar, sentiria que
consegui despedir-me. Que acham? Acompanham-me?
Cinco dias depois, ao entardecer do dia 30 de abril, Agneta
Müller partiu com Jan Schmitt, abandonando o buraco da
Wilhelmstrasse.
– És mesmo palerma, Gallardo. – Navarro disse-o num tom
neutro, objetivo, que não pretendia ofendê-lo. – Como é que a
rapariga havia de ir contigo, tendo um alemão por perto? Eles não
são como nós. Levam a sério essa treta da raça superior, percebes?
A Untergauführerin Müller tinha conseguido transpor a cerca do
jardim traseiro da Chancelaria. Fizera-o sozinha, sem a ajuda deles,
graças a um tenente que fazia parte da guarda alinhada diante da
fachada principal do edifício. Ao vê-lo, Agneta tinha-se
desinteressado dos acompanhantes e desatado a correr para ele,
gritando o seu nome, Thomas. Ele reconheceu-a, ouviu-a com
atenção e deu-lhe o braço para a acompanhar. Quando quiseram
reagir, já os dois tinham dobrado a esquina.
Como não conheciam ninguém, não os deixaram aproximar-se.
Tiveram de fazer um desvio, percorrer a rua paralela e entrar por
uma transversal para se acercarem do gradeamento, que só se
abrira para Agneta. Quando chegaram, ela encontrava-se lá dentro,
sentada num banco perto da porta, vigiada pelo tenente e por um
dos soldados da guarda como se fosse uma prisioneira, como se
tivessem acabado de deter aquela rapariga tristíssima, armada
apenas com as suas lágrimas. Porque Agneta chorava. Olhava em
volta e chorava. Sem soluços, sem alarido, chorava e olhava para o
cubo de betão diante de cuja entrada um outro soldado a
contemplava, chorando também. Foi tudo o que viram, tudo o que
aconteceu num jardim abandonado, coberto de ervas daninhas,
folhas amareladas, acastanhadas, avermelhadas, com uns canteiros
repletos de flores secas, uma imagem da desolação, acentuada
pelos rebentos verdes de algumas árvores que resistiram à falta de
rega, de folhinhas tenras, carregadas de futuro, que desafiavam a
derrota total de uma rapariga que chorou sozinha, rodeada de
pessoas, sozinha, durante mais alguns minutos. Depois, levantou-
se, aproximou-se do tenente, disse-lhe alguma coisa ao ouvido. Ele
refletiu alguns instantes antes de assentir e a sua aprovação
funcionou como uma alavanca, um interruptor que levou a
Untergauführerin a alisar o cabelo, a esticar a saia, o blusão, a
verificar se todos os botões estavam abotoados antes de limpar a
cara com as mãos. De seguida, respirou fundo. Fechou os olhos,
voltou a abri-los e avançou em passo de marcha até à porta do
bloco de betão.
Adrián observou tudo aquilo como se fosse a cena principal de
um filme, de um melodrama muito bem ambientado. Ficou
impressionado com o jardim seco, a erva queimada, a luz morna de
um sol cansado, que recusava ser cúmplice da energia súbita da
protagonista, embora a banhasse numa claridade ténue,
melancólica, tão doentia como a paisagem que cobria. Sentiu-se
impressionado, mas não comovido. Sentia compaixão por Agneta,
pela sua tristeza, pelo impulso ingénuo, infantil, que a trouxera ali e
pelo ataque de choro inútil, que só servira para a desfigurar, para lhe
inchar os olhos e turvar a pele branquíssima com um estampado
caprichoso de manchas rosáceas. Compreendia o que aquela visita
representava para ela, porém não conseguia partilhar o sofrimento
porque nunca tinha sentido nada semelhante, nenhuma devoção
comparável ao fervor absoluto que se apoderara de súbito daquela
mulher, que a preenchera, insuflando-lhe, mais do que coragem, um
acesso de exibicionismo insensato, comparável à liturgia épica e
tola em que os seus fuzilados de Portugalete haviam tentado
envolver uma morte igual a todas, solitária, triste, suja. Tentou
dissimular a sua reação, cobrir o ceticismo com uma máscara de
dor, mas as sobrancelhas franziram-se-lhe involuntariamente
perante o estampido final daquele fogo de artifício que o avanço
soviético reduzia a um depósito insignificante de pólvora molhada.
– Heil Hitler!
Chegada à porta do bunker, Agneta Müller perfilou-se, ergueu o
braço direito e gritou com todas as forças. Ao vê-la, o soldado que
tinha chorado com ela estendeu-lhe os braços, abraçou-a e beijou-a
na testa. Adrián julgou ouvir-lhes os soluços antes de perceber que
estava demasiado longe da cena para que os ouvidos captassem o
pranto com tanta nitidez. Ao cabo de um instante de perplexidade,
voltou a cabeça e verificou que era Jan quem chorava, com o
mesmo estrépito, o mesmo desconsolo sonoro e escandaloso que
agitava o peito da rapariga.
– Heil Hitler!
Quando Agneta se voltou e os viu no outro lado do gradeamento,
Jan também se perfilou, também ergueu os ombros, devolveu a
saudação e foi aí que tudo se lixou. Instantes depois de pensar que
aquele ataque de histeria era uma mariquice imprópria de um
homem adulto, Adrián olhou para Agneta Müller, apercebeu-se do
fio forte, invisível, que acabara de coser os olhos dela aos do seu
amigo, relacionou-o com o sorriso enlouquecido que iluminava a
paixão que partilhavam e compreendeu que tudo tinha ido pelo cano
abaixo.
– Heil Hitler!
Depois, no momento em que Agneta estava prestes a transpor o
gradeamento, ele reproduziu os gestos de ambos, perfilou-se,
endireitou-se, disse aquelas palavras que tivera de repetir inúmeras
vezes sem que nunca lhe tivessem acelerado o coração e sentiu-se
à parte, diferente, inferior. Não se arrependia de ter lutado na
Rússia, na Ucrânia, na Estónia, porque o ódio justificava o esforço.
Fora o ódio que sentia pelos comunistas, pelos assassinos de Deus,
pela encarnação suprema e perfeita dos esfarrapados arrogantes
que os Garrotes de todas as épocas haviam combatido que o levara
a percorrer a Europa de ponta a ponta, mas em nenhuma etapa
daquele caminho interminável dera um único passo por amor.
Enquanto Agneta olhava para Jan, e Jan olhava para Agneta, e
nenhum dos dois parecia reparar na postura marcial do espanhol,
no braço levantado, no maxilar fechado, Adrián deu-se conta de que
não podia oferecer àquela mulher nada que se comparasse ao amor
que a levara para os braços de outro homem, fundindo-se com ele
num abraço longo e emocionado. Contudo, de seguida, ela deu a
volta, dirigiu-se-lhe, abraçou-o e ficou ali, imóvel, durante uns
instantes, tempo suficiente para provocar um fenómeno
extraordinário. Adrián sentiu os seios da amada contra o seu
dólman, a face da rapariga apoiada ao seu pescoço, o perfume dela
a inundar-lhe a cabeça até lhe ocupar todos os recantos do cérebro,
e um choro diferente, que nasceu do amor que ela lhe inspirava e da
dor de a ter perdido, afluiu-lhe docilmente aos olhos. Quando
Agneta viu as suas lágrimas, fechou os olhos por momentos. Ao
reabri-los, aproximou uma mão da cara dele para a limpar, como
antes havia limpado a sua, e ele quis crer que nem tudo estava
perdido.
– Deveriam ir-se embora agora. – O tenente Dohrn interrompeu o
abraço com uma voz amável, quase doce. – Já não há muita luz e é
perigoso andar de noite em Berlim. E tu, Agneta, devias voltar para
casa. Os teus pais devem estar muito preocupados…
Porém, quando se despediram, ela anunciou que voltava para o
buraco da Wilhelmstrasse e não parou de falar, como se o som da
própria voz fosse a única coisa capaz de a tranquilizar.
– A minha mãe já sabe. A Roswitha cuidará dela. É a nossa
vizinha da frente, a irmã do tenente que acabam de conhecer. O
Thomas também é muito boa pessoa. Em rapaz tentou triunfar como
barítono, mas não chegou muito longe e acabou por dar aulas de
canto a crianças. Estou-lhe muito agradecida porque há uns anos
me ajudou muito com um grupo coral de raparigas que me lembrei
de criar. É que eu também canto muito bem, sabem? Sou mezzo
soprano. Tivemos tanto êxito que, no Natal de 1941, nos
convidaram para cantar o Horst Wessel Lied numa festa do Partido.
O Führer estava num camarote do teatro e eu… Tinha muito medo
de que ele não gostasse, mas saímo-nos tão bem que no fim o
público nos aplaudiu de pé. Foi muito emocionante, e depois, o
Hitler felicitou-nos. Como fui a solista, estendeu-me a mão, apertou-
a entre as suas, e eu… eu…
Estavam quase a chegar à Porta de Brandeburgo quando Agneta
se deixou cair numa pedra, tapou a cara com as mãos e desatou a
chorar.
– Ninguém voltará a cantar o Horst Wessel Lied! Dão-se conta
disso? Ninguém voltará a cantá-lo, e eu não quero viver assim,
prefiro morrer, quero morrer a cantar… Die Fahne hoch! Die Reihen
fest geschlossen! SA marschiert, mit ruhig festem Schritt…
Quando chegaram ao posto, Agneta continuava a cantar o hino
do Partido Nacional-Socialista Operário Alemão num timbre cada
vez mais feio, mais rouco de desespero e menos humano,
semelhante a um grito, no qual mal conseguia articular as palavras,
mas nem assim deixou de exigir que as ruas se abrissem para dar
passagem aos batalhões das tropas de assalto. Schmitt e Gallardo
levavam-na em braços, quase no ar, e sentiam a dor da garganta
dela nas suas, nos ouvidos a dor mais aguda, mais subtil, que
nascia da crescente deformação daquela voz, do fragor patético de
um canto que já era só estertor, grito puro. Ficaram surpreendidos
com o facto de os companheiros não aparecerem para identificar a
origem daquela barulheira, mas só Alfonso Navarro deitou a cabeça
de fora.
Voltou a escondê-la imediatamente, porém a visão fugaz do seu
rosto fez com que Adrián forçasse uma pausa. Não tanto para
Agneta serenar, mas para ter tempo de a compor. O misto da
caminhada com o ardor selvagem do seu canto descompuseram-lhe
tanto a roupa como a expressão do rosto, que permaneceu ausente
enquanto Gallardo lhe abotoava o blusão para esconder os botões
que tinham saltado da blusa, e lha enfiava na saia como se
estivesse a vestir uma criança. Schmitt olhava sem intervir, sem
dizer nada, mas estendeu-lhe o lenço de seda preto que trazia
sempre ao pescoço para que Adrián lhe limpasse o pó da cara e do
decote. Fê-lo para a proteger, para esconder o seu olhar alucinado,
a cara suja, os seios que lhe saíam do decote do sutiã, do olhar de
Navarro, mas o falangista quase não lhe prestou atenção e
depressa descobriram porquê.
– Deu um tiro nos miolos há pouco.
O cadáver de Lazlo não tinha crânio. No seu lugar, uma massa
polposa, sanguinolenta, que se espalhara pelo muro, contrastava
com o resto do corpo, limpo, de pernas estendidas, braços
abandonados junto do tronco, a espingarda ainda encostada ao
peito com o cano a apontar para cima, a garganta ausente.
– Não se despediu de nós – acrescentou Navarro, sempre em
espanhol para que Schmitt traduzisse ao ouvido de Agneta. –
Estava de pé, ali mesmo, e sentou-se, agarrou na espingarda,
apoiou o cano ao queixo e limitou-se a disparar. Estávamos à vossa
espera para o enterrar, mas já é quase noite. É melhor amanhã, não
acham?
Enquanto transportava o cadáver para fora do buraco, Adrián
deu-se conta de que não sabia o apelido dele. Tinha-o conhecido
em Narva, tinham feito parte do mesmo pelotão em Klooga,
caminhara a seu lado do Báltico ao Centro da Europa e não sabia o
apelido dele. Lazlo salvara-lhe a vida uma vez e agora nem poderia
enterrá-lo, só cobrir-lhe o corpo com pedras, pedaços de argamassa
e de tijolo, blocos de cimento, para que o inimigo o encontrasse
inoportunamente, para que algum russo odioso o atirasse para uma
vala comum sem se dar ao trabalho de registar os seus pertences
numa lista. O destino daquele cadáver sem cabeça mergulhou-o
numa tristeza tão profunda que nela já não cabia a raiva, nem a
fúria, nem o desejo de vingança, mas que nem assim foi capaz de
desalojar o seu amor.
– Toma. – Estendeu o seu cobertor a Agneta apesar de o
cobertor do cadáver estar encharcado de sangue e salpicado de
pedacinhos esbranquiçados, uns duros, outros moles. – Eu fico com
o do Lazlo.
Ninguém falou enquanto engoliam o pouco que tinha sobrado do
almoço. Depois sortearam as guardas e a primeira calhou a Adrián,
enquanto os outros dormiam. Nessa noite, Jan já se deitou de lado
junto de Agneta e encostou-se a ela com o pretexto de a tapar com
o seu cobertor. Conversaram em sussurros durante mais de uma
hora, e o eco indecifrável daquela conversa intensificou o cheiro
ácido e sanguinolento, repugnante, da lã que cobria a sentinela.
Quando Jan o substituiu, Agneta dormia. Dormiria toda a manhã,
enquanto os homens sepultavam o companheiro, decidindo não
identificar o túmulo que haviam acabado de fazer para que não se
distinguisse dos montes de escombros que o rodeavam. Depois,
Robert Collard, o valão, e Michael Schneider, o seu companheiro
alemão, dirigiram-se para o Adlon e não se lembraram de pedir
comida para Agneta, de modo que, ao entardecer, os três fizeram
outra caminhada, desta vez à Winterfeldstrasse. Esperaram até de
madrugada para transpor silenciosamente a entrada do prédio dos
Müller e ali esperaram em silêncio que Agneta regressasse com um
pedaço de pão de centeio, uma lata de arenques cheia de pó que
encontrara no fundo da despensa e um frasco de vidro com um
dedo de compota de morango. Acabava de deixar a mãe sem o
pequeno-almoço do dia seguinte, mas não o disse, e conduziu-os às
ruínas de um edifício próximo onde comeram e dormiram os três
juntos, muito apertados. Mal abriu os olhos, Adrián só viu a cabeça
de Agneta voltada para Jan, mas ouviu o ruído húmido de um beijo.
Como se tivesse sentido que ele estava acordado, a rapariga voltou-
se imediatamente e beijou-o também, na face, com um estalido
seco, muito diferente.
A 27 de abril, ao voltarem à Wilhelmstrasse, encontraram o
cadáver de Schneider com um buraco no peito. Nunca chegariam a
saber se tinha tentado desertar ou se tinha ido esticar as pernas, se
fora morto por um soldado justiceiro ou por algum ladrão que o
queria roubar, porque a seu lado viam-se espalhadas a carteira
vazia, algumas cartas e a fotografia de uma rapariga. Quase não se
conheciam e decidiram não o sepultar, como haviam feito com
Lazlo, antes de falarem com os companheiros.
Navarro recebeu-os de mau humor. Ele e Robert estavam cheios
de sono porque fora preciso dividir entre si as guardas e, quando
souberam que Michael estava morto, nenhum dos dois pareceu
lamentar muito.
– Já não podemos fazer nada por ele – afirmou Robert em
francês, a língua com que comunicava com Navarro.
– Pois não – respondeu-lhe ele em espanhol, dando por
terminado um luto que não tinha chegado a começar. – Vou dormir.
No dia seguinte, no Adlon, souberam que os russos já lutavam
em Berlim, e a vida transformou-se numa contagem decrescente
angustiante, que culminou a 30 de abril, quando, ao acordar, Collard
recolheu os seus poucos pertences e se despediu deles.
– Sinto muito, camaradas, mas decidi que não me apetece
morrer aos vinte e seis anos. Mesmo sabendo que não tenho
hipóteses, gostaria de sobreviver. Portanto, não vejo outro remédio
senão desertar.
Depois de proferir o fatídico verbo, observou-os, um por um, do
centro do buraco.
– Diz que vai desertar – traduziu Navarro –, que quer sobreviver.
Nem Schmitt nem Gallardo disseram fosse o que fosse. Agneta,
que falava francês, também não se mexeu.
– Podem matar-me agora, se quiserem – acrescentou Robert. –
Sei que tu não o farás, Alfonso, porque és meu amigo, mas vocês
os dois têm uma oportunidade. Se quiserem liquidar-me, é agora. –
Contou até cinco sem deixar de olhar para eles e sorriu. – Não?
Nesse caso, vou-me embora. Boa sorte a todos.
Nesse momento, Agneta e Jan cruzaram um olhar carregado de
sentido, como se pudesse falar ou anunciar o que aconteceria dali a
algumas horas, quando, cerca do meio-dia, ela fingisse uma dor
numa perna e Schmitt esgrimisse a sua experiência de auxiliar de
ação médica, tarefa que desempenhara durante duas escassas
semanas, para ficar a cuidar dela e pedir a Gallardo que fosse
sozinho ao hotel.
– Olha, flaco, gosto muito de ti, sabes? – Depois do almoço,
pegou-lhe pelo braço e levou-o à parte, para fora do buraco. – Mas
a Agneta quer voltar para casa e eu vou com ela. Vem connosco.
Sim, eu sei, chegámos até aqui para morrermos, para defendermos
o Reich até ao fim, mas… – Nas reticências deixou de olhar o amigo
nos olhos. – Agora tudo é diferente. Tu mesmo o disseste, a mina
apareceu e… – Começou a retroceder muito devagar. – Tu viste-a
primeiro, eu sei, tu também a amas, a mereces, mas ela já tem
idade para escolher, viste? E eu avisei-te, tu sabes, eu…
– Cala-te um bocadinho, Jan. – Adrián anulou a distância que o
separava do interlocutor em duas passadas. – Cala-te, porque tenho
de te dizer uma coisa importante. Eu também gosto muito de ti.
Mesmo muito. Porque és um filho da puta, mas também foste o
melhor amigo que tive na vida.
Instantes depois, Jan Schmitt de Wandaleer caiu ao chão como
um peso morto. O culpado não foi Adrián Gallardo Ortega, que lhe
disse a verdade confessando-lhe quanto gostava dele. Foi o Tigre
de Treviño, que o derrubou com um gancho da direita. Agneta
Müller correu na sua direção e martelou-lhe o peito com os punhos
pequenos e delicados. Não lhe custou muito afastá-la. Mas não a
magoou. Quando ela se inclinou sobre Schmitt para o reanimar,
Gallardo foi-se embora e caminhou durante horas, até se perder. No
momento em que regressou ao buraco, só lá restava Alfonso
Navarro para lhe chamar saloio. Não se importou.
A 1 de maio de 1945, os soviéticos não conseguiram celebrar a
sua festa com a conquista de Berlim. Os defensores da cidade
cumpriram a palavra de ordem e prolongaram uma resistência
agónica por vinte e quatro horas. Só a 2 de maio, quando o canhão
de um tanque apontou diretamente para ele, Adrián Gallardo Ortega
saiu do buraco da Wilhelmstrasse com os braços no ar. Porém, não
se rendeu sozinho. Trazia consigo os documentos de Alfonso
Navarro López, cujo cadáver nem sequer mostrou aos ocupantes.
Sabia que Navarro estava enganado, que Agneta não tinha
escolhido Jan pela raça, pele ou apelido, mas pelo amor que a ele
lhe faltava, essa ausência que o obrigara a competir em
desvantagem quando Berlim era ainda a capital do Führer. No
entanto, não o matou à traição por ele se ter enganado, nem sequer
por ter encarnado durante anos o seu pior pesadelo de noite e de
dia. No momento em que apertou o gatilho nem sequer se lembrava
do porto de Bilbau, do terror que o tinha impedido de ser campeão
de Espanha em 1941, da noite de Natal de 1942. Não o moveu o
rancor, nem a culpa, nem o medo, só um amor tão grande que
açambarcava todo o espaço dentro de si.
Adrián Gallardo Ortega precisava de deixar de ser ele próprio
para ter uma oportunidade com Agneta Müller quando tudo
terminasse. Chegaria uma altura em que já ninguém se lembraria
dos velhos hinos porque a derrota teria reduzido a cinzas esse
fervor, esse amor que ele nunca sentira. Já não queria morrer, não
estava disposto a entregar a vida sem ter beijado aquela mulher,
sem ter escondido a cabeça entre os seus seios, sem a ter pousado
nas suas coxas pelo menos uma vez, mas, se não conseguisse
encobrir-se sob outra identidade, dificilmente poderia acalentar
semelhante esperança. Ele estivera em Klooga, e mais cedo ou
mais tarde teria de pagar aquela dívida. Muita gente estivera lá:
Kleiber, os seus homens, os guardas do campo. Todos apontariam
para o III Panzerkorps, e tinham ficado em Narva demasiados
soldados para que nenhum sobrevivesse, para que nenhum se
lembrasse dele, para que ninguém o denunciasse aos russos.
Adrián precisava de ser outra pessoa e de documentos que
testemunhassem a nova identidade. Por isso, só por isso, matou
Alfonso Navarro, e esse novo crime nem lhe chegou a perturbar
minimamente a consciência enquanto se entregava sem resistência
aos soviéticos.
– Porque falas tão mal alemão?
Eis a primeira pergunta que lhe fez o oficial que o interrogou,
depois de seis semanas num calabouço a abarrotar de homens que
não esboçaram qualquer expressão de estranheza ante o seu novo
nome.
– Porque sou espanhol.
– Espanhol? – O russo franziu o sobrolho e olhou para ele. –
Franco?
– Sim, Franco. Lutei com Franco em Espanha e depois fui para a
Rússia.
– Voluntário?
– Sim. – Teria preferido dizer que não, mas o seu interlocutor não
teria acreditado. – Voluntário.
Passados quase oito meses, quando parecia que já se tinham
esquecido dele, foi interrogado por outro russo que falava espanhol
e que ouviu, nessa língua, uma biografia fictícia. O homem que se
apresentou diante dele como Alfonso Navarro López elaborara-a
com tempo, durante os incontáveis dias em que tinha vivido às
escuras, a comer mistelas nojentas, a dormir sentado numa colmeia
apinhada de homens tão desnutridos, tão cansados e tão pestilentos
como ele.
Aquele oficial que não lhe disse como se chamava e nem sequer
se deu ao trabalho de tomar notas limitou-se a enviá-lo para uma
cadeia à espera de julgamento.
– Vamos transferir-te, com certeza, para um tribunal britânico ou
norte-americano – acrescentou –, porque não temos nenhuma
acusação grave contra ti pela tua atuação na frente Leste, e não
damos vazão a tanto assassino.
Perante aquelas palavras, o Tigre de Treviño sentiu que acabava
de ganhar por KO o combate mais importante da sua vida.
WASHINGTON D.C., ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
21 DE MAIO DE 1946

O congressista Sal Burnstein entrou no seu gabinete do Capitólio


dez minutos antes da hora marcada para a reunião. A luz suave de
uma manhã de primavera recebeu-o num aposento impessoal, que
conservava a decoração inicial dos gabinetes de todos os
representantes do Partido Democrata. Muitos dos colegas mudavam
os móveis, os candeeiros, as pinturas das paredes, transformando o
local de trabalho num espaço mais íntimo, mas ele não precisou de
qualquer mudança. Na primeira gaveta da mesa repousava uma
fotografia que o definia totalmente. Para se encontrar, bastava-lhe
olhar para ela.
Haviam passado vinte e sete anos, calculou, quase vinte e oito,
pousando-a de novo na mesa, não sem antes voltar para ler a frase
anotada no verso: «Korczyna, 12 de abril de 1919.» Lera-a
centenas, talvez milhares de vezes, mas a letra da mãe ainda o
emocionava. Naquela imagem estava tudo, todos os Burnstein,
exceto dois. O primeiro ausente era o seu irmão mais velho, Elyahu,
que tinha emigrado para os Estados Unidos em novembro de 1918,
quando regressou da guerra e soube que a namorada se tinha
casado com outro homem. O segundo era o pai, assassinado em
janeiro do ano seguinte num pogrom desencadeado por um grupo
de oficiais do exército polaco sob pretexto de os judeus da Galícia
serem partidários dos sovietes e inimigos da independência da
Polónia. Abraham Burnstein sempre fora um homem muito religioso
e uma pessoa ordeira. Não se considerava um patriota polaco, mas
sentia muito menos simpatia pelos revolucionários que haviam
virado o império dos czares do avesso. A turba que lhe destruíra a
loja, que o arrastara pelas ruas e que aplaudira o seu enforcamento
na praça de Korczyna não se dera ao trabalho de o interrogar.
– Bom dia, congressista Burnstein.
– Bom dia, Abby.
A sua secretária chamava-se Abigail porque era descendente de
judeus russos, no entanto nunca comentava as origens em público.
Era igualmente discreta a respeito da relação sentimental que
mantinha com o chefe. Abby não fizera ainda trinta anos, era solteira
e acalentava ambições políticas. Sal sabia que ela não estava
apaixonada, mas isso não lhe fazia falta e agradecia-lhe a destreza
com que ela navegava nas águas perigosas do seu adultério. Abby
tratava-o sempre na terceira pessoa, dentro e fora do Capitólio,
mesmo no pequeno apartamento onde se encontravam, e naquela
manhã foi tão formal como de costume. No entanto, a interrupção
aborreceu-o.
Nunca se cansava de olhar para aquela fotografia, a modesta
celebração do seu Bar Mitzvá, tão diferente dos banquetes com que
Abraham e Sara Burnstein haviam festejado a entrada na
maturidade dos outros três filhos varões. Depois do pogrom e do
assassinato do marido, com o negócio arruinado e de malas feitas
para se mudar para Cracóvia com a filha Agar, Sara limitara-se a
oferecer ao filho mais novo um almoço, a que só assistiram os
irmãos, que também o tinham acompanhado na cerimónia da
sinagoga. Ali, com o pai morto e Elyahu em Nova Iorque, foi Efraim
quem proferiu a bênção. A fotografia que Sal Burnstein tinha nas
mãos foi o único luxo a que a mãe se permitiu nesse dia, o sábado
seguinte ao seu décimo terceiro aniversário. Ei-los todos, no último
dia que passaram juntos.
– Quer que vejamos a sua agenda antes da reunião?
– Não, obrigado, Abby. Prefiro deixar para mais tarde se não se
importa.
Na fotografia que Sal não se cansava de admirar, Sara
Burnstein, sentada à mesa, ocupava o lugar central ao lado do
homenageado. Atrás, em pé, apareciam Efraim, solteiro, e David,
ladeado pela mulher com um bebé ao colo. Ao lado de Efraim,
posava Linka, a irmã mais nova, também solteira, estudante de
Magistério em Varsóvia. Sentadas à mesa, a escoltar Sara, as duas
filhas mais velhas, acompanhadas pelos maridos e pelos cinco
filhos. Na noite do pogrom, nenhuma das filhas de Abraham
Burnstein estava em casa. Agar vivia em Cracóvia, Rebeca em
Varsóvia, Linka, com ela. Se as tivessem encontrado, talvez se
conformassem violando-as e não lhes matassem o pai. Sal sabia
que Abraham teria morrido na mesma, mais cedo ou mais tarde,
incapaz de sobreviver à desgraça das filhas.
Das dezasseis pessoas que posaram a 12 de abril de 1919 na
sala de jantar da sua casa de Korczyna, só duas tinham chegado
com vida a 21 de maio de 1946. Se Efraim não tivesse decidido
aceitar a oferta do irmão mais velho e emigrar para a América
depois do pogrom, se não tivesse esperado pelo Bar Mitzvá de Saul
para o levar consigo, o congressista Burnstein nunca teria sido eleito
representante do povo americano pelo Partido Democrata. Teria
morrido no campo de concentração de Plaszów, como a mãe, a irmã
Agar, o irmão David, o cunhado e a cunhada, e todos os seus
sobrinhos. Ou no gueto de Varsóvia, como Moshe, o marido de
Linka, que nunca tinha chegado a conhecer. Ou em Auschwitz,
como a sua irmã Rebeca, o marido e os filhos, Linka e os seus
filhos. De todos os Burnstein de Korczyna só sobreviveriam os três
irmãos que haviam atravessado o oceano.
– Mister Cohen já chegou. – Abby interrompeu-o com a
suavidade a que aprendera a recorrer de cada vez que via aquela
fotografia na mesa do chefe. – Mando-o entrar?
– Sim, por favor, obrigado.
Elyahu Berkowitz, o único irmão de Sara Burnstein, emigrara
para Nova Iorque em 1907. Apesar de nunca ter visto o mar até ao
dia em que embarcou para atravessar o Atlântico, ao cabo de doze
anos era dono de duas peixarias e de uma pequena frota de três
camiões de transporte de peixe. Antes de Efraim e de Saul
chegarem, responsabilizara-se pelo primogénito da irmã perante as
autoridades de imigração, e não lhe fora difícil que aceitassem os
outros dois. Ao desembarcarem, os recém-chegados descobriram
que os dois Elyahu, tio e sobrinho, tinham mudado de nome,
transformando-se respetivamente em Louis Berkowitz e Lewis
Burnstein. Efraim não gostou. Na semana seguinte começou a
trabalhar como camionista para o tio, à semelhança do irmão Lewis,
mas mantendo o nome próprio, a que nunca renunciaria. Louis
Berkowitz tinha prometido a Sara que não obrigaria Saul a trabalhar,
matriculando-o numa escola pública, onde ele conseguiu passar a
metade das disciplinas de um ano que estava prestes a terminar,
tendo de fazer exame de alemão. Nesse verão, em que trabalhou
como moço de recados nas peixarias do tio, dedicou-se a aprender
inglês e, a partir daí, com bolsas de estudo sucessivas e sem deixar
de distribuir peixe por toda a cidade de Nova Iorque, completou a
carreira académica mais brilhante de todos os Burnstein.
Saul, como Lewis antes dele, ficou fascinado com os Estados
Unidos desde o instante em que pôs o pé no cais de Manhattan.
Embora o seu nome fosse menos invulgar do que o do irmão mais
velho, aceitou com prazer o diminutivo que a primeira namorada lhe
pôs. Sal era curto, sonoro, fácil de recordar e, com frequência, o
nome que adotavam os Salvatore italianos quando se
americanizavam. Enquanto Efraim cumpria o sabbath e rezava pela
salvação dos seus ímpios irmãos, Sal vivia totalmente à margem da
comunidade judaica de Nova Iorque. Não punha os pés na
sinagoga, não tinha amigos, nem namoradas, nem sócios hebreus,
não lia jornais escritos em iídiche nem falava na língua materna
senão com os membros da sua família. Apesar de nunca ter
ocultado as suas origens, só os íntimos sabiam que era judeu. Entre
eles, contava-se Sam Cohen, o único filho varão de um financeiro
hebreu de Wall Street com quem estudou na NYU e cujo apoio foi
tão decisivo na carreira política de Sal como o do sogro, o senador
democrata de origem italiana Bill Mattioli.
– Sammy, que bom ver-te! – Burnstein levantou-se da mesa para
abraçar o recém-chegado, perguntando-se porque lhe parecia
familiar a mulher que havia entrado com ele no gabinete. – Mas tu…
– De facto. – Ela desatou a rir. – Eu sou a filha do Hank. Como
estás?
O extermínio de toda a sua família, de que só ficou a par depois
de maio de 1945, provocou uma transformação radical no espírito
de Sal Burnstein. Não regressou à sinagoga, nem ao iídiche, nem à
observância do sabbath, mas propôs-se com todas as suas forças
recordar e vingar a mãe, os irmãos e os sobrinhos. A angústia que
tinha acumulado em mais de dois anos sem notícias deu lugar a
uma desolação sem limites, a um luto tão profundo que a sua
mulher, Gloria, o arrastou certa noite até um hospital onde o
internaram com um quadro grave de anemia e desnutrição. Estava
sem comer há quase três semanas e também não dormia. Agarrado
a uma cópia emoldurada da mesma fotografia que guardava numa
gaveta do gabinete, chorava os seus mortos, repetia sem fé as
orações que aprendera em criança e sentia-se culpado por ter
sobrevivido. Durante o verão de 1945, um psicoterapeuta conseguiu
expurgá-lo da culpa e devolver-lhe as energias, sem perceber que a
recuperação do seu paciente iria cristalizar num ódio destinado a
transformar-se, ao mesmo tempo, no núcleo e no eixo da sua vida
futura.
Sal Burnstein não era o único congressista judeu que tinha
perdido a família nos campos de concentração nazis, contudo, o seu
ardor fez dele o primeiro a ser contactado por um grupo influente de
empresários e financeiros de origem judaica, indignados com o
rumo que as coisas estavam a tomar na Alemanha. Apesar de os
jornais dedicarem as suas capas aos julgamentos de Nuremberga,
eram cada vez mais os oficiais norte-americanos que se queixavam
em surdina da recetividade dos seus chefes aos argumentos dos
antigos nazis, que tentavam, e muitas vezes conseguiam, convencê-
los de que se haviam enganado no inimigo. Muitas chefias aliadas
na Alemanha concordavam com o argumento de que a União
Soviética representava o único verdadeiro perigo para a paz do
mundo e para a supremacia da civilização ocidental. Todos os dias,
antigos oficiais das SS desapareciam das listas de prisioneiros por
terem sido recrutados para trabalhar às ordens de britânicos e de
norte-americanos contra os interesses soviéticos na Alemanha.
– Claro! – Burnstein abraçou a filha de um dos melhores amigos
do seu sogro. – A filha do Hank Williams… Margaret, não é
verdade?
– Sim, mas os amigos chamam-me Meg.
O congressista Burnstein criou um grupo de políticos democratas
que trabalhava em contacto com o lobby a que pertencia Sammy
Cohen. O seu objetivo, mais do que recordar à opinião pública
norte-americana os crimes cometidos pelos nazis nos campos de
extermínio, consistia em opor-se à influência daqueles que
preconizavam que qualquer meio era legítimo para impedir uma
nova guerra com a Rússia de Estaline. Não se tratava de uma tarefa
fácil porque ninguém admitia em público qualquer conivência com
os nazis, nem estava disposto a assumir em privado um cenário que
satisfizesse em simultâneo as reivindicações daqueles que queriam
castigar os crimes nazis e a necessidade de prevenir um novo
conflito. Burnstein apercebeu-se imediatamente de que a paz não
matizara as cores do mundo onde vivia. Continuava tudo a ser
branco ou preto, e nessa nova polaridade todos os seguidores de
Hitler que não tivessem sido julgados em Nuremberga surgiam
como candidatos a receber uma demão de tinta mágica capaz de
lhes apagar todas as culpas.
Nessa situação, o seu grupo tinha muito poucas possibilidades
de exercer pressão através de canais legais. Era-lhe muito fácil
receber palavras amigas e demonstrações de compreensão pela
sua dor, até lágrimas autênticas de correligionários sinceramente
comovidos que, no entanto, não estavam dispostos a arriscar as
carreiras para lhe favorecerem as pretensões. Enquanto isso, no
primeiro aniversário da rendição do Terceiro Reich, aumentavam os
boatos sobre a facilidade escandalosa com que os criminosos de
guerra de qualquer nacionalidade conseguiam sair dos países de
origem para se esconderem noutros, ou fugirem com identidades
falsas. A localização das redes que os protegiam transformou-se no
grande objetivo de Sal Burnstein, que acreditava que, ao torná-las
públicas, o governo de Washington se sentiria obrigado a envolver-
se na sua desarticulação. Era esse o motivo da reunião dessa
manhã.
– Pedi à menina Williams que viesse comigo porque na semana
passada foi apresentar-me uma proposta muito interessante e quero
que ela própria ta explique. – Sammy voltou-se para a
acompanhante e moveu uma mão no ar como um convite. – Força,
Meg.
– O que sabe sobre Espanha, congressista Burnstein? – Sal
esboçou uma expressão cética com os lábios, mas a filha de Hank
Williams não desanimou. – Alguma vez ouviu falar da Clara
Stauffer?
Uma hora depois, Sal despediu-se de Meg com um abraço, dois
beijos e uma única palavra: obrigado. Era uma expressão muito
pobre da sua gratidão, do reconhecimento de uma dívida que nunca
poderia pagar em moeda alguma. A convidada de Sammy tinha feito
muito mais do que apresentar uma proposta de atuação para o seu
grupo. Acabara de lhe dar uma missão, um objetivo concreto, um
cenário real e, sobretudo, um inimigo com nome e apelidos.
Quando ficou novamente sozinho no gabinete, estava tão
eufórico que teria gostado de gritar, de saltar, de dançar ao ritmo do
amor e do ódio que lhe apertavam o coração como o eco de um
tambor selvagem. No entanto, voltou a sentar-se na cadeira, a tirar
da gaveta a fotografia da família e a acariciar com a ponta dos
dedos a cara da mãe.
– Não será fácil – avisara-o Meg, e ele limitara-se a assentir com
a cabeça. – Não posso garantir-lhe resultados. – O segundo aviso
recebeu a mesma resposta. – E também não será barato.
– Isso não interessa. – Burnstein olhou para Cohen, sorriu e
recebeu um sorriso de volta. – Dinheiro é a única coisa que nos
sobra.
Naquela tarde, Sal pediu à secretária que conseguisse a
fotografia de uma mulher espanhola de origem alemã chamada
Clara Stauffer, dirigente de uma organização franquista denominada
Secção Feminina, que vivia no número 14 da calle Galileo, em
Madrid.
Três semanas mais tarde, o retrato que Abby arranjou através de
um funcionário da embaixada norte-americana acompanhava já a
fotografia da família Burnstein na primeira gaveta da secretária do
seu gabinete.
TAPLOW, BUCKINGHAMSHIRE, INGLATERRA, 27 DE JULHO DE 1946

Pouco depois de descer do comboio em que embarcara em


Londres, Manuel Arroyo Benítez sentiu uma pontada imprevista de
nostalgia.
– Anima-te, homem! – A voz de Pablo de Azcárate parecia
descontraída, até risonha, quando lhe telefonara para o obscuro
escritório. – Gostando tanto de Londres, como vais perder um
weekend? Vem almoçar no próximo sábado, que estamos todos
com muita vontade de te ver. Suponho que na tesouraria ainda haja
dinheiro para te pagar a viagem, mas se não houver não te
preocupes que trataremos disso aqui.
No verão de 1939, Manolo voltara a viver em Genebra, em
condições muito diferentes daquelas que o tinham popularizado
como Monsieur Agoyo antes de 1936. Meg Williams já não vivia lá.
Ao regressar à cidade onde haviam sido tão felizes juntos, Manolo
sentiu saudades dela nos dias de sol e nas manhãs nubladas, no
sabor dos bombons e nas margens do lago onde já não passeava
um cão, nas tascas que os diplomatas não frequentavam e nas
esquinas onde marcaram encontro tantas vezes, depois de festas
onde quase nem se cumprimentavam. Apesar de só sentir a falta de
Meg, a solidão foi o traço principal da sua nova etapa genebrina.
Pablo de Azcárate, que conservava muitos amigos e contactos
na Sociedade das Nações, tinha-lhe oferecido um posto oficioso, à
margem da exígua representação diplomática a que se podia
permitir o governo republicano no exílio. A sua nova missão
libertava-o do tédio dos banquetes e dos cocktails de outrora,
embora não fosse muito mais apaixonante. Arroyo trabalhava
sozinho num pequeno escritório alugado em nome de uma empresa
comercial inexistente, mas o seu verdadeiro escritório eram os
bancos das praças, os parques e os cafés, que frequentava quase
diariamente para conversar com diversos representantes de países
neutros e aliados. Tudo o que tinha a fazer em Genebra era
comparecer a esses encontros, nos quais se apresentava como
Felipe Ballesteros Sánchez, e resumir o que deles resultava nos
relatórios que enviava para Taplow quando encontrava lugar em
algum avião militar britânico.
Apesar de o salário ser tão baixo que nem chegava para pagar
uma renda, Manolo tinha consciência de que o posto seria um
privilégio para qualquer exilado que não tivesse servido
anteriormente na embaixada republicana em Londres. A salvo da
guerra, num país neutro, com autorização de residência na Suíça e
um quarto cómodo numa pensão bem localizada, o tédio era um
presente em comparação com a dor, a angústia e a fome sofridas
pela maior parte dos exilados espanhóis que permaneceram na
Europa depois da derrota. E, no entanto, ele teria trocado aquela
situação sem hesitar pela intempérie de um campo francês.
Manuel Arroyo Benítez já tinha visto demasiadas lágrimas
estremecerem nos olhos dos assassinos da República Espanhola.
Tinha ouvido demasiadas palavras de amor e promessas ardentes e
compromissos solenes que no fim não haviam passado de uma
impostura interminável. Tinha a língua em carne viva de tanto a
morder, mas Azcárate fora inflexível da única vez em que se
atrevera a pedir-lhe para ser substituído. Sinto muito, Manolo, mas
preciso de ti lá. Sei que tens de engolir muitos sapos, porém é
fundamental manter a pressão até ao fim da guerra e, para isso,
temos de averiguar coisas que não são faladas nos cocktails, de
modo que… Ele não insistiu. Fez o seu trabalho e fê-lo muito bem.
Engoliu tantos sapos que, em junho de 1945, na Conferência de
São Francisco onde foi criada a Organização das Nações Unidas,
destinada a substituir a Sociedade de Genebra, vetou-se a presença
da Espanha franquista e recebeu-se, em seu lugar, uma delegação
de políticos republicanos, com o posto de observadores. Para quem
não tivesse sido obrigado a ver a cara de Lorde Windsor-Clive todas
as manhãs, teria sido um sucesso estrondoso. Não para Manolo,
que nem na sua sombra confiava.
Quando recebeu o telefonema de Azcárate, o seu quotidiano era
um decalque amargo, tristíssimo, da experiência dos representantes
da Moldávia ou das Repúblicas Bálticas, por quem, à distância,
sentira pena, enquanto trabalhava para o governo de uma nação
verdadeira, com território e soberania. O facto de os organismos
internacionais manterem a Espanha de Franco o mais longe
possível dos fóruns, tão isolada do resto do mundo como se tivesse
lepra, não lhe melhorava muito o estado de espírito. Genebra tinha
deixado de ser uma estância balnear e transformara-se num teatro
gigantesco onde ele nem sequer tinha um papel adequado à
tragédia do seu país. Longe da intensidade dos dramas clássicos,
via-se obrigado a atuar na qualidade de um simples figurante numa
farsa de má qualidade, como um desses atores que têm uma única
fala que mais tarde os espectadores nunca recordam. Por isso, e
apesar das suas lembranças amargas de Londres, aceitou com
prazer o convite do mentor e ao meio-dia do dia 27 de julho de 1946
desceu de um comboio na estação de Taplow.
Num aprazível dia de verão, aquela vila pareceu-lhe tão diferente
da capital britânica como se estivesse noutro país. O campo inglês,
mais doméstico do que domesticado, lembrava um jardim em
comparação com a natureza agreste de onde ele provinha, mas as
grandes extensões de um único tom de verde pareceram-lhe mais
familiares na sua infinita uniformidade do que imaginara. Foi então,
enquanto caminhava por entre gradeamentos recém-pintados,
sebes recortadas primorosamente e belos edifícios, cujas fachadas
revelavam o bem-estar de quem neles habitava, que sucumbiu a
uma saudade prematura e surpreendente da sua vida na Europa.
Porque, depois da criação da ONU, também ele dava como
garantido que Genebra perderia uma das três indústrias sobre as
quais assentava o seu prestígio internacional, ficando apenas com
os relógios e os chocolates. A diplomacia multilateral já fazia as
malas para se transferir para Nova Iorque, e, por mais voltas que
desse, só encontrava motivo para o telefonema de Azcárate se
estivesse relacionado com tal mudança. Tinha a certeza de que o
chefe nunca gastaria o pouco dinheiro que lhes restava num bilhete
de avião só para lhe suavizar a notícia do seu despedimento, o que
significava que o havia convocado para lhe dar instruções que
implicariam, mais cedo ou mais tarde, a sua saída de Genebra. No
entanto, o convite não deixava de ser misterioso.
A guerra europeia fora duplamente trágica para Pablo de
Azcárate. Enquanto as bombas alemãs caíam sobre Londres, a
morte da mulher rematara-lhe o exílio com uma cereja cruel,
desmoralizando-o de tal modo que, quando conseguiram voltar a
falar pelo telefone, ele próprio lhe contou que os filhos e os netos
haviam chegado a ser um estorvo, embora felizmente não o
tivessem abandonado. Apesar da necessidade transitória de solidão
que marcou a primeira fase do seu luto, não teria conseguido
recuperar sem a companhia deles, porém tudo isto decorrera
durante a guerra e havia mais de um ano que a Europa vivia em
paz. No verão de 1946, os casais tinham-se reunido, os pais tinham
recuperado os filhos e cada qual havia escolhido o seu caminho.
Manolo não percebia a quem se referia exatamente o chefe quando
falava em «todos», mas começou a desconfiar antes de se sentar
para almoçar.
– Manolín! Fico muito feliz por te ver…
No último trecho do passeio desde a estação, o recém-chegado
identificou ao longe a mulher morena, de cabelo preso, que saiu da
casa de Azcárate no momento em que ele estava prestes a chegar.
Durante a sua época de ligação com o governo de Valência cruzara-
se várias vezes com Feli López, a companheira de Juan Negrín,
reconhecendo-a num carro que se afastou velozmente, na direção
contrária à sua. Por isso não se surpreendeu ao encontrar no jardim
traseiro os dois visitantes do Colégio Sierra Pambley que um dia,
havia muitos anos, não tinham tecido comentários sobre o estado
lastimável dos seus sapatos.
– Mais feliz fico eu, senhor, ao vê-lo com tão bom aspeto.
– Bom, aceito a mentira como uma demonstração de carinho.
A emoção do reencontro não o impediu de constatar até que
ponto tinham envelhecido os dois homens que mais haviam
influenciado o seu destino. Não se admirou, porque nenhum
republicano espanhol se sentiria tão derrotado como aqueles velhos
amigos que o convidaram a sentar-se entre eles sob o sol pálido do
verão inglês, mas feriu-o o cansaço e a tristeza que viu neles e que
parecia tê-los precipitado para uma velhice precoce. Antes de
descobrir que ambos conservavam energia de sobra, reparou que o
mais magro dos dois emagrecera tanto quanto o mais robusto
engordara. O pouco cabelo que Azcárate conservava estava já
completamente branco. As entradas de Negrín não haviam
aumentado muito e quase não tinha cabelo grisalho, ainda assim
trazia-o pouco cuidado, tão comprido que lhe rematava a cabeça
como um estranho diadema que mudava de forma com o vento,
dando-lhe ao rosto um aspeto insólito, muito diferente do esmero
que o cabelo penteado com brilhantina lhe conferia noutros tempos.
Vestiam ambos roupa casual, calças largas, cómodas, camisas
soltas e mocassins. Quem não os conhecesse pensaria que eram
dois reformados sem mais nada que fazer além de apreciar o
domingo.
– Como estás? – O dono da casa levantou uma mão para
chamar uma rapariga. – O que queres beber? Acabou-se-nos o
vinho espanhol, xerez incluído, pelo que te recomendo uma cerveja,
ou um whisky, se quiseres começar em força…
– Eu deixaria o whisky para mais tarde – replicou Negrín,
sorrindo – porque com certeza vais precisar.
– Bom, nesse caso, uma cerveja, mas… – Manolo olhou para
um, depois para o outro e apostou consigo próprio que nenhum dos
dois quereria responder à pergunta que se preparava para fazer. –
Por que razão vou precisar de me embebedar?
– Agora não, deixemos isso para depois do almoço – e ganhou a
aposta. – Conta-me, anda lá, como vão as coisas por Genebra?
– Na mesma, como deve imaginar…
Durante cerca de uma hora, Manolo foi praticamente o único a
falar, desfiando um relatório aborrecido de apertos de mãos e
conversas cordiais, de sorrisos e promessas, que os companheiros
ouviram com um interesse que lhe pareceu excessivo. Assim,
passaram do aperitivo para o almoço, um estranho arroz com
açafrão e nacos de carne, que de paelha só tinha o nome, e da
sobremesa para um café que lhe provocou no estômago um
formigueiro incipiente.
– Recapitulando… – Depois de voltar a encher o copo, Azcárate
inclinou-se sobre a mesa e olhou-o fixamente. – Que percentagem
de sucesso julgas que teria uma proposta de condenação do regime
de Franco na Assembleia Geral das Nações Unidas?
Manolo acendeu um cigarro para ganhar uns segundos antes de
responder. Não lhe constava que estivessem a trabalhar nesse
sentido, apesar de alguns boatos a que não prestou muita atenção.
Por instantes, pensou que aquela consulta poderia ser a razão da
sua presença em Taplow e sentiu pena, todavia lembrou-se a tempo
do whisky que ainda ninguém lhe tinha oferecido e atreveu-se a dar
a sua opinião.
– Tenho de ser completamente sincero?
– Claro.
– A verdade é que julgo que há muitas possibilidades de essa
proposta ter pés para andar. Mas temos pouquíssimas hipóteses de
que consiga tirar o Franco do poder.
Nenhum dos dois falou imediatamente. Manolo deu uma passa,
olhou para eles, deu outra passa e explicou-se melhor.
– O que quero dizer é que julgo que será muito fácil a
Assembleia aprovar por maioria um texto que não implique um
recrudescimento do bloqueio económico, nem uma ameaça militar e
muito menos uma invasão aliada de Espanha. Todos estarão de
acordo em dizer que o Franco os repugna, que o seu regime é
intolerável, que Espanha nunca entrará nas Nações Unidas
enquanto ele estiver no poder, blá, blá, blá… E nada mais.
– Sim. – Azcárate sorriu e olhou para Negrín, que soltou uma
risadinha. – É exatamente o que achamos que vai acontecer.
– Ainda bem, porque não gostaria de vos dar um desgosto. –
Manolo atreveu-se finalmente a esboçar um sorriso que logo se
extinguiu. – A verdade é que tudo está a mudar tão depressa que
ninguém se quer lembrar de que, no ano passado, a União Soviética
era também uma aliada. Já nem sequer reconhecem que sem
Estaline nunca teriam derrotado Hitler. O relato da guerra muda de
dia para dia, dando cada vez mais importância ao desembarque na
Normandia e menos à campanha do Leste. Por este andar, dentro
em pouco, as crianças estudarão na escola que os americanos
libertaram Berlim. Isso não nos favorece porque o Franco se
apresenta como o campeão do anticomunismo, o que parece ser a
única coisa que interessa agora. E… – Respirou fundo, como se
precisasse de o fazer antes de mergulhar na ferida. – Não sei se
estão a par, mas as potências democráticas voltaram a jogar com
um pau de dois bicos. Por um lado, brincam aos criminosos de
guerra em Nuremberga com tanta publicidade que mais parece que
estão a rodar um filme; mas, por outro, a verdade é que os nazis se
andam a esfumar dos campos e das prisões. Diz-se que algumas
das chefias aliadas os recrutam como agentes antissoviéticos na
Alemanha e noutros países do Leste. E se eles não se dão ao
trabalho de desmentir estes rumores porque os nazis não os
estorvam, por que raio iria o Franco estorvá-los? Por isso, não
acredito numa palavra do que me contam a mim, que não sou
ninguém.
– Fazes bem. – Azcárate concordou com ele e olhou para
Negrín, que assentiu com a cabeça. – Bem, nesse caso, acho que
chegou a altura do whisky.
O dono da casa levantou-se para o servir em três copos com
gelo e muita formalidade, porém, depois de o fazer, cedeu a
iniciativa ao último presidente do governo da República.
– Lembras-te de como me doía a cabeça em Valência, Manolo?
– Evidentemente, senhor. Nunca poderei esquecer-me.
– Bom, chamámos-te porque agora nos dói ainda mais…
A 10 de setembro de 1946, Manuel Arroyo Benítez entrou em
Espanha por Gibraltar. Teria preferido passar através de França
porque essa via chamava menos a atenção, mas a fronteira estava
fechada e cruzá-la pela serra, com um guia clandestino, tê-lo-ia
exposto a uma queda que lhe arruinaria prematuramente a missão.
Antes de pisar o Rochedo, avistou Campo de Gibraltar das escadas
de um avião militar britânico e, vendo a roupa estendida nos
terraços das casas de La Línea, teve a sensação de inalar um ar
que lhe pertencia, que lhe era próprio e que há mais de sete anos
lhe faltava. O vento do Estreito emocionou-o tanto que sentiu o
impulso de parar entre dois degraus e fechar os olhos para que
aquela ventania lhe confirmasse que estava de volta a casa, mas
não o fez. O funcionário britânico que o aguardava na pista teria
achado muito estranho semelhante amor por parte de um cidadão
norte-americano, nascido em Nova Jérsia, que se dispunha a visitar
pela primeira vez a pátria dos pais. Eis a sua cobertura, a identidade
que constava no passaporte que trazia no bolso do casaco, mas foi-
lhe difícil não sorrir ante o sotaque gaditano, áspero e sinuoso, com
que o anfitrião lhe deu as boas-vindas ao Rochedo antes de o
apresentar ao norte-americano que o acompanhava.
– Nas Nações Unidas vai passar-se exatamente o que
prognosticaste – comentou Juan Negrín, bebendo o primeiro gole do
primeiro whisky que tomaram em Taplow. – É uma pena porque
muita gente trabalhou essa via, mas a diplomacia vai continuar a
causar-nos desgostos. Se as coisas se passarem como tememos, a
resolução não será do agrado de Franco, como é lógico. Ficará
muito ofendido por continuarem a tratá-lo como se estivesse
contaminado, no entanto a sua verdadeira derrota seria que o
obrigassem a abandonar o poder. Ora, como isso não vai acontecer,
nós voltaremos a perder, infelizmente.
– Outra desgraça – interveio Azcárate – é que muitos dos
nossos, dentro e fora de Espanha, teimam em ser demasiado
otimistas. Os boatos de que o Franco tem os dias contados não
param de aumentar desde que os aliados venceram a guerra e, ao
que parece, em Madrid há gente a querer organizar um
levantamento para tomar o poder quando a ONU nos apoiar.
– A sério? – Arroyo franziu o sobrolho. – Mas os comunistas…?
– Não, os comunistas não são tão ingénuos. – O chefe sorriu-lhe
com amargura. – Depois do fracasso da invasão de Arán, confiam
tão pouco nos aliados como nós. Parece que se trata de gente muito
nova, estudantes da FUE, vários anarquistas, membros da
Juventude Socialista e antifranquista sem inscrição, que não
chegaram a fazer a guerra porque, nessa altura, eram miúdos, mas
que agora estão dispostos a tomar a dianteira… Uma loucura. Se
chegar a acontecer, essa rebelião pode acabar numa carnificina.
Quando ficou sozinho no quarto do The Rock Hotel, o alojamento
mais luxuoso e confortável do minúsculo território que para ele seria
sempre um penhasco e não uma rocha, Manolo já sabia que a sua
missão não estava diretamente relacionada com aqueles jovens que
pretendiam tomar Madrid para favorecer uma transição para a
democracia que as Nações Unidas nunca iriam patrocinar. Não lhe
agradava que assim fosse porque estava cansado de fracassos,
porém, na varanda que se abria para a imensidão furiosa do mar
aberto, sentiu-se quase feliz, muito satisfeito por ter aceitado um
risco infinitamente maior. Enquanto desfazia as malas com a porta
da varanda aberta para apreciar a companhia daquele vento que lhe
falava na sua língua materna, praticou o sotaque norte-americano
com que tinha previsto deformá-la até chegar a Madrid. Numa
homenagem íntima, num tributo de amor a Meg Williams,
experimentou salpicar as frases com os órale e os a poco, sem os
quais ela não sabia falar espanhol.
– Por esse caminho não podemos esperar outra coisa. Mas há
alguns meses falaram-nos de um plano muito mais interessante,
bastante prometedor mesmo. Estás vinculado a esse projeto desde
o princípio, mais tarde te explicar-te-ei porquê. Agora o mais
importante é que saibas que, desta vez, não se trata de uma missão
delicada. É só muito perigosa.
– Porque tenho de voltar a Espanha, correto? – Aquelas palavras
encheram-lhe o peito, aceleraram-lhe o ritmo do coração, inundaram
com um sol radiante a penumbra morna daquela conversa. – A
Madrid?
– Qualquer pessoa diria que estás encantado – comentou
Negrín, com uma ironia que se transformou num sorriso
melancólico.
– Se o senhor o diz… – Soltou uma gargalhada. – Para continuar
em Genebra a engonhar…
Enquanto atravessava o bar do hotel, aproximando-se de Robert
McKay, voltou a sentir aquela euforia pungente, efervescente, que
lhe arrepiava de prazer cada centímetro da pele e o obrigava a sorrir
sem razão. Felizmente, o seu contacto era um homem bastante
risonho, com os lábios sempre curvados num sorriso mecânico, tão
imperturbável que na realidade nada significava. Alto, louro,
corpulento, com umas calças de ganga, uma camisa bordada
fechada até ao último botão e um colarinho, em lugar da gravata,
enfeitado por cordões de couro terminados nuns cones de prata
lavrada, parecia um vaqueiro inocente do Midwest caído por
engano, sem a sua manada de vacas, na outra ponta do oceano. No
entanto, apesar das explicações pormenorizadas com que
descreveu o seu trabalho em Gibraltar como agente comercial
independente, com um vínculo temporário ao consulado do seu país
para explorar as possibilidades de exportação de matérias-primas
espanholas que não estivessem sujeitas ao bloqueio, Manolo tinha a
certeza de que ele era um agente da CIA, que nem se chamava
Robert, nem se apelidava McKay, embora não o pudesse censurar
porque nisso estavam em pé de igualdade. Quando lhe perguntou
pelo nome daqueles vinhos espanhóis que se bebiam num copinho
alto e de que a mãe gostava tanto lá em Nova Jérsia, chamou-lhe
Bob, como o outro lhe havia pedido que fizesse, e aguentou com um
sorriso tão falso como aquele que tinha diante de si o discurso chato
e inexato com que McKay esclareceu Peter, nascido Pedro, Louzán
Valero, sobre os vinhos de Jerez.
– Bom, nesse caso… – Azcárate fingiu não ouvir o comentário
sobre a irrelevância do trabalho que ele próprio lhe atribuíra. – Já
que descreveste tão brilhantemente a situação em que nos
encontramos… Achas que existe algum fator capaz de frustrar a
política aliada de captação de antigos nazis, criando um cenário que
nos seja mais propício?
Arroyo acabou a bebida, acendeu outro cigarro e assentiu.
– É claro, senhor, mas só um. A questão judaica, os campos de
extermínio, os crimes de guerra. Qualquer nova revelação, o
aparecimento de informação que tenha permanecido oculta… Se
fosse possível provar os boatos, a cumplicidade ou, no mínimo, a
tolerância de certas chefias aliadas com as fugas de nazis, o
processo tornar-se-ia muito mais difícil.
– Continuas a ser o melhor da turma, Manolín! – festejou Negrín
com uma gargalhada.
– Ai, sim? – Aquele elogio desconcertou-o. – Está bem, mas…
Não sei é como poderia favorecer-nos. Nem toda a gente acredita
que Espanha tenha agido como um país neutro durante a guerra,
mas a Divisão Azul também não lhes parece suficiente para aceitar
a sua beligerância, isso os senhores sabem muitíssimo bem.
– Claro. – Azcárate encheu o copo. – Mas o que vamos contar-te
nada tem que ver com a Divisão Azul… Pelo menos, por enquanto.
Pedro Louzán Valero nascera em 1910 em North Arlington, uma
zona de Nova Jérsia que, no verão de 1946, quando Bob McKay
ouviu aquele nome pela primeira vez, albergava uma larga colónia
de imigrantes portugueses e espanhóis, quase galegos, embora Ana
Valero tivesse nascido em Maraña, uma aldeia do Norte da
província de León. O seu filho Pedro tinha nacionalidade norte-
americana e nunca atravessara o Atlântico. Espanha também não
lhe interessava muito, a avaliar pelo aborrecimento com que falou
da sua missão, muito semelhante à de McKay. Ao almoço, Peter
Louzán, que pronunciava o seu apelido comendo o «o» e
transformando o fonema interdental «z» num «c», explicou ao
colega que trabalhava no Departamento de Defesa. Teria preferido
ficar em Washington, mas fora escolhido pelas suas origens e
conhecimento do idioma para recolher informações sobre as jazidas
de volfrâmio que tanto haviam ajudado o esforço bélico de Hitler
durante a Guerra Mundial, e cujo interesse aumentava de dia para
dia ante a perspetiva de um novo conflito com a União Soviética.
Antes de sair de Londres, Manolo Arroyo sentira-se desconfortável
com aquela cobertura. Estava habituado a trabalhar com
identidades falsas, no entanto era a primeira vez que tinha de se
fazer passar por estrangeiro, cidadão de um país onde nunca havia
posto os pés e, embora tivesse praticado intensivamente o sotaque
durante mais de um mês, ao almoço quase não bebeu para evitar a
loquacidade, tão perigosa na sua profissão. No entanto, antes do
segundo prato começou a sentir-se bem; de seguida, muito bem,
muito melhor do que esperava. Como McKay estava a aceitar a
história sem contratempos, depois do almoço atreveu-se a sondá-lo
acerca do franquismo, um regime que lhe parecia odioso. Nesse
momento, inventou que os Louzán e os Valero haviam pago um
preço muito elevado pela lealdade à República durante a Guerra
Civil, mas, embora Peter tivesse feito uma descrição intensa e
pormenorizada desses sofrimentos, o homem da CIA não moveu um
músculo. Franco convém-nos bastante, limitou-se a afirmar no fim.
Pode ser um tirano, mas é um grande inimigo de Estaline e agora é
isso que interessa, não achas? Pouca sorte dos espanhóis, temos
muita pena, mas… Claro, Peter Louzán não teve outro remédio
senão concordar, nesse sentido tens razão.
– Um congressista do Partido Democrata chamado Sal Burnstein
entrou em contacto connosco. Atua em seu nome e em nome de um
lobby poderoso de empresários e financeiros judeus de Nova
Iorque, originários, em grande parte, da outra Galícia, a polaca. O
Burnstein também nasceu lá, emigrou em criança e mais tarde os
nazis chacinaram-lhe toda a família, não deixando ninguém vivo.
Como deves imaginar, o que o move é a vingança, mas é um
homem sério em quem podemos confiar.
– Conheço-o? – Em Genebra, Manolo habituara-se ao
funcionamento dos lobbies anglo-saxões. – Já teve alguma coisa
que ver connosco anteriormente?
– Não – replicou Azcárate sorrindo –, mas tu conheces a pessoa
que passou ao Burnstein a informação sobre uma rede de proteção
a antigos nazis que opera em Madrid. De facto, com certeza, o
mérito é teu. Na tua ausência, Miss Williams transformou-se na
ativista mais trabalhadora, influente e abnegada dos comités de
solidariedade com a causa republicana e com o exílio espanhol.
– Não me sobrestime, senhor. – Manolo desatou a rir para
disfarçar o sobressalto agradável que lhe deixou o coração aos
pulos. – Se calhar é mérito da Celsa, a do Mourúas.
– A Celsa? – Negrín franziu o sobrolho. – E quem é essa Celsa?
– Bem, é uma história muito longa.
– O facto – continuou Azcárate retomando o fio à meada – é que
a Meg está metida em tudo o que se cozinha em Washington e em
Nova Iorque. Não se faz nada, nem um simples cartaz, sem a
aprovação dela. Por isso, foi falar com uma imigrante recém-
chegada, a Sole Ruiz, uma rapariga asturiana que em Madrid serviu
em casa da Clara Stauffer. O nome diz-te alguma coisa?
– Na verdade… – Manolo concentrou-se, mas não conseguiu
que nenhum dado concreto se sobrepusesse àquela súbita, intensa
lembrança de Meg. – Acho que me diz qualquer coisa, mas neste
momento, não sei o quê.
Pedro Louzán Valero ficou em Gibraltar uma semana. Era esse o
prazo que as autoridades franquistas requeriam para aceitar
qualquer pedido de entrada em Espanha, mesmo de quem tinha
todas as garantias e avales, como o que fora apresentado em seu
nome pela embaixada norte-americana em Madrid. Bob McKay
levou-o no seu carro para lá do gradeamento e depositou-o são e
salvo à porta do hotel Reina Cristina de Algeciras, onde lhe tinha
reservado um quarto para duas noites. Sei que querias ir
imediatamente para Madrid, explicou-lhe na receção, mas fazemos
sempre assim. Mesmo que a tua família seja espanhola, é melhor
que te habitues ao país, ao tratamento, à comida, à maneira de falar
das pessoas… Quando chegares à Galiza, vais agradecer-me.
Peter Louzán não esperou tanto tempo e agradeceu-lhe nesse
preciso instante com palavras efusivas, cúmplices, enquanto Manolo
Arroyo lhe insultava silenciosamente o pai. No entanto, livre da
tutela opressiva do agente da CIA, apreciou bastante a estada em
Algeciras e, a 19 de setembro, de muito bom humor, foi buscar o
carro que tinha alugado previamente para conduzir até Madrid.
– As belas esquiadoras? – referiu Negrín. – A travessia a nado
da Laguna de Peñalara? – Quando pela segunda vez Arroyo negou
com a cabeça, ele explicou-se melhor. – Até ao golpe de Estado,
Clara, ou melhor, Clarita Stauffer, porque ela prefere usar o
diminutivo, foi uma atleta famosa. Ganhou muitas corridas de esqui
e apareceu numa reportagem do Blanco y Negro que deu muito que
falar.
– És mesmo mauzinho! – Azcárate fez uma demonstração
risonha de espanto e voltou-se para Manolo. – Ele está a dizer isto
porque a Clarita não é muito bonita. As outras esquiadoras eram,
mas ela destoava bastante do título… Por isso se falou tanto dessa
reportagem. A Laguna de Peñalara foi outro dos seus feitos.
Atravessou-a a nado num tempo tão bom que a fotografia dela foi
capa da secção desportiva do ABC no verão de 1931.
– Também se falou muito nisso. – Negrín sublinhou a
malevolência com um sorriso malandro e voltaram ambos a rir-se. –
Nós conhecemo-la. Antes da guerra encontrávamo-nos de vez em
quando em festas e atividades do género. A verdade é que é uma
mulher encantadora, muito culta e sobretudo muito simpática, com
uma graça a atirar para o castiço, apesar de provir de uma família
alemã, das melhores de Madrid.
– O que interessa é que a Clarita nasceu em Espanha, mas
estudou na Alemanha. Quando regressou a Madrid, juntou-se ao
grupo da Pilar Primo e filiou-se na Falange logo depois dela. Além
disso, e desde o primeiro momento, serviu de guia-intérprete nas
visitas dos rebeldes ao Terceiro Reich. Acompanhou as dirigentes
do Auxílio Social nas viagens de estudo ao Auxílio de Inverno
alemão e tiraram muitas fotografias com camaradas nazis e grandes
ramos de flores. Também acompanhou o Beigbeder e outros
generais em viagens destinadas a negociar com o Himmler a ajuda
militar. Claro que essas reuniões não foram fotografadas – frisou
Azcárate, sorrindo –, para que não as pudesses mostrar ao Lorde
Windsor-Clive. Tudo isto foi possível, naturalmente, porque a Clarita
tinha dupla militância. Estava filiada no Partido Nazi, na Alemanha, e
na Falange, em Espanha.
McKay não percebeu por que razão Louzán não quisera ir para
Madrid de comboio, preferindo um trajeto longo e penoso de carro.
Os caminhos de ferro espanhóis não são muito bons, reconheceu,
mas as estradas então são um pavor… De facto, Peter Louzán fez
uma péssima escolha, no entanto Manuel Arroyo tinha os seus
motivos, e o principal não era tanto estar há sete anos fora de
Espanha, mas acalentar a suspeita razoável de que aquela talvez
fosse a última vez em muito tempo que poderia percorrer o seu país.
Veterano no fracasso, demorou três dias a chegar a Madrid porque
passou a primeira noite em Sevilha, calcorreando a cidade à
vontade como um turista de antes da guerra, e a segunda em
Valdepeñas, onde teria apanhado uma carraspana monumental se
não gostasse tanto de migas. Tendo no palato a mistura deliciosa
dos dois sabores de que mais falta sentira, o alho e o chouriço frito,
saiu no domingo 22 de setembro a meio da manhã e registou-se ao
início da tarde na receção do hotel Gran Vía. Depois de um jantar
pretensioso de cozinha internacional, que não lhe soube a nada em
comparação com os sabores fortes e deliciosos das tabernas
manchegas, caiu na cama morto de cansaço, mas mais contente do
que recordava ter estado em muitos anos.
– A Sole não tem o mesmo apelido dos filhos do primeiro
casamento da mãe. Por isso, quando a contratou, com o aval do
pároco do seu bairro, Stauffer não sabia que ela era irmã de um
fuzilado e de um preso de Porlier. Também não podia imaginar que
iria aproveitar a primeira oportunidade para dar o salto para França
com a ajuda do namorado, um camarada do seu irmão morto. Essa
oportunidade surgiu na noite de Natal do ano passado. Depois de
deixar a mesa posta, despediu-se da patroa até ao dia 26 e, na
madrugada do dia seguinte, chegou a Lérida. Nessa mesma noite,
atravessou a serra. À hora em que deveria regressar ao trabalho, já
estava em Toulouse, e daí tratou da autorização para se juntar ao
pai, que tinha emigrado para Nova Iorque depois de enviuvar, antes
da nossa guerra. Contou ao pai tudo o que te vamos contar a ti, e
ele entrou em contacto com os comités de solidariedade com
Espanha, onde já era muito conhecido.
– A verdade é que inicialmente desconfiámos dela – confessou
Negrín –, mas pedimos informações a Toulouse e a tua amiga norte-
americana comprovou tudo o que ela disse. E tem a certeza de que
ela está a contar a verdade.
– Isso é importante porque a história dela é o primeiro golpe de
sorte que tivemos em muito tempo, e já ia sendo tempo… – Pablo
de Azcárate levantou-se, voltou a encher os copos, sentou-se e
bebeu um longo gole antes de continuar. – A Sole Ruiz começou a
trabalhar como criada da Clarita no verão de 1943. Na primavera de
1945 já estava bastante familiarizada com o ritmo da casa e por isso
se deu conta de que tudo estava a mudar muito depressa. A patroa,
que antes quase não saía de Madrid, começou a viajar com muita
frequência e a ausentar-se dois ou três dias por semana. A Sole
deduziu que ia para o Norte, pelo tipo de roupa que metia na mala e
por algum comentário solto sobre o frio que ainda fazia lá em cima,
mas não sabia para quem eram os cobertores e os víveres com que
enchia a bagageira do carro. Até que um belo dia, à conversa com o
motorista na cozinha, ficou a saber que a patroa visitava uns
alemães que estavam presos numa povoação de Álava. Pouco
depois, voltou a convidar o motorista para um café e descobriu que
essa povoação era Nanclares de Oca.
– Como dizia a minha mãe – acrescentou Negrín com um sorriso
–, com o pessoal doméstico todo o cuidado é pouco …
Peter Louzán tinha um encontro com a nova vice-conselheira de
Comércio da embaixada norte-americana em Espanha, a 3 de
outubro, às nove da manhã. Em Taplow haviam-lhe pedido que
entrasse em contacto com os círculos estudantis implicados na
rebelião armada que pretendiam fazer coincidir com a condenação
de Franco pelas Nações Unidas, mas ordenaram-lhe, mais
insistentemente ainda, que não tivesse pressa e se certificasse bem
de cada movimento antes de o fazer. Por isso, decidiu que os
estudantes podiam esperar até que organizasse a sua identidade e
contasse com a proteção da vice-conselheira. Como expectável, o
tema de Espanha não se discutiria na Assembleia Geral antes de
dezembro, e dois meses parecia-lhe um prazo mais do que
suficiente para dissuadir aqueles loucos do seu objetivo. De
qualquer forma, não estava disposto a arriscar a sua missão por
causa deles e dava como ponto assente que não iam ligar muito a
um tipo que não pretendia dizer-lhes como se chamava, nem em
nome de quem atuava, nem como soubera dos seus planos.
Enquanto isso, lia exaustivamente todos os jornais que se
publicavam em Madrid e dava longos passeios pela cidade que lhe
permitiam passar amiúde diante da entrada do número 14 da calle
Galileo.
– Nanclares de Oca… – Quando ouviu o nome, ainda não
conseguia relacioná-lo com aquela morada. – Não é lá que há um
campo de prisioneiros?
– Exato. – Azcárate inclinou-se, e o discípulo, que o conhecia
muito bem, viu-lhe nos olhos o brilho das grandes revelações. – Foi
construído pelos nossos presos, mas usaram-no sobretudo para
prender brigadistas. Talvez por isso, porque já tinha estado cheio de
estrangeiros, levaram para lá todos os fugitivos alemães que
atravessaram os Pirenéus depois da libertação da França. Nessa
altura, a maior parte eram soldados rasos que pretendiam fugir das
represálias da Resistência, mas, quando a rendição estava
iminente, começaram a entrar em Espanha outro tipo de indivíduos.
– O Léon Degrelle, por exemplo. – Depois de referir o líder do
Partido Rexista belga, Arroyo lembrou-se do presidente do governo
colaboracionista de Vichy. – E o Pierre Laval, claro.
– Sim – concordou Negrín –, mas esses dois chegaram de avião,
como a cunhada do Mussolini e muitos outros, com cartas de
recomendação do ministro Lequerica e com a bênção do governo de
Madrid. Esse tipo de hóspedes nunca passou por Nanclares, no
entanto, muitos outros nazis e colaboracionistas de meia Europa
foram ali parar.
– A irmã da Petacci veio para Espanha? – A sua atenção tinha
ficado presa naquele dado. – Não sabia disso.
– A irmã da Petacci vive tranquilamente com os pais em Madrid.
– Confirmou Azcárate. – Toda a família entrou com um nome falso.
– Mas isso pode convir-nos. O governo italiano…?
– Espera, deixa-me terminar. Preparámos-te um dossiê com tudo
o que sabemos, mas vale a pena voltar à Sole porque é agora que a
história começa a ficar interessante.
– No fim de contas – insinuou Negrín –, a irmã da Petacci não
passa de uma atriz medíocre.
– Evidentemente – concordou o amigo –, podemos apontar muito
mais para cima. No verão de 1945, a Clarita Stauffer fez obras em
casa. Remodelou dois quartos para montar um escritório, instalou
uma nova linha telefónica e contratou duas secretárias que
pareciam sempre muito atarefadas. Além disso, mandou fazer
armários novos, que encheu com roupa de homem de todos os
tamanhos e sapatos de todos os números. Os visitantes da casa
também mudaram. Além dos amigos habituais da Clarita, que
continuavam a ir jantar ou tomar café, começaram a aparecer por lá,
a qualquer hora, homens misteriosos, sempre magros e cansados.
A Sole, que quando podia ia visitar o irmão a Porlier, achou que
tinham pinta de presos, e eram. Fugitivos das cadeias europeias
que haviam atravessado os Pirenéus por sua conta e risco, ou
presos de Nanclares que tinham sido libertados. No número 14 da
calle Galileo eram recebidos com carinho e alimentados, davam-
lhes roupa nova e decerto arranjar-lhes-iam alojamento porque
nunca ficavam lá a dormir, talvez até trabalho, visto que a maior
parte deles voltava a prestar serviços no escritório, mais cedo ou
mais tarde, e aparecia com muito melhor aspeto. A Sole apercebeu-
se de que nenhum deles falava espanhol e começou a desconfiar.
Com esta azáfama a acontecer havia uns dois meses, a rotina da
casa integrou um novo visitante, um recruta espanhol que todas as
semanas levava um ou vários envelopes fechados com timbres de
paróquias de Madrid, especialmente da que fica no largo de Iglesia.
Numa dessas vezes, algum pároco se esqueceu de fechar o
envelope. E a Sole abriu-o, encontrando uma certidão de batismo
com nomes e apelidos alemães e datada de 1907. Este movimento
manteve-se constante até ela fugir de Espanha, contudo, pouco
antes, ao levar um café ao escritório a meio da manhã, ouviu uma
das secretárias da Clarita dizer um nome que lhe chamou a
atenção, porque não era alemão. Sim, Jean-Jules Lecomte, disse
textualmente, tenho-o aqui sentado à minha frente. E sorriu a um
homem novo, que lhe devolveu o sorriso sem reparar na criada que
lhe estava a servir uma chávena de café.
– Não sei quem será esse Lecomte, mas… – Arroyo sorriu e
voltou-se para Negrín. – Suponho que se trate de uma nova
demonstração de que, com o serviço doméstico, todo o cuidado é
pouco.
– Disseste bem, Manolín.
O hóspede norte-americano do quarto 312 era um homem
tranquilo, amável, de poucas falas, tomava o pequeno-almoço todos
os dias no quarto e, depois da primeira noite, não voltara a aparecer
no restaurante do hotel Gran Vía. Manuel Arroyo Benítez tinha
escolhido cuidadosamente aquele local, apesar de a generosidade
dos seus patrocinadores lhe permitir hospedar-se noutros mais
luxuosos, como o Palace ou o Ritz. O homem de Azcárate recusou
a possibilidade, não só pela frequência com que os grandes hotéis
do Paseo del Prado recebiam espiões de todos os tipos e
nacionalidades durante a guerra, frequência que talvez se
mantivesse, mas porque Peter Louzán Valero, identidade
passageira que morreria de morte natural no dia em que a pudesse
trocar por outra que o obrigaria a uma vida social intensa, achava
melhor não estabelecer qualquer tipo de relações, nem sequer de
vista, com a aristocracia e com a alta burguesia madrilena. Por isso
se hospedou num hotel confortável, mas não muito caro, situado na
avenida mais movimentada da cidade. Tendo em conta o controlo
estrito que a polícia de Franco exercia sobre os livros de registo de
viajantes, a sua presença em qualquer pensão barata ou periférica
teria chamado demasiado a atenção. Porém, o hotel Gran Vía só se
adequava aos seus objetivos porque não conhecia em Madrid
nenhuma casa de hóspedes que lhe desse garantias. Enquanto
esperava que lhe recomendassem alguma, habituou-se a entrar e a
sair pelo vestíbulo sem ser visto quando ninguém estava à espera
em alguma poltrona ou na fila diante do balcão da receção.
– A Sole Ruiz estudou um pouco de francês na escola, mas o
sotaque dela é tão mau que a tua amiga teve algum trabalho para
identificar alguém com esse nome. Quando conseguiu fazê-lo, saiu-
nos definitivamente a sorte grande.
– A Meg descobriu que o Jean-Jules Lecomte, nazi fanático,
tinha dupla militância, como a Clarita. Era membro do Partido Rex e
também das SS. Com essas aptidões, durante a ocupação nazi fora
nomeado burgomestre da sua cidade natal, Chimay. – Azcárate fez
uma pausa e olhou para o discípulo.
– Onde fabricam aquela cerveja tão boa? – E ele não o
dececionou.
– Exatamente. Chimay é famosa pela sua abadia cisterciense e
pela cerveja que os monges fabricam, mas esse não é o único
mosteiro da cidade. Existem vários conventos de freiras dedicadas
ao ensino, que salvaram muitas crianças judias, matriculando-as
com nomes falsos para as fazerem passar por irmãos ou primos dos
seus alunos católicos. O Lecomte, que lhes tinha perseguido
ferozmente as famílias e deportado todos os judeus da cidade,
entrou à força nesses conventos, disparou sobre as freiras, deteve
as madres superioras e identificou as crianças judias. No dia
seguinte, todos eles foram metidos num comboio rumo a um campo
de extermínio aonde poucos chegaram vivos e de onde nenhum
voltou. Poucos meses depois da guerra, o Jean-Jules Lecomte foi
julgado em Charleroi por crimes contra a Humanidade e condenado
à morte à revelia porque nunca o capturaram.
– Não conseguiram – concluiu Negrín – porque estava a tomar
café no número 14 da calle Galileo.
– Mas nesse caso… – Arroyo olhou para ele. – Nesse caso… –
Voltou-se devagar para o chefe. – Porra! – E ficou tão nervoso que
se levantou da cadeira e se pôs a andar pela sala, descrevendo um
círculo quase perfeito. – É um criminoso de guerra! – Parou um
momento e verificou que as duas cabeças assentiam em
simultâneo. – Um criminoso de guerra… Porra, porra, porra!
– Senta-te, vá lá, que estou a ficar enjoado.
– Sim, senta-te. – Só quando conseguiu que ele lhe obedecesse,
Azcárate continuou a falar. – O Jean-Jules Lecomte é um criminoso
de guerra nazi que reside em Espanha, sob a proteção da delegada
de Imprensa e Propaganda da Secção Feminina da Falange e do
Franco, cuja obrigação seria denunciar às potências aliadas a sua
presença no país. E não deve ser, nem de longe, o único.
– É por isso que nos dói tanto a cabeça, Manolo. Claro que nos
doerá muito mais se agires como um homem inteligente, razoável e
sensato, e nos mandares à merda em vez de aceitares o que te
vamos propor.
Manolo Arroyo descobriu imediatamente que a grande
especialidade da vida madrilena de outrora tinha passado a ser uma
ocupação perigosa. Fazer tempo era muito difícil numa cidade
ocupada, onde metade dos clientes das esplanadas eram polícias à
paisana e todos os taxistas seus informadores. Para aproveitar o
bom tempo, decidiu dar passeios à tarde pelo Retiro, porém, no
terceiro dia em que lá foi, dois guardas municipais mandaram-no
parar e queriam prendê-lo por ser homossexual. Teve de responder
em inglês e mostrar o passaporte diplomático para que não o
algemassem. Depois, num espanhol com um fortíssimo sotaque de
Peter Louzán, perguntou-lhes porque tinham chegado a essa
conclusão e ouviu uma resposta que o deixou perplexo. Vamos lá
ver, disseram-lhe, se o senhor não é um pervertido, a que propósito
passeia tanto pelos parques? Ele não quis insistir, na esperança de
que lhe devolvessem o passaporte sem anotar o seu nome, e,
engolindo uma amargura que não lhe convinha exibir, limitou-se a
prometer que nunca mais deambularia pelos jardins. A partir de
então, passava as manhãs fechado no quarto, saía para almoçar,
todos os dias num restaurante diferente, e andava pela rua até ao
entardecer, acabando a jornada num cinema, também diferente
todas as noites. Antes do fim de setembro já tinha conseguido
confundir-se com a massa obscura de madrilenos que tentavam não
chamar a atenção, andando depressa, com os olhos nos sapatos e
os ombros encolhidos. Na maior parte dos dias, só falava com o
porteiro do hotel, com os empregados que o serviam nas
esplanadas ou nos cafés e com as empregadas das bilheteiras que
lhe vendiam a entrada para a última sessão. Assim, começou a
sentir-se seguro, à força de se aborrecer mortalmente na cidade
onde mais se havia divertido na vida.
– Tudo a seu tempo. – Azcárate impôs calma, levantando uma
mão. – Não nos precipitemos – Negrín assentiu com a cabeça. – O
que te contámos até agora é o que sabemos com certeza. A Meg
Williams confirmou a história da Sole graças ao testemunho de
alguns brigadistas que estiveram em Nanclares na mesma altura
que os primeiros desertores alemães. Eles lembram-se muito bem
de uma senhora de uns quarenta anos que entrava e saía do campo
à vontade, na qualidade de intérprete dos nazis, a quem fornecia
roupa e comida, além de recolher e entregar correspondência. Os
presos alemães viviam em barracões diferentes dos outros e em
condições muito melhores porque a mulher que os visitava tinha
muito poder. Isso, e o Jean-Jules Lecomte estar em Madrid no
outono do ano passado, eis o que… – Azcárate fez uma pausa,
abanou a cabeça e continuou. – Minto: sabemos um pouco mais. A
partir da primavera de 1945, um homem da tua idade, muito louro,
com os olhos muito azuis, juntou-se aos visitantes habituais da casa
da Stauffer. A Sole reparou nele porque era um rapaz muito bonito
que, além de alemão, falava espanhol como se fosse castelhano
antigo, com um sotaque que ela nunca tinha ouvido. Outra das
criadas contou-lhe que era assim que os argentinos falavam. A partir
do outono de 1945, aquele estranho convidado começou a chegar
acompanhado, de vez em quando, por outros senhores que falavam
espanhol com igual sotaque.
Chegado a este ponto, Juan Negrín meteu a mão no bolso da
camisa e tirou um bilhete escrito à mão.
– Pela descrição física e sotaque portenho, temos quase a
certeza de que se trata de… – Leu aquele nome com uma voz
pausada, quase solene. – Horst Alberto Carlos Fuldner, conhecido
na Alemanha como Horst Fuldner e, em Espanha e na Argentina,
como Carlos Fuldner. Nasceu em Buenos Aires, mas a família
regressou à Alemanha quando ele tinha doze anos. Nazi desde a
primeira hora, mais tarde teve alguns problemazinhos com a lei… –
Fez uma pausa para voltar a consultar o bilhete enquanto a
ansiedade se instalava como um ninho de pássaros no estômago do
visitante, que começava a desconfiar do motivo por que estava em
Taplow. – Em 1935, expulsaram-no do Partido porque tinha ficado
com dinheiro das SS, e não voltou a saber-se nada dele até que, em
1941, se apresentou como voluntário em Espanha para servir de
intérprete da Divisão Azul na frente russa.
– Eu disse-te – avisou Azcárate – que mais cedo ou mais tarde
acabaria por aparecer.
– Para ele, foi uma bênção. Quando a Divisão se retirou, ele
voltou para a Alemanha, pediu a reintegração nas SS, que, além de
o aceitarem, rapidamente o promoveram de uma só vez a
Hauptsturmführer. – O antigo catedrático de Fisiologia formado em
Kiel e em Leipzig pronunciou aquela palavra com um sotaque
impecável. – Como foi possível semelhante reabilitação? – Cedeu a
palavra ao anfitrião, que não precisou de consultar papel algum.
– Em 1944, Fuldner foi recrutado por Walter Schellenberg, que
com certeza conheces, nem que seja só como amante da Coco
Chanel.
– O chefe da organização de inteligência das SS, certo?
– Exatamente. E sabes o que Schellenberg pediu a Fuldner? –
Arroyo negou com a cabeça. – Para investigar possíveis rotas de
fuga para os dirigentes nazis porque já davam a guerra como
perdida. E onde se instalou Fuldner para cumprir a missão de que
fora incumbido?
– Em Madrid?
– Onde haveria de ser? – Azcárate sorriu. – E, pelo que
sabemos, lá continua.
Enquanto Peter Louzán se aborrecia na capital de um país
estrangeiro, Manuel Arroyo Benítez sentia muitas saudades do
único amigo que tinha nessa cidade. Guillermo García Medina havia
representado um problema para ele desde que aceitara aquela
missão porque, além de sentir a falta da sua companhia, das longas
tardes de conversa diante de um tabuleiro de xadrez que teriam
tornado mais suportável a espera, também valorizava a experiência
do amigo, o seu conhecimento das regras que regiam a vida
quotidiana da Madrid franquista, um código que ele desconhecia,
mas de cujo cumprimento estrito poderia depender o sucesso ou o
fracasso da operação que tinha em mãos. Nunca conseguiria
esquecer que o doutor García o havia arrancado das garras da
morte, e tinha consciência de que a vida que lhe dera em troca
bastava para saldar a dívida, continuando a sentir saudades dele.
Às vezes, pensava que o que se dispunha a fazer era muito
arriscado, demasiado perigoso para o partilhar com um amigo.
Outras, recordava que Guillermo já tinha corrido riscos por ele e que
ambos haviam saído airosamente incólumes da colaboração.
Enquanto fazia tempo em Madrid, Manolo pensava em Guillermo,
que já não devia chamar-se assim, nem viver na mesma casa. Se
decidisse procurá-lo talvez nem o encontrasse, pelo menos não
antes de pedir ajuda a uma vice-conselheira norte-americana,
embora também não tivesse a certeza de o querer fazer. Pensava
nisso na segunda-feira, 30 de setembro, enquanto bebia uma
cerveja na esplanada do Café Lion, às sete da tarde. A essa mesma
hora, um homem alto e magro, que fazia lembrar os modelos de El
Greco, saiu do edifício da calle Alcalá, cujo rés-do-chão era ocupado
pela Empresa de Transportes Nacionais e Internacionais La
Meridiana. Chegado à rua, Rafael Cuesta Sánchez acendeu um
cigarro e começou a descer na direção de Cibeles rumo a casa,
como todas as tardes.
– Com esta informação – continuou Azcárate novamente sério –,
a Meg acabou por convencer o congressista Burnstein, que andava
há meses a investigar as rotas de fuga nazis sem encontrar indícios
sólidos de qualquer organização estável. A rede Stauffer é estável,
sem dúvida, mas os dados de que dispomos não são suficientes
para os apresentarmos às Nações Unidas ou para pressionar o
governo norte-americano, que é o que pretende o lobby de Nova
Iorque. Os interesses deles não são evidentemente os nossos,
porque não nos incomoda que os ianques continuem ou não a
recrutar nazis, contudo, se conseguirmos tornar público que o
regime de Franco apoia criminosos de guerra, culpados do
genocídio judeu… Podes imaginar.
– Para começar, os aliados não teriam outro remédio senão
cortar relações com o governo de Madrid – adiantou-se Azcárate,
avaliando com cuidado o peso de cada palavra. – A opinião pública
internacional pressionaria de tal modo que lhes seria difícil evitar
uma intervenção definitiva… – Os lábios sorriram por iniciativa
própria, sem lhe pedirem licença. – Acho que é isto.
– Mas para o conseguirmos… – Depois de concordar, Negrín
substituiu-o. – Precisaríamos de muito mais do que o testemunho de
uma criada. Em primeiro lugar, seria necessário confirmar toda a
informação que a Sole nos transmitiu. Provar que o Lecomte é
efetivamente o Lecomte, que o Fuldner é o Fuldner, que os seus
convidados argentinos são, como julgamos, homens de confiança
do Perón, e que a Clarita não se limita a vestir e a alimentar alguns
soldados alemães.
– Em Genebra deves ter ouvido boatos sobre a rota argentina,
calculo.
– Sim, mas para dizer a verdade não lhes dei muito crédito
porque estavam quase sempre relacionados com a treta dos
submarinos carregados de ouro do Reich e…
– Claro. – Azcárate terminou a frase por ele. – Não existem
submarinos com essa autonomia, nem sequer abastecendo
combustível nas Canárias, isso sabemos. Mas a pista argentina é
sólida, Manolo. A América do Sul é o destino sonhado por todos os
nazis que pretendem escapar aos tribunais internacionais. A CIA
tem a certeza, o Burnstein e a Meg também. Por isso achamos que
a rede Stauffer coopera com o regime de Perón, que, por outro lado,
é o único que não respeita o bloqueio e que envia para Espanha
barcos carregados de cereais e carne congelada. A Argentina deve
ser o destino final dos foragidos que a Clarita acolhe e a quem
fornece documentação espanhola, graças às certidões de
nascimento que arranjam alguns párocos amigos e os contactos
com a Administração do Estado. É isso que achamos, que supomos,
mas que não conseguimos provar. Para o conseguir,
necessitaríamos…
Manuel Arroyo Benítez assentiu com a cabeça antes de
completar a frase.
– …de um infiltrado.
Guillermo García Medina viu um homem muito parecido com o
seu paciente Felipe Ballesteros Sánchez sentado a uma mesa da
esplanada do Lion. Tinham passado sete anos desde a última vez
que se haviam encontrado, mas esse não foi o único motivo que o
levou a hesitar. Nos dias turbulentos do fim da guerra, o agente de
Negrín era um espanhol elegante, cuidadoso com o seu aspeto,
mas o homem que via naquele momento parecia estrangeiro. Ficou
confuso com o corte do fato, a largura da gravata, o estilo do chapéu
e os sapatos ingleses, tão diferentes dos que calçavam os poucos
madrilenos que podiam dar-se ao luxo da elegância no verão de
1946. Em novembro de 1937, tinha conhecido um jovem de óculos e
de barba cerrada que parecia mais velho do que ele, tendo-se
despedido em fevereiro de 1939 de uma versão descarnada,
barbeada e muito mais juvenil, de um rosto que não parecia ser o
mesmo. O homem que lhe chamou a atenção em plena calle Alcalá
tinha um bigode ligeiramente mais espesso e mais comprido do que
os que se usavam em Espanha e uns óculos de aros metálicos
leves e dourados, mas aquelas mãos eram as dele, cruzava as
pernas da mesma maneira e a expressão de concentração era
idêntica, mesmo com metade da cara escondida pelas páginas do
jornal que lia. Para ter a certeza absoluta, precisava de que ele
levantasse a cabeça e por isso parou ao seu lado. O leitor
apercebeu-se daquela mudança, da imobilidade súbita de uma
figura, e, muito devagar, baixou o jornal, ergueu os olhos, sorriu e
recebeu em troca outro sorriso. Não esperou por mais. Levantou-se
como se o assento da cadeira estivesse a arder, abraçou com força
o homem parado no passeio e sussurrou-lhe uma frase ao ouvido.
Não me trates por nenhum nome, murmurou, e depois, em voz alta,
disse-lhe que ficava muito feliz por vê-lo. Eu fico ainda mais, ouviu
em resposta. Com os teu atrasos pensei que me deixarias aqui meia
hora à tua espera…
– Por isso é que te disse anteriormente que um homem sensato,
inteligente e razoável nos mandaria imediatamente à merda.
– Sim, mas… – Arroyo olhou para Negrín e sorriu. – Tem noção
de como Genebra é aborrecida? Aquela cidade enlouquece
qualquer um.
– Menos piadas – Azcárate estava sério – porque estamos a
falar de uma operação muito perigosa. Há dois meses que comunico
com o Burnstein e podemos garantir-te uma cobertura relativa da
sua embaixada em Madrid. Contarás com a proteção da nova vice-
conselheira do Comércio, que entrará em funções a 1 de outubro.
Talvez imagines quem é.
– A Meg? – Proferiu o nome quase a medo, mas o sorriso do
chefe fê-lo levantar-se novamente e pôr-se em movimento. – A Meg
vai estar em Madrid? – Azcárate assentiu. – Ai, ai, ai!
– Mas senta-te, Manolo! – A voz de Negrín deteve-o quando
estava prestes a dar a primeira volta completa à sala. – Bolas,
nunca conheci ninguém que gostasse tanto de andar em círculos,
para dizer a verdade não sei como não ficas enjoado…
– A Meg acabou de ser a nomeada e ficará em Madrid a
trabalhar contigo. Os contactos que tem nos serviços secretos
proporcionar-te-ão um passaporte norte-americano. A CIA aprovou
a tua missão, mas os chefes não sabem que trabalhas também para
nós, nem que a nossa intenção é infiltrar-te na rede Stauffer.
Oficialmente, o teu trabalho em Madrid limita-se a recolher
informações sobre os nazis que residem em Espanha e sobre a
organização que os apoia, mas nós esperamos mais de ti.
– Que chegue fundo da questão.
– Até Buenos Aires, se tudo correr bem. Esse é também o
objetivo do lobby do Burnstein. Terás de passar por um criminoso de
guerra nazi de nacionalidade espanhola, provavelmente um antigo
divisionário que tivesse continuado a lutar por sua própria iniciativa
como voluntário das SS e acabasse envolvido nalgum crime,
suficientemente grave para que a Clarita considere imprescindível
tirá-lo do país. Contactar com ela será um problema teu, não
podemos ajudar-te para evitar fugas de informação. Apareceres do
nada no número 14 da calle Galileo é demasiado arriscado. O ideal
seria que te aproximasses de alguém que ta apresentasse, enfim,
qualquer via que garantisse que o teu cadáver não aparecia lançado
num passeio. Não te vou dizer que se trata de uma missão muito
perigosa porque tu próprio já te terás dado conta disso. Também
não te vou dizer para teres muito cuidado, porque não é preciso.
Mas digo-te que não vale a pena correres demasiados riscos. O
lobby de Nova Iorque pagar-te-á todos os gastos e não espera
resultados imediatos. Nós também não. Instala-te em Madrid, treina
bem o teu papel, mete-te na pele de um criminoso de guerra antes
sequer de dizeres bom dia a um falangista. Não tenhas pressa.
– É uma oportunidade única, Manolo – concluiu Negrín –, não
vamos ter muitas como esta, mas não esperamos que respondas
agora. Podes pensar nisto durante uns dias, voltar para Genebra,
responder-nos…
– Não é necessário, don Juan, o senhor já me conhece. – Voltou-
se para Azcárate. – Ambos me conhecem. Isto interessa-me muito
mais do que continuar no escritório, e na nossa situação qualquer
risco vale a pena.
A 3 de outubro de 1946, Peter Louzán Valero acordou de
madrugada, duas horas antes de o despertador tocar. Às sete da
manhã levantou-se, vestiu-se e dirigiu-se à sala de jantar,
descobrindo que María Aránzazu já tinha fumado dois cigarros com
o copo de conhaque do pequeno-almoço. Guillermo, a quem lhe era
ainda difícil tratar por Rafa, apresentara-a não como sua antiga
senhoria, mas como uma amiga, e Manolo não teve dificuldades em
afeiçoar-se àquela mulher estrambólica que desmentia, entre outros
lugares-comuns, a fama lendária das proprietárias de casas de
hóspedes porque não gostava de fazer perguntas nem de se meter
na vida de ninguém. Podem dizer o que quiserem, confessou-lhes,
depois de obrigar o antigo inquilino a acompanhá-los no jantar da
primeira noite, mas a viuvez cai que nem ginjas a algumas
mulheres, e desatou a rir. A mim, por exemplo… María Aránzazu
tinha ficado responsável pelo primeiro esquerdo do número 24 da
calle Españoleto quando a tia Enriqueta renunciou a sair da cama, e
isso também lhe caíra que nem ginjas. É uma patifaria a família ter
de adoecer ou de morrer para que uma mulher se sinta livre, mas
que havemos de fazer?, costumava dizer. Naquela manhã, limitou-
se a comentar que o seu hóspede estava muito bonito. Manolo tinha
decidido ir a pé até à embaixada, na esperança de que aquela
manhã fresca e soalheira de outono lhe diminuísse os nervos. Não
conseguiu. Quando se identificou à secretária da nova vice-
conselheira, tremia como um adolescente no primeiro encontro, mas
felizmente a chefe não o fez esperar.
– Margaret Carpani Williams… – disse devagar, saboreando
cada sílaba, ao vê-la sentada atrás da secretária, como se o tempo
não tivesse passado desde a última noite em que haviam estado
juntos em Genebra.
– Ai, pinche gachupín!
Meg não disse mais nada.
Levantou-se da cadeira, descalçou-se, correu para ele, e num
único movimento admiravelmente coordenado abraçou-o, baixou os
ombros, dobrou o pescoço num ângulo preciso e beijou-o na boca
como se tivesse nascido para aquilo.
É OUTUBRO DE 1947 E O CONSELHO DE CONTROLO ALIADO EM ESPANHA
ENTREGA UMA LISTA COM CENTO E QUATRO NOMES AO GOVERNO DE MADRID.
Alberto Martín-Artajo, ministro dos Assuntos Exteriores e
destinatário deste documento de onze páginas datilografadas em
inglês, não se surpreende com nenhum dos nomes da lista. Há mais
de dois anos que os aliados exigem reiteradamente e de forma
quase infrutífera a cooperação espanhola na localização e entrega
de centenas de pessoas vinculadas às atividades nazis em
Espanha. Algo semelhante aconteceu com destacados
colaboracionistas de países ocupados, acusados amiúde de crimes
contra a Humanidade, de quem se suspeita, ou se sabe com
certeza, que residam comodamente em Espanha.
A 8 de maio de 1945, um dia depois da rendição do Terceiro
Reich, um Heinkel-111 com quatro pessoas a bordo faz uma
aterragem de emergência no mar, diante da praia de La Concha de
San Sebastián, por ter ficado sem combustível em pleno voo. Nesse
avião, que tinha descolado de Oslo horas antes, viaja Léon Degrelle,
criador e comandante-chefe da Legião Valónia, integrada nas
Waffen-SS. Degrelle goza de uma fama lendária porque um dia, ao
condecorá-lo, o Führer declarara que, se tivesse um filho, gostaria
que fosse igual a ele. No entanto, com o avanço dos aliados, o
belga não se dirige para Berlim, a fim de defender a casa do pai,
mas para Copenhaga, na esperança de encontrar lugar num dos
submarinos que, de acordo com os boatos, estão preparados para
transferir o círculo íntimo de Hitler para a América do Sul. Chegado
à base naval onde se encontram esses submarinos que nunca
chegarão a atravessar o Atlântico, informam-no de que não têm
lugar para ele e essa negativa salva-lhe a vida. Consciente de que
certamente a perderá se não fugir a tempo, protesta energicamente
até que alguém lhe disponibiliza o avião de Albert Speer, ministro
das Obras Públicas do Reich, livre porque o seu proprietário não
saiu da Alemanha. Degrelle não pensa duas vezes: procura
tripulação e escolhe Espanha. Nunca se arrependerá.
As imagens chocantes do avião varado numa praia repleta de
banhistas atónitos, assim como o prestígio do «filho adotivo» do
Führer transformam Degrelle na presa mais cobiçada do Conselho
de Controlo Aliado durante a primeira etapa das suas atividades em
Espanha. O único fugitivo que lhe faz sombra é Pierre Laval, homem
forte de Hitler em França, presidente do governo colaboracionista de
Vichy desde abril de 1942 até à libertação aliada do seu país. Laval
chega a Espanha uns dias antes de Degrelle, a 2 de maio, e aterra
em Barcelona depois de um voo muito mais confortável, graças à
ajuda de José Félix de Lequerica, nessa época ministro de Assuntos
Exteriores franquista, com quem travou amizade nos seus tempos
de embaixador espanhol em Vichy.
A 30 de julho de 1945, ante a insistência das autoridades
francesas e com receio de afrontar os vencedores, Franco entrega
Laval, que será julgado por traição, condenado à morte e fuzilado
em meados de outubro do mesmo ano. Nessa decisão começa e
termina a sua cooperação com a justiça aliada. Apesar da cólera da
Bélgica, cujos sucessivos governos exigirão incansavelmente a sua
entrega durante quinze anos, o ditador espanhol recusa-se a ceder
Degrelle e em 1954 consegue blindá-lo por completo. A partir de
então, e apesar de nunca deixar de intervir em público nem de
assinar artigos com o seu verdadeiro nome, Degrelle passará a ser,
para todos os efeitos legais, o cidadão espanhol José León Ramírez
Reina. Essa identidade permite-lhe criar uma empresa de
construção com a qual ganha muito dinheiro graças à preferência do
Estado franquista, que lhe atribui inúmeros contratos de obras
públicas. Recorrer-se-á durante décadas a este mesmo
procedimento, a concessão retroativa da nacionalidade espanhola
com a elaboração prévia de documentação autêntica para uma
identidade falsa, com o objetivo de proteger muitos outros nazis que
procuram refúgio em Espanha ora na qualidade de destino
definitivo, ora enquanto uma etapa da fuga para um terceiro país.
Martín-Artajo está ao corrente de tudo isso e da parcimónia com
que o antecessor atuou perante as exigências anteriores em
momentos muito mais difíceis. No fim de 1947, em dois anos
apenas e num sentido muito favorável aos interesses franquistas, a
lógica da Guerra Fria mudou o cenário internacional criado pela
derrota de Hitler. De facto, só o furor antissoviético e o pânico de um
novo conflito armado com Estaline explicam os primorosos lances
de toureio de salão que a diplomacia espanhola executa,
repetidamente, ante os representantes das potências vencedoras na
Segunda Guerra Mundial. Esta vez não será diferente das
anteriores.
A Lista dos 104 ou Lista Negra, como é conhecida, é o fruto mais
depurado das exigências aliadas. Aqueles que nela constam fazem
parte dos chamados «alemães odiosos», os que trabalharam
ativamente para o engrandecimento da obra de Hitler e que não
conseguem esconder a sua responsabilidade sob o pretexto da
disciplina ou da obediência aos superiores. Todos eles foram
cidadãos do Terceiro Reich, todos têm contas pendentes com os
tribunais alemães, todos são qualificados como imprescindíveis para
as boas relações do regime franquista com os vencedores do
conflito, mas Martín-Artajo encara as coisas com calma. Deixa
passar o tempo até esgotar a paciência do Conselho Aliado e,
quando não tem outro remédio senão sentar-se com os
representantes, tira da pasta uma pilha de documentos, cartas e
certificados, acerca dos quais os seus interlocutores não tinham
quaisquer informações.
Não podemos entregar este senhor, porque é cidadão espanhol
há anos… Este também não, o Generalíssimo concedeu-lhe a
nacionalidade graças à enorme ajuda que prestou ao Exército
Nacional quando a Legião Condor acorreu em nosso auxílio,
durante a Cruzada contra o comunismo… O mesmo acontece com
este, com este e com este… Este obteve a nacionalidade porque
ocupa a direção de uma empresa estratégica para a economia
nacional… Este aqui conta com a proteção do cardeal de Toledo e
Primado de Espanha porque é austríaco, muito bom católico, e não
queremos problemas com o Vaticano… Este não conhecemos… E
esta senhora… Pelo amor de Deus! Esta senhora nasceu em
Madrid, para nós é espanhola e uma grande patriota, o braço-direito
de Pilar Primo de Rivera, uma trabalhadora incansável, famosa
pelas suas obras de caridade. Não a podemos entregar de maneira
nenhuma…
Entre os cento e quatro nomes da Lista Negra só consta uma
mulher, Clarita Stauffer, de quem é fornecida a morada correta, no
número 14 da calle Galileo, em Madrid. A exigência de entrega
justifica-se com o seguinte parágrafo: «Esta mulher é uma das
principais organizadoras de um HILFSVEREIN – em alemão,
associação de ajuda – secreto. Muito envolvida no fornecimento de
documentos falsos e na procura de emprego para alemães, além de
outras atividades. No fim da guerra, recebeu uma autorização
especial da embaixada alemã para aceder à nacionalidade
espanhola com o objetivo expresso de levar a cabo atividades
posteriores à derrota.»
Entre os cento e três homens que acompanham Clara Stauffer
na lista, existem outros muito relevantes para a história que se conta
neste livro.
– Johannes Bernhardt, «general das SS e presidente da
Sofindus, instituição pertencente ao Estado alemão. Responsável
pelo envio clandestino de provisões para as tropas alemãs cercadas
na costa ocidental de França durante e após a libertação deste
país», cujo paradeiro se desconhece.
– Hans Josef Lazar, «chefe do Departamento de Imprensa e
Propaganda da embaixada alemã», de quem só se sabe que vive
em Madrid.
– Albert Horst Fuldner, transcrição incorreta do nome de Horst
Alberto Carlos Fuldner, «membro do SD. Foi enviado da Alemanha
com o objetivo de organizar as atividades clandestinas
desenvolvidas depois da derrota», residente no número 33 da calle
Modesto Lafuente, em Madrid, embora no momento da entrega
desta lista se encontre em Tarrasca, perto de Barcelona.
– Eberhard Messerschmidt, «antigo auxiliar do agregado naval
da embaixada alemã. Trabalhou para a Inteligência Naval alemã.»
Domiciliado na calle Fuenfría da povoação de Cercedilla, na
província de Madrid.
Nenhum deles chega a sentir a mais pequena inquietação
perante esta última e definitiva exigência.
III

Tumores infiltrados
É DEZEMBRO DE 1949 E SAI EM PARIS O NÚMERO 50 DA REVISTA LES TEMPS
MODERNES.
Fundada em 1945 por Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e
Maurice Merleau-Ponty, esta publicação toma o nome do filme de
Charles Chaplin – Modern Times –, que em 1936 mostra ao mundo
os efeitos da crise de 1929 sobre o grau de exploração dos
operários norte-americanos. Além da declaração de princípios
implícita no título, Les Temps Modernes é um projeto de conteúdo
político, literário e filosófico, impregnado do espírito da resistência à
ocupação nazi que os fundadores militaram. As suas páginas são o
lugar ideal para a pré-publicação de um livro intitulado La fin de
l’espoir. Numa nota que acompanha o texto, os leitores de Les
Temps Modernes descobrem qual é a esperança que está a chegar
ao fim.

Escrevi tudo isto para demonstrar a mim próprio que ainda


resisto, escrevi-o arriscando a minha vida; a pessoa que o
da lografar arriscará a sua, e também o fará aquele que ver de o
levar para lá das nossas fronteiras. Quem ver estas linhas nas
mãos ou cosidas no forro do casaco arrisca a vida.
Apesar de tudo, é necessário que o mundo saiba o que está a
acontecer aqui.
Isto não é uma autobiografia.
Isto não é uma obra de propaganda.
Limito-me a contar exatamente o que se passa. Neste livro não
há nada publicitário. Não procuro glória nem dinheiro, pela mesma
razão que me obriga a permanecer no anonimato… se quero
con nuar a trabalhar.
Estamos quase no limite da nossa resistência. É necessário que
façam alguma coisa, é preciso que toda a gente faça alguma coisa,
nem que seja só pelos três jovens que para fazerem ouvir a sua voz
da lografaram, copiaram e transmi ram este manuscrito. […]
Não quero crer que, depois de os seus governos o fazerem, os
povos também nos vão abandonar. Já estamos sozinhos a tal ponto.
Um punhado con nua a lutar. Caem todos os dias. Apressem-se ou
chegarão tarde de mais, depois de todos termos caído, um a seguir
ao outro, sem esperança.
Pela honra da República.
Madrid, janeiro de 1946

Como qualquer leitor se terá apercebido, este texto é uma


tradução da versão francesa publicada em 1949. Os leitores de Les
Temps Modernes supõem, sem dúvida, que se encontram perante a
tradução inversa, uma versão francesa de um texto escrito em
espanhol. A realidade é ainda mais complicada.
Em 1941, um banqueiro chamado Jaime Saporta solicita com
urgência a nacionalidade espanhola para toda a família, no
consulado de Espanha em Paris. Os seus dois filhos, Marcelo e
Raimundo, nasceram em Istambul, mas têm direito ao passaporte
que o pai lhes obtém previamente depois de provar que descende
de uma família de judeus sefarditas de Salónica, graças ao decreto
do general Primo de Rivera que, em 1924, reconhece a
nacionalidade a todos os hebreus de origem espanhola. Assim, os
Saporta escapam às leis antissemitas de Vichy e à perseguição dos
ocupantes nazis, instalando-se em Madrid.
Chegado ao país dos seus antepassados, Marcelo tem dezoito
anos, mais três do que Raimundo, e é obrigado a fazer o serviço
militar. Nos quartéis, em contacto com jovens que representam a
verdadeira realidade espanhola, decide combater a ditadura.
Quando regressa a Madrid, entra em contacto com um grupo de
antigos alunos do Liceu Francês, integrados num movimento
estudantil que recriou a FUE – Federação Universitária Escolar –
republicana, para combater a hegemonia do SEU – Sindicato
Espanhol Universitário – falangista. A partir de então, enquanto o
irmão Raimundo se adapta sem problemas à Espanha franquista –
onde se tornará célebre como dirigente do Real Madrid e braço-
direito de Santiago Barnabéu –, Marcelo envolve-se na resistência
estudantil. Como ele próprio relata na nota reproduzida acima, vê
cair quase diariamente algum companheiro. Na Semana Santa de
1947, a detenção de dois dos mais antigos, Nicolás Sánchez-
Albornoz e Manuel Lamana, condenados a seis e a quatro anos de
prisão respetivamente, leva-o a pensar que talvez seja mais útil
contribuir, do exílio, com o seu testemunho. Em 1948, entra
clandestinamente em França levando consigo o manuscrito que
redigiu nos dois últimos anos em francês, idioma que, não sendo a
sua língua materna, é aquele que considera próprio, intitulado Sous
peine de mort (Sob pena de morte).
Depois de o ler, Jean-Paul Sartre, redator-chefe de Les Temps
Modernes, muda-lhe o título. La fin de l’espoir, Témoignage (O fim
da esperança, Testemunho) transforma-se, assim, num epílogo
sombrio de L’espoir de André Malraux, símbolo da solidariedade
antifascista internacional na Guerra de Espanha. O livro, impresso
em Paris a 25 de abril de 1950 com um prefácio do próprio Sartre,
conta exatamente o contrário, uma longa história de esquecimento,
de falta de solidariedade e abandono. Marcelo Saporta – que
quando se instala em França muda o nome para Marc – não assina
o texto. Prefere diluir-se num pseudónimo, Juan Hermanos,
reivindicando uma experiência coletiva em que todos os resistentes
espanhóis se sintam representados.
De facto, a história que se conta em O fim da esperança é
semelhante em muitos aspetos a outros relatos testemunhais da
resistência e, no entanto, apresenta um sinal de identidade
particularmente comovente. Os protagonistas não são lutadores
experimentados que tenham feito a guerra, que tenham passado
pela prisão e que continuem a resistir em organizações clandestinas
bem estruturadas. Esta é, pelo contrário, a história de alguns jovens
rapazes, estudantes, aprendizes, de raparigas que acabam de
iniciar a vida profissional. Quase todos provêm de famílias de classe
média, empobrecidas devido à sua condição republicana, mas
afastadas da miséria implacável que empurra tantos desesperados
para a clandestinidade. O sacrifício que os priva da existência
amena de que Raimundo Saporta desfrutará é fruto de uma decisão
difícil e consciente. Espanhóis duplamente inocentes, crianças
durante a guerra e que quase não têm formação política, lançam-se
à luta com uma convicção arrebatadora depois da vitória aliada na
Segunda Guerra Mundial, porque estão convencidos de que a
derrota do Eixo preparará a queda de Franco. Eis a esperança
deles. Aquela que morre nas páginas deste livro.
A obra de Juan Hermanos é a crónica da sua fé e do seu
fracasso. Da sua generosidade e da indiferença que recebem em
troca. Da cautela com que o narrador recruta militantes entre os
conhecidos. Da ânsia com que se reúnem para ouvir a BBC. Dos
riscos que correm fabricando bombas que depois não explodem.
Das histórias de amor que florescem entre panfletos. Da
disparatada, pavorosamente ingénua, admiravelmente corajosa
rebelião armada que preparam, resgatando as armas com que os
pais ou os irmãos mais velhos lutaram dos esconderijos das suas
casas para ocuparem Madrid, nem mais nem menos, no instante em
que ONU afastar Franco do poder. A 12 de dezembro de 1946, essa
oportunidade sai gorada, como tantas outras, porém a luta dos
irmãos de Juan não cessa. O fruto do seu sacrifício, também não.
Em 1953, depois da publicação no México de O fim da
esperança, um grupo de jovens exilados interroga-se como é
possível que um livro daqueles tenha passado despercebido.
Porém, só decorridos mais de vinte anos sobre a morte de Franco é
que, em 1998, a editora Tecnos publica O fim da esperança pela
primeira vez em Espanha, com o prefácio de Jean-Paul Sartre e um
magnífico estudo introdutório de Francisco Caudet, no qual a leitora
que escreve estas páginas encontrou uma emocionante vingança do
esquecimento em que ainda permanecem esta obra e o seu autor.
Em 2004, Oberon relança a mesma edição e não a esgota.
Noutros países da Europa, livros semelhantes foram, durante
décadas, leitura obrigatória nas escolas de 3.º ciclo.
Em Espanha, mesmo hoje, não é muito difícil encontrar
exemplares nas plataformas digitais de alfarrabistas.
Quase todas o catalogam como romance estrangeiro ou
narrativa francesa.
MADRID, 12 DE DEZEMBRO DE 1946

Ao entrar naquele bar, Manuel Arroyo Benítez sentiu-se satisfeito


por ter comprado um sobretudo azul-marinho.
– Um café expresso e um copo de conhaque. Têm telefone? – O
empregado assentiu com a cabeça sem se dignar a olhar para ele. –
Então dê-me uma ficha, por favor.
Naquele momento recordou as suas dúvidas, a indecisão que o
cravara diante do espelho de uma alfaiataria genebrina quase um
ano antes. Gostava mais do sobretudo claro, mas comprara o
escuro pelas mesmas razões que teriam apoiado a escolha de
qualquer outro homem solteiro que vivesse sozinho numa pensão.
Pensou que o azul-marinho era mais resistente e aguentaria melhor
as nódoas. Por isso, ninguém reparou nele enquanto percorria um
local onde atroava a voz de um mutilado, com a manga direita presa
à altura da axila e o braço ausente. Apesar de a maior parte dos
fregueses fingir não ouvir, cada um concentrado na colherzinha com
que mexia o conteúdo da chávena ou no copo de vidro que girava
entre os dedos, alguns atreviam-se a apreciar aquele comício
improvisado que pretendia arrastá-los para a plaza de Oriente a fim
de protestar contra a sacanice que a ONU tinha acabado de fazer
ao Caudilho. Manolo apercebeu-se de que aquele homem, de
lapelas decoradas com insígnias, não fazia ideia dos termos da
resolução benevolente aprovada em Nova Iorque, mas a ignorância
não o impedia de guinchar como um porco a ser degolado. Calculou
que seria um ex-combatente e tentou encostar-se à parede quando
passou ao lado dele, para não lhe sentir o cheiro. No momento em
que, pelo contrário, sentiu o fedor a aguardente que lhe saía da
boca, ficou mais tranquilo.
– Empresa de Transportes La Meridiana, faz favor de dizer.
Manuel Arroyo Benítez tivera sempre muito azar e muita sorte.
Não havia esquecido as palavras com que Juan Negrín tinha
descrito a missão, é uma oportunidade única, Manolo, não haverá
muitas como esta… Não havia esquecido que a rede Stauffer era a
prioridade e a rebelião dos estudantes um objetivo secundário, pelo
que nunca deveria ter-se colocado em perigo. Porém, eles eram tão
jovens, tão corajosos, tão ingénuos, que não conseguira deixá-los
entregues a si próprios. Pela segunda vez, a ambição de fazer as
coisas melhor do que deveria tinha-o levado a cometer um erro em
Madrid. Contudo, em Madrid vivia o homem que o salvara uma vez
e que não hesitaria em resgatá-lo de novo.
– Faça o favor de dizer. – O homem que, graças à sua boa sorte,
encontrava naquele momento sentado a uma secretária com
telefone, num escritório que não partilhava com ninguém, porque o
seu horário de trabalho ainda não tinha terminado.
– Mas, Rafa, porra, que estás a fazer? Não posso acreditar que
ainda estejas no escritório. Tínhamos combinado encontrar-nos há
dez minutos.
A resposta tardou uns segundos.
– Onde estás?
– Onde haveria de estar? Na Asturiana, já sabes, calle Barquillo
perto da esquina com a calle Belén.
– Estou a caminho.
– Está bem, mas não pagues a corrida. Diz ao taxista que me
vais apanhar e que continuamos. Caso contrário, vamos chegar
atrasadíssimos.
Ao desligar, apercebeu-se de que estava enjoado. Transpirava
muito e sentia frio num local a abarrotar de gente, com os
aquecedores ligados. Convencera-se de que a sua ferida não seria
grave, mas não se atrevera a examiná-la para não manchar a mão
com o sangue, que, a julgar pelo cheiro, já havia começado a
encharcar o sobretudo. Tinha sido tudo obra do azar que lhe
equilibrava a sorte desde que nasceu. Porque não devia ter ido à
procura de Ramón, não se devia ter aproximado de Cibeles, mas a
bala perdida que o havia atingido num dos lados, uma bala
disparada por um antifascista que fugia dos polícias armados que
acabavam de chegar à calle Barquillo, poderia ter ferido outro
transeunte, que caísse no passeio, pedisse socorro, esperasse por
uma ambulância. Tudo o que ele não tinha podido fazer até
encontrar refúgio numa taberna que só lhe podia oferecer como
tratamento um telefone, um café e um copo de conhaque.
– Comunistas! É isso que são. – O maneta continuava a guinchar
e a beber aguardente ao mesmo ritmo. – Uns porcos comunistas,
vermelhos de merda… Insultarem o meu Caudilho dessa maneira!
Mas não sabem com quem se meteram, não, senhor, não sabem
que os espanhóis têm tomates de sobra para o que for preciso…
Ele não havia recorrido a um argumento muito diferente para
convencer Ramón Mateos, um estudante do terceiro ano de
Engenharia Industrial que tinha conhecido através de Paco
Contreras, antigo cronista de espetáculos filiado no PSOE, que
sobrevivia como revisor de provas, único contacto que Pablo de
Azcárate lhe dera antes de o mandar para Madrid. Ramón, órfão de
pai antes da guerra, perdera um irmão em Brunete, tinha outro a
cumprir pena numa cadeia militar, uma irmã que tocava muito bem
violoncelo, mas que limpava casas à hora para que ele pudesse
estudar, e uma bolsa de estudos de Franco que o atormentava
desde que lha haviam concedido devido à excecionalidade da sua
prestação académica e às diligências de um irmão da mãe, vigário
castrense no exército vencedor. Ramón, bom estudante, um rapaz
estupendo, responsável, maduro, corajoso, tinha os olhos húmidos
de derrota quando Manolo o encontrou sentado no último banco do
Paseo de Recoletos com outros três rapazes tão jovens como ele,
tão desmoralizados como ele. Os quatro, e mais seis ou sete que
andavam ali perto, formavam a ala direita do grupo de assalto que
se dispunha a tomar o Palácio das Comunicações da rotunda de
Cibeles quando a ONU interviesse decisivamente em favor dos
democratas espanhóis. Verificando que já sabiam da notícia que ele
não teria de dar, Manolo sentiu-se aliviado e sentiu também que se
lhe partia o coração.
– Cala-te já, caramba! – O empregado, que não era muito mais
velho do que Ramón, emudeceu antes do maneta quando um
homem de uns quarenta e tal anos que podia ser seu pai lhe deu
uma cotovelada nas costas.
– Cala-te tu – ordenou-lhe num sussurro –, que pareces idiota.
Aproximando-se do banco, deu as boas tardes aos rapazes
como se tivesse ficado de se encontrar com eles. Toca a levantar,
vamos dar um passeio… Teve de agarrar Ramón pelo braço para
que se levantasse, e ele deixou-se levar com a docilidade de uma
criança, mas não abriu a boca enquanto subiam a calle Alcalá. Já
está, não há nada a fazer. Nunca poderão dizer que não foram
corajosos, nunca vos poderão censurar por nada, pelo contrário…
Voltava a cabeça de vez em quando, olhando para ele e verificando
que o rapaz avançava como um boneco de corda, a cabeça rígida e
os olhos fixos no horizonte. Vocês demonstraram ter tomates,
grandes como melancias, essa é a verdade, mas agora têm de ir
para casa, cada um para a sua, sem chamar a atenção, percebem?
A causa não ganha nada se vos detiverem, pelo contrário, todos nós
perderíamos muito porque não podemos prescindir de jovens como
vocês, e isso é o que agora… Não chegou a terminar a frase porque
Ramón escolheu aquele momento para olhar para ele. Como
puderam fazer-nos isto? Porque nos fizeram isto? Aquelas
perguntas feriam-no tanto que ele parou em pleno passeio como se
não estivesse disposto a dar mais um passo que fosse antes de
obter uma resposta, e Manolo teve de lhe agarrar novamente no
braço para o obrigar a andar. Nunca fizeram outra coisa, Ramón, a
nós ninguém nos ofereceu nada. Sempre estivemos sozinhos e
assim vamos continuar. Mas é que… Não percebo. Não pares
agora, vá lá, continua a andar, pelo que mais queiras, não deixes de
andar…
Estavam armados. Traziam as pistolas que haviam sido dos pais,
dos irmãos, dos vizinhos, as armas que os soldados da República
se tinham recusado a entregar em abril de 1939, aquelas que eles
resgataram do fundo dos baús, dos buracos abertos debaixo de
alguns ladrilhos soltos, dos autoclismos das suas casas. Juanma
Gómez, estudante de História e amigo íntimo de Ramón, que ia à
sua direita, tinha duas granadas que encontrara na parte superior de
um armário, e Manolo não conseguia deixar de pensar nelas. Agora
não temos tempo para falar. A única coisa que importa é que fiquem
a salvo, que vão para casa, falaremos noutro dia. E porque
deveríamos obedecer-te? Perguntou-lhe Juanma, quem és tu? Eu…
Não era a primeira vez que lho perguntavam, Ramón colocara-lhe a
mesma questão outras vezes e ele limitara-se a sorrir. No entanto,
naquela tarde falou, contou-lhes uma parte da verdade e teria
corrido riscos ainda maiores para os salvar. Trabalhei para a
inteligência republicana durante a guerra e antes estive colocado na
embaixada de Londres. Peguei-me com o Comité de Não
Intervenção muitas vezes e perdi sempre, oiçam o que vos digo
porque sei muito bem do que falo… Antes de alcançar esquina da
calle Barquillo, tinha dado conta de que os rapazes ao seu lado não
eram os únicos homens armados que pululavam pelo centro de
Madrid naquela tarde. Alguns olhares nervosos de Ramón e de
Juanma foram denunciando inadvertidamente outros pequenos
grupos de jovens parados nos passeios ou apoiados às entradas do
metro, mas ele não conseguia chegar a todos. Vou virar aqui, foi
essa a fórmula que escolheu para se despedir. Vou para casa e
vocês têm de fazer o mesmo, têm de convencer os outros, todos os
que puderem, e pôr-se a salvo. Prometo-vos que, dentro de alguns
dias, irei ter convosco e conversaremos tranquilamente, prometo-
vos… Ia a meio da calle Barquillo quando um grupo de rapazes que
não conhecia passou a correr pela rua. Ouviu tiros e, ao voltar-se,
viu meia dúzia de polícias avançando velozmente, mas ainda muito
longe dos estudantes. Os jovens responderam, disparando
enquanto corriam. Nessa altura, sentiu o impacto, uma dentada que
o queimava no lado direito do corpo. Escondeu-se na entrada de um
prédio e daí, atrás da porta semicerrada, viu os polícias, ouviu-lhes
os gritos cada vez mais longínquos, depois nada. Continuou imóvel,
escondido atrás da porta, até ver sair duas mulheres que se tinham
ocultado na entrada da frente.
Antes de atravessar a rua já ouvia os gritos do mutilado, que
quebravam um silêncio tão compacto como se aquela fosse a única
voz que restava no mundo.
– Quanto devo?
Antes de receber o troco, já Guillermo se encontrava ao seu
lado, olhando-o com os olhos muito abertos.
– Vamos, anda, que tenho o táxi à espera lá fora.
Enquanto se dirigiam para a porta, passou-lhe um braço por
baixo da axila direita e foi descendo os dedos devagar até localizar
a ferida pelo grito que a exploração provocou.
– Ai! Não me toques aí que…
– Não fales. – Antes de contornar o táxi para abrir a porta da
esquerda, acrescentou num sussurro. – Ainda não aprendeste que a
primeira coisa a fazer depois de se levar um tiro é fechar a boca?
Aquele tom de voz serenou imediatamente o ferido e devolveu-o
a uma maca da calle Príncipe de Vergara, a um quarto da calle
Hermosilla, a uma época em que a sua vida estava nas mãos do
homem que o havia ajudado a sentar-se no banco traseiro, depois
de contornar novamente o táxi para entrar pela porta da direita.
– Leve-nos ao número 5 da calle Apodaca, por favor… –
Enquanto falava, abriu o sobretudo de Manolo para dar uma vista de
olhos, tirou o cachecol, enrolou-o e aplicou-o com força sobre a
ferida, depois de olhar para o paciente com um dedo nos lábios. A
casa ficava muito perto e ele não voltou a falar até o carro entrar na
rua onde vivia.
– Segura nisto. – Guiou a mão direita de Manolo até ao tampão,
enquanto tirava a carteira. – Já te passou o enjoo?
– Mais ou menos.
Contudo, não conseguiu chegar ao segundo andar pelo seu
próprio pé. No patamar do primeiro cambaleou, esteve quase a cair,
e Guillermo carregou-o ao ombro como um fardo, pousando-o
depois numa das poltronas da sala.
– Vou sujar tudo com sangue.
– Cala-te.
O doutor García não tinha perdido em tempos de paz as
capacidades adquiridas durante a guerra. Num instante, foi até à
cozinha pôr água a ferver, regressou de seguida e tirou a fruteira da
mesa da sala de jantar. Cobriu-a com um pedaço de feltro grosso,
pôs por cima uma toalha de oleado, sobre a qual estendeu outra
toalha branca de onde a lixívia não conseguira tirar completamente
velhas manchas de sangue que pareciam nódoas de vinho tinto.
Dispôs os instrumentos acabados de desinfetar sobre o aparador,
semicerrou todas as persianas e acendeu o candeeiro do teto.
– Só não tenho anestesia, mas… – Tirou de um armário pequeno
uma garrafa de anis. – Já sabes, é como nos bons velhos tempos.
E, tal como nos bons velhos tempos, a dor levou o paciente a
perder os sentidos, acordando numa cama acabada de fazer com
lençóis limpos.
– Como estás? – O doutor García deixou de ler o jornal e olhou
para ele.
– Fodido.
– Calculo, mas além disso…
– Bem, suponho. E a bala?
– Aqui. – Tirou-a do bolso para a mostrar. – Queres ficar com ela
como recordação? Estava ao lado da cicatriz das balas de El Pardo.
Quando acabei de te coser, por pouco não assinei. És a minha obra-
prima, Manolo.
– Ai! Não me faças rir que me dói.
– Nesse caso, vamos falar a sério. Queres contar-me de uma
vez por todas em que é que estás metido?
– Não posso. – Manolo verificou que até abanar a cabeça lhe
doía. – A sério que não posso, seria muito perigoso para ti.
– Para mim? – O seu salvador de serviço desatou a rir. –
Esqueceste-te de que sou um herói?
Desde que se haviam encontrado na esplanada do Café Lion,
viam-se quase todos os dias. Guillermo arranjou-lhe um alojamento
muito mais discreto do que o hotel, apresentou-o no clube de
xadrez, ensinou-o a viver numa cidade tão diferente daquela que
recordava que parecia outra, e apreciou a companhia tanto como
ele.
– Quando mandaram o Pepe Moya para uma aldeia de Jaén,
fiquei sem o último amigo que me restava. Agora só tenho
conhecidos – confessou-lhe quando reataram a antiga rotina de
conversas e xadrez. – Bom, além da María Aránzazu…
Começaram a partilhar outras coisas quando Manolo decidiu
apresentá-lo a uma mulher de quem já lhe tinha falado uma vez,
depois de Amparo lhe ter descrito a relação que mantinha com
Guillermo como uma história única e sem comparação no mundo.
– Não sei se sabem que aqui as pessoas já não se beijam assim
na rua.
Na primeira noite em que saíram os três juntos, Guillermo
assustou-se ao ver a norte-americana contorcer-se para beijar
Manolo na boca em plena Plaza Mayor.
– Me vale madres22. – Meg afastou a cabeça do seu amante, por
instantes, e olhou para Guillermo. – Tenho passaporte diplomático.
– Não sei o que têm as mães que ver com tudo isto – insistiu
Guillermo –, mas assim que algum guarda-noturno vos vir, nem te
digo onde te vão enfiar o passaporte diplomático.
Depois daquele choque linguístico, Guillermo e Meg
simpatizaram muito um com o outro, de tal forma que entre os três
nasceu uma variante exótica da amizade que os tinha ligado a
Amparo em plena guerra, embora quem tivesse sexo agora fosse
outro e a rapariga fosse ainda mais complicada.
– Não tenhas ilusões a respeito da Susan – recomendou-lhe
Manolo quando começaram a sair com a secretária da vice-
conselheira para chamarem menos a atenção –, porque ela vai para
a cama com a Meg.
– O quê?
– Eu disse-te que esta relação era mais estranha do que a tua.
Um jogo de xadrez que acabou empatado foi curto de mais para
a longa história de um amor tão singular como os seus dois
protagonistas. Manolo, que se mantinha firme na decisão de não
contar a Guillermo os motivos da sua estada em Madrid, esmiuçou-
lhe durante horas o que Miss Williams representara para ele quando
se haviam conhecido em Genebra, a companhia, a amizade, a
cooperação, o sexo e, finalmente, o amor que levou a uma
cumplicidade tão íntima, tão profunda que não tinha encontrado
nenhum outro caminho por onde crescer. Foi amor, o mais intenso, o
mais benéfico que aquele acólito que não quis ser padre provou na
vida. Foi amor do bom, como diziam as canções mexicanas que ela
gostava de cantar aos gritos quando se embebedava, e teria podido
ser mais duradouro, até definitivo, se um golpe de Estado não o
tivesse murchado quando acabava de florescer. Despedindo-se de
Meg nas escadas do avião que o levava para Londres, Manolo
julgou que aquilo, fosse lá o que fosse, tinha terminado para
sempre. Talvez não, reconheceu quase dez anos depois diante de
um tabuleiro de xadrez, junto de uma janela que se abria para a
calle Bordadores, talvez o que existia entre ele e Meg continuasse a
ser amor, mas tivesse mudado de forma, de natureza, voltando a
encaixar no molde primitivo, um cocktail explosivo de atração física
e de lealdade sentimental, em que a amizade, a cooperação e o
simples sexo tinham recuperado o espaço perdido quando ambos
se atreveram a pensar que o outro era o grande amor da sua vida.
– Mas ela sempre foi para a cama também com mulheres –
resumiu ante de uma boca aberta de pasmo, recolhendo as peças e
guardando-as com parcimónia numa caixa de madeira –, e eu nunca
me importei com isso.
– Caramba – resumiu o doutor García. – E os três? Quero dizer,
a Susan…
– Não, isso nunca fizemos.
– A verdade é que vocês são estranhos.
Naquela tarde, Manolo foi completamente sincero para
compensar Guillermo por outros silêncios. Até uma bala perdida
voltar a colocá-lo nas suas mãos, Manolo esquivara-se sempre à
curiosidade dele, sem grande sucesso. Para qualquer vermelho
espanhol era inverosímil que um velho companheiro regressasse da
Suíça por vontade própria, mas que o governo no exílio o tivesse
enviado para que andasse pela rua, ouvisse os comentários das
pessoas e os informasse da situação não era um argumento muito
mais credível. No entanto, foi o único que lhe ocorreu e manteve-o
com firmeza enquanto o doutor García lhe contava uma história
muito mais interessante.
No fim de outubro de 1946, Pablo de Azcárate recebeu um
relatório exaustivo acerca da organização clandestina do PCE em
Madrid sob a direção de Jesús Monzón. Nele descrevia-se todo o
processo de preparação, a partir de dentro, da invasão falhada de
Arán, os contactos que o dirigente comunista havia estabelecido
com dissidentes do regime e representantes de outros partidos
ilegais, as reuniões onde se forjara a efémera União Nacional
Espanhola e a atividade clandestina desenvolvida na capital.
Também se mencionava a queda da direção de Monzón e as
represálias da direção do Partido aquando do seu regresso a
França, vindo de Moscovo, que deixaram Guillermo sem um único
amigo em Madrid. Manuel Arroyo Benítez desconhecia o elevado
nível de organização que os comunistas tinham consolidado na
clandestinidade. Azcárate não se surpreendeu, mas chamou-lhe a
atenção o facto de o seu correspondente insistir tanto na questão
médica, na quantidade de farmácias que forneciam medicamentos
aos médicos clandestinos, na atividade destes e na cobertura de
que gozavam os ativistas feridos, um benefício que se estendia
tanto às famílias dos presos políticos como a outras sem recursos
económicos. No fim do relatório, explicava que a sua fonte era,
justamente, um médico clandestino, o cirurgião que lhe salvara a
vida quando o tinham atingido diante da porta do quartel de El
Pardo. Na resposta que lhe chegou às mãos através de Meg, o
chefe felicitava-o por ter contactado com ele. Calha sempre bem ter
um herói à mão, dizia literalmente, e Manolo achou tanta piada que
decidiu contar isso a Guillermo, mas só isso.
– Além disso – acrescentou, depois de lhe salvar a vida pela
segunda vez –, aqui volto a mandar eu, porque nesse estado não
podes voltar para casa da María Aránzazu. Ela é boa pessoa, mas
não sei se te deste conta de que bebe. – Manolo riu-se, mas
arrependeu-se imediatamente. – E é muito peculiar nas suas coisas.
Odeia o Franco, mas não simpatiza muito mais connosco, pelo que
vamos poder passar as tardes a conversar.
– Como nos bons velhos tempos.
– Exatamente. Isto é um nunca mais acabar…
– Ai! Não digas piadas, Guillermo.
No dia seguinte, ao sair do trabalho, Rafael Cuesta Sánchez
dirigiu-se à calle Españoleto 24, e antes de que María Aránzazu lhe
pudesse perguntar alguma coisa, contou-lhe a única história que
tinha a dupla virtude de a tranquilizar e de a obrigar a ser
benevolente, como calculara de antemão.
– Contei-lhe que enlouqueceste de amor – resumiu a Manolo
quando voltou para casa, tarde e com uns copos a mais –, que
conheceste uma mulher casada e que o pior, porque se rendeu a ti e
a mim não me ligou nenhuma, é que fui eu quem ta apresentou.
Manolo sorriu e Guillermo mostrou-lhe a mala que trazia na mão,
a bagagem de emergência preparada desde que se tinha mudado
para o número 24 da calle Españolete e que a própria María
Aránzazu fora buscar ao armário dele.
– Como o marido da tua amante foi a Portugal, tu enfiaste-te com
ela numa quinta de Toledo, cancelaste um compromisso que tinhas
em Valência e pediste-me que te fosse buscar a mala já feita e que
ta enviasse pela camioneta. Lembra-te bem de tudo, hã? Não te
esqueças. Se quiseres, escrevo.
– Não é preciso. E convidou-te para um copinho, claro.
– Para um? – Guillermo desatou a rir. – Tive de beber três, mas
ela ficou descansada. Ai, coitado, deixa-o lá, no fim de contas, para
o pouco tempo que cá estamos… Nem todas as mulheres têm a
sorte de enviuvar oito meses depois do casamento…
Nessa noite, deixou-o descansar. No dia seguinte, o seu paciente
já tinha aceitado a ideia de que teria de enfrentar uma longa
conversa, mas quem espreitou à porta do seu quarto às duas da
tarde foi Meg.
– Pedi-lhe que viesse alimentar-te. – Guillermo explicou-lhe, já
no corredor. – Tenho de me ir embora para atender uma urgência,
depois vemo-nos.
Saiu tão depressa como tinha chegado, deixando-o a sós com
umas trombas com que não contava.
– Estou muito chateada contigo, é bom que saibas.
– Não te zangues comigo, vá lá, que me dói o corpo todo.
– A poco, no? Com que então o chamaquito23 decidiu armar-se
em revolucionário…
– Eu sei. – Manolo estendeu a mão na direção dela e conseguiu
aproximá-la até ela se sentar na cama. – Fui um imbecil, arrisquei-
me sem necessidade. Sinto muito. Não voltarei a fazer nada de
semelhante, prometo.
– Ainda bem que existe o doutorzinho, não é?
– Sim, mas ele não me traz coisas tão boas para comer…
Manolo apontou para o embrulho da Embassy que Meg tinha
pousado na mesa de cabeceira, dando a repreensão por concluída.
Almoçaram na cama, e ela pediu-lhe desculpa pela velocidade com
que devorava as sanduíches, ai, que vergonha!, até que,
abruptamente, deixou de mastigar.
– Tenho outra surpresa para ti, mas não te assustes, que é boa…
Antes de se despedir, Meg escreveu um bilhete para Pablo de
Azcárate, informando-o de que Washington iria retirar o seu
embaixador de Madrid como um gesto de concordância com a
declaração da ONU. Contudo, como ela já tinha previsto que isso
pudesse acontecer, havia-se fartado de pressionar o pai e Burnstein
para que o cargo que lhe arranjassem fosse num departamento que
sobrevivesse à transformação da embaixada em Secretaria de
Negócios.
– Como é que se diz aqui fazer uma coisa para aparentar outra?
– Fazer uma fita? – sugeriu Manolo, pressentindo o rumo da
coisa.
A retirada do embaixador era uma fita, prosseguiu Meg, mas o
conselheiro de comércio teria de o acompanhar. A vice-conselheira
não, insinuou, deixando que o destinatário do bilhete tirasse as suas
próprias e excelentes conclusões.
– E a secretária da vice-conselheira? Se calhar, também tem de
se ir embora.
– Ai, ya no chingues24, Manolo!
– Ainda bem que eu existo, não achas? – E desatou a rir.
– A poco? Sobretudo agora, que estás um fortalhaças…
Quando se despediram, o doente estava de bom humor. As
reprimendas de Meg eram mais temíveis do que uma conversa com
Guillermo, mas, vendo-o entrar, julgou que conseguiria evitá-la.
– Não é necessário que me contes nada, já sei de tudo. Acabei
de extrair uma bala da perna de um rapaz. Se demorassem mais um
pouco a avisar-me talvez a perdesse, porque a ferida estava muito
feia… – Tirou o casaco, aproximou uma cadeira, sentou-se. – Nós
não tivemos nada que ver com isso.
– Vocês? – Manolo teve o cuidado de sorrir sem chegar a rir. –
Filiaste-te no PCE há pouco ou quê?
– Ah, não, é verdade! – Ele riu-se. – Às vezes esqueço-me…
como passo tanto tempo com eles… Também foram eles que me
avisaram hoje de manhã. Ou seja, já sei o que aconteceu, mas não
percebo… Este rapaz, o Juanma, atirou uma granada a dois polícias
já depois de o terem ferido numa perna. Quer dizer que a coisa foi
séria, mas ao mesmo tempo devias tê-lo visto… É um miúdo,
Manolo. Com tomates, isso sim, mas um miúdo, e isto não passou
de uma criancice. Mesmo que a ONU tivesse votado a favor de
destituir o Franco, duzentos estudantes a ocuparem Madrid assim, à
mão armada… Não percebo o que um homem como tu fazia ali
metido.
– Nada.
– Nada? – Guillermo riu novamente e apontou para o corpo de
Manolo. – Pois, para quem não estava metido em nada, trouxeste
uma bonita lembrança…
– Porque eu já sabia e encontrei-me com eles. Fui muito
imprudente, de facto, mas não estou em Madrid por causa disso.
– E porque é que estás em Madrid, Manolo?
– Se te disser, vais-te arrepender.
– Eu? Não acredito…

E nunca me arrependi.
A história que ouvi metia medo, mas também era excitante, era a
coisa mais emocionante que me acontecia em sete anos, anos
longos como quinquénios, a pequena eternidade que havia
decorrido desde que abandonei o meu cargo no San Carlos. A
clandestinidade não me assustava. Embora não tivesse um cartão
de militante, nem outras armas senão os velhos instrumentos
médicos que passearam por meia Madrid numa pasta de escritório,
vivia como um militante clandestino desde a primavera de 1941. A
minha contribuição prática para a resistência tinha sido muito mais
relevante do que os meus contributos teóricos para a constituição da
UNE e, no entanto, nessa noite, enquanto dava voltas na cama
como um adolescente deslumbrado com o primeiro encontro,
compreendi que as reuniões em Ciudad Lineal poderiam ser mais
importantes do que tinha julgado.
– Como pensas chegar à Stauffer? – perguntei-lhe durante o
pequeno-almoço do dia seguinte. – Tens algum contacto com ela?
– Nenhum – confessou-me. – Agora o que mais me preocupa é
escolher uma identidade. Pensei que seria mais fácil, mas a Meg
está bastante desanimada, embora ainda não tenha terminado de
compilar informações. Quando decidir quem serei, teremos de
encontrar alguém que me apresente à Clarita, mas vá-se lá saber…
Isso também pode acabar por ser um problema.
– Talvez não. – Sorri. – Se calhar, posso tratar disso.
Manolo ergueu as sobrancelhas, olhando para mim com os olhos
muitos abertos.
– Tu conhece-la?
– Não, mas conheço uma mulher que a odeia.
Depois de estudarmos o calendário, escolhemos o dia 18,
quarta-feira, suficientemente próximo da noite de Natal para que em
casa dos ricos tivesse aumentado o tráfego de moços de recados e
visitantes, e suficientemente distante para que aqueles que
passavam o Natal nas suas regiões de origem estivessem ainda em
Madrid. Antes de sair do escritório, preenchi uma guia de remessa
com os dados de um envio fictício, sem especificar o conteúdo, e
meti-o num envelope juntamente com um dos meus cartões de
visita. Trabalhar na transportadora dava-me muita liberdade de
movimentos. Ninguém se admirava que eu saísse do escritório nas
horas de expediente, porque precisava muitas vezes de visitar
clientes ou supervisionar a carga ou a descarga de algum camião.
Tentava não abusar do privilégio e costumava atender os meus
pacientes durante o almoço, nas três horas que o meu horário
deixava livres. Essa não foi uma exceção.
Um empregado carregado com um grande cabaz de Natal, três
andares cobertos por celofane sob uma fita que não escondia os
dois presuntos pata negra, antecipou-se-me uns instantes ao
perguntar ao porteiro pelo apartamento dos senhores Maroto.
Quando lhe disse que ia para o mesmo sítio, observou-me durante
alguns segundos e apontou para o elevador principal. Chegado ao
terceiro, esperei um pouco, para dar tempo a que as criadas
aceitassem o cabaz, antes de tocar à campainha. Uma empregada
fardada, com as faces tão coradas como uma atleta acabada de
cortar a meta, abriu-me a porta.
– Ah! Espere um momento, já o trago… – Tinha começado a
correr na direção do corredor quando consegui reagir.
– Mas o que me vai trazer?
– A gorjeta de Natal. – A rapariga olhou finalmente para a minha
cara. – O senhor não é…? – E tapou a sua com o avental antes de
voltar para trás. – Ai, desculpe-me, confundi-o com o carteiro. É que
estamos tão atarefadas…
– Margarita! – Ouvi os saltos da dona da casa antes de lhe ouvir
a voz. – Quem é…?
María Eugenia León emudeceu de espanto ao ver-me à porta da
sua casa. Haviam passado mais de dois anos desde que nos
despedíramos pela última vez e eu não tinha a certeza de que ela
ficasse satisfeita por me ver, mas também não encontrei explicação
para a expressão de terror que se apoderou da cara dela enquanto
caminhava na minha direção, tão devagar como se cada perna
pesasse mais do que conseguia suportar.
– Rafa, que surpresa… – Estava muito elegante, perfumada,
arranjada para sair. – Feliz Natal. – Voltou-se para a criada e
apercebi-me de que lhe custava comportar-se com naturalidade,
impor-se ao tremor da sua voz. – Volta para a cozinha, Margarita, eu
atendo. É um velho amigo.
A corredora desapareceu num instante, e Geni voltou a cabeça
para se certificar disso antes de me dar um abraço protocolar,
distraído.
– Entra, por favor – acrescentou em voz alta e só depois de
fechar a porta continuou a falar num murmúrio. – O que aconteceu
ao Sito?
– Nada. – Permiti-me o alívio de sorrir por ter deslindado o
mistério, mas tive a precaução de me explicar num murmúrio tão
silencioso como o que ela escolhera. – Bom, nada pior do que
continuar na prisão de Ocaña à espera de um conselho de guerra.
Mas já sabias disso, calculo. Detiveram-no em Barcelona, quando
se preparava para passar a fronteira pela serra.
– Sim, já sabia disso, claro, mas é que, ao ver-te, pensei… – Fez
uma pausa, desatou a rir, abraçou-me outra vez, desta vez a sério, e
beijou-me nas faces. – Bom, agora sim, estou contente por te ver.
Numa noite de fevereiro de 1944, apenas duas horas depois de
nos conhecermos, saímos ambos da casa de Monzón em último
lugar. A inexplicável desconhecida que María Eugenia León era
então para mim estendeu-me a mão no gradeamento do jardim e
dirigiu-se para um carro estacionado em frente, mas deu a volta a
meio do caminho.
– Está uma noite péssima – comentou, e era verdade porque a
neve rala que caía parecia querer transformar-se de um momento
para o outro num bom nevão. – Para onde vais?
– Para o centro – respondi, consciente de que teria de andar um
bom bocado até à paragem do elétrico. – Para a calle Bilbau.
– Ah, somos vizinhos… – Abriu a porta do lado do condutor e
chamou-me com a mão. – Eu vivo na calle Almagro. Anda, eu levo-
te.
Não reagi imediatamente. O seu desembaraço não me
surpreendeu porque nos tínhamos conhecido numa reunião onde a
norma era tratar toda a gente por tu, porém, depois de me levar à
primeira, Pepe avisara-me para que tivesse cuidado. Aqui hás de
conhecer muita gente, disse-me textualmente, ainda assim, mesmo
que conspirem connosco, nem todos são de esquerda, ou até
republicanos, pelo que convém evitar familiaridades porque nunca
se sabe… De todas as pessoas que conheci em Ciudad Lineal,
ninguém encaixava melhor do que Geni nesse aviso, mas aceitei a
oferta dela pelo motivo insignificante de não ver nenhum motorista
dentro do carro.
– Uma mulher a conduzir – comentei, sentando-me ao seu lado.
– Há anos que não via uma.
– Não me surpreende. – Conduzia com uma grande destreza, os
olhos fixos no espelho da esquerda, sem parar de falar. – Eu deixei
de usar o carro porque estou farta de que olhem para mim como
para um macaco amestrado. Quando os miúdos começaram a gritar
comigo e a rir-se nas esquinas, deixei de conduzir, mas para vir
aqui… Pedi-lo ao motorista do meu marido não era viável.
– Imagino.
– Bom… Posso perguntar-te uma coisa? – Não esperou pela
resposta. – É que, ao ver-te, pensei… Tu não tens a pinta dos
outros que estavam lá dentro, sabes? E dei-me conta de que és
muito amigo do rapaz do dente torto, mas… – Parou por momentos
para escolher as palavras. – Não quero ofender ninguém, mas
naquela casa tinham todos pinta de operários ou de pequenos
funcionários públicos e o que quero dizer é que… Se calhar soa-te
mal na mesma, mas a verdade é que pareces um tipo de boas
famílias…
– Olha quem fala.
Aquele comentário fê-la rir-se com tanta vontade que o seu riso
me aproximou dela, como me tinha aproximado do dono da casa de
onde havíamos acabado de sair no dia em que a conheci.
– Pois, mas é que eu sou amiga do Sito há muitos anos. As
nossas famílias conhecem-se desde sempre, em miúdos
brincávamos juntos todas as tardes, no parque. Ele gosta de dizer
que foi o meu primeiro namorado…
Voltou-se para mim e calculei que fosse retificar o que tinha
acabado de dizer. Depressa aprenderia que essa era a forma
natural de se expressar, avançando dois passos e retrocedendo um,
sem nunca perder o fio à meada.
– Vejamos, eu devia ter doze anos e ele onze, ou por aí. Naquela
época, era muito mais espevitado do que eu, embora, com o tempo,
eu tenha melhorado bastante, essa é a verdade… Depois
frequentámos durante uns tempos o mesmo grupo, em Pamplona,
até que me calhou casar-me, e ele decidiu tornar-se comunista.
Nessa altura, deixámos de nos ver, mas continuámos a gostar muito
um do outro. Quando ele me convidou para vir aqui, não pensei
duas vezes, embora não perceba muito bem qual o meu papel em
tudo isto… Também és comunista?
– Não. – Sorri ao lembrar-me da Experta. – Mas sou, de facto,
um menino de boas famílias.
Na primeira noite, despedimo-nos à porta da casa dela. Na
segunda, ela convidou-me para subir e tomar um copo. Antes de
abrir a porta, pediu-me que não fizesse barulho para não acordar os
filhos e levou-me por um andar enorme, através de três grandes
salas que comunicavam entre si, até outra mais pequena, situada
perto do seu quarto.
– Vou ver como estão as crianças – disse-me, antes de apontar
para uma cómoda de madeira com embutidos, cujo aspeto não
denunciava o conteúdo. – Serve-te do que quiseres, já venho.
Quando regressou com o gelo, a única coisa que não tinha
encontrado naquele bar camuflado, atrevi-me a fazer-lhe a pergunta
por que ela esperava.
– E o teu marido?
– Em Paris.
Voltou-se, observando-me, enquanto se servia de uma bebida, e
reparei num fundo de amargura a pairar sobre o seu perpétuo
sorriso irónico, de mulher mundana, que até então havia
interpretado como um traço de personalidade.
– O meu marido está sempre em Paris.
Foi assim que ela me permitiu descobrir que aquela expressão
radiante era menos e muito mais do que parecia, a máscara
perfeita, muito bem maquilhada, atrás da qual a María Eugenia León
se escondia do mundo.
Estivemos juntos até às quatro e meia da manhã. Contou-me
que vinha de uma família de vinhateiros de La Rioja que sempre
repartira o seu tempo entre um andar em Pamplona e uma grande
propriedade rodeada de vinhedos, em Haro. Eu falei-lhe do meu
avô, diverti-a com a sua vida tripla de comissário da polícia,
dramaturgo respeitável e autor clandestino de textos para revistas
lascivas. Não lhe escondi o seu republicanismo, nem o meu, mas
também não lhe revelei os motivos que me haviam levado à reunião
daquela tarde, e ela não me perguntou. Quando nos despedimos,
ela disse-me que se tinha divertido muito, e eu respondi com a
verdade, porque me divertira tanto como ela. Por isso, na terceira
noite, quando entrámos no elevador, ela não carregou no botão do
segundo andar, mas no do sétimo.
– Este é o apartamento dos encontros do Esteban – explicou
com grande naturalidade enquanto abria a porta. – Ele não sabe
que eu tenho uma cópia da chave, mas, como está em Paris… Aqui
podemos falar alto sem incomodar ninguém.
Fizemos mais qualquer coisa e foi bom, prazeroso e superficial
para ambos. Comprovei que continuava preso à maldição da
Amparo, à lembrança daquela paixão que não conseguia comparar
com nenhuma outra e que bastava para envenenar a atração que
pudesse inspirar-me qualquer mulher no instante em que caíamos
nus numa cama. O sexo, depois da Amparo, tinha passado a ser
uma brincadeira de crianças, um passatempo previsível, cujas
regras eu conhecia e aplicava mecanicamente para obter uma
compensação minúscula em comparação com a que recordava,
como se, ao desaparecer da minha vida, ela tivesse levado para
sempre um ingrediente da minha natureza, mas não fui o único
amante incompleto no ninho de amor do senhor Maroto. A María
Eugenia León também não era totalmente dona de si. Aquela
mulher atraente, divertida e sensual, estava apaixonada pela vida,
não pela sua, que no encontro anterior havia partilhado comigo, mas
por outra, que lhe tinha pertencido antes de a perder e que nunca
mais recuperaria.
– Que tens aí dentro?
Antes de se despir, ela tinha tirado o relógio e os brincos, mas
mantivera uma corrente fina de ouro de onde pendia um pequeno
medalhão ovalado que lembrava as joias antigas que escondiam
uma madeixa de cabelo. Enquanto se movia em cima de mim, vira-o
dançar, bater-lhe suavemente no peito e, quando os nossos corpos
se separaram, também vi como o beijava.
– Aqui… – Voltou a beijá-lo antes de me responder. – Aqui está o
amor da minha vida. Não posso vê-lo porque mandei soldar as duas
metades para que ninguém descobrisse, mas sei que a cara dele
está cá dentro.
Nunca falei da Amparo à Geni, no entanto ela contou-me a
história de Fernando Villa, a sua vida, o amor deles, as prisões, a
morte e o rancor infinito que guardava aos culpados.
– Não devia dizer isto. Não devia falar assim porque à minha
volta há demasiada gente a sofrer e a verdade é que vivo muito
bem. Tenho três filhos bons, saudáveis, e posso vê-los crescer,
brincar com eles. Sou uma felizarda em muitas coisas, mas… –
Beijou novamente o medalhão e olhou para mim. – Mesmo que não
acredites, o rancor é a única coisa que me dá forças. Só o rancor
me faz levantar da cama todas as manhãs e me sustém até tornar a
deitar-me todas as noites. Por isso, estou disposta a colaborar com
os comunistas, com quem quer que seja, no que quer que seja.
Porque a eles, nunca lhes perdoarei na minha vida. E a elas, nem
quando estiver morta.
Voltámos a ir para a cama depois de cada reunião, mas nunca
marcámos encontro algum fora da agenda da União Nacional.
Também nunca mais falámos de Fernando, embora eu não me
tenha esquecido das suas palavras. Quando a invasão do vale de
Arán fracassou, deixámos de nos encontrar e eu não senti
necessidade de a procurar, embora às vezes sentisse a sua falta. A
Geni havia sido um presente do destino, um prémio que eu não
tinha muita certeza de merecer quando o acaso que nos juntou
decidiu separar-nos. Senti que estava bem assim e fui deixando de
pensar nela, até que na noite de insónia que se sucedeu à confissão
do Manolo Arroyo vi a cara dela desenhada no teto do meu quarto
com uma clareza espantosa.
– Agora que já sei que não vens dar-me más notícias… – No dia
seguinte ficou a olhar para mim com uma curiosidade indisfarçável,
depois descartar qualquer intenção romântica ou sexual naquela
visita diurna e doméstica. – O que te traz por cá?
– Ias sair, não ias?
– Sim… – Esperou por um esclarecimento que preferi adiar. –
Tenho de ir a um almoço de Natal de uma associação de caridade,
uma seca, às duas e meia… – E poupou-me outra pergunta. – É
aqui ao lado, na calle Sagasta.
– Ótimo – acabei por dizer. – Vamos beber uma cerveja para
fazeres tempo.
Saímos juntos, e eu recusei o primeiro bar que ela propôs,
pequeno e cheio de gente, escolhendo um café maior, quase vazio.
– Aqui não há cerveja de barril – avisou-me mal me viu empurrar
a porta.
– Não faz mal, não tenho sede.
Conduzi-a até uma mesa do fundo e só falei quando o
empregado nos deixou sozinhos com duas garrafas e umas batatas
fritas.
– Vim ver-te porque tenho um amigo que precisa de uma
informação que te é muito fácil de conseguir. Não implica nenhum
perigo e não te comprometeria, mas a mim far-me-ias um grande
favor e uma sacanice à Clarita Stauffer.
– Ohhh! – Ergueu os braços, como se quisesse dar graças a
Deus, antes de meter a mão no decote, tirar o medalhão e beijá-lo
três vezes. – O que tenho de fazer?
– Quase nada. Precisamos de uma lista de pessoas, homens e
mulheres, do círculo de relações da Stauffer, pessoas de quem nos
pudéssemos aproximar para pedir que nos apresentem ou que nos
ponham em contacto com o círculo dela.
– E que mais?
– Nada mais. – Sorri ante a expressão dececionada que lhe
enrugou os lábios. – Só isso. Sei que tu própria nos poderias
apresentá-la numa festa, mas tu és suspeita, Geni, e isso não nos
convém. Precisamos de um intermediário de muita confiança, de
alguém em quem ela confie plenamente.
Ela fez uma pausa, aproximou-se e dirigiu-me um olhar entre
divertido e astuto.
– Isto é por causa dos nazis, não é?
– Quer dizer que tu sabes – admiti, remoendo lentamente o
espanto.
– Eu? – Soltou uma gargalhada. – Toda a gente sabe! Bom,
vamos lá ver… – Baixou a voz para retificar com uma expressão
cautelosa. – Mais do que saber, desconfia-se. O que quero dizer é
que, desde que os nazis perderam a guerra, a Clarita anda a pedir
favores a metade das empresas de Madrid para colocar alemães.
Impingiu dois ao meu marido, claro que ele não sabe que… Enfim,
não sabe que eu não falo com ela. Bom… – Como de costume,
retificou pela segunda vez. – Falar falo, porque não tenho outro
remédio, tu percebes-me. A questão é… Suponho que não me vais
contar por que razão o teu amigo precisa disso, pois não? – Neguei
com a cabeça. – Mas podes dizer-me se o que ele quer é lixar a
Clarita?
– Isso garanto-te. Se isto correr bem, mais do que lixá-la, vai
fazê-la cair. E, se correr muito bem, o regime cairá com ela.
Ela voltou a beijar o medalhão, apagou o cigarro, rodou a cabeça
na direção da janela e observou a rua durante algum tempo antes
de olhar novamente para mim.
– Já sei o que vamos fazer. – Os olhos brilhavam-lhe de repente,
como se tivesse febre. – A Sociedade Alemã de Beneficência
organiza todos os anos uma festa para entregar brinquedos às
crianças pobres. Costumam fazê-la na semana a seguir ao dia de
Reis e é a Clarita quem trata de tudo, de coletar o dinheiro, de
comprar os presentes, da lista de convidados… A mim já não me
convida, mas uma das irmãs do Esteban vai todos os anos porque é
casada com um manda-chuva dos Sindicatos, e eu dou-me muito
bem com ela, pelo que não se importará que eu a acompanhe. A
maior parte dos convidados dessa festa são amigos da Clarita e eu
conheço-os quase todos, com certeza, até me parece que vou
almoçar com algumas delas daqui a pouco. Posso dar-te uma lista
em meados de janeiro. É isso que pretendes?
– Sim. – Peguei-lhe numa das mãos e apertei-a com força. – Isso
seria maravilhoso. Obrigado, Geni.
– De nada, mas não posso fazer mais qualquer coisa? Ando tão
aborrecida, Rafa. Morro de tédio. Não sabes a falta que sinto das
reuniões de Ciudad Lineal. Já sei que não fazíamos nada, mas pelo
menos tinha a ilusão de estar a fazer alguma coisa e, agora… Ai, já
são duas e vinte! Tenho de me ir embora. É melhor não sairmos
juntos, não achas?
Levantei-me para me despedir dela, sem comentar os
conhecimentos que decerto adquirira a ver filmes de espiões e,
quando me estendeu a mão com uma expressão de menina
dissoluta, apertei-a com muita formalidade.
– Quando tiver a lista, como te aviso?
O Manolo recebeu os resultados da minha diligência com uma
frieza que me teria dececionado se ele não me revelasse a seguir o
motivo de tal atitude.
– A Meg acabou de sair. – Nem sequer levantou os olhos dos
papéis espalhados sobre a mesa. – E não trazia boas notícias.
A colaboração da Geni não teria qualquer valor se ele antes não
encontrasse um criminoso de guerra espanhol a quem pudesse
usurpar a identidade, mas até então não tinha aparecido nenhum
que servisse.
– Ela também não pode continuar a ver os processos de
Nuremberga porque o Burnstein lhe enviou tanta documentação que
não lhe deixa tempo para fazer o seu trabalho. Mas eu posso fazê-lo
aqui, se não te importares que transforme a tua sala num escritório,
agora que vou ter de voltar para casa da María Aránzazu.
– É evidente. – Ele olhou para mim com as sobrancelhas
levantadas e eu fui mais explícito. – É evidente que vais ter de voltar
para casa da María Aránzazu e é evidente que não me importo que
venhas trabalhar para aqui. Ela ficará mais tranquila quando souber
que encontraste um emprego e eu até posso dar-te uma ajuda ao
fim da tarde.
– Está bem, porque… Isto está com mau ar, na verdade. Em
quatro meses, a Meg só encontrou dois criminosos de guerra
espanhóis com paradeiro desconhecido. Um deles tem menos treze
anos do que eu. E o outro passou metade da guerra de cadeia em
cadeia, acusado de furtos, de insubordinação, de violações, enfim…
É tudo menos um nacionalista exemplar, pelo que não creio que a
Clarita mexesse um dedo para o salvar.
– Porra! – resumi. – E não há mais?
– Não. Parece mentira, apesar da quantidade de divisionários
que foram parar às SS, ela não encontrou mais nenhum.
A María Aránzazu convidou-nos para jantar em sua casa na noite
de Natal e, uma semana depois, a Meg desistiu do cocktail da
embaixada porque quis que fôssemos comer as passas para a
Puerta del Sol. Depois, demos as boas-vindas a 1947 no
apartamento dela com uma bebedeira monumental. Com essas
duas exceções, e a correspondente ressaca de Ano Novo, o Manolo
não fez outra coisa senão ler atas judiciais e relatórios da polícia
aliada na Alemanha, de 20 de setembro de 1946 a 14 de janeiro de
1947.
– Como correu? – perguntava-lhe todas as tardes ao voltar do
trabalho, e ele respondia-me abanando invariavelmente a cabeça.
Eu sentava-me ao seu lado, pegava na primeira pasta da pilha e,
mais cedo ou mais tarde, sucumbia ao mesmo desânimo. O único
fruto desta parceria foi o de aliviar o trabalho de Manolo. Só
encontrei dois nomes espanhóis, ambos de reclusos de
Mauthausen, que haviam sido testemunhas, e já tínhamos
começado a desesperar quando ele chegou à ficha de um oficial das
SS chamado Ernst Kleiber.
– Aqui… – Aquela palavra soou como um grito. – Aqui… Aqui,
aqui, mas como é que ele se chama? – Ficou tão nervoso que se
levantou, começou a andar em círculos sem parar de ler, e não me
ocorreu nada melhor além de segui-lo. – Como se chama? – Dei
duas voltas à sala atrás dele, como se jogássemos ao macaquinho
de imitação. – Diz-me, filho da puta, diz-me como é que ele se
chama…
Chamava-se Adrián Gallardo Ortega, mas demorámos algum
tempo a descobrir.
Quando consegui que se acalmasse o suficiente para se voltar a
sentar, contou-me que esse tal Kleiber tinha sido acusado de
recrutar um grupo de homens que participaram no extermínio de
mais de dois mil judeus, prisioneiros de um campo na Estónia, e de
assassinar a sangue-frio um soldado alemão que recusara cumprir
ordens. Os seus subordinados tentaram atribuir-lhe a
responsabilidade, mas Kleiber insistiu que todos, incluindo o
insubmisso que tivera de executar, haviam sido voluntários e
ofereceu-se para os identificar. O primeiro homem que implicou era
um espanhol que havia competido como pugilista profissional antes
de ir para a frente russa e que andava sempre com um indivíduo
muito estranho de nome flamengo e apelido alemão, mas nascido
na América do Sul. Tinha-se esquecido do apelido do espanhol,
porém lembrava-se do outro: Schmitt. O documento incluía um
anexo com a identificação dos subordinados de Kleiber e a
informação que haviam fornecido. Nessa lista, Jan Schmitt aparecia
com um ponto de interrogação, em penúltimo lugar. O último era
ocupado por um nome próprio que poderia ser espanhol, embora
estivesse transcrito sem acento, Adrian, e com outro ponto de
interrogação.
– Não tenhamos ilusões. – A euforia do Manolo durou pouco. – A
interrogação não significa que tenha desaparecido, é muito possível
que esteja morto, mas… – Levantou-se da cadeira de um salto. –
Vou descer e telefonar à Meg. Devem existir listas que possamos
consultar…
– O quê? – interrompi-o, agarrando-o por um braço e obrigando-
o a sentar-se novamente. – Não sabemos o apelido.
– É verdade. – A expressão de abatimento voltou a surgir-lhe no
rosto.
– Mas foi pugilista profissional, não é verdade? Será por aí que o
encontraremos. Adrián não é um nome muito comum e não há
assim tantos pugilistas.
Para a vice-conselheira de Comércio da Secretaria de Negócios
dos Estados Unidos em Espanha foi muito simples telefonar à
redação do ABC e pedir para falar com algum jornalista desportivo,
especializado em boxe. Decidimos que o melhor seria a Meg
inventar um amigo norte-americano, cronista de desporto em algum
jornal, que estivesse a escrever um livro sobre o boxe e a guerra e
precisasse de uma lista de pugilistas espanhóis que tivessem
combatido nos conflitos da última década. O jornalista que a
atendeu foi muito amável e não desconfiou das suas intenções, mas
avisou-a de que precisaria de algum tempo para consultar os
arquivos. Fevereiro já tinha começado quando ele a contactou e a
convidou a passar na redação para ir buscar a pasta que havia
preparado para ela.
Estava tudo ali. Um combate numa barcaça fundeada no porto
de Bilbau, em março de 1938, o Campeonato de Castela de pesos-
pesados em 1940, o vice-campeonato de Espanha em 1941, um
nome com o acento no sítio, Adrián, e dois apelidos, Gallardo
Ortega. No parágrafo inicial de uma entrevista publicada nas
vésperas do combate de Barcelona figuravam outros dados, entre
eles que pertencia ao clube Ginástica Ferroviária de Madrid.
– Claro, claro que sim. – O dono do ginásio lembrava-se muito
bem dele. – O Tigre de Treviño, como lhe chamávamos. Era bom
rapaz, muito forte, ainda que muito lento, embora o treinador tenha
feito maravilhas com ele. Poderia ter sido campeão de Espanha,
mas foi-se abaixo de repente, não sei porquê…
Na cidade de Madrid de 1947, era completamente impensável
uma mulher, mesmo estrangeira, aparecer sem mais nem menos
num ginásio para dar uma vista de olhos. Que o homem que, pouco
tempo depois, passaria a ser Adrián Gallardo Ortega tivesse lá ido
perguntar por si próprio teria sido ainda pior, pelo que me calhou a
mim. Don Fernando, um homem baixo e rechonchudo com aspeto
de quem nunca havia sido atleta, estava sentado diante do ringue
onde lutavam dois rapazes, embora prestasse menos atenção ao
combate do que ao charuto que rodava entre os dedos. Estava tão
aborrecido que teria aceitado qualquer pretexto para ir beber um
café, e a visita de um velho companheiro de armas de Adrián que
procurava por ele para reatar a sua amizade pareceu-lhe tão bom
como qualquer outro.
– Não sei dizer-lhe onde está, não faço ideia. Foi para a Rússia.
Sabe disso, não é verdade?
– Sim, soube disso, mas calculava que tivesse regressado.
– Por aqui não o vimos. Temos as malas dele guardadas desde
que se alistou e não veio buscá-las. A verdade é que há uns dois
anos… – Franziu o sobrolho como se precisasse de se concentrar. –
Ou três, é possível, não sei, porque ele ainda estava na Rússia…
Escreveu-me de lá. Dizia que pensava voltar aos combates como
profissional. Queria contactar o treinador, mas eu contei-lhe a
verdade, que o Pirulo estava na prisão, de modo que…
– Pirulo?
– O treinador dele. – Desatou a rir-se. – Eu sei que parece
mentira, mas era assim que lhe chamávamos. De qualquer maneira,
encorajei-o a voltar, ofereci-me para lhe procurar outro treinador,
mas nunca mais soube nada dele.
Antes da minha visita ao ginásio, a Meg já tinha começado a
procurar Adrián Gallardo Ortega em todas as listas de que o
Conselho de Controlo Aliado em Espanha dispunha. Não podíamos
pôr de parte a hipótese de ele ter morrido, mas, nesse caso, teria
sido enterrado sem identificação ou esta não constava em nenhum
documento. Não estava ferido, não estava fugido, não estava preso.
Nem sequer surgia em nenhuma lista oficial de desaparecidos. A
última coisa que se sabia dele era que tinha participado na defesa
de Berlim. Depois, parecia ter-se esfumado no ar.
– Órale – convidou-nos a jantar nos primeiros dias de março para
celebrarmos. – Já o temos.
Ergueu o copo para brindar e o Manolo tocou nele com o seu
copo exibindo uma expressão grave. Para ele tinha chegado a hora
da verdade. Para mim também, embora a minha hora e a minha
verdade fossem diferentes.
A 20 de janeiro de 1947, quase um mês e meio antes daquele
brinde, María Eugenia León viera ver-me ao escritório.
– Aqui tens. – Estendeu-me três folhas de papel datilografadas. –
Como me aborreço tanto, pus os nomes por ordem alfabética e
sublinhei a vermelho os convidados que conheço o suficiente para
os convidar a almoçar contigo. Bom, contigo e com o teu amigo, se
é que existe.
– Muitíssimo obrigado, Geni. – Dei uma vista de olhos por alto,
vendo que ela tinha identificado umas quarenta pessoas e
sublinhado mais de metade. – Não esperávamos tanto, de facto.
– Também inseri as direções que sei, caso vos conviesse. A
verdade é que naquela festa estava meia Madrid, embora a
simplória da minha cunhada não conhecesse quase ninguém. Não
percebo aquela mulher, a sério. – Deixei-a falar enquanto ia lendo
os nomes, um por um. – Aos anos que vai a estes sítios e não sabe
nada. Cumprimentamos e vamo-nos embora, disse-me ao entrar, e
eu estive quase para lhe responder que não, embora depois tenha
pensado, olha, é melhor assim, ela que se vá embora e eu circulo
como me apetece, mais à vontade…
De repente, deixou de falar, e eu nem sequer me dei conta disso.
– O que tens, Rafa?
Ouvi a pergunta e não reagi, como se nunca tivesse respondido
por esse nome.
– Rafa! – A Geni assustou-se. – Ficaste branco…
– Não é nada – acabei por responder. – Bom, de facto é… Está
aqui um nome… Amparo Priego Martínez.
– Martínez? – Ergueu muito as sobrancelhas. – Não sabia o seu
segundo apelido.
– Eu sim. Eu… – Alarguei o nó da gravata, limpei a testa com a
mão, apesar de não estar a suar, percebi que não poderia ter sido
de outra maneira. – A família dela tinha muitas ligações com a
Alemanha, claro, e ela estudou no Colégio Alemão… – recapitulei,
mais para mim do que para a Geni, antes de a olhar novamente. –
Conhecemo-nos desde crianças, os nossos avós eram vizinhos.
– Bom… e que mais?
– Muito mais – reconheci –, mas o que interessa… A Amparo é
amiga da Clarita?
– Sim. Bom, vamos lá ver… Amiga íntima não sei se é, mas de
que a conhece tenho a certeza.
Foi assim que soube que um grupo de senhoras de Madrid, entre
as quais se contavam várias dirigentes da Secção Feminina, tinha o
hábito de ir à missa aos domingos na igreja de Santa Bárbara.
– Não sei se vou dar-te uma alegria ou um desgosto, mas… – A
María Eugenia León inclinou a cabeça para olhar para mim de lado,
como se assim conseguisse descobrir o que eu não lhe quisera
contar. – A Amparo não costuma faltar.

22
Me vale madres: estou-me nas tintas. (N. da T.)
23
Chamaquito: menino, rapazinho. (N. da T.)
24
Ya no chinges: para de chatear. (N. da T.)
BERLIM, 24 DE FEVEREIRO DE 1947

Quando passou pela porta da sua última prisão, o homem


libertado como Alfonso Navarro López encostou-se à fachada,
fechou os olhos e respirou fundo. Depois de passar quase dois anos
em celas a abarrotar de homens sujos, a dormir com as pernas
encolhidas, esticando-as apenas num pátio tão sobrelotado que não
lhe permitia ver os muros, o espaço aberto enjoou-o. Um grupo de
berlinenses que esperava pelo autocarro viu-o vomitar os sapatos
sem lhe prestar muita atenção.
Havia passado quase um ano desde que um oficial russo que
falava espanhol lhe participara que iria transferir o seu processo
para um tribunal britânico ou norte-americano, mas o julgamento
nunca chegou a efetuar-se. Até outubro de 1946, os processos de
Nuremberga tinham saturado as capacidades da justiça aliada, e só
em novembro o prisioneiro Navarro deixou de estar sob custódia
soviética e foi transferido para uma prisão da zona ocidental, onde,
em vez de um representante da justiça civil ou de um oficial do
Exército aliado, foi recebido por uma funcionária da Cruz Vermelha
Internacional.
– Conhecemos o seu caso, senhor Navarro. – Dirigiu-se-lhe em
inglês, amavelmente, num tom quase maternal que o reconfortou,
antes de o soldado que servia de intérprete lhe revelar a ameaça
contida nas suas palavras. – O senhor é cidadão de um país neutro
no conflito e estamos dispostos a tratar do seu repatriamento.
– Bah! Pois… – Essa possibilidade nem sequer lhe tinha
passado pela cabeça. – Não sei se quero voltar ao meu país.
Ao ouvir a resposta, aquela mulher de pele transparente e cabelo
avermelhado, inglesa decerto, provavelmente irlandesa, olhou para
ele com uma expressão de espanto infinito, porém o prisioneiro não
se alterou. Não estava disposto a voltar para Espanha como Alfonso
Navarro López. Para aceitar a oferta, teria de recuperar primeiro a
sua identidade e não conhecia maneira de a reaver que não o
levasse diretamente à desgraça. Até àquele momento, nem sequer
parara para pensar que teria de pagar algum preço por ter matado
outro homem para salvar a vida. Adrián Gallardo Ortega nunca fora
muito inteligente.
Na zona soviética, não teve contactos diretos com a Cruz
Vermelha. Sabia que outros presos enviavam e recebiam cartas
através dessa organização, mas ele não escreveu nenhuma. Nos
primeiros tempos, tinha medo de as receber porque, embora
Navarro tivesse enviuvado antes de ir para a Rússia, era provável
que tivesse irmãos, sobrinhos, amigos que teriam perguntado por
ele e ficado aliviados por saber que não tinha morrido, mas quando
os meses foram passando e ele se habituou a não ouvir o seu
apelido durante a distribuição do correio, começou a sentir-se fora
de perigo. Não foi capaz de imaginar um perigo maior até que a
oferta da Cruz Vermelha fez disparar a sua imaginação, pondo-o
diante de uma notícia curta num jornal, outro herói espanhol volta
para casa, de uma desconhecida que esperava por ele num cais
com um ramo de flores e de sorrisos a desfazerem-se velozmente
nos lábios de um grupo de falangistas de uniforme.
– Diga-lhe que preciso de pensar nisso – pediu ao intérprete, que
logo a seguir ia surpreendê-lo tanto como ele surpreendera a
interlocutora.
– Mrs. O’Brien supõe que o senhor seja católico. – O prisioneiro
assentiu com a cabeça. – Pergunta-lhe se quer um confessor.
O padre Schulze era originário da Suíça. Tinham-no escolhido
porque falava um pouco de italiano, mas Adrián falou-lhe em alemão
e manipulou-o muito melhor do que à irlandesa porque estava muito
habituado a confessar-se e aprendera, desde criança, a inventar
pecados. Sem mover um músculo, o sacerdote ouviu-o dizer que,
durante a guerra de Espanha, tinha matado muitos vermelhos e
antes de lhe dar a absolvição minimizou os crimes cometidos em
nome de Deus. Assim, em conversas sucessivas, ele próprio foi
dando pistas para construir um argumento plausível sobre o qual
apoiar a sua recusa. O padre Schulze contou a Mrs. O’Brien que
Alfonso não queria voltar para Espanha porque tivera
responsabilidades na repressão da sua aldeia, ordenando o
fuzilamento de pessoas da própria família. O espanhol contara-lhe,
além disso, que tivera uma namorada em Berlim durante os últimos
meses da guerra e que preferia ficar com ela a regressar ao seu
país. A representante da Cruz Vermelha tinha tanto trabalho que
não voltou a insistir.
Pouco depois de lhe comunicar que não era obrigado a deixar a
Alemanha, Schulze informou-o de que também não passaria por
nenhum tribunal. Não voltaram a ver-se até que, nas vésperas da
libertação, o prisioneiro pediu uma última confissão. As suas
necessidades espirituais eram insignificantes quando comparadas
com as materiais, mas o sacerdote não o ajudou muito. Indicou-lhe
uma cantina de beneficência mantida pelo Exército de Salvação
norte-americano e duas paróquias católicas, muito mais
recomendáveis para a saúde da sua alma, onde talvez o pudessem
ajudar a subsistir e, com sorte, arranjar-lhe algum trabalho, apesar
de o ter avisado de que metade dos habitantes da cidade passava
os dias a vaguear pelas ruas à procura de emprego ou de comida.
No entanto, depois de vomitar nos sapatos, Adrián Gallardo Ortega
percorreu Berlim até chegar a Schöneberg. Antes de entrar na
Winterfeldstrasse, sentou-se nos escombros de um edifício
bombardeado para comer o pãozinho que lhe haviam dado ao sair
da prisão. Depois enfrentou um futuro tão negro, tão duro como o
único alimento que comeria nesse dia.
– Bom dia, minha senhora, uma pergunta… – A mulher que
abordou à entrada era a célebre Roswitha, mas ele não sabia. – A
Agneta Müller vive aqui?
– A Agneta – repetiu ela, sorrindo. – Claro, mas agora é Frau
Grunwald. Casou-se no ano passado, o marido deve estar quase a
chegar porque regressa do trabalho mais ou menos a esta hora.
A 30 de abril de 1945, Agneta escondeu Jan num quarto de
arrumos, um pequeno aposento a que se acedia através do pátio.
De seguida, subiu até ao segundo andar, abriu a porta com a sua
chave e penetrou num silêncio tão absoluto que o ruído dos próprios
passos a assustou. Instantes depois estava nos braços do pai, que
lhe beijava as faces, o cabelo, a testa, murmurando o nome dela
num fio de voz angustiado, próximo do pranto. Beate, que
envelhecera uma década em cinco dias, recebeu-a com muitos
beijos e nenhuma censura. Nessa noite, os três jantaram couve
cozida e um pouco de pão. Assustado, Rudi cedeu o seu pedaço a
Agneta ante a velocidade com que ela havia comido o seu, quando,
na realidade, o tinha guardado num bolso para Jan.
Às seis menos um quarto da manhã, Agneta já estava acordada,
mas não ouviu a tosse do pai. Herr Müller tinha deixado de tossir,
todavia saiu de casa para ir trabalhar à hora do costume, como se
aquele não fosse o último dia de vida do Terceiro Reich em Berlim.
A 3 de maio, os ocupantes soviéticos encontraram-no no seu posto,
sentado na portaria de um edifício deserto havia quase uma
semana. Não precisaram de lhe fazer muitas perguntas para
perceber que estavam diante de um dissidente, de um daqueles
maus alemães que os nazis se gabavam de ter apagado da face da
Terra. Assim, Rudolf Müller transformou-se num dos homens mais
poderosos de Schöneberg.
– Bom dia, ratinha. – E voltou a entrar no quarto da filha às nove
menos um quarto, todas as manhãs.
– Bom dia, papá – A 8 de maio, um dia depois da capitulação,
Agneta armou-se de coragem. – Gosto muito de ti, sabias? E tu…
Tu também terás de gostar muito de mim porque estou com um
problema muito grande e não conto com mais ninguém.
Rudi foi muito compreensivo e só impôs uma condição. Agneta
garantiu-lhe que o rapaz que tinha escondido era um mero soldado,
sem responsabilidades criminais, e não mentiu, porque nunca ouvira
falar de Klooga. À tarde, quando Herr Müller voltou do trabalho,
encontrou Jan Schmitt sentado junto à cama matrimonial, à
conversa com a mulher. Beate pôs-se do lado dele e de Agneta
desde o primeiro momento porque ajudar aquele fugitivo era a sua
última oportunidade de trabalhar para o Reich, para aquele mundo
que tanto amara antes de a história o engolir. Jan, consciente do
seu apoio, jogou as suas cartas com sabedoria e prudência, embora
nunca tenha conseguido despertar a mesma simpatia no marido.
Durante vários meses, o namorado de Agneta comportou-se
como o mais trabalhador, responsável e amoroso dos homens.
Apesar de não ser muito habilidoso, tratou por iniciativa própria de
todos os consertos domésticos que a guerra fora deixando
pendentes, e ligou fios, arranjou candeeiros, reparou móveis, pintou
a casa toda antes do fim de 1945. Os resultados de tanto esforço
foram bastante atamancados, mas a sua boa disposição e a
vontade de trabalhar por conta própria granjearam-lhe uma pequena
clientela no bairro, embora todos tivessem consciência de que, mais
cedo ou mais tarde, teria de encontrar um trabalho mais sério.
Durante alguns meses, procurou-o em vão, escondendo à
namorada e aos pais dela que se apresentava em todo o lado como
indocumentado para que ninguém pudesse anotar o número do seu
passaporte argentino, o único que usava depois de ter deixado cair
o belga na fogueira onde o amigo Adrián queimaria a sua identidade
no dia seguinte. Mais tarde, na primavera de 1946, teve um golpe de
sorte.
– Ajuda-me, papá, e não volto a pedir-te mais nada, prometo-te.
Tenho uma oportunidade para ser feliz e depende de ti. Se me
amas, não ma negues.
– Mas o que estás a pedir-me é um delito, ratinha, eu não
posso…
Uma daquelas discussões terminou de forma abrupta quando
Agneta agarrou numa cadeira da cozinha e a levou para o quarto.
Rudi seguiu-a, viu-a empoleirar-se nela para chegar à mala que
estava em cima do armário e, antes que a filha começasse a enchê-
la, capitulou. Ao jantar, perguntou a Jan qual era o segundo apelido
do pai. E no dia seguinte, no escritório, preencheu e carimbou uma
certidão que transformou Jan Schmitt em Johannes Grunwald,
nascido em Schöneberg, com domicílio em Schöneberg, mais
concretamente no apartamento de Roswitha, que acedeu de bom
grado acolhê-lo durante algumas semanas, não fosse haver uma
qualquer inspeção.
Com esse documento, Johannes Grunwald pôde concorrer a
uma das vagas de polícia municipal, disponibilizadas pela Câmara
de Schöneberg, e às quais só se podiam candidatar os cidadãos
nascidos e residentes nesse distrito. Conseguiu o lugar sem
dificuldades, graças à amizade entre o pai da namorada e os
ocupantes. Assim, Jan Schmitt de Wandaleer conseguiu muito mais
do que um bom trabalho. Sem que nenhuma das pessoas com
quem se relacionou em Berlim chegasse a saber que era um
criminoso de guerra, o seu rasto perdeu-se definitivamente no
primeiro dia em que foi fardado patrulhar as ruas do bairro. A partir
daí, tudo lembrava o final feliz de um conto de fadas. Johannes e
Agneta casaram-se em junho de 1946. Teriam gostado de se
instalar numa casa própria, mas o estado de Beate e o valor das
rendas convenceram-nos de que era mais conveniente continuarem
em casa dos Müller. Ali nasceu Rudolf, o primeiro filho do casal, em
fevereiro de 1947, nove dias antes de o preso documentado como
Alfonso Navarro López ser posto em liberdade.
– Ave Maria Puríssima.
– Sem pecado concebida.
Enquanto o bebé crescia e engordava sem complicações, o
protegido do padre Schulze sobrevivia da caridade dos católicos
berlinenses. No primeiro dia de liberdade, não quis esperar para ver
a cara do marido de Agneta. Nem sequer lhe passou pela cabeça
que Herr Grunwald pudesse viver com um nome tão falso como o
seu, e até se compadeceu do pobre Jan, que tinha tirado a rapariga
daquele buraco da Wilhelmstrasse só para a resguardar até ao
momento de ela se entregar a outro homem. Ela já tem idade para
escolher, viste?, recordou, e pela primeira vez o melhor amigo
pareceu-lhe um pobre imbecil. Enquanto durou o bom tempo
aproximou-se de Schöneberg outras vezes e, num domingo, viu
Agneta, ao longe, à porta de uma igreja protestante. O coração
disparou por instantes, o tempo que os paroquianos demoraram a
dispersar, revelando o carrinho de bebé que ela empurrava. Aquela
imagem angustiou-o tanto que saiu dali a correr, amaldiçoando a
sua sorte e a daquela tonta, que não soubera reconhecer o homem
que lhe convinha, aquele que a teria amado e cuidado até ao fim
dos seus dias.
Pouco depois, chegou o frio e acabaram-se os passeios a
Schöneberg. Para o miserável espanhol que não se separava do
sacristão da catedral de Santa Eduvigis, que o encarregava de
pequenos trabalhos e lhe pagava com alguma comida ou alguns
cêntimos, nada era mais importante naquele inverno do que poupar
calorias. Desnutrido, sujo, sem roupa quente, Adrián tiritava de
manhã à noite e a sua situação era tão penosa que começou a
pensar voltar para Espanha, nem que fosse para ir diretamente para
a cadeia ou para o paredão. Porém, até para isso, precisava de
sobreviver ao inverno, e assim se transformou no mais beato dos
fiéis que frequentavam a catedral. Confessava-se de dois em dois
ou de três em três dias, sempre com um sacerdote diferente, e
deixava-se cair nas horas mortas, ajoelhado num genuflexório, para
descansar e poupar energias. À noite, o sacristão fingia que não o
via e quase sempre o deixava dormir na igreja. Perto do Natal, só
saía da catedral à hora do almoço para se pôr na fila da cantina do
Exército de Salvação, que, apesar de protestante, era a melhor de
Berlim. E ali, a 23 de dezembro, julgou que tinha morrido sem se dar
conta porque a voz que ouvia só lhe podia chegar do outro mundo.
– Tigre! Mas… és tu? – Um polícia municipal fardado gritava-lhe
do passeio contrário. – És tu, Tigre?
Quando se preparava para responder, caiu ao chão. Ao voltar a
si, continuou a ouvir a mesma voz e conseguiu ver a cara de Jan
sob a viseira de um chapéu.
– Olha para mim, Tigre, calma… Já está, já passou, viste? É
verdade, encontrei-te, flaco, incrível…
MADRID, 7 DE JUNHO DE 1947

Fomos andando, e nenhum dos dois abriu a boca até deixarmos


para trás o largo de San Bernardo.
– E se, ao ver-me, decidir recusar?
Não havia detetado nele qualquer receio até o ter lido na curva
das suas sobrancelhas, na medida exata em que o sobrolho se
franziu no momento em que olhou para mim.
– Não o fará.
– Tu cá tens muita certeza…
O sorriso dele revelou-me que não interpretara bem. O Manolo
não estava assustado, mas nervoso. Tinha motivos para isso, porém
enganava-se ao incluir a Amparo entre eles. Eu estava certo disso
porque havia três meses que tomava as minhas próprias decisões.
Na segunda-feira, 31 de março, voltei ao meu bairro depois de
oito anos de ausência. Quando lhe impus aquele encontro,
enquanto contornávamos a igreja de Santa Bárbara com uma
escolta de palmas e de incenso, não imaginava que pisar
novamente aquelas ruas, reconhecer as fachadas dos prédios, as
montras das lojas pudesse afetar-me tanto, mas a nova casa da
Amparo ficava nas imediações da antiga, numa rua paralela à
Hermosilla, e a cada passo que dei na sua direção, recordei os
meus avós, os meus pais, o meu filho. Aquela embriaguez de
lembranças acelerou-me o ritmo do coração e obrigou-me a
interrogar-me, uma vez mais, sobre a razão por que me decidira a
escolher aquele caminho, no entanto, chegado à porta do terceiro
direito do número 45 da calle Ayala, voltei a concluir que não havia
outro melhor, nem mais fácil, e o que se passou de seguida
confirmou todos os meus prognósticos.
– Que pontual!
Tinha apostado comigo que a Amparo se arranjaria para me
receber e acertei. Estava com um vestido aparentemente recatado,
que lhe escondia as pernas um dedo abaixo do joelho, embora lhe
cingisse muito mais o corpo do que aconselhava a moda da época
porque era um ou dois números abaixo daquele que o decoro de
qualquer empregada de loja lhe teria recomendado. Tinha escolhido
uns sapatos de salto alto e não prendera o cabelo, nem sequer com
uma fita, para que, pintado de louro, lhe caísse sobre a metade
direita do rosto com a espontaneidade disciplinada de uma vampira
de Hollywood. Levou-o devagar, com os dedos, atrás da orelha e
convidou-me a entrar num apartamento em que tudo, a distribuição,
as dimensões da sala, os móveis de don Fermín, me era familiar.
– Bem, então… – Apontou para um sofá e sentou-se à minha
frente numa poltrona cuja altura lhe permitiu cruzar as pernas,
mostrando-me mais do que os joelhos. – Quero saber o que de tão
importante temos para falar.
Tinha calculado que estaria sozinha e voltei a acertar. O pânico
que lhe alterara o rosto no dia anterior, quando falei com o menino,
convenceu-me de que, se dependesse dela, nunca mais o veria.
Essa atitude era uma das garantias do sucesso do meu plano, uma
hostilidade que não me magoava porque o meu filho tinha crescido
longe de mim, fora da minha vida, e eu não teria podido fazer nada
para o recuperar mesmo que o tivesse querido. Contudo, ao verificar
que não aparecia nenhuma criada para me perguntar o que
desejava beber, percebi que também tinha dado a tarde à
criadagem. Ela tinha passado por cima dessa formalidade porque,
apesar do aparente desdém com que acabava de se dirigir a mim,
estava certa de ter interpretado corretamente os meus objetivos.
Tudo isso me agradou, até me dar conta de que a minha língua
decidira, por iniciativa própria, acariciar muito lentamente a
extremidade dos meus dentes.
– Não me ofereces nada? – Contrariar-lhe as expectativas
importava menos do que prolongar as minhas. – Agora que te
transformaste numa virtuosa senhora católica, oferecer um copo a
um vencido deve contar como obra de caridade.
– Claro, claro, desculpa-me. – Sorriu antes de se levantar. – É
que estou sozinha. – E o sorriso transformou-se num risinho. – O
que queres?
Não chegou a demorar dez minutos a preparar duas bebidas
idênticas, mas isso bastou para que o tempo se distorcesse, para
que se espremesse como se tivesse enlouquecido e, embora eu
nunca houvesse perdido a noção do que fora lá fazer, apreciei tanto
cada um dos equívocos e a malevolência dos duplos sentidos
quanto a forma como a Amparo se exibia, inclinando-se à minha
frente mais do que seria necessário para pousar um copo na mesa e
dotando cada um dos seus movimentos de uma lentidão reveladora
de que estava mais excitada do que eu.
– Anda. – Antes que ela voltasse para a poltrona, pus a mão no
espaço livre no sofá. – Senta-te aqui, ao meu lado.
– É uma ordem?
– Não, apenas uma sugestão. – Nesse momento, abri a pasta
em que ela nem tinha reparado e tirei um envelope castanho que
pousei sobre a mesa. – Quero mostrar-te umas fotografias e assim
ficaremos mais confortáveis.
A 20 de janeiro, quando encontrei o nome dela naquela lista
deambulei sem rumo durante quase uma hora. Não sabia o que
fazer nem para onde ir, pelo que acabei no número 24 da calle
Españoleto, interrompendo um jogo de xadrez que para a María
Aránzazu já estava perdido. O Manolo apercebeu-se de que tinha
acontecido alguma coisa, mas a sua adversária, que farejava a
diversão, não nos deixou sozinhos um segundo. Recusei o convite
para jantar e fui para casa, à espera de que o meu amigo soubesse
o que tinha de fazer.
Haviam passado quase oito anos desde que guardara numa
pasta de couro a lembrança do tempo que vivi com a Amparo. Tinha
a certeza de o ter feito, mas, enquanto perdia o meu tempo em casa
da María Aránzazu, comecei a duvidar. O que a Experta batizara
como baú das coisas caras estava arrumado havia anos no buraco
que a dona Benigna tinha descrito pomposamente como quarto de
arrumos quando me mostrou o apartamento. Depois de me instalar,
esvaziara-o muito depressa para comprar os móveis, salvando
apenas alguns objetos que estavam à vista e a uso, como o meu
velho relógio de xadrez. A cunhada da porteira, que me limpava a
casa todas as terças-feiras, usava esse baú como superfície para
amontoar coisas. Até essa noite, nunca imaginei que fossem tantas,
mas depois de o libertar de vários alguidares, uma tábua de lavar,
uma caixa de cartão cheia de trapos, várias lâmpadas de
substituição, material de limpeza, dois cobertores e outros tantos
candeeiros estragados, levantei-o em peso e levei-o para o quarto.
As fechaduras não estavam trancadas e à primeira vista parecia
vazio, mas na parte superior da metade direita via-se um corte no
forro cetim. Meti a mão, encontrei a pasta sem dificuldade e
esvaziei-a sobre a minha cama. A primeira coisa que apareceu foi o
meu diploma, que não me lembrava de ter guardado ali. Depois,
tornei a ver o meu cartão do sindicato, a fotografia onde posei com
Bethune para a capa de El Heraldo, o cartão da Esquerda
Republicana do comissário Medina e, finalmente, um envelope
branco com o meu nome, cuja origem já não recordava. Lá havia
quatro documentos: um livro de família emitido em nome de
Guillermo García Medina e de Amparo Priego Martínez; a certidão
de nascimento de um filho varão, legítimo, chamado Guillermo
García Priego; a fotografia do nosso casamento; e uma pequena
folha de papel onde se liam algumas palavras – «Madrid, 28 de
março de 1939. Sinto muito, Guillermo. Eu não queria» – que
terminavam um borrão de tinta preta.
– É bom ou mau?
No dia seguinte, ao sair do trabalho, Manolo estava à minha
espera à entrada de La Meridiana.
– É complicado. Pode ser bom ou… – Antes de completar a
frase, compreendi que ele estava à margem de qualquer
consequência negativa. – Para ti é bom, acho eu.
Sempre que ele me vinha buscar, íamos a pé para casa, mas,
naquela tarde, parou o primeiro táxi livre que descia a calle Alcalá.
Isso significava que estava nervoso e decidi poupar-lhe o
sofrimento.
– A lista de convidados que a Geni me deu, lembras-te… – Fez
um gesto com o queixo, apontando para o taxista, olhou para mim,
assentiu com a cabeça. – Bom, entre os presentes na festa estava a
Amparo.
– A Amparo? – Voltou-se para mim tão violentamente como se
aquele nome fosse uma corda capaz de lhe puxar a cabeça. – A
neta do vizinho do teu avô?
– Essa mesma – confirmei –, minha amiga de infância.
A notícia deixou-o sem vontade de falar e, quando saímos do
táxi, quase conseguia ver as engrenagens do seu cérebro a girarem
numa direção e na contrária, como se quisessem que lhe saísse
fumo pelas orelhas.
– A Amparo – disse aquele nome como se precisasse de o ouvir.
– Mas tu achas…?
A dona Benigna espreitou para nos desejar boa tarde, Manolo
elogiou com veemência a sua belíssima filha mais nova, como fazia
sempre que a via para que ela não nos tomasse por um casal de
homossexuais, e só terminou a pergunta quando entrámos em
minha casa.
– Tu achas que ela quererá ajudar-nos?
– Voluntariamente não – respondi. – Mas, se calhar, não está em
condições de fazer o que quer.
Entreguei-lhe o envelope, sentei-me diante dele para observar a
sua reação, e assisti à trajetória caprichosa do sangue, que o
abandonou repentinamente, regressando-lhe depois velozmente à
cabeça e tingindo-lhe as faces.
– Nunca pensei que te tivesse ocorrido guardar tudo isto.
– Bom, o filho é meu e sê-lo-á toda a vida. Foi por isso que o
guardei, porque talvez um dia… – Não me atrevi a continuar. – A
vida é muito longa.
– Tão longa… – O Manolo olhou para mim e desatou a rir. –
Caraças, coitada da Amparo.
Nessa altura, ri-me também, mas não muito, o suficiente para
fazer a pergunta que me atormentava desde que tinha lido aquele
nome sublinhado a vermelho.
– Sim, mas… É um pouco escabroso, não achas?
– Bastante – anuiu ele com a cabeça e uma expressão ainda
risonha. – Mas também é ótimo, Guillermo. – Só me chamava pelo
meu verdadeiro nome nos momentos importantes. – Ótimo. Não
vamos encontrar nada melhor.
E não saímos dali até a Meg, em mexicano puro, pôr os pontos
nos ii.
– Ah, ya no chinguen com o cavalheirismo! Nem que fossem
gachupines. Pensa bem, Rafaelito. A poco no te fregó?25
– Fala-me em língua de gente, Meg, que hoje não estou para
interpretações.
Eu simpatizava muito com a gringa louca, como ela própria se
definia. Gostava do modo como falava e se ria, da precisão
metódica das suas bebedeiras e das rancheiras que cantava com
muito sentimento, desafinando um pouco mais a cada estrofe.
Gostava da paixão que punha em todas as coisas e ainda mais do
equilíbrio com que conseguia manter a cabeça fria enquanto se
deixava arrastar pelo torvelinho dos seus fervores. Não a
compreendia muito bem, mas isso era o menos porque ela gostava
muito do Manolo, o Manolo gostava muito dela, e ambos
conseguiam ser felizes à sua maneira estrambólica, enquanto nos
tentávamos equilibrar na corda bamba. Havia tantos anos que a
felicidade estava ausente da minha vida que a alegria deles me
banhava como o reflexo indireto de uma luz dourada, alheia, mas
suficientemente forte para iluminar um pedacinho de chão em volta
dos meus pés, livrando-os das trevas por onde antes avançavam às
cegas. Por isso, tentava não me afastar muito deles, cultivando uma
proximidade que me dava calor, um bem tão precioso como o riso
que aquela companhia me devolveu depois de demasiados anos de
ausência. Nunca tinha contado a minha vida à Meg, mas não me
ofendi quando descobri que o Manolo o havia feito por mim.
Compreendi a tempo que os três formávamos uma equipa que só
seria eficaz se não houvesse segredos. Graças a essa regra nunca
dita, a Meg Williams arrasou todas as minhas dúvidas de uma
penada.
Naquela tarde, aprendi que no México fregar queria dizer lixar e,
evidentemente, a Amparo tinha-me lixado. Não só por ter levado o
meu filho, mas porque enquanto eu a protegia, enquanto a acolhia e
alimentava, ela me atraiçoava com os homens que assaltaram o
cofre da minha casa. Se o Manolo não me tivesse proporcionado a
tempo outra identidade, aquela traição poderia ter-me levado ao
paredão, porque a Meg estava convencida de que os amigos da
Amparo me tinham denunciado, com ou sem a sua aprovação. Eu
nunca teria contado a minha história naqueles moldes, no entanto,
ouvindo-a, aquela descrição pareceu-me muito mais consistente do
que a minha e instilou-me a dose adequada de rancor para
processar a segunda parte do seu discurso. Não devia apoquentar-
me porque usar aqueles documentos nunca seria chantagem, uma
vez que não pedíamos dinheiro em troca. Seria mais correto
chamar-lhe uma troca de favores, e o favor que pedíamos era muito
simples e, sobretudo, completamente inócuo. Se as coisas não
corressem bem, ninguém poderia acusar a Amparo de ter posto o
amigo de um amigo em contacto com alguém que o poderia ajudar,
porque as referências de quem o tinha recomendado eram
irrepreensíveis.
– Disso encarrego-me eu – concluiu. – Tu limita-te a lembrar-te
de que o Franco não fuzila com cavalheirismo.
Não me esqueci disso no Domingo de Ramos e menos ainda no
dia seguinte, quando ela se sentou no sofá ao meu lado.
– Que é isto? – Enquanto abria o envelope, exibia a mesma
expressão pícara e ansiosa, expectante e travessa, com que havia
criado as regras do jogo que jogámos durante tanto tempo. – Uma
surpresa?
– Não propriamente.
Depois de me recordar que o Franco não era um cavalheiro, a
Meg tinha levado os documentos, devolvendo-mos passados quinze
dias no mesmo envelope que levei para casa da Amparo. As
fotografias, precisas e nítidas, perfeitas, eram doze. Antes que lhe
perguntasse para que queríamos tantas, a Meg explicou-me que o
primeiro impulso da Amparo seria com certeza rasgá-las, e que
tinha encomendado um conjunto extra para o caso das negociações
se prolongarem. O terceiro conjunto era para mim porque, se tudo
corresse bem, os documentos originais seriam o preço da operação.
Nesse ponto, a Meg estava disposta a transigir com o meu
cavalheirismo.
A Amparo foi tirando as fotografias do envelope, uma por uma,
pela ordem em que previamente eu as tinha disposto. A primeira era
a menos perigosa, mas bastou-lhe ver a sua letra num papel para
perder a alegria e o rosto lhe murchar como uma flor cortada que,
num instante, perde todas as pétalas. Não quis olhar para mim.
Pousou a fotografia na mesa com muito cuidado e, uma por uma,
tirou a do nosso casamento, a primeira folha do livro de família e,
finalmente, a certidão de nascimento do seu filho, do meu filho, com
o nome e apelidos com que o registei no Registo Civil.
– Não esperava isto de ti, Guillermo.
Haviam passado mais de dois meses desde que lera o nome
dela na lista da Geni. Durante esse período, dediquei muito tempo a
imaginar como reagiria, e ela não me defraudou. Não desatou a
chorar, não perdeu o controlo, não guinchou, não suplicou, não me
bateu, não me ameaçou. Qualquer uma dessas reações ter-me-ia
dificultado as coisas, mas a soberba dos seus apelidos prevaleceu
sobre tudo. A raiva congelava-lhe o rosto e diminuía-lhe a
velocidade dos movimentos quando ela pegou nas fotografias, as
juntou com muito cuidado e as rasgou em quatro pedaços, dirigindo-
me um olhar desafiador, tão altivo e, ao mesmo tempo, tão
incongruente com a sua posição, que soltei uma gargalhada.
– De que te ris, cabrão? – Levantou-se de um salto, contornou a
mesa e olhou-me de frente.
– Eram cópias, Amparo, tenho mais. – Ela procurou uma
resposta que não encontrou, respirando ruidosamente, as asas do
nariz a palpitar como as engrenagens de uma locomotiva. –
Também não pretendo chantagear-te, se é isso que pensas. Só
quero pedir-te um favor que, evidentemente, tens o direito de
recusar.
Ela continuava de pé, indecisa entre a primeira reação e a frágil
garantia que eu lhe tinha acabado de oferecer. A sua passividade
iluminou-me, inspirando-me uma ideia que a princípio me pareceu
um mau pensamento, mas que a longo prazo acabou por ser um
achado.
– Senta-te, Amparo – porque não demorei muito tempo a
perceber que a minha voz, num tom imperativo, mantinha intacto o
seu poder. – Senta-te e ouve-me.
Não disse mais nada, nem foi preciso. Ela acalmou-se, mas não
se quis sentar ao meu lado. Voltou para a poltrona, cruzou as
pernas, apercebeu-se de que as tinha cruzado, descruzou-as, uniu
os joelhos como se estivesse na missa e ficou a olhar para mim sem
dizer nada.
– Salvei-te a vida uma vez. – Mantive o tom de voz que sempre
deu bom resultado. – Livrei-te de um aperto muito grande e depois
apoiei-te, mantive-te a salvo durante dois anos e meio, alimentei-te,
cuidei de ti…
– E bem que te aproveitaste – interrompeu-me com suavidade,
também no tom de outrora.
– Nem mais nem menos do que tu te aproveitaste de mim. –
Baixou a cabeça e cravou os olhos na bainha do vestido. – Ofereci-
me muitas vezes para te arranjar uma saída, para te acompanhar à
igreja anglicana, para te alojar no meu hospital, e nem quiseste ouvir
falar disso. Ficaste comigo porque te apeteceu. Eu não abusei de ti,
não te explorei, mas no fim tu traíste-me. – Esperei por uma
resposta que não chegou e comecei a apertá-la. – Estou a mentir,
Amparo? O que te estou a dizer não é verdade? Responde-me.
– Não estás a mentir. – A raiva regressou de chofre, endireitou-
lhe a cabeça, incendiou-lhe os olhos. – Não mentes, no entanto…
Eu não podia fazer outra coisa.
– Os teus motivos não me interessam. A questão é que te salvei
a vida e tu traíste-me. Estás em dívida para comigo. Eu não teria
escapatória se os teus amigos me tivessem denunciado, prendido e
fuzilado. Porque tentaram fazê-lo, certo? – Nesse instante, ela
cravou os olhos nos joelhos e abanou a cabeça muito devagar,
como se eu só em parte tivesse razão, como se quisesse afirmar a
sua inocência num assunto sobre o qual, nesse momento, não me
interessava insistir. – Contudo, eu estou aqui, Amparo, estou vivo. E
sabes porquê? Porque um amigo me salvou a vida sem me pedir
nada em troca, exatamente como eu fiz contigo. Agora ele precisa
de ajuda e tu tens a oportunidade de fechar este círculo para que
fiquemos em paz. Nem sequer te peço que o faças em vão. Ainda
não percebo porque não levaste estes papéis quando saíste de
casa. Imagino que o ouro do teu avô brilhava demasiado. A questão
é que os tenho eu e estou disposto a entregar-tos se me ajudares.
Fiz uma pausa que ela não se atreveu a quebrar. No entanto,
preocupou-a o suficiente para que levantasse a cabeça e voltasse a
olhar para mim. A arrogância onde se tinha entrincheirado minutos
antes desvaneceu-se como uma máscara de pó, ao mesmo tempo
que uma palidez repentina, amarelada, lhe cobria o rosto. Um véu
de humidade turvou-lhe os olhos enquanto ela deixava de respirar
pelo nariz e a sua boca aberta contribuía para acentuar a tensão de
um maxilar rígido de inquietação, talvez de receio, até de culpa.
Acendi um cigarro, encostei-me nos almofadões e, levado por
uma sensação contraditória, aparentando uma tranquilidade que
não sentia e dissimulando uma excitação que não era só sexual,
avancei por águas cada vez mais turvas. Em algum lugar indefinido,
que me esforcei por localizar num recanto remoto da minha cabeça,
embora não estivesse muito longe do meu coração, crescia a toda a
pressa, sem ruído, uma tristeza aguçada, capaz de me ferir. Tentei
ignorá-la, desterrá-la para o lugar de onde provinha, mas estava tão
incrustada no meu íntimo que não soube diferenciá-la de mim e
enfrentei o trecho mais delicado do discurso sob uma ameaça
quente e rosada, a lembrança de uma paixão muito parecida com o
amor, a recordação enganadora que nunca fora tão doce nos dias
iniciais ao lado da Amparo, nas noites em que encontrava o seu
corpo entre os meus lençóis. Essa nostalgia ingrata levou-me a
abreviar e escolhi um princípio suficientemente abrupto para
compensar qualquer fraqueza.
– O meu amigo faz parte da lista de procurados dos aliados. Foi
para a Rússia com a Divisão Azul, continuou a combater como
voluntário com as SS, defendeu Berlim e desapareceu. Conseguiu
voltar para Espanha, mas não pode ficar aqui porque o acusam de
crimes contra a Humanidade. O favor que te vou pedir está
relacionado com ele.
– O quê?
As minhas palavras deixaram-na perplexa. Enquanto olhava para
mim com os olhos muito abertos, repentina e completamente secos,
li neles que os cálculos que tivera tempo de fazer eram os opostos.
Tive a sensação de que, apesar de tudo, continuava à espera de
que eu lhe pedisse dinheiro ou então um aval, uma recomendação,
que intercedesse em favor de outro tipo de fugitivo, um evadido, um
preso, um vermelho espanhol condenado à morte, qualquer um dos
meus camaradas. Já contava com isso. Em 1947, o tráfico de
favores destinados a arrancar um condenado às garras da morte era
ainda muito intenso e competia com a fome na primazia das visitas
inesperadas. Porém, o motivo da minha era tão inverosímil que
acabou num temor difícil de gerir.
– Achas que acredito…? Não me enganes, Guillermo.
Conhecemo-nos há uma vida. É impossível que tenhas alguma
coisa que ver com isso, e eu…
– Não percebeste nada, Amparo. – Impus-me com firmeza às
suas hesitações. – Isto não é uma visita de cortesia. Não te fiz
perguntas e não estou disposto a responder às tuas. As razões que
eu possa ter não te dizem respeito. A única coisa que te diz respeito
é a minha oferta. – Apaguei o cigarro com muito cuidado, inspirei
profundamente e preparei-me para dizer um nome próprio como se
não tivesse importância. – Arranja-me um encontro com a Clarita
Stauffer. Apresenta-lhe o meu amigo e não te peço mais nada. Não
te será difícil porque, quando o momento chegar, ela já saberá quem
ele é e estará disposta a ajudá-lo. Faz-me esse favor e
desaparecerei da tua vida. Nunca conseguirão provar que estavas
em Madrid durante a guerra, a foder comigo como uma desvairada.
Ninguém investigará a simpatia que nutriam por ti no Instituto de
Transfusões da calle Príncipe de Vergara. Ninguém verá a fotografia
do nosso casamento, como estavas contente nesse dia, o ramo que
levavas nas mãos. Ninguém poderá dizer ao teu filho quem é o pai
porque todas as provas, todos os documentos originais serão teus
no instante em que sairmos da casa da Stauffer. E nessa altura
poderás, efetivamente, rasgá-los. De uma vez para sempre.
Antes de me calar, apercebi-me de que não seria fácil. A oferta
era boa, porém os termos não a convenciam. Isso também não me
surpreendeu.
– Aquela gente… – Desviou os olhos dos meus, devolveu-os à
saia. – Aqueles alemães… – Só depois de o dizer voltou a olhar
para mim. – São perigosos. Ninguém sabe ao certo o que fazem
aqui, mas parecem desesperados, dispostos a tudo e… Já
aconteceram coisas estranhas. Não me agrada.
– Imagino. – Sorri pela primeira vez em muitos minutos. – Mas
eu também sou um perigo para ti, Amparo. Imagina o que
aconteceria se alguém do teu círculo encontrasse estes papéis. Não
te perguntaste como consegui saber que ontem irias à missa em
Santa Bárbara? Eu já não sou o Guillermo García Medina. Tenho
outra vida, outros contactos. E outros interesses.
– Tu nunca farias uma coisa dessas. – Inclinou-se e esboçou um
sorriso como os de outrora, doce e pleno, confiante. – Nunca me
farias mal.
– Tens a certeza? – Correspondi com um olhar tão duro que ela
não se atreveu a responder. – Não me conheces, Amparo, já não.
Conheceste um homem que deixou de existir, alguém que tinha
muito a perder, muitos sonhos pelos quais viver. Agora sou muito
parecido com esses alemães que te assustam tanto porque não
tenho nada, só rancor.
Acabara de dizer a verdade sem o ter decidido de antemão e
uma amargura súbita encheu-me a boca como um veneno. Para o
dissolver, continuei a falar, misturando verdades e mentiras. Contei-
lhe que o Isidro fora fuzilado no verão de 1939, e era verdade.
Contei-lhe que continuava em contacto com a Gloria, e era mentira
porque a Gloria tinha sido fuzilada um mês depois do marido.
Acrescentei que ela guardava ainda uma fotografia do jantar de
despedida dos canadianos onde estávamos os dois muito bonitos,
muito sorridentes, a posar com o punho levantado. Nem sequer
sabia se essa fotografia existiria ainda, mas supunha que ela não se
havia esquecido de que naquela noite levantara o punho para não
destoar e porque estava muito contente, bêbeda que nem um
cacho. Devolvendo os olhos aos joelhos para esconder a expressão
do rosto, comprovei que se lembrava tão bem como eu, e continuei
a mentir. Falei de velhos amigos que não eram o que pareciam. Dos
republicanos que tinham direito a estar cansados de fracassos. Dos
traidores, cujos motivos começara a compreender. Dos elementos
da Quinta Coluna que me tinham ajudado a apagar o rasto da minha
derrota.
– A vida dos perdedores é muito complicada, Amparo – resumi,
já com a língua suja e o cérebro embotado de mentiras. – Vocês,
vencedores, não fazem ideia. Não te posso contar mais, mas terias
muitas surpresas, acredita. Fiz-te uma boa oferta, vale a pena
pensares nela. Voltarei depois de amanhã à mesma hora, para
saber o que decidiste.
Levantei-me, olhei-a, e ela respondeu-me com um olhar
demorado, tão lento e carregado de sentido como aquele que me
revelara, numa tarde de novembro de 1936, tudo o que aconteceria
entre nós. Não estava preparado para enfrentar aquele olhar manso
e curioso, calculado e calculista, que me desarmou tão
completamente como na primeira vez. Desde que a Amparo me
deixou, sonhei com ela muitas vezes. Procurei o cheiro dela em
todas as mulheres com quem me cruzei. Senti o peso do seu corpo
na leveza de todos os outros que pousaram no meu. Cheguei a
recear que o seu abandono fosse uma maldição, um bruxedo
perverso, um feitiço destinado a submeter-me à vontade dela na sua
ausência, para lá do tempo e do espaço. Porém, nunca me tinha
ocorrido pensar que ela pudesse sentir algo semelhante.
– E vais-te embora, assim, sem mais nem menos? – avançou na
minha direção, cruzou os braços em redor do meu pescoço,
pressionou-o com os polegares para me mostrar que não estava
disposta a deixar-me sair. – Sem uma queca sequer?
Depois, quando consegui voltar a raciocinar, compreendi que
naquele momento a nossa sorte estava lançada e que a missão fora
bem-sucedida, apesar da minha péssima capacidade de análise. A
Amparo não precisava que eu lhe metesse medo porque já o tinha
de sobra. Os argumentos com que tentei intimidá-la eram os
mesmos que ela repetia para consigo diariamente desde que
compreendera que ganhar a guerra não seria um bom negócio para
si. Por isso não se tinha casado. Por isso estava só. Por isso não
me deixou ir embora.
A Amparo sentia muito medo de que alguém descobrisse a
nossa história em comum, no entanto, sentia ainda mais a sua falta.
Desde que me tinha visto à porta da igreja, as suas ideias políticas,
as suas convicções religiosas vergaram-se à lembrança daquela
pele profunda, colada à carne, que eu soubera despir e que ela
depois não se atrevera a revelar a ninguém. Naquela tarde, aprendi
que o desejo dela era tão egoísta como o meu tinha sido em
tempos, que o meu corpo era apenas o instrumento de um processo
que só tinha relação com ela. E, no entanto, Guillermo García
Medina, o antigo, o verdadeiro, era o único homem do mundo que o
conseguia ativar, o único com quem podia ser totalmente sincera e
leal a si própria quanto estava despida numa cama. Depois, mal
consegui raciocinar, identifiquei nela ingredientes que antes não
existiam, um fiapo de desespero, outro de culpa, presos a uma
nostalgia pela liberdade que a envergonhava, porque fazia parte do
saque que os seus haviam cobrado. A nova Amparo não era uma
personagem. A sua lascívia consciente, as suas contradições de
mulher madura tornavam-na ainda mais irresistível do que o cândido
impudor com que outrora se cobria, mas, de tudo o que aconteceu
naquela tarde, nada me afligiu tanto como a evidência renovada de
que, se tinha vindo ao mundo para alguma coisa, era para ir para a
cama com a Amparo Priego Martínez.
Não dei tantos pormenores ao Manolo, mas passados três
meses, enquanto entrávamos na calle Galileo, disse-lhe que não se
preocupasse.
– A Amparo não vai recuar porque sabe que o Adrián és tu.
Ontem disse-lhe que, durante a guerra, trabalhavas como agente
duplo, para a República e para a Quinta Coluna. – O meu amigo
sorriu ao ouvir-me. – E sabes o que ela me respondeu?

Ao saber que a amante de Guillermo tivera sempre a certeza de


que Felipe Ballesteros Sánchez era um elemento da Quinta Coluna,
infiltrado na inteligência republicana, Manuel Arroyo Benítez
tranquilizou-se e a sua concentração atingiu o ponto máximo.
Até esse momento, o único aspeto que o preocupava era a
reação de Amparo. Para tudo o resto, preparara o seu papel com
tanto cuidado como um bom ator que interpreta a personagem mais
importante da sua vida. Por um lado, treinou o alemão para o falar
mal, obrigando-se a cometer sistematicamente os erros mais
comuns dos espanhóis que aprenderam a falar a língua sem a
estudarem. Por outro, empreendeu uma metamorfose física tão
acelerada que os resultados eram quase monstruosos. Um trimestre
de dieta rigorosa, à base de quantidades reduzidas de arroz e de
pão preto, fizeram-no perder quase vinte quilos. A privação de fruta,
verduras e produtos frescos emaciou-lhe a pele e deu-lhe um aspeto
mate e seco, característico dos prisioneiros dos campos. As
caminhadas diárias, longas e extenuantes, pelo passeio onde batia
o sol, completaram uma decadência tão alarmante que o obrigou a
renunciar à confortável hospitalidade de María Aránzazu para evitar
perguntas a que não podia responder.
– Ai, que pena! – Embebedaram-se ambos como manda a lei
antes de se despedirem. – Fico feliz por teres encontrado trabalho,
mas teres de sair de Madrid, agora… Tenho mesmo pouca sorte!
Primeiro o Rafa e agora tu. Como é óbvio, nunca mais me tornarei
amiga de um hóspede.
No início de março, sem outra bagagem que não um pijama e a
roupa que o cobria, o seu fato mais velho e uma camisa branca que
vestiria diariamente, lavando-a com lixívia até conseguir que o
tecido do colarinho começasse a desfiar, Manolo mudou-se para um
sótão minúsculo e sem elevador, na calle Mira el Río Alta. Guillermo
tinha-o pedido emprestado aos amigos comunistas, que acederam
na condição de ele o partilhar com outro clandestino se fosse
necessário. A necessidade não se verificou, e sozinho num quarto
onde não recebia visitas, nem sequer de Meg, foi-se metendo dia a
dia, pouco a pouco, na pele de um homem que, se as coisas
corressem bem, nunca chegaria a conhecer.
No processo contra Kleiber não constava qualquer descrição
conclusiva de Adrián. Um dos companheiros dissera que ele tinha o
cabelo preto, mas outro recordava-o castanho. Estavam todos de
acordo em que era forte, de estatura média e, segundo as
classificações raciais tão populares no Terceiro Reich, um indivíduo
com traços mediterrânicos, tipicamente espanhóis, de cabeça
pequena e redonda e cara quadrada. Manolo tinha analisado
cuidadosamente essas declarações e concluído que não
significavam absolutamente nada. Nos arquivos da Divisão Azul
decerto haveria uma ficha de Adrián a que talvez Meg conseguisse
aceder, mas não convinha chamar a atenção antes do tempo.
Conformou-se em estudar a carreira do Tigre de Treviño na
imprensa desportiva e encontrou dados sobre a sua estatura e o seu
peso, além de algumas fotografias de corpo inteiro onde a cara não
se via muito bem, porque tinha posado sempre de calções e luvas,
como que preparado para combater com a máquina fotográfica.
Gallardo era dois centímetros mais alto do que ele, porém Meg
ofereceu-lhe uns sapatos com um tacão camuflado que
compensava a diferença. Todas as manhãs andava com eles e
nunca os limpou, para que o pó dos dias secos e a lama da chuva
disfarçassem a sua idade e a excelente qualidade do cabedal de
que eram feitos. A questão do nariz foi mais difícil.
– A sério que achas isto imprescindível?
Tinha acabado de se mudar para a calle Mira el Río quando
Guillermo abriu a porta com a sua própria chave e a malinha na
outra mão.
– Diz-me tu. Conheces algum pugilista com o septo nasal
intacto?
Sem dar importância à expressão de terror que se apoderou da
cara do seu paciente, pediu-lhe que se deitasse na cama.
– Não te preocupes porque hoje vou anestesiar-te – prometeu-
lhe, antes de lhe vendar os olhos com um lenço.
– E isto é para quê?
– É porque te vou dar anestesia local. É só um instante, para tão
pouca coisa não vale a pena pôr-te a dormir. E prefiro que não vejas
porque… não ias gostar.
Nunca lhe perguntou como o tinha feito. Foi, de facto, um
instante, e a anestesia funcionou, embora lhe deixasse de herança
uma dor que resistiu teimosamente às aspirinas durante mais dias
do que esperava. As conjeturas de Guillermo, pelo contrário,
cumpriram-se na totalidade. No dia da visita, o septo já tinha
soldado mal e o inchaço havia desaparecido por completo. O nariz
de Adrián Gallardo Ortega parecia estar partido há muitos anos
quando Guillermo o levou até Amparo e à desconhecida que a
acompanhava, como se aquela não o tivesse conhecido com todos
os ossos intactos.
– Muito obrigado por tudo, menina – murmurou aquele que para
ela continuava a chamar-se Felipe, estendendo-lhe a mão e
recebendo em troca um olhar de compaixão tão intenso que
atravessou o seu embuste e chegou a comovê-lo.
– Foste ferido? – Aquela pergunta desconcertou-o até seguir a
trajetória do dedo que lhe apontava para o pé direito.
Tinha incorporado o coxear no último momento. Depois de
passar longas horas a observar-se no espelho sem moldura do
armário, a sua forma encurvada de andar, com o pescoço dobrado e
os ombros projetados para a frente, pareceu-lhe demasiado teatral,
tão excessiva que pensou desistir dela e voltar a andar direito. Ao
testar algumas posturas, verificou que, se arrastasse um pouco o
pé, melhorava muito o efeito, mas nunca lhe passou pela cabeça
que Amparo reparasse mais no pé do que no nariz.
– Não, foi só uma entorse – respondeu –, nada de grave.
– Alegro-me, porque… – E uma piedade sincera voltou a
estremecer-lhe nos olhos. – Parece que já sofreste bastante.
Três semanas antes, o Conselho de Controlo Aliado emitiu uma
nota que alertava para a presença de Adrián Gallardo Ortega em
Espanha. O texto, sucinto e devidamente vago, fora obra da vice-
conselheira de Comércio norte-americana, que tinha acesso direto
às reuniões. Miss Williams declarou ter ficado a par da presença de
Gallardo em Madrid através dos círculos do exílio republicano em
Nova Iorque. Era essa a fonte de um presumível encontro casual
entre um informador anónimo e um criminoso de guerra acusado da
matança de Klooga, um facto suficientemente grave para agir contra
ele. Meg tinha a certeza de que, mal o alerta sobre Gallardo
chegasse ao ministério, alguém agarraria num telefone para
informar Clarita de que os aliados tinham lançado os cães sobre um
novo camarada, ainda assim deixou passar duas semanas antes de
pedir a Rafa que arranjasse um encontro com Stauffer, atribuindo a
rapidez com que o conseguiram ao sucesso das suas diligências.
– Bem-vindo. – A mulher que acompanhava Amparo à entrada
de casa não esperou para ser apresentada, dirigindo-se ao fugitivo
na sua língua materna. – Sou uma boa amiga de Fräulein Stauffer.
Chamo-me Ingrid Weiss.
Manolo nunca tinha ouvido falar dela, mas sorriu,
cumprimentando-a num alemão completamente inepto, com o
sotaque tosco de um saloio em apuros.
– Ai! – Ela riu-se ao ouvi-lo. – Se calhar, é melhor falarmos
espanhol. Melhor meu que tu alemão.
– De certeza. – Manolo também se riu e encolheu um pouco os
ombros enquanto entrava no prédio ao lado dela. – Agradeço-lhe
muito.
Ingrid Weiss não era ninguém, mas representava o principal
obstáculo que o falso Adrián teria de ultrapassar naquela tarde. Ela
e Clara tinham frequentado a mesma escola e eram amigas de
infância. Depois, a vida separou-as, e uma delas voltou para Madrid
pouco antes de os pais da outra ficarem arruinados. Ingrid casara-se
muito nova, sem amor, tinha tido um filho aos vinte anos, havia
enviuvado pouco depois e julgara ter ficado sozinha no mundo
quando o filho morreu na frente Leste. Porém, continuava a ter uma
amiga, que em março de 1945 lhe conseguiu bilhete num dos
últimos voos regulares que ligavam Estugarda a Madrid. Clara
acolheu-a, cuidou dela, deu-lhe trabalho e uma casa confortável
muito perto da sua. Quando a Alemanha perdeu a guerra, Ingrid era
uma convidada habitual e especial no número 14 da calle Galileo.
Lá, onde se sentava à mesa por último depois de ter servido os
outros e se levantava antes de todos para ir à cozinha pedir que
servissem o café, revelou o seu único talento extraordinário.
Detetora infalível de embustes, perigos e imposturas, a sua
capacidade de observação quase inumana e uma desconfiança
feroz consagraram-na como membro único do comité de boas-
vindas da rede Stauffer.
Manolo não o poderia saber, mas conseguiu pressenti-lo, porque
aquela mulher alta, robusta, com uma grossa trança de cabelo mais
grisalho do que louro que lhe contornava a cabeça como um
diadema, não tinha aspeto de pianista, mas também não pintava as
unhas, que usava rentes. Esse pormenor confirmou-lhe que, com as
suas mãos avermelhadas e o ar de camponesa, Frau Weiss nunca
teria encaixado na alta sociedade madrilena, um círculo onde o
acólito de Robles também nunca seria admitido. A lembrança
daquele menino ajudou-o então, como o ajudaria muitas vezes no
futuro. Sem reparar na ironia do destino, Manuel Arroyo pressentiu
que a chave da sua impostura consistiria em comportar-se como o
irmão que mais amava e de quem sempre tinha fugido. O reflexo da
sua humildade e o medo vago, universal, que levava Hermene a
confundir gratidão com servilismo, funcionaram com Ingrid porque
ela não era muito diferente da personagem que acabara de
conhecer.
– Esperar aqui. – Apertou-lhe uma mão e saiu da sala depois de
os convidar a sentar-se.
O falso Adrián preferiu continuar em pé, mas Amparo sentou-se
com tanta naturalidade como se não fosse a primeira vez que
visitava aquela casa. Guillermo sentou-se a seu lado com uma
expressão receosa, mais pendente dela do que da porta por onde
Frau Weiss tinha saído, embora o ruído dos passos que se
aproximavam pelo corredor tenha exigido imediatamente a atenção
dos três.
– Adrián! – O enorme sorriso da dona da casa entrou pela porta
antes dela própria. – Bem-vindo, tínhamos muita vontade de te
conhecer.
A mulher que se lhe dirigiu depois de o cumprimentar com um
plural majestático tinha quarenta e três anos e não aparentava
menos, mesmo que o desporto que praticara na juventude pudesse
ver-se no aspeto compacto de um corpo que, sem deixar de ser
robusto, carecia das curvas, da frouxidão maternal que
caracterizava as mulheres espanholas daquela idade. Não era
bonita. No rosto, o traço mais visível era o tamanho da testa, que
açambarcava quase metade da cara. O nariz era pequeno, mas os
olhos também, e o queixo redondo projetava uma promessa de
papada, que, sem chegar a existir realmente, provocava um enorme
efeito ótico em contrário. Na juventude tinha sido loura, mas com os
anos o cabelo escurecera. Fosco, sem chegar a ser frisado, usava-o
curto, uns dedos abaixo da nuca, escolha que, na Espanha da
época, era quase suficiente para garantir a situação de solteira,
embora, ao conhecê-la, ninguém se tivesse atrevido a chamar-lhe
solteirona, porque era uma mulher muito enérgica, decidida, até
vigorosa nos gestos. A natação quase não lhe alargara os ombros,
naturalmente estreitos, mas manifestava-se no diâmetro de uns
braços grossos, musculosos, tão possantes que o falso Adrián lhes
sentiu a força quando ela lhe apertou a mão. No entanto, reparou ao
mesmo tempo que não era nada masculina. A força, a inteligência
do seu olhar e a simpatia de um sorriso com uma vivacidade
ligeiramente fanática compunham um modelo pouco habitual,
embora, sem qualquer dúvida, feminino. Essa incongruência
inquietou-o, mas o azar que desde sempre acompanhava a sua
sorte não quis entrar com ele naquela sala.
– Eu é que estava ansioso por conhecê-la, minha senhora. –
Reteve-lhe a mão direita na sua, cobrindo-a com a esquerda e
apertando-a, enquanto assentia com a cabeça baixa. – A senhora é
um anjo, digo isto a sério. Se não fosse…
– Nada, nada de anjo. – Clarita cobriu com a sua mão esquerda
a do novo protegido, como se estivessem a brincar, antes de retirar
as duas sem deixar de sorrir. – Sou apenas uma camarada, Adrián.
Entre irmãos, o mais natural é ajudarmo-nos. Portanto, não me
trates por senhora, por favor, e descansa, levanta a cabeça… – O
interlocutor obedeceu. – Assim, muito bem. – Clara pousou-lhe uma
mão no ombro. – Já sei que sofreste muito, basta olhar para ti, mas
aqui estás a salvo. Estás em casa, entre os teus, percebeste?
Nesse momento, Manuel Arroyo Benítez deixou temporariamente
de existir. Sem ter consciência de até que ponto encarnava a
personagem, ergueu os ombros, levantou a cabeça e assentiu com
uma energia destinada a agradar a salvadora. Depois, pegou na
mão pousada no seu ombro e beijou-a.
– Obrigado por tudo, camarada – disse corretamente com o seu
péssimo sotaque alemão, batendo os calcanhares.
– Assim está melhor. – Stauffer sorriu. – E agora, senta-te, por
favor.
Apontou para uma poltrona e voltou-se para o par que se tinha
levantado do sofá ao vê-la chegar.
– Amparo! – Cumprimentou-a com dois beijos e com mais
intimidade do que a que os acompanhantes esperavam. – Desculpa-
me, mas com a emoção… Como estás?
– Bem. – Amparo devolveu-lhe um sorriso muito mais comedido.
– Quero apresentar-te… – Mas a dona da casa não permitiu que
acabasse a frase.
– O senhor deve ser o Rafael, o amigo do Adrián, não é
verdade? – Pegou-lhe nas mãos e apertou-as tanto como o seu
protegido apertara antes as suas. – Muito obrigada. Sem a sua
ajuda, não teríamos conseguido salvá-lo.
– Por favor, o mérito não é meu. Eu…
Cinco dias antes, Manolo tinha saído do sótão do Rastro e
alugado um quarto numa pensão reles da calle Espoz e Mina, onde
Rafael Cuesta Sánchez pagara uma semana adiantada. Desde
então, não tinha voltado a ver Meg, mas encontrava-se com
Guillermo todas as tardes para aperfeiçoar a história que contariam
a Clarita. Em princípio, o narrador seria o falso Adrián, porém o falso
Rafael aproveitou a gratidão da anfitriã para começar a narrativa, e
correu tudo bem.
Depois de investigar a fundo os testemunhos dos evadidos que
atravessavam clandestinamente os Pirenéus, Meg propôs que
Adrián Gallardo tivesse chegado a França na companhia de outro
fugitivo, um alemão de Colónia, cujo nome selecionou entre os
desaparecidos da lista mais fiável. Um padre católico berlinense,
que os teria protegido por serem membros da sua igreja, enviara-os
a ambos, no verão de 1945, até uma paróquia da Baviera. Meg tinha
motivos para escolher o padre Strauss, que os teria hospedado,
empregado e alimentado durante mais de um ano, até a sua saúde
piorar repentinamente nos finais de 1946. Antes de dar entrada no
hospital onde, também na realidade, morreu dois dias antes da
véspera de Ano Novo, Strauss dera-lhes dinheiro e pedira a um
agricultor amigo que os escondesse na mala da furgoneta e os
levasse até ao outro lado da fronteira com a Suíça. Dali seguiram
viagem conforme puderam, sem outra documentação além dos
salvo-condutos caseiros, forjados por padres católicos, inúteis para
atravessarem legalmente as fronteiras, mas eficazes para
conseguirem apoio, abrigo e transporte nas igrejas que
encontrassem pelo caminho. Parecia um trajeto estranho, mas era
bastante verosímil porque, desde o fim da guerra, o Vaticano jogava
um papel decisivo na proteção dos seus fiéis, e Stauffer sabia disso
porque era uma das principais colaboradoras. Assim, Adrián e o
amigo alemão teriam chegado a França, onde se separaram. Depois
de atravessar os Pirenéus pelas serras, em abril de 1947, com um
guia arranjado pelo padre de uma povoação próxima de Perpiñán, o
espanhol tinha demorado mais de um mês a chegar a Madrid. Eis a
história que escreveram para uma única ouvinte.
– Eu trabalho em La Meridiana, uma transportadora, sabe? E há
uma semana, em Legazpi, quando supervisionava a descarga de
um camião, o Adrián aproximou-se para me pedir emprego. Tinha
tão mau aspeto… – Guillermo voltou-se para a cadeira onde o
amigo estava sentado e olhou novamente para Clara. – Mesmo que
não acredite, hoje já parece outro, está muito melhor, portanto pode
imaginar. Disse-lhe que naquelas condições não podia trabalhar,
mas vi-o tão desesperado que o convidei para almoçar comigo. Foi
nessa altura que ele me contou… – O falso Rafael cerrou os
punhos, abanou a cabeça, esticou os lábios numa expressão de
indignação. – Acho uma vergonha o que estamos a fazer aos
divisionários. Vê-los a mendigar ferve-me o sangue. O meu melhor
amigo morreu na Rússia, sabe? Quando conheci o Adrián disse
para comigo: foi para isto que o Manuel morreu? Nunca me meti
muito em política, mas isto é outra coisa, é uma questão de
decência, de dignidade, e a verdade é que não consigo suportar,
não posso…
– Chega. – Clara Stauffer assentiu com a cabeça, com uma
expressão entre a raiva e a indignação. – Percebo-o muito bem. Eu
também não suporto.
Guillermo fez uma pausa, olhou para Manolo, viu-o assentir
ligeiramente com a cabeça e continuou a falar.
– Eu sabia que a Amparo era camisa-velha porque nos
conhecemos desde crianças. Passávamos juntos as férias de
verão…
– Em San Rafael – interrompeu-o Stauffer. – Sim, já sei, ela
própria me contou quando me telefonou. Fez muito bem em pedir-
lhe ajuda.
– Toca a lanchar!
Há algum tempo que Ingrid Weiss esperava à porta, com um
carrinho preparado. Depois de o empurrar até uma mesa baixa,
convidou-os a sentarem-se nos sofás e deu-lhes a escolher entre
chá e café.
– Que maravilha! – exclamou o falso Adrián, trincando um
croissant. – Não sei há quanto tempo não comia uma coisa tão
boa…
– Já não tens de te preocupar com isso – prometeu-lhe a anfitriã.
– Vamos cuidar de ti, não é verdade, Ingrid?
Depois da segunda chávena, embora ainda houvesse doces nas
bandejas, Clara Stauffer levantou-se, anunciou que Adrián tinha
muitas coisas que fazer e deixou que Ingrid acompanhasse Amparo
e Guillermo até à porta. Durante muito tempo, nem o amigo, nem
Meg voltaram a saber dele.
Durante os anos como diplomata em Genebra e em Londres, o
assistente de Azcárate contactara mais do que teria gostado com
representantes do Terceiro Reich e nazis de todas as
nacionalidades. Estava familiarizado com a forma como atuavam,
com os brindes que faziam nos banquetes, com os seus gostos e
até com os gestos, marciais, viris, estereotipados, que repetiam a
ponto de unificarem o seu aspeto. Simultaneamente, e desde que
aceitou a missão, o falso Adrián estudara toda a documentação
disponível sobre uma rede na qual ninguém se havia infiltrado antes
dele. No entanto, apesar da tenacidade que julgava ter dedicado a
tudo, não esperava a receção que as suas benfeitoras lhe
ofereceram. Nem na sua própria memória, nem nos relatórios sobre
o financiamento da rede, nem naqueles que especificavam o
mecanismo através do qual Stauffer obtinha passaportes espanhóis
autênticos com identidades fictícias, Manolo encontrara indícios de
que a organização para onde acabava de entrar tinha sido criada
por uma mulher que escolhera outras mulheres como
colaboradoras. Nessa mesma noite, ao deitar-se numa cama feita
primorosamente com lençóis lavados, Manuel Arroyo reconheceu
para si mesmo, com uma amargura íntima, profunda, que em
poucas horas havia aprendido mais sobre o tipo de amor que as
mães carinhosas e abnegadas derramam sobre os filhos do que em
todos os anos em que convivera com a própria mãe.
– Vamos lá ver… – Clara Stauffer tinha aberto um dos grandes
armários que cobriam o corredor do chão ao teto antes de olhar
para ele. – Queres escolher tu ou preferes que te ajudemos?
O espaço estava dividido por vários varões de aço repletos de
cabides de madeira, de onde pendiam dezenas de calças, camisas
e casacos de diversos tamanhos, tudo limpo e engomado.
– Minha senhora, eu… – balbuciou o acólito do pároco de
Robles. – Nem sequer sei por onde começar. Nunca vi tanta roupa
junta na minha vida.
Ingrid despiu-lhe o casaco, tirou uma fita métrica de um dos
bolsos, mediu-lhe os ombros, o comprimento das calças, calculou
que número vestia, e a dona da casa foi escolhendo por ele dois
pares calças desportivas e um de fato, meia dúzia de camisas
brancas, um fato completo e dois casacos para o dia a dia, peças
que Frau Weiss dobrava com cuidado antes de as colocar numa
mala grande, nova. No fim, juntou meia dúzia de mudas de roupa
interior e outras tantas peúgas, mas, antes que lhe oferecessem
sapatos, o falso Adrián lembrou-se dos dois centímetros de estatura
que os sapatos normais lhe tiravam.
– Gosto muito dos meus sapatos e são bastante novos. Comprei-
os em França e nunca consegui limpá-los, mas acho que com um
pouco de graxa…
– Muito bem. – Clara aprovou com a cabeça, e uma latinha de
graxa por estrear fez companhia à roupa no interior da mala. – Para
já, julgo que está tudo, mas… Tens artigos de higiene no quarto da
pensão?
– Não, senhora.
– Nada de senhora. – Sorriu, agitando no ar o indicador da mão
direita, como se quisesse repreendê-lo. – Que é que te disse?
– Desculpa, Clara. – Naquela altura estava tão perplexo que nem
sequer tinha de se esforçar por atuar. – O Rafa pagou-me o quarto,
mais nada.
– Já muito fez, o coitado. – Voltou-se para Ingrid. – Vai buscar
uma escova de dentes, um pente e, sobretudo, utensílios de
barbear… – Estendeu uma mão e acariciou a face do falso Adrián,
para verificar a barba de seis dias. – Embora, amanhã, a primeira
coisa a fazer é ires a um barbeiro. Incrível! Que cabelo tão forte! –
Desatou-se a rir. – Vem comigo, vou explicar-te o que vamos fazer.
Deu-lhe o braço, como se o conhecesse há uma vida, e levou-o
até um escritório. Depois de lhe oferecer uma cadeira, abriu uma
gaveta, tirou a circular do Conselho de Controlo Aliado que exigia a
sua busca e detenção e estendeu-lha.
– Não sabias disto, pois não?
O interlocutor leu devagar, com o sobrolho cada vez mais
franzido, um texto que saberia repetir de cor, porque estava ao lado
da autora enquanto ela o escrevia. Não foi difícil fingir-se
surpreendido porque nunca lhe tinha ocorrido que Clarita Stauffer
estivesse na posse do documento original, e, no entanto, o carimbo
e a assinatura do papel que tinha em mãos não só não admitiam
dúvidas, como provavam uma conivência total entre a rede dirigida a
partir do número 14 da calle Galileo e o Estado franquista ou, pelo
menos, alguns dos seus altos-funcionários.
– Não sabia, não – murmurou, depois de alguns segundos de
silêncio. – Eu… Não quero causar-vos problemas, Clara. Não
estava à espera de que um simples soldado, um homem tão
insignificante como eu, pudesse ter tanta importância para… –
Fechou os olhos, cerrou os lábios. – Para estes filhos da puta –
Levantou a cabeça e voltou a olhar para ela. – Agradeço-te
muitíssimo o que fizeste por mim, mas…
– Mas o quê? – Stauffer olhou para ele e sorriu. – Isto não
significa nada, camarada. Mostrei-te para demonstrar que podes
confiar em mim. É a única coisa que te peço, confia em mim, segue
as minhas instruções e um dia, quando menos esperares, este
papel parecer-te-á um pesadelo distante.
– Sim, mas… O motivo de tudo isso… – O falso Adrián respirou
fundo e lançou-se numa confissão aparentemente delicada, até
dolorosa, na realidade muitíssimo bem ensaiada. – Refiro-me ao
que aconteceu na Estónia. Não vou desculpar-me dizendo que
cumpria ordens. A verdade é que as cumpri, mas tinha plena
consciência do que estava a fazer. E fi-lo pelo futuro da Europa, da
nossa civilização, pelo mundo em que os meus filhos viverão, se
chegar a tê-los. Não vou pedir desculpa. Já sabia que o preço era
alto, que é uma desgraça ter tido de o pagar, mas parece-me
mentira não perceberem as nossas razões, não compreenderem a
necessidade de criar uma nova ordem, uma Europa limpa e em paz,
só para europeus…
Enquanto falava, limitara-se a levantar os olhos na direção da
sua interlocutora duas vezes, mas haviam sido suficientes para se
aperceber do seu semblante sereno, do brilho dos seus olhos, do
ligeiro movimento da cabeça em concordância com todas as suas
palavras. Antes de continuar, o homem de Azcárate, o infiltrado de
Burnstein, a última esperança da República Espanhola, precisava
de saber qual era a verdadeira ideologia daquela mulher, se era
uma simples falangista madrilena com simpatia pela causa da
Alemanha ou uma verdadeira nazi, capaz de assumir a sua fé até às
últimas consequências.
– Eu sou um homem muito inculto – prosseguiu, mais animado. –
Abandonei a escola aos catorze anos, mas fui ouvindo os
camaradas, fui discutindo com eles e aprendi muito. De início, não
percebia, não compreendia o perigo que representavam aqueles
desgraçados, mas agora vejo-o claramente. Estou muito orgulhoso
do que fiz, e quero que o saibas, que saibas que o que o papel diz é
verdade. Não sei se é importante para ti, mas para mim é
importante. Por isso fugi. Porque não reconheço que seja um delito
o que eles dizem, nem estou disposto a ser julgado.
Clara Stauffer estendeu ambos os braços e deu-lhe as mãos por
cima da mesa. Ele agarrou-as e sentiu o calor dos dedos que
apertavam os seus.
– Que te disse quando chegaste, Adrián?
– Que estava a salvo, entre camaradas.
– É isso. – Apertou-lhe uma vez mais as mãos antes de as
retirar. – Não preciso que me dês explicações. Melhor do que isso,
vou eu dá-las. Para já, vais instalar-te em casa de Frau Weiss, nesta
mesma rua, um pouco mais acima. Eu vou andar muito ocupada a
partir de amanhã com a visita da Eva Perón porque a ajuda da
Argentina é muito importante para nós, mas a Ingrid ajudar-te-á em
tudo o que precisares. Depois… Veremos. Assim que conseguirmos
arranjar-te nova documentação, procuraremos trabalho para ti.
Depois, com papéis novos, terás de decidir o que queres fazer.
Poderás ficar em Espanha, evidentemente, embora com um
mandado de busca e detenção por crimes de guerra… talvez fosse
mais seguro emigrares. Falaremos disso mais adiante. Para já,
precisas de descansar, dormir oito horas durante vários dias
seguidos, comer bem, recuperar e fazer essa barba. – O seu
protegido sorriu com ela. – Isto é o principal.
A 1 de julho de 1947, José Pacheco Hernández começou a
trabalhar como porteiro noturno num edifício da Gran Vía. Ao
contrário do que tinha acontecido com as outras identidades fictícias
que usara até então, quase não teve de se familiarizar com o novo
nome. Assinou o contrato de trabalho no mesmo escritório onde
Clara Stauffer havia começado a dirigir a sua vida e nem sequer
chegou a conhecer o chefe, um camarada de apelido alemão que
havia delegado nela toda a papelada. Todas as noites, às onze em
ponto, cumprimentava o porteiro que fazia o turno da tarde. Todas
as manhãs, às sete, era substituído pelo colega que ocupava a
guarita até às três. Só eles lhe chamavam José. No número 14 da
calle Galileo, onde lhe tiraram as fotografias para o novo documento
de identidade, todos continuavam a tratá-lo por Adrián, e por esse
mesmo nome, sem esconder uma expressão de cumplicidade quase
risonha, o cumprimentou o polícia que lhe tirou as impressões
digitais e pediu que o assinasse antes de lho entregar.
Pouco depois de encontrar trabalho, José Pacheco Hernández
arrendou um apartamento interior, muito pequeno mas confortável,
na calle del Pez, graças ao apoio de Fräulein Stauffer, que
conseguiu que o proprietário lhe perdoasse a caução e que lhe
pagou o primeiro mês. O principal beneficiário da mudança foi
Manuel Arroyo Benítez, que conseguiu livrar-se de uma senhoria
que vivia apenas para lhe facilitar a vida, preparar os pratos de que
ele mais gostava e sentar-se à conversa com ele todas as noites.
Enquanto ia conhecendo a longa sucessão de desgraças que a
haviam marcado, o impostor aprendeu coisas que nenhum nazi lhe
tinha ensinado. A mais importante foi a facilidade com que
conseguiu sentir carinho por uma mulher que, se tivesse tido mais
sorte, talvez não tivesse abraçado a fé de Hitler, mas que, mesmo
depois de a professar, possuía muitas qualidades que a tornavam
digna de ser amada. Analisando esse fenómeno, compreendeu que
a nostalgia absoluta do amor materno que o acompanhava desde a
infância se tinha cruzado com a nostalgia absoluta que Ingrid Weiss
sentia pela perda do filho, num momento perigosíssimo para ele,
mas nem assim deixou de sentir carinho por ela. Por isso se alegrou
tanto quando Clara lhe disse que precisava do quarto para outro
fugitivo.
Contudo, a principal vantagem que aquele emprego trouxe a
Manuel Arroyo Benítez foi a possibilidade de escrever de
madrugada tudo aquilo que averiguava. Desde que começara a
frequentar o número 14 da calle Galileo, acompanhando Ingrid
quase diariamente com a desculpa de que não tinha nada que fazer,
esforçava-se para agradar às secretárias do escritório. Todas as
manhãs lhes levava o jornal, tomava café com elas e se oferecia
para lhes fazer recados. E, a 15 de junho, quando começaram as
férias, a sua ajuda passou a ser tão bem-vinda que ele se
transformou, praticamente, noutro secretário.
Uma das obrigações maternais que Frau Weiss assumiu em
benefício do hóspede consistiu em dar-lhe todas as semanas uma
pequena quantia para despesas miúdas, suficiente para comprar
cigarros e alguns vermutes. Poupando alguma coisa desse
pagamento quase infantil, comprou um caderninho, fácil de
esconder no bolso interior do casaco, dois lápis e um afia, numa
papelaria da calle Eloy Gonzalo. Nessa manhã, as secretárias
tinham-lhe dado o dinheiro certo para duas viagens de metro e a
tarefa de ir à sacristia da paróquia de Iglesia, onde deveria ir buscar
a certidão de batismo de um tal José Pacheco Hernández, embora
não lhe tenham dito que serviria para forjar a sua própria
documentação.
Quando Manuel Arroyo, ou Adrián Gallardo, ou José Pacheco se
mudou para a calle del Pez, ainda não havia escrito qualquer
palavra naquele caderno. Também não o faria na nova casa. A 3 de
junho, quando visitou com Ingrid o prédio onde iria trabalhar a partir
do dia seguinte, o porteiro noturno, que se reformaria dentro de
umas horas, mostrou-lhe o cacifo que lhe correspondia. Ao abri-lo, o
falso Adrián descobriu que o interior era de madeira e que a
fechadura se assemelhava à dos cacifos do instituto de León, onde
tinha aprendido, entre outras coisas, a fabricar uma gazua caseira
com um pedaço de arame. Na primeira noite de trabalho, verificou
que esse conhecimento lhe sobrevivia melhor na memória do que a
lista dos reis godos.
Durante as oito noites seguintes, Manuel Arroyo Benítez encheu
o caderno com tudo o que Adrián Gallardo Ortega aprendera, desde
a conversa inicial com Clara Stauffer até à última, em que ela
própria, depois de se confessar abertamente a favor de que o
protegido emigrasse, se tinha gabado da eficácia da sua rede. Para
demonstrar que era capaz de fazer chegar à Argentina criminosos
de guerra sãos e salvos, tinha referido, entre outros, os nomes de
Jean-Jules Lecomte, o burgomestre de Chimay de que tanto se
falara um ano antes num almoço de domingo em Taplow. Lecomte
havia desembarcado em Buenos Aires em meados de maio com um
passaporte espanhol em nome de Jan Degraf, ou De Graf, ou
Degraaf. Manuel Arroyo não conseguia precisar a grafia exata
porque não se atrevera a perguntar como se escrevia, mas isso, e o
facto de o segundo apelido do seu passaporte começar com a
sílaba Ver, seria suficiente para o localizarem na lista de
passageiros de algum transatlântico.
A grande estrela das suas descrições era a República Argentina.
Várias páginas daquele caderno foram integralmente dedicadas a
Carlos Fuldner, que infelizmente Adrián não chegou a conhecer
porque ele tinha regressado a Buenos Aires em fevereiro. A visita de
Eva Duarte também ocupava um espaço considerável, primeiro
pelos boatos e notícias que tinha gerado no número 14 da calle
Galileo e depois pelas suas consequências. Porque, com a partida
da primeira-dama, se intensificaram os contactos com a embaixada
argentina e a correspondência que Fuldner mantinha a partir desse
país.
Entre os dias 1 e 7 de junho de 1947, Manuel Arroyo Benítez
escreveu todas as noites durante algumas horas, as mais calmas do
seu horário de trabalho. Às cinco da manhã guardava o caderno
debaixo da placa de madeira de um cacifo em desuso, que abria e
fechava com a gazua. No dia 8 escreveu mais do que o habitual,
mas ao terminar guardou o caderno num dos bolsos. Ao chegar a
casa, comeu qualquer coisa, deitou-se e adormeceu, como todos os
dias, até às três. A meio da tarde, também como todos os dias,
vestiu a farda e saiu. À sexta-feira, jantava em casa de Ingrid, porém
nessa tarde fez uma paragem na esplanada do Lion, onde
encontrou Rafael Cuesta, saído do trabalho.
– Ora bem, Adrián, que surpresa! – O agente de La Meridiana
parou ao seu lado. – Estás com ótimo aspeto.
– Sim. – O porteiro da noite levantou-se e aproximou-se dele
para lhe dar um abraço, sussurrando-lhe ao ouvido: – Acabei de te
meter um caderno no bolso. – Depois voltou a levantar a voz. –
Estou muito bem, graças a Deus, mas senta-te, homem, bebe uma
cerveja.
Antes de se mover, o recém-chegado levou a mão direita ao
bolso para demonstrar ao amigo que o tinha ouvido. Depois sentou-
se diante dele.
– Estás a trabalhar? – perguntou-lhe, apontando para a farda.
– Sim, como porteiro noturno num prédio da Gran Vía. Correu-
me tudo muito bem, sabes? Mas também vim ter contigo porque a
Clara me pediu que te perguntasse… Tens alguma coisa que fazer a
18 de junho?
Meia hora depois, quando se despediram, o falso Adrián
Gallardo tinha acabado de recrutar o falso Rafael Cuesta para a
rede Stauffer.
25
A poco no te fregó?: Não me digas que ela não te lixou. (N. da T.)
É 4 DE DEZEMBRO DE 1947 E O PRESIDENTE PERÓN RECEBE NA CASA
ROSADA.
Os visitantes são seis e formam um grupo que, à primeira vista,
poderia parecer heterogéneo. Só um deles é argentino, embora
tenha também outra nacionalidade, diferente das dos companheiros,
que, por sua vez, são diferentes entre si. No entanto, entraram todos
no país em 1947 com um passaporte espanhol legal. Cinco destes
documentos foram forjados para dar cobertura a uma identidade
falsa. Os titulares instalaram-se em Buenos Aires, mas partilham
mais do que a cidade de residência. Todos eles são procurados pela
justiça dos respetivos países, que os acusam de colaboracionismo
e/ou crimes contra a Humanidade. O sexto homem, o único cuja
verdadeira identidade coincide com os dados do seu passaporte,
está de visita. Veio de muito longe com o único objetivo de assistir a
esta reunião.
O mais velho dos visitantes é Pierre Daye, nascido em
Schaerbeek, perto de Bruxelas, em 1892, embora figure como
Pierre Adan no passaporte com que entra na Argentina. Daye,
jornalista e político, referência intelectual do Partido Rexista de
Degrelle, era um confesso admirador de Franco e de Perón, mesmo
antes de gozar da proteção de ambos.
Entre aqueles que o acompanham à Casa Rosada conta-se
outro belga, René Lagrou, que, apesar do nome e apelido
francófonos, se notabiliza antes da guerra como líder da União
Nacional Flamenga. Condenado à morte à revelia por um tribunal de
Antuérpia em 1946, desembarcou em Buenos Aires em julho com
um passaporte em nome de Reinaldo van Groede.
Georges Gilbaud, alto funcionário do governo de Vichy, dirigente
do colaboracionista Partido Popular Francês, condenado à morte à
revelia depois de fugir através dos Pirenéus, chegou um mês antes,
em maio.
O embaixador em Espanha do ditador romeno Ion Antonescu,
chefe de um estado fantoche do Terceiro Reich, julgado e fuzilado
no seu país por uma longa lista de delitos, em junho de 1946, fica
em Madrid depois do fim da guerra. A proteção dos amigos
espanhóis permite a Radu Ghenea escapar à justiça da Roménia e
emigrar para a Argentina com um nome falso. É o quarto visitante
que Perón recebe nessa tarde.
A justiça aliada teria considerado o quinto homem o mais
importante do grupo. Trata-se, naturalmente, de Horst Alberto Carlos
Fuldner, membro da organização de inteligência das SS, a quem o
chefe, Walter Schellenberg, encarrega das rotas de fuga para os
dirigentes do NSDAP quando dá a guerra por perdida. Fuldner é o
primeiro do grupo a transferir-se de Madrid para o seu país de
origem, onde reside desde fevereiro. Hoje também veio visitar
Perón.
Com eles entra na Casa Rosada um espanhol genuíno. Víctor de
la Serna, filho do jornalista homónimo, neto da escritora Concha
Espina, é redator-chefe do Informaciones quando, a 6 de novembro,
um fotógrafo do jornal portenho La Nación o imortaliza nas escadas
do avião que o trouxe de Madrid. Não é tão famoso como Fuldner,
mas também não é um desconhecido para os aliados, que o
consideram tão fascista e pró-nazi como o pai. Amigo pessoal dos
restantes convidados de Perón desde o tempo em que viviam em
Espanha, após a saída de Daye mantém correspondência
abundante com ele, na qual recorre a um código pouco original para
comentar as contingências, avanços e dificuldades da exportação
de um carro, em termos que tornam evidente que o presumível
veículo é, na realidade, um evadido que ambos pretendem ajudar a
cruzar o Atlântico.
O envolvimento de Víctor de la Serna filho nas redes de evasão
de colaboracionistas e criminosos de guerra refugiados na Espanha
de Franco não é suficiente para explicar a sua presença numa
reunião convocada sob o pretexto de o presidente argentino querer
explicar a sua «terceira via» no contexto internacional consolidado
após o fim da Guerra Mundial. Este é oficialmente o tema a tratar, e
parece que efetivamente Perón toma a palavra para se posicionar
ideologicamente, declarando-se tão antimarxista como antiliberal,
tão inimigo do comunismo como do capitalismo e orgulhoso de
encabeçar um movimento popular que transcende a divisão entre
esquerda e direita. No entanto, as palmas dos seus convidados, que
aplaudem fervorosamente um discurso semelhante aos que ouviram
tantas vezes nas suas línguas maternas, depressa evolui para o
verdadeiro objetivo da reunião. O presidente Perón está interessado
em receber técnicos e cientistas, civis ou militares, ligados ao
Terceiro Reich, a fim de transformar a Argentina numa potência.
Interpretando admiravelmente o espírito da Guerra Fria, acredita
que um novo conflito entre o Ocidente e a União Soviética
transformará os maus de hoje nos bons de amanhã. E está disposto
a abrir-lhes os braços de par em par.
Para tratar desse assunto, encarrega o seu braço-direito, Rodolfo
Freude, de convocar a reunião desse dia. Rudi é filho do empresário
Ludwig Freude, o cidadão alemão mais poderoso do país e um dos
dez homens mais ricos da América do Sul. Militante do Partido Nazi,
os aliados acusam-no de atuar como embaixador extraoficial de
Hitler na Argentina e exigem a sua extradição em 1945. Prestes a
consegui-lo, o então vice-presidente Perón tira da manga uma falsa
certidão de cidadania assinada por um juiz que o autoriza a
permanecer no país. Ludwig Freude nunca esquecerá tal gesto e
retribui rapidamente, pagando do seu bolso a campanha do general
nas eleições de 1946 que o levam à Casa Rosada. O filho Rudi
decide convidar Víctor de la Serna para a reunião de cuja
convocatória foi encarregado, e essa é a única razão da sua
presença nesse dia em Buenos Aires.
Apesar de todos os participantes estarem de acordo, o assunto a
tratar é tão delicado que a sua explanação excede o tempo de uma
única audiência. Perón volta a receber o mesmo grupo no dia
seguinte para expor os últimos pormenores e envolve-se
pessoalmente, a ponto de sugerir a criação de um organismo oficial
de caráter reservado que trate de receber esse tipo de imigrantes.
O Serviço Argentino de Receção de Europeus, SARE, torna-se
realidade a 28 de junho de 1948, quando os membros da direção se
reúnem em casa de Radu Ghenea para assinarem os estatutos.
Pierre Daye, criador do recém-criado organismo, comparece com
René Lagrou em representação do exílio belga. O dono da casa
representa os romenos, e alguns outros participantes, entre eles o
extravagante monsenhor Ferenc Luttor, diplomata húngaro
acreditado junto do Vaticano, que, em 1947, foge com um
passaporte pontifício, representam evadidos de diversas
nacionalidades: alemães, austríacos, franceses, eslovacos, italianos
e croatas, entre outros. Pouco depois, o diretor-geral das Migrações,
Pablo Diana, reconhece oficialmente a capacidade do SARE para
aceitar e tratar de pedidos de residência na República Argentina. O
arcebispo da cidade cede um edifício seu, na calle Canning, para
que instalem ali a sede. É urgente, porque a engrenagem já
arrancou e está em pleno funcionamento.
Numa carta datada de 25 de fevereiro de 1948, Pierre Daye
informa Víctor de la Serna filho de que os contactos do seu grupo
com a presidência «continuaram de forma constante e regular»,
pedindo, de seguida, um favor. De la Serna deverá elaborar várias
listas, organizadas por nacionalidades, «dos refugiados políticos em
Espanha, com a indicação daqueles que é mais urgente salvar. Eles
não terão de apresentar qualquer pedido. Nós trataremos de tudo o
que for necessário.»
Para esse trabalho, Daye recomenda-lhe três pessoas da sua
máxima confiança.
Uma delas é a senhora Clara Stauffer, que, meses antes,
conhece Evita em Madrid, onde milhares de pessoas esfomeadas a
recebem como uma deusa loura da abundância.
MADRID, 6 DE JANEIRO DE 1948

Na parte de cima do estojo lia-se Parker, mas a caneta era uma


Pelikan clássica, de corpo verde riscado e tampa de laca preta com
um clipe dourado.
– O meu filho também gostava de escrever muito. – Os olhos de
Frau Weiss nublaram-se quando o falso Adrián a segurou entre os
dedos com uma expressão de prazer quase infantil. – Tenho as suas
cartas da frente, muito bonitas, mas a… Füller… ficou em Hanôver.
Esta igual.
– Muitíssimo obrigado, Ingrid. – Manuel Arroyo Benítez, com o
seu nome próprio e os dois apelidos, abraçou-a e beijou-a nas
faces. – É lindíssima, adoro-a, mas… Como sabes que gosto de
escrever?
– Eu vi caderno e lápis no teu quarto, aqui. Tu muito velho para
usar lápis.
O Natal tinha começado para eles um mês antes. A 6 de
dezembro, Clara deu uma festa para celebrar o dia de São Nicolau,
o lendário viajante que todos os anos navegava de Espanha à
Alemanha para distribuir doces e fruta às crianças. Cumprindo
escrupulosamente a tradição, Fräulein Stauffer entregou a cada
convidado dois cartuchos de papel, um cheio de caramelos e outro
de fruta cristalizada, desta vez realmente espanhola. Rafael Cuesta
Sánchez foi um dos destinatários dos doces e já não se deu ao
trabalho de fazer as perguntas com que massacrava o seu amigo
Manolo desde que este o convidara a integrar o círculo de Clarita.
– Mas o que achas que ela quer de mim?
– Não sei. Não voltou a dizer-me nada.
– Está bem, mas… não percebo.
– Neste negócio, as coisas correm muito devagar. – Era só isso
que sabia, e muito bem, Manuel Arroyo Benítez. – Talvez não tenha
chegado ainda o momento de te pedir um favor. Talvez as coisas
tenham mudado e esse momento nunca chegue. Isso seria o melhor
para ti, portanto não fiques nervoso.
O falso Adrián Gallardo não tinha telefone. O salário de um
porteiro noturno não dava para tanto e, além disso, o protegido de
Fräulein Stauffer não tomava qualquer iniciativa que não fosse
previamente emanada do número 14 da calle Galileo. Por isso,
todas as tardes perguntava numa taberna da Corredera Baja se
alguém lhe tinha telefonado ou deixado recado. Embora jantasse em
casa de Ingrid todas as sextas-feiras, Clara preferia esse sistema
para entrar em contacto com ele. Quando lhe devolvia a chamada,
ela limitava-se quase sempre a perguntar-lhe como estavam a
correr as coisas, de vez em quando convidava-o para almoçar e só
em ocasiões especiais o chamava ao seu escritório.
– Obrigada por teres vindo, Adrián. – O dia 7 de julho de 1947 foi
uma dessas ocasiões. – Como estás?
Convidou-o a sentar-se a uma mesa estranhamente
desarrumada, coberta de papéis e de pastas, e continuou a falar ao
telefone em alemão sem lhe dar oportunidade de responder à
pergunta.
– Claro, sim… Já me tinha lembrado disso, de facto… – Ergueu
a vista na direção de Adrián e sorriu por instantes, antes de voltar a
fixá-la nos seus papéis. – Tentarei tratar disso hoje mesmo.
Imediatamente depois de desligar, sem qualquer preâmbulo,
perguntou-lhe se ele achava que o funcionário de La Meridiana
estaria disposto a juntar-se ao grupo.
– A juntar-se? – O protegido foi cauteloso. – A que te referes
exatamente?
– Bom… – A protetora não foi muito mais audaz. – Pergunto-me
se gostaria de nos conhecer, de se relacionar com os nossos
amigos, de colaborar connosco se algum dia surgisse a
oportunidade.
Adrián Gallardo reprimiu a tentação de sorrir e atrasou a
resposta alguns segundos, como se precisasse de refletir muito
bem.
– Não sei o que dizer, Clara. Não o conheço muito bem, mas
tendo em conta como se portou comigo, suponho que sim.
No dia seguinte, na esplanada do Café Lion, Rafael Cuesta
Sánchez soube que tinha sido convidado para a festa que o
camarada Eberhard Messerschmidt ofereceria na sua casa de
Cercedilla a 18 de julho, para celebrar o aniversário do golpe de
Estado. Pela primeira vez perguntou porquê. Pela primeira vez,
ouviu o amigo dizer que não sabia.
– E agora, o que faço? – perguntou a seguir. – Digo que sim
ou…?
Aquelas reticências deram lugar a um silêncio que se prolongou
mais do que era razoável. O falso Adrián chamou o empregado,
pagou a sua cerveja e a que o acompanhante não tivera tempo de
acabar e propôs-lhe um passeio até à calle Apodaca. Só depois
respondeu.
– Vou ser muito sincero contigo, Guillermo. – Mais uma vez, o
recurso ao seu verdadeiro nome anunciou a gravidade do assunto
de que iam falar. – Para mim, seria uma bênção que aceitasses. Em
primeiro lugar, por puro egoísmo, porque me sinto muito sozinho. O
Adrián conhece cada vez mais gente, mas eu não tenho ninguém
com quem falar. Para a minha missão também seria muito bom que
aceitasses porque me garantiria um meio fácil e seguro de canalizar
a informação. Se voltar a ver-te com frequência, não terei de me
preocupar em esconder um caderno como o que tens no bolso num
cacifo vazio. Com um trabalho como o teu e a quantidade de
correspondência com que lidas diariamente, conseguirias enviar
mais relatórios à Meg, até pelo correio. De modo que, pensando em
mim, pedir-te-ia que me acompanhasses, mas não te quero
enganar. Não sei o que a Stauffer quer de ti, ela não me disse, no
entanto, se tivesse de arriscar, apostaria o salário de um mês em
como se prende com o teu trabalho. Um funcionário de uma
transportadora é um tesouro para qualquer organização de
inteligência. Ora, isso significa que é provável que acabes por correr
riscos. E, com esta gente, risco é sinónimo de perigo, portanto… –
Parou, olhando para o homem que caminhava ao seu lado. –
Escolhe. Agora estás a tempo, porque o teu contacto com a Clara é
tão superficial que uma negativa não teria consequências. Mais à
frente… quem sabe.
Guillermo olhou para ele. Depois sorriu. Finalmente, desatou a
rir, para ativar o mecanismo que obrigava sempre o seu amigo a rir-
se com ele.
– E como vamos para lá, de comboio?
Com efeito, a 18 de julho, ao meio-dia, desceram ambos de um
comboio na estação de Cercedilla. No passeio fronteiro, como lhes
tinha dito Ingrid Weiss, viram uma taberna com um nome tão vulgar
que acabava por ser original. Na Casa Gómez confirmaram-lhes que
a estalagem ficava mesmo ao lado, e que os burros que tinham visto
presos a um muro, à esquerda da porta, eram o meio de transporte
mais eficaz para subirem até Fuenfría.
– Não está a falar a sério… – Guillermo não achou graça
nenhuma. – Eu nunca montei um burro na vida.
– Estes já conhecem o caminho. – Sorriu o taberneiro. – Mas o
meu filho irá convosco, só para prevenir. E mais tarde, para
descerem… Em casa de don Eduardo há telefone, mas o melhor é
levarmos um burro a mais e os senhores descem com o jardineiro,
que vive aqui na aldeia. É o que fazemos todos os anos.
– O Eduardo… – Manolo franziu o sobrolho. – Está a falar do
senhor Messerschmidt?
– Claro. É que ele tem um nome muito estranho. Aqui
chamamos-lhe assim.
Nos últimos dez dias, o funcionário de La Meridiana não tinha
dormido muito. Desde que aceitara aquele convite, quase todas as
noites punha o despertador para as quatro da manhã e dirigia-se a
um prédio da Gran Vía onde recebia um curso intensivo de nazismo.
Manolo tinha calculado o grau de conhecimento do Terceiro Reich
que seria expectável de um simples fascista espanhol, mas estava
mais preocupado com a possibilidade de Guillermo falar demasiado
do que de parecer ignorante. Além de lhe recomendar que, por
norma, ficasse calado, tentou antecipar os nomes dos convidados
que poderiam encontrar na festa e explicou-lhe as normas
específicas de cortesia que regiam as relações sociais naquele
grupo.
– Até algum deles se embebedar – repetiu no melhor quarto de
uma estalagem de Cercedilla, minutos antes da hora do almoço –,
ninguém levanta o braço nem grita Heil Hitler, percebido? Quando
esse momento chegar, eu farei o mesmo que eles porque fui
voluntário nas SS, jurei fidelidade ao Führer, mas tu não podes ir tão
longe. Tu limitas-te a levantar o braço, mas sem dizer nada, Arriba
España!, quando muito, e se calhar nem isso. É o que se espera de
um camarada espanhol. Se alguém te perguntar, podes definir-te
como fascista, isso será do agrado geral, mas que nem te passe
pela cabeça dizer as palavras nazi ou nacional-socialista porque
eles nunca o fazem. Preferem dizer que são europeus, essa é a
palavra-chave, e para falarem do Terceiro Reich também usam
eufemismos como aqueles tempos, os bons velhos tempos…
Coisas assim. A única palavra que mantiveram é Führer, embora,
para se referirem a ele às vezes usem também anagramas, como
88 ou HH. Vais lembrar-te de tudo isto?
– Sim, vou lembrar-me de tudo, tem calma. A única coisa que me
preocupa… – Franziu os lábios numa expressão de desagrado. –
Não acho graça nenhuma a montar esse burro, essa é a verdade.
– Não me lixes, Guillermo! Estás prestes a meter-te na boca do
lobo, vais conviver com uma data de criminosos de guerra e vens-
me com isso?
– Que queres? Tenho imenso medo de montar animais. Quando
era pequeno… – Antes de partilhar a recordação, ele próprio
desatou a rir-se. – Um dia, a minha avó obrigou-me a montar um
pónei que havia no Retiro. Era um animal muito bom, muito manso,
dizia o dono. Bom, a verdade é que me atirou ao chão, eu voei por
cima da cabeça dele, ainda tenho a cicatriz…
Às sete e meia da tarde, depois de um passeio tranquilo durante
o qual, dessa vez, sim, os burros se comportaram como os mais
mansos e dóceis, chegaram a uma cancela de ferro ladeada por
dois pilares de granito e trancada por uma corrente. Atrás dela
começava um trilho de terra que, entre prados e arvoredo, parecia
não levar a lado nenhum.
– Já chegámos – anunciou o filho do taberneiro.
– Aonde? – O homem que se apresentara como Adrián Gallardo
voltou-se e olhou-o surpreendido. – Não se vê nenhuma casa.
– Está ali atrás, no fim do caminho. Quando saímos, o meu pai
telefonou a avisar, deve estar a chegar alguém para abrir… – Nessa
altura, o vento mudou de direção e o rapaz levantou a mão. – Não
ouvem a música?
O ouro do Reno, um Wagner lírico, pacífico, quase gentil,
sucumbiu logo a seguir ao estrépito de um motor. Uma furgoneta
antiga mas imaculada parou do outro lado da cancela, e o condutor
não fez tenção de os cumprimentar antes de abrir o cadeado e de
tirar a corrente, apesar de eles terem desmontado ao vê-lo chegar.
Depois de abrir a porta, dirigiu-se primeiro ao dono dos burros,
indicando-lhe por gestos que os podia levar. De seguida, dirigiu-se a
Guillermo.
– Adrián?
– Não, Rafael – respondeu ele, adivinhando que o interlocutor
não falava espanhol, antes de apontar para o amigo. – Ele, Adrián.
– Gut. – E inverteu a ordem que a intuição lhe ditara ao estender-
lhes a mão. – Willkommen.
Esperou que o filho do taberneiro iniciasse o caminho de
regresso antes de fechar novamente a cancela com corrente e
cadeado. Só quando se certificou de que estava bem segura,
apontou para a furgoneta com o indicador.
– Sabes o que te digo? – sussurrou Guillermo ao ouvido de
Manolo enquanto o seguiam. – Muito me arrependo de ter
protestado por causa do burro.
Aquela receção bastara para lhes sugerir que iam entrar numa
comunidade secreta, cuja natureza justificava a pouca informação
que tinham conseguido arrancar ao taberneiro quando o convidaram
a beber um copo com eles, depois de uma refeição muito saborosa.
Na sala de jantar da Casa Gómez ficaram a saber que em
Cercedilla havia duas zonas residenciais conhecidas como «colónia
dos alemães», contudo, apesar de o proprietário da taberna estar a
par dos burros que os convidados dessas casas alugavam, não
sabia muito mais sobre os donos delas. Só lhes contou que a
colónia de Camorritos, situada à subida para o monte, era mais
antiga do que a do vale da Fuenfría e que o primeiro a erigir ali uma
casa alpina, com varandas e beirados de madeira decorados com
aberturas em forma de coração, foi um alemão de origem judaica
que chegou a Espanha por volta de 1920.
– Don Eduardo chegou muito mais tarde. Pelos vistos, vivia em
Madrid desde o fim da nossa guerra e depois, pronto, ficou. A
princípio, só vinha passar o verão, mas agora vive aqui todo o ano.
A princípio era antes de 1945, quando Messerschmidt estava
vinculado à Agregação Naval da embaixada alemã, um emprego
que encobria o seu verdadeiro trabalho para a inteligência militar.
Agora referia-se ao cargo atual como assessor da Armada de
Guerra espanhola, um serviço tão valioso para o regime que o
próprio Franco tinha escrito pessoalmente uma carta, recusando-se
a entregá-lo aos aliados. O taberneiro não devia saber disso, mas
também não lhes pôde dizer muito mais.
– É um homem amável e generoso, que paga muito bem os
serviços que lhe prestam. As pessoas da aldeia respeitam-no,
embora não o vejamos muito. A ele, a eles… Não gostam de se
misturar connosco e é lógico, como são estrangeiros têm outros
costumes, alguns nem sequer falam bem espanhol. Mas, o que
estou a contar-lhes? Se os senhores devem conhecê-lo muito
melhor do que eu…
No dia seguinte, quando entraram no comboio que os levaria de
volta a Madrid, ambos sentiam que não haviam conhecido em
absoluto o homem que os recebera de braços abertos à porta de um
chalet que parecia ter sido trazido do Tirol por artes mágicas. E essa
não foi a sensação mais inquietante que a festa de Herr
Messerschmidt lhes provocou.
Don Eduardo, como lhe chamavam na aldeia, vivia há mais de
vinte anos em Espanha, contudo, embora o seu domínio da língua
fosse muito melhor, o seu aspeto não diferia muito do de Frau
Weiss. O corte do casaco, as calças de cabedal, os emblemas
alpinos que lhe decoravam as lapelas e as meias brancas que
espreitavam pelo rebordo das botas teriam competido
vantajosamente com a trança grossa que coroava a cabeça de
Ingrid num concurso de emigrantes atacados pela saudade. Aquele
excesso surpreendeu-os porque Herr Messerschmidt era, regra
geral, um homem muito discreto. Meg só tinha encontrado uma
fotografia dele, à civil, com um fato cinzento indistinguível daqueles
que vestiam os espanhóis que o rodeavam. Mesmo assim, ninguém
teria hesitado em identificá-lo não só como o único alemão do
grupo, mas também como um dos três militares que posavam para a
máquina. Hirto como o tronco de uma árvore, de calcanhares
unidos, ombros erguidos e queixo levantado, a pertença à Marinha
de guerra do Reich aflorou visivelmente na energia com que apertou
a mão dos recém-chegados.
– Bem-vindos, bem-vindos, estamos muito felizes por conhecê-
los. – O sotaque gutural, inconfundível, diluía-se na simpatia de um
sorriso que lhe permitia exibir os dentes. – Entrem, por favor, vou
apresentar-lhes os meus amigos, por aqui…
Manolo não sabia muito bem a que tipo de festa iam. Tinha
descartado a possibilidade de uma farra com putas porque sabia
que Clara, convidada para a receção que Franco oferecia todos os
anos a 18 de julho no palácio de La Granja, se lhes juntaria à noite,
depois de cumprimentar o Generalíssimo. Contudo, além da
presença provável de senhoras no salão, não fazia ideia de quem
iriam encontrar. A realidade começou por lhes defraudar as
expectativas para depois as ultrapassar. O efeito foi semelhante
àquele que teria sentido um banhista incauto que se metesse no
mar num dia calmo, soalheiro, e fosse atingido por uma onda
inesperada que brincasse com ele como com um boneco de trapos
que não está disposto a soltar.
No início foi a calmaria. À primeira vista, os homens e as
mulheres que os cumprimentaram das suas cadeiras, sem grande
interesse, formavam um grupo previsível e socialmente homogéneo,
meia centena de pessoas abastadas, onde só chamava a atenção a
quantidade de nacionalidades dos seus integrantes, um número tão
grande como o que Monsieur Agoyo costumava encontrar nos
cocktails que frequentara durante os seus primeiros anos em
Genebra. A única diferença percetível entre aquela festa e as
organizadas pela Sociedade das Nações era linguística. Embora ao
longo da noite se fossem formando grupinhos onde alguns
convidados sussurravam em língua materna, o idioma comum era o
espanhol, mais ou menos bem falado. A avaliar pela idade das
mulheres, pelos penteados impecáveis e pelo brilho dos diamantes
que as iluminavam, quase todos os homens convidados tinham ido
com as legítimas esposas, apesar de dois cinquentões, um francês
de gestos aristocráticos, e outro alemão, terem trazido
acompanhantes ocasionais, duas jovens espanholas na casa dos
vinte anos, sem outras joias além dos encantos que transbordavam
dos seus vestidos ligeiros. Ambas se identificaram com os seus
nomes de guerra, Luci e Cati, iniciativa que não destoava num salão
onde a norma era apresentar-se com um nome próprio, quase
sempre falso, e nenhum apelido.
– Dá-me um abraço, camarada! – Até que o estrondo de uma
onda repentina desencadeou um vendaval a centenas de
quilómetros de qualquer mar. – Fico sempre emocionado quando
reencontro os bravos que me orgulhei de comandar.
Um homem atlético mas não muito alto, com feições de menino
bonito, moderadamente travesso, nariz pequeno e bochechas
redondas que durante toda a vida lhe permitiriam reivindicar ter sido
o modelo de Tintin, nem sequer se deu ao trabalho de dizer como se
chamava enquanto atravessava o aposento na direção do falso
Adrián Gallardo.
– Às suas ordens, meu general! – Manolo bateu os calcanhares
e fez a saudação fascista antes de se fundir num abraço com Léon
Degrelle.
– Oxalá, não achas? – O belga falava muito bem espanhol. –
Oxalá pudesses voltar a estar sob as minhas ordens para lutarmos
juntos, ombro a ombro, pelo futuro da Europa.
– Não perca a esperança, senhor. – A melancolia do chefe
supremo da última unidade onde se batera o verdadeiro Adrián
Gallardo inspirou o seu usurpador. – Isto ainda não terminou. O
nosso Reich viverá mil anos.
– É assim que se fala! – Degrelle agarrou-o pelos braços e
apertou-os com força. – Vem comigo… – Porém, de repente, mudou
de opinião. – Venham! – Dirigiu-se aos restantes convidados. – Aqui
têm um dos meus bravos, um herói, defensor de Berlim, orgulho do
Reich e do seu chefe, que tive a honra de ser eu próprio…
A intervenção de Degrelle, um dos líderes naturais daquela
obscura congregação, cobriu com um halo de luminoso prestígio a
cabeça do presumível Adrián Gallardo Ortega, que a partir de então
teve oportunidade de falar individualmente com a maior parte dos
convidados, enquanto o homem que o acompanhava permanecia
em silêncio, um passo atrás, como um guarda-costas indigno de
atenção.
– E tu, não bebes nada? – Só Luci se aproximou dele, enquanto
Manolo falava com um casal de britânicos. – Anda, acompanho-te
ao bar.
Apesar de ter a certeza, depois da irrupção do filho predileto do
Führer, de que nenhuma quantidade de álcool conseguiria
embebedá-lo, Guillermo conformou-se com um copo de xerez e Luci
sorriu ante semelhante escolha.
– Devias ter ficado em Madrid – sussurrou-lhe, depois de se
afastarem dos empregados. – Esta gente não gosta nada de…
Esticou o indicador da mão direita, apoiando-o na face e
Guillermo desatou a rir.
– Enganas-te, não somos maricas. Somos só amigos e
convidaram-me para vir com ele, embora ainda não saiba porquê.
– Nesse caso… – Luci fez uma pausa, voltou-se como se
soubesse que o acompanhante exigia a sua presença, viu a mão
que se agitava no ar e sorriu antes de acabar a frase. – Nesse caso,
devias mesmo ter ficado em Madrid. – Bebeu de um trago o
conhaque que lhe restava no copo e pousou-o numa mesa pé-de-
galo. – Bem, vou-me embora porque o meu tio fica muito ciumento
quando me afasto dele cinco minutos.
O «tio» de Luci era Louis Darquier de Pellepoix, comissário para
os Assuntos Judaicos do regime de Vichy. O falso Adrián Gallardo
reconheceu-o sem hesitar, reconhecendo também John Angus
Macnab, o fascista inglês cuja mulher, Marjorie Munden, já era
amiga de José Antonio Primo de Rivera antes de a Falange existir.
Como o anfitrião ou o próprio Degrelle, apresentaram-se com os
seus verdadeiros nomes, seguros do grau de blindagem que
poderiam esperar do regime de Franco. Outra das estrelas da
reunião, a atriz Miriam di San Servolo, beijou o herói de Berlim nas
faces com um trejeito encantador, antes de se identificar com o seu
nome artístico. Jovem, loura e sofisticada, tinha uma boa figura e
uma cara interessante, com olhos claros e bonitos, mas o maxilar
demasiado marcado e um queixo de bruxa que contrastava com o
suave contorno do rosto da sua irmã mais velha, Claretta Petacci, a
amante do Duce. Mal a reconheceu, Manuel Arroyo Benítez disse
para consigo que, se aquela receção fosse uma lotaria, ter-lhe-ia
saído o primeiro prémio, mas escondeu o júbilo e continuou a
cumprimentar toda uma galeria de criminosos famosos. A timidez do
romeno Horia Sima, cujo aspeto o assemelhava mais a um frade
cartuxo do que ao chefe supremo da Guarda de Ferro, pareceu-lhe
incompatível com os factos da sua biografia, mas um alemão jovial e
sociável, que lhe pediu que o tratasse simplesmente por Walter
embora ele tivesse a certeza de que o seu apelido era Kutschmann,
tratou-o como se o conhecesse há uma vida.
O único convidado de Herr Messerschmidt que não se levantou
para o cumprimentar foi um homem alto, que partilhava com o
anfitrião uma postura militar e aparentava uns bons sessenta anos.
Usava uns óculos de massa arredondados, bastante grandes, e um
bigode anacrónico, demasiado largo para a moda, que terminava
em duas pontas torcidas para cima. A perinha completava um rosto
que parecia do século XIX, tão bem conseguido que traía a sua
natureza de camuflagem. Manolo Arroyo aproximou-se dele o mais
que pôde por duas vezes, que lhe bastaram para descobrir que os
três homens que o rodeavam e só abandonavam o posto à vez,
para irem à casa de banho ou ao bar, falavam com ele e entre si
numa língua eslava, provavelmente croata. Ouvindo-a, o falso
Adrián sentiu o coração acelerar como se quisesse sair-lhe do peito.
Meses depois, comprovaria que a sua intuição daquela noite estava
certa e que o militar carrancudo que não falava com ninguém era
Ante Pavelić, o líder da Ustacha croata, um dos três criminosos de
guerra mais procurados da Europa.
Antes da chegada dos convidados de La Granja, o falso Adrián
Gallardo sentiu a falta do caderno novo, guardado, juntamente com
um lápis, no bolso interior do casaco. A quantidade de informação
que acumulava era tal, que apesar rudeza de Pavelić, chegou a
lamentar o seu sucesso social. Enquanto isso, Guillermo ficou
sozinho até se integrar num grupo de holandeses, de cuja
identidade Manolo não tinha muita certeza, exceto no caso de um
polícia colaboracionista de apelido Kipp. Quando tentou juntar-se-
lhes, Herr Messerschmidt exigiu a atenção dos convidados para
comunicar que o jantar os esperava no jardim. Passados instantes,
enquanto todos se atiravam ao bufete, ele mudou de direção e
fechou-se numa casa de banho. Depois de trancar a porta, elaborou
mentalmente uma lista com os nomes, nacionalidades e patentes
das pessoas que conseguiu identificar, mas, quando se preparava
para começar a escrevê-los, um calafrio percorreu-lhe a coluna
como o aviso de um dedo traidor e simultaneamente leal. O que
descobrira assustava-o tanto que decidiu confiar na memória e
guardar o caderno, intacto, no bolso de onde o tinha tirado. De
seguida, respirou fundo, examinou o rosto no espelho para ver se
estava tudo em ordem, antes de se dirigir para o jardim.
– Espero que estejas a divertir-te. – Guillermo, sozinho numa
mesa afastada, levantou um copo de vinho para o cumprimentar. –
Porque eu estou chateado como um peru… Mas a salada – e
apontou para o prato que tinha à frente –, apesar de nacional, está
porreira. Devias experimentar.
Quando voltou do bufete, Guillermo já não estava sozinho. Os
holandeses haviam-se sentado com ele e festejaram a oportunidade
de conhecer melhor o herói de Berlim. Manolo, cansado de repetir a
história das suas proezas fictícias, fê-lo uma vez mais, mas, antes
de os tanques soviéticos entrarem pela Porta de Brandeburgo, o
som de buzinas interrompeu-lhes o avanço.
A chegada dos privilegiados que Franco havia convidado para La
Granja alterou o equilíbrio de interesses da reunião e rarefez ainda
mais uma atmosfera onde o oxigénio já escasseava. Clarita, muito
elegante num vestido de cocktail estampado, branco com flores em
tons avermelhados, dirigiu-se para o jardim com os braços abertos e
o sorriso radiante de uma atriz de cinema a cumprimentar os seus
admiradores em noite de estreia. Contudo, Fräulein Stauffer não era
a única estrela que se juntou ao serão. Johannes Bernhardt, o todo-
poderoso presidente da Sofindus, chegou atrás dela com um sorriso
não menos radiante, e até Guillermo se deu conta de que os
convidados se dividiram então em dois grandes grupos, os que
foram a correr beijar Clara e os que esperavam a sua vez para
apertar a mão do empresário. José Félix de Lequerica, antigo
ministro dos Assuntos Exteriores de Franco e salvador evidente de
alguns dos presentes, colocou os aduladores de Fräulein Stauffer
em apuros e obrigou-os a dividirem-se para homenagearem ambos.
Menos sucesso tiveram outros espanhóis, com a relativa exceção
dos Víctor de la Serna, pai e filho, que se moviam naquele ambiente
como em sua própria casa. Estavam ambos a par do regresso à
pátria de Adrián Gallardo e pediram a Herr Messerschmidt que lho
apresentasse. Mais tarde, outros senhores espanhóis aproximaram-
se para o conhecer.
Quando apertou a mão de Esteban Maroto, que tinha vindo de
Madrid sem a mulher, procurou Guillermo com os olhos, mas não o
encontrou. Clarita também tinha desaparecido. Reapareceram
juntos ao fim de alguns minutos e aproximaram-se para
cumprimentar Adrián. Depois, sem parar para conversar com mais
ninguém, Clara dirigiu-se para a mesa dos croatas, abraçou durante
uns segundos o homem dos óculos e da pera, sentou-se ao lado
dele e nem se levantou quando, por volta da meia-noite, Degrelle
fez um brinde que desencadeou um fim de festa previsível.
Enquanto todos os camaradas entoavam o Horst Wessel com o
braço levantado, Fräulein Stauffer mantinha os seus junto ao corpo,
absorta na conversa com Ante Pavelić, ambos com o sobrolho
franzido dos conspiradores em apuros, ela a tomar notas
esporadicamente num caderninho semelhante ao que Manolo
guardava no casaco, ele a coçar a testa de quando em quando com
uma expressão de verdadeira preocupação. Eram quase duas da
manhã, e Guillermo já tinha gritado Arriba España! várias vezes,
quando Clara se levantou e se dirigiu para eles.
– Disseram-me que vieram de burro, é verdade? – Os dois
assentiram e ela soltou uma gargalhada. – Eu tenho o carro ali fora.
Vou voltar para Madrid, mas, se quiserem, deixo-vos na aldeia. Fica-
me a caminho.
Não foram sozinhos. A dona do veículo sentou-se no banco
traseiro, entre o cavalheiro do século XIX e um dos seus guarda-
costas, depois de pedir aos dois protegidos que se apertassem no
banco da frente, ao lado do motorista. Quando o carro arrancou,
Manolo teria dado qualquer coisa para ter olhos na nuca. Pressentiu
que nunca mais estaria tão perto do croata e esperou pelo menos
ouvir-lhe a voz, mas a única que escutou naquele trajeto tão curto,
de pouco mais de dez minutos, foi a de Clarita.
– Vamos ver se nos encontramos depois do verão porque quero
falar-vos de uma ideia que me ocorreu. – Discorria num tom quase
musical, tão risonha e descontraída como se não fosse a mesma
mulher que tinham observado uma hora antes. – Como temos tantos
hóspedes estrangeiros que precisam de aprender espanhol, pensei
que podíamos criar grupos de conversação, o que acham? Recorrer
a pessoas amigas que juntem duas ou três vezes por semana, nas
suas casas, grupos mistos, para que os nossos convidados
pratiquem a língua. Com os romenos não há problema. Eles
aprendem espanhol com muita facilidade, mas temos outros,
eslavos, húngaros, croatas – pronunciou a palavra sem qualquer
ênfase –, até belgas e franceses, e alemães, evidentemente, a
quem faria muito bem. O que acham? Posso contar convosco?
Depois de ambos se oferecerem com a mesma veemência, Clara
traduziu a iniciativa para alemão, a fim de informar os
acompanhantes estrangeiros, e não houve tempo para mais. No
momento em que o carro entrava na aldeia, voltou ao espanhol para
desejar um bom verão a Adrián e a Rafa, contou-lhes os seus
planos de férias e foi até à porta da estalagem para os abraçar.
Quando tornou a entrar no carro, já o guarda-costas ocupava o
banco dianteiro. Nem ele, nem Pavelić moveram um músculo para
se despedir deles.
Frau Weiss reservara-lhes dois quartos que comunicavam entre
si, e a primeira coisa que Manolo fez quando entrou no seu foi pôr
uma cadeira ao lado da cómoda para a usar como secretária.
Finalmente, tirou o caderno, abriu-o e olhou para Guillermo.
– Conta-me o que aconteceu há pouco. A Clara levou-te lá para
dentro, não foi?
– Sim, mas… – Negou, abanando a cabeça. – A verdade é que
não aconteceu nada. Ao chegar, cumprimentou-me e começou a
rodar a cabeça como se estivesse à procura de alguém. Depois,
pediu-me que a acompanhasse porque queria procurar don
Eduardo, que estava no salão, perguntou-lhe por um tal Ban e…
– Ban? – Manolo esboçou uma expressão de surpresa. – Não
seria antes Bam, com «m»?
– Bom… É possível, não sei. Essa letra muda alguma coisa? –
Manolo assentiu, mas não quis ser mais explícito. – A questão é que
don Eduardo disse à Clara que o Ban, ou Bam, seja lá o que for, não
se atrevera a vir. Usou o verbo atrever-se, lembro-me porque me
chamou a atenção. Ela perguntou-lhe porquê e ele olhou para mim,
sorriu e disse-lhe alguma coisa em alemão para que eu não
percebesse. A Clara encolheu os ombros e replicou que estava bem
e que tinham problemas mais graves para solucionar. Depois disse-
me que tinha pedido para eu vir porque queria apresentar-me um
amigo, mas que fora ele quem não pudera vir. E pronto. Desculpa,
mas não tenho mais nada que contar.
Quando Guillermo se deitou, Manolo continuava a escrever.
Quando acordou, o amigo dormia profundamente no quarto ao lado
e no caderno que deixara sobre a cómoda restavam muito poucas
folhas em branco.
– Queres que o dê à Meg? – propôs-lhe ao voltar de um passeio,
perto do meio-dia, encontrando-o finalmente acordado.
– Não, tenho de a ver. Preciso de falar com ela acerca de tudo
isto.
A diplomata norte-americana tirava os sapatos para entrar
descalça no prédio. Costumava aparecer entre as quatro e as cinco
da manhã, com menos frequência do que ambos teriam gostado e
moderadamente disfarçada, com uma peruca morena coberta por
um lenço, uma saia disforme, até meia perna, sapatilhas de lona e
um saco grande de pano por onde espreitava um pau de vassoura.
Com o tempo, tinha descoberto a eficácia insuperável deste último
pormenor. Em 1948, os únicos noctívagos eram os meninos de boas
famílias, sendo que as mulheres da limpeza eram tão invisíveis para
eles como para os trabalhadores mais madrugadores, que andavam
pela rua meio adormecidos.
Meg quase nunca anunciava as suas visitas e a surpresa
aumentava a euforia do amante, a alegria com que a despia no
quarto dos contadores e com que se instalava com ela, com muito
cuidado, num catre de lona que parecia desfazer-se sob as suas
investidas. Os encontros, sempre curtos, incómodos, nunca haviam
sido tão emocionantes como nessa altura, embora os dois
sentissem a falta de uma cama de casal. O sexo com Meg era um
luxo, um presente tão valioso para o impostor, que nunca o era tanto
como quando a tinha nos braços, que não renunciou a ele na noite
em que lhe entregou o caderno escrito em Cercedilla. Depois, já
vestidos, ele atrás do balcão, ela sentada a seu lado, falaram
durante algumas horas da festa de Herr Messerschmidt.
Aquele festim representava o prelúdio de uma longa seca. A 19
de julho, Clara foi para Sitges veranear e levou Ingrid. Pondo em
prática o calendário feliz dos espanhóis ricos, prolongou as férias
até princípios de outubro, quase três meses durante os quais Adrián
não voltou a ter notícias dela, nem de qualquer outro membro da
rede. De regresso, pelo contrário, Fräulein Stauffer revelou a
eficácia do seu sangue alemão, desenvolvendo em muito pouco
tempo o projeto que esboçara enquanto fazia o trajeto entre
Fuenfría e a aldeia de Cercedilla. No início de novembro, Manolo
começou a ir duas vezes por semana, a meio da tarde, a casa de
Ingrid, para conversar em espanhol com os dois guarda-costas de
Pavelić, entre outros. Guillermo tinha um horário semelhante, em
dias diferentes e em casa de Amparo Priego. A 6 de dezembro, dia
de São Nicolau, anfitriões, alunos e professores encontraram-se na
festa que Clara ofereceu no número 14 da calle Galileo.
Nessa altura, Manolo já tinha pedido a Meg que procurasse um
presente de Natal para Guillermo. Não tinha sido fácil encontrá-lo e
não havia chegado a tempo da consoada, mas estava pronto no dia
de Reis. Nessa tarde, ao sair da casa de Ingrid, o falso Adrián com a
sua caneta Pelikan, e o falso Rafa com um modesto cachecol
cinzento, tricotado à mão, foram juntos até à calle del Pez.
– Sobe um pouco, que tenho uma coisa para ti e não ta posso
dar na rua.
Chegados lá acima, entregou-lhe uma caixa embrulhada e presa
com uma fita azul-celeste com um grande laço.
– O que é isto?
– Foi a Meg que embrulhou. – Manolo sorriu. – Abre-a.
Quando pegou na pistola, uma Smith and Wesson reluzente, tão
bem oleada que parecia nova, embora ao examiná-la tenha visto as
marcas do buril que havia apagado o número de registo, Guillermo
estava tão nervoso que nem sequer se deu conta de que ia repetir a
mesma pergunta.
– O que é isto?
– Tu não sabes disparar, pois não? – O amigo não parou de
sorrir ao vê-lo negar com a cabeça. – Então, acho que está na hora
de aprenderes.

Quando me transmitiu o convite de Herr Messerschmidt, o


Manolo avisara-me de que, na rede Stauffer, risco era sinónimo de
perigo. No dia de Reis de 1948, já o tinha descoberto sozinho, mas
ainda não estava preparado para me ver com uma pistola nas mãos.
– Não te assustes. – Ele parecia muito calmo, muito seguro do
que dizia. – Isso é o principal. Está descarregada e não tem
munições. Tenho de encontrar um sítio onde possa ensinar-te a usá-
la e depois… Soube que don Eduardo tem um pequeno campo de
tiro na casa de Cercedilla. Os camaradas vão lá treinar aos
domingos. Quando melhorares a tua pontaria, iremos com eles em
excursão.
– Isto é de loucos, Manolo. Eu sou cirurgião, percebes? Dedico-
me a consertar o que estes trastes provocam, não a usá-los…
Nunca hei de aprender.
– Claro que hás de aprender. – Abanou a cabeça, dando razão a
si próprio. – Este traste, como tu lhe chamas, pode salvar-te a vida.
Não sei se te dás conta do tipo de pessoas com quem estamos a
lidar…
Pousou o indicador a meio da clavícula e acariciou a pele entre a
garganta e o peito com um movimento circular que não foi suficiente
para me reconciliar com o seu presente de Reis, mas que bastou
para lhe dar razão. Tanta razão, que até me senti culpado por me ter
esquecido do Marcos.
Dois meses antes, tê-lo-ia reconhecido sem hesitar como o mais
novo dos guarda-costas do homem disfarçado, cuja presença tanto
agitara o Manolo em Cercedilla, embora o seu aspeto se tivesse
deteriorado muito no último trimestre. Vendo-o de perto, calculei que
tivesse uns trinta e cinco anos e que nunca chegaria aos quarenta.
Antes de a Amparo mo apresentar, chamou-me a atenção a sua
pele amarelada e, mais ainda, o tom sujo, de âmbar manchado, que
lhe turvava o que deveria ser o branco dos olhos. Era o único croata
do meu grupo de conversação, do qual também faziam parte dois
dos três holandeses que conheci em casa de Messerschmidt, um
muniquense rechonchudo, sorridente, agraciado com o aspeto
plácido de um pai feliz de família numerosa, e um húngaro taciturno,
de olhos cansados.
– Bom, então vamos começar. – Sentámo-nos os seis à mesa da
sala de jantar para a nossa primeira lição, eles com cadernos e
canetas, eu de mãos vazias. – Chamo-me Rafael, nasci numa
povoação de Toledo, sou solteiro e trabalho numa transportadora.
Agora é a vossa vez de me dizerem como se chamam, de onde são,
em que trabalham…
Estava uma tarde chuvosa, tão escura e desagradável como o
mês de novembro em Madrid pode chegar a ser, porém, à entrada,
a dona da casa pediu-nos que deixássemos os casacos e os
guarda-chuvas no bengaleiro da entrada, explicando que ali estava
sempre muito calor. Era verdade, mas, mesmo que o porteiro do
prédio alimentasse a caldeira como se fosse o fogareiro de Lúcifer,
Marcos insistia em manter-se com o sobretudo. Espantou-me que,
ao tirá-lo, já sentado na cadeira que eu lhe indicara, não desistisse
do cachecol grosso de lã que lhe dava duas voltas ao pescoço.
Quando a Clara telefonou para a transportadora propondo-me
que me encarregasse de um grupo, avisei-a de que nunca tinha
dado aulas e de que não sabia se o faria bem. Ela soltou uma
gargalhada do outro lado da linha e afirmou que a única coisa que
esperava de mim era que obrigasse os meus alunos a falar
espanhol e que lhes corrigisse os erros que fossem cometendo.
Propôs-me que fizesse rondas de intervenção, escolhendo um tema
para que eles o comentassem à vez, e antes de desligar calculei
que o Manolo adoraria essa metodologia. No dia seguinte, veio
buscar-me à saída do trabalho e entregou-me uma lista de assuntos
de conversa que poderiam ajudar-me a identificar os meus alunos.
De seguida, recomendou-me que desse as aulas sem apontar nada,
para evitar qualquer suspeita. No caso do Marcos, aquela
precaução foi absolutamente supérflua.
– Eu… – Demorou um bom bocado a encontrar um verbo. –
Estar… Marcos.
Foi o último a intervir e aquelas três palavras bastaram para
revelar que o seu conhecimento do espanhol era quase nulo. Aquilo
aborreceu-me bastante, porque a Clara me tinha garantido que
todos conheciam os rudimentos da língua, mesmo que só usassem
os verbos no infinitivo. No entanto, depois de proferir o seu nome
falso, Marcos compôs com muito esforço uma frase com duas
palavras espanholas, pequeno e nascer, entre outras de uma língua
estranha que não fui capaz de identificar. Depois rendeu-se, abanou
a cabeça e pareceu repeti-lo em alemão.
– Esperem um pouco.
A Amparo estava na sala a ler uma revista e sorriu quando me
viu aparecer.
– Vem comigo, por favor – pedi-lhe. – Há um deles que não sabe
nada, mas acho que fala alemão.
– Está bem. – Levantou-se, aproximou-se de mim, rodeou-me o
pescoço com os braços. – Mas depois vais ter de me pagar a
tradução.
– Achas? Veremos. – Beijei-a nos lábios e sorri também. – Sou
um pobre funcionário de escritório, já sabes…
Estreitou-se contra mim como se quisesse cobrar um sinal, com
o mesmo entusiasmo que lhe tinham inspirado aquelas aulas de
conversação, que prometiam uma cobertura ideal para os nossos
encontros. Nunca consegui averiguar se ela tinha arranjado algum
esquema para que me atribuíssem o grupo da sua casa ou se a
Clara se inspirara na nossa amizade infantil de uns remotos verões
em San Rafael para nos juntar, mas o rumo que tomou a aula
depois da chegada dela fulminou qualquer ilusão de romantismo.
– A Amparo fala alemão – anunciei aos meus alunos depois de
lhe pedir que se sentasse ao meu lado. – Pedi-lhe que viesse
ajudar-me com o nosso amigo. Ela agora vai traduzir-lhe o que
acabei de dizer.
O Marcos, que entendia um pouco uma língua que não sabia
falar, assentiu com a cabeça e inclinou-se como se precisasse de se
concentrar. Tinha a cara redonda e o cabelo, não muito curto e
muito liso, espalhou-se-lhe sobre a testa e deu-lhe o aspeto de um
colegial inseguro, arrependido de não ter estudado a lição, mas a
impressão depressa se dissipou. Depois de ouvir a Amparo,
levantou a cabeça, olhou para mim, entortou os lábios, duas linhas
muito finas, num ângulo sinistro, levantando apenas um canto da
boca e revelando um simulacro de sorriso. Depois disse uma frase
em alemão e estendeu a mão direita, dando a vez à intérprete.
– Chama-se Marcos – verteu ela para espanhol com uma
expressão ainda tranquila, descontraída. – É da Croácia, de uma
aldeia muito pequena, a uns cem quilómetros de Zagrebe.
– Muito bem – aprovei. – Então vamos ensinar-lhe como se diz
isso…
Todavia, o Marcos não me deixou continuar.
– Diz que ainda não acabou, que ainda tem de falar da sua
profissão.
Estive quase a opor-me, a insistir em ensinar-lhes frases curtas,
mas ele não tinha parado de sorrir nem de olhar para mim. Devolvi-
lhe o olhar, fui até ao fundo dos seus olhos e descobri a ferocidade
de uma ave de rapina que sobrevoava uma vítima que só poderia
ser eu. No entanto, quando lhe permiti continuar, fui o último a
compreender a razão oculta da sua intervenção, que provocou um
motim entre os meus alunos.
– Que disse ele?
Quando consegui perguntar, o húngaro, pálido como uma figura
de cera, já se tinha ido embora sem se despedir de ninguém.
Enquanto saía da sala de jantar, tão depressa como se fugisse de
um perigo mortal, o homem de Munique, que se apresentara como
Friedrich, levantou-se e dirigiu-se ao Marcos aos gritos. Estava tão
furioso que julguei que lhe ia dar uma bofetada, mas limitou-se a
ficar de pé, junto da cadeira, insultando-o numa língua que eu não
entendia. Um dos meus alunos holandeses levantou-se para apoiar
aos gritos os argumentos do alemão. O outro tinha cruzado os
braços sobre a mesa para neles esconder a cabeça como uma
criança assustada. A Amparo observava tudo isto com os olhos
arregalados. O sangue fugira-lhe da cara e dera à sua maquilhagem
um aspeto grotesco, de máscara pintada, com os limites do blush
visíveis na palidez repentina e os ouvidos surdos à minha pergunta.
– Que disse ele? – repeti, abanando-a suavemente pelo
cotovelo.
Ela olhou para mim como se não me conhecesse. Depois
levantou-se e saiu da sala de jantar sem uma palavra. Olhei para a
frente e hesitei uns instantes porque o Marcos se tinha levantado,
por sua vez, para gritar tão perto de Friedrich que pareciam prestes
a começar à pancada. Bom, então que o façam, concluí. Levantei-
me, fui à procura da Amparo e encontrei-a de pé no meio da sala, a
contorcer as mãos com tanto afã como se torcesse um pano
húmido.
– Disse… – Não tive de fazer a mesma pergunta pela terceira
vez. – Disse que é um assassino, um criminoso como todos os
outros. Que matou muitos judeus e muitos sérvios num campo, Jasi,
Jase… Não sei, estou muito nervosa, não me lembro do nome.
Também disse que gostava do seu trabalho, que ganhou duas
medalhas por fazê-lo tão bem. E que o pai lhe tinha ensinado que
um sérvio bom é um sérvio morto.
– E então os outros aborreceram-se?
– Os outros disseram-lhe que se calasse, que não falasse disso.
– Movia os lábios sem me olhar, com os olhos cravados num quadro
pendurado atrás de mim, como se a sua visão pudesse atravessar-
me. – Mas ele disse que não veio aqui para mentir, que ninguém lhe
disse que teria de mentir. E começou… Começou a perguntar aos
outros porque tinham fugido, e se nunca… Se nunca tinham entrado
numa casa à noite para arrancar algumas crianças da cama, e disse
umas coisas… Horríveis. – Olhou para mim, abraçou-me, escondeu
a cabeça no meu ombro. – Foi horrível, Guillermo.
– Não me chames Guillermo – sussurrei-lhe ao ouvido, ouvindo
passos atrás de mim.
– Peço desculpa, minha senhora… – Friedrich estava ao nosso
lado, os holandeses, um passo atrás. – Peço desculpa, senhor…
Rafael. Isto muito mau – abanou a cabeça num gesto mortificado,
que acentuou o seu ar de honesto funcionário público com filhos a
mais. – Muito mau. Peço desculpa.
– Não se preocupe – desfiz suavemente o abraço da Amparo e
voltei-me para ele. – A culpa não foi sua.
– Muito mau, muito mau – repetiu, estendendo-me a mão antes
de acrescentar que também eles se iam embora.
A Amparo acompanhou-os à porta, mas eu não me movi.
Precisava dela para expulsar Marcos, que decerto continuava na
sala de jantar, muito satisfeito, calculei, com a tempestade que tinha
desencadeado. No entanto, quando ela voltou do vestíbulo,
recusou-se a ir comigo procurá-lo.
– Vai tu, esse tipo mete-me medo. Não quero voltar a vê-lo na
minha vida. Além disso, não sei, não percebo…
– Eu sim – repliquei. – Eu percebo-o.
Mas não tive de lho explicar porque o Marcos cruzava a porta
que separava a sala da sala de jantar. Trazia o sobretudo dobrado
sobre um braço, o cachecol na outra mão, e o que pretendera
esconder, uma camisa miserável, mais amarela do que branca, com
o colarinho muito coçado e sem dois botões, deixava ver uma
mancha mesmo abaixo da garganta, um centímetro acima da união
das clavículas. Aquele grão redondo e minúsculo de um vermelho
intenso, rodeado por uma pequena estrela de pele escarlate,
confirmou o diagnóstico que me sugerira o tom alaranjado da pele, o
âmbar sujo dos olhos. Era cirrose e, a avaliar pelo aspeto da
estranha tatuagem que os livros pelos quais aprendi medicina
denominavam aranha vascular, estava muito avançada. Aquela
certeza paralisou-me por instantes, causando-me um dilema moral
mais complexo do que julgara de início. Eu não tinha deixado de ser
médico e a minha obrigação era dizer àquele doente que
consultasse um especialista. No entanto, aquele doente era um filho
da puta cuja morte seria um bem para a Humanidade. Por outro
lado, nenhum especialista conseguiria evitar que esse benefício se
consumasse. Marcos não tinha salvação, e eu sabia-o. Talvez por
isso, porque não tinha nenhum interesse em aprender uma língua
que não teria tempo de praticar, tenha cedido ao impulso macabro e
exibicionista que me arruinou a primeira aula. Até aqui as coisas
estavam claras. Daí em diante, por muito que pessoalmente lhe
desejasse a agonia mais cruel, convinha-me ter em conta que a
Amparo sabia que eu era médico, que, para a missão do Manolo,
era essencial não despertar suspeitas e, sobretudo, que me podia
dar ao luxo de ficar bem porque aquele cabrão ia morrer na mesma.
– Diz-lhe que devia ir a um hospital para que lhe examinem a
mancha que tem na garganta.
– O quê? – Ela voltou-se e observou-me, enquanto ele
continuava plantado à nossa frente, baloiçando-se suavemente
sobre as duas pernas sem deixar de sorrir.
– Diz-lhe – insisti. – Diz-lhe que fui enfermeiro durante a guerra,
que vi casos como o dele… Este homem tem cancro de fígado. Está
muito doente.
Antes de traduzir, retrocedeu um passo e escondeu metade do
corpo atrás de mim, como se até falar com ele a assustasse. Ele
ouviu-a, assentiu com a cabeça, respondeu e desatou a rir.
– Já foi ao médico e ele disse-lhe que ia morrer – traduziu a
Amparo num sussurro. – Deu-lhe três meses de vida, no máximo. E
sabe que vai para o inferno porque é uma pessoa muito má.
Quando ela terminou, assenti sem deixar de olhar para ele. O
Marcos retribuiu o olhar, sorriu e acrescentou alguma coisa em
alemão.
– Diz que tu não és dos nossos – informou-me a Amparo. – Vou
responder-lhe que é um idiota.
– Não, não lhe digas nada. Acompanha-o à porta e ele que se vá
embora de uma vez.
– Acompanha-o tu. – Apertou-me o braço. – Por favor. Ele mete-
me medo.
Porém, ele acabou por ir sozinho. Quando se dirigiu para o
vestíbulo, segui-o à distância. Depois de abrir a porta, voltou-se,
ergueu o braço direito, dobrou três dedos esticando o indicador para
simular a forma de uma pistola e apertou um gatilho imaginário,
disparando sobre mim antes de se ir embora.
– Peço desculpa, Rafa. – A Clara telefonou-me para o escritório
no dia seguinte e na voz dela, simultaneamente melosa e autoritária,
detetei o tom da superiora de um convento de clausura. – O Wilhelm
contou-me tudo. – Foi assim que descobri que eu e o meu aluno
alemão tínhamos o mesmo nome. – A culpa foi minha. Não
pretendia incluí-lo em nenhum grupo, mas ele insistiu muito e os
amigos dele… – fez uma pausa mais longa do que o razoável. – O
Marcos é o protegido de um camarada muito querido para mim e
ambos sofreram muito desde o fim da guerra. Por isso, cedi, mas foi
um erro. O que aconteceu ontem deve ter sido muito desagradável
para ti, para todos, e quero pedir-te perdão.
– Não teve importância, Clara, não te preocupes.
– Claro, claro que é importante, é importante para mim. A
Amparo contou-me que ainda por cima tiveste a amabilidade de lhe
recomendar que fosse a um médico e ele… – A segunda pausa foi
mais curta do que a primeira. – Que deceção, Rafa! Estou desolada.
É verdade que ele está muito doente, que vai morrer, mas nem isso
o desculpa, embora… – A terceira, quase impercetível. – Ele não
voltará a incomodar ninguém, garanto-te.
Quando desliguei, tive a sensação de sair de um frigorífico, como
se a última frase me tivesse prendido num bloco de gelo que nunca
conseguiria derreter com o calor do meu corpo. O tom de delicada
cortesia que tinha escolhido para se desculpar endureceu tanto e
tão abruptamente que admiti pela primeira vez que a encantadora
Fräulein Stauffer pudesse ser uma mulher temível. Esse acabou por
ser o diagnóstico mais acertado, porque o Marcos tinha uma cirrose
que metastizara para outros órgãos vitais, mas nunca se chegou a
contorcer de dor numa longa agonia.
– Limparam-lhe o sebo. – O Manolo olhou em volta, comprovou
que as mesas contíguas à nossa continuavam desocupadas e
baixou a voz, depois de pedir alegremente duas imperiais a um dos
empregados do Lion que já tratávamos por tu. – Fizeram
desaparecer o teu aluno alcoólico e tagarela.
Nem tinham passado três dias desde que a Clara me avisara de
que o Marcos não voltaria a incomodar ninguém e talvez por isso a
notícia me tenha afetado tanto.
– Como soubeste?
Ele tinha começado o seu próprio grupo de conversação antes
de mim, reunindo às terças e às quintas-feiras em casa de Ingrid.
Não contando com a anfitriã, que precisava mais das aulas do que
alguns dos outros alunos, era evidente que a Clara o tinha posto à
frente de um grupo de evadidos mais relevantes, mais perigosos e
mais importantes para a sua organização do que os alunos que me
atribuíra. Entre eles, constavam os dois camaradas do Marcos que o
acompanhavam em Cercedilla como guarda-costas do Pavelić, a 18
de julho do ano anterior. Apesar de ter decidido aproximar-se dos
alunos e de ter instituído o hábito de irem todos comer umas tapas
depois da aula, ainda não tivera tempo para grandes familiaridades.
No entanto, não precisou de mais para interpretar os sinais que se
sucederam na véspera de se encontrar comigo.
Um dos dois ustachas tinha chegado com tão má cara que o
professor recorreu ao seu elaborado mau alemão para lhe perguntar
se estava doente. Ele respondeu-lhe que não, depois que sim,
finalmente que não estava doente mas triste, deprimido. Tenho mal
de coração, acrescentou em espanhol. Nesse momento, a Ingrid
aproximou-se dele, deu-lhe um abraço e disse-lhe em alemão que
não deveria sentir-se culpado, que fez o que era necessário, que o
outro estava a pedi-las. O segundo ustacha mandou a anfitriã calar-
se, ela acatou a ordem com a mansidão habitual e ofereceu ao
compatriota a cadeira ao lado da sua, mantendo com ele uma
conversa que mais ninguém conseguia ouvir, embora todos se
apercebessem da consoladora ternura que lhe pairava na voz. Nos
olhares perplexos, nervosos, que cruzavam, o Manolo adivinhou que
os restantes alunos ignoravam o que tinha acontecido em casa da
Amparo. Quando se deu conta de que começavam a assustar-se,
propôs em alemão começar a aula porque já tinham perdido muito
tempo. Os dois ustachas concordaram, embora o que não estava
deprimido tenha pedido à Ingrid um copo de conhaque para o seu
camarada. Enquanto ele o bebia de um gole, informou os restantes,
sucintamente, de que tinha morrido um amigo comum que era como
um irmão mais novo para o mais afetado dos dois. Ao despedir-se
deles, a Frau Weiss perguntou a que horas seria o funeral. Às oito
da manhã, responderam-lhe, no cemitério grande, o da praça de
touros…
Nessa noite, depois da aula não houve tapas. O Manolo foi a pé
para o trabalho, contudo, antes de chegar, entrou num bar que tinha
telefone, marcou o número de casa da Meg e, quando ela atendeu,
contou mentalmente até três antes de desligar. Às cinco da manhã,
uma senhora da limpeza entrou no prédio onde Adrián Gallardo
Ortega trabalhava como porteiro noturno. Ao fim de quatro horas,
uma mulher que se apresentou como funcionária da Secção
Consular da representação diplomática do Reino Unido em Madrid,
telefonou para os escritórios do cemitério de Almudena para
perguntar se fora enterrado recentemente algum estrangeiro,
possivelmente indocumentado, que pudesse ser um cidadão
escocês desaparecido de casa há três dias. Foi assim que soube
que nessa mesma manhã se efetuara, realmente, o enterro de um
estrangeiro, embora se tratasse de um homem de trinta e quatro
anos, de nacionalidade espanhola, com um nome muito esquisito
que não parecia escocês e que, de acordo com a certidão de óbito,
tinha morrido de cancro de fígado.
– Mas tu não acreditas.
– Não. – O Manolo olhou em volta novamente, embora ninguém
tivesse ocupado as mesas vazias. – O camarada, o do coração
doente, limpou-lhe o sebo, tenho a certeza.
– Bom, acabou por ter um fim melhor do que esperava.
– Se calhar foi por isso que o provocou.
Aquela hipótese pareceu-me despropositada, porém, quando tive
mais tempo para pensar, compreendi que a morte de Marcos
poderia considerar-se um suicídio passivo, consumado por mão
alheia. Apesar de mal o conhecer, não me parecia o tipo de homem
sem coragem para se matar com as suas próprias mãos, e muito
menos estúpido. Portanto, quando optou por esbanjar sinceridade
em casa da Amparo, devia ter alguma razão para assinar em
público a sua sentença de morte. Nunca a descobriríamos. Nunca
chegaríamos a saber que tipo de contas pendentes teria com os
camaradas, por que razão preferiu vê-los a tremer de medo, se não
teve tempo para se suicidar antes de o irem buscar ou se quis falar
com o seu assassino antes de morrer, mas a morte dele teve
impacto com efeitos duradouros na rede Stauffer e em todos os
seus satélites. O que mais me afetou a mim provocou tão pouca
inquietação no falso Adrián Gallardo como teria provocado no
verdadeiro.
– Estavas à espera de quê? Foi sempre assim, sempre, desde o
início. As chaminés de meia Polónia fumegavam vinte e quatro
horas por dia e eles diziam que era tudo mentira, que era uma
infâmia inventada pelos inimigos. Falavam do campo de
Theresienstadt, uma espécie de jardim de infância onde filmaram
uma série de documentários de propaganda, como se alguém
acreditasse que continuava a existir, como se não soubéssemos que
os judeus desses filmes tinham ido parar a Auschwitz no próprio dia
em que as câmaras saíram do recinto… São pessoas muito más,
Guillermo, mesmo muito más. Que nem te passe pela cabeça
confiar em nenhum deles.
Vira-os a sorrir, a abraçar-se, a levantar o braço como eu havia
levantado o punho tantas vezes, a cantar o seu hino com lágrimas
nos olhos, no entanto, até esse momento, não conseguira temê-los.
Pareciam-me demasiado normais, demasiado simpáticos, até
carinhosos, para não encaixarem no molde saudoso de um grupo de
exilados que lambiam mutuamente as suas feridas depois da
derrota. Desfrutara amiúde da sua hospitalidade, sempre mais
ostentosa do que generosa, e habituara-me à excelente educação
que lhes aflorava nos gestos, palavras e atitudes. Eram tão
exageradamente educados que o seu cavalheirismo ultrapassava os
costumes da época em que vivíamos, impregnando as suas figuras
de um brilho anacrónico e lânguido que, como o bigode de Pavelić,
parecia provir de outro século. Porém, a morte de Marcos arrancou-
lhes a pele, triturou-lhes a carne, deixou-lhes à vista os ossos que
eu não fora capaz de ver. E nada voltou a ser igual.
Antes de iniciar a minha segunda aula, o Friedrich pediu à
Amparo que nos acompanhasse à sala de jantar. Depois, sem
chegar a sentar-se, dirigiu-se-nos para nos pedir desculpa,
pousando a mão direita no lado esquerdo do corpo, sobre o
coração. Esclareceu que falava em nome de todos enquanto os
outros concordavam com as suas palavras num silêncio litúrgico de
cabeças baixas e expressões graves, executando um exercício
perfeito de cinismo coletivo que não impediu que os meus olhos
vissem, por cima da cabeça do porta-voz, a borracha da máscara de
funcionário público abnegado, pai feliz de uma família numerosa,
que lhe escondia o verdadeiro rosto. A atuação foi tão brilhante
como a dos camaradas, mas o conteúdo do discurso não esteve à
altura do seu talento dramático. Enquanto lhe devolvia um sorriso
tão falso como aquele que me exibia, não encontrei nas palavras
dele um único eco de sinceridade, nenhum elemento alheio àqueles
que compunham um argumento preconcebido, tão frágil na
aparência como eloquente na realidade.
O Wilhelm, conhecido por Friedrich, pediu-me desculpa pela
atitude do Marcos, pela sua falta de respeito para comigo e para
com a minha generosidade voluntária e gratuita, que nunca
poderiam agradecer o bastante. Desculpou-se também pela
violência verbal com que tinha respondido à agressão, pelo barulho
que tinha perturbado a paz de uma casa tão respeitável, pelo
desgosto que, sem dúvida, não permitira à dona conciliar o sono
nessa noite. Em nenhum momento insinuou que o Marcos tinha
mentido e não desmontou nenhuma das suas acusações. Sempre
às voltas com as mesmas fórmulas de cortesia, como se dançasse
uma valsa perpétua num enorme salão palaciano, também não
expressou o único conceito que lhe interessava fixar na minha
memória e na da Amparo. Nós sabemos que vocês sabem quem
somos, mas não se preocupem porque ninguém voltará a levantar a
cortina que cobre o nosso passado, e, se alguém o tentar fazer,
vocês, como nós, sabem o preço que esse alguém pagará. Essa era
a única coisa que o Wilhelm, ou Friedrich, ou como quer que se
chamasse, queria comunicar-nos, enquanto eu lhe oferecia a minha
própria máscara sorridente, escondendo atrás da curva dos meus
lábios que a única coisa que me interessava dele era a sua
verdadeira identidade, as decisões que fora capaz de tomar, os
crimes que o haviam levado a ocupar a cabeceira da mesa de jantar
de don Fermín Martínez. A Amparo, a meu lado, estava tão tranquila
como se aquela pequena representação teatral a tivesse satisfeito
por completo. Contudo, também ela teve tempo para pensar antes
de a aula acabar.
Quando os meus alunos saíram em grupo, como chegariam e
sairiam todas as tardes a partir de então, ela arrastou-me para a
cama, tentando demonstrar que a morte do Marcos conseguira
resvalar pelos nossos corpos, o dela sempre tão irresistível para
mim que tornava desnecessário qualquer exagero de
representação. No entanto, enquanto se esforçava por manter o
controlo dos seus gestos, da sua voz, a Amparo exagerou na
atuação, fingiu como se acreditasse que conseguiria enganar-me.
Vestida talvez o conseguisse, nua não. Eu conhecia cada um dos
seus rituais, a forma de pedir o que lhe agradava, o gesto a que
recorria para recusar o que não lhe apetecia, os movimentos que lhe
apressavam ou adiavam o prazer e a fronteira a partir da qual não
sabia voltar, um terreno de que nem sequer se aproximou enquanto
se exilava por vontade própria num campo de manobras desértico,
onde praticou um reportório insólito de novidades, uma exibição
vampiresca de manual, cujo rendimento ficou muito aquém dos
frutos da sua natureza simples e espontânea.
– O que tens, Amparo?
Não me respondeu. Afastou-se de mim e ficou imóvel, com os
braços colados ao corpo e os olhos a brilhar mais do que o normal.
– Vá lá, diz-me – insisti. – Diz-me o que tens.
Tínhamos atravessado juntos uma guerra civil. Ela entregou-se a
mim em território inimigo, exerceu o direito do vencedor, saqueou a
minha casa, levou o meu filho, abandonou-me nove anos antes de o
acaso e o desejo nos juntarem novamente, e nada nos tinha
impedido de navegar nessas águas tão turvas que não lhes
conseguíamos ver o fundo. Durante todo esse tempo, o sexo fora
mais forte do que tudo, tinha-nos absolvido de qualquer pecado,
preenchido os desfiladeiros, limado os montes, construído uma
planície sólida, estável, onde não precisávamos de fazer
equilibrismo para nos mantermos de pé. Ela tinha julgado que as
minhas aulas de espanhol acrescentariam uma nova camada de
cimento, mais lisa e perfeita, ao falso chão que nos protegia da
lama, mas não contara com a confissão do Marcos, e a culpa não
era dela. Quando o conheci, eu não estava habituado ao protocolo
da corte de Viena que imperava no círculo da sua amiga Clarita,
mas ela frequentara-o o suficiente para não temer nenhum dos
integrantes. Até que aquele homem falou, e as suas palavras
projetaram jorros de sangue humano, quente, que ainda manchava
as paredes da sua casa, que flutuava no milhão de partículas
minúsculas, invisíveis, que engolíamos ao respirar, que nos marcava
como se estivesse estampado para sempre na nossa pele. Ela havia
calculado mal e sentia medo.
– É que… Não quero que me deixes, Guillermo.
Tinha medo de mim, mas não só de me perder. O Marcos, na
vida e na morte, explicara-lhe onde se havia metido e as
consequências de me ter aberto as portas de par em par
inquietavam-na. Tinha medo do que eu já sabia, do que poderia
aprender no futuro, do que poderia contar um dia. Deixara de confiar
em mim porque se havia apercebido demasiado tarde de que a
nossa história não era uma simples reedição da paixão que nos
unira em tempos. Em 1936, éramos ambos inocentes relativamente
aos acontecimentos que nos agitaram como se uma mão
desconhecida puxasse por uns fios invisíveis, a reclusão que
partilhara com o avô, a morte de don Fermín, o seu desamparo, a
vontade dos nossos corpos, a nossa impotência face a eles, a
diversão, o prazer, a alegria luminosa que floresceu entre os
escombros. Naquela época, a Amparo confiava em mim, e eu já
sabia que ela não era de fiar, mas isso não teve importância
enquanto Madrid esteve nas mãos dos meus. Agora, ela nem sabia
quem eram os meus, para quem trabalhava um homem a quem
continuava a chamar Felipe quando ninguém a ouvia, porque nos
tínhamos metido por vontade própria na boca do lobo, porque
caminhávamos tão alegremente para o abismo. E eu não lhe ia
explicar.
– Porque havia de te deixar? – Aproximei-me dela, acariciei-lhe a
anca muito devagar, compreendi que ela tinha razão, que não
tardaria muito tempo a deixá-la, e a frieza com que elaborei o
raciocínio deixou-me gelado. – Estamos no mesmo barco. Se ele se
afundar, afundamo-nos juntos.
Ela desfez o gelo. Estreitou-se contra o meu corpo, rodeou-me
com as pernas, com os braços, beijou-me na boca como se fosse a
última vez, e eu cedi novamente à tentação de pensar que talvez
estivesse apaixonada por mim. Mais tarde, depois de uma queca
brusca e intensa, onde tudo foi autêntico e beneficiou também da
tensão que ainda rarefazia o ar do quarto, compreendi que isso não
tinha importância. A Amparo era demasiado egoísta para conjugar o
verbo apaixonar-se incondicionalmente, e ambos sabíamos que eu
não lhe convinha. A novidade residia no facto de ela me convir a
mim e de continuarmos a ir para a cama até ela deixar de me ser
útil. Não era um pensamento bonito, mas combinava bem com o
sangue que manchava as paredes, com a atmosfera sinistra que
respirávamos ao mesmo ritmo e com a frieza repentina das minhas
reflexões. Eu jogava em vantagem. Eu estava a par da verdade, das
regras de um jogo que ela só conseguia praticar às cegas. Por isso,
o meu espírito recuperou a temperatura normal muito antes de o
meu corpo abandonar a cama dela. A Amparo demorou mais tempo
a comportar-se como se nunca tivesse conhecido o Marcos, mas
nem ela, nem eu, voltámos a mencioná-lo.
Em meados de fevereiro, a Meg alugou uma quinta na província
de Toledo para que eu pudesse praticar com a Smith and Wesson
ao longo de um fim de semana, e eu não só aprendi a atirar como
descobri, para meu espanto, que até tinha boa pontaria.
– Não percebo. – Depois de ter estoirado três das cinco
garrafinhas vazias a alguns metros de distância, voltei-me para o
casal que se beijava com a mesma ânsia com que o fizera antes do
meu primeiro tiro. – Nas feiras, nem um triste peluche ganhava, e
agora… Que estranho.
A minha pontaria ainda melhorou bastante naquela primavera,
com as Luger que o Herr Messerschmidt punha à disposição dos
convidados todos os domingos, até que o dia 18 de julho voltou a
funcionar como uma festa de fim de curso. Don Eduardo já nos
considerava parte do seu círculo e para o demonstrar encorajou-nos
a levar acompanhante. Eu fui com a Amparo. O Manolo convidou a
Ingrid, mas, embora lhe tenha agradecido, acabou por recusar o
convite porque a Clara, disse, talvez não gostasse de a ver lá. No
dia seguinte, no entanto, foram juntas para Sitges e interrompeu-se
tudo até aos primeiros dias de outubro.
Foi justamente nessa altura, depois de um ano e meio de
inatividade, quando parecia que já nada ia acontecer, que soube o
que a Fräulein Stauffer queria de mim e comecei a desconfiar de
que ninguém me dera antes um presente tão valioso como a Smith
and Wesson sem número de registo e com munição abundante.
É UM DOS ÚLTIMOS DIAS DE FEVEREIRO DE 1948 E SEFTON DELMER ESTÁ
EM MADRID.
Filho primogénito do filólogo australiano Frederick Delmer,
professor de Literatura Inglesa na Universidade de Berlim, Sefton
nasce em 1904 na capital do Reich e assimila como próprias a
língua e os costumes do país de nascimento. Porém, em 1914, a
eclosão da Primeira Guerra Mundial arruína a existência plácida dos
Delmer na Alemanha que tanto amam. Frederick, detido e preso
como inimigo no campo de internamento de Ruhleben por ser
cidadão de um país da Commonwealth, só recupera a liberdade
quando, em 1917, uma troca de prisioneiros entre Londres e Berlim
permite repatriá-lo para Inglaterra com toda a família. Lá chegados,
os Delmer decidem ficar, em vez de voltarem para a Austrália.
Depois de concluir a licenciatura em Germânicas na
Universidade de Oxford, Sefton trabalha como jornalista freelance
até que o Daily Express lhe oferece o cargo de diretor da sua
delegação na Alemanha. De volta a Berlim, relaciona-se com o
dirigente nazi Ernst Röhm, sendo o primeiro jornalista britânico a
entrevistar o Führer. Hitler convida-o a acompanhá-lo no seu avião
privado na campanha eleitoral de 1932 e, em fevereiro de 1933,
Sefton faz parte do seu séquito na inspeção às ruínas do Reichstag.
Nessa época, o governo britânico considera-o um simpatizante nazi
a soldo de Berlim e, talvez por isso, antes do fim de 1933, o Daily
Express transfere-o para os seus escritórios em França.
Fosse ou não simpatizante do NSDAP por uns tempos, ao
regressar a Inglaterra, em setembro de 1940, junta-se aos quadros
da Direção de Operações Especiais (Special Operations Executive,
SOE), que Churchill acabava de criar para desenvolver ações de
espionagem, sabotagem e reconhecimento militar contra o Terceiro
Reich. Desde então e até ao fim da guerra, transforma-se num
virtuoso da chamada «propaganda negra». Apresentando-se como
cidadão nazi e alemão residente na Grã-Bretanha, Delmer dirige-se
às tropas de ocupação do Reich espalhadas pela Europa Ocidental
a partir de várias emissoras de rádio, aparentemente clandestinas,
que mudam amiúde de frequência e de localização geográfica.
Nestas emissões, finge apoiar os ocupantes e fornece-lhes notícias
falsas destinadas a minar-lhes o moral, informando-os, por exemplo,
de que as autoridades já reprimiram os motins provocados pela
carestia de pão em alguma região, ou de que a epidemia viral que
causou a morte de centenas de crianças numa determinada cidade
está controlada. A sua obra-prima é a Soldatensender Calais (Rádio
das tropas de Calais), emissora a partir da qual pratica a
desinformação intencional, substituindo a verdadeira localização das
linhas de defesa britânicas por dados erróneos que, num
desembarque hipotético, teriam conduzido os barcos alemães ao
desastre, enquanto ensina frases em inglês – My tailor is rich, I love
my mom, My ship is on fire – aos tripulantes.
No fim de fevereiro de 1948, Sefton Delmer faz-se passar mais
uma vez por cidadão nazi e alemão, a fim de transpor o umbral do
número 14 da calle Galileo em Madrid. Não tem de fornecer grandes
explicações. Ante o seu impecável sotaque berlinês, a porteira do
prédio, bastante familiarizada com aquele tipo de visitas,
encaminha-o sem hesitação para o domicílio da senhora Stauffer.
Lá, com a mesma imprudente naturalidade, é atendido por um
jovem alemão de cabelo muito louro, que lhe anuncia que Clarita
está doente e não o poderá receber. Em vez disso, guia-o, através
de um escritório onde trabalham várias secretárias, até a um
gabinete onde um homem mais velho do que ele o recebe,
apresentando-se como Herr Vost.
Este colaborador íntimo da anfitriã explica-lhe com uma
preocupação carinhosa, paternal, que Fräulein Stauffer se encontra
muito doente porque trabalha de mais. Está sempre em movimento,
acrescenta, viaja sem cessar, visita pessoas que precisam dela e
outras que os podem ajudar, tira presos dos campos de
concentração espanhóis, procura trabalho para os antigos
prisioneiros ou ajuda-os a sair do país. Depois, sem disfarçar o
orgulho, confessa-lhe que a organização que a chefe dirige se
ocupa de mais de oitocentas pessoas. Nesse instante, Sefton
Delmer deixa cair a máscara e revela a verdadeira identidade.
Enquanto o rosto do seu interlocutor viaja entre o assombro e o
pânico a uma velocidade maior do que a do automóvel da
incansável Fräulein Stauffer, acrescenta que trabalha para o Daily
Express de Londres e que veio a Madrid com o único objetivo de a
entrevistar, porque lhe interessa muito a descrição que o Conselho
de Controlo Aliado faz da sua atividade e o facto de ser a única
mulher cuja entrega exigem.
Herr Vost levanta-se e sai do aposento sem dizer uma palavra.
Ao cabo de uns minutos reaparece, ainda sem cor, e pede a Delmer
que o siga. Precede-o através de uma sala de jantar de madeira
escura, que ao britânico parece de estilo alemão, permitindo-lhe
depois a entrada num quarto presidido por um crucifixo enorme em
madeira de carvalho. Protegida por ele, reclinada sobre almofadas e
perfeitamente apresentável numa camisa de noite que só lhe deixa
à mostra as mãos e a cabeça, Clara Stauffer descansa na cama. «A
cara dela, com os seus fanáticos olhos azuis, o cabelo castanho
penteado com risco ao meio, o queixo proeminente, enérgico,
pertence àquele tipo de rostos dos quais nunca soube calcular a
idade», escreve Sefton mais tarde. A anfitriã é, no entanto, sua
coetânea, uma vez que nasceram ambos em 1904.
Fräulein Stauffer, pálida e transpirada, não se altera
minimamente. Educada, amável até, desculpa-se pelo estado em
que tem de o receber devido a uma pleurisia da qual terá dificuldade
em recuperar porque o telefone à mesa de cabeceira não para de
tocar. De seguida, sem lhe censurar a impostura que lhe permitiu
entrar em sua casa, pergunta-lhe o que deseja saber.
Sefton Delmer pergunta-lhe sem preâmbulos se é verdade que
dirige uma rede de fuga de criminosos de guerra e de hierarcas
nazis. Ela responde que ajuda muita gente. Sem qualquer pudor,
explica-lhe que muitos dos alemães e colaboracionistas retidos em
Espanha desejam regressar à pátria, mas que alguns preferem
emigrar para um terceiro país. Por isso, está em contacto com uma
rede de acolhimento de emigrantes, dirigida em Buenos Aires por
uma senhora alemã, uma boa amiga, chamada Cissy Von Schiller,
que residiu em Madrid até 1947. Com a mesma serenidade e um
aprumo esmagador, reconhece que também mantém contactos com
o Vaticano, dado que alguns dos seus protegidos escolhem
atravessar o Atlântico a partir de Génova.
A falta de discrição de Clara Stauffer, tocando a arrogância,
espanta o entrevistador, que lhe pergunta se o governo espanhol
conhece o seu trabalho. Nesse momento, o descaramento da
entrevistada aumenta e ultrapassa os limites da insolência. Com um
sorriso de superioridade, responde que o governo espanhol está,
naturalmente, ao corrente do seu trabalho e que conta não só com a
compreensão, mas também com a proteção do Generalíssimo.
Apesar de Delmer já o saber, sublinha a amizade íntima com Pilar
Primo de Rivera e a camaradagem fraternal com os artífices da
nova Espanha. Afirma que não sente a mais pequena inquietação.
Que não tem motivos para recear nada, nem ninguém.
A última afirmação não é totalmente verdadeira. Apesar da sua
soberba, Clara Stauffer não se sente completamente segura. Se
assim fosse não precisaria de mentir e, no entanto, mente. Com a
mesma firmeza com que afirmou tudo o resto, informa de seguida o
entrevistador de que as suas informações são incompletas e de que
também ajudou vários membros do PCE a sair do país. Isto é,
evidentemente, uma mentira em que nenhum espanhol teria
acreditado. Porém, Sefton Delmer não é espanhol e anota este dado
no bloco.
Ao fim de alguns dias, o Daily Express anuncia na primeira
página, como grande exclusivo, a entrevista de Sefton Delmer a
Clara Stauffer.
A agitação que causa na opinião pública, dentro e fora do Reino
Unido, é considerável.
Lendo a reportagem, os exilados republicanos de meio mundo
cedem certamente à tentação de, mais uma vez, acender uma vela
à esperança.
Todavia, a chama não dura muito porque, mais uma vez, nada
acontece.
MADRID, 28 DE NOVEMBRO DE 1948

O Manolo telefonou-me para a transportadora dois dias antes


para se encontrar comigo a meio da tarde. O telefonema não me
surpreendeu, mas sim o local que me propôs, porque era domingo e
só nos encontrávamos no Lion quando ele me vinha buscar ao
trabalho. Calculei que quisesse falar de algum assunto importante
num local onde a nossa presença não chamasse a atenção e
acertei. Ao ouvir o que me queria comunicar, teria dado qualquer
coisa para me ter enganado.
– Vou para Buenos Aires em meados do mês que vem.
Nenhum dos dois moveu um músculo. Não pedi uma garrafa de
champanhe, ele não se ofereceu para a pagar, e nem sequer
sorrimos. O silêncio tornou-se muito compacto, como se não
tivéssemos acabado de cruzar a meta que perseguíamos havia mais
de dois anos, um êxito magnífico por si mesmo, independentemente
de ele chegar ou não a completá-lo no outro lado do oceano. Eu
tinha assumido alguns riscos, mas o herói daquela aventura tinha o
nariz partido, e esse sacrifício representava uma ínfima parte da
fatura que pagara para conseguir dar-me aquela notícia. O Manuel
Arroyo Benítez tinha renunciado à sua própria identidade, a uma
existência cómoda, com salário fixo num país democrático, neutro,
renunciara à melancolia narcótica do exílio, à possibilidade de criar
raízes, de se casar, de ter filhos, propriedades e amigos, a um
projeto de vida próprio. Eu tinha motivos para lamentar a sua ida
para a Argentina, os mesmos que me levaram a agradecer-lhe ter-
me oferecido uma pistola, mas depois de rever a lista de tudo o que
ele descartou para ter uma única oportunidade de fazer aquela
viagem, envergonhei-me de os repetir em voz alta. Isso não me
ajudou a compreender por que razão ele não estava contente.
– Não me agrada. – Ele próprio mo explicou antes de eu ter
tempo de lhe perguntar. – Sempre julguei que embarcaria sozinho,
mas a Clara informou-me de que com certeza viajaremos juntos.
– Bom, isso é melhor para ti, não achas? Durante a viagem
podem conversar, podes averiguar…
– Está bem – interrompeu-me. – Mas não faz sentido, e é por
isso que não me agrada. Também desconheço muitos pormenores.
Ela não me falou do itinerário nem da data. Só me disse que tenho
de deixar o trabalho depois de amanhã, que vá fazendo as malas e
que não me preocupe porque ela tratará de tudo. E já sabes como
ela é quando mete uma coisa na cabeça.
– Sim, sei – Por isso decidi falar de mim. – Mas, então, quando
Otto me telefonar…
– O mais provável é eu já não estar aqui. – Fez uma pausa para
me olhar nos olhos. – Vais ter de trabalhar sozinho, Guillermo.
– Caraças! – foi a única coisa que me lembrei de dizer.
Ele observou as duas chávenas de café com leite que estavam
na mesa e levantou a mão para chamar um empregado que nunca
nos tinha visto.
– Whisky?
– Whisky.
– Duplo?
– Claro.
– Ouve-me bem, Guillermo. – E continuou a falar, só se
interrompendo quando nos serviram as bebidas. – Apesar da fama,
o Otto não é muito perigoso. Não o digo para te animar, estou a falar
a sério. Tu vês todas as semanas pessoas muito piores…
Tínhamos conseguido, finalmente, identificar os meus alunos.
Enquanto o ouvia, revi-os um por um. O húngaro Attila, com aquele
olhar triste que parecia um anúncio publicitário da alma eslava,
ordenava aos seus homens que empurrassem com as coronhas das
espingardas os judeus manietados, para que se afogassem no
Danúbio. O Friedrich, ou Wilhelm, que de facto era funcionário
público e tinha muitos filhos, pôde mandá-los estudar para Berlim
com o dinheiro que conseguiu reduzindo a zero as rações que
matavam de fome os prisioneiros de Dachau, onde trabalhava como
responsável da intendência. O Abraham, um dos meus dois
holandeses, escondeu a cabeça entre os braços quando ouviu em
voz alta a descrição precisa do seu trabalho policial. O Olij, seu
compatriota, oficial das SS, alcaide de uma povoação nos últimos
anos da guerra, podia gabar-se do preço que o governo holandês
oferecia pela sua cabeça. Isto sem contar com um doente cirrótico
cuja doença não o chegou a matar.
– O Otto é um soldado, Guillermo, apesar de não ter feito
carreira militar, é um soldado – insistiu, antes de fazer sinal ao
empregado para que nos voltasse a encher os copos. – Nazi
fervoroso, obviamente. O chefe de operações especiais preferido do
Hitler, o libertador do Mussolini, o sequestrador do filho do Horthy, o
infiltrado das Ardenas, claro que sim, era esse o seu trabalho, e ele
fê-lo muito bem. Matou muitos inimigos na frente e em missões,
como todos, mas apesar do seu aspeto, das suas cicatrizes, das
suas gabarolices, é um militar, não um assassino. Em Nuremberga
absolveram-no, não conseguiram instaurar-lhe um processo por
crimes de guerra. E tenho a certeza de que ele não se sente em
perigo porque, além do mais… – Bebeu o copo de um trago. – A
Meg fica aborrecida comigo quando o digo, mas estou convencido
de que ele trabalha para os ianques porque de que outra forma
poderia ter escapado de Darmstadt?
A 8 de outubro de 1948, às duas menos um quarto da tarde, a
rececionista veio avisar-me de que uma senhora esperava por mim
no vestíbulo. Perguntou-me se queria que a mandasse entrar, e
disse-lhe que não, porque tinha um almoço marcado e não teria
tempo para a atender. Antes de me levantar da cadeira, amaldiçoei
a minha sorte e a daquela mulher, que teria de deixar sozinha com a
sua angústia durante, pelo menos, duas horas, talvez toda a tarde.
Nessa época, a situação dos meus doentes clandestinos
alterara-se muito. Antes mesmo de o PCE ter renunciado à luta
armada, os guerrilheiros que continuavam a combater na serra
tinham desenvolvido infraestruturas relativamente complexas. Em
cada grupo, alguém sabia desinfetar, ligar, pôr talas e coser, e, para
os casos mais graves, costumavam contar com algum médico das
povoações vizinhas. Apesar de nunca passar muito tempo sem
encontrar sobre a mesa de alguma cozinha alguém que
apresentasse ferimentos provocados por balas, os soldados
calejados de outrora haviam dado lugar a rapazes muito novos,
estudantes, grevistas, operários sem experiência nem formação
militar, que enfrentavam a polícia com uma determinação quase
suicida, como em dezembro de 1946, mas a maior parte dos meus
pacientes eram simplesmente pobres, membros de famílias
antifranquistas, comunistas ou amigos de algum comunista, sem
dinheiro para pagar um médico privado ou com motivos para não
apresentarem a sua documentação num hospital. Era isso o que
esperava quando saí do gabinete e dei de caras com uma cena que
não soube interpretar.
– Não fiques aí parado, Rafa! – A Clara Stauffer, encostada ao
umbral do gabinete do meu chefe, exigiu a minha presença com um
sorriso radiante. – Não te contei que conheço o Gabino? Somos
amigos há uma vida.
– Desde os anos gloriosos de Salamanca. – O senhor De la
Fuente, que quase não respondia ao meu cumprimento nas raras
vezes em que nos cruzávamos no corredor, esboçou-me outro
sorriso, o primeiro que lhe via, antes de se voltar para ela. – Que
tempos aqueles, não é verdade? Não se passa um dia sem que me
lembre deles, a camaradagem, a esperança…
– A juventude, Gabino, que foi e já não volta.
A Fräulein Stauffer tinha telefonado na segunda-feira, logo de
manhã, a fim de me convidar para almoçar com ela, com cinco dias
de antecedência. Repetiu as mesmas palavras que tinha usado a 18
de julho do ano anterior quando nos encontrámos em Cercedilla.
Quero apresentar-te um amigo muito querido, disse-me, mas a
possibilidade de se tratar do dono de La Meridiana deixou-me
boquiaberto, e ela interpretou erradamente a minha expressão.
– Mas não ponhas essa cara, homem, que estivemos a falar
muito bem de ti, não é verdade, Gabino?
– Claro. – O dono da empresa assentiu energicamente. – E eu
não sabia que tínhamos uma amiga em comum, nem que você
colabora tão generosamente para as boas causas.
– Sim – respondeu ela por mim –, e por isso devíamos sair já.
O carro dela não demorou cinco minutos a levar-nos até ao
Horcher, um restaurante alemão tão caro que nunca me havia
ocorrido bisbilhotar a ementa, exposta junto à porta. Antes de a
empurrar, ela olhou para mim e fez-me uma estranha advertência.
– Não te assustes. O meu amigo Rolf está muito desfigurado. Sei
que vê-lo mete medo, mas garanto-te que é dos bons.
O maître cumprimentou-a com todo o carinho que a sua posição
lhe permitia e precedeu-nos sem fazer perguntas até uma pequena
zona reservada, situada ao fundo. Ele estava sentado, à nossa
espera e, quando se levantou, a sua estatura impressionou-me mais
do que as cicatrizes.
– Mein Lieber!
Eu tinha um metro e oitenta e era quase sempre o espanhol mais
alto dos círculos onde me movia. Nos últimos tempos, convivera
com estrangeiros que superavam a minha estatura, mas o tamanho
daquele homem ultrapassava todas as medidas. Quando a Clara se
encostou ao peito dele para o abraçar, parecia uma miúda
rechonchuda nos braços do pai. Ao apertar-lhe a mão, calculei que
medisse cerca de um metro e noventa e cinco. Apresentei-me e ele
respondeu sem palavras, inclinando a cabeça com um sorriso que
se espalhou desde as comissuras dos lábios, iluminando-lhe toda a
cara.
Os meus conhecimentos da língua alemã limitavam-se a uma
vintena de palavras, termos médicos e fórmulas de cortesia, entre
as quais a que Clara tinha escolhido para o cumprimentar. No
entanto, quando nos convidou a sentar, isso bastou-me para
perceber que não se dera ao trabalho de mo apresentar. A omissão
significava que o terceiro comensal já sabia quem eu era, como me
chamava e por que razão almoçava com eles. Também queria dizer
que ambos haviam decidido que Rafael Cuesta, humilde funcionário
de La Meridiana, jogava em desvantagem. Enganavam-se, porque
eu só tinha visto uma fotografia daquele homem sentado à minha
esquerda, mas não conseguira esquecer-me dela.
– Mensur – murmurei ao encontrá-la entre muitas outras,
espalhadas sobre a mesa do porteiro de um prédio da Gran Vía.
– Mensur? – O Manolo arqueou as sobrancelhas. – Não, este
chama-se Otto Skorzeny, mas não devia estar aqui.
Tínhamos reservado aquela madrugada sufocante do mês de
julho para vermos fotografias, retratos mais ou menos nítidos de
homens quase sempre fardados que, com sorte, poderíamos
encontrar à civil na festa de Messerschmidt. Eu tinha aplaudido
aquela sessão, quase um recreio a meio de um curso intensivo de
nazismo que o meu amigo considerava imprescindível, contudo, ao
fim de uma hora, todas as fotografias me pareciam iguais e todos os
nazis, o mesmo. Todos menos ele.
– Não me refiro ao nome, mas às cicatrizes, sobretudo a esta.
Apontei para a costura que atravessava a cara de um oficial das
SS de cabelo castanho, olhos claros, num retrato de estúdio de
muito boa qualidade. O modelo tinha posado em perspetiva, um
ângulo calculado para que se visse bem a marca do sabre que lhe
rasgara a pele desde a base do pómulo esquerdo, junto da orelha,
até ao fim do queixo. Fora bem-sucedido, evidentemente, embora a
cicatriz fosse tão grande e tão profunda que teria monopolizado
igualmente a atenção do espectador ainda que numa imagem em
movimento ou desfocada.
– Isto chama-se Schmiss. – Recorri ao meu exíguo vocabulário
alemão, percorrendo-a devagar com a ponta do indicador. – E não é
uma cicatriz comum, mas uma espécie de marca de honra, uma
condecoração que demonstra a coragem de quem a exibe. Este
homem deve ser austríaco. – O Manolo assentiu com a cabeça e eu
fiz o mesmo. – O Mensur é muito popular na Áustria entre os jovens
de classe alta. É uma espécie de esgrima selvagem que se pratica
sem máscara porque o que os participantes pretendem é,
justamente, que lhes rasguem a cara, para poderem ostentar um
Schmiss que prove que não tiveram medo, que aguentaram o sabre
do adversário sem se afastarem. – Sorri ante o sobrolho franzido do
meu amigo. – Uma loucura, claro.
– E como sabes tudo isso?
– Porque o estudei na faculdade. O Mensur é uma fonte
inesgotável de conhecimentos sobre feridas com arma branca e
respetiva cicatrização. Nem imaginas o que chegam a fazer para
evitar que o Schmiss feche com o tempo. Este é perfeito. Com
certeza enfiou crina de cavalo na ferida para o conseguir.
O Manolo esboçou uma careta de asco antes de me tirar a
fotografia das mãos.
– É bem capaz disso, obviamente. – Pegou na fotografia e
examinou-a com tanta atenção como se fosse a primeira vez que a
via. – Os americanos chamam-lhe Scarface, Cara Cortada, mas não
nos interessa porque não o vamos encontrar em Cercedilla. –
Devolveu a fotografia à pasta de onde saíra com um comentário
revelador. – Ou seja, acho difícil que este peixe nos caia na rede…
Quase um ano e meio depois, aquele peixe tinha caído na
cadeira à minha esquerda. O homem que a ocupava não me era
propriamente desconhecido, porque não me lembrava do seu
apelido, mas sabia que não se chamava Rolf. Tinha a certeza de
que o Manolo me contaria a vida dele com todos os detalhes assim
que tivesse oportunidade, mas nem sequer foi preciso esperar tanto.
Antes de trazerem o primeiro prato, já eu tinha ficado a saber várias
coisas sobre ele.
– Gostava mais do Horcher de Berlim. – A primeira foi que falava
espanhol melhor do que a maior parte dos meus alunos no início
das aulas.
– Um dos restaurantes favoritos do Führer. – A segunda, que na
presença dele a Clara Stauffer mencionou Hitler em voz alta pela
primeira vez desde que me havia convidado a frequentar o seu
círculo.
– Lei conoció Horcher di Berlín? – A terceira, que, como muitos
austríacos, Cara Cortada falava italiano fluentemente.
Preparava-me para lhe responder que nunca tivera semelhante
sorte, quando as portas do reservado se abriram de chofre dando
passagem a um protótipo diferente de alemão, mais proporcionado
e elegante, um cavalheiro prussiano de olhos claros e cabelo
esticado que avançou com os braços abertos para um Schmiss
impecável.
– Otto! – De tudo o que disse, foi a única coisa que percebi.
– Otto! – A única parte da resposta que o seu interlocutor
conciliou com um abraço tão forte que até o levantou do chão por
um instante.
A Clara olhou para mim, encolheu os ombros e começou a rir-se
sem grande vontade.
– Bom, já sabes como se chama o nosso amigo – reconheceu
com uma expressão aborrecida. – Suponho que não te esquecerás,
mas o melhor para todos, sobretudo para ele, é que continues a
chamar-lhe Rolf.
Os dois Ottos continuavam abraçados quando lhe garanti que
assim seria. Depois, o último a chegar cumprimentou-me,
apresentou-se como Otto Horcher e desculpou-se pela interrupção,
fruto da alegria de reencontrar um velho amigo. Deviam sê-lo, de
facto, porque as marcas de uma emoção intensa tinham roubado o
protagonismo das cicatrizes no rosto do gigante que voltou a sentar-
se ao meu lado. A Clara inclinou-se para ele, cobriu-lhe uma das
mãos com a sua e dirigiu-lhe algumas palavras das quais só entendi
a doçura. O destinatário negou com a cabeça e fez uma discursata
num tom sombrio, mais amargo do que triste. Sem perceber o que
ele disse, compreendi tudo ao identificar a derrota na sua voz, a
mais antiga e áspera das minhas amantes, mas a Clara rejeitou
essa companhia e voltou a intervir com uma energia quase
maternal, com uma reprimenda amorosa que conseguiu arrancar um
sorriso ao homem, que abanou a cabeça, pegou na mão que cobria
a sua e encheu-a de beijos antes de a pousar na face. Nesse
instante, tão adequado à música de violinos, um estrépito de rodas e
de metais provocou um final inadequado a qualquer interlúdio
sentimental. Os intérpretes eram três empregados que serviram as
entradas frias com a eficácia de autómatos, incapazes de decifrar as
emoções humanas. Como se quisessem garantir que não se haviam
apercebido de nada, recorreram à mesma mecânica eficiente para
descrever o conteúdo do prato que tínhamos diante de nós.
– Mmmm! – O falso Rolf fechou os olhos para apreciar melhor o
sabor da primeira dentada. – Köstlich!
– Excelente. – Juntei-me aos elogios ao descobrir que a cozinha
daquele local superava a sua fama e as minhas expectativas. – Está
tudo ótimo.
– Ainda bem que gostam. – A Clara sorriu antes de se voltar para
o outro convidado, mas não voltou a falar em alemão. – O que é
bom nunca acaba, estás a ver? O que é bom perdura sempre, vive
na memória, projeta-se no futuro. Portanto, deixemos as tristezas.
Porque, além do mais, estamos a ser muito indelicados com o Rafa,
que não percebe alemão.
– Não! – protestei. – Não te preocupes comigo. Agradeço-te
infinitamente o convite embora, de qualquer modo… – Voltei-me
para ele. – Já vi que fala muito bem espanhol.
– Não, bem não, pouquinho. – Franziu o sobrolho, como se
procurasse como continuar. – Falavo italiano prima…
– Antes… – corrigiu a amiga.
– Isso, antes, e… – Voltou a franzi-lo. – Tuve muito tempo por
estudar, nos ultimi mesi.
– De qualquer forma – continuei, sem pesar as consequências
do que ia dizer –, dirijo um grupo de conversação em espanhol
frequentado por outros amigos da Clara. Se quiser juntar-se a nós,
em muito pouco tempo…
Não acabei a frase porque, mal a comecei, fiquei com a
sensação de que cometera uma argolada, apesar de, quase ao
mesmo tempo, ter desconfiado de que se tratava de um erro feliz.
Só pretendia participar na conversa com um comentário cordial,
inócuo. Tinha muito presente o misterioso interesse da Stauffer em
integrar-me no seu círculo e não me passara pela cabeça que me
tivesse convidado para almoçar num restaurante tão caro para me
apresentar um futuro aluno. No entanto, foi isso que lhe li na cara,
no espanto amável dos seus olhos, na expressão de divertida
superioridade que me dirigiu o seu camarada. Acabei por parecer
um simplório, mas talvez nenhum outro papel me conviesse tanto,
porque a minha oferta não tinha sido apenas ingénua. Fora também
espontânea, imediata, generosa. O suficiente para que o
destinatário ma agradecesse com simpatia.
– Obrigado, amigo, mas não possível. – Naquele instante, o seu
sorriso era tão profundo como o Schmiss. – Eu não sou aqui hoje.
Capisce?
– Quer dizer… – Levantei a mão para indicar que não precisava
de tradução.
– Sim, percebo – sublinhei num tom quase solene. – Eu não o
conheço porque hoje não nos vimos.
– É isso – aprovou ela.
– Mas retorneró – prosseguiu ele. – Por pedir-lhe um favor.
Os empregados levantaram os pratos vazios, deixando-nos a sós
com um creme de batata com gema de ovo e trufa, e a Clara
esperou que saíssem antes de tomar a palavra.
– Não é um simples favor, Rafa. – Fez uma pausa para saborear
o conteúdo da colher. – Estás em posição de nos prestares um
enorme serviço. – E continuou a alternar o creme com a informação,
aumentando a cada colherada a tensão e o peso das palavras que
dizia. – A tua colaboração resolveria os problemas de muitos
homens bons injustamente perseguidos, como o teu amigo Adrián.
Ele não teria conseguido sem ti e agora muitos outros dependem da
tua ajuda. Não te assustes, porque não te vou envolver em nada
perigoso. Mas às vezes obtêm-se vitórias mais decisivas num
gabinete do que nos campos de batalha.
Antes de responder, deixei o prato vazio. Compreendi que havia
chegado o momento por que esperava desde o dia 18 de julho do
ano anterior, mas não tinha tempo para pensar e decidi manter-me
no papel de simplório, que tão bons resultados tivera durante as
entradas.
– Bom… não sei. – Também não senti dificuldade em parecer
aflito, porque o estava. – Que responsabilidade! Mas,
evidentemente, o que eu puder fazer… Conta comigo para o que
precisares.
A partir desse momento, daquele almoço só fui capaz de me
lembrar da voz da Clara Stauffer, da gravidade com que proferiu um
discurso impecável sem a mais pequena hesitação, escolhendo
sempre os eufemismos mais eficazes, as palavras mais
tranquilizadoras, mais indicadas para adular discretamente a minha
pobre vaidade de empregado de escritório e me elevar ao nível dos
eleitos que têm nas mãos as rédeas da História. O seu tom de voz
cúmplice, carinhoso, reservado aos amigos íntimos, diminuiu a
solenidade da intervenção, que sugeria que nunca me poria em
perigo, nem me proporia um plano que não me conviesse. Foi isso
que tentou transmitir-me quase sem pausas, além das impostas
pelos três empregados que pareciam cegos e surdos. Mudos não,
porque descreveram diligentemente o robalo no forno e o assado de
veado, que engoli pela metade, sem chegar a apreciar-lhe o sabor
delicioso porque concentrava toda a minha atenção na voz doce e
temível que tomava o meu destino de assalto.
– Estamos interessados em completar uma série de operações
comerciais com muita discrição, para não chamar a atenção dos que
reclamam, sem qualquer direito, a propriedade de alguns bens de
que somos depositários. Ouve bem o que te digo, depositários, não
proprietários. É um comércio perfeitamente legítimo. Os objetos que
pretendemos comerciar eram propriedade do Terceiro Reich, o
espólio lícito de tantas e tantas campanhas vitoriosas, que não
podem ter outros donos, outros herdeiros senão os homens que
arriscaram a vida por eles. Mas as exigências injustas dos
vencedores, insaciáveis na sua avidez e sempre cruéis com o povo
alemão, obrigam-nos a evitar a luz e a agir na sombra.
A chegada do peixe permitiu-me observar o seu camarada,
verificar que assentia às palavras da amiga com uma energia quase
inflamável, de tão fanática, mas que não o encorajou a tomar a
palavra.
– Já deves ter percebido do que se trata. – Foi a Clara quem
continuou a falar, e eu lembrei-me de que o Manolo já me havia
avisado de que um funcionário de uma transportadora era um
tesouro para qualquer organização de inteligência. – Precisamos de
alguém que, na documentação de certas remessas, declare um
conteúdo diferente do real e que trate de que o pacote chegue
intacto ao destino. Acerca disso sabes muito mais do que eu. –
Abanei a cabeça, confirmando. – Naturalmente, não estarias
sozinho em nenhum momento. Se fosse necessário esconder um
objeto numa remessa de massa para sopa, por exemplo, ou
modificá-lo para lhe alterar a aparência, nós assumiríamos os
gastos. Apoiar-te-íamos a todo o momento, podes ter a certeza.
– Isso não é difícil, Clara.
Já o tinha feito algumas vezes para os meus amigos comunistas.
Fá-lo-ia muitas mais, até me transformar num verdadeiro
especialista depois de entrar em contacto com o Partido em
Toulouse, mas, quando trabalhava para eles, fazia-o por amor e na
clandestinidade mais absoluta. A oferta que acabava de receber
colocava-me num jogo diferente, a dinheiro, e em cuja abertura eu
não ocupava a casa do rei, mas a de um simples peão.
– Mas?
– Mas, infelizmente, não passo de um empregado. – Sorri com
tanta humildade que até fiquei com vergonha. – Desconheço o
preço dos objetos a que te referes, nem quero saber, contudo, no
caso de envios de algum valor, não te posso garantir resultados se
não me autorizarem previamente as operações.
– É isso? – Ela sorriu como se eu lhe tivesse dado a melhor das
notícias.
– Claro – respondi. – Já te disse que no que depender de mim…
– Não te preocupes com isso, Rafa. – O sorriso consolidou-se-
lhe como se nunca mais se fosse apagar. – Porque achas que fui
primeiro ao teu trabalho? Estive a falar com o Gabino. Confio
plenamente nele, mas é um empresário e no seu negócio… –
Permitiu-se uma pausa pela primeira vez. – Não posso contribuir
para que o incluam numa lista negra. Espanha tem muitos inimigos.
Se o impedissem de trabalhar para eles, a transportadora iria à
falência e ficaríamos todos a perder. Contudo, garanto-te de que ele
estará a par de todas as operações e de que, dentro das nossas
fronteiras, nunca terás um contratempo. Isso deveria evitar qualquer
complicação no estrangeiro, embora se tal chegasse a acontecer…
– Eu seria o único culpado – completei a frase por ela.
– Sim, não te vou enganar. Mas isso, além de proporcionar ao
teu chefe a justificação de que necessita, também não teria muita
importância. Não irias para a cadeia, não em Espanha, é evidente,
e, como podes imaginar, nunca na vida serias extraditado para um
país inimigo. Terias de renunciar ao teu cargo em La Meridiana, isso
é óbvio, mas não perderias muito. Se aceitares a nossa oferta,
dentro de pouco tempo, serás um homem rico. Sabemos
recompensar os nossos amigos, não duvides.
Naquele momento, ainda não sentia medo. Decorrera tudo com
tanta naturalidade como se estivéssemos num palco a representar
uma obra de ficção, e eu tinha ensaiado muito bem o meu papel.
Além de saber de cor as minhas deixas, também tinha fixado as
dela. Sabia que tipo de resposta esperavam de mim e dei-a sem
hesitar.
– Isso é o que menos importa, Clara. Não faço isto por dinheiro.
Ela limitou-se a sorrir. Ele foi muito mais expressivo. Levantou-se
de repente com tanto ímpeto que a cadeira caiu para trás, repetiu
três vezes, aos berros, o que me pareceu uma blasfémia em alemão
e abraçou-me com a mesma força que empregara anteriormente
para levantar Otto Horcher do chão. Os meus pés continuaram no
solo por milagre enquanto aquele homem enorme me asfixiava com
um carinho proporcional ao seu tamanho.
– Rolf! – Escutei com dificuldade a queixa da Clara. – Larga-o,
que o vais magoar…
Ao ouvi-la, afrouxou o abraço, mas não completamente.
Agarrando-me os ombros com as suas mãos enormes, sacudiu-me
ainda algumas vezes antes de me jurar que tinha nele um amigo
para a vida. Quando chegámos à rua, os seus olhos ainda brilhavam
e a voz tremia-lhe de emoção ao concordar com a amiga,
afirmando, na sua miscelânea pitoresca de italiano e espanhol, que
não tinham perdido o futuro ao perder a guerra, porque a causa
ainda exaltava o coração de homens tão admiráveis como eu. Tinha
bebido mais do que a conta, ainda assim, a sua veemência
impressionou-me mais do que a informação com que a Clara se
despediu de mim à porta do restaurante.
– O Rolf entrará em contacto contigo. Ele está encarregado de
tudo, tem muito mais autoridade do que eu. De qualquer forma,
embora tenha planeado uma viagem para o mês que vem,
voltaremos a encontrar-nos para pormos as coisas em marcha.
Não percebi totalmente o significado daquelas palavras até ter
bebido três whiskies a uma velocidade digna da María Aránzazu,
enquanto o Manolo se embebedava ao mesmo ritmo no outro lado
da mesa.
– Portanto, nem a Clara, nem tu – recapitulei. – Fico sozinho,
mano a mano com o Cara Cortada. – Ele não confirmou por
palavras, mas assentiu com a cabeça. – Foda-se, foda-se, foda-se –
E pedi outra rodada. – Ainda bem que tenho a Meg.
– Bom… já falaremos sobre isso. Para já, não contes a ninguém.
Nem a ela, nem a ninguém.
Achei aquilo muito estranho porque trabalhámos sempre como
uma equipa de três, embora a nossa relação nunca tivesse sido
simétrica. Nos últimos dois anos, tivera sempre a sensação de
seguir um passo atrás deles, protegido nas sombras. O Manolo
racionava a informação que me transmitia, estava certo de que me
escondia coisas, mas nunca teria desconfiado de que tivesse
segredos para a Meg. Descobrir que havia decidido tê-los comigo
deixou-me mais desamparado até ter conseguido arrancar-lhe a
verdade. Mas isso não me tranquilizou. Ao entardecer do dia 6 de
dezembro de 1948, aconteceram tantas coisas ao mesmo tempo
que a minha atenção não chegou para todas.
– É igual a si, menino Guillermo.
Quando comecei a trabalhar em La Meridiana, espacei as idas a
Vallecas. Foi a Experta quem o impôs porque precisava dos
domingos para visitar os filhos, que continuavam a cumprir pena em
duas prisões diferentes. O destino deles permitiu-me saldar uma
ínfima parte da dívida que me ligaria à sua mãe por toda a vida. Ela
nunca chegou a acreditar que eu pudesse mandar-lhes encomendas
grátis, mas, depois de muita insistência, consegui que mas
entregasse. Desde então, costumava passar pelo meu emprego
uma vez por mês, embora nunca subisse para me ver. O que vão
pensar de si se o veem receber uma pobretana como eu?
Finalmente, chegámos a uma solução satisfatória para ambos.
Quando tinha alguma encomenda para enviar, a Experta esperava
por mim à entrada do prédio às onze em ponto, em qualquer dia da
semana. Eu ia sempre à rua a essa hora e, quando a encontrava,
ficava com a encomenda e convidava-a para tomar o pequeno-
almoço comigo. Nessa altura, quase sempre falava menos dos filhos
dela do que do meu.
– Olho para ele e parece-me que estou a vê-lo a si quando vinha
lanchar com o seu avô aos domingos. É que é cuspido e escarrado,
cuspido e escarrado a sério. É o que a menina Amparo diz sempre.
Vejam só! Com o poucochinho que pôs, o que conseguiu…
– Eu não pus pouco, Experta. Pus tudo o que tinha.
– Eu sei, eu sei, mas o menino também sabe como ela é. E dá-
lhe muita raiva que ele se pareça tanto consigo… Por isso não quer
que o veja. Não lho permitiria nem por todo o ouro do mundo.
A Clara telefonou-me com a antecedência que guardava sempre
nas ocasiões importantes para me convidar para a festa com que ia
celebrar, mais uma vez, o dia de São Nicolau. Marcou para as oito e
pediu-me que fosse muito pontual, sem me explicar porquê. Cumpri
escrupulosamente as suas instruções, porém, quando ela própria
abriu a porta, em vez de encontrar a seu lado um Otto a quem teria
chamado Rolf, vi uma menina pequena e muito loura agarrada à sua
saia, enquanto uma criada pedia aos gritos aos miúdos que faziam
um alvoroço no vestíbulo que se sentassem de uma vez se
quisessem chocolate.
– Ai, Rafa, ainda bem que chegaste! – Depois de fechar a porta,
pegou na menina ao colo. – Já viste que beleza? Tenho uma coisa
para te dizer, não me posso esquecer…
Enquanto a seguia, explicou-me que as aulas de conversação
iriam terminar porque todos os alunos já falavam espanhol muito
bem, e ao ouvi-la sucumbi a um misto confuso de sentimentos, entre
os quais, e para minha surpresa, predominava o alívio. O fim das
aulas trazia uma solução natural e indolor, até elegante, para a
minha relação com a Amparo. Apesar de, desde outubro passado, o
meu compromisso se ter reduzido a metade e de só ir um dia por
semana ao número 45 da calle Ayala, nenhum de nós soubera
preservar-se do envilecimento progressivo que turvava o ar que
respirávamos. O sexo continuava a ser magnífico, mas, depois do
fascínio ofuscante dos primeiros meses, o prazer já não bastava
para tapar todos os buracos. Quando a Amparo me arrastava para a
cama, não os via. Quando os nossos sexos se separavam, eles
afloravam no teto do quarto como manchas de uma humidade
diferente, bolorenta e indelével. Ali, entre os jorros de sangue das
vítimas de Jasenovac, estava a minha chantagem inicial, a falta de
resistência com que se entregara, tudo o que ela ignorava, o que eu
não quisera contar-lhe, a sua desconfiança, a minha, e o nosso filho.
Nos dias de aulas, eu chegava pontualmente às sete da tarde a
uma casa onde vivia um menino que nunca lá estava. Com o tempo,
comecei a adivinhar-lhe os horários. Se às oito e meia estávamos
num momento de calma, eu ouvia ao longe o ruído da porta de
serviço e, às vezes, até passos no corredor. A Amparo comportava-
se como se não tivesse chegado ninguém e não sentia pressa em
despedir-se de mim. O menino decerto jantaria na cozinha com a
empregada que o havia levado a passear e com certeza já estaria
deitado quando eu me fosse embora. No entanto, nalgumas tardes,
a mãe dele tinha pressa, e levantava-se da cama mal as pernas lho
permitiam, fechando-se na casa de banho e aparecendo pouco
depois, vestida para sair. Aquela rapidez acrescentava um verniz
indesejável, de sexo pago, a encontros já de si demasiado difíceis,
e, por isso, na segunda vez explicou-me porque saía comigo.
– Tenho de ir buscar o José Antonio. – Olhou para mim. – Eu
disse-te que já não se chamava Guillermo.
A Experta contara-me que o menino tinha agora o nome do
Grande Ausente e um apelido basco, Urbieta, escolhido ao acaso no
roteiro de ruas. Na sala da casa da mãe, em cima de um piano que
nunca ninguém tocara, que eu soubesse, estava a fotografia de um
jovem falangista, de camisa azul e correagem, que sorria para a
objetiva. Uma grande moldura de prata lavrada, antiga, dava-lhe
protagonismo, acentuado pelo facto de aquela superfície não ter
qualquer outra fotografia, qualquer outro objeto a não ser uma
pequena jarra, também de prata, sempre com uma flor solitária.
Nunca o vi na vida, reconheceu a Experta, e aposto o que quiser
que a menina também não sabe quem é, mas o menino acha que
aquele homem é o pai, um herói que morreu na Rússia. É o que
dizem os papéis, porque como ela tem desses amigos que falsificam
tudo como lhes apetece…
Todas as tardes, ao passar ao lado, olhava para aquele retrato e,
de vez em quando, se a Amparo não tivesse pressa, era eu que
improvisava. Assim, enquanto fingia ver uma montra ou esperar
alguém numa esquina, vi chegar o meu filho meia dúzia de vezes,
com feridas nos joelhos e a camisa fora das calças, cada vez mais
alto, mais desajeitado. Nunca parei para pensar nos motivos que me
levavam a agir assim, porém, quando a Clara me confirmou que as
aulas haviam terminado, à surpresa de verificar que a ideia de
acabar com a Amparo me agradava, sucedeu-se a surpresa de
descobrir que me entristecia a ideia de perder a oportunidade de ver
o José Antonio Urbieta crescer, nem que fosse ao longe, de uma
esquina. Nesse instante, entrei na sala atrás da dona da casa. As
portas que a separavam da sala de jantar estavam abertas de par
em par, e ali, sentado entre outras crianças, com a boca suja de
chocolate, o meu filho ergueu os olhos uns instantes, olhando para
mim.
– Rafa! – A Geni alegrou-se ao ver-me. – Que surpresa! – E
cumprimentou-me com dois beijos castos, de senhora bem casada.
– Julgava que não tinhas filhos…
– E não tenho.
– Hoje damos duas festas – explicou a Clara. – Como este ano
não vou estar em Madrid pelos Reis, estava com pena de não
convidar as crianças. No dia de São Nicolau vêm sempre os adultos,
mas achei que teríamos tempo para ambas. Evidentemente, tivemos
mais olhos do que barriga… – E desatou a rir. – Podes refugiar-te na
salinha, Rafa, vemo-nos daqui a pouco.
A campainha da porta tocou e eu não saí do lugar. Enquanto a
anfitriã recebia outros convidados, continuei de pé com os braços
caídos, encostados ao corpo, o olhar simultaneamente fixo e
ausente, os olhos cravados no menino que estava a ver, com a
minha memória parada numa imagem idêntica, na cara de outro
menino que via todas as manhãs quando me olhava no espelho da
casa de banho, antes de ir para a escola.
– Pois é inacreditável como o filho da Amparo Priego se parece
contigo.
Ouvi a voz da Geni e nem sequer me voltei para avaliar se
aquele comentário era resultado da uma argúcia malévola ou tão
inocente como o tom com que o proferira, porque nesse instante a
Amparo entrou apressada na sala de jantar, postou-se atrás do filho,
abraçou-o, obrigou-o a rodar a cabeça e, olhando para mim,
chamou-lhe a atenção para qualquer coisa que acontecia no outro
lado da mesa. Então, alguém me agarrou no cotovelo direito.
Verifiquei que a Geni continuava à minha esquerda e a voz do
Manolo desfez a minha confusão.
– Vamos. – Puxou-me até um canto e disse-me num sussurro. –
Sai daqui agora mesmo. Para a salinha, para a rua, para onde
quiseres. Não podem continuar a ver-te perto do miúdo. É incrível,
Guillermo. Nunca vi um filho tão parecido com o pai.
Olhei para ele tão atarantado como se não soubesse quem ele
era, nem do que me estava a falar, mas deixei que me levasse dali,
empurrando-me pelo corredor, e me obrigasse a entrar noutra sala,
onde um homem com quase dois metros celebrou a minha chegada
com um abraço asfixiante.
– Meu amigo! – exclamou. – Prazer em ver-te, camarada…
Depois olhou para o Manolo, sorriu e estendeu-lhe a mão.
– Rolf Steinbauer – disse. – Muito prazer.
– O prazer é meu.
– Levo-lhe o Rafael um pouco, está bem?
E também ele me arrastou para um canto, sussurrando-me ao
ouvido.
– Estou em Madrid só dois dias. Venho de Buenos Aires. Vou a
Munique, Frohe Weihnachten, Stille Nacht… – Soltou uma
gargalhada a que respondi com um sorriso automático. – Volto
dopo. Lei será qui? – Apercebeu-se de que tinha passado para o
italiano e reformulou a pergunta. – Será a Madrid?
– Em janeiro? – Tinha demorado um pouco a prestar a atenção
suficiente para lhe responder, mas aquela retificação reacendeu-me
a consciência do perigo e depressa me devolveu a concentração.
– Janeiro, sim. Posso telefonar-lhe?
– Claro. – Tirei um cartão de visita da carteira e entreguei-lho. –
Quando quiser.
O Manolo olhava para nós à distância, com uma expressão que
eu não soube interpretar. Quando nos juntámos, ele tornou essa
interpretação ainda mais difícil.
– Nunca na vida me perdoará. – Olhou para mim e continuou a
falar para consigo. – Nunca me perdoará…
Manuel Arroyo Benítez teve sempre muito azar e muita sorte,
mas até Otto Skorzeny lhe ter estendido a mão nunca fora obrigado
a optar entre uma delas.
Na tarde em que o encontrou no número 14 da calle Galileo e o
viu falar com Guillermo, pensou que seria muito fácil caçá-lo.
Bastaria aproximar-se de Herr Steinbauer, apresentar-se como
Adrián Gallardo Ortega, fugitivo procurado, defensor de Berlim, e
encher-lhe o copo a uma velocidade que permitisse criar um
ambiente propício às confidências. O senhor parece-se muito com
Otto Skorzeny, poderia dizer então, e, sem lhe dar tempo de digerir
o comentário, confessar-lhe que não admirava ninguém tanto como
aquele herói de fama imortal. A vaidade de Skorzeny era tão
lendária quanto a sua temeridade, quase tão grande como a sua
atração pelas mulheres. Manolo estudara-o a fundo desde que
soubera que ele tinha estado em Madrid, no início de outubro. É
possível que não mordesse o anzol da admiração, mas mesmo que
teimasse em esconder a identidade, ser-lhe-ia difícil resistir ao
convite de um camarada disposto a salvá-lo daquela algazarra de
crianças estridentes e de o acompanhar até um local agradável,
com pouca luz, mulheres bonitas e um telefone público de onde
poderia avisar Meg, enquanto Cara Cortada o julgava na casa de
banho.
Compreendendo que nunca poria o plano em prática, concluiu,
no entanto, que era exequível, com garantias de sucesso, que
poderia terminar com a detenção daquele que ostentava o título de
«homem mais perigoso da Europa», embora, a 6 de dezembro de
1948, já todos soubessem que tal definição era uma peta. Dentro de
pouco celebrar-se-ia o quarto aniversário da batalha das Ardenas, a
ofensiva que Skorzeny tentara sabotar, transpondo as linhas
inimigas à cabeça de três mil e quinhentos homens disfarçados de
soldados norte-americanos. Apesar de aquela operação, concebida
pelo próprio Führer, ter desorientado os aliados algumas horas
antes da ofensiva, os comandos reagiram a tempo à atuação
estranha de alguns oficiais que desviavam as tropas para uma
direção errada. Os falsos anglo-saxões foram identificados, detidos
e fuzilados imediatamente, mas, antes de morrerem, alguns
declararam que o seu objetivo era assassinar Eisenhower. Repetiam
um boato que tinha circulado entre a tropa, uma fantasia que
cresceu graças à combinação de dois fatores: por um lado, a
celebridade de Skorzeny; por outro, a falta de informação sobre o
verdadeiro motivo da missão. Como os alemães disfarçados não
sabiam o que estavam ali a fazer, a algum deles deve ter ocorrido
que iam matar Eisenhower, e os camaradas deram-lhe razão.
Parecia um objetivo feito à medida da lenda do chefe, mas nem o
assassinato de Eisenhower fazia parte das ordens de Skorzeny,
nem o general estava nesse dia naquele setor. Apesar de tudo, a
facilidade com que Scarface conseguiu infiltrar-se nas fileiras
ianques enfureceu os norte-americanos a ponto de o porem em
primeiro lugar na lista de nazis mais procurados. No entanto, o
advogado que o defendeu em Nuremberga conseguiu que um chefe
de esquadrão britânico testemunhasse que também ele se tinha
infiltrado nas linhas inimigas, envergando um uniforme alemão, na
operação que servira de modelo a Hitler. Aquele testemunho
arruinou o processo contra Skorzeny, mas a sua absolvição não
conseguiu eliminar a sua perigosidade fabulosa da propaganda
aliada e Manuel Arroyo Benítez sabia-o.
Com a fama criminal intacta, a sua detenção em Madrid daria à
CIA uma vitória retumbante, que impulsionaria a carreira de Miss
Williams a um nível incomparável. Meg encarregar-se-ia de chamar
um fotógrafo disposto a imortalizar o acontecimento, mesmo que
Manolo não soubesse se o seu trabalho seria publicado ou não,
onde ou quando. Só estava certo de duas coisas e de uma pela
metade. Tinha a certeza de que a detenção de Skorzeny na capital
de Franco, pública ou secreta, não poria em risco a rede Stauffer
nem comprometeria o governo espanhol. Clara declararia que tinha
convidado Rolf Steinbauer ignorando que essa não era a sua
verdadeira identidade. Ninguém acreditaria nela, mas ninguém
conseguiria desmenti-la. O Ministério do Interior, por seu turno,
alegaria que desconhecia a presença de Skorzeny em Espanha, o
que até poderia ser verdade, mas não uma verdade tão sólida, tão
profunda, como Meg nunca perdoar a Manolo o facto de ter
conhecido Skorzeny numa festa e não lho ter entregado. Eis a sua
segunda certeza, e era tão grave que nunca teria pensado que
meia-verdade pudesse chegar a ser mais importante. O seu grande
azar e muita sorte haviam conspirado para que assim fosse.
Manuel Arroyo Benítez tinha quase a certeza de que as
remessas que Guillermo se comprometera a tutelar conteriam obras
de arte extorquidas a museus e a proprietários judeus nos territórios
ocupados, joias e antiguidades valiosas de idêntica procedência e,
possivelmente, ouro, prata, talvez também divisas do tesouro
desaparecido dos nazis. Julgara sempre que o interesse de Clara
pelo homem que conhecia como Rafael Cuesta Sánchez tinha
relação com o seu trabalho, e não havia esquecido que, a 18 de
julho de 1947, na primeira visita deles a Cercedilla, pretendia
apresentá-lo a um amigo chamado Ban ou Bam. Se Guillermo
tivesse ouvido bem, e o nome terminasse em «n», a sua hipótese
acabaria num beco sem saída. Porém, caso a consoante final fosse
um «m», Fräulein Stauffer só poderia estar a referir-se a Josef Hans
Lazar, cujos amigos tratavam carinhosamente por Bam. E Bam
Lazar era a única pessoa que o Conselho de Controlo Aliado tinha
encontrado na embaixada de Hitler em Madrid.
Os aliados tinham quase a certeza de que Lazar tinha transferido
em segredo todos os tesouros da embaixada e da residência do
embaixador para um esconderijo que procuravam em vão há anos.
Ali, entre tesouros artísticos, lingotes de ouro e objetos preciosos,
estariam também alguns documentos de um arquivo que ninguém
tornara a ver. Os vencedores enganados tinham insistido tanto no
repatriamento de Bam que o governo espanhol chegou a autorizá-lo
em fevereiro de 1946, porém, um dia antes de entrar no avião que o
levaria para a Alemanha, o antigo diplomata deu entrada na Clínica
Rubor com um quadro grave de apendicite. Nesse mesmo dia, de
facto, foi-lhe tirado o apêndice, apesar de os seus perseguidores
estarem convencidos de que tinha entrado na sala de operações só
para evitar o regresso a casa. Depois disso, nunca mais souberam
notícias dele. Desde que Guillermo lhe falou dos pormenores de um
almoço no Horcher, o falso Adrián Gallardo revira a história milhares
de vezes.
Embora tivesse consciência de que nos seus cálculos a palavra
quase se repetia demasiadas vezes e do papel excessivo que
atribuíam a uma simples consoante, o desenlace possível era
demasiado fascinante para resistir. E havia ainda uma outra coisa.
Existiam indícios de que, antes de fugir, Skorzeny já dirigia, a partir
das várias prisões onde estivera, as rotas de fuga dos nazis
procurados pela justiça. Não passava de um boato, no entanto,
Guillermo, que nunca o ouvira, tinha reparado que a autoritária e
omnipotente Fräulein Stauffer assumia uma posição subalterna
relativamente ao gigante das cicatrizes. Quando se despedira, havia
acrescentado expressamente que o seu amigo Rolf tinha muito mais
autoridade do que ela. E desde que a conheciam, nenhum dos dois
a vira jamais num papel secundário.
A meia-verdade pela qual Manuel Arroyo Benítez estava disposto
a arriscar o difícil amor da sua vida poderia chegar a completar-se
ou não. Porém, se tivesse razão, se Guillermo se encarregasse de
tirar de Espanha o tesouro protegido por Lazar numa operação
dirigida por Skorzeny e guardasse a documentação que o
demonstrava, a machadada que a rede Stauffer receberia poderia
ser fortíssima, talvez mesmo mortal. O governo de Franco, acusado,
no mínimo, de conivência, não hesitaria em sacrificá-la, talvez ao
limite de a repatriar para a Alemanha, a fim de controlar danos. O
congressista Burnstein encarregar-se-ia de que jornais de todo o
mundo publicassem fotografias de uma página de famílias inteiras
gaseadas nos crematórios nazis, proprietários legítimos dos bens
que o Estado espanhol consentira que saíssem do seu território
para que os assassinos pudessem continuar a comer em
restaurantes de luxo. Essa informação seria um complemento
admirável do testemunho de um infiltrado, que, dentro em pouco,
estaria em condições de demonstrar que Espanha acolhia
criminosos de guerra e os ajudava a fugir. No sótão da calle del Pez,
Manolo tinha lido várias vezes, de ponta a ponta, a entrevista com
Clara Stauffer que Sefton Delmer havia publicado no Daily Express
e recordava-a com amargura, mas uma entrevista não era a mesma
coisa que um dossiê repleto de nomes, datas, dados objetivos. Por
isso, e mesmo que as consequências pudessem magoá-lo, estava
disposto a arriscar essa cartada até ao fim. Felizmente, chegado a
este ponto nunca pensava em Margaret Carpani Williams. Não
podia, porque estava a entrar em territórios que nunca tinha
partilhado com ela, no meio abominável de algumas receções
londrinas, nas boas-vindas emocionantes do Atlântico que anos
depois o tinham abraçado com mais amor do que aquele que a mãe
alguma vez lhe dera.
O Franco convém-nos bastante… Pode ser um tirano, mas é um
grande inimigo de Estaline e agora é isso que interessa, não achas?
Bob McKay, agente encoberto da CIA, não usava gravata, e os
cones de prata lavrada que rematavam as extremidades do cordão
de couro baloiçaram quando encolheu os ombros. Pouca sorte dos
espanhóis. Naquele almoço, Peter Louzán teve de dizer em voz alta
que sim, claro, evidentemente, com palavras semelhantes às que
Manuel Arroyo Benítez usara para desonerar todos os esquerdistas
europeus que não quiseram apoiar a sua causa junto de Lorde
Windsor-Clive. Antes e depois, Manolo tivera de engolir muitos
sapos. Na salinha do número 14 da calle Galileo, recordou-lhes o
sabor e limitou-se a pedir outro whisky.
Sem previamente o terem acordado, ele e Guillermo dedicaram-
se a socializar em separado. O falso Rafa Cuesta despediu-se com
um gesto de Skorzeny, que se foi embora tão depressa como se
tivesse lá ido só para lhe falar, e esteve algum tempo à conversa
com Friedrich e a mulher, uma matrona rechonchuda, flácida, de
seios volumosos e tornozelos grossos que correspondia
perfeitamente à imagem projetada pelo marido de assoberbado pai
de família numerosa. Manolo também procurou a companhia dos
alunos até Eberhard Messerschmidt se aproximar dele para lhe dar
um grande abraço.
– Vamos sentir a tua falta, camarada. – Nesse instante, Amparo
passou diante da porta com o casaco vestido e levando o menino
pela mão.
– Eu ainda mais. – Manolo rodou um pouco a cabeça e verificou
que Guillermo, de costas para o corredor, não a vira. – Podes ter a
certeza.
A dona da casa, que tinha acabado de entrar na sala para
sugerir aos adultos que se espalhassem pelo espaço deixado livre
pelos filhos, deu-lhe o braço, comentando com um tom de menina
travessa.
– Viste que bom companheiro de viagem arranjei?
O falso Adrián Gallardo correspondeu de mau-grado ao sorriso
de ambos. A viagem inquietava-o mais do que nunca desde que, no
primeiro dia de dezembro, Clara o tinha convidado para almoçar
muito longe do Horcher, a fim de o pôr a par dos pormenores. O
luxo, naquela ocasião, não se prendia com a excelente comida
caseira que lhes serviram numa tasca da calle Blasco de Garay,
mas com a notícia de que iriam de avião e não de barco, como ele
sempre julgara.
– Não posso aceitar, Clara. – Tentou recusar enquanto uma luz
vermelha piscava entre as suas sobrancelhas. – Eu não conseguiria
pagar um bilhete de avião até Buenos Aires nem… Bolas! Nem me
atrevo a imaginar quanto deve custar. – Atrás da luz soaram os
alarmes, um ruído ensurdecedor que só ele conseguia ouvir. – Já
fizeste muito por mim. Não posso permitir que gastes esse
dinheirão. Tu é que tens uma reunião importante no dia 20, eu
posso perfeitamente ir de barco e…
Quando já via o motor de um caça carregado de bombas, ela,
que sorrira perante todas as suas desculpas, interrompeu-o
suavemente.
– Ouve-me, Adrián. Isto não tem que ver contigo, mas comigo.
Quando comecei a procurar bilhete, vi que todos os voos que
partem de Madrid estavam cheios. É normal, com a quantidade de
espanhóis que vivem na Argentina e tão perto do Natal… Só havia
lugares livres num voo da Panamerican que parte de Lisboa. Isso
significa que, se quiser chegar a tempo à reunião, não tenho outro
remédio senão fazer transbordo em Nova Iorque.
Ao ouvir aquele nome, Manuel Arroyo Benítez já estava tão
nervoso que reagiu como se fosse o verdadeiro Adrián Gallardo
Ortega.
– Nova Iorque? – A voz resumiu-se a um fio surdo, trémulo,
enquanto os olhos se lhe arregalavam como se quisessem engolir
as pálpebras. – Mas eu… Eu não posso pôr os pés em Nova Iorque.
– Tu, é evidente que não. – Clara voltou a sorrir. – O José
Pacheco Hernández, no entanto, não terá qualquer problema.
– Claro. – Reconhecer o erro não lhe devolveu a serenidade. –
Claro, tens razão.
– Mas a Clara Stauffer Loewe é mais conhecida, não achas?
Depois de dar muitas voltas ao assunto, decidi embarcar com o meu
verdadeiro nome. Parece-me mais perigoso correr o risco de que
algum passageiro me reconheça e descubra que uso uma
identidade falsa. Tomei as devidas precauções, evidentemente. A
Panamerican garantiu-me que os passageiros em trânsito
permanecem numa sala de onde não podem sair até entrarem no
voo seguinte, que legalmente é terra de ninguém. O Ministério de
Exteriores também não viu qualquer problema. Neste momento não
vigora nenhum mandado sobre mim. Garantiram-me que ficarão
atentos para que não surjam contratempos e eu sei que o farão.
Mas uma mulher sozinha, com passaporte espanhol e apelidos
alemães numa viagem tão longa, primeiro de Madrid a Lisboa,
depois com um transbordo em Nova Iorque… Não quero chamar a
atenção, Adrián, e se viajar sozinha será muito difícil não repararem
em mim. Seria certamente a única mulher sem acompanhante em
todas as fases da viagem. No entanto, se formos juntos,
passaremos despercebidos.
Aquele argumento desconcertou-o a tal ponto que o emudeceu.
Pressentia que era uma oferta mais complicada do que parecia à
primeira vista e não dispunha de tempo para a analisar, porém,
quando ela confirmou esse pressentimento, já era tarde.
– Bom… – A luz da sala de refeições não tinha mudado, mas um
ligeiro rubor iluminava-lhe as faces. – Sei que tenho mais dez anos
do que tu, mas só mais quatro anos do que o Pacheco. – Até ter
baixado os olhos, fixando-os no guardanapo. – E também não deve
ser a primeira vez que uma mulher da minha idade atravessa o
Atlântico com um homem da tua, digo eu…
Aquelas palavras, e sobretudo o tom com que as tinha proferido,
abalaram-no como um murro, enquanto uma navalha invisível
cortava, de uma assentada, qualquer escapatória. A única pessoa
no mundo que Manuel Arroyo Benítez não poderia desprezar de
maneira nenhuma era a mulher sentada diante de si. Compreendeu
a tempo que só lhe restava um caminho que o impelia
incansavelmente para a frente, e decidiu percorrê-lo com elegância.
– Mas, evidentemente, Clara, nunca me teria ocorrido… – Por
isso, desistiu de expressar por palavras o facto de ela poder parecer
velha de mais para ele, antes de optar pela humilhação, um registo
que já dominava como se fosse a sua língua materna. – Estou aflito,
a sério, não sei como conseguirei pagar tudo o que fazes por mim. E
pedires-me que te acompanhe numa viagem como esta é… Não sei,
parece-me impossível que uma mulher como tu ofereça uma coisa
dessas a um coitado como eu. Não consigo acreditar, a verdade é
essa.
Ao olhar para ela, verificou que o rubor das faces não se tinha
dissipado, embora os olhos o mirassem de frente, com a energia e o
aprumo habitual.
– O que interessa é que os outros acreditem, Adrián. Os
passageiros, as hospedeiras, os funcionários do aeroporto de Nova
Iorque…
– Não te preocupes com isso. – Estendeu sobre a toalha uma
mão aberta, com a palma para cima, onde ela pousou a sua. –
Sinto-me tão felizardo que ninguém conseguirá duvidar da minha
sorte.
Só pretendia adaptar-se ao papel de chevalier servant que lhe
calhara, arrancar da cabeça da sua benfeitora a suspeita de que se
importava com a diferença de idade entre ambos, restabelecer o
equilíbrio perdido, mas teve a impressão de que fora longe de mais.
Não por ela duvidar da sua sinceridade, mas justamente pelo
contrário.
A vida amorosa da sua companheira de viagem fora sempre um
mistério para ele. Clara Stauffer não era uma mulher bonita, mas era
muito poderosa no sentido mais lisonjeiro possível. Além do bom
berço, do património herdado da família, do dinheiro que geria e da
influência nas altas esferas, o seu poder radicava do próprio
esforço, da determinação da sua entrega, de corpo e alma, à causa
e aos camaradas. Era essa a origem do seu encanto, o carisma de
um ídolo de carne e osso, de uma mulher amada e admirada por
muita gente, por homens que, como o falso Adrián Gallardo, lhe
deviam tudo o que tinham. No entanto, não só não se lhe conhecia
amante como, pelo que ele conseguira averiguar, nunca o tivera. Até
sentir o contacto dos dedos dela na palma da sua mão, a solidão de
Clara nunca o tinha inquietado. A partir daí, a sua imaginação
entretinha-se projetando por iniciativa própria desenvolvimentos que
ele teria dado tudo para evitar, não só porque seduzir aquela mulher
nunca estivera nos seus planos mas também, e sobretudo, porque a
imagem dos dois juntos numa cama era uma distração a que não se
podia permitir. Tinha muito que fazer, demasiadas decisões que
tomar antes de entrar num avião com destino a Lisboa. Foi por isso
que se alegrou ao verificar que Messerschmidt conhecia os planos
da viagem.
– Fräulein Stauffer é sempre muito generosa comigo.
– Deve ser porque o mereces. – Depois deste cumprimento,
soltou-lhe o braço. – Vou ver como está tudo na cozinha.
Ao juntar-se aos outros no salão, comprovou que don Eduardo
não era o único amigo da casa a par da sua partida. Johannes
Bernhardt recomendou-lhe dois restaurantes portenhos, Darquier de
Pellepoix perguntou-lhe se teria lugar na mala para uns livros que
prometera a um amigo, Víctor de la Serna garantiu-lhe que o SARE
se encarregaria de todas as suas necessidades e outros convidados
aproximaram-se para o felicitarem e desejarem boa sorte, antes e
depois do abraço emocionado em que se fundiu com Degrelle. Não
lhe foi difícil responder-lhes com sorrisos, porque tantos parabéns
eram incompatíveis com qualquer intenção romântica da anfitriã, e
essa tranquilidade devolveu-lhe a concentração.
– Vou-me embora porque amanhã tenho de madrugar.
Por volta da meia-noite, Rafa Cuesta começou a ronda das
despedidas. Clara disse-lhe que fazia muito bem em ir dormir
porque estava com um ar cansado. Manolo sabia que o abatimento
tinha outra origem e calculou que o amigo precisaria de algum
tempo para se recuperar do encontro com o filho, mas ele não o
tinha, de modo que antes de se despedir olhou para ele e levantou
as sobrancelhas. Guillermo, ainda afetado pelo pasmo, devolveu-lhe
um olhar vazio, quase alucinado. Porém, no dia seguinte foi ter com
ele à saída do trabalho.
– Aonde vamos? – Manolo não quis ir ao Lion nessa tarde.
– Para já, andar um pouco.
Subiram pela calle Alcalá até à Puerta del Sol, mas esse trajeto
não foi suficiente para o aliviar. Continuou a falar de Amparo, do
filho, de um retrato pousado num piano e da surpresa, do espanto
que sentiu por ser tão vulnerável, até que chegaram à calle Mayor.
Continuou a falar, a esmiuçar o mistério que representava aquele
menino que ele próprio trouxera ao mundo, mas que parecia só ter
nascido no instante em que olhou para o pai com a boca suja de
chocolate. Contudo, calou-se subitamente, como se só nessa altura
se apercebesse de que estava sentado a uma mesa de madeira
tosca, num local pequeno e abobadado de um dos restaurantes
para turistas que ladeavam o subsolo da Plaza Mayor.
– O que estamos aqui a fazer? – perguntou então.
– Tu, a falar. E eu, à espera de que te cales de uma vez por
todas.
Nas raras vezes em que não conseguia visitá-lo de madrugada,
Meg marcava encontro com ele no recanto mais afastado daquele
restaurante escuro e cheio de meandros, tão longe do balcão que
tinham de se levantar para pedir aos empregados que fossem
atendê-los. Ali só havia duas mesas sempre vazias e, na parede do
fundo, uma portinha, de frente para o corredor que fazia a ligação
com o resto do local e que dava para umas escadas que subiam até
à praça. Embora nenhum dos dois a tivesse usado para fugir, às
vezes ele entrava ou saía por ali, e ela fazia-o sempre pela porta
principal. Manolo nunca escolhera aquele sítio, ideal para os
encontros com Meg, para se encontrar com Guillermo porque a
relação que mantinha com ele era diferente.
Desde que chegou a Madrid, a responsável comercial norte-
americana tentou limitar ao máximo a sua presença nas atividades
sociais do governo franquista, mas ainda assim muita gente a
conhecia. Se qualquer camarada espanhol de Clara Stauffer visse
um dia Miss Williams beber um copo com um fugitivo que integrava
a lista de procurados das forças aliadas, toda a sua missão ruiria.
No entanto, o falso Adrián Gallardo não se importava de se
encontrar com o falso Rafael Cuesta sob os candelabros que
iluminavam um café com grandes janelas que davam para a calle
Alcalá, muito pelo contrário. Fora sempre o primeiro a levantar-se ao
ver algum conhecido, como prova de que ele e Rafa nada tinham a
esconder. Justamente por isso, a 7 de dezembro de 1948, o Lion
parecera-lhe demasiado exposto.
– É muito simples. – O funcionário de La Meridiana ouviu sem
protestar a hipótese que o amigo tinha elaborado na sequência das
informações que ele próprio lhe dera. – Só tens de te habituar à
ideia de que arranjaste uma namorada inglesa, a quem mandas um
presente de vez em quando. É natural, não achas? Pode ser
qualquer coisa, uns mantecados no Natal, uma estatueta de
porcelana, uns doces de ovos, o que quiseres. Basta que o fundo da
caixa seja protegido por um cartão ou por aquele papel de seda que
as confeitarias usam. Metes o relatório por baixo, colas as bordas,
fechas a caixa, embrulhas para oferta e envias. Já está.
– Já está? – Um medo compreensível, repentino, atirou a
paternidade do interlocutor para o sótão das coisas sem
importância, onde vivera tão comodamente até então. – Já está
como? Quem é essa namorada, quem vai ler o que eu escrever,
porque não to posso enviar a ti para Buenos Aires?
– Porque eu não sei onde vou viver, Guillermo, nem com quem.
Não faço ideia do que me espera. Além disso, teria de reenviar os
teus relatórios para a mesma morada de Londres. Isso prolongaria
imenso os prazos e duplicaria o risco de o pacote se perder. Não faz
sentido, percebes?
– Mas eu… eu… – Olhou em volta com a ansiedade de um
animal encurralado. – E não posso contar o que souber a alguém
aqui, em Madrid, como faço contigo?
Manolo não respondeu. Olhou para o amigo, deu-se conta de
que iria sentir a sua falta tanto como ele, talvez mais, e arrependeu-
se sinceramente de o ter metido naquele labirinto.
– Foda-se! – Os ombros de Guillermo estremeceram de repente.
– Aqui está um frio do caralho.
– Sim – assentiu Manolo com uma voz cautelosa. – Mesmo no
verão.
Nenhum dos dois falou durante algum tempo. Sabiam ambos
todas as respostas. Um não se atreveu a dizer ao outro que estava
a dar-lhe a oportunidade de fazer para o governo legítimo e
democrático do seu país o mesmo que se comprometera a fazer
para os nazis. O outro não quis mencionar don Gabino de la Fuente,
o leal camarada de Clara, que não se daria ao trabalho de o
interrogar sobre o envio de uma caixa de bombons, mas que poria à
disposição da velha companheira toda a informação de que
precisasse. Manolo não quis recordar-lhe que estava a arriscar-se
muito mais e que em Buenos Aires estaria muito mais isolado do
que o amigo em Madrid. Guillermo também não se quis lembrar de
até que ponto levava uma vida tranquila até o outro ter decidido
voltar, lançando-o de cabeça num mundo que não lhe pertencia. Os
dois sabiam que, numa emergência, Rafael Cuesta Sánchez poderia
sempre recorrer a Meg Williams, se a Brigada Político-Social não
chegasse antes, mas que a BPS era mais pontual que o relógio da
Puerta del Sol. Cada um deles devia a vida ao outro várias vezes,
mas nenhum deles o mencionaria em voz alta. Os dois sabiam
como ia acabar aquela conversa e que Guillermo acabaria por
aceitar, mesmo que nunca dissesse a palavra sim.
– Olha, vamo-nos embora, que estou a gelar. – Eis o que disse e
não voltou a abrir a boca até chegarem à rua. – Vais convidar-me
para um jantar como deve ser, pelo menos…
– Onde quiseres, desde que não seja no Horcher.
Então, como sempre, Guillermo riu-se primeiro, arrastando
Manolo consigo. Jantaram no Botín e, antes da sobremesa, um
anunciou que escreveria de Buenos Aires para lhe dar a morada de
uma rapariga que lhe interessaria muito, e o outro retorquiu que
tratasse de garantir que era boa. Voltaram a rir-se e não foi preciso
mais. Despedir-se de Meg foi mais complicado, embora ela
ignorasse os motivos.
– Ai! – A 10 de dezembro, sexta-feira, uma mulher da limpeza
apareceu à meia-noite num sótão da calle del Pez e só voltou a sair
na madrugada de segunda-feira. – Que tens, chamaquito?
– Nada. – Mas estreitou-a mais ainda no abraço.
– A poco no? Tanto carinho não me facilita as coisas…
– É que não é fácil. Se calhar nunca mais nos voltamos a ver.
– Ai, ya no chingues com isso, Manolito! Achas que não vou
visitar-te? Esqueceste-te de que tenho passaporte diplomático,
tonto?
Desatou a rir-se, embora o riso não tenha dissipado a tristeza
que pairava como uma nuvem ténue e sombria sobre a cama da
despedida. No fim, foi ela quem lhe dificultou as coisas a ele.
– Faz-me só um favorzinho…
Ainda não amanhecera, mas ela já estava vestida, pronta para
sair, com a cabeça coberta por um lenço que só deixava visível a
franja da peruca preta, um sobretudo coçado e um pau de vassoura
a espreitar do saco de pano. Vou sentir falta da vassoura, disse
antes de sair, e o amante acompanhou-a até à porta, ainda nu,
como se quisesse facilitar o destroço que algumas palavras afiadas
como facas lhe causaram no peito.
– Achamos que o Scarface pode estar em Buenos Aires. Viram-
no lá há alguns dias. Se souberes de alguma coisa, diz ao meu
colega da embaixada.
A 14 de dezembro de 1948, Rafael Cuesta pediu a tarde no
trabalho e ninguém se admirou por querer passar com Adrián as
suas últimas horas em Madrid. Despediram-se diante da entrada de
um prédio da calle del Pez com um abraço tão longo que tornou
supérfluas as palavras. Duas mulheres alemãs observavam-nos de
um táxi que esperava pelo viajante com o motor ligado. Depois, no
aeroporto, Frau Weiss despediu-se de Adrián com lágrimas nos
olhos.
Aterraram em Lisboa por volta da meia-noite. Foram diretamente
para o hotel e Clara retirou-se para o seu quarto, alegando que
estava demasiado cansada até para beber um copo. Na manhã
seguinte, no entanto, o falso Adrián encontrou à mesa do pequeno-
almoço a sua versão mais encantadora, risonha e tagarela.
– Vais ver como iremos passar um dia agradável.
Manuel Arroyo Benítez conhecia bem Lisboa, mas Adrián
Gallardo Ortega contemplou boquiaberto todas as suas belezas e
aplaudiu a comida, o vinho, a longa caminhada que, de colina em
colina, a sua benfeitora tinha organizado para que chegassem ao
avião o mais cansados possível.
– Saímos à noite, mas não é fácil dormir, acredita.
Finalmente no avião, ele verificou que ela tinha razão. Estava
convencido de que cairia para o lado no instante em que encostasse
a cabeça, mas os nervos da descolagem espevitaram-no sem lhe
fazerem mossa no cansaço. Enquanto isso, Clara, que antes de
entrar lhe tinha confessado que sentia medo de voar, falava
incessantemente, como se a estabilidade do aparelho dependesse
da sua conversa, até que o seu acompanhante adormeceu.
Quando abriu os olhos, o avião estava às escuras. Voltou a
fechá-los, tentando prolongar a modorra e, depois de um período de
tempo que não foi capaz de avaliar, como não saberia precisar se
tinha voltado a adormecer ou não, ouviu a voz de uma hospedeira
falar em espanhol com um forte sotaque norte-americano.
– Quer tomar o pequeno-almoço, Mrs. Gallardo?
Nessa altura soube que estava acordado, mas não o demonstrou
para poder ouvir a resposta da mulher sentada a seu lado.
– Sim, muito obrigada – respondeu Fräulein Stauffer num
sussurro. – Já acordo o meu marido. Dá gosto vê-lo dormir, não é
verdade? Mas não vamos deixar o pobrezinho sem comer…
BERLIM, 25 DE JULHO DE 1949

– Das war in Schöneberg, im Monat Mai, ein kleines Mädelchen


war auch dabei…
– Queres calar-te de uma vez? – Johannes Grunwald voltou-se
bruscamente na cama quando se deu conta de que a sua mulher
pretendia inaugurar o dia com a mesma canção que tinha escolhido
para se despedir do anterior. – Se continuares a cantar isso a toda a
hora, vais dar-me cabo da cabeça.
Agneta não lhe respondeu. Virou-lhe as costas, encolheu-se
como costumava fazer ao acordar no antigo quarto de criança da
Winterfeldstrasse, e continuou a cantar de si para consigo a versão
de Marlene Dietrich, cadenciada e lenta, sedutora, repleta de
desejo, de subtileza, da canção que celebrizara o nome do seu
bairro. Jan não conseguiria perceber, nunca decifraria o sorriso
íntimo, pleno, que aquela letra tão parva lhe trazia aos lábios, nem o
motivo por que a tinha transformado no refrão da sua vida.
– Mas não estamos em maio… – Pressentindo o que estava
prestes a acontecer, disse para consigo que os seus pés deveriam
retroceder, afastar-se da boca que cobiçava a sua, mas o cérebro
não conseguiu emitir essa ordem.
– Está bem, mas a canção só diz que daquela vez aconteceu em
maio. – Ele ficou imóvel, como se quisesse ceder-lhe a iniciativa no
último instante. – E que os beijos em Schöneberg são bastante
comuns.
Até em dezembro? Agneta Grunwald, Müller em solteira, nunca
chegou a formular a pergunta. Também não soube quem tinha
beijado quem junto ao pinheiro que o melhor amigo do marido havia
levado a pulso até à sua casa. A família Grunwald, Johannes,
Agneta e o pequeno Rudi, mudara-se para a Luitpoldstrasse no
outono de 1947, meses depois da morte de Beate Müller, cuja saúde
se havia deteriorado muito depressa quando o pior parecia já ter
passado. As sequelas da pneumonia gravíssima que não acabaram
com ela no inverno enfraqueceram-lhe o coração, parando-o
enquanto dormia, num amanhecer radioso e estival. O viúvo foi
muito generoso com a sua única filha, a quem deu a escolher entre
ficar com o apartamento da Winterfeldstrasse ou comprar um novo
com o dinheiro da venda. E tu?, perguntou-lhe Agneta, atónita.
Nunca lhe ocorrera que o pai tivesse uma amante e menos ainda
que detestasse Schöneberg. Desde que se mudara para uma ruela
da Kurfürstendamm para viver com a namorada sob a aparência
decorosa de um hóspede que arrendara um quarto, a filha via-o
menos, mas constatava diariamente, com espanto crescente, que o
amava como sempre.
Antes de se aborrecer com Johannes, que ela continuava a
chamar Jan, por causa da árvore de Natal, Agneta Grunwald já tinha
consciência de que se havia transformado numa mulher muito
diferente da que tinha sido. Tão diferente que às vezes pensava ter-
se transformado apenas numa mulher. De vez em quando,
recordava uma rapariga possessa, meio louca, que nem sequer
tinha precisado de se embriagar para cantar o Horst Wessel Lied
aos gritos, entre os escombros da avenida mais célebre de Berlim.
Via o pó acumulado na comissura dos seios, os botões da blusa
rebentados, a chama patética que lhe incendiava o coração, e
corava. A Untergauführerin que tinha abandonado a mãe inválida
para morrer pelo Führer envergonhava-a tanto que às vezes se
arrependia de se ter casado com um homem que vira tudo isso. E
na véspera de Natal de 1947, quando ele apareceu com a outra
testemunha daquele espetáculo grotesco, ficou furiosa.
– Que querias que fizesse? – Jan agarrou-a por um braço,
enfiou-a na despensa, repreendeu-a num sussurro enquanto os
olhos se transformavam em duas pedras de granito escuro,
duríssimo. – É um camarada, mulher, o meu melhor amigo da
guerra. Encontrei-o na rua, seminu, os lábios roxos de frio, a fazer
fila diante da sopa dos pobres. Como querias que o deixasse ali? –
De seguida, abanou a cabeça, lançando-lhe um olhar melancólico,
quase triste. – O que se passa contigo, Agneta? Não te reconheço.
– Não és o único a quem isso acontece – replicou ela, embora
soubesse que não estava a ser sincera, muito menos honesta.
A derrota que a fizera amadurecer à força não havia tido o
mesmo efeito sobre o marido. Jan continuava bem-humorado, jovial,
mantendo aquela pitada de ingenuidade que a cativara na trincheira
da Wilhelmstrasse. Enquanto tudo ruía em volta dela, a fé daquele
soldado, a veemência risonha com que se recusava a aceitar o fim,
haviam mantido Fräulein Müller num buraco onde se amontoavam
os cadáveres, sendo que a resistência dele permanecia intacta.
Johannes Grunwald continuava tão nazi como Jan Schmitt de
Wandaleer quando este prometera na cozinha do hotel Adlon que
daria cabo dos russos até ao dia 2 de maio. Todos os meses pagava
as quotas de várias associações clandestinas, algumas dedicadas a
preservar a memória dos seus ideais, outras, como Spanien oder
Tod, destinadas a custear a evasão dos dirigentes que só
conseguiam optar entre Espanha e a morte. Antes de Rudi nascer,
ela também o admirara por isso, mas, quando Adrián voltou a fazer
parte das suas vidas, nada a encolerizava mais do que comprovar
no fim do mês que o marido continuava a arriscar o bem-estar da
família, o posto de trabalho e a própria liberdade, numa aposta
disparatada e sem futuro.
Às vezes também se envergonhava de pensar assim, de ter
abandonado tão depressa tudo aquilo que amava dois anos antes, e
dava-se conta de que a sua deserção lhe estava a arruinar o
casamento, distanciando-a cada dia mais do pai do seu filho.
Buscava forças, dizendo para consigo que a vida na nova Alemanha
era muito difícil, e que, se haviam tido tanta sorte, a deviam ao facto
de Rudolf Müller ter sido, justamente, um mau alemão. Agneta tinha
vivido sempre em Schöneberg, conhecia muita gente nesse bairro e
todos os dias encontrava algum vizinho, os camaradas da mãe, os
vereadores que aviltaram o pai, as suas companheiras da BDM,
sempre demasiado pintadas, mas, regra geral, tão famélicas, tão
decaídas como eles. Todos os dias, alguém lhe pedia esmola, e ela
dava sempre duas moedas. Não o fazia por solidariedade ou
carinho, nem sequer por piedade. Esperava que aqueles cêntimos
tivessem o poder de desencadear um esconjuro íntimo, benéfico,
que invocasse um círculo de bem-estar onde a sua família
prosperasse eternamente. E o mendigo espanhol que Jan lhe havia
oferecido no Natal, à traição, representava uma ameaça que decidiu
eliminar quanto antes.
– O que estás a fazer? – A 25 de dezembro encontrou o hóspede
sentado no chão da sala de jantar, com a caixa de ferramentas
aberta, enquanto o marido e o filho ainda dormiam.
– Nada de mal. – Ele olhou para ela e sorriu. – Ontem à noite
dei-me conta de que as cadeiras abanam demasiado. O Jan disse-
me que elas precisavam de uma vista de olhos, mas que não tinha
tempo para isso. – Verificou que as suas palavras não suavizavam a
expressão da mulher que o olhava de cima e baixou a cabeça. – Só
queria ajudar.
Sim, claro, pensou Agneta seguindo em frente, como todos… As
ruas de Berlim estavam cheias de homens que se ofereciam para
trabalhar no que quer que fosse, mudanças, pintar paredes,
restaurar móveis. À porta dos mercados amontoavam-se os
candidatos a levar os sacos até qualquer andar de qualquer edifício
em troca de uma moeda. Julgou que Adrián era mais um e
enganou-se. O protegido do marido sabia consertar coisas e deixá-
las como novas, mas também era capaz de as fabricar. Além de ter
de sobra a habilidade de que Jan carecia, era também dotado da
imaginação e do talento necessários para desenhar e construir
objetos úteis ou simplesmente bonitos, como os cavalos de madeira
às cores que pendurou de uns fios transparentes sobre o berço de
Rudi. Quando o avô da criança os viu, conseguiu-lhe uma entrevista
com um conhecido seu, dono de uma loja de brinquedos no centro
da cidade. Pouco a pouco, o hóspede da filha foi acumulando
encomendas, dele e dos concorrentes, e, embora lhe pagassem mal
pelo trabalho, assim que pôde alugou um quarto numa zona mais
barata do bairro dos Grunwald.
Agneta começou a sentir-lhe a falta no próprio dia em que ele
partiu. Durante quase três meses espremera-o como a uma laranja,
recebendo sorrisos e nenhuma queixa. Enquanto Jan prolongava o
dia de trabalho naquelas reuniões que tanto a irritavam, ou a beber
cerveja com os colegas, ela improvisava todo o tipo de melhorias
domésticas e entretinha-se a supervisionar o trabalho de um artesão
para quem nada era difícil. Apesar de se lembrar do buraco da
Wilhelmstrasse muito melhor do que gostaria, de início era-lhe difícil
acreditar que, ao cabo de três anos longos como quinquénios,
Adrián continuasse apaixonado por ela. Quando se resignou àquela
constância, não só não se arreliou, como aquele amor antigo e novo
acendeu uma faísca de fantasia quase selvagem no coração
envelhecido de Agneta Grunwald.
– Toma, é para ti. – No dia do seu aniversário, ele deu-lhe um
pacotinho embrulhado em papel de seda, sem laços nem etiquetas.
– Fi-lo na oficina onde trabalho à tarde, não vale nada, mas…
Comprei-o a uma velha que vendia meia dúzia de ninharias sobre
um lenço, à porta do metro. Era uma gargantilha, mas estava muito
danificada, e eu desmontei-a para fazer outra coisa.
– Adrián! – Ninguém acreditava que aquela pulseira de malha
articulada, feita com pequenas peças de latão dourado
enganchadas umas nas outras como fios de uma renda, não tivesse
saído da melhor loja de bijutaria da cidade. – É linda, vou usá-la
todos os dias, prometo-te.
Isso aconteceu em Schöneberg, no penúltimo dia do mês de
maio de 1948. Nessa tarde, não houve beijo, mas, ao abraçá-lo, ela
encostou a cara ao rosto daquele homem, inspirou-lhe o odor e
estremeceu. Pela primeira vez em muito tempo, Frau Grunwald
resgatou a imagem da rapariga louca do buraco da Wilhelmstrasse
sem vergonha nem rancor, perguntando-se se não se teria
enganado no homem. A curiosidade assustou-a tanto que decidiu
afastar qualquer tentação de perseverar na procura de uma
resposta. O verão facilitou, embora nas margens do Wannsee, na
casinha que o marido alugara a meias com um colega da polícia,
tivesse usado todos os dias aquela pulseira que nunca se cansava
de contemplar. Quando voltaram para Berlim, o domingo chegou e
Adrián não veio almoçar porque precisava de acabar uma
encomenda, a deceção tirou-lhe o apetite.
A ansiedade foi crescendo ao mesmo ritmo que diminuíam as
visitas daquele que já não era tão amigo de Herr Grunwald como da
sua mulher, mas o acaso sentou-o à sua mesa no último domingo
de novembro. Quando tocou à campainha com a pontualidade
habitual, Jan ainda não tinha voltado da rua, onde fora comprar pão
três horas antes. Ainda demoraria algum tempo a regressar, sem
uma migalha nas mãos, mas com uma bebedeira monumental. O
seu antigo camarada também consertou isso, voando escada abaixo
e regressando com uma broa antes que Agneta acabasse de servir
a sopa, embora a intervenção não tenha evitado uma briga que
sobreviveu à sobremesa e acabou com uma porta a bater. Antes de
transpor o umbral, Jan informou a mulher de que, se queria tanto
que o filho tivesse uma árvore de Natal, fosse à rua comprar uma,
porque as semanas dele só tinham um domingo e não pretendia
desperdiçá-lo a trabalhar. Ao ouvi-lo, Agneta sentou-se no sofá e
desatou a chorar, pousando na mesa a pilha de pratos sujos que se
preparava para levar para a cozinha. Depois de os depositar na pia
com muito cuidado, Adrián foi procurá-la, sentou-se a seu lado,
passou-lhe um braço pelos ombros e pediu-lhe que não se deixasse
abater por tão pouco. Mas é isso que os pais fazem, replicou ela,
trazer a árvore de Natal para casa é trabalho dos pais… Ele não
quis comentar essas palavras na quinta-feira seguinte, quando
apareceu à hora do almoço com um pinheiro enorme, belíssimo.
Tinha pedido a tarde livre para a ajudar a decorá-lo, porém,
enquanto o metia no vaso, começou a cantarolar aquela velha
canção, Das war in Schöneberg, im Monat Mai, ein kleines
Mädelchen war auch dabei… Agneta ofereceu-se para lhe traduzir a
letra, mas ele já a sabia e nada lhe apetecia tanto como beijar uma
rapariga de Schöneberg.
– Agora já posso morrer. – Quando os seus corpos se afastaram
pela primeira vez, Adrián abraçou-lhe as coxas, pousou a cabeça e
continuou a falar junto do sexo dela. – Quando te conheci, prometi a
mim próprio que não morreria sem fazer isto.
– Oh, Adrián! – Jan nunca fazia isso, nunca lhe dizia
semelhantes coisas, nem sequer fora capaz de comprar uma árvore
de Natal para o filho. – É tão romântico… Nunca ouvi nada assim.
Nessa noite, deitou-se convencida de que não conseguiria
pregar olho, mas dormiu de uma assentada e, ao acordar, sentiu
uma euforia desconhecida, que combinava a rosada tepidez do
romance com a energia da sexualidade saciada. Enquanto decorava
o pinheiro sozinha, sem deixar de cantar a canção que Adrián lhe
devolvera à memória, compreendeu que o sucedido não era
obrigatoriamente mau, nem sequer grave. Não foi mau durante
aquele inverno em que Jan e ela voltaram a dar-se tão bem como
no início, porque ele julgou que Agneta tinha desistido de se meter
nos seus assuntos, e ela só pensava em ir para a cama com outro.
Também não foi grave na primavera, quando ele começou a
procurá-la menos na cama, e ela calculou que ele lhe estivesse a
ser infiel e descobriu que lhe era indiferente. Contudo, a 25 de julho
de 1949, quando acordou a cantar e o marido a mandou calar com
maus modos, o cheiro do café do pequeno-almoço fê-la vomitar.
Frau Grunwald, que tinha um aparelho digestivo tão privilegiado
que era capaz de digerir uma pedra em jejum, pensou no pior. A
Untergauführerin de outrora teria desatado a chorar, atormentando-
se com censuras inúteis, mas felizmente essa tonta já não existia. A
nova Agneta não perdeu um instante a pensar no que tinha corrido
mal. Sem nunca perder a serenidade, refletiu por alguns segundos,
limpou a retrete, olhou-se ao espelho, somou meses, subtraiu
semanas, penteou o cabelo e disse para consigo que mulher
prevenida vale por duas. Com essa convicção voltou para a cama
onde Jan dormitava, esperando que ela o avisasse de que o
pequeno-almoço estava pronto.
– Surpresa! – exclamou, procurando o sexo do marido sob os
lençóis.
– Que fazes? – perguntou ele, com muito menos convicção do
que antes.
A resposta da mulher foi cavalgá-lo, obrigando-o depois a dar a
volta, dentro dela.
Faço isto pelo bem de todos, aprovou de si para consigo
enquanto Jan ejaculava.
Também pelo teu, imbecil.
BUENOS AIRES, 2 DE OUTUBRO DE 1949

Rodolfo Freude não era só um homem muito poderoso e o


grande protetor dos nazis e colaboracionistas que chegavam ao
país através do SARE. Era também um magnífico anfitrião e, por
isso, embora Manuel Arroyo Benítez tentasse encontrá-lo o menos
possível, Adrián Gallardo Ortega não pôde negar a Clara
semelhante favor.
– Sei que trabalhas muito, mas estás muito desligado, Adrián. –
Na reunião da última quarta-feira, Walter pedira-lhe que telefonasse
para Clara. – Há quanto tempo não nos vemos?
– Há muito, mas a culpa é tua, porque não paras de viajar.
– Nisso tens razão. – Clara desatou a rir-se. – Mas, se por uma
vez tenho férias, quero ver tudo, tudinho…
A verdade é que, enquanto se comprometia a acompanhá-la ao
churrasco que Freude faria em honra dela no domingo seguinte
numa quinta em Olivos, Manolo já havia começado a desligar-se o
mais possível.
A 16 de dezembro de 1948, quando o avião onde ia aterrou em
Buenos Aires, a sua companheira de viagem dispôs dele como se
de uma mala da sua bagagem se tratasse. Depois de uma entrada
espetacular no terminal, parando uns instantes com os braços
abertos numa passadeira vermelha imaginária, abraçou um por um
todos os membros do comité de boas-vindas, seis homens e três
mulheres, a quem se dirigiu pelos nomes, perguntou pela família e
agradeceu que a tivessem vindo esperar. O único que Manolo
reconheceu foi Walter Kutschmann, com quem Adrián Gallardo e
Rafa Cuesta se tinham encontrado depois de uma viagem de burro.
Em Cercedilla, o antigo oficial da Gestapo tratara-o com uma
cordialidade afetuosa, como se fossem velhos conhecidos. Um ano
e meio depois, afastou-se do grupo que se tinha formado em redor
de Fräulein Stauffer e aproximou-se dele.
– Antonio! Como estás? Que alegria ver-te por cá!
Em casa de Messerschmidt, Kutschmann falava um espanhol
aceitável com um forte sotaque galego, porque nos últimos anos
vivera perto de Vigo. Na Argentina, o domínio da língua
aperfeiçoara-se bastante, adquirindo rapidamente a musicalidade
portenha e adotando o voseo com tanta naturalidade como se não
houvesse aprendido a língua noutro país.
– Adrián. – Manolo corrigiu-o suavemente, pensando que aquela
transformação era fruto de um treino severo. – Adrián Gallardo.
– Claro, desculpa. – Walter sorriu e deu-lhe uma palmada nas
costas. – Anda, vem conhecer os outros…
No entanto, foi Clara quem tomou a iniciativa, sem largar o braço
de uma mulher um pouco mais velha do que ela, que apresentou
por último.
– E esta é a minha querida amiga e colaboradora Magda
Ivanissevich, sem cuja ajuda tudo teria sido muito mais difícil para
nós neste abençoado país. – Voltou-se para ela, sorriu, recebeu um
sorriso de volta. – Vou ficar em casa dela alguns dias, mas não te
preocupes. O Walter cuidará muito bem de ti.
Caminharam todos juntos até à rua e só quando saíram do
edifício Clara estacou, se aproximou dele e lhe rodeou a cara com
as mãos.
– Já estás em Buenos Aires, Adrián. Conseguimos. – Os olhos
dela brilhavam de entusiasmo. – Estás contente?
– Muitíssimo. – O verdadeiro camarada não teria sido mais
sincero. – Este é um dos momentos mais felizes da minha vida. E a
ti o devo.
– Ai! – Ela aumentou a pressão dos dedos, afundando-os no seu
rosto. – Se voltas a dizer isso, aborreço-me. Aprecia a cidade. – E
diminuiu-a depois, acariciando-lhe a face enquanto retirava as
mãos. – Vemo-nos dentro em pouco.
Antes de acabar de dizê-lo, encostou o corpo ao dele e
pressionou a cara contra uma barba dura, de dois dias. Aquele
contacto aparentemente inocente prolongou-se dois ou três
segundos mais do que o necessário, criando uma bolha de
intimidade óbvia para ambos, mas impercetível para quem os
rodeava. De seguida, Clara girou sobre os calcanhares sem dizer
nada e seguiu a amiga até ao carro. Manolo teve a sensação de que
aquele adeus lembrava mais uma mulher casada a despedir-se do
amante numa reunião social, do que dois camaradas que
concluíram uma fuga bem-sucedida, mas não teve tempo de a
analisar porque, naquele momento, Walter Kutschmann se
encarregou dele.
Durante os primeiros dias, a sua companhia foi tão absorvente
que o falso Adrián Gallardo receou que o tivessem incumbido de o
vigiar, porém descartou rapidamente a possibilidade, aceitando uma
explicação mais simples. Walter vivia sozinho num apartamento de
três assoalhadas situado na avenida Presidente Manuel Quintana,
no bairro seleto de Recoleta, um dos mais caros da capital. Tinha
um cargo diretivo muito bem pago na delegação argentina da
empresa alemã de iluminação Osram, mas aos trinta e cinco anos,
sem família nem relacionamentos estáveis, sentia-se muitíssimo
aborrecido. Por isso é que se oferecia para orientar os recém-
chegados, a quem proporcionava, além do alojamento provisório,
aquilo a que chamava o tour Kutschmann de Buenos Aires.
Aquele que propôs a Adrián Gallardo começou na noite de sexta-
feira com um aperitivo no Tortoni, um jantar numa churrasqueira
popular de San Telmo e uns copos numa milonga, onde Adrián viu
pela primeira vez dançarem o tango. No dia seguinte, o programa foi
ainda mais exigente, mas o recém-chegado não se queixou, e no
domingo à noite, quando Walter lhe propôs encerrar um fim de
semana infernal de caminhadas, comezainas e bebedeiras, com um
jantar em La Biela, já ele tinha descoberto muito do que precisava
saber sobre o funcionamento da rede Stauffer na Argentina.
O anfitrião, educado na fé católica, confessou-lhe com muita
naturalidade que a religião das avós lhe salvara a vida. Na Galiza,
onde procurara refúgio uma vez atravessados os Pirenéus, dias
depois do desembarque aliado na Normandia, várias ordens
religiosas se revezaram para o proteger, escondendo-o em
mosteiros e conventos sem nunca se interessarem pelo que tinha
feito numa cidade polaca chamada Lviv. Durante três anos, só
deixou a clausura no verão de 1947 para ir a Madrid com um hábito
emprestado, planear a viagem com Clara e, de passagem, festejar
na serra o aniversário do 18 de julho. Ao cabo de seis meses,
desembarcou em Buenos Aires sem qualquer contratempo, com o
passaporte verdadeiro de um padre carmelita que continuava a viver
tranquilamente em Sevilha.
– Mas se entraste como Pedro Ricardo Olmo… – Na altura
dessa confidência, o falso Adrián Gallardo já tinha bebido bastante.
– Como é que…? Aqui toda a gente te trata pelo teu nome
verdadeiro, os empregados… – Por isso demorou tanto a explicar-
se. – Bom, o porteiro do prédio não, mas…
– Por favor, descontrai-te e descansa. – Walter desatou a rir. – Já
não estás em Espanha, viste? Aqui estamos muito mais distantes de
Nuremberga.
Kutschmann era mais complexo do que parecia à primeira vista.
Manolo depressa se deu conta de que a simpatia que ele esbanjava
ao cumprimentar desconhecidos constituía um hábito adquirido, um
automatismo executado na perfeição por um homem naturalmente
muito pouco expressivo. O humor de Walter oscilava entre dois
extremos, a apatia melancólica a que se entregava quando estava
tranquilo, em casa, e uma euforia induzida pela vontade de ser
como os outros, de se divertir à força nos locais onde os outros se
divertem, de beber, cantar, dançar e fanfarronar sem se questionar
se lhe apetecia fazê-lo ou não. Nesses rasgos de felicidade forçada
acabava por ser uma companhia muito chata e sempre um
conversador infatigável, que esbanjava uma loquacidade
incompatível com a situação de fugitivo procurado pela justiça,
mesmo que um oceano o separasse dos perseguidores. O falso
Adrián Gallardo tolerava muito melhor a variante taciturna, mas a
mais sociável revelou-lhe que a sensação de impunidade de que
gozavam os antigos nazis na Argentina de Perón era ainda maior,
mais sólida e perfeita do que a oferecida pela Espanha de Franco.
Na segunda-feira, 20 de dezembro, Kutschmann tirou o dia para
acompanhar Gallardo à calle Canning, onde os funcionários do
Serviço de Acolhimento aos Refugiados Europeus o receberam de
braços abertos.
– Bem-vindo, Adrián! – O romeno Radu Ghenea, que não tinha
perdido nem um bocadinho do sotaque madrileno com que
aprendera a falar espanhol como nativo, recebeu-o no gabinete sem
o fazer esperar. – Estamos muito contentes por te ter entre nós.
Agora descansa. A tua única obrigação consiste em adaptares-te à
mudança horária, habituares-te a que em dezembro é verão e
apaixonares-te por Buenos Aires, o que é muito fácil, garanto-te.
Mais à frente, veremos o que podemos fazer por ti. Para já – e
dirigiu-se ao seu acompanhante –, leva-o ao gabinete de Sofía, que
está à vossa espera. Sabes onde é? – Kutschmann assentiu, e
Ghenea voltou-se, ergueu os ombros, bateu os calcanhares e
levantou o braço direito. – Arriba España!
– Arriba! – Manuel Arroyo Benítez estava tão pouco familiarizado
com aquela saudação que demorou um segundo a compreender
que se esquecera de alguma coisa. – Arriba siempre!
O diretor do SARE sorriu, agradado com uma repetição que lhe
pareceu enfática, e o recém-chegado saiu do gabinete,
acompanhado do tutor alemão, que não se dera ao trabalho de
erguer o braço. Felizmente, as manifestações fascistas não
passaram o umbral daquele gabinete. A menina Ferreti não
precisava delas para ser muitíssimo eficiente.
Desde que aceitara aquela missão, o agente de Azcárate
contava infiltrar-se numa sociedade poderosa e bem organizada,
mas nunca se atrevera a esperar tanto. Em menos de meia hora, a
funcionária desembaraçada, que se levantou para cumprimentar
Walter com um beijo e umas piadas, explicou-lhe a que ponto as
suas previsões eram modestas. Para começar, entregou-lhe um
envelope com mil pesos em numerário. Aquele valor, cinco vezes
superior ao salário mínimo fixado por Perón dois anos antes,
constituía o resultado de duas receitas diferentes. O Estado, através
do SARE, atribuía aos recém-chegados um subsídio mensal de
quatrocentos pesos durante um período máximo de seis meses. O
restante provinha de um fundo solidário, alimentado pelas
contribuições de antigos refugiados, que, como Kutschmann, já
dispunham de um trabalho bem remunerado no país. Para que
Adrián pudesse integrar esse grupo o mais depressa possível, a
menina Ferreti informou-o de que contavam com ofertas de trabalho
muito interessantes, graças à generosidade com que Ludwig Freude
e os diretores de empresas alemãs radicadas na Argentina
colaboravam com o Serviço de Acolhimento.
– Venha ver-me dentro de dez dias. Nessa altura, já estará
desocupado um apartamento lindo, lindo, em Recoleta, muito perto
da casa do Walter. O mais urgente é instalá-lo ali. Depois, no início
de março, quando os miúdos regressarem à escola, procuraremos
tranquilamente um bom emprego para si. Como vê, as suas
necessidades estão cobertas. Não há pressa.
Tantas facilidades tiveram um efeito paradoxal no estado de
espírito do beneficiário, que decidiu extremar a cautela ao limite.
Manuel Arroyo Benítez não deu um passo pelo próprio pé até 6 de
janeiro de 1949, quando já ocupava um apartamento mobilado de
duas assoalhadas, tão amplo e bonito como Sofía lhe dissera, no
número 1869 da avenida Callao. A nova casa tinha apenas um
defeito, que era, ao mesmo tempo, a sua maior virtude. Estava tão
perto da de Walter que lhe seria muito difícil esquivar-se aos
frenéticos tours de fim de semana. Porém, ajudá-lo-ia a evitar
encontros indesejáveis com ele e outros vizinhos, cujos horários
conhecia igualmente bem. Com esses dados, e uma pasta de que
não se havia separado nem por um minuto no voo de Madrid e que
tinha guardado depois na sua mala, fechada à chave, enquanto
vivera em casa de Kutschmann, às dez da manhã do dia de Reis
entrou na avenida Alvear, percorrendo-a a pé até à plaza San
Martín.
A 4 de janeiro, quando acordou pela primeira vez na nova casa,
levantou o fundo falso daquela pasta com a ponta de uma faca e
pousou o conteúdo numa mesa. Ali estavam os quinhentos dólares
que Meg lhe havia dado para cobrir gastos imprevistos, as poucas
pesetas que lhe tinham sobrado da quantia que McKay lhe passara
quando se despediram em Algeciras, as que tinha recebido ao
deixar o emprego em Madrid e até vinte libras esterlinas oferecidas
por Azcárate quando partira de Londres rumo a Gibraltar de avião e
que nunca chegara a gastar. Juntamente com esse dinheiro, viera
com ele para Buenos Aires um tesouro mais valioso.
O único passaporte que destruíra na vida depois de o usar fora o
que o presidente Negrín lhe havia dado em junho de 1937, com
Rafael Cuesta Sánchez como titular. Queimou-o em Valência, na
véspera da viagem a Madrid, o que lhe permitira oferecer a
Guillermo García Medina um documento novo com o mesmo nome.
Embora há muito devesse ter seguido o mesmo caminho, nunca
quisera desfazer-se do seu último passaporte verdadeiro, aquele
que a República Espanhola expedira em nome de Manuel Arroyo
Benítez. Sabia que corria demasiados riscos por razões
sentimentais, no entanto, precisava de manter aquele último vínculo
com a sua identidade, com Robles de Laciana, com Juan Arroyo e
Gertrudis Benítez, com a data em que lhes nascera o sexto filho.
Também não se desfizera do passaporte diplomático republicano
com que tinha partido para o exílio e que usara para obter uma
autorização de residência na Suíça, onde constava como Felipe
Ballesteros Sánchez, apátrida. Ambos os documentos estavam
caducados, mas o segundo poderia ter alguma utilidade no futuro,
desde que conservasse o primeiro. O novo passaporte espanhol de
José Pacheco Hernández estava na carteira que tinha no bolso e
não possuía qualquer documento oficial em nome de Adrián
Gallardo Ortega, fugitivo à justiça aliada. No entanto, o cidadão
norte-americano Peter Louzán Valero, nascido em 1910, em North
Arlington, Nova Jérsia, dispunha de um passaporte válido. Ora,
nada seria tão eficaz para dissipar as dúvidas de quem atendesse
um desconhecido atrás do balcão como um passaporte norte-
americano.
Verificou-o no dia seguinte, na Central de Correios. A sua única
dificuldade consistiu em descobrir que os argentinos davam outro
nome aos apartados postais. Quando avisou o funcionário que lhe
examinava o passaporte de que necessitava de uma caixa postal
para uma atividade comercial e de que o seu nome não constaria na
correspondência, ele respondeu-lhe que, naquele serviço, só
interessavam os números, não os nomes. Depois entregou-lhe a
chave da 1924, que acabara de ficar disponível.
A 6 de janeiro de 1949, às onze menos um quarto da manhã, o
cidadão norte-americano Peter Louzán pediu um quarto para uma
noite na receção do hotel Crillon, um estabelecimento de luxo que
ainda não tinha dois anos. O novo hóspede, tão direto e informal
como seria expectável dos nativos do seu país de origem, recusou
qualquer ajuda para levar a bagagem até ao terceiro andar. Assim,
ninguém pôde verificar que a sua malinha, que parecia nova porque
a tinha comprado dez minutos antes com o único objetivo de evitar o
aspeto suspeito dos que aparecem num hotel sem bagagem, estava
vazia. Na pasta também não havia grande coisa, mas tirou de lá
dois jornais e um livro que esteve a ler, deitado na cama, até à uma
e meia da tarde.
Antes de sair, Mister Louzán perguntou na receção a que
distância ficavam dois restaurantes famosos que lhe haviam
recomendado. Depois, chamou um táxi e deu a morada de outro,
muito mais barato, onde tomou dois cafés depois de almoçar, a fim
de fazer tempo. Regressou ao Crillon a pé, pela mesma razão, e,
pouco depois das quatro da tarde, perguntou na receção se seria
possível fazer chamadas de longa distância para a Europa a partir
das cabinas telefónicas do vestíbulo. Já conhecia a resposta, na
realidade fora esse o motivo pelo qual escolhera um hotel tão
moderno, mas sorriu com agrado quando o rececionista lhe
respondeu que a cabina três estava livre.
Seis de janeiro era dia de trabalho no Reino Unido e na
Argentina, porém Manuel Arroyo Benítez ouvira o chefe dizer muitas
vezes que a única monarquia que lhe parecia respeitável era a dos
Reis Magos e esperava que ele não tivesse mudado de opinião.
– Boa tarde, menina, queria que me fizesse a ligação para um
número de Londres.
– Muito bem. – O número que apontou correspondia, na
realidade, a uma morada de Taplow, mas ela não o identificou ou
não achou relevante comentar o facto. – Não desligue, por favor.
Desde que chegara a Madrid, Manuel Arroyo Benítez não havia
tido nenhum contacto direto com o homem para quem trabalhava
desde antes da Guerra de Espanha. Meg Williams, que servia de
intermediária entre ambos, mantinha-o informado sobre o percurso
profissional de Pablo Azcárate desde que a ONU o nomeara
secretário-geral adjunto da Comissão para a Palestina, em maio de
1948, pouco antes da eclosão da guerra entre árabes e israelitas.
Desde então, diversos cargos o haviam obrigado a passar mais
tempo no Médio Oriente do que em casa, mas Manolo esperava que
Melchior, Gaspar e Baltazar lhe tivessem oferecido um
prolongamento das férias de Natal.
– Já pode falar, senhor.
A voz da operadora sobrepôs-se à de uma mulher que se
perguntava em espanhol quem poderia estar a telefonar de Buenos
Aires àquela hora. Manolo reconheceu-a, mas não a quis
cumprimentar, limitando-se a perguntar em inglês por don Pablo.
Tinha a certeza de que os serviços secretos argentinos não perdiam
tempo a fiscalizar as chamadas dos telefones públicos, contudo, não
podia descartar a possibilidade de os britânicos ouvirem as
conversas de um diplomata multilateral com responsabilidades no
conflito israelo-árabe, com o pretexto razoável de lhe garantirem
proteção. Essas escutas hipotéticas levaram-no a telefonar de um
hotel de luxo, onde se havia registado com um nome falso.
– Bom dia, senhor. – Repetindo, no outro lado do Atlântico, as
palavras que dissera tantas vezes, emocionou-se como um tonto,
mas nada disse que o pudesse identificar. – O que acha do presente
que lhe trouxeram os Reis?
– Maravilhoso! – Azcárate soltou uma gargalhada e também não
o chamou por nenhum nome. – Como estás, como está tudo?
– Melhor do que esperava. Uma cidade fantástica, um grande
país, boas perspetivas laborais, velhos amigos, contactos com
pessoas influentes. – Havia preparado aquelas palavras com
minúcia e ainda melhor as que proferiu de seguida. – A única coisa
que me falta na vida é o amor. A namorada que deixei em Madrid…
– Fez uma pausa deliberada, embora achasse que Azcárate não
precisava disso para perceber que se referia a Meg. – Bom, amo-a
muito, o senhor sabe, mas não temos exatamente os mesmos
interesses. É muito possessiva, um pouco egoísta, e isso impede
que a nossa relação seja completamente satisfatória. Por isso me
atrevo a aborrecê-lo com o que pode parecer-lhe uma tontice. Como
me sinto sozinho, gostaria de me corresponder com alguma rapariga
europeia de total confiança. Lembrei-me de que talvez o senhor
conheça alguma jovem britânica que deseje manter uma relação por
correspondência.
– Claro. – Pelo tom de voz, adivinhou que Azcárate já tinha o
auscultador preso entre o queixo e o ombro. – Lembro-me de duas
que poderiam estar interessadas. Dá-me a tua morada. – Depois de
a anotar, refletiu uns instantes. – Se alguma aceder… Podes
esperar que te escreva ou preferes telefonar-me dentro de uns dias
para escreveres tu a primeira carta?
– Não, acho melhor esperar. Não estou assim tão desesperado.
Ela pode assustar-se com tantas pressas.
– Nesse caso, é isso que faremos. Manter-me-ei a par do vosso
idílio, não duvides. – A voz dele quebrou-se na despedida como se
quebrara a de Manuel Arroyo Benítez ao desejar-lhe bom dia. – Tem
cuidado contigo, por favor.
– O senhor também. Que o novo ano seja muito feliz para si e
para a sua família.
– Desejo o mesmo para todos nós.
Desligou imediatamente, mas demorou quase dois minutos a sair
da cabina. Precisava deles para deixar de ser Manolo Arroyo e
voltar a entrar na pele de Peter Louzán, o cliente norte-americano
que pagara o preço da chamada em dólares antes de regressar ao
quarto para dormir a sesta. Às sete da tarde, abriu a torneira do
duche, salpicou uma toalha e atirou-a ao chão. De seguida, voltou a
sair, percorreu a avenida Alvear no sentido inverso ao dessa manhã
e abriu a porta de casa no instante em que o telefone começava a
tocar.
Não era Walter, como tinha receado, mas Clara, que queria
repreendê-lo por ainda não a ter convidado a conhecer a sua casa.
Teria sido um bom presente de Reis, acrescentou, porque me
disseram que é um amor, e o falso Adrián Gallardo decidiu que tinha
tempo de sobra para fazer boa figura.
– Não comprei bolo-rei, mas se não tens nada melhor que
fazer… – Havia pensado voltar ao hotel pela meia-noite, dormir
algumas horas e deixar o quarto às seis da manhã, de modo que até
se podia permitir jantar com ela. – Ainda estamos a tempo.
– Não, não, é melhor no sábado. – Como de costume, Fräulein
Stauffer estava aos comandos e tinha tudo planeado. – Se achares
bem, encontramo-nos ao meio-dia, mostras-me o apartamento,
tomamos o aperitivo aí perto e depois vamos almoçar ao Tigre. Uns
amigos do Pierre, que têm uma casa junto ao rio, convidaram-nos
para passar lá o fim de semana. No domingo, o Walter vem almoçar,
portanto podemos voltar à noite no carro dele.
Manolo Arroyo tinha a certeza de que ninguém o convidara para
almoçar no sábado, embora não tenha sido apanhado de surpresa.
Clara já recorrera àquela fórmula outras vezes para o incluir nos
seus planos, vezes suficientes para que não pensasse que se tinha
esquecido dele. Em certas situações, aquelas iniciativas
explicavam-se por si só. A 24 de dezembro, que para Kutschmann
era só a véspera do dia de Natal, levou-o a jantar a casa de Cissy
Von Schiller, cuja biografia Manuel Arroyo Benítez conhecia muito
bem, e tinham acabado a cantar Suspiros de España, em dueto e
com a voz trémula adequada à ocasião. A letra bastava para
justificar o facto de não o querer deixar sozinho nessa noite, mas
outras vezes levava-o consigo numa posição ambígua, que
ultrapassava a de um protegido sem chegar a consagrá-lo como
acompanhante habitual. Ele tinha agradecido de todo o coração os
convites e tirado o máximo proveito da sua docilidade. A 6 de janeiro
de 1949, já sabia que Pierre era Pierre Daye e que Magda era a
irmã do ministro da Educação de Perón, tinha conhecido Jan
Degraaf Verheggen, identidade da qual Jean-Jules Lecomte não se
atrevia a abdicar, e aceitara as desculpas de Ante Pavelić, já sem
óculos, bigode e pera, por não lhe ter dirigido palavra numa época
em que a sua vida corria grande perigo. Só não sabia quando Clara
Stauffer pensava regressar a Madrid, até quando se prolongariam
essas hipotéticas férias que a mantinham tão ocupada como no
número 14 da calle Galileo. Quando conseguiu deslindar o frenesim
da sua agenda, repleta de reuniões quase diárias que, de início,
alternava com excursões de dois ou três dias pela província e,
depois do verão, com viagens mais longas que a mantinham
afastada de Buenos Aires por algumas semanas, os motivos dela
haviam deixado de lhe interessar e a única coisa que desejava era
não tornar a pôr-lhe a vista em cima.
No domingo, 2 de outubro, ao oferecer-lhe o braço para
atravessar o jardim da sumptuosa quinta de Olivos, em cuja porta
Rodolfo Freude a esperava, o camarada Gallardo vivia já muito
distanciado de Walter Kutschmann. Embora de vez em quando
ainda se juntasse às farras que o antigo oficial da Gestapo
patrocinava, preferia assistir com relativa assiduidade às reuniões
que ele presidia em casa, à quarta-feira, uma convocatória fixa e
informal, que dava a Walter, sob pretexto de manter o contacto com
os antigos hóspedes, uma oportunidade ideal para uma farra a meio
da semana. Por essa altura, vendo-o todos os meses à porta do
gabinete, a risonha Sofía Ferreti levantava-se da cadeira para lhe
dar um beijo e para lhe perguntar se já tinha arranjado uma
namorada portenha. O falso Adrián Gallardo negava sempre com a
cabeça, antes de tirar do bolso interior do casaco um envelope com
a sua modesta contribuição para o fundo de solidariedade de que só
tinha beneficiado durante quatro meses. Era muito generoso e
extremamente pontual nas visitas à calle Canning, assim se
desculpando pelo capricho de ter procurado emprego sozinho. De
facto, quando começou a primavera austral de 1949, a relação do
falso Adrián Gallardo com os nazis de Buenos Aires limitava-se aos
tours de Kutschmann e ao dinheiro que entregava todos os meses à
menina Ferreti. A vida social de Manuel Arroyo Benítez não era
muito mais intensa.
– Julgava que o senhor já não ia telefonar.
Em meados de fevereiro, quando marcou um número local a
partir de um telefone público, apercebeu-se de um misterioso
sotaque caribenho na voz do interlocutor. O contacto de Meg na
embaixada dos Estados Unidos na Argentina chamava-se Fred
Goodwin, mas a mãe, que provinha de uma das melhores famílias
da República Dominicana, sempre falara com ele em espanhol. Uns
dias depois, quando lhe perguntou se alguma vez lera o Dom
Quixote, verificou que os genes de Mrs. Goodwin eram ainda mais
fortes do que a determinação de não renunciar à língua materna.
Às onze da manhã de uma quarta-feira, a cave da Librería del
Colegio, um local enorme e antigo perto da plaza de Mayo, estava
tão deserto como Goodwin lhe garantira, mas, mesmo depois de
ouvir a pergunta combinada, Manolo franziu o sobrolho.
– Sim, sou eu – acrescentou em voz baixa um homem novo e
muito alto, mulato, olhos castanhos, lábios um pouco grossos e,
acima de tudo, um aspeto latino-americano tão inconfundível que
qualquer pessoa o tomaria pelo melhor jogador de polo da seleção
argentina.
– Ninguém diria. – Manolo sorriu.
Goodwin devolveu-lhe o sorriso, tirou um livro da estante à sua
frente e convidou o espanhol a imitá-lo. Durante um quarto de hora,
conversaram ambos em sussurros sem qualquer sobressalto,
enquanto folheavam volumes antigos atrás de uma estante que os
escondia de qualquer cliente que descesse as escadas. O norte-
americano havia prognosticado que ninguém o faria, e assim foi.
– A Meg manda-lhe abraços.
– Devolva-os da minha parte.
Depois explicou-lhe que, se tinha demorado tanto tempo a
contactá-lo, fora porque a sua situação fazia de qualquer encontro
uma operação muito arriscada.
– Dependo deles para tudo. A casa onde vivo, o dinheiro de que
disponho, as pessoas com quem me relaciono, tudo passa por eles.
Todos os dias fico a par de coisas novas, mas até conseguir tornar-
me independente, preferia limitar ao máximo os nossos encontros.
Enquanto a Stauffer continuar cá, não conseguirei afastar-me dos
amigos dela e não sei quando pensa regressar a Espanha.
Fred Goodwin não gostou de ouvir aquilo. Manolo Arroyo já sabia
que ele não iria gostar. O amigo de Meg era o seu controleiro e
desejava receber informações com a maior frequência possível,
ainda assim, conseguiu adiar o encontro seguinte para dali a um
mês e meio, oferecendo-lhe uma cenoura.
– O Scarface não está em Buenos Aires. Esteve cá em
dezembro, mas regressou à Europa antes do Natal. Pelo que ouvi,
vive na Alemanha, embora vá a Madrid com alguma frequência. Os
amigos acham que ele pretende mudar-se para Espanha, mais cedo
ou mais tarde.
No dia em que conheceu Fred Goodwin, o seu compatriota Peter
Louzán já tinha começado uma relação epistolar com Miss Helen
Murray, residente em Burnham, Buckinghamshire, a menos de cinco
quilómetros de Taplow. Miss Murray, que Manolo não sabia se era
uma personagem inventada ou uma mulher de carne e osso, aceitou
de bom grado que o principal interesse de Mister Louzán fosse pô-la
em contacto com um amigo dele a viver em Madrid. Na primeira
carta que escreveu, sempre em inglês, Peter explicou-lhe que Rafa
Cuesta ficara encantado com ela quando a conheceu numa
excursão a Toledo e que não conseguia tirá-la da cabeça. Como era
muito tímido, ele aceitara o papel de intermediário. Queria saber se
Helen se importaria de se corresponder com o amigo, e ela
respondeu-lhe imediatamente que não.
Antes mesmo de receber uma resposta de que nunca tinha
duvidado, Felipe Ballesteros Sánchez escreveu e enviou uma carta
ao hipotético pretendente, na qual, com uma abordagem própria de
uma simples comunicação comercial – «Excelentíssimo Senhor, em
resposta ao seu pedido, tenho o prazer de lhe comunicar que a
pessoa que representa os interesses do meu cliente no Reino Unido
é…» –, se limitara a escrever o nome e a caixa postal de Miss
Murray. No fim de fevereiro, o titular do apartado 1924 da Central de
Correios de Buenos Aires recebeu uma carta da referida Miss Helen
agradecendo-lhe de todo o coração tê-la posto em contacto com o
seu amigo, que lhe tinha enviado de Madrid uma caixa de gomas
tão deliciosas que não se lembrava de ter provado em muitos anos
algo que se lhes pudesse comparar.
O idílio por correspondência entre o falso senhor Cuesta e a
fictícia menina Murray era a principal razão por que Manuel Arroyo
Benítez resistia aos pedidos de Fred Goodwin. Tinha a certeza de
que Pablo de Azcárate não precisava de instruções para interpretar
a situação, mas em maio voltou a escrever a Helen, pedindo-lhe que
o avisasse quando o amor por Rafa lhe tivesse vergado os
preconceitos britânicos acerca de Espanha. Em resposta, ela
garantiu-lhe que ele seria o primeiro a saber se o namoro deles
evoluísse para algo mais sério. Aquela resposta reforçou o objetivo
de Manolo Arroyo de fornecer aos norte-americanos a informação a
conta-gotas, fazendo coincidir o seu relatório sobre a rede Stauffer
com aquele que resultasse da informação que Guillermo enviava
para Burnham. No entanto, desde que se mudara para Balvanera
em meados de março e começara a trabalhar perto do Palácio da
Justiça e longe de Walter Kutschmann, a frequência dos encontros
com Goodwin aumentou. Se o aspeto do agente da CIA estivesse
mais de acordo com o seu nome, pensaria duas vezes, mas no novo
bairro, popular e populoso, o norte-americano parecia mais um
portenho.
– Devia ter aceitado um dos empregos que o SARE lhe ofereceu.
– Porém, como não era, também não aprovou as suas novas
condições de vida. – Ganharia mais dinheiro e informações.
– Informações? – Já levava a resposta preparada. – Todas as
empresas alemãs em Buenos Aires estão repletas de nazis. Posso
fazer-lhe uma lista de cor, agora mesmo. E se vocês não foram
capazes de o impedir, que poderia eu fazer?
Goodwin não respondeu, mas seis meses depois, no carro que
os levava a Olivos, Fräulein Stauffer foi muito mais insistente.
– Olha que és teimoso, Adrián, quem se lembraria de aceitar um
emprego de contabilista numa escola quando poderia ocupar um
lugar na direção de uma grande empresa?
O cargo que o professor José Pacheco Hernández
desempenhava na Escola de Línguas La Europea não correspondia
ao que tinha comunicado aos seus benfeitores, porque a verdade
era incompatível com a formação de um divisionário que se
notabilizara como pugilista profissional sem qualquer diploma
académico.
– Já te expliquei, Clara. – Cobriu-se novamente com a pele
imaculada de uma ovelha não muito esperta. – Eu gosto do meu
emprego, sinto-me bem a fazer o que sei. Poderia ganhar mais
dinheiro, mas o meu salário é suficiente para viver e não me sinto
preparado para um cargo superior. Não tenho estudos, já sabes,
nem experiência em mandar. Além disso… Vocês já fizeram muito
por mim.
– Baboseiras. És demasiado humilde, embora… Olha, se calhar,
acabamos os dois a ganhar. – Dirigiu-lhe um sorriso
deliberadamente enigmático. – Já diz o ditado que há males que
vêm por bem.
Não quis ser mais explícita até depois do café, quando os
restantes convidados se dividiram entre dormitar nas
espreguiçadeiras em redor da piscina e continuar a beber. Clara
optou por um passeio pelo jardim e convidou o seu protegido a
acompanhá-la.
– Tudo o que é bom acaba, Adrián. – Aleluia, pensou ele,
deixando transparecer uma expressão de mágoa. – Em dezembro,
regresso a Madrid. Não tenho outro remédio, mas antes vou fazer
outra viagem, uma viagem longa e muito interessante. Suponho que
já te tenhas apercebido de que não vim à América Latina de férias.
Precisava de contactar com a nossa gente daqui, de visitar os que já
estão instalados, de preparar a chegada de futuros camaradas e,
sobretudo, de me reunir com este governo que nos está a ajudar
tanto. Pela mesma razão, dentro de uns dias irei a Lima. – Nesse
momento fez uma pausa, olhou para ele, sorriu, e a mudança no
tom de voz foi suficiente para acender uma luz vermelha entre as
sobrancelhas de Manuel Arroyo Benítez. – Nem tudo será trabalho,
acredita. Convidaram-me para a Feira de Outubro e espero divertir-
me, mas pretendo, sobretudo, consolidar o nosso trabalho, primeiro
no Peru, depois na Bolívia. Mas não é só. Terei tempo de visitar
Santiago do Chile antes de voltar a Buenos Aires para apanhar o
barco de regresso a Espanha.
– Uma viagem fantástica, Clara. Mereces isso e muito mais.
– Tu também. – Um rubor, idêntico ao que lhe ativara todos os
alarmes numa taberna do bairro de Argüelles, voltou a cobrir-lhe as
faces. – Foste um companheiro de viagem insuperável, sempre
atento e generoso, encantador. Vou sentir a tua falta, sobretudo
porque com certeza passarão muitos anos antes de nos voltarmos a
ver. Talvez nunca mais nos vejamos. Por isso, embora pareça
ousadia, vou atrever-me… Dizem que a sorte ajuda os audazes, não
é? – Fez uma pausa, aproximou-se dele, respirou fundo e,
finalmente, decidiu-se. – Vem comigo a Lima, Adrián. Deixa esse
trabalho absurdo e acompanha-me. Em Espanha, nunca te teria
proposto nada do género, mas aqui ninguém nos conhece e
podemos desfrutar de tudo os dois, só nós dois. Gosto muito de ti,
essa é a verdade, mas nem sequer teríamos… Enfim… Gostava de
fazer uma última viagem contigo, nada mais.
– Eu também. – Só pretendia ganhar tempo, contudo, ao ver a
magnitude do sorriso que as palavras dele granjearam percebeu
que não o tinha. – Adoraria, a sério, mas não posso acompanhar-te.
Então, muito devagar, ela girou sobre os calcanhares e começou
a andar lentamente em direção a casa, sem prestar muita atenção
às suas explicações.
– Estou muito cansado, Clara. Desde que me alistei para ir para
a Rússia não tive casa, família, nada que me pertencesse, nem
sequer tranquilidade para fazer planos de futuro porque não havia
futuro. Aqui pude começar de novo e tenho finalmente uma vida
normal, um bom trabalho, projetos, esperanças e, além disso… –
Clara, que continuava a caminhar à frente dele, levantou uma mão
para sugerir que não queria ouvir mais nada, mas ele disse-o de
qualquer forma. – Conheci uma rapariga de quem gosto muito.
Desculpa, mas agora não posso deixá-la, não posso deixar de
chofre tudo o que tenho…
Continuou a falar durante muito tempo, sem que ela desse sinais
de estar a ouvi-lo. Nunca teria pensado que uma mulher tão
poderosa se rebaixasse a ponto de agir como amante despeitada,
mas foi isso que aconteceu. Meia hora depois aproximou-se dele
para lhe dizer, no tom de voz altaneiro que ele já conhecia, embora
ela nunca o tivesse usado para se lhe dirigir, que voltava sozinha
para a cidade. Com certeza arranjas lugar nalgum carro,
acrescentou, se não desenrasca-te. E foi-se embora, sem um beijo,
um abraço ou a promessa de um futuro encontro.
Manuel Arroyo Benítez nunca mais voltou a ver Clara Stauffer.
Também não quis comentar a sua proposta com ninguém. Fred
Goodwin, Meg Williams e quem sabe se até Pablo Azcárate tê-lo-
iam censurado por ter desperdiçado semelhante oportunidade de
investigar a atividade da rede fora da Argentina, mas ele já tinha
reunido informação de sobra para processar aquela mulher uma
dúzia de vezes e não estava disposto a deixar-se imolar naquele
altar.
Tudo o que disse a Clara era verdade. O falso Adrián Gallardo
estava muito cansado, farto de mudar de identidade várias vezes ao
dia, de se embebedar com assassinos, de lamber as botas de
pessoas desprezíveis, de fingir em várias línguas, de não ter casa,
nem família, nem futuro.
Aceitara uma missão e cumprira-a admiravelmente. Ninguém
tinha nada a censurar-lhe, mas também ninguém lhe devolveria os
anos que nela havia investido. Só esperava por um fim que tardou
até meados de dezembro, um ano depois de ter embarcado em
Madrid no avião que o levara até Lisboa.
Dê-me os parabéns, Mister Louzán, escreveu Helen Murray na
sua última carta. E felicite-se também, porque isto é uma vitória de
todos. Vou casar-me com o Rafa. O nosso amor por
correspondência terminou.

O último envio saiu de Madrid num camião que seria


descarregado em Paris a 22 de dezembro de 1949.
– Posso pedir a uma transportadora associada que se
encarregue do percurso Paris-Zurique e que nos garanta a entrega
antes do fim do ano, se preferires.
Sabia que o homem sentado à minha frente se chamava Otto
Skorzeny, mas tinha conseguido enterrar esse dado no fundo da
minha memória para não cometer erros. Por isso, foi o Rolf
Steinbauer quem olhou para mim e negou com a cabeça,
acendendo um havano na mesma área reservada do Horcher onde
nos havíamos conhecido em outubro do ano anterior. Nesta altura,
eu não precisava de mais para continuar a falar.
– Bom, se alguém puder receber a caixa em Paris, melhor ainda.
Quanto mais perto do Natal estivermos, mais intenso será o tráfego
entre Espanha e França. Mandar um camião diretamente para a
Suíça…
Ele também não precisava de que eu terminasse as frases para
as interpretar.
– Não te agrada.
– Não muito, para dizer a verdade. A carga teria de passar por
duas fronteiras, não conhecemos ninguém na alfândega suíça, e é
um envio demasiado importante para correr riscos. Com Paris, as
coisas sempre nos correram bem.
– Paris será. – Sorriu. – Tu mandas.
Mesmo que ninguém tivesse acreditado nisso, a começar por
mim, nos últimos dias de 1949 a verdade era essa, era eu quem
mandava.
O nosso negócio, tão antigo como o ano que estava prestes a
expirar, arrancou a 17 de janeiro, segunda-feira, quando o
Steinbauer me telefonou para o trabalho logo de manhã e marcou
um encontro para o dia seguinte, às quatro e meia da tarde, no
número 57 da calle Juan Bravo.
– A essa hora estou a trabalhar. Se pudesse ser mais tarde…
– Não. Não possível prima nem mais tarde – respondeu-me num
tom que não admitia réplica. – Quatro e meia.
No dia seguinte, fui ver don Gabino para o avisar de que um
assunto importante, relacionado com a menina Stauffer, me
impediria de vir trabalhar depois do almoço. O dono de La Meridiana
agitou a mão no ar, gesto com que costumava minimizar as
diligências triviais, dizendo-me para fazer o que tinha de fazer.
Estava tão interessado em fingir que sabia tudo aquilo que não
podia saber que a vaidade o impedia de mostrar muito interesse
pelos meus assuntos. Aceitei a sua resposta como uma bênção,
mas toda a serenidade que ela me inspirou, e a que fui capaz de
aduzir por minha conta, se esfumou no instante em que avistei a
silhueta alta e inconfundível do Scarface, diante de uma fachada
com um sinal de estacionamento proibido, sob um enorme H
maiúsculo.
– Mas… – Aquela letra deixou-me tão nervoso que nem o
cumprimentei. – Isto é um hospital.
– Boa tarde. – Ele corrigiu-me com um sorriso. – Como está?
– Sim, desculpe. – Obriguei-me a sorrir e estendi-lhe a mão
direita para que ele a triturasse entre os dedos enquanto eu sentia
as paredes do estômago a contraírem-se velozmente. – Não quis
ser mal-educado, mas fiquei muito surpreendido… – Apontei para o
edifício e ele sorriu.
– Vamos – limitou-se a dizer.
Raios te partam, Manolo, disse para comigo, seguindo-o até ao
interior. Quando pus os pés nos ladrilhos do vestíbulo, o nervosismo
cristalizou-se numa inquietação muito semelhante ao medo. Tinha a
certeza de que naquele edifício devia trabalhar algum dos meus
colegas de faculdade. Também seria fácil deparar-me com um
funcionário do hospital ou com mais de uma enfermeira que me
tivesse conhecido como doutor García, cirurgião. Assim julgava,
mas tinha interpretado erradamente a situação. A minha experiência
profissional decorrera num grande hospital público, onde todos os
quartos tinham o mesmo tamanho e a maior parte dos pacientes
ficava em enfermarias com mais de cinquenta camas. Ali, o
movimento de pessoal era constante, os especialistas de todos os
serviços encontravam-se tão amiúde que nem sequer paravam nos
corredores para se cumprimentarem e as enfermeiras conheciam-
nos a todos, porque eram distribuídas pelas salas e não pelas
especialidades. No San Carlos, estar ao lado de um homem com
quase dois metros, com a cara desfigurada por uma cicatriz mais
visível do que a sua estatura ter-me-ia garantido um encontro
indesejável antes de conseguir avançar cinquenta metros. No
entanto, o rés-do-chão da Clínica Ruber, pelo menos a zona nobre
que percorri atrás de Steinbauer, lembrava mais um hotel de luxo do
que um hospital. No vestíbulo não vi batas brancas, e, embora
nenhuma das pessoas com quem nos cruzámos resistisse à
tentação de o observar, como se exibisse um sinal de luz na cabeça,
ninguém usava farda, e todos iam ou vinham de uma visita a algum
doente. O quarto para onde nos dirigimos ficava muito perto, e no
balcão de atendimento mais próximo fomos recebidos pelos sorrisos
de duas enfermeiras tão bonitas como se as tivessem escolhido de
um cartaz publicitário, tão jovens que ainda estariam na escola
quando eu renunciei à minha profissão.
Naquele corredor, as portas estavam bastante afastadas umas
das outras, mas cada uma delas encerrava um único doente,
instalado numa espécie de apartamento com vestíbulo, uma sala
maior do que a da minha casa e, ao fundo, um quarto com espaço
suficiente para ter, diante de uma cama articulada, uma zona de
estar com um conjunto de sofás e uma mesa baixa. Ali, sentado
numa poltrona, esperava por nós o homem que não compareceu ao
encontro que Clara Stauffer lhe arranjara comigo a 18 de julho de
1947, a razão que me levara a juntar-me ao seu círculo, a prova viva
de que o Manuel Arroyo Benítez tinha elaborado uma hipótese
correta antes de partir para Buenos Aires.
– Mein lieber Freund!
Reconheci sem vacilar o amigo querido do Rolf Steinbauer
porque era tão singular como ele, embora por motivos quase
completamente antagónicos. Se o Skorzeny encarnava a imagem
paradigmática do herói do Terceiro Reich, o Hans Lazar lembrava os
modelos de certas fotografias que ilustravam os folhetos de alguns
eugenistas alemães, pais da política racial abraçada por Hitler. Era
um homem baixo, e muito magro quando o conheci, embora a
flacidez das faces e a pele que lhe caía de ambos os lados do
pescoço revelassem a natureza repentina daquela magreza,
motivada talvez pelas razões que haviam determinado a sua
entrada naquela clínica. O exercício da medicina tinha feito de mim
um especialista em pijamas e concluí que o dele, de seda cor de
vinho, era muito caro. Do bolso do casaco espreitava a ponta de um
lenço branco, tão primorosamente dobrado como o que usaria para
presidir a um banquete, mas os pés tinham optado pelo conforto de
umas pantufas de lã aos quadrados, deformadas pelos joanetes e
tão usadas que destoavam da impecável elegância do maior e mais
luxuoso quarto de hospital que vira na vida. Nenhuma destas coisas
chamou tanto a minha atenção como a cor da sua pele.
O Manolo tinha-me avisado, mas a realidade superou todas as
expectativas. O rosto do antigo responsável pela propaganda nazi
em Espanha, além de desmentir, a um ponto grotesco, a pureza
ariana da raça alemã, ter-lhe-ia sido muito útil para passar
despercebido entre as barracas do Rastro numa qualquer manhã de
domingo. A pele revelava o tom mate, coberto por uma ligeira patine
de cor quase esverdeada, que a ausência de sol costuma dar
durante o inverno às peles muito morenas. Porém, a cor não estava
associada a nenhuma doença. Seria perfeitamente saudável em
qualquer cigano, daqueles que vendiam cestos de vime ou tocavam
realejo em plena rua, fazendo dançar uma cabra. Aquele tom
amarelo-esverdeado, muito mais intenso do que o de uma pele
conhecida, a minha, que sempre me parecera escura, deixou-me
perplexo, mas não o suficiente para não me dar conta de que aquele
homem estava a sofrer.
A dor contraía-lhe quase impercetivelmente os músculos da cara
e provocava-lhe um ligeiro tremor nas comissuras da boca, que se
abria num esgar semelhante a um sorriso amargo. Tinha visto
muitas vezes aquela expressão em pacientes recém-operados que
haviam jurado a si próprios não se queixarem. O último botão do
casaco do pijama estava desabotoado e os dois anteriores, tão
tensos que criavam uma abertura por onde se via um pedacinho da
compressa branca, um pequeno indício que lhe justificava a postura,
com as pernas abertas no ângulo próprio de uma parturiente. A dor
provinha-lhe da cicatriz de uma operação recente ao abdómen,
embora o brilho vidrado das pupilas revelasse um sofrimento mais
antigo, de um remédio de cuja falta sentia. Eu percebia muito mais
de cicatrizes do que de dependências, no entanto, a ansiedade que
o seu olhar refletia e a frequência com que respirava pela boca
pareceram-me tão sintomáticas que não tive outro remédio senão
admirar o conjunto. A combinação de uma dor cirúrgica aguda com
uma síndrome de abstinência, bem como a amabilidade extrema
com que me cumprimentou revelavam um autodomínio tão
extraordinário como a vontade férrea de Herr Lazar.
– Muito obrigado por visitar este pobre doente. – A sua penosa
condição física transparecia na debilidade da voz sem lhe diminuir a
compostura. – Tinha muita vontade de o conhecer, embora
preferisse que nos encontrássemos noutras circunstâncias. Dê-me a
honra de se sentar, por favor.
Se eu não soubesse que era austríaco, tê-lo-ia descoberto nesse
momento. Até durante a convalescença de uma operação, o seu
comportamento cerimonioso, requintado, denunciava-lhe quer a
nacionalidade, quer a qualidade de diplomata. No entanto, ao
sentar-me ao seu lado, senti a natureza artificial daquela simpatia,
uma criação que contrastava com a sociabilidade masculina,
espontânea e ruidosa, do Steinbauer, com o cheiro a canecas de
cerveja de meio litro, a façanhas sexuais e a anedotas picantes, que
o envolvia como uma segunda pele, apesar de ser tão austríaco
como o Lazar. Nunca me teria ocorrido que um dia chegaria a
escolher entre dois nazis, mas naquele momento, enquanto o
convalescente me pedia que tomasse a palavra, decidi que gostava
muito mais do gigante do Schmiss do que dele.
– Estive a pensar, e a primeira coisa de que necessitamos é uma
morada onde recolher a mercadoria. Não é preciso registá-la na
documentação do remetente, porque na transportadora
identificamos os clientes fixos com um número e, se for caso disso,
com siglas. Posso inventá-los à medida que forem sendo
necessários para que sejam diferentes em cada remessa ou não,
isso depende dos riscos que estivermos dispostos a correr.
Contamos com a cumplicidade do dono da transportadora, mas não
posso garantir a do pessoal. Eu não atribuo a carga aos estafetas,
há um chefe de armazém que se encarrega disso, e seria tão
estranho don Gabino intervir pessoalmente nessa tarefa que seria
pior a emenda do que o soneto.
– Não percebo bem. – O Rolf observou-me de sobrolho franzido.
– Eu julgo que percebi. – O Lazar esforçou-se por sorrir, mas
olhou para o relógio em vez de olhar para mim. – De qualquer
forma, se puder explicar melhor…
– Claro. O que quero dizer é que se o mesmo estafeta recolher
duas ou três encomendas do mesmo remetente em direções
diferentes, ou de remetentes diferentes na mesma morada, vai
achar muito estranho. Será fácil desconfiar do valor da mercadoria,
abrir a caixa e ficar com o que contém ou assustar-se e chamar a
polícia. – Fiz uma pausa, olhei para eles e verifiquei que podia
explicar melhor. – Em resumo, convinha-nos arrendar um escritório
num bairro não muito caro, nem muito barato. Nas redondezas da
Gran Vía, por exemplo, há apartamentos que eram muito grandes e
que agora estão divididos em escritórios mais pequenos do que este
quarto. Alguns têm porteiro, mas a maior parte nem o tem. Posso
afirmá-lo porque recolhemos encomendas com muita frequência
neste tipo de locais. Se ao tocarmos à campainha não abrirem, os
nossos empregados deixam um aviso debaixo da porta e vão-se
embora porque não conseguem localizar o cliente. Se alugarmos um
desses escritórios, ninguém saberá se é utilizado diariamente ou
não. Quando for preciso entregar uma encomenda, o responsável
abre o escritório com a chave, espera pelo funcionário da
transportadora, entrega-lhe o pacote, fecha a porta e só regressa
quando for necessário.
– É perfeito – aprovou o Rolf. – Não vejo qualquer problema.
– Bom – avancei cauteloso –, não sei qual o valor da mercadoria
que vamos despachar, mas fazer bem as coisas custa dinheiro.
Pagar a renda de um escritório para o usar uma vez por mês, ou
nem isso, é um gasto. Para registar uma sociedade comercial que
dê cobertura legal a todas as operações, é preciso pagar a um
notário, a um cartório… – O Steinbauer dirigiu-me o mesmo sorriso
que a ingenuidade de uma criança desperta num adulto. – Até
pensei… – Por isso, calei-me.
– O que pensou? – O Lazar convidou-me a prosseguir com uma
amabilidade suave, cúmplice. – Interessa-nos muito.
– Bom, pensei que podíamos contar com as secretárias da Clara,
que podíamos pedir-lhes que mandassem uma empregada limpar
quinzenalmente e que viessem abrir a porta quando estivesse
programada uma remessa. O que se espera encontrar num
escritório é uma secretária, por isso…
– Não se preocupe com o dinheiro, senhor Cuesta. – O antigo
diplomata dirigiu-me um olhar complexo, onde julguei ver a
satisfação benevolente do presidente de um júri que se dispõe a
classificar um aluno com nota máxima. – O negócio que queremos
levar a cabo justifica largamente um investimento como o que nos
propôs. Como é óbvio, fá-lo-emos bem e com as garantias legais
que forem necessárias. Agora, se nos der licença por alguns
momentos, gostaria de discutir os pormenores com o Rolf. Diante da
porta do quarto há um sofá que parece cómodo. Se não se importar
de esperar aí, ele explicar-lhe-á depois o que combinámos…
Quinze dias depois, a Sociedade Europeia de Comércio Externo
foi constituída ante um notário. Nunca cheguei a saber quem eram
ao certo os seus donos porque a secretária do Conselho de
Administração, a senhora Ingrid Weiss, agia em representação de
todos os sócios.
– O Hans confia em ti. – O Rolf começou a tratar-me por tu
naquela tarde, no bar aonde fomos depois da clínica. – Mas mais
importante que saibas que eu não confio nele.
Nas duas horas em que estivemos juntos, ambos bebemos de
mais, mas ele manteve o controlo suficiente para não falar
demasiado, e eu o controlo preciso para não esquecer o que ouvia.
Já sabia o motivo da hospitalização de Lazar. Enquanto falava de
locais e de secretárias, tivera a oportunidade de dar uma vista de
olhos ao impresso preso a uma tabuinha nos pés da cama e, ao
levantar-me para sair, aproximara-me o suficiente para verificar que
tinha lido bem o diagnóstico. As obstruções intestinais, muito
dolorosas, eram uma consequência habitual das operações ao
apêndice e, no caso dele, o preço da salvação, embora o facto de
lhe terem removido o apêndice sem necessidade tivesse
aumentado, provavelmente, a vingança do seu organismo. O Rolf
confirmou-me o outro diagnóstico, dizendo-me que a enfermeira que
tinha posto fim à sua conversa com o Lazar ia injetar-lhe morfina. O
antigo diplomata do Reich tinha essa dependência desde que as
feridas de que padeceu durante a guerra de 1914 fizeram do
sofrimento físico um ingrediente quotidiano da sua vida, e não por
acaso havia marcado aquele encontro connosco meia hora antes de
receber uma dose. Tinha o hábito de despachar os assuntos
importantes nos piores momentos do dia, como uma espécie de
ginástica da vontade. Dizia que a dor e a ansiedade o mantinham
alerta, aumentando-lhe a desconfiança, a capacidade de
observação e um mal-estar que lhe aguçava a inteligência. Calculei
que outro motivo, talvez o principal, fosse desfrutar dos efeitos da
droga sem interferências, mas não o disse, porque não era a
dependência o motivo dos receios do Steinbauer.
– Ele guardou tudo, tudo o tem lui. – O seu espanhol tinha
melhorado muito, mas o whisky fazia-o retroceder. – E se guarda
muito dinheiro, durante muito tempo, acaba pensando que é seu,
cioè… Não confio.
Os temores do Rolf atribuíram-me um papel mais importante
naquele negócio do que o de um mero agente comercial. Embora
me tenha garantido que estaria presente nos momentos decisivos
de cada operação, continuaria a viver em Munique e esperava que
eu o mantivesse a par dos acontecimentos. Repetiu, com as
mesmas palavras escolhidas por Clara no dia em que mo
apresentara, que a autoridade naquele assunto era só dele e, para
que o Lazar o compreendesse claramente desde o início,
encarregou-me de procurar o escritório que me parecesse mais
adequado e de telefonar para a Ingrid quando o tivesse encontrado.
– Frau Weiss representará Fräulein Stauffer e a me, mas não
sabe nada, só assinar contrato, outras coisas talvez… Tu parla com
me. – Pousou na mesa um cartão de visita não impresso, onde tinha
escrito o seu nome e dois números de telefone. – Só com… me?
– Comigo – corrigi-o, e ele repetiu a palavra duas vezes para não
a esquecer. – De acordo. Mas surpreende-me que confies mais em
mim do que nela, do que no Hans. Eu não passo de um funcionário
de uma transportadora, Rolf. Mal me conheces.
Ao ouvir-me, ele reclinou-se na cadeira, inclinou a cabeça e
olhou-me nos olhos.
– Tu não falas de dinheiro, Rafa, mai… Eu mandei muitos
soldados, ho perso uma guerra, sei muito de homens. Os que não
falam de dinheiro, sono homens com ideias. Como migo.
Tinha aprendido mal a última palavra que lhe ensinara, mas não
o corrigi. Preocupava-me muito mais encontrar uma maneira de
impedir que fizesse o que estava prestes a fazer.
– Heil Hitler! – Mas não consegui.
Ao ouvi-lo, fechei os olhos. Quando os reabri, verifiquei que nada
se tinha passado. Sentado à minha frente, manteve o braço erguido
apenas um instante, antes de o dobrar para pegar no copo,
esvaziando-o de uma só vez. Olhando em volta verifiquei que o
único cliente sentado ao balcão lhe havia respondido da mesma
forma. O empregado que veio encher novamente os copos, muito
sorridente, encheu o dele mais do que de costume, mesmo sabendo
que era a última coisa que lhe convinha, e foi tudo. Há mais de dez
anos que Rafael Cuesta Sánchez se propusera não passar para lá
da Castellana exceto em situações imprescindíveis, e eu já não
conhecia o meu bairro.
– Agora bebe. – O falso Rolf levantou o copo no ar para propor
um brinde. – Às ideias.
Levantei o meu muito devagar, sem dizer nada. O verdadeiro
Otto Skorzeny sorria-me com a sua cara cortada, todavia, olhando
para ele, vi um rosto diferente, liso e corado, muito mais bonito do
que o dele. Se o meu paciente tivesse sobrevivido, teria vinte e seis,
talvez vinte e sete anos, e manteria uma cara muito bonita, mesmo
não tendo sucesso algum entre as raparigas, porque uma bomba
alemã de quinhentos quilos lhe arrancara as duas pernas a 16 de
novembro de 1936. Revi aquela expressão plácida de criança
adormecida, a espessura das pestanas, a polpa sanguinolenta dos
cotos e a recordação dele brindou comigo.
– Às ideias.
A partir de então, entre todas as imagens sangrentas, injustas,
tristíssimas que armazenava, a minha memória escolheria sempre a
daquele rapaz, a primeira vítima do pior, recordando-me que eu
também tinha perdido a guerra. Aqueles cotos transformaram-se
numa senha da minha própria identidade, na bússola capaz de me
devolver o rumo quando duvidava de quem era, do que estava a
fazer, e avançaram comigo, como que cosidos à minha sombra,
enquanto visitava os locais para arrendar, anunciados no ABC,
quando escolhi um escritório situado num prédio da calle
Jacometrezo, e o mostrei a Ingrid, na mesma tarde em que ela
assinou o contrato.
– O que sabes dos viajantes? – perguntei à nova inquilina
quando saímos juntos do gabinete do administrador. – O Adrián está
bem?
Ele enviara-me um postal pouco antes do Natal, mas não voltara
a saber nada dele.
– Muito bem – respondeu Ingrid. – Muito contente, na verdade.
Não acreditei totalmente, até que, a 16 de fevereiro, encontrei na
minha bandeja da correspondência uma carta do Felipe Ballesteros
Sánchez e, nela, juntamente com a confirmação implícita das boas
notícias que a Frau Weiss me dera, as coordenadas de um novo
amor.
Nunca cheguei a saber se a Helen Murray era uma mulher real
ou uma personagem inventada para alugar um apartado nos
correios de Burnham, Buckinghamshire. Também não sabia quem
lia os meus relatórios, nem as cartas de amor que escrevia em
inglês com frases pirosas, artificiais, copiadas de um livro de
correspondência bilingue dos anos vinte que encontrei num pavilhão
da Cuesta de Moyano. A Miss Murray, fosse quem fosse, respondia
pontualmente no mesmo tom, agradecendo-me from the bottom of
her heart os presentes que escolhia para ela nas lojas de Madrid
mais cuidadosas com a embalagem dos seus produtos. Eis a
característica comum de objetos muito díspares que iam das caixas
de gomas de uma pastelaria na esquina das calles Marqués del
Duero e Alcalá, aos pratos damasquinados de Toledo das lojas para
turistas da calle Mayor, passando por toalhas bordadas ou
estatuetas de porcelana barata.
À medida que a minha relação com a Miss Murray se ia
consolidando, lembrava-me, com cada vez com mais frequência,
das palavras com que o Manolo costumava responder à minha
inquietação quando nenhum dos dois sabia ainda por que razão a
Clara Stauffer se interessava tanto por mim. Neste negócio, as
coisas avançam muito devagar, dizia sempre, e, naquela época,
quando pensava que ele tinha regressado a Espanha em setembro
de 1946 e só conseguira pôr os pés no número 14 da calle Galileo
em junho de 1947, a paciência dele espantava-me. Depois,
espantar-me-ia ainda mais, durante o ano e meio que passou em
Madrid com uma identidade falsa e na mais completa ignorância
acerca do seu destino, sempre à espera, sem saber muito bem o
que esperava, convivendo harmoniosamente com aquela situação
desesperante. No entanto, chegado o momento, a Helen Murray
mostrou-me que não era tão difícil viver assim.
O desejo de entrar em ação levou-me a redigir o primeiro
relatório antes de os envios começarem. Três dias depois de
receber a carta de Buenos Aires, comuniquei a Burnham a minha
entrevista com Lazar e a conversa com Skorzeny, a desconfiança
que este nutria pelo camarada doente, a constituição da Sociedade
Europeia de Comércio Externo e o aluguer da sede. À medida que a
passagem do tempo foi apaziguando os meus ímpetos, concentrei a
informação e limitei-me a registar os factos relevantes, embora
mantivesse o hábito de escrever a Miss Murray uns dez dias antes
de enviar cada carga, não tanto para a avisar, mas para lhe dar
pormenores da remessa anterior. Distanciando as cartas de amor
das datas concretas de cada envio, tornava mais difícil que, se algo
corresse mal, don Gabino pudesse relacionar os presentes que
enviava para a minha namorada inglesa com o trabalho que fazia
para a Clarita, mas isso nunca aconteceu.
As mercadorias que saíram de Espanha em camiões de La
Meridiana nunca foram intercetadas em nenhum ponto do trajeto.
Todas as cargas chegaram sem contratempos ao destino, um êxito
que me mergulhou num profundo paradoxo. O Manolo já me tinha
dito que o seu contacto em Londres, fosse ele quem fosse, não
pretendia ficar com o conteúdo das encomendas. A minha missão
limitava-se a reunir toda a informação possível e a transmiti-la
periodicamente. Só depois de o último camião ter descarregado, de
acordo com o previsto, alguém elaboraria um dossiê, onde constaria
o número, a frequência e a natureza das remessas, para que os
aliados pudessem seguir-lhes o rasto, verificar a veracidade da
informação e recuperar o saque. Naturalmente, o teu nome não
figurará nesse dossiê, prometeu-me o meu amigo. A fonte do
documento será anónima, mas isso não afetará a sua validade
porque o risco que a tua vida correria caso assim não fosse seria
tão evidente que ninguém exigiria conhecer a tua identidade. Se
tudo correr bem, se os amigos judeus da Meg decidirem publicar o
relatório para pressionar o governo por dois flancos em simultâneo,
o teu e o meu, tiramos-te de Espanha antes que o dono da
transportadora perceba o que aconteceu. Nesse caso, é provável
que nos encontremos em Washington, mas não te preocupes.
Voltaremos rapidamente para Madrid, mal o Franco seja corrido de
El Pardo.
A serenidade da sua voz e a doçura daquela última promessa
nunca se apagaram da minha memória, no entanto, embora me
esforçasse por fazer o meu trabalho o melhor possível, nunca perdi
a esperança de que a dada altura a alfândega francesa retivesse a
carga, a inspecionasse e abortasse as operações futuras.
– Toma, é para ti.
Entre janeiro e abril, camuflei os envios do Steinbauer em sete
camiões diferentes. Teoricamente, não deveria tomar conhecimento
do conteúdo específico das caixas porque isso não era necessário
para o meu trabalho, mas o Rolf costumava chamar-me à calle
Jacometrezo sempre que vinha a Madrid para esperarmos juntos
por Lazar. Sem que a expressão do antigo diplomata tenha alguma
vez revelado desagrado, a princípio incomodava-o encontrar-me ali.
Depois, quando descobriu que as minhas capacidades de
camuflagem eram superiores às suas, a expressão suavizou-se e
ele próprio começou a descrever-me os objetos cuja venda tinha
apalavrado previamente. O Manolo também acertara nisso. A maior
parte da mercadoria que enviávamos de Espanha eram obras de
arte, tantas que parecia que os nazis haviam decidido concentrá-las
em Madrid ante a iminência da derrota. Os quadros, arrancados das
molduras, enrolados e protegidos em tubos de metal ou de madeira,
dissimulavam-se facilmente em cargas de materiais de construção
ou entre outros tubos semelhantes, vazios, que fingiam reforçar o
fundo de qualquer embalagem. O ouro sem valor artístico era
fundido em lingotes que viajavam sem problemas, como as joias, no
fundo falso de qualquer caixa, embora o meu recheio favorito
fossem as laranjas. Os objetos tridimensionais, como estátuas,
candelabros ou relógios, bem como a arte sacra, crucifixos, ícones,
custódias antigas, cálices e sacrários roubados em igrejas de meia
Europa, exigiam uma camuflagem mais complexa, que me obrigou a
expor a don Gabino a necessidade de que um mecânico de
confiança modificasse a estrutura de pelo menos um camião, a fim
de criar um esconderijo no chão que ocupasse o espaço livre entre
os dois eixos. Fiz tudo isso, e fi-lo muito bem, antes do Rolf me dar
um envelope numa noite tépida do mês de abril de 1949.
– Que é isto?
Estávamos a jantar numa marisqueira da calle Preciados, no
restaurante a que me levava sempre depois de cada reunião.
– É teu, Rafa. Só porque não pedes, não significa que não o
tenhas ganhado – levantou o copo de alvarinho e brindou. – Às
ideias.
– Às ideias – repeti, e depois de beber agarrei no envelope, meti-
o no bolso e apertei-o disfarçadamente para calcular o conteúdo.
A grossura do embrulho assustou-me e, ao abri-lo, verifiquei que
as minhas previsões eram modestas. A Clara Stauffer prometera-me
que os amigos iriam fazer de mim um homem rico e quando saí
daquela marisqueira já o era. Antes disso, nunca tinha falado de
dinheiro com o Rolf e nunca o faria depois. Não sabia se as quantias
que me dava eram algum tipo de percentagem ou um mero
capricho, mas constatei que iam crescendo à medida que os meses
passavam e, com eles, o êxito das entregas. De início pensei
recusar aqueles envelopes, mas não me atrevi, porque não
encontrei um argumento capaz de vencer um homem cuja ideologia
era perfeitamente compatível com os havanos e os restaurantes de
luxo. Todos aqueles que me ocorreram far-me-iam parecer ingrato e
por isso fui fazendo os depósitos pouco a pouco, em quantias
pequenas, sempre diferentes, em três contas de bancos distintos
que abri propositadamente para esse efeito. Ainda não gastara um
cêntimo, porém já não me estorvava, não só por me ter habituado a
viver em simultâneo várias vidas paralelas, mas porque a verdadeira
tinha mudado de chofre numa tarde de junho, quando saí do
trabalho.
– Desculpe, o senhor é o Rafael Cuesta?
Em meados de maio, recebi um aviso como os dos velhos
tempos e fui a correr ao número 16 da calle Buenavista, para tratar
de um clandestino que tivera de atravessar a montra de uma
pastelaria para escapar à polícia. Carmen, a dona do apartamento,
que já conhecia de outras vezes, arrancara-lhe um pedaço de vidro
que lhe perfurava o abdómen, e isso, em vez de o ajudar, tinha
provocado uma hemorragia que me dificultou muito as coisas.
Porém, o paciente era um homem novo, forte, que aguentou duas
operações seguidas e recuperou muito depressa. Depois, ele
próprio me pediu que escrevesse à mulher, que vivia em Toulouse,
informando-a da situação. Desde o início de junho que esperava
que alguém se aproximasse de mim e me perguntasse por ele, mas,
quando ela o fez, fiquei sem palavras.
– O senhor é o Rafael Cuesta? – repetiu, e assenti com a
cabeça, olhando-a nos olhos, dois lagos tão brilhantes como safiras
muito escuras, tão singulares e perfeitos, tão bonitos como se
alguém os tivesse desenhado. – Vamos tomar alguma coisa, pode
ser? Vim ter consigo porque estou muito interessada numas
garrafas de sidra El Gaitero.
Era essa a senha por que esperava o camarada num
apartamento de Lavapiés, mas, desde o instante em que aquela
mulher se sentou à minha frente, os planos para tirar o meu
paciente dali deixaram de me interessar.
– Bom, agora que decidimos enviar as caixas para Paris, vamos
falar do que é verdadeiramente importante.
Seis meses depois, numa área reservada do Horcher, enquanto
redigia mentalmente o último relatório que enviaria para Burnham,
desta vez encoberto por um sortido de polvorones muito apropriado
ao mês de dezembro, aquele comentário assustou-me tanto que
fulminou a simpática camaradagem do Rolf Steinbauer, deixando-
me a sós com a verdadeira história do Otto Skorzeny.
– Importante? Não sei… – A mão direita escorregou sob o
casaco, como se procurasse alguma coisa lá dentro, e aquele
movimento cortou-me a respiração.
– Claro – Mas tirou de lá um corta-charutos com que refez a
boquilha do havano, e não uma pistola. – Estás apaixonado, Rafa,
não me enganas…
MADRID, 20 DE DEZEMBRO DE 1949

Quando transpôs aquela entrada, Adrián Gallardo Ortega não


estava muito seguro de ter acertado.
– Boa tarde, venho encontrar-me com don Antonio Ochoa.
– Sim… – O porteiro olhou para ele, avaliou a qualidade do
sobretudo alemão e moveu a mão para lhe indicar o caminho do
elevador principal. – Primeiro direito.
Tinha fugido de Berlim sem se despedir de ninguém. Nem
sequer de Agneta, que tinha a certeza de que esperava um filho seu
e que escolhera o momento mais doce para lho dizer, com palavras
emocionadas e alegres, uma esperança quase virginal que o
assustou mais do que a mensagem que transmitia. Estavam nus
sob os lençóis, e a luz de um sol tépido, morno de mais para os
aquecer, esmaltava o quarto dos Grunwald com um brilho indeciso,
amarelado e enganoso. A primeira coisa em que pensou, ao saber
que engravidara a mulher do seu melhor amigo, foi que já tinha
decorrido muito tempo desde que sentira pela última vez o desejo
de se abraçar às coxas dela e de nelas pousar a cabeça. Depois
perguntou-lhe o que iam fazer, e ela mirou-o como se não
compreendesse. Não vamos fazer nada, Adrián, estamos muito bem
assim. O nosso filho nascerá e tentaremos que seja feliz. Mas nunca
saberá quem é o pai, pensou ele em voz alta, Jan nunca saberá… E
Agneta desatou a rir. Como é que sabes disso? Ninguém pode
prever o futuro, mas, para já, o melhor é continuar tudo como está.
A vida na nova Alemanha é muito difícil, e nós tivemos muita sorte,
tanta sorte…
O amante conhecia aquele discurso de cor, um discurso que
chegara a subscrever energicamente enquanto removia como uma
escavadora os obstáculos que o separavam da cama daquela
mulher, a terra prometida que deixara de o comover ao convocar à
traição uma voz áspera e quente. Que fizeste, Adrián? Não sei, pai.
Mas, naquele momento, soube duas coisas com certeza. A primeira
era que amava aquela mulher. A segunda, que não a amava a ponto
de se submeter aos seus planos. Que fizeste, Adrián? Enquanto a
loura e subitamente pesada cabeça de Agneta repousava ainda no
seu ombro nu, acatou, por fim, o mandado implícito naquela
pergunta. Amas-me?, perguntou-lhe, cruzando uma perna sobre o
abdómen do amante. O aroma do sexo dela penetrou o fundo o
nariz de Adrián, quando lhe respondeu que sim, muito. Não te
preocupes, pai, disse depois para consigo, que eu tratarei de
consertar isto.
– Adrián! – A mulher de don Antonio abriu a porta com uma
menina pequena, de uns dois anos, ao colo. – Bons olhos te vejam.
Julgávamos que já te tinhas ido embora, que tinhas partido sem te
despedires de nós.
– Bom, pois… – Aquela receção deixou-o tão perplexo como a
figura maternal de dona Sara, cujo casamento julgava estéril há
muitos anos. – Nem pensar, aqui estou. – Porém, não desfez aquele
misterioso mal-entendido, porque no passaporte que trazia no bolso
interior do casaco constava o nome de Alfonso Navarro López. – E
esta riqueza?
– A minha menina, Sarita, que achas? Um presente de Deus. –
Beijou-a no pescoço e o riso da filha soou como um guizo. – Mas
vem comigo, o Antonio vai adorar ver-te. Vais dar-lhe uma alegria de
que ele bem precisa, já verás.
Se Agneta tivesse engravidado um ano depois, teria sido tudo
mais difícil, mas, no outono de 1949, a República Federal Alemã
tinha apenas seis meses de vida, a República Democrática Alemã
acabara de nascer, e Adrián ainda pôde viajar tranquilamente de
autocarro até Frankfurt am Main no início de novembro. A senhora
que atendeu quando telefonou para o consulado espanhol, a única
representação diplomática da Espanha franquista na Alemanha
ocupada, encorajou-o a sair da antiga capital do Reich o mais
depressa possível. Ele seguiu o conselho e tranquilizou-se
pensando que, se não conseguisse um passaporte, a
documentação que Jan lhe havia arranjado na esquadra lhe
permitiria ficar na Alemanha sem chamar a atenção. No entanto, até
ter espalhado meia dúzia de documentos – um passaporte emitido
em Madrid em 1941, um livrete de divisionário, outro de voluntário
das SS, o impresso que certificava a sua libertação da cadeia, uma
autorização de residente estrangeiro na Alemanha, um certificado
de alistamento em Berlim – sobre a secretária daquela funcionária,
ninguém ouvira falar de Alfonso Navarro López no consulado
espanhol de Frankfurt.
O único contratempo que teve de enfrentar foi a demora na
entrega de um passaporte novo, um mês em que teve de gastar
quase metade das poupanças que tinha trazido de Berlim. O bilhete
de comboio, pelo contrário, foi gratuito. Deram-lho no consulado,
juntamente com alguns marcos para a viagem e uma morada de
Madrid onde poderia pedir a cobrança dos soldos devidos pelos
anos de serviço na Divisão e acertar contas. Esse pormenor
confirmou-lhe que Alfonso Navarro López não tinha família ou não
queria saber dela para nada. Caso contrário, os familiares que
tivesse designado antes de partir teriam recebido por ele os seus
soldos. O dinheiro tentava-o, mas reclamá-lo parecia-lhe demasiado
arriscado. Sem descartar por completo a hipótese, ao chegar a
Madrid procurou uma pensão barata e dedicou alguns dias a pensar
no seu futuro. Como pensar nunca o levara muito longe, no dia 20, a
meio da tarde, comprou uma caixa de maçapães na Casa Mira e foi
a pé até à calle Velázquez.
– Rapaz! O filho pródigo a casa torna… – Encontrou don Antonio
numa cadeira de rodas, mas isso não o surpreendeu tanto como o
carinho com que o recebeu, depois de ter tentado livrar-se dele
tantas vezes antes de o mandar para a Rússia. – Dá-me um abraço,
Adrián. Não sabes como me alegra ver-te, embora, na verdade, já
tivesse perdido as esperanças.
– Eu é que me alegro, capitão. Passou tanto tempo, tantas
coisas…
– Não precisas de me contar nada, Tigre, sei de tudo. Que te
portaste como um herói, que defendeste Berlim até ao fim, que os
aliados emitiram um mandado de captura em teu nome… O José
Luis Barrios, o meu amigo de Portugalete, lembras-te? – Adrián
assentiu com veemência porque era a primeira coisa que percebia
desde que tinha chegado àquela casa. – Bom, foi designado como
ligação do Exército de Terra no Ministério da Marinha e trabalha com
Messerschmidt. Um dia vieste à baila e… Concluindo, acho muito
bem que vás para Buenos Aires. Mereces começar de novo, depois
de tanto sofrimento. Julgava que já te tinhas ido embora, como não
sabíamos nada de ti… Mas imagino que, num caso como o teu, não
deva ser muito fácil passar a fronteira. Enfim, ainda bem que não te
esqueceste de nós.
Ao ouvir o nome da cidade onde tinha nascido o melhor amigo,
esteve quase a levantar-se e a sair a correr, porém don Antonio
Ochoa, que continuou a falar-lhe de uma vida que parecia mas não
podia ser a sua, sem lhe dar oportunidade de intervir, acabou por lhe
fornecer um fio por onde puxar. Porque ele já tinha ouvido antes o
nome de Clarita Stauffer. Nos primeiros meses de 1948, tinha
acompanhado Jan algumas vezes às reuniões de uma organização
chamada Spanien oder Tod, uma casa de doidos onde se filiara
assim que tivera dinheiro para pagar uma quota mensal, por
gratidão para com o amigo que o resgatara da miséria. Pouco a
pouco, à medida que o estômago ia esquecendo a fome, e as suas
costelas o chão da catedral onde dormira tantas noites em jejum,
deixou de frequentar aquelas sessões, mas nunca de pagar a quota.
Depois de se tornar amante de Agneta, apareceu por lá uma vez por
outra, um pouco levado pelo peso da consciência e também pela
pequena astúcia de estreitar os laços de amizade com o marido
cornudo.
Quando decidiu regressar a Espanha, tinha muito presente a
proteção que o regime de Franco proporcionava aos criminosos de
guerra nazis, um proveito que merecia legitimamente, mas que não
poderia exigir antes de se livrar da identidade que lhe permitira
sobreviver até então. Na Alemanha, tinha ouvido maravilhas acerca
de Fräulein Stauffer, o anjo da guarda de todos os camaradas que
conseguiam atravessar os Pirenéus, a fada madrinha que resgatava
da morte aqueles que escolhiam Espanha como local de passagem
para algum país da América do Sul ou como residência definitiva.
Ele não tencionava emigrar, só queria voltar para casa, mas não
conseguiria fazê-lo até matar Alfonso Navarro López pela segunda
vez, nos seus documentos. Aquele objetivo guiara-lhe os passos até
ao número 16 da calle Velázquez, onde pensava falar do seu
problema a don Antonio sem lhe confessar toda a verdade, dizendo-
lhe apenas que tinha trocado a sua documentação com a de um
camarada caído numa trincheira da Wilhelmstrasse. A última coisa
que esperava era que o seu protetor lhe falasse de um campo de
concentração da Estónia, da retirada do Báltico, da defesa de
Berlim, como se alguém tivesse usado o seu nome para emigrar
para a Argentina, o país de Jan, enquanto ele ia para a cama com a
mulher dele em Schöneberg. Adrián Gallardo Ortega só percebeu
em parte o que tinha acontecido, mas, enquanto esbracejava quase
sem fôlego numa confusão oceânica, decidiu que o mais
conveniente era ficar calado e anuir a tudo enquanto conseguisse
usar duas identidades como se jogasse com um pau de dois bicos.
– Mas… estás aqui sem beber nada. Sara! – Don Antonio
chamou a mulher aos gritos. – Sara! Só vendo, esta mulher anda de
cabeça perdida desde que tem a menina. Sara! – A terceira tentativa
sobrepôs-se ao som dos saltos. – Não ofereces nada ao Adrián? E
o coitado, ainda por cima, trouxe-nos maçapães.
– É que ontem escrevi um bilhete para a Clarita, vê lá tu que
coincidência. – Dona Sara continuou a falar junto ao móvel do bar,
enquanto servia dois copos de conhaque. – Ela convidou-me para
levar a menina a uma daquelas festas de Natal que faz todos os
anos, mas ela ontem acordou um pouco constipada e não me atrevi
a levá-la à rua. Como a Clarita queria muito conhecê-la, lembrei-me
de lhe enviar uma fotografia. Ia pô-la no correio, mas pensei que,
como de certeza a verás antes de ires…
Minutos depois, Adrián Gallardo Ortega saiu daquela casa
levando um envelope com a morada de Clara Stauffer escrita à mão
e a decisão de adiar a visita ao número 14 da calle Galileo até
depois do Natal. Estava longe de casa há tantos anos que tinha a
certeza de conseguir suportar mais uma véspera de Natal em
solidão. Porém, no dia 24, a meio da tarde, a consciência de que lhe
bastaria uma moeda para telefonar para a estação de caminho de
ferro de La Puebla e pedir a quem atendesse que fosse a correr
chamar a mãe, levou-o a embebedar-se sem se dar conta. Esteve a
beber durante quase dois dias e na segunda-feira levantou-se com
uma ressaca horrível. Finalmente, na terça-feira 27, sóbrio, limpo e
bem vestido, bateu à porta de Clara Stauffer a meio da manhã.
Tinha adiado a visita para preparar bem o que iria dizer, mas não
chegou a nenhuma conclusão satisfatória. Apresentar-se como
Adrián Gallardo Ortega poderia ser perigoso. Ele encarregara-se de
lhe apagar conscienciosamente o rasto e não sabia se o usurpador
teria escolhido o seu nome numa lista de soldados desaparecidos
de acordo com a dona daquela casa, ou se a teria enganado
fazendo-se passar por ele. A única coisa que deduzira da atitude do
casal Ochoa era que Clara Stauffer estava envolvida na sua
hipotética viagem para a Argentina. Percebeu que, caso se
apresentasse diante dela com o seu nome verdadeiro, corria o risco
de o considerar um impostor, no entanto, depois de muitas voltas,
acabou por meter o envelope de dona Sara na caixa do correio e
recorreu uma vez mais ao seu inimigo íntimo para contar uma
versão não muito distante da verdade.
– Bom dia. – A criada que lhe abrira a porta tinha chamado uma
jovem com aspeto de secretária. – Em que posso ajudá-lo?
– Olhe, chamo-me Alfonso Navarro e acabei de voltar da
Alemanha. Na Divisão Azul e depois nas SS, estive com um
camarada espanhol que se chama Adrián Gallardo e gostaria de
saber…
Apercebeu-se de que a rapariga franzia os lábios numa
expressão de aborrecimento ao ouvir tal nome. No entanto, manteve
a compostura e disse-lhe que Adrián estava bem, que vivia em
Buenos Aires havia um ano e que não podia fornecer-lhe mais
informações. Quando o visitante respondeu que, de qualquer forma,
gostaria de falar com a senhora, a secretária ficou nervosa e
indicou-lhe, por sinais, que fosse para o patamar. A dona Clara está
muito ocupada, disse-lhe num sussurro, e não vai poder recebê-lo,
nem hoje, nem nunca, porque… Bom, porque não gosta nada de
falar do Adrián. Se quer reatar o contacto com ele, o melhor é
recorrer ao melhor amigo. Chama-se Rafael Cuesta e trabalha numa
transportadora, La Meridiana, na calle Alcalá. Recomendo-lhe que
lhe telefone e que não lhe passe pela cabeça voltar cá.
A atitude daquela mulher surpreendeu-o tanto que, se não lhe
tivesse fechado a porta no nariz, talvez se houvesse atrevido a
perguntar se Adrián e a senhora tinham sido namorados ou coisa do
género. Não encontrava outra explicação para aquela cena, mas a
frustração resultante da sua visita ao número 14 da calle Galileo foi
largamente compensada pelo resultado que obteve em La
Meridiana, onde, naquela mesma tarde, leu no olhar do homem que
o recebeu que podia saltar as apresentações.
– O senhor sabe quem sou, não é verdade? – Ele assentiu com
um movimento muito lento da cabeça. – Creio que tem um amigo
que se faz passar por mim.
– Bom, tenho um amigo com o mesmo nome que o senhor, sim,
mas… – Rafael Cuesta moveu a cabeça, varrendo com o olhar cada
um dos recantos do gabinete. – Preferia não falar disso aqui. Esta
altura é muito má, tenho muito trabalho, e… – Voltou a observar o
gabinete, como se não o conhecesse, antes de continuar. – Se me
der um número de telefone onde possa localizá-lo, telefono-lhe
amanhã a esta mesma hora para falarmos num sítio mais discreto.
Creio que é o que nos convém aos dois. – Adrián não percebeu por
que razão ele dizia aquilo, mas assentiu para estar à altura. – E,
para já, se precisar, posso adiantar-lhe algum dinheiro.
Adrián Gallardo Ortega nunca tinha sido muito inteligente. Até
aquele homem ter falado em combinar um preço, a possibilidade de
o chantagear nem sequer lhe havia ocorrido, mas renunciar à sua
verdadeira identidade a troco de dinheiro também não lhe pareceu
má ideia.
Rafael Cuesta foi muito pontual. Telefonou para a pensão de
Adrián à hora combinada, marcando encontro para o dia seguinte,
29 de dezembro, às sete e meia da tarde, num escritório da calle
Jacometrezo.
Se o convidado tivesse parado para ler a placa dourada
aparafusada acima da campainha, teria descoberto que se tratava
da sede da Sociedade Europeia de Comércio Externo, mas estava
tão concentrado a calcular o dinheiro que aquele negócio lhe
poderia render que nem sequer olhou para ela.
IV

Pontos de sutura
MADRID, CASA DE CAMPO, 1 DE JANEIRO DE 1950

Seria precisa uma guerra para afastar Zacarías González Peña


de um carreiro que conseguia percorrer de olhos fechados sem
perder uma única ovelha. Depois de expiar com dois anos de cadeia
o delito de ter combatido como soldado raso no exército
republicano, levou com outros três de serviço militar, porém, quando
finalmente o deixaram voltar para casa, retomou a vida habitual.
Mari, a sua mulher, que deixou sozinha quando se alistou, seis
escassos meses depois do casamento, só mantinha quatro animais
do rebanho que haviam juntado ao casar-se, mas Zacarías não
desanimou. Nunca teve outro ofício que não o de pastor, conduzia
as suas ovelhas como se falasse com elas e, como era um homem
sério, responsável, conseguiu que outros moradores de Aravaca lhe
fossem confiando, pouco a pouco, o seu gado. Naquela manhã de
festa, passou a cancela da Casa de Campo às seis em ponto, como
todos os dias, e sessenta e oito ovelhas seguiram-no até ao carreiro
onde descobriu mais um morto.
Este era diferente daqueles que havia descoberto no mesmo
sítio ao longo dos últimos cinco anos, porque não se tinham limitado
a atirá-lo para o campo como um fardo inútil. Haviam-no
amortalhado num tapete que dava várias voltas ao corpo. Ao
desenrolá-lo, Zacarías verificou que parecia novo e que estava
misteriosamente limpo, porque o sangue que forçosamente devia ter
saído do orifício aberto no pescoço daquele homem mal se via entre
os arabescos intrincados do tecido multicor. Sem tocar em nada, o
pastor levantou-se, olhou em volta e não viu ninguém. Nessa altura,
puxou pelo tapete e o cadáver rolou como um boneco de trapos até
ficar de boca para cima, numa posição semelhante à dos seus
pares, os mortos que aquele pedaço de terra costumava produzir. O
movimento deixou-lhe à vista o pulso esquerdo, e, em volta dele,
algo que lhe recordou as horas que o professor da aldeia lhe
ensinara quando era rapazinho. Ganhou alento pensando que
aquele homem, quem quer que tivesse sido, com certeza também
ouvira dizer um dia que a propriedade era um roubo.
– Peço desculpa, companheiro. – Agachou-se para lhe tirar o
relógio com muito cuidado. – Não digo que tenhas roubado nada,
mas… A ti, isto já não te faz falta e eu tenho cinco filhos…
Guardou o relógio no bolso, enrolou o tapete, pô-lo ao ombro e
apressou as ovelhas de volta a casa. A família ainda dormia quando
escondeu o relógio debaixo de um ladrilho solto e o tapete no
estábulo, atrás de uma pilha de lenha. Voltou a sair com os animais,
inquietos com a desordem súbita do seu horário quotidiano, e
deixou-os pastar um bom bocado antes de ir procurar os guardas
florestais, que já tinha avisado outras vezes de descobertas
semelhantes. Eles, como sempre, limitaram-se a chamar a Guarda
Civil.
Passou quase uma hora até aparecerem dois soldados, um
quarentão, barrigudo e de bigode, o outro acanhado e ainda muito
novo. Zacarías não os conhecia. No jantar de Fim de Ano, o cabo do
posto de Aravaca tinha sido o único que não quisera provar os
mexilhões que intoxicaram todos os seus colegas, e não podia
ausentar-se do posto. Avisou Pozuelo de Alarcón e de lá vieram os
homens que, depois de escreverem as declarações do pastor, lhe
pediram que os acompanhasse ao local do sucedido.
– Não, por favor, não me obriguem a ir de mota convosco –
rogou-lhes Zacarías. – Não posso deixar os animais sozinhos. Só
tenho treze ovelhas, o resto do rebanho não é meu e, se alguma se
perder, tenho um prejuízo muito grande… Eles conhecem-me. –
Apontou para os guardas-florestais. – Veem-me todos os dias e
sabem que sempre lhes disse a verdade. Se quiserem, volto para lá
agora mesmo com os animais e, quando chegar, explico-vos o que
quiserem, embora não haja nada que explicar, mas…
– Eu acompanho-vos – ofereceu-se um dos guardas-florestais. –
Conheço o sítio a que o Zacarías se refere.
Lá chegados, verificaram que o pastor não mentira. O cadáver
era de um homem entre os trinta e os trinta e cinco anos, com cerca
de um metro e setenta, cabelo castanho-escuro, peso médio e
constituição robusta. Tinha o septo nasal partido, e esse era o único
sinal que poderia servir para o identificar porque, apesar de estar
completamente vestido com um fato cinzento, uma camisa branca e
um sobretudo escuro, não trazia nada nos bolsos, nem uma carteira,
nem um documento, nem sequer uns cêntimos. Quando acabaram
de o revistar, os dois guardas civis entreolharam-se e não
precisaram de palavras para se pôr de acordo. Vou eu, disse o mais
velho, antes de subir para a mota e sair dali, deixando o colega com
o guarda-florestal. Pelo caminho cruzou-se com Zacarías, que,
como prometido, voltava com as ovelhas ao local onde tinha
encontrado o cadáver.
Roberto Conesa Escudero, inspetor da Brigada Político-Social de
Madrid, estava a fazer o nó da gravata quando ouviu o telefone.
Deixou-o tocar enquanto ruminava algumas pragas, porque naquele
dia, àquela hora, só poderia ser a chata da sogra e por aquele andar
iam chegar tarde à missa do meio-dia. No entanto, enquanto
ajustava um impecável nó Windsor ao colarinho da camisa, o
espelho devolveu-lhe a imagem da sua mulher, que entrava no
quarto mais aborrecida do que ele. Antes que ela conseguisse dizer-
lhe que o comissário estava ao telefone, adivinhou que não seria
nada de bom.
– Mas… – Quando o chefe terminou de descrever a cena do
crime, alvitrou uma pergunta com muita cautela. – O senhor acha
que será nosso?
– Não sei o que acho, Roberto. – Também não estava de bom
humor. – Oficialmente, não sei nada. Extraoficialmente, não me
chegou nenhum zunzum, apesar de ter perguntado a quem devia,
como podes imaginar. Mas, pelo que diz a Guarda Civil e pelo sítio
onde apareceu… Se calhar, ontem à noite, algum imbecil bebeu de
mais e enlouqueceu, não faço ideia. Por isso, quero que vás até lá.
Sei que é dia de Ano Novo, que estou a fazer-te uma sacanice e
tudo isso, bem sei, mas, antes de telefonar para o tribunal, prefiro
que tu o vejas, que decidas se podemos correr riscos ou… – Aquela
pausa foi mais eloquente do que todas as palavras que tinha
proferido até então. – Confio no teu discernimento, já sabes. Mais
tarde, se for caso disso, telefonas-me da morgue e contas-me. O
meu carro já está à tua espera à porta de casa.
Ao chegar à Casa de Campo, o inspetor Conesa receava o pior e
bastou-lhe dar uma vista de olhos ao cadáver para comprovar que
seus receios eram fundados. Aquela não tinha sido uma morte
acidental, nem o fruto de uma bebedeira de um agente que tivesse
ido para a farra na noite de Fim de Ano com a arma regulamentar. O
corpo não apresentava qualquer sinal de resistência, nem os
hematomas, arranhões e unhas partidas que identificavam as
vítimas que tinham lutado pela vida antes de morrer. O homem
diante de si havia sido executado, assassinado, com a precisão e a
limpeza próprias de um profissional, que nem sequer precisara de
apontar. Conesa conhecia muito bem o seu ofício e depois de
examinar o orifício de entrada concluiu que o culpado se limitara a
apoiar o cano da pistola no sítio exato, mesmo debaixo do maxilar,
para rebentar a carótida esquerda mal apertasse o gatilho. Como se
não bastasse, o aspeto da ferida convenceu-o de que o único tiro à
vista fora efetuado com silenciador. Agachou-se sobre o cadáver e
examinou-lhe a cabeça à procura de alguma ferida, mas não
encontrou indícios de que, antes de morrer, a vítima estivesse
inconsciente em consequência de uma pancada. Ora, isso
significava que ou estava desprevenida ou estava morta de medo, e
ambas as hipóteses apontavam na mesma direção, que era
precisamente a que não convinha ao comissário.
Afastou-se um pouco do corpo e acendeu um cigarro para fingir
que refletia. Na realidade, não o fazia, porque não havia nada em
que pensar. Não podia adivinhar quem tinha sido o assassino, mas,
se tivesse de arriscar numa aposta o bónus de Natal, teria apostado
que se tratava de um polícia, ou de um militar, que usara uma arma
não registada. Nunca o descobririam, e por isso não fazia sentido
enfrentar os riscos que implicava declarar o crime. Apagou o cigarro
e perguntou ao motorista se trazia no carro algum saco para
transportar cadáveres. Não teve sorte, mas o guarda mais velho,
que havia regressado antes de ele chegar, tinha trazido um e foi
buscá-lo. O inspetor Conesa não sujou as mãos. Permaneceu de pé
enquanto os outros metiam o cadáver no saco e, depois de fechado,
ordenou que o colocassem na bagageira do carro do comissário. Só
depois revelou as suas intenções aos guardas civis.
– Não é preciso nenhum relatório, eu trato de tudo. Vou levá-lo
para o Instituto Anatómico Forense para que o examinem e eu
mesmo redigirei o relatório necessário, não se preocupem. –
Caminhou na direção do carro e apercebeu-se de que se tinha
esquecido de alguma coisa. – Obrigado pela vossa ajuda.
– Mas… – O guarda mais novo levantou uma mão e ficou a olhar
com os olhos esbugalhados. – E o juiz? Não seria preciso
telefonar…? – Porém, calou-se quando o colega lhe deu uma
cotovelada nas costelas.
Às três da tarde, o comissário ainda estava a comemorar o início
da década com toda a família, a avaliar pelos gritos das crianças
que atravessavam o auricular do telefone enquanto falava com
Conesa. O inspetor contou-lhe que o médico-legista de serviço, um
jovem, como seria expectável por estar a trabalhar num dia como
aquele, examinou o cadáver, determinou a hora aproximada da
morte na tarde de 29 de dezembro e não opôs muita resistência
antes de concordar que passassem por cima das formalidades da
autópsia, um empecilho que adiaria muito o enterro de um cadáver
já com três dias. O corpo não apresentava mais lesões além da bala
no pescoço, necessariamente mortal, pelo que voltaram vesti-lo e o
deixaram na morgue, com o relatório policial agrafado à certidão de
óbito, num envelope preso ao saco com um alfinete de ama. Escrevi
o do costume, especificou Conesa, e o comissário felicitou-o pelo
seu trabalho. Trato do resto da papelada, garantiu-lhe antes de se
despedir, vai para casa e descansa, que bem mereceste. O inspetor
nunca chegou a saber se o chefe tinha falado com algum juiz amigo
ou diretamente com os superiores do ministério, contudo, no dia
seguinte, quando foi trabalhar, soube que o morto da Casa de
Campo havia sido enterrado pouco depois de ele ter saído do
Instituto Anatómico Forense. E pensou, mais uma vez, que nada
facilitava tanto o trabalho policial como uma boa ditadura.
O cadáver chegou ao antigo cemitério do Este, que já mudara o
nome para La Almudena, por volta das sete da tarde. O funcionário
que o recebeu atribuiu-o à equipa de coveiros da vala comum, onde
iam parar os inúmeros indocumentados que em Madrid, ao longo da
década que terminara, tinham desenvolvido o hábito curioso de
morrerem todos do mesmo problema: uma paragem
cardiorrespiratória acerca da qual nunca se davam mais
pormenores. O chefe dos coveiros avisou os seus homens de que
primeiro tinham de tirar o cadáver do saco porque era preciso
devolvê-lo. Estas coisas custam dinheiro, acrescentou, enquanto os
subordinados observavam o balázio que aquela nova vítima de uma
paragem cardiorrespiratória tinha no pescoço. Porém, os três
repararam ao mesmo tempo em algo mais.
– Tiramos-lhe o sobretudo, não acham? – propôs um deles, que
se chamava Jerónimo, na altura em que o chefe foi devolver o saco.
– Está novo e ele já não tem frio, portanto…
– Sim – aprovou outro, avaliando a qualidade do tecido –, tem
boa pinta. Vou escondê-lo no meu cacifo e depois jogamo-lo às
cartas.
Por volta da meia-noite, quando terminou o turno, Jerónimo saiu
do cemitério com o sobretudo vestido, porque antes de as cartas lhe
sorrirem não tinha nenhum. Vivia longe e chegou a casa muito
tarde, tão cansado que se deixou cair na cama, mas a primeira
coisa que fez no dia seguinte foi pedir à mulher a caixa da costura
para arrancar com o bico da tesoura a etiqueta do novo sobretudo.
Nunca ninguém se lembrava dos mortos da vala comum, nunca
tiveram de desenterrar nenhum, mas não queria problemas.
Celebraria até ao final dos seus dias o facto de ter sido tão
precavido, porque a etiqueta preta cosida no avesso do casaco, sob
o forro do bolso esquerdo, anunciava em letras douradas uma
inscrição ainda mais misteriosa do que a certidão de óbito do
proprietário. HOFFMANN, lia-se, SCHNEIDEREI IN BERLIN. Jerónimo não
falava línguas, mas também não era tonto. Mal reconheceu o nome
da antiga capital alemã, começou a desconfiar de que o cliente
daquela alfaiataria não seria o que parecia. Concluiu que seria muito
difícil um vermelho espanhol ter morrido em Madrid depois de
comprar um sobretudo em Berlim, mas não comentou com ninguém,
nem sequer com a mulher, porque não queria voltar a trabalhar a
tiritar de frio dentro de um simples casaco.
A 6 de janeiro de 1950, Zacarías González Peña saiu com o
rebanho à hora de sempre, mas trancou-o antes do que era
habitual. Às nove da manhã os filhos já estavam acordados, embora
Mari os tivesse proibido de sair da cama antes do regresso do pai,
que os encontrou tão desorientados como as suas ovelhas. Na noite
anterior, antes de se deitarem, Zacarías e a mulher tinham deixado
na mesa da cozinha os presentes que haviam comprado com a
venda do relógio, menos do que esperavam, e do tapete, muito mais
do que imaginaram, que o último morto da Casa de Campo lhes
havia deixado de herança. Não tinham perdido a cabeça, porém,
com uma parte relativamente pequena do saque, compraram dois
pacotes de caramelos, um gancho com flores para o cabelo da filha
mais velha, uma boneca de trapos para a mais pequena e dois
carrinhos de lata que pareciam quase novos, para os rapazes. O
mais pequeno, que ainda mamava, regalava-se sem presentes, feliz
sem estar ciente de nada.
– Então – perguntou ao entrar no quarto onde os filhos dormiam
todos juntos, sentindo-se por instantes tão feliz como o bebé –, que
fazem ainda deitados? Toca a levantar, que vieram os Reis.
– Claro. – Mari estava tão alvoroçada como ele. – Não querem
ver o que eles vos trouxeram?
Os filhos correram até à cozinha sem saber porque o faziam e
ficaram parados, a olhar para as coisas que estavam em cima da
mesa, sem se atreverem a tocá-las.
Nenhum deles sabia o que eram os Reis Magos. Até àquele dia
eles nunca tinham parado ali e passariam muitos anos até voltarem
a fazê-lo.
MADRID, 16 DE FEVEREIRO DE 1950

A Meg marcou encontro comigo na Cava de San Miguel, onde o


Manolo me tinha oferecido uma namorada inglesa pouco antes de ir
para a Argentina.
– Tenho uma notícia má para mim e outra boa para todos, Rafa,
e ambas são a mesma. – Embora a minha relação com a Miss
Murray tivesse feito de mim uma espécie de agente duplo, nunca
havia perdido o contacto com ela. – Na próxima semana, regresso a
Washington. Isso é mau, porque gosto mais de viver aqui. A parte
boa é que me vou embora porque o Burnstein já tem o relatório do
Manolo, que é muito melhor do que esperava. Querem tirar-me do
país antes de o publicarem para evitar problemas, porque esperam
que as consequências para Franco sejam gravíssimas. Oxalá
tenham razão.
– Oxalá. – Levantei o copo e a Meg tocou nele com o seu, com
tanta força que tive medo de que se partisse. – Quando saberemos?
– Bah! Isso não sei dizer-te. Agora, a única coisa a fazer agora é
esperar. Terão de arranjar apoios no Congresso, motivar a opinião
pública, conseguir que os jornais falem de Espanha… Podem
passar-se muitos meses, no entanto, se tudo correr bem, nem que
esteja colocada no próprio inferno, voltarei para festejarmos.
Prometo-te. – Desta vez foi ela quem ergueu o copo.
Quando chegámos à rua, chuviscava. Aquele dia agradável e
tépido, uma promessa sincera de primavera, havia terminado numa
noite tão desagradável como se o inverno se tivesse entrincheirado
na lógica do calendário. O vento da serra soprava, traiçoeiro, atrás
das esquinas, transformando cada gota de água numa flecha de aço
gelado, capaz de trespassar a roupa e de ferir a pele como uma
pedra. Estava uma noite perfeita para nos despedirmos de um ente
querido, para dizer adeus a uma gringa louca que abracei sem
palavras, desafiando a hostilidade de tudo o que nos rodeava, uma
rua deserta, um céu furioso, no coração cúmplice de uma cidade
sequestrada, o meu lar transformado em território inimigo. No
entanto, o arrepio que me percorreu ao separar-me da Meg não se
prendia com o clima, nem com a sua partida.
A má e boa notícia que nos tinha reunido nessa noite deixara-me
a sós com um destino muito maior do que o meu. A sorte estava
lançada e, naquele instante, o fim do caminho afetou-me mais do
que a proximidade da meta. Não conseguir compreender a tristeza
repentina que me perfurou a carne, levando a chuva para dentro do
meu corpo, não mitigou os seus efeitos. Tínhamos trabalhado muito,
tínhamos arriscado muito, tínhamos apostado tudo numa carta
incerta que já estava voltada no meio da mesa. Só restava esperar,
e essa tarefa, muito mais fácil e segura, mais indolor e adequada ao
meu temperamento do que outras que tivera de desempenhar até
então pareceu-me de repente um tormento indesejável. Recordei as
etapas do trajeto que conduziram àquela noite e senti uma saudade
enorme da esplanada do Lion, de uma portaria da Gran Vía, da
intimidade benéfica e silenciosa das longas partidas de xadrez que o
meu amigo me devolvera só para as arrebatar novamente, de
fragmentos de dias e noites que na altura não tinha vivido como
momentos felizes, mas cuja possibilidade de não se repetirem
obrigava a minha memória a envolvê-los no ténue brilho dourado
que identifica as marcas da felicidade recordada. Nunca, nem antes,
nem depois daquele instante, me atrevera a definir-me como um
homem de ação, contudo, enquanto o táxi que levava a Meg
Williams da minha vida se afastava, apercebi-me de que aquela
época, com os seus medos e os seus risos, com o seu perigo e as
suas calamidades, faria para sempre parte do que de melhor me
calhara viver e tive um mau pressentimento.
Desde que o doutor Quintanilla proibiu que me alistasse em
qualquer unidade que não o serviço de cirurgia do seu hospital,
nunca acreditei que um dia pudesse tornar-me um soldado.
Contudo, a 29 de dezembro de 1949, sem esquecer que a minha
verdadeira profissão era salvar vidas, tinha matado um homem a
sangue-frio, e a culpa não ultrapassava o nível com que era capaz
de conviver. Sabia que nenhum juiz admitiria que eu tivesse agido
em legítima defesa, mas estava convencido de que todos os juízes
se equivocariam ao negar-me semelhante direito. Eu tinha visto
fotografias de um bosque da Estónia, pilhas de cadáveres
preparados para arder, outros transformados numa amálgama de
troncos e corpos carbonizados. Sabia que estava a matar um
assassino, mas nem sequer precisei de o recordar porque não
pretendia representar o papel de um vingador, de um justiceiro. Agi
com a convicção de um homem vulgar, sem outro remédio senão
matar alguém para defender tudo o que amava. A existência do
verdadeiro Adrián Gallardo Ortega constituía uma ameaça letal para
o meu amigo Manolo, que não sobreviveria vinte e quatro horas se
em Buenos Aires descobrissem a sua impostura; para o comité
Burnstein; para quem quer que fosse a pessoa que respondia às
cartas de amor que eu escrevia à Miss Murray. Representava um
perigo gravíssimo para a minha causa, para a esperança de milhões
de pessoas que já haviam sofrido demasiado e não mereciam
continuar a sofrer e para o meu futuro de homem apaixonado. No
dia 27, quando o vi sair do meu gabinete, para mim, ele já tinha
deixado de ser uma pessoa. Era uma ratazana, uma fera, um ser
daninho que tinha de desaparecer, e só eu o podia matar.
Verificando que aquela conclusão não me alterava o pulso, calculei
que seria isso que pensavam e que sentiam os soldados, mesmo
aqueles cujo caráter desmentia o temperamento dos homens de
ação.
Naquela tarde, prolonguei o dia de trabalho para lá do habitual.
Eram quase oito da noite quando a rececionista me avisou de que
se ia embora e me pediu que apagasse as luzes e fechasse a porta
ao sair, pois já não estava mais ninguém no escritório. Disse-lhe que
não se preocupasse porque ficaria por mais algum tempo, uma vez
que tinha muito trabalho atrasado, e tirei da carteira o cartão de
visita que o Rolf Steinbauer me dera quase um ano antes, no bar
onde nos embebedámos juntos depois de sairmos da Clínica Ruber.
Não tinham passado sequer três horas desde que Gallardo
aparecera no meu gabinete sem avisar, mas tivera tempo de sobra
para rever as minhas opções, que eram muito poucas. Apesar de
nem eu próprio perceber muito bem porquê, matar aquele homem
não me preocupava. Ocorriam-me várias maneiras de o fazer, mas
não sabia para onde o levar antes, nem como me desfazer do
cadáver depois. Se tivesse um carro, tudo seria mais fácil, mas não
conseguia comprar um de um dia para o outro, nem alugá-lo,
arriscando-me a devolvê-lo com manchas de sangue nos bancos.
Precisava de apoio, de uma infraestrutura mínima para me desfazer
do cadáver do Gallardo depois e só tinha três possibilidades.
Podia pedir ajuda aos meus amigos comunistas. Conhecia
alguns que ma dariam de muito bom grado, sem se arriscarem a
que a direção do partido lhes recusasse a autorização, mas estavam
todos assinalados, a polícia seguia-lhes os passos e, implicando-os
nos meus assuntos, além de os colocar em perigo injustamente por
um motivo alheio aos seus interesses, se a Brigada Político-Social
desconfiasse de alguma coisa e os detivesse antes de se
desfazerem do cadáver, toda a operação se afundaria. Depois de os
descartar, avaliei a minha segunda opção: Meg Williams. Se
recorresse a ela, teria de lhe contar tudo o que o Manolo não lhe
quisera contar, a nossa relação com o Scarface, o negócio que
tínhamos com o Lazar. Mesmo que conseguisse enfeitar o relato,
calculava que isto não fosse do seu agrado, e mesmo que achasse
que a amizade a levaria a ajudar-me, também não podia descartar
completamente a sua recusa em colaborar com um objetivo tão
turvo que poderia desencadear um conflito diplomático e arruinar-lhe
a carreira. Só quando tive a certeza de ter analisado bem todos os
cenários, decidi acreditar que os nazis resolveriam o problema que
eles próprios haviam criado.
Graças ao volume de operações e aos contactos de don Gabino
com o governo, La Meridiana dispunha de uma pequena central
telefónica automática, que me permitia ligar para qualquer sítio sem
a intervenção de uma operadora. Eu mesmo marquei um número de
Munique com tanto cuidado como se estivesse a desativar uma
bomba. Os milhares de quilómetros que me separavam do homem
que atenderia no outro lado davam-me alguma segurança, não tanta
como o seu caráter, mas também não a suficiente para evitar que
um nó no estômago se fizesse sentir enquanto ouvia um sinal
intermitente.
– Allo? – Aquele nó era o que sentia em criança quando tinha
muito medo.
– Rolf? – Mas a minha voz não tremeu. – Rolf, é o Rafa, de
Madrid.
– Rafa? – Fez uma pausa suficientemente demorada para que a
sua voz se enchesse de inquietação. – Problema?
Até esse dia nunca lhe havia telefonado. Era sempre ele que o
fazia, porque, apesar da bênção do senhor De la Fuente, da
cumplicidade incondicional que declarava à mais pequena
oportunidade, achava mais seguro, mais limpo, não sobrecarregar
La Meridiana com o custo daquelas chamadas. Rolf concordara
comigo e por isso adivinhou imediatamente que havia um problema.
– Sim. Podes telefonar para o meu escritório. Ainda cá estou.
Não passou mais de um minuto até o telefone do meu gabinete
tocar, ainda assim, tive tempo de pousar no centro da mesa o papel
para onde passara a limpo, sem riscos nem correções, a última
versão do que tinha decidido dizer-lhe.
– Esta tarde tive uma visita muito estranha. – Li a primeira frase
de uma vez e não gostei de como soava, pelo que continuei a falar
sem papel, olhando só de quando em quando para a minha cábula.
– Veio ver-me um tipo espanhol, de uns trinta anos, que não quis
dizer o nome. Tratou-me por camarada, mas retificou
imediatamente, esclarecendo que tinha estado na Divisão Azul e
nas SS, e eu não. Depois… – Fiz uma pausa, certificando-me de
que o Steinbauer me ouvia com tanta atenção que nem respirava. –
Disse-me que a seguir à guerra passou por muitas dificuldades. Que
primeiro esteve num campo, depois na prisão, esquecido por todos,
sem que ninguém tivesse mexido um dedo por ele ou por qualquer
soldado raso. Estava bastante indignado ou, pelo menos, assim o
aparentava, porque soubera que os chefes tinham continuado a
viver como reis. Disse-me que eu o sabia muito bem e depois, e é aí
que a coisa se agrava, que tinha sido um amigo quem lhe contara,
um amigo que conhecia um antiquário de Zurique. Foi esse amigo,
que eu não acredito que exista, quem lhe deu o meu nome, o da
transportadora e a nossa morada em Madrid. Tentei que me
dissesse como se chamava o antiquário e ele não quis, mas
descreveu-me a loja em pormenor. Nunca lá estive, mas sei a
morada de cor, Bahnhofstrasse 29, perto de Paradeplatz.
– Que filho da puta! – Ao verificar que ele tinha mordido o anzol,
esqueci-me do discurso que tinha preparado e levantei-me, falando
enquanto percorria o gabinete até onde o fio me permitia. – Que
filho da puta… E que queria? Dinheiro, não?
– Bem, ele disse-o de outra maneira. Contou-me que tinha vindo
buscar a sua parte. E calculou que não víssemos inconveniente
nisso, porque sabe muitas coisas que nos poderiam afundar. Tive a
impressão de que dizia a verdade, mas o pior é que não me pareceu
um chantagista normal. Aquele homem está ferido e não é a cobiça
que o move, mas a indignação, o desejo de vingança. Sente-se
traído e é um fanático. Foi por isso que me assustou tanto. Pode ser
muito perigoso.
– Tu achas que sozinho nisto? – perguntou-me o Rolf depois de
soltar uma fiada do que calculei serem insultos em alemão. – Que
disseste tu?
– Não posso saber se trabalha com outros, mas diria que não.
Se fizesse parte de um bando, teriam mandado alguém mais vivo do
que ele. Não é fácil de explicar, mas, pela pinta… – Resgatei a
imagem do verdadeiro Adrián Gallardo, descrevendo-a em voz alta.
– Parece um saloio, percebes? Um rapaz do campo, filho de um
agricultor, desajeitado, ignorante, sem estudos, com a astúcia de
quem desconfia dos que têm mais do que ele, que começa a invejá-
los e acaba a odiá-los sem saber muito bem porquê. – Fiz uma
pausa para dar lugar a uma nova sucessão de insultos
incompreensíveis. – Tem as mãos calosas, de operário, e uma
expressão arrevesada, de quem procura brigas, mas, enquanto
falava comigo, não se sentia seguro. Deu-me a impressão de que
de início estava com mais medo do que eu, como se tivesse vindo
ter comigo em desespero, só para fazer alguma coisa, para usar a
informação que tinha. Não sei como me encontrou, mas apostaria
que trabalhou na loja de Bahnhofstrasse, ou noutra que tenha
recebido as nossas encomendas, com certeza a descarregar
pacotes porque não dá para mais. Talvez tenha ouvido alguma
coisa, ou algum empregado tenha soltado a língua com ele… Não
sei, só lhe disse que estava com muito trabalho, que não queria
continuar essa conversa no escritório, que me desse um número de
telefone para onde pudesse ligar amanhã e que, se precisasse de
algum dinheiro, poderia adiantá-lo. Ofereci-lhe duzentas pesetas,
ele meteu-as no bolso e foi-se embora.
Naquela altura, no relato que compus para o Steinbauer já havia
tantas verdades como mentiras, embora a principal falsidade
valesse por todas as verdades juntas. Era verdade que Gallardo me
parecera um saloio, era verdade que tinha as mãos calosas, era
verdade que, quando lhe ofereci duzentas pesetas, as tinha metido
no bolso e ido embora. Porém, na luz que lhe iluminou os olhos ao
tocar nas duas notas castanhas, no regozijo com que olhou para
elas enquanto os lábios desenhavam um sorriso guloso, descobri
que não tinha vindo pedir-me dinheiro. Dei a extorsão como assente
porque não me ocorreu outra hipótese verosímil que justificasse o
seu aparecimento, mas na expressão com que se despediu de mim,
depois de meter a carteira no bolso, havia mais surpresa do que
satisfação.
Falámos durante muito pouco tempo e, se eu não tivesse dado
aulas de conversação em espanhol, talvez não me houvesse
apercebido da ligeiríssima entoação estrangeira na sua voz.
Segundo os cálculos da Meg, Adrián Gallardo Ortega estava há oito
anos fora de Espanha e passara-os, com certeza, na Alemanha ou
na Áustria, porque, quando lhe perguntei quem lhe tinha dado a
minha morada, ele referiu o apelido Stauffer com um sotaque
semelhante ao que ouvira muitas vezes no número 14 da calle
Galileo. Esse som manteve-me inquieto até lhe perguntar se tinha
falado com a Clara. Não, respondeu-me com um risinho cujo motivo
não fui capaz de decifrar, preferi visitá-lo primeiro. Nesse instante,
dei-me conta de que ou estava perante um homem extremamente
inteligente ou muito estúpido, e comecei a falar de dinheiro.
Fez muito bem, aprovei, porque não tenho qualquer dúvida de
que acordaremos um valor conveniente para os dois… Já o tinha
condenado à morte, e a centelha de cobiça que lhe incendiou os
olhos levou-me a pensar que não seria esperto, embora também
não fosse ingénuo. Foi aquela combinação tão inflamável como um
cocktail molotov que transmiti ao Steinbauer, confiante de que o
alarmaria tanto quanto a mim, mas pus-me com rodeios para deixar
a decisão definitiva nas mãos dele.
– Não me agrada nada, Rolf, mas depois estive a pensar e, se
calhar, não é assim tão grave. Porque já terminámos as remessas,
correto? Teoricamente pusemos tudo a salvo, está tudo entregue,
imagino que, além disso, esteja tudo cobrado. Talvez este tipo já
não nos possa causar danos. Não se conformará com um único
pagamento, tentará arrancar-nos mais dinheiro, mas talvez o
possamos assustar…
– Não. – A voz dele foi cortante. – Melhor eliminá-lo. Demasiado
perigoso, não podemos viver tranquilos à espera que não fale.
– Bom… – No momento decisivo, fechei os olhos com força e
tive de me obrigar a respirar. – Podes falar com o Hans? Ou… Olha,
se isso não te agradar, estou disposto a fazê-lo.
A 29 de dezembro de 1949, cheguei à sede da Sociedade
Europeia de Comércio Externo às sete em ponto. No dia anterior,
ficara lá umas duas horas a reconhecer o terreno, a medir os passos
que separavam as paredes dos móveis e os móveis entre si, a
tentar antecipar os movimentos que dois homens poderiam fazer
naquele espaço. Na quarta prateleira da estante, encontrei sem
dificuldade as Obras Completas de Goethe traduzidas para
espanhol e, entre as guardas do quarto volume, uma chave
pequena, plana, com a qual pude abrir um cofre de madeira
embutida, pousado no parapeito da única janela do aposento. Lá
dentro encontrei, como o Rolf me tinha garantido, uma pistola Luger
de calibre 22, com munições de sobra e um silenciador.
Um dos motivos que me levaram a escolher aquele escritório foi
os móveis de madeira escura e de aspeto respeitável, quase novos.
Quando o mostrei à Ingrid, ela calculou que seria necessário
comprar material de escritório para pôr em cima da mesa e alguns
livros para encher as estantes. Da primeira vez que lá estive,
verifiquei que também haviam trazido arquivadores de cartão vazios
e duas jarras baratas com flores artificiais. Até o ter aberto, pensava
que aquele cofre fazia parte da decoração escolhida pela Frau
Weiss, mas afinal fora um contributo pessoal do Steinbauer, que
verificava se a pistola continuava carregada e no lugar sempre que
vinha a Madrid. Seguindo as instruções dele, encaixei o silenciador
na extremidade do cano e verifiquei que duplicava o comprimento
da arma. Sentei-me à secretária, olhei em volta à procura de um
lugar onde a esconder e descobri duas coisas ao mesmo tempo. A
primeira foi que o tampo do móvel que tinha à frente estava apoiado
em duas colunas de gavetas e que, sobre a primeira, de ambos os
lados, havia um espaço vazio, uma estante que não se via do outro
lado e que tinha tamanho suficiente para guardar a pistola com o
silenciador. Deixei-a ali e vi que podia tirá-la num instante, sem
ruído. Aquela descoberta inspirou-me o plano que poria em prática
dali a vinte e quatro horas, iluminando a minha segunda descoberta
dessa tarde: a certeza de que estava a agir como um assassino.
Pensei que, se conseguia fazê-lo, se tinha sido capaz de aceitar
a incumbência que eu próprio sugerira ao Rolf e ir até ali para
planificar uma ação que culminaria na morte de um ser humano, era
porque aquela possibilidade já estava dentro de mim, porque,
apesar de ter escolhido uma profissão destinada a salvar vidas, se
combinavam em mim, talvez desde sempre, os ingredientes
necessários para passar da potência ao ato e me transformar num
assassino quando necessário. Pensei em tudo aquilo com tempo,
sozinho entre a tempestade que invocava uma luz gelada que nunca
tinha visto, apesar de vir do interior do meu corpo. Podia ter repetido
para mim próprio tudo o que sabia, desfiar novamente os
argumentos em que apoiava o meu direito à defesa própria, mas
não o fiz porque não era importante. O essencial é que estava
disposto a matar um homem, que a minha mente tolerava a ideia,
que a minha mão estava disposta a executá-la e que a minha
consciência começou a dizer o contrário, a contar-me uma história
diferente daquela que eu vivera, daquela que tinha recriado para o
Rolf Steinbauer, a história de um desgraçado que fora para a Rússia
para morrer matando, depois de fracassar como pugilista, e que
tinha escolhido a pior altura para regressar a Espanha e um plano
péssimo para tirar proveito disso. No entanto, apesar da fragilidade
que consegui intuir nele, de uma fraqueza que não só não
contradizia como até justificava os massacres em que participara,
aquele homem tinha de morrer. E eu precisava de o matar e de
aprender a viver com as consequências.
Para começar, saído do escritório, depois de deixar tudo
preparado, não voltei para casa, como havia previsto. Tive
dificuldade em abrir caminho para parar um táxi por entre a multidão
que invadia os dois passeios da Gran Vía, mas ainda não eram
nove da noite quando toquei à campainha do primeiro direito B, no
número 21 da calle Gaztambide.
– Rafa! – A Caridad beijou-me no rosto, antes de abrir a porta de
par em par. – Entra, por favor, não te esperávamos.
– Eu sei, não pensava vir. Mas depois do trabalho fui fazer umas
compras, fartei-me de canções de Natal e lembrei-me…
– O que é isto, cavalheiro, uma piada? – A Rita ficou a olhar da
esquina do corredor, com as mãos nas ancas, a cabeça inclinada e
um sorriso trocista que me fez rir. – Acha bem aparecer sem mais
nem menos numa casa decente?
– Um lar respeitável, cristão e espanhol? – Sugeri da entrada,
enquanto a Caridad sorria e a filha aprovava as minhas palavras
com uma gargalhada. – Limitei-me a pensar que talvez te
apetecesse ir beber um copo.
– Isso apetece-me sempre, já sabes. Se a mamã não se importar
de que a deixemos sozinha…
Conhecera-a antes da guerra, ela era ainda uma criança. Eu
tinha acabado os anos teóricos do curso e fora ao hospital de San
Carlos pedir ao doutor Quintanilla que me deixasse fazer as aulas
práticas na equipa dele. Anuiu à primeira, e a resposta deixou-me
numa euforia tão pura que a memória gravou para sempre tudo o
que aconteceu nessa manhã. O meu futuro chefe estava a informar-
me da papelada que teria de preencher o mais depressa possível,
quando o doutor Velázquez entrou sem bater, com a filha pela mão.
Tinha um amigo internado no serviço de gastro e, além de querer
informar-se, queria mostrar o hospital à Rita, que, quando
crescesse, queria ser enfermeira.
– Enfermeira? – replicou ela quando lhe contei. – Que tontice! Eu
nunca quis ser enfermeira.
– No verão de 1935, querias.
– No verão de 1935 – replicou, arqueando as sobrancelhas,
retesou os ombros para trás e mostrando-me um olhar desafiador –,
eu tinha onze anos e queria ser pintora. Ou será que sabes melhor
do que eu? – Fez uma pausa para que me retratasse, porém, vendo
que isso não acontecia, saiu-se com um dos seus atrevimentos
habituais. – Olha que te estou a avisar…
Gostava de discutir com ela. Gostava de quando se aborrecia e
de quando ficava contente. Gostava daqueles saídas de rufia, de
zaragateira, e dos seus silêncios reflexivos de mulher madura,
inusuais nos seus vinte e cinco anos. Gostava de que ela gostasse
de falar como as vendedoras do mercado de Vallehermoso e de que
se recusasse a tocar piano em público. Gostava de como
interpretava Chopin quando só eu e a mãe a ouvíamos e da
delicadeza apurada com que conseguia expressar sentimentos.
Gostava da sua raiva e da sua ousadia, das suas opiniões e da
forma como se ria.
– A minha tia María Luisa diz que vou ficar solteira, que com este
feitio nunca encontrarei namorado.
– Eu gosto do teu feitio.
– A sério?
– Acho encantador – insisti, usando o adjetivo de menina de
boas famílias, que a sua predileção pelo vocabulário popular ainda
não tinha conseguido eliminar.
– Coitadinho! – Lançou-me um olhar compungido antes de
erguer o indicador e mudar de tom. – Eis o que diria a minha tia
María Luisa.
– A tua tia María Luisa que se lixe.
– Oh, que coincidência fabulosa! – Fez uma careta de palhaça e
desatou a rir. – Era nisso mesmo que estava a pensar.
Rita Velázquez não cumpria os requisitos que em 1949 teriam
permitido classificá-la como uma beldade, porque não havia na sua
cara rasto da mansidão arredondada, levemente bovina, que
uniformizava as modelos das capas de revista. Isso também me
agradava. O tamanho do narizinho suportava airosamente a sua
forma curva, o perfil aquilino prometido por aquele feitio que tanto
desgostava a tia María Luisa, um impacto suavizado por uns lábios
carnudos, bonitos, que não eram facilmente visíveis à primeira vista.
Para chegar a vê-los, para apreciar o oval suave do seu rosto, as
bochechas fofas que haviam sobrevivido ao fim da infância, era
imprescindível ultrapassar a tirania dos seus olhos, aquelas
enormes lanternas aquáticas que cativavam tanto os restantes
traços do seu rosto como a vontade de quem os via. Na tarde em
que me abordou à saída do trabalho para me perguntar por umas
garrafas de sidra El Gaitero, ao olhar para ela só vi olhos, e aqueles
olhos subjugaram-me de tal forma que nem sequer me apercebi de
que a dona deles não encaixava no modelo a que estava habituado,
aos jovens sérios e fervorosos, às raparigas zelosamente tristes que
o partido me tinha enviado até então. Mais tarde, teria de aceitar
que a Rita Velázquez não encaixava de todo em nenhum modelo
conhecido. Quando o descobri, já me apaixonara por ela.
Eu tinha mais dez anos do que ela, todavia, prestes a chegar aos
trinta e cinco, nunca havia tido uma namorada formal. As minhas
histórias amorosas haviam sido tão turvas, tão agitadas como os
tempos que lhes deram origem. Quando o perdi, senti muita falta do
sexo com a Amparo, mas essa nostalgia não era tão forte como a
convicção de que numa época de paz, tranquila e monótona, nunca
teríamos partilhado a mesma cama, porque nem ela o teria
permitido, nem eu me teria interessado. O medalhão de ouro que
marcava suavemente, sobre o decote, o ritmo que María Eugenia
León imprimia às ancas enquanto me cavalgava o corpo recordava-
me de que ali dentro se encontrava o amor da sua vida. A minha
relação com a Geni, uma lâmpada tépida que acendia e apagava
por períodos curtos, obedecendo à necessidade dela, ou à minha,
carecia da intensidade que parecia reservada ao número 45 da calle
Ayala, mas que era igualmente incompleta e talvez, à sua maneira,
mais triste, embora me magoasse menos. As restantes experiências
resumiam-se a uma série não muito extensa de episódios
esporádicos com mulheres quase sempre casadas, que conhecia
amiúde nas minhas visitas de médico clandestino e que não tornava
a ver depois de dar alta ao paciente. De tempos a tempos, os meus
colegas da transportadora insistiam em apresentar-me amigas
solteiras das mulheres, que costumavam fazer-me bocejar, mesmo
quando conseguiam dissimular a ansiedade em casar-se, e as que
conheci por iniciativa própria não me haviam interessado muito
mais. Na Espanha una, grande e livre de Franco, o amor era um
problema acrescido aos riscos da clandestinidade, um bem
inatingível para um inadaptado como eu, obrigado a escolher entre
dois modelos de mulher: as flores de estufa da Secção Feminina e
as sombras amargas das juventudes truncadas pela derrota, que
também me desencorajavam.
Já me havia resignado a viver sozinho quando o verão de 1949
compensou numa única dose, e com uma generosidade
esmagadora, todas as carências que eu fora acumulando desde a
adolescência. As pequenas emoções que balizaram os primeiros
encontros com a Rita Velázquez, a alegria pura que sentia ao vê-la
aparecer, o sabor dulcíssimo que o riso dela me deixava na boca, o
leve tremor que me agitava quando nos roçávamos
inadvertidamente, alteraram a minha experiência do amor e de mim
próprio e transformaram-me num homem melhor, talvez naquele que
teria sido se uma guerra não me houvesse roubado a oportunidade
de governar o meu destino. Quando a conheci, admiti assombrado
que nunca tinha estado apaixonado, e essa certeza mergulhou-me
numa vertigem imediata, porque poderia ter morrido sem
experimentar as pequenas sensações que cimentam uma realidade
tão grande. A gratidão, que se seguiu a um pânico que não soube
batizar, e a convicção de que não podia deixar fugir uma mulher que
não se parecia com nenhuma outra encorajaram-me a enfrentar um
longo namoro, aborrecido e casto, como todos na nova Espanha, e
só nisso me enganei.
– Mas, por quem me tomas? – Ela riu-se depois de me destruir
alegremente os cálculos. – Nem que fosse um soldado de Cristo,
porra…
Ainda estávamos no verão. Nessa tarde, havíamos
acompanhado o clandestino que nos pusera em contacto, já
completamente recuperado, de uma cave na calle Desengaño até
uma casa térrea, perto do Manzanares, onde uma viúva republicana
alugava quartos. Para darem por completa a missão de resgate, só
faltava fazerem-no sair de Espanha, e eu estava convencido de que
o melhor seria, uma vez mais, recorrer a La Meridiana, embora
passar uma pessoa pela fronteira não fosse tão fácil como
mercadoria ilegal.
Não seria difícil atribuir um itinerário francês, com uma paragem
em Toulouse, ao camião que tínhamos modificado criando um
esconderijo entre os eixos das rodas. As dimensões do vão que eu
próprio encomendara, seguindo as instruções do Steinbauer,
permitiam transportar um homem encolhido durante alguns
quilómetros. Nunca se sabe, tinha-me dito, e de facto ele nunca
saberia o favor que nos fez, mas o condutor continuava a ser um
problema. Era necessária a cumplicidade de um camionista que
ajudasse o clandestino a meter-se no esconderijo antes de chegar à
fronteira, que o fechasse e voltasse a abri-lo já no outro lado, e não
conhecia ninguém a quem confiar tarefa semelhante. Na maior parte
das operações que organizava para os nazis, os condutores
ignoravam os volumes escondidos na carga que transportavam.
Quem recolhia cada envio, em Paris ou em Zurique, figurava como
destinatário oficial das caixas onde tínhamos camuflado a
mercadoria. Quando era necessário recorrer ao esconderijo para
transportar objetos de grandes dimensões, o trajeto era atribuído a
um condutor recomendado pelo Lazar, que não pertencia aos
quadros da transportadora e que La Meridiana contratava como
reforço laboral para essa viagem em específico. Não podia,
evidentemente, contar com o Lazar, e o meu contacto com os
restantes camionistas não ia além do cumprimento convencional e
dos comentários sobre o tempo quando ia supervisionar alguma
descarga importante. Isso era tudo o que podia contar à Rita, mas
enquanto lho explicava tinha a sensação de estar a falar sozinho.
– De certeza que é mais fácil seres tu a arranjá-lo.
Tínhamos atravessado o rio e passeávamos devagar pelo Paseo
de la Florida, sem rumo nem destino. Estava uma noite agradável
de princípio de setembro e ela usava um vestido branco, de alças,
umas sandálias da mesma cor e o cabelo preso num rabo de cavalo
que lhe tornava os olhos ainda maiores. A ausência que a mantinha
distante de mim, absorta em pensamentos que não soube decifrar,
favorecia-a ainda mais, tanto que quase lamentei que regressasse
da região desconhecida para onde se desterrava com um pretexto
trivial.
– Tens trocos? – Assenti, ela sorriu. – Ofereces-me um gelado?
Depois, quando voltei à carga, explicando que era muito difícil
não haver em toda a cidade de Madrid um único camionista que
cumprisse a dupla condição de simpatizar com o PCE e de
conhecer algum condutor de La Meridiana que lhe pudesse fazer o
favor de o deixar substituí-lo numa viagem, ela voltou a fechar-se
sobre si, como se precisasse de todos os sentidos para apreciar o
gelado, que comeu segundo um sistema próprio e rigoroso, com
dentadinhas no rebordo do cone para que não excedesse o nível do
gelado, empurrando depois a bola para baixo com a língua e
recomeçando, até a última dentada pôr fim ao cone e ao conteúdo
em simultâneo.
– É assim tão importante? – Parou, contemplou-me, passou a
língua nos lábios como um gato satisfeito sem desviar os olhos dos
meus, e de repente assaltou-me a suspeita de que se estava a
exibir, seguindo as regras de um guião que não me atrevi a
interpretar. – Isso do condutor, quero dizer.
– Bom… – Desviei o olhar, procurando inspiração na copa das
árvores, e, quando me voltei para ela, descobri que a sua cabeça
estava muito perto da minha, demasiado, até para alguém que
nunca tivera uma namorada formal. – Para mim é muito importante
porque, se tratares de o procurar, teremos de continuar a ver-nos.
– Ah! – Voltou a sorrir. – Então é por isso…
Fechou os olhos, levantou o queixo e, se fosse um pouco mais
alta, ter-me-ia beijado. Como não chegava a mim, beijei-a eu, com
tanto cuidado como se ela se pudesse quebrar, evaporar-se numa
nuvem impregnada do aroma da baunilha. No entanto, para lá do
sabor infantil que o gelado lhe deixara na língua, a boca da Rita era
sólida, ambiciosa, uma variante poderosa de um terreno conhecido,
desprovida, no entanto, da violência, da angústia, que aflorava aos
lábios da Amparo, da Geni, aos de todas essas mulheres
defraudadas pela vida que eu costumava beijar e que procuravam
sempre outra coisa no meu beijo. No instante em que lhe provei a
boca, senti que me podia abandonar nela, que podia continuar a
beijá-la dias inteiros sem outra ambição, sem outro objetivo, senão o
de a habitar como se fosse autónoma, um ser completo, capaz de
resumir e conter a mulher de que fazia parte. Quando os gritos
estridentes de um polícia municipal me obrigaram a abandoná-la, o
ar entre o corpo dela e o meu doeu-me como uma chaga.
Não necessitei de olhar para o homem, não foi preciso ouvi-lo
para perceber o que estava a dizer. Aquilo que a sua irrupção não
conseguira arruinar era demasiado valioso para mim, e a única
coisa que me interessava era preservá-lo, fechá-lo numa cápsula
hermética que lhe mantivesse intacta a intensidade para ma
devolver o mais depressa possível. Por isso, agarrei na Rita pelo
braço e tentei levá-la dali a toda a pressa, mas ela tinha outros
planos.
– Que aconteceu? – Voltou-se para ele e zurziu-o, andando de
costas, ao ritmo que eu impunha. – Não matámos ninguém, que eu
saiba. Que coisa! Evidentemente, aqui não se pode viver…
Enquanto o homem lhe devolvia um olhar temível, a sorte guiou-
me até à luz verde de um táxi parado num semáforo amarelo. Abri a
porta, empurrei a Rita lá para dentro, e só depois de a pôr a salvo
me voltei e vi um polícia tão estupefacto que nem tirara o livrete das
multas. Mal fechei a porta do carro, ouvi ao longe a voz dele, meta-a
nos eixos se não quer ter um desgosto… A tua mãe que te meta nos
eixos a ti, murmurou a Rita, e o condutor sorriu fingindo não ter
ouvido. Depois perguntou-nos para onde íamos, eu fiquei a olhar
para ela e ela não me entendeu.
– Para onde vamos? – repeti.
– Para casa, não achas?
Moveu a cabeça na minha direção, indicando que essa era a
casa para onde queria ir e a mão procurou a minha, enquanto
olhava pela janela. Quando a encontrou, desatou a rir.
– Foi por pouco!
Renunciei à sua boca, porque não podíamos desafiar duas vezes
a tolerância do mesmo taxista, mas inclinei-me para ela e beijei-a
suavemente no ombro, no pescoço, no maxilar, e surpreendeu-me a
recompensa inesperada que obtive desses três beijos castos, secos,
que bastaram para a arrepiar, permitindo que os meus lábios o
apreciassem. Fizemos o restante trajeto muito juntos, sem falar, a
cabeça dela no meu ombro, a minha mão na dela, e sucumbi
novamente a uma dupla perplexidade porque nunca tinha sentido
nada semelhante e nem sequer me tinha dado conta de que me
faltava experimentar algo tão simples, tão inocente, como a
promessa sem palavras de dois corpos que se estreitam no banco
traseiro de um táxi.
O que aconteceu depois deveria ter-me mergulhado num
assombro ainda maior, porque não era possível descobrir algo que
conhecia há tantos anos, não era possível que os sinais de código
que executei sem vacilar inventassem um novo idioma, nem que o
corpo da Rita tivesse o poder de estrear o meu, de iluminar na
minha cama um continente recém-nascido, de me ensinar coisas
que eu sabia de cor, e no entanto foi isso que aconteceu e de que
nem me dei conta enquanto acontecia. A sensação de plenitude que
irradiava do meu sexo até à partícula mais pequena do ar que
respirava impedia-me de pensar, comparar, resistir à maré de
espuma rosada e doce, como um mar de baunilha, onde me movia
qual madeiro que flutua à deriva numa tempestade sobre a qual não
tem qualquer controlo, um náufrago que na sua súbita fragilidade se
sentisse mais poderoso, mais consciente e seguro, mais vivo, do
que quando olhava para o horizonte do convés sólido do seu barco.
Nessa noite, na minha cama, a Rita criou-me, fez-me de novo
depois de me desfazer, apagou-me a minha memória, instalando-se
nela como uma deusa omnipotente, que, do trono, divisa o universo
que lhe pertence. Conquistou tudo sem deixar de ser genuína, sem
deixar de ser jovem, graciosa, normal, imprevisível, sem deixar de
ser a exceção de todas as normas conhecidas.
– E tu… por que raio não és comunista, vamos lá ver?
Estava tão concentrado em beijá-la, em aprender a conhecer-lhe
o corpo com os lábios, que não os afastei da sua pele para me rir, e
ela deu-me um raspanete.
– Não te rias. – Embora a voz fosse risonha. – Volta aqui, isto é
mais importante do que parece.
Só quando a minha cabeça ficou à altura da dela continuou a
falar. Achava que já nada de relevante se passaria naquela noite,
que entre nós já não havia espaço para uma única palavra, para
mais uma ação memorável, mas a Rita saciou-me novamente,
assaltando-me de surpresa com um discurso de que nunca me
esqueceria.
– É como se estivéssemos condenados a ficar na casa onde
nascemos, como se nunca pudéssemos mudar-nos, mudar de pele.
– Havia feito um longo preâmbulo, pedindo-me que não a
interpretasse mal, e eu não a interrompi para lhe explicar que estava
a contar a minha vida. – Havias de ver como a minha mãe ficou
contente quando soube que eras médico, que tinhas conhecido o
papá, que tinhas sido discípulo do Fortu… Claro que, não lhe contei
tudo, ela não sabe que milito no Partido, pediu-me muitas vezes que
nem me passasse pela cabeça fazê-lo, tem medo por mim, e eu
percebo, porque depois da história do meu pai… A minha mãe
sofreu muito em Porlier, muito mais do que eu, porque nunca se
habituou. Para ela, a vida tinha sido sempre outra coisa, agradável,
tranquila, distante das humilhações dos funcionários, da miséria que
víamos todas as tardes na fila da prisão, do desespero das viúvas
dos fuzilados. Porém, além disso, e sobretudo, porque não odeia
como eu.
Tudo o que aconteceu nesse dia, e o que acabaria por acontecer
entre nós, havia começado dois meses antes na mesa de uma
esplanada de Las Vistillas. Saído do trabalho, eu passara pelo
número 16 da calle Buenavista para ver o meu paciente, que se
aborrecia de morte e agradecia mais as minhas visitas do que
qualquer tratamento. Galán, o nome pelo qual me pedira que o
tratasse, não gostava de xadrez, mas era muito bom conversador e
agradecia tanto os livros e revistas como uma boa conversa. Exilado
desde 1939, instalado em Toulouse desde a libertação de França,
estava sozinho em Madrid. Eu era o seu único contacto com o
exterior porque a Rita preferia não passar por aquele apartamento
de Lavapiés, cujos proprietários, e a hospitalidade incondicional que
ofereciam, eram um elemento precioso da sua organização. Se não
fosse tão precavida, talvez nunca nos tivéssemos conhecido bem,
mas combináramos encontrar-nos naquela tarde para que eu a
informasse da evolução do estado de doente e a conversa levou-
nos muito mais longe, até um lugar de onde nenhum dos dois queria
voltar.
Naquela tarde, fiquei a saber que a Rita era filha do doutor
Velázquez e também que ele tinha morrido, que se matara na prisão
de Porlier, antes que o cancro o fizesse. Contei-lhe como o havia
conhecido, falei-lhe do doutor Quintanilla e do doutor Bethune, do
Instituto Canadiano de Transfusões, das unidades móveis que criei
e do orgulho que haviam inspirado ao pai dela no dia em que foi
saber como funcionavam. Proferir aquela história em voz alta, ao
cabo de tantos anos, comoveu-me muito mais do que poderia
imaginar, como se a emoção daqueles tempos duríssimos, mas
cheios de esperança, abrisse um parêntesis de luz e de calor no
deserto gelado onde vivíamos, erguesse as paredes de uma casa
de ar, secreta e confortável, que pudéssemos habitar juntos por
algumas horas. Ouvindo-me, os olhos da Rita brilhavam como dois
lagos de água escura e nunca foram tão belos como no instante em
que se despenharam numa vertigem imprevista, ardendo num fogo
sem chamas, numa paixão capaz de iluminar as trevas que a
alimentavam.
Se soubessem como os odeio, teriam medo de mim. Se
soubessem, tentariam não se cruzar comigo, mudariam de passeio
mal me vissem na rua, porque não se pode odiar mais, é impossível
odiar alguém mais do que eu odeio aqueles filhos da puta. Disse-o
de uma só vez, como se proferisse uma oração capaz de a consolar,
uma jaculatória que lhe inaugurava os dias e embalava as noites, a
contrassenha de uma verdade íntegra e cristalina que a definia do
princípio ao fim. Ninguém odeia mais do que eu, insistiu. Acreditei, e
até àquele momento nunca me tinha parecido tão jovem, uma
menina perdida, desamparada, nem tão madura, uma mulher
segura de si, que carrega as suas armas sem prestar atenção à dor
das feridas. Naquela tarde, antes de nos separarmos, perguntou-me
como me chamava. Prometo-te que não faço asneira, mas preciso
de saber. Disse-o como se soubesse que na cama nunca seria Rafa
para ela.
– Já to tinha dito, Guillermo, lembras-te? – E emocionou-me
ouvir o meu verdadeiro nome naquele momento, naquela voz. –
Odeio-os, e esse ódio é tão importante para mim que cheguei a
amá-lo. Sei que é difícil de explicar, mas a verdade é que ele não
me amargura a vida, não me entristece, pelo contrário, dá-me
forças, ajuda-me a viver. Às vezes, pergunto-me o que faria se
tivesse uma pistola e me encontrasse frente a frente com o grande
filho da puta que não permitiu que trouxéssemos o meu pai para
casa, para que morresse na sua cama. Mas, vê lá tu, acho que não
o mataria. Não mataria ninguém a não ser para salvar a minha vida,
a de algum camarada, a de pessoas que amo. Não o mataria, mas
odeio-o e por isso sou comunista. A minha mãe não compreende,
mas eu preciso de agir para que o ódio não me paralise, para que
não me amargure e me transforme numa pessoa má. Tudo isto é tão
importante para mim que há uns anos decidi que só me casaria com
um comunista. Tentei apaixonar-me por alguns com todas as minhas
forças, juro-te. Quando conhecia um camarada com boa pinta, dizia
para comigo, há de ser este… Porque te ris?
– Não estou a rir-me – defendi-me, mentindo um pouco. – Limito-
me a sorrir, porque fico muito contente por não te teres casado com
um comunista.
– Que egoísmo! – Rimo-nos juntos e eu beijei-a, porém ela não
me deixou avançar. – Espera, deixa-me terminar. – Deu-me um beijo
suave, breve mas intenso como uma garantia, antes de prosseguir.
– Ou seja, nunca cheguei a vias de facto com nenhum, não só por
minha culpa, hã?, mas porque eles também não… Não sei porquê.
A minha amiga Manolita, que é como tu, não se filia porque não lhe
apetece, embora se tenha arriscado mais do que a maior parte dos
militantes que conheço, foi para Cuelgamuros para poder ver todos
os dias o namorado, um preso do Partido, daqueles anteriores à
guerra. Vive numa casa perdida na serra, sem água, sem luz, quase
sem móveis, mas feliz como um passarinho, isso sim, e eu… Não
percebo, mas, por mais que me esforçasse, os comunistas nunca
me caíram no goto. E agora apareces tu, que não só agradas à
minha mãe, como até agradarias à minha tia María Luisa, e de
repente… Bolas! Por isso te digo que é como se não
conseguíssemos fugir da casa onde nascemos, da… – fez uma
pausa, como se tivesse medo de proferir a palavra que tinha na
ponta da língua – …classe a que pertencemos, por mais inimiga que
seja daquilo que pensamos, daquilo que queremos. Às vezes, acho
que me agradas tanto porque te pareces com o meu pai, mas
depois… Não sei.
Desde que adivinhei que aquele ódio era só uma estação
preliminar, uma estratégia para falar de amor com a delicadeza nua
das palavras que se usam para contar a vida, tão longe do ridículo
como da solenidade, não deixei de lhe acariciar o corpo, de
percorrer com os dedos os recantos que o seu discurso arrebatara
aos meus lábios. No entanto, quando terminou, tirei ambas as mãos
de debaixo dos lençóis, pousei-lhas na cara e olhei para o fundo dos
seus olhos.
– Vou filiar-me no Partido amanhã mesmo, Rita.
– Por mim?
– Não, por mim. Porque estou disposto a qualquer coisa para
que te sintas contente comigo.
– Isso não vale. – E desatou a rir-se antes de me beijar. – Já me
sinto muito contente contigo, caso não te tenhas dado conta…
Demonstrou-mo uma vez mais antes de se lembrar de olhar para
o relógio, vestindo-se a toda a pressa. Já passava da meia-noite,
não tinha avisado a mãe de que iria chegar tarde e eu não tinha
telefone em casa. Enquanto me vestia para a acompanhar, dei-me
conta de que essa era outra coisa que nunca tivera de fazer antes.
À entrada da casa dela, dispensei o táxi e regressei a pé, pelo
mesmo caminho que percorrera muitas vezes ao regressar do
número 14 da calle Galileo. A Rita vivia no mesmo bairro que a
Clara, e a familiaridade daquele trajeto acentuou o que sentia com
tanta clareza como se os meus passos fossem traçando um risco
que dividisse a minha vida em dois. A sós comigo mesmo podia ser
ridículo, solene, reconhecer que nunca fora tão feliz como naquele
momento.
A Rita não me deixou filiar-me no PCE. Isto é sério de mais para
que o faças para me agradar, explicou-me. Além disso, és muito
importante para nós. Se te filias por mim e depois te cansas, me
deixas e te perdemos como médico, nunca me perdoaria, os meus
camaradas nunca mo perdoariam… Gostei tanto que não pusesse a
hipótese de ser ela a deixar-me que não quis insistir, mas procurei
outras maneiras de salientar o meu compromisso e, em dezembro
de 1949, ainda não conhecia a tia María Luisa só porque ela não ma
quis apresentar.
– O que tens? Estás muito distraído.
No dia 28, a Caridad encorajou-nos a sair e fomos a uma
tasquinha a dois passos da casa dela, onde serviam um polvo de
que ela gostava muito. Estava tão bom como de costume, mas mal
o provei e bebi dois copos de vinho como se bebesse dois copos de
água, até que ela se apercebeu de que alguma coisa não estava
bem.
– Estou cansado – respondi, porque não lhe podia dizer que ia
matar um homem no dia seguinte. – Mas precisava de te ver. – Isso,
sim, era verdade.
– Não será por causa da noite de Fim de Ano? Já sabes que não
precisas de vir, se não te apetecer. Ralhei com a minha mãe porque
não devia ter sido tão chata.
– Não, Rita, a sério. – Estendi uma mão sobre a mesa para
agarrar a dela e percebi de repente porque quisera vê-la. – Adoro
jantar em tua casa, contigo e com a tua mãe. Na véspera de Natal
estive sozinho e meti-me na cama às onze. Não tenho família, por
isso… Tens algum programa amanhã à noite? – Negou com a
cabeça, e eu sorri. – Convido-te para jantar. Despedimo-nos do ano
juntos, em privado, que achas?
– Acho bem, mas… Para isso não seria melhor combinar para
depois de amanhã?
– Não, a 30 não posso. – Nem sequer tive de mentir. – Às oito da
noite, a empresa organiza uma espécie de festa no escritório. Não
penses que é alguma coisa de especial, muito vinho ordinário e
pouca comida, mas não posso faltar.
No dia em que me estreei como assassino, sabia que ela
esperava por mim do outro lado, que, quando voltasse a vê-la, teria
salvado o meu amor, teria salvado o meu amigo, teria salvado a
minha causa, e, mesmo que nunca chegasse a saber, a Rita
Velázquez Martín não só teria compreendido, como se sentiria
orgulhosa de mim.
Eis o que me permiti pensar quando abri a porta da sede da
SECE às sete da tarde em ponto. Vinte e quatro horas antes,
desmontara a pistola e voltara a guardá-la no sítio, e a primeira
coisa que fiz foi reproduzir aquela sequência em sentido inverso até
o cofre estar fechado, a chave no quarto volume das Obras
Completas de Goethe, e a Luger com o silenciador, escondida no
espaço vazio sobre a primeira gaveta do lado direito da secretária.
De seguida, abri a mala de mão que tinha trazido. Lá dentro,
juntamente com uma pasta de cabedal com três envelopes brancos,
encontrava-se uma camisa limpa, que tirei e guardei numa gaveta, e
umas luvas de borracha, que se juntaram à pistola no espaço da
secretária.
Aquele escritório era uma divisão retangular com duas portas, a
de entrada e outra, mais pequena, que dava acesso a uma
minúscula casa de banho. A secretária repousava diante da parede
do fundo, sob a janela, cujos estores tinha descido na tarde anterior.
Na parede da esquerda, havia uma estante alinhada com a porta de
entrada e, no meio do escritório, um pouco deslocada para a direita
mas sem estorvar o acesso à casa de banho, uma mesa redonda
com quatro cadeiras. Esperando que o Adrián Gallardo
comparecesse ao encontro com as necessidades fisiológicas
satisfeitas, guardei duas cadeiras na casa de banho, coloquei a
terceira num canto e aproximei a mesa dela. Aquela manobra
permitiu-me colocar facilmente a única cadeira acessível de costas
para a secretária, diante da pasta que pousara na mesa.
No dia anterior, tinha telefonado para os gerentes de três
sucursais bancárias e, na manhã seguinte, levantara cinquenta mil
pesetas de cada uma das contas, para onde depressa voltariam se
tudo corresse bem. Deixei as notas nos envelopes que os
funcionários me tinham dado, com as tiras de papel e elásticos
habituais, dentro de uma pasta, na mala de mão com todos os
fechos cerrados. Quando terminei, revi o cenário, certifiquei-me de
que não me tinha esquecido de nada e sentei-me à secretária, à
espera.
A campainha tocou três minutos antes das sete e meia. Quando
abri a porta, o Adrián Gallardo, muito penteado e com o cabelo
encharcado em colónia barata, esboçou um sorriso arrevesado
antes de começar com o pé esquerdo.
– Então? – disse-me. – Estamos nervosos ou quê?
– O senhor, se calhar – respondi, e depois de fechar a porta
indiquei-lhe a cadeira de braços do outro lado da secretária. –
Sente-se, por favor.
Naquela manhã escrevera o que lhe iria dizer e ensaiara
sozinho, quase sem mexer os lábios, até conseguir memorizar.
Rasguei essa folha em pedacinhos minúsculos que enfiei dentro de
um envelope no fundo de um cesto de papéis, mas, ao sentar-me
diante dele, voltei a vê-la como se estivesse suspensa no ar.
– Vamos falar claramente, Adrián. Como foi visitar a senhora
Stauffer, suponho que esteja a par dos interesses da organização a
que pertenço. – Fiz uma pausa para que me respondesse, mas ele
limitou-se a assentir. – Muito bem. Nesse caso, poderá imaginar que
a sua identidade serviu para que um homem que nos é muito
valioso conseguisse sair do país. – Voltou a assentir. – Posso
compreender a sua perplexidade, no entanto não nos pode censurar
porque agimos de boa-fé. O senhor está desaparecido há mais de
quatro anos. Nós julgávamos que estava morto.
– Mas estou vivo. – Recorreu ao mesmo sorriso, uma expressão
de astúcia demasiado desajeitada para ser eficaz. – Esse é um
problema seu, não concorda?
– Evidentemente. Tanto assim é que estamos dispostos a ser
muito generosos para o resolver. Nessa mesa – apontei para o
móvel atrás dele, e ele virou-se nessa direção –, está uma pasta
que contém cento e cinquenta mil pesetas. – Ante o montante, ele
voltou-se e olhou para mim com os olhos arregalados. – Isso é só
metade da quantia que estamos dispostos a pagar pelo seu silêncio.
Quero que perceba bem o que lhe digo. Não lhe pagamos para que
se meta numa cave e não saia à rua, porém, se aceitar a nossa
oferta, não pode voltar à sua aldeia. Instale-se onde quiser, em
qualquer cidade onde não o conheçam. Disse-lhe desde logo que ia
falar claramente e vou ser muito sincero consigo. Creio que não lhe
dou nenhuma novidade se lhe disser que os meus amigos são muito
perigosos. Se não cumprir o acordo e der entrada a qualquer
processo legal para recuperar a sua identidade, é um homem morto.
– Sei disso.
– Certo. Nesse caso, o acordo é este. O senhor recebe agora
cento e cinquenta mil pesetas e, dentro de um ano, desde que não
nos tenha traído, a mesma quantidade. – Nesse momento, ocorreu-
me outra coisa, que introduzi de caminho, sem pensar nas
consequências, porque pagaria muito mais para fugir à obrigação de
matar aquele homem. – Se se comprometer a sair do país para
qualquer outro que não a Argentina, pagar-lhe-emos trezentas mil
pesetas de uma só vez.
Quando acabei, compreendi que havia cometido um erro
enorme, sem qualquer necessidade. Aquela ideia estúpida tinha
aberto uma porta pela qual a minha vítima poderia escapar com
vida, sem me dar nenhuma garantia de que cumpriria a sua parte do
acordo. Meter o Adrián Gallardo num barco, a caminho de qualquer
lugar do mundo, não o impediria de, mais cedo ou mais tarde, viajar
até Buenos Aires ou regressar a Espanha para renovar as ameaças
que encarnava nesse instante. Toda a conversa com ele, aquela
cena que o Steinbauer consideraria uma pantomima ridícula, era um
recurso para minimizar a violência da ação que estava prestes a
cometer, para conseguir matá-lo sem me sentir um assassino. O
Rolf, com certeza, tê-lo-ia liquidado pelas costas depois de fechar a
porta, mas eu não conseguia. Preferia anestesiá-lo, distraí-lo com
uma pasta cheia de dinheiro, eliminar qualquer possibilidade de um
antigo pugilista profissional opor resistência. Naquele momento, dei-
me conta de que me preparava para executar um crime cirúrgico,
tão planificado como uma operação, mas felizmente aquele paciente
era demasiado desconfiado para escolher uma via que me teria
obrigado a puxar da Luger e a limpar-lhe o sebo ali mesmo.
– Não. Não se ofenda, mas não me fio nisso. – Eis a sua
resposta. – Acabei de chegar a Espanha, à Alemanha não posso
voltar e… Não me apetece viajar. Muitas coisas podem acontecer
durante as viagens, uma pessoa nunca sabe com quem se pode
cruzar no convés de um navio ou numa cidade estrangeira, pelo
que… Prefiro ficar agora com o dinheiro e voltar dentro de um ano
para cobrar o restante.
– De acordo. Vou comunicar a sua resposta aos meus
camaradas, que, evidentemente, têm conhecimento desta reunião.
O dinheiro está nessa pasta. – E apontei para ela. – Se quiser, pode
contá-lo.
– Claro. – Voltou a sorrir. – Não julgava que me ia embora sem o
fazer, certo?
Enquanto se levantava, tirei o auscultador do descanso. Apesar
de aquele escritório ser uma mera fachada, o Steinbauer havia
teimado em contratar uma linha telefónica, argumentando que a
quantidade de dinheiro que manejávamos a partir dali justificava
todas as precauções. Graças à sua cautela, naquela tarde pude
usar o telefone duas vezes, embora, da primeira, me tenha limitado
a marcar um número inexistente, a falar com uma operadora
imaginária e a manter depois uma breve conversa de monossílabos
com uma série de apitos. Esperei que o Gallardo libertasse o
dinheiro de todas as suas prisões e, quando começou a contar as
notas, levantei-me. Sem afastar os olhos do pescoço dele, tirei o
casaco, pousei-o na cadeira, resgatei a pistola do esconderijo e
enfiei-a entre o cós das calças e os rins, presa pelo cinto. Depois
tirei as luvas e, antes de as meter no bolso, o contacto com elas
intensificou uma sensação tão semelhante à que me assaltaria à
porta de uma sala de operações que, se pudesse, teria lavado as
mãos. Avancei muito devagar na direção do Gallardo e ele nem
sequer levantou a cabeça quando cheguei ao seu lado.
– Como é que vai isso?
– Bem. – Olhou-me por um instante, não reparou que eu estava
em mangas de camisa e continuou a contar. – Mas podia ter pedido
notas maiores.
– Tem razão. – Enquanto concordava com ele, tirei a pistola,
encostei-lhe o cano ao pescoço, onde sabia que estava a artéria
carótida esquerda, e apertei o gatilho tão de repente que ele nem
sequer teve tempo de virar a cabeça.
O disparo foi mais sonoro do que esperava, mas tudo o resto se
ajustou exatamente aos meus cálculos. O jorro de sangue saído da
ferida já me tinha encharcado a camisa quando segurei com o corpo
o cadáver, que continuou sentado, com a cabeça apoiada ao meu
estômago. Era provável que a 29 de dezembro, às oito menos um
quarto da noite, já ninguém estivesse a trabalhar no edifício, mas, se
assim não fosse, esperava que o estrépito provavelmente ouvido
nos outros escritórios daquele piso conseguisse dissolver-se no
silêncio que se seguiu. Podia ter rebentado um radiador, ter caído
um quadro da parede ou um objeto na beira de um móvel, disse
para comigo sem me mexer um milímetro, enquanto esperava o
tempo necessário para ouvir passos no corredor. Contudo, se
alguém ouviu o tiro não se preocupou em averiguar o que
acontecera. Esperei mais um pouco e calcei as luvas que tinha no
bolso. Depois, com muito cuidado, afastei com a mão esquerda as
notas empilhadas na mesa e segurei-lhe na cabeça, com a direita,
apoiando-a no tampo de vidro. De seguida respirei fundo, fui à casa
de banho, tirei as cadeiras, descalcei as luvas e, despido da cintura
para cima, lavei o tronco, os braços e a cara com sabão e água fria.
Deixei a camisa de molho, calcei novamente as luvas e regressei ao
escritório, onde vesti a camisa limpa, me sentei na cadeira e tive
dificuldade em acender um cigarro. Julguei que tiritava de frio, mas
as mãos tremiam-me como as folhas de uma árvore num vendaval.
Demorei quase um quarto de hora a recuperá-las e trabalhei
depressa para sair dali quanto antes. Sem deixar impressões
digitais, desmontei a pistola, escondi-a no cofre, guardei o dinheiro,
devolvi-o à minha pasta, torci a camisa que tinha voltado a ser
branca, embora mantivesse um halo rosado na parte da frente,
estendi-a no rebordo da banheira para que deixasse de pingar e até
repus as cadeiras em redor da mesa, em ambos os lados daquela
que a minha vítima continuava a ocupar, um homem ensanguentado
que parecia adormecido. As mãos já me obedeciam sem reclamar
quando peguei no auscultador, marquei o número das chamadas
internacionais e pedi à operadora uma ligação para Munique.
– Allo? – Quando atendeu, o Rolf já sabia que não lhe estava a
telefonar da central automática de La Meridiana.
– Está feito – disse-lhe. – Acabou por correr tudo como querias.
– Wunderbar! Muito obrigado, Rafa. És melhor camarada. Nunca
esquecerei isto. Agora, podes descansar. Vai para a tua casa,
tranquilo. Uns amigos recolhem o pacote. São profissionais, muito
sérios, fazem-no bem. Sabes que libertamos o escritório?
– Não sabia – respondi –, mas parece-me o melhor.
– Claro, já não necessário. A Ingrid trata de tudo, fala com o
dono, leva as coisas… É importante que não deixes nada teu aí.
Nada, percebes?
– Sim, não te preocupes, não o farei. Feliz Ano Novo, Rolf.
– Feliz para ti, Rafa.
Às nove menos dez, dei uma última vista de olhos, peguei na
camisa que deixara na banheira a escorrer, fiz com ela um rolo que
guardei num dos bolsos do sobretudo, tirei as luvas, meti-as no
outro bolso, peguei na malinha, apaguei a luz e fechei a porta à
chave. Enquanto descia as escadas, senti uma opressão
semelhante à de uma refeição excessiva, como se o corpo estivesse
mais cheio do que de costume e as minhas vísceras estivessem
inflamadas, tensas. Os joelhos, esses, revelavam uma certa
dificuldade em dobrar-se a cada degrau. O frio do exterior mitigou
aquela reação física, que não desapareceu por completo até ter
conseguido livrar-me da camisa húmida, que deixei cair num caixote
do lixo da praça da Ópera. Quando voltei para trás, a calle Arenal
pareceu-me mais bonita, as pessoas, mais amáveis, as mulheres,
mais belas. Estava atordoado com o que tinha acabado de fazer,
assombrado por ter sido capaz, e disposto a arrancar do meu
espírito qualquer ideia angustiante relacionada com a culpa. Nunca
tinha matado ninguém, prometi a mim próprio que nunca mais o
faria e obriguei-me a pensar, como um soldado, só nas pessoas que
amava.
– Que pontualidade! – Às nove e um quarto, a Rita já estava à
minha espera ao balcão da marisqueira onde eu e o Rolf
costumávamos festejar o sucesso das nossas operações. – E como
estás bonita!
– A sério? – Trazia um vestido justo, saltos altos, e tinha pintado
os lábios de vermelho, mas sobretudo estava ali comigo, a sorrir, e,
quando me beijou nas faces, verifiquei que a sua mera presença
tinha a virtude de me devolver a paz de espírito. – De onde vens?
Estás gelado.
– Fui dar uma volta enquanto esperava por ti. – A luva esquerda
foi parar a um caixote de lixo de Cuatro Calles, a direita foi atirada
para o carro de um varredor que limpava a Puerta del Sol; o maître
disse-me que ficava feliz por voltar a ver-me. – Podemos sentar-nos
ao fundo?
Queria beijá-la e consegui fazê-lo várias vezes antes de a sala
encher. Pedi o costume e a Rita assustou-se ao ver as bandejas que
depressa cobriram a superfície da mesa, mas gostou ainda mais de
as esvaziar.
– Saiu-te a lotaria?
– Não, mas recebi o subsídio.
– Pois por este andar… – Soltou uma gargalhada sem que o riso
diminuísse a velocidade a que comia percebes. – Vai durar muito
pouco.
Um dia não são dias, respondi, e nunca fui tão sincero.
Enquanto estive com ela tudo foi fácil, contudo, mal fiquei a sós
com a noite, as imagens daquela tarde provocaram-me mais do que
uma simples insónia. Depois de vomitar, voltei a sentir aquele
inchaço estranho, um sintoma impossível de que o meu corpo
estava prestes a explodir, e passei horas a tentar apaziguá-lo. Era
quase dia quando recuperei a serenidade suficiente para examinar a
trajetória do último ano, a minha cumplicidade no comércio
criminoso que enriquecera alguns assassinos impunes com o
património das suas vítimas. Jamais teria participado naquele
negócio por vontade própria, mas, se tinha aceitado a proposta do
Manolo e os envelopes que me tinham enriquecido com as migalhas
da fortuna que ajudara a criar, fora porque a vida me havia posto à
frente uma oportunidade de trabalhar pelas minhas ideias, como
dizia o Steinbauer. O papel que tivera de interpretar naquela
operação era tão complexo, tão equívoco, que às vezes chegava a
esquecê-lo, a agir como se não estivesse a representar. Sabia quem
era o Skorzeny, mas só conseguia pensar no Rolf como num amigo,
porque ele não tinha sido outra coisa para mim. Se não tivesse
confiado em mim, se não me tivesse inspirado a carinhosa
camaradagem que nos uniu desde o princípio, o meu trabalho nunca
teria inspirado a gratidão apaixonada da Miss Murray. Não tinha
pensado em tudo isso até àquela noite, mas, quando fui trabalhar
sem ter dormido duas horas seguidas, já conseguira convencer-me
de que o assassinato do Adrián Gallardo Ortega fora, mais do que o
fruto de um acaso, um ato de serviço.
Apesar de tudo, continuou a ser difícil. O medo cedeu lugar à
culpa, cobrindo todas as luzes com uma gaze escura, sinistra e suja,
que me acompanhou na despedida de um ano e na estreia de outro.
Aquela espessura, uma gravidade que transformou os minutos em
horas, as horas numa tortura interminável, e o meu primeiro jantar
no número 21 da calle Gaztambide numa representação esgotante
de felicidade, que, não sendo falsa, não conseguia ser autêntica,
dissolveu-se no terceiro dia de 1950 com a mesma mansidão do
torrão de açúcar que deitara numa chávena de café com leite,
segundos antes de a rececionista da transportadora entrar no meu
gabinete.
– O porteiro acaba de trazer isto para si. – Estendeu-me um
envelope fechado com o meu nome e sem morada. – Deu-lho um
polícia armado, desses que andam vestidos de cinzento. – Não
pude evitar que a minha mão tremesse ao pegar nele e ela
apercebeu-se. – Espero que não sejam más notícias.
Descolei a aba do envelope, li um recorte de jornal e senti que
esvaziava de súbito, voltando a encher num instante, finalmente na
proporção adequada.
– Não, não são más. – E não teve outro remédio senão acreditar
nisso porque sorri para ela como se fosse a primeira vez. – Muito
obrigado.
O cadáver de um homem sem documentos aparecera na Casa
de Campo, em Madrid, na manhã do dia 1 de janeiro. O redator do
ABC, que no dia seguinte redigiu uma notícia tão sucinta que nem
ocupava um sexto de coluna, fazia finca-pé na data, dizendo que a
década começara com um grande susto para Z.G.P., o laborioso e
madrugador pastor de Aravaca que tinha descoberto o corpo ao sair
com as ovelhas, como fazia todos os dias. Além disso, só referia
que a polícia não encontrara qualquer pista da identidade do morto,
nem das circunstâncias do seu falecimento.
Antes que o dia de trabalho terminasse, fiquei com dois
exemplares do mesmo recorte, porque a Ingrid veio visitar-me
trazendo o outro.
– O Rolf está muito feliz – disse-me com um grande sorriso. –
Agradece-te muito, muito, mas agora é melhor não te ver… –
Franziu o sobrolho por instantes. – Não nos vermos todos,
percebes?
Depois contou-me que já tinha esvaziado o escritório, e eu
perguntei-lhe como estava porque não a via há muito tempo. Como
nesse Natal não tinha recebido convite do número 14 da calle
Galileo, supus, em voz alta, que a Clara tinha regressado da viagem
tarde de mais, ou tão cansada que decidira não fazer festa. Porém,
vendo a expressão de sofrimento que o rosto dela me devolveu,
arrependi-me imediatamente de lhe ter referido as minhas
suposições.
– Não… Sim… – Depois de se contradizer, suspirou, abanou a
cabeça e ficou tão nervosa que continuou no pior espanhol que lhe
ouvira desde que a conhecia. – Que, bem… As mulheres somos
loucas, sabes? E ela… Tem esperanças com o Adrián e depois não
sabe nada com ele, para sempre nada, e tu amigo dele…
– Está bem, está bem, eu compreendo, não te preocupes. –
Aquela complicação, que compreendia mas na qual ainda não
conseguia acreditar, acelerou o fim da visita e o da minha relação
com a rede Stauffer. – São coisas que acontecem, Ingrid.
Um mês e meio depois, a despedida da Meg fechou
definitivamente o círculo, pondo fim à minha vida de agente secreto.
Tudo o que tinha de fazer depois disso era esperar, e eu esperei.
ROCKPORT, MASSACHUSETTS, ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA,
1 DE SETEMBRO DE 1950

O ex-congressista Burnstein não passou do preâmbulo.


– Peço desculpa, mas há aqui um erro – exclamou, devolvendo a
escritura ao advogado dos vendedores. – O meu nome é Saul, com
«u» – e acrescentou uma frase que nunca tinha proferido na
presença de estranhos: – Sou judeu.
Antes de se despedir, havia pedido a Abby um derradeiro favor.
Fora ela quem se encarregara da compra daquela casa, um
pequeno edifício de dois pisos que dava para a rua comercial mais
movimentada da povoação. As janelas do primeiro andar tinham
vistas tão majestosas que Saul julgou ouvir a voz do oceano quando
as viu pela primeira vez. O Atlântico sussurrou-lhe que não
encontraria lugar melhor para passar o resto da vida.
Saul Burnstein tinha chegado a Rockport por acaso, pouco
depois de recuperar o «u» do nome. No fim de julho ficou sozinho
em Washington. O sogro, o senador William Mattioli, levara Gloria e
as crianças à Europa, para lhes mostrar a Toscana dos seus
antepassados. Saul, que já não tinha nada que fazer, em agosto
aceitou o convite de Michael Morrison, um congressista de Rhode
Island que nem sequer fazia parte da lista dos seus melhores
amigos, quando começou a lutar com a direção do Partido
Democrata. Michael era mais novo do que ele, provinha de uma das
famílias mais antigas de Nova Inglaterra, não tinha uma gota de
sangue que não fosse anglo-saxónica, mas, apesar disso,
mantivera-se a seu lado, firme e leal até ao último momento, muito
depois de Sammy Cohen deixar de lhe devolver as chamadas. Saul
achou que poderia descansar em Martha’s Vineyard, na villa onde
os Morrison veraneavam havia gerações, mas não conseguiu.
– Desculpe. – O advogado voltou com uma nova cópia da
escritura, com todos os «us» no sítio. – Na informação que a sua
secretária nos enviou, o senhor constava como Sal.
– Não se preocupe, não tem importância. – Burnstein leu a
escritura devagar e sentiu uma profunda paz ao assiná-la. – Já está,
aqui a tem.
Michael sabia que Sal se separara da mulher alguns dias depois
de abandonar a política. A notícia tinha corrido como pólvora pelos
gabinetes do Capitólio, provocando a mesma incredulidade
incomodativa que a campanha de Burnstein contra Franco. A
obstinação do congressista de Nova Iorque, que até 1945 nunca
havia feito da sua origem uma bandeira, acabara por provocar
situações muito desagradáveis entre os colegas de partido.
Ninguém negava que, em princípio, a sua reivindicação era justa,
mas a insistência, a inflexibilidade, a determinação inamovível com
que atirava para as mesas dos gabinetes milhões de cadáveres em
decomposição, com que acusava com um dedo ensanguentado
aqueles que não estavam dispostos a apoiá-lo, levava-os a concluir,
embora ele nunca o tivesse proferido, que os queria transformar em
cúmplices dos assassinos, e nesse ponto a sua posição tornava-se
uma chantagem moral intolerável.
Bill Mattioli fora o veterano do Partido Democrata que mais se
tinha empenhado em fazê-lo desistir, aquele que mais vezes usara
termos como realismo, pragmatismo, sensatez, ameaça,
comunismo, paz e segurança, para o convencer de que as suas
boas intenções podiam desencadear efeitos perversos,
extremamente injustos, se aplicadas num contexto internacional tão
instável como o gerado pelo poder militar da União Soviética. O
genro nunca precisou de se elevar ao céu da diplomacia multilateral
para manter a sua posição. Insistiu com termos comuns e correntes
como crime, ditador, vítima e assassino, até que o sogro insinuou
que talvez as suas intenções não fossem tão inocentes como a
fotografia da família que trazia sempre consigo. Tu não és estúpido,
Sal, chegou a dizer-lhe. E só um estúpido recusaria perceber que
derrotar Franco é favorecer os interesses dos russos na Europa. Eis
as últimas palavras que Mattioli dirigiu ao genro. Depois de as ouvir,
Burnstein levantou-se e saiu do gabinete do senador sem se
despedir.
– Percebo que estejas indignado, Sal. – Michael Morrison
pareceu estar do seu lado na longa conversa que mantiveram no
alpendre da casa de verão. – O Bill nunca deveria ter dito isso. É
indiscutível que o Franco é um tirano, que está a ajudar muitos
criminosos de guerra nazis a fugir, que os democratas espanhóis
merecem o nosso apoio, mas…
– Mas o quê? Não há nenhum mas possível, Michael. Estamos a
falar de assassinos de milhões de pessoas e de um regime que os
acolhe e garante impunidade. É uma questão que não admite
qualquer mas. Isto não tem que ver com os russos, nem sequer com
os espanhóis, mas com a nossa própria consciência. Com a minha,
pelo menos.
Quando Morrison insinuou que o problema talvez estivesse na
dificuldade de Burnstein em negociar com a sua consciência, em
compreender que podia fixar-lhe limites sem a macular, desde que
isso levasse à conquista de um bem maior, Saul decidiu partir de
Martha’s Vineyard no dia seguinte. Nessa noite, não conseguiu
dormir. Levantou-se de madrugada, escreveu algumas linhas a
agradecer a hospitalidade do anfitrião, deixou o bilhete em cima da
mesa com o pequeno-almoço e saiu daquela casa, silencioso como
um ladrão. Escolheu ao acaso uma loja de aluguer de automóveis,
esperou duas horas até que abrisse as portas e alugou o carro que
lhe recomendaram sem perguntas e sem discutir o preço. Quando
arrancou, não sabia para onde ia. Pensou em regressar a Nova
Iorque, mas compreendeu a tempo que a companhia dos irmãos só
serviria para aprofundar a sua tristeza, pelo que começou a seguir a
costa rumo a norte, sem nenhum destino concreto.
Naquela longa viagem solitária, refletiu sobre a sua situação e
descobriu que não sentia medo. Nos últimos seis meses, todo o seu
mundo se desmoronara. O partido a que tinha dedicado mais de
vinte anos da sua vida voltara-lhe costas, contudo esse abandono
não o magoava tanto como a certeza de saber que a culpa era sua,
por ter albergado uma esperança que acabou por se revelar um
engano gigantesco. Estavas à espera de quê, Sal?, perguntara-lhe
Andrew Sanders, adjunto do porta-voz dos democratas no
Congresso, o Truman não é o Roosevelt, as coisas mudaram muito,
não me digas que não te deste conta disso… A mulher fora menos
compreensiva e, ante o seu ultimato, percebeu que ela não
desejava que ele o aceitasse, porque precisava daquela rutura. Mais
uma vez, o divórcio magoou-o muito menos do que aquilo que o
causara, do que a aspereza que nunca se tinha atrevido a ver no
coração de Gloria e do que a trivialidade dos seus argumentos. Sara
Burnstein, nascida Berkowitz, havia assistido ao enforcamento do
marido e continuara a viver em Korzcyna, a abrir a loja todas as
manhãs, a trabalhar de sol a sol para manter os filhos, a desafiar a
hostilidade dos inimigos até que um ódio novo, maior e mais puro, a
matou. No outro canto do mundo, uma nora que nunca chegou a
conhecer lamuriava-se porque já não a convidavam para nenhuma
festa, porque na escola diziam aos filhos que o pai era comunista,
porque Sal ia perder as eleições. Na última discussão, Gloria atirou
ao chão a fotografia do Bar Mitzvá do marido, e o vidro partiu-se
sobre os rostos amados dos seus mortos. Depois disso não
voltaram a falar, comunicando através dos respetivos advogados.
– A loja também está à venda? – Depois de ver o primeiro andar,
um apartamento com dois quartos e espaço suficiente para garantir
a comodidade de um homem sozinho, lembrou-se da área ocupada
pelo rés-do-chão.
– À venda? – O agente imobiliário olhou-o especado como se
não compreendesse. – Claro, a casa é vendida por inteiro.
A beleza de Rockport, uma localidade marítima, plácida e
pitoresca nas fotografias dos postais, marcada ao mesmo tempo
pela forte pujança do mar que a rodeava, seduziu-o a ponto de o
convencer a visitar aquele edifício, que reproduzia em pequena
escala as virtudes da paisagem que o continha. Habituado aos
preços de Washington, o valor pedido pelos proprietários pareceu-
lhe quase ridículo. Em vez de tecer algum comentário, perguntou ao
vendedor onde se poderia hospedar por uma noite. Ficou três e no
quarto dia deu um sinal antes de se ir embora. Dali foi diretamente
para o aeroporto de Boston, devolveu o carro e comprou um bilhete
de avião para a capital federal.
A família continuava em Itália, pelo que pôde entrar em casa com
a chave, mas não ficou para dormir. Teve tempo para selecionar o
que queria levar consigo e escrever uma longa carta aos filhos,
dizendo-lhes que os amava muito, explicando-lhes onde passaria a
viver e que os receberia de braços abertos sempre que quisessem
visitá-lo. Sabia que só voltariam da Europa em setembro e que ele
já ali não estaria na cidade para os acolher. Durante duas semanas,
instalado no apartamento que tinha arrendado para os encontros
com a secretária, foi fechando todas as portas que o ligavam à vida
anterior. Abby recebeu a notícia da sua partida com uma elegância
neutral. Depois de afirmar simplesmente que sentiria a falta dele,
aceitou bem-humorada a última incumbência daquele que só seria
seu chefe até ao dia seguinte e ainda lhe perguntou se poderia
visitá-lo na nova casa, embora ambos soubessem que nunca o faria.
Sanders aceitou a sua demissão com a mesma simpatia
benevolente.
– Só te peço mais uma coisa, Andy – acrescentou Burnstein,
dando-se conta de que era a primeira vez em muitos meses que o
via sorrir. – O autor do relatório que leram ainda vive em Buenos
Aires, rodeado de nazis, fingindo ser um criminoso de guerra. Fez
um trabalho magnífico e arriscou-se muito. Já não poderei tratar
dele, mas peço-vos, por favor, que não o abandonem.
– Sal! – Sanders reagiu como se aquelas palavras o tivessem
ofendido profundamente. – Mas como é possível que me digas isso?
Faremos por ele tudo o que estiver ao nosso alcance, tiramo-lo da
Argentina, oferecemos-lhe residência norte-americana… É, na
verdade, um agente excecional. Talvez até lhe interesse trabalhar
para nós. – Fez uma pausa e levantou-se para pôr fim à conversa. –
Expliquei-te muitas vezes. O meu coração, o coração de todos, está
do teu lado, não duvides.
Quando rescindiu o contrato de arrendamento da casa onde
dormira nos últimos dias, Burnstein assinou como Sal pela última
vez. Devolvendo ao nome a vogal que ele próprio tinha tirado,
sentiu-se reconfortado, porque não podia fazer muito mais. Ele
nunca mudaria tanto como a sua vida iria mudar e, mesmo que às
vezes o desejasse, regressar ao iídiche, à sinagoga, celebrar o
sabbath e adotar os rituais que o irmão Efraim continuava a cumprir
escrupulosamente, parecia-lhe uma impostura indigna de si próprio,
da memória de tudo o que amava. Ele escolhera outra vida, lutara
com outras armas e perdera. Só podia tomar o caminho de um
estranho exílio, e foi assim que se sentiu, exilado de si mesmo e do
seu povo, sem necessidade de abandonar aquele que era e não era
o seu país, instalando-se em Rockport, onde com o tempo chegaria
a conquistar o humilde bem-estar daqueles que só aspiram a uma
existência sem sobressaltos.
Ao longo dos primeiros meses dedicou-se a arranjar a casa e
descobriu que tinha jeito para trabalhos manuais. Enquanto pintava
a fachada de amarelo-claro, uma mulher um pouco mais nova do
que ele, discretamente maquilhada mas vestida para agradar, com
uma saia justa e uma blusa branca que a faziam mais nova,
perguntou-lhe se poderiam falar um momento. Saul desceu do
andaime, convidou-a para um café e soube que se chamava Sarah,
como a mãe. Ela contou-lhe que trabalhava há quase dez anos num
pequeno café, junto de uma estação de serviço prestes a fechar, e
queria saber se o senhor Burnstein estaria interessado em alugar-
lhe o espaço do rés-do-chão. Chegaram rapidamente a um acordo,
porque ele lhe propôs renunciar ao dinheiro da renda e encarregar-
se da manutenção do espaço em troca de metade dos lucros, e ela
concordou. Bearskin Inn abriu portas no verão de 1951 e, apesar de
não ter sido um negócio particularmente estável até meados da
década seguinte, quando os veraneantes e turistas de todo o país
deram fama a Rockport, Sarah sempre se mostrou satisfeita com
aquele acordo. Saul pôde dedicar-se a pescar, a ler, a navegar e a
fazer outras coisas que o ajudaram a esquecer que um dia tinha
vivido de outra maneira. Até que na noite de 20 de novembro de
1975, viu na televisão algumas imagens que o devolveram ao
passado como um feitiço irresistível.
– Sarah!
Desceu as escadas a correr e encontrou o café cheio de clientes
que quase não lhe prestaram atenção, mas que faziam tanto
barulho que a sua voz não era ouvida pela mulher que atendia ao
balcão.
– Sarah. – Aproximou-se e falou sem olhar para ela. – Oferece
uma rodada que eu pago.
– Então? – perguntou a sócia, tocando a sineta a que recorria
para chamar a atenção dos clientes.
Saul não respondeu imediatamente. Olhou em volta e sentiu que
naquele momento, no Bearskin Inn de Rockport, Massachusetts,
havia também lugar para uma grande família judaica sentada à
mesa de uma casa de Korzcyna, na Galícia polaca. E viu ali Sara
Burnstein sentada entre as filhas mais velhas, Agar e Rebeca, o
filho David de pé, a um lado, a mais pequena, Linka, do outro,
Efraim e Elyahu com eles, e muitas crianças, algumas ao colo das
mães, cunhadas e cunhados jovens, de quem já não se lembrava
muito bem, cujos nomes havia esquecido, mas que olhavam para
ele e sorriam.
– O Franco morreu – disse alto e bom som. – Vamos festejar.
Levantou a tábua que isolava o balcão do resto do local para
ajudar Sarah, que, com um sorriso, já tinha começado a servir copos
e a pousar garrafas no balcão. Não percebia nada, mas nessa noite
ficaria a dormir no andar de cima para saber o que tinha acontecido.
– Quem era esse que morreu? – perguntou um rapaz de vinte
anos ao amigo que o acompanhou até ao balcão para trazer as
cervejas ao grupo que os esperava na mesa do fundo.
– Não faço ideia – respondeu ele. – Mas vamos aproveitar
porque isto não acontece todas as noites.
BUENOS AIRES, 11 DE NOVEMBRO DE 1950

Manuel Arroyo Benítez sempre pensou que voltaria para a


Europa mal terminasse a missão, mas naquele momento não sentiu
falta de nada.
– Amo-te, Simona, e quero casar-me contigo. – A expressão da
namorada transfigurou-se tão depressa que parecia que, entre as
duas partes de uma só frase, se apagara uma luz que tinha acabado
de se acender. – Se me dizes que não, volto para a Europa. Nada
mais me retém aqui, mas és tão importante para mim que estou
disposto a ficar em Buenos Aires se disseres que sim.
– Diz-me, galego… – O vislumbre de um sorriso espreitou por
entre as reticências. – Isso é uma declaração ou uma chantagem?
– É metade-metade – reconheceu ele, e ela sorriu abertamente
ao ouvi-lo, mas o sorriso não durou muito.
– Já fui casada, sabes? E não foi bonito.
– A vida não é bonita, meu amor.
Nesse sábado, 11 de novembro de 1950, a vida de Manuel
Arroyo Benítez tornara-se tão feia que, mais do que uma
declaração, mais do que uma chantagem, a possibilidade de se unir
para sempre àquela mulher representava um salva-vidas em plena
tempestade, a única coisa em que estava disposto a aplicar as
forças que lhe restavam. Isso não significava que não amasse
Simona, pelo contrário. Ela conhecia melhor do que ninguém a
medida, a qualidade do seu amor, porque tinha sucumbido a uma
corte tão apaixonada e implacável que uma das empregadas de
mesa do Café de los Angelitos lhe fizera um ultimato antes de
Manolo. Olha, se não o aceitas, fico eu com ele, porque para mim
nunca ninguém olhou como o galego olha para ti… A devoção por
aquela mulher era tão intensa que na primeira vez que a beijou em
público os clientes habituais aplaudiram como se tivesse marcado
um golo na final de um Mundial de Futebol. No entanto, quarenta e
oito horas antes de lhe pedir a mão, nem sequer lhe passava pela
cabeça casar-se com ela. Ainda alimentava a esperança de, mais
cedo ou mais tarde, a convencer a ir para Espanha.
– Tens um telefonema. – No dia anterior, quando entrou na sala
de professores a meio da manhã, uma colega entregou-lhe um
bilhete onde tinha anotado o nome e o número de telefone de Fred
Goodwin. – É urgente.
No último tempo de sexta-feira, dava uma aula de Alemão, mas
aquele recado deixou-o tão nervoso que pediu licença ao senhor
Brioschi para usar o telefone do seu gabinete. Goodwin
cumprimentou-o com um sotaque cuidadosamente neutro, informou-
o de que, finalmente, tinha notícias de Washington e marcou um
encontro para as oito da noite num bar de jazz, situado na calle
Lavalle, a alguns quarteirões da escola, um local escuro, noturno,
que a essa hora costumava estar vazio. Manolo prometeu-lhe não
faltar e, embora o controleiro não lhe tivesse dado qualquer pista
sobre o assunto, pressentiu que as notícias não eram boas, mas
corrigiu-se imediatamente. Esperava por elas há tanto tempo que se
habituara a viver como se nunca fossem chegar, e a perspetiva de
tantos anos de trabalho se resolverem numa só palavra, sim ou não,
inspirava-lhe uma apreensão que roçava a preguiça. A verdade é
que as decisões que tinha tomado em março de 1949, com o único
fito de escapar à tutela de Kutschmann e à generosidade do SARE,
conseguiram moldar-lhe uma vida verdadeira, uma existência
imprevista e, no entanto, mais autêntica do que os anos passados
em Madrid como Adrián Gallardo Ortega ou do que aqueles que
gastara anteriormente num escritório obscuro em Genebra, cujo
senhorio o conhecia como Felipe Ballesteros Sánchez.
Ao cabo de dois meses na Argentina, depois de assegurar uma
via de comunicação entre Madrid e Burnham e de contactar com
Goodwin, procurara trabalho por iniciativa própria. Estava
convencido de que seria um emprego provisório, sendo que as
condições, interessavam menos do que a localização geográfica. Já
tinha descoberto que Buenos Aires não acabava, mas descartara
qualquer oferta que o obrigasse a movimentar-se pela cidade.
Precisava de um trabalho que o ancorasse num bairro cêntrico, de
classe média, longe de Recoleta, do Bairro Norte, das zonas
residenciais dos ricos, onde viviam os nazis que queria evitar. Eis o
único requisito que todas as manhãs o fazia sublinhar ou riscar as
ofertas de trabalho publicadas pelos jornais e aquele que o havia
levado a considerar a oferta da Escola de Línguas La Europea, que
pedia pessoal docente para o ano letivo de 1949-1950.
Além do grupo de conversação em espanhol que dirigira em
Madrid, o homem que escolhera aquele trabalho, apresentando um
passaporte que o identificava como José Pacheco Hernández,
carecia de experiência pedagógica. No entanto, falava perfeitamente
inglês, francês e alemão, as três línguas mais procuradas pelos
alunos de uma escola cujas salas ocupavam dois apartamentos
unidos, no primeiro andar de um edifício que já tinha conhecido
tempos melhores. Situada em Lavalle, entre as ruas Montevideo e
Rodríguez Peña, muito perto do Palácio da Justiça, cujos
funcionários constituíam uma percentagem considerável do corpo
discente, La Europea era um pequeno paraíso de paredes pintadas
de branco, vidros reluzentes e mobiliário bem conservado, a que se
acedia por umas escadas vetustas e descascadas, cujo único
propósito parecia ser o de realçar a prosperidade daquele
estabelecimento. O dono, Héctor Brioschi, portenho de pais
italianos, que havia renunciado na adolescência à sua Ettore natal,
alimentava todos os anos a esperança de transferir as suas salas
para um imóvel melhor, no entanto, embora as inscrições de La
Europea lhe permitissem sustentar a família com à-vontade, o
negócio não dava para tanto. Depois de ouvir aquele aspirante a
professor anunciar que nunca dera aulas, pagara-lhe a sinceridade
com a seguinte confissão, antes de o avisar de que, quando se
domina uma língua, ensiná-la não é assim tão difícil.
– A gramática, a sintaxe, isso, sim, é chato, mas tenho imensos
professores que ensinam essas inutilidades e depois falam com um
péssimo sotaque. Se aceitar, posso oferecer-lhe grupos avançados,
sabe, conversação, expressões idiomáticas, vocabulário técnico.
Isso não é muito difícil, pois não?
O salário pareceu-lhe um pouco baixo, mas depois de entrevistar
os outros dois candidatos, Brioschi satisfez as pretensões do
espanhol, aproximando-se do valor que este recebia do SARE
desde que chegara ao país. O novo funcionário não pretendia mais,
sobretudo depois de don Héctor lhe resolver o problema do
alojamento.
– A Encarna, a minha cunhada, que é galega como tu, bom, na
verdade, é asturiana, mas já sabes que aqui todos os espanhóis são
galegos, aluga dois quartos, e um deles está livre. Lá ficarias como
em casa, porque, além de te fazerem a comida, lavam e engomam a
roupa. Ela tem um apartamento lindo, com muita luz, no bairro
Congreso, calle Los Pozos, entre a Irigoyen e a Alsina, a uns doze
quarteirões daqui. Diz que vais da minha parte e vê se te convém…
Dona Encarnación Rodríguez era uma mulher imensa, cujas
carnes se esparramavam por todo o lado sem fazerem sombra às
pernas elefantíacas, duas colunas roliças como as de um bebé
descomunal, e tão grossas que quase não deixavam adivinhar o
contorno de uns joelhos sepultados em gordura. No restante, era
uma senhora tranquila, obcecada pela limpeza, a ponto de alugar
quartos só para poder pagar duas criadas que se encarregavam das
tarefas que a obesidade lhe impedia de levar a cabo. Passava o dia
a segui-las de quarto em quarto, sempre sentada num cadeirão de
vime que as raparigas deslocavam de acordo com as suas
instruções e de onde supervisionava o trabalho até o último recanto
da casa brilhar.
O apartamento não era propriamente bonito, mas não parecia
mau, e o quarto que a cunhada de Brioschi lhe mostrou
compensava o facto de ser interior com uma dimensão que tornou
menos traumática a mudança da avenida Callao. Manuel Arroyo
Benítez estava tão habituado a viver em pensões que o que mais
lhe agradou na sua nova casa foi justamente o facto de não o ser.
Dona Encarnación só tinha outro hóspede, o encarregado da loja de
ferragens que o defunto esposo lhe deixara em herança. Chamava-
se Umberto, há quase trinta anos que trabalhava para a família e,
nessa altura, era já uma espécie de filho adotivo da senhoria, que
tentara casá-lo com as filhas sem qualquer resultado. A mais velha
tinha escolhido um estudante de Santa Fé que, mal acabara o
curso, a levara para a sua cidade natal. A mais nova vivia em
Palermo, mas só via a mãe aos domingos, quando vinha almoçar
com o marido e os quatro filhos, que sujavam em duas horas tudo o
que haviam levado uma semana inteira a limpar. De segunda a
sábado, lá em casa só se ouvia o roçar dos panos que esfregavam
incansavelmente paredes, chão e janelas, e a vida era fácil,
agradável, porque os únicos problemas da anfitriã eram o pó e a
gordura, a cujo extermínio dedicava uma atenção tão absorvente
que não lhe deixava qualquer margem para se meter na vida dos
hóspedes.
– Ai, Pepiño, é tão mau chegar a velha!
Dona Encarnación, que não era tão gorda por acaso, cozinhava
muito bem. Costumava servir pratos espanhóis, pesados, à hora do
almoço e também não aligeirava o jantar. A única coisa que pedia,
em troca de umas favadas memoráveis, era atenção para as suas
mágoas, uma longa fiada de queixas que intercalava, com uma
precisão rigorosa, com as colheradas que levava à boca.
– Se me tivesses visto aos quinze, era um figurino! Eu, que subia
às árvores em criança como um gato, estou agora uma desgraça,
podes ver, tudo me dói… – Manolo tinha dificuldade em ouvi-la sem
sorrir, vendo-a esvaziar copos de vinho de um trago e despachar
meia baguete sem parar de se queixar. – Esta manhã, por exemplo,
as pernas não me deixavam viver. Que dores, minha mãe! E as
costas então… nem digo nada…
Era um pagamento razoável para aquela bondade e o hóspede
fazia-o de boa vontade. Assim, ouvindo as aventuras juvenis da
asturiana, ficou a saber que perto de casa, na esquina das ruas
Rivadavia e Rincón, ainda existia um café muito famoso que havia
inspirado uma canção cantada por Aníbal Troilo e por Libertad
Lamarque.
– Quando me casei com o meu Santiago, vinte e dois anos tinha
eu, conseguia fazer a espargata, como as bailarinas de ballet…
Quem me viu e quem me vê! Aos sábados à noite, íamos dançar o
tango para o Café de los Angelitos. Tiravam as mesas encostadas
ao palco, para que os clientes dançassem, e de vez em quando,
faziam concursos… Ganhámos por duas vezes o primeiro prémio, e
numa delas um dos jurados era o Troilo, imagina lá tu. Estás a ver
aqueles troféus na vitrina? Ganhei-os todos a dançar o tango
quando era uma mulher e não um caco, como agora…
Durante os primeiros meses em casa de dona Encarnación, o
novo hóspede quase só saía do quarto para ir e vir a pé da escola.
Dedicou todas as horas livres do mês de março de 1949 a preparar
as aulas, apoiando-se nos manuais escolares e nos apontamentos
que don Héctor lhe tinha fornecido e, em abril, à medida que se
sentia mais seguro no novo trabalho, começou a organizar as notas
para elaborar um relatório exaustivo sobre a rede Stauffer. Só saía
em noites intercaladas de quarta-feira, para assistir às reuniões que
Kutschmann organizava em sua casa, e num ou noutro sábado,
quando não conseguia evitar os tours que o alemão lhe propunha
incessantemente. Com a chegada do inverno e dos exames do
primeiro trimestre, começou a espaçar ainda mais as visitas a
Recoleta e verificou que Walter não lhe sentia a falta, mas num
sábado de junho chuvoso e frio, ao fim da tarde, teve a sensação de
que o teto do quarto lhe caía em cima. Enquanto ouvia, pela porta,
os tangos que a senhoria punha a tocar na sala, sentiu que a noite o
chamava como se tivesse algo a oferecer-lhe e acatou a sua
vontade sem hesitar. Vestiu-se, pôs o sobretudo e decidiu conhecer
o templo do êxito juvenil de dona Encarnación. Foi lá que viu
Simona pela primeira vez.
De manhã, vazio, o Café de los Angelitos, um espaço enorme,
repleto de mesinhas iluminadas por impessoais globos de vidro,
ainda mantinha algumas reminiscências do pardieiro marginal que
havia sido meio século antes, quando um comissário de polícia o
batizou numa alusão irónica à qualidade dos fregueses,
delinquentes de todas as especialidades. Porém, naquela noite de
sábado, estava cheio, repleto de luzes e de movimento, como um
barco movendo-se ao ritmo da música tocada pelos velhos
intérpretes de uma pequena orquestra. O pianista vestia um fraque
com as lapelas brilhantes do uso e tinha o cabelo comprido. A
espessa cabeleira branca, imaculada, contrastava tanto quanto a
indumentária com a cabeça careca do velhote que tocava
bandoneon, vestido com uma simples camisa vermelha, sobre a
qual trazia um colete de couro cheio de emblemas de metal. Entre
eles, uma mulher de seios volumosos e papada de iguana, a boca
besuntada por um batom rosa-choque que, em vez de as disfarçar,
realçava as rugas que lhe empurravam os lábios para dentro,
dedicava-se ao violoncelo. Segurava no instrumento com as pernas
cobertas por umas meias pretas muito opacas, que terminavam
nuns sapatos vermelhos de verniz, a condizer com o vestido de
lantejoulas com que poderia ter dançado charleston trinta anos
antes. O efeito da decrepitude que semelhante trio provocava à
primeira vista sucumbia ao encanto vigoroso, juvenil, da sua música,
porque a qualidade daqueles três artistas quase póstumos, juntos
há tantos anos que nem sequer precisavam de olhar uns para os
outros para entrar a tempo, era muito superior à soma das idades,
mesmo que esta roçasse os dois séculos e meio.
Manolo pediu um copo ao balcão e aproximou-se para os ouvir
melhor, sem prestar muita atenção aos casais que dançavam. Até
que de uma das mesas próximas do espaço improvisado como pista
se levantou uma mulher singular. Tinha o cabelo preto e, desafiando
a moda da época, usava-o muito curto na nuca, quase como um
homem, embora umas madeixas lisas, perfeitamente disciplinadas,
lhe emoldurassem a cara como o toucado de plumas de uma
bailarina. O catálogo de estranhezas não terminava aí, porque os
lábios, vermelhos como morangos, destacavam-se num rosto sem
maquilhagem, sem rasto das sombras exageradas que manchavam
as pálpebras das restantes mulheres. Podia permitir-se isso porque
era jovem, embora não fosse fácil calcular-lhe a idade. Manolo
colocou-a à beira dos trinta anos e sem saber porquê adivinhou que
tinha vivido muito, talvez de mais. Essa experiência impregnava-lhe
os olhos de uma escuridão feroz, afilava as arestas de uma
expressão que transmitia mais do que simples cansaço e dava-lhe
uma gravidade peculiar ao corpo elástico, simultaneamente flexível
e maciço, que avançou sobre duas magníficas pernas até ao centro
da pista. Naquela noite, que a clientela feminina do café tinha
escolhido para brilhar nos melhores trajes, ela usava uma camisola
preta de lã, de gola alta, que lhe revelava a largura dos ombros,
ajustando-se admiravelmente, no entanto, à curvatura dos seios e
às linhas da cintura. A saia, em cetim da mesma cor, ostentava uma
longa racha num dos lados que, quando andava, lhe deixava
entrever a coxa direita. Não usava joias, nem sequer brincos, e os
sapatos de salto alto, presos por um elástico ao peito do pé,
pareciam muito gastos. Compreendeu imediatamente porquê.
Aquela mulher dançava como um anjo caído, como um cisne
negro e rancoroso, sem prestar atenção ao homem que a
acompanhava, colando-se a ele para logo se afastar como se ele
fosse uma coluna, um poste de madeira, um acessório
imprescindível, mas substituível, para executar a sua vontade.
Manolo deu-se conta de que não olhava para o homem, de que não
olhava para ninguém enquanto dançava com os olhos fixos nos pés,
e ele desempenhava o seu papel com destreza e sem paixão,
emprestando-lhe o corpo para que ela brilhasse como uma estrela
escura, enfeitando-se com os olhos dos que a observavam, como se
fossem um troféu desdenhável, digno do desprezo que lhes
dedicava, que dedicava a tudo o que não fosse o ritmo do seu corpo
em movimento. Quando a música acabou, a orquestra fez uma
pausa e ela voltou para a mesa com o par. O novo cliente aproveitou
o silêncio para entabular conversa com um dos empregados, um
senhor de uns sessenta anos que estava de pé, encostado a uma
coluna, segurando a bandeja sobre o peito com uma expressão tão
descansada como se a sala não estivesse cheia de clientes de
braço erguido, exigindo ser servidos.
– Aquela mulher que dança tão bem… é uma profissional? – O
sorriso que recebeu fê-lo recear ter sido mal-interpretado. – Refiro-
me a essas bailarinas que cobram por dançar uma música…
– Sim – interrompeu-o ele a tempo –, eu percebi, mas não. O
homem é cunhado dela, marido da irmã. – Manolo reparou melhor e
viu que, entre o casal, estava sentada outra mulher. – A Adelina não
gosta de dançar e empresta-lhe o marido quando vêm juntas.
– Nesse caso conhece-as bem?
– Oh, sim, desde pequeninas. Os pais tinham um restaurante a
um quarteirão, no outro passeio, e eram muito amigos do dono do
café. A Simona é afilhada dele e cresceu aqui, porque sempre
gostou muito de tango. É sobrinha do professor Peroni, o pianista,
viu-o?, que é casado com a dona Berta, a violoncelista, e vinha com
eles quase todas as noites. Como agora.
– Portanto, chama-se Simona – murmurou Manolo sem afastar
os olhos dela.
– Simona Gaitán – completou o empregado. – Linda, hã?
– Sim. – Voltou-se finalmente para ele. – É uma preciosidade.
– Pois, mas tenha cuidado, amigo…
Baixou a bandeja e começou a mover-se indolentemente quando
as vozes de outros empregados, que o chamavam havia algum
tempo – ei, flaco, que estás a fazer? De férias ou quê? Queres
trabalhar e deixar de te armar em boludo? – começaram a troar-lhe
nos ouvidos. Porém, antes de se afastar, voltou-se para o galego e
terminou a frase que havia deixado a meio.
– Tenha cuidado porque morde.
Apesar do aviso, Manuel Arroyo Benítez voltou ao Café de los
Angelitos na noite seguinte, e na outra, e nunca mais deixou de o
fazer. Assim, depressa se tornou um cliente mais assíduo do que a
própria Simona e, quando não a via, puxava pela língua dos
empregados para saber informações sobre ela. Artemio, o velho que
o tinha avisado de que ela mordia dela, e sempre o mais loquaz de
entre todos, foi-lhe contando dados desconexos da história que
havia transformado a miúda mais bonita de Balvanera numa fera
selvagem, mas Manolo não partilhou essa opinião durante muito
tempo. Depois de investir muitas horas de muitas noites seguidas a
examiná-la, chegou à conclusão de que Simona era uma mulher
triste e, sobretudo, assustada. Sentia medo e, por isso, rejeitava os
homens que se aproximavam dela, no entanto a sua aspereza,
aquele modo brusco de exigir que a deixassem em paz, a facilidade
com que recorria a uma violência verbal que roçava o insulto, não
era um traço de personalidade, mas uma cicatriz feia, profunda, que
supurava como uma ferida infetada. Os pretendentes, incapazes de
a verem, fugiam espavoridos para nunca mais voltar, mas ele via-a
tão bem que nunca deu um passo na sua direção. Sem sair do
lugar, abandonou a tempo o projeto de ter aulas de tango quando
intuiu que convidá-la para dançar o favoreceria menos do que
permanecer sentado no banco alto sem fazer outra coisa que não
olhar para ela, hora após hora, noite após noite, como uma garantia
de perseverança, uma demonstração da força que o ajudaria a
ganhar aquela aposta.
– Ouve lá, galego. – Porque, ao cabo de dois meses, foi Simona
quem se aproximou dele. – Tu nunca te cansas?
– De ti, não. – Era a primeira vez que a via de perto, a cara
alongada, o nariz grego, comprido e fino, demasiado grande até
naquele rosto, os lábios grossos, a pele muito branca e, no entanto,
o cabelo tão escuro como as asas de um corvo, os olhos
amendoados, como dois sulcos negros a fugir para o lado, uma
beleza difícil que estava a um milímetro de se desmentir e que, por
isso, o esmagou muito mais. – Nunca. Queres beber alguma coisa?
– Eu aqui não pago as bebidas. – Voltou-lhe costas como se
pretendesse simplesmente afastar-se, mas virou-se de repente. –
Obrigada, de qualquer forma.
Dirigiu-se para a sua mesa, a que ocupava sempre, sozinha ou
na companhia exclusiva da irmã ou dos músicos, e, quando lhe
serviram um copo, ergueu-o e olhou para ele. Manolo respondeu ao
brinde e mais nada aconteceu, porém, naquela noite de agosto,
sentiu uma conversa ínfima como um triunfo. Desde então, viam-se
quase todos os dias, porque ela começou a ir ao café todas as
noites, e ele nem sequer quando tinha um encontro com
Kutschmann faltava. Aparecia por lá antes ou depois, por vezes
antes e depois, para a olhar, para a ver dançar com outros homens,
para erguer o copo no ar com a tenacidade de um mineiro que
presente o ouro que o espera no outro lado, enquanto crava
repetidamente a picareta numa parede impenetrável de rocha dura.
Sem nunca abandonar o posto ao balcão, Manuel Arroyo tornou-se
um especialista em Simona Gaitán e estava tão convencido de que
ela acabaria por aceitá-lo que não se surpreendeu com o apoio que
a sua causa obteve no decurso daquele inverno.
– Vá lá, Simona, dá ouvidos ao galego. – Quando era Artemio
quem lho pedia, um dos seus pares mais experientes e frequentes,
ela sorria. – Vais matá-lo. Olha para ele, cada dia mais magrinho…
A 2 de outubro desse ano, quando Clara Stauffer lhe propusera,
no jardim de uma quinta de Olivos, que a acompanhasse ao Peru e
à Bolívia, tinha rejeitado a oferta também por causa de Simona.
Além de ser verdade que conhecera uma rapariga de quem gostava
muito, era-lhe sobretudo inconcebível afastar-se de Buenos Aires,
do balcão do Café de los Angelitos, do banco alto onde vivia mais e
melhor do que em casa de dona Encarnación. Aqueles quarenta e
cinco centímetros quadrados eram o que, em muito tempo, de mais
parecido tinha com um lar e, quando o carro de Clara arrancou,
apressou-se a encontrar outro que o levasse para lá o mais cedo
possível. Não foi fácil, porque Freude era tão bom anfitrião que
depois do churrasco propusera um lanche, seguido de um jantar frio,
e a velocidade a que as garrafas se esvaziavam marcava o ritmo
daquelas que eram abertas, num carrossel sem princípio nem fim.
Walter estava encantado, decidido a acordar na manhã seguinte
numa das espreguiçadeiras da piscina, mas Pierre Daye, o
convidado mais velho com carro próprio, rendera-se muito antes e
aceitara levar um passageiro. Vivia perto da plaza San Martín e o
falso Adrián Gallardo mentiu dizendo-lhe que lhe calhava muito bem
ficar ali. Na realidade, dava-lhe tão pouco jeito que quando chegou
aos Angelitos já passava das onze da noite.
O local estava tão cheio como todos os domingos, a orquestra
tocava, os pares dançavam, o barco movia-se ao ritmo do tango,
compondo uma imagem viva e vibrante, o frenético caleidoscópio de
cores e sons que o enfeitiçara da primeira vez que transpusera o
umbral. Contudo, ele não havia ido para beber, nem para dançar,
mas para olhar para uma única mulher e, antes de ocupar o devido
lugar ao balcão, deu-se conta de que ela se encontrava na mesa do
costume e de que alguma coisa não corria bem. Um homem novo,
muito bêbedo, estava inclinado sobre ela, dizendo-lhe coisas que
Simona não queria ouvir. Manolo, abriu caminho entre as pessoas,
viu que o desconhecido a agarrava por um braço, que a tentava
obrigar a levantar-se, que ela se agarrava ao tampo da mesa com a
outra mão opondo resistência, chegou a tempo de ouvir a voz dela,
vai para a puta que te pariu, e nem pensou.
Meteu os dedos entre o pescoço e a camisa daquele tipo e
puxou-lhe o braço para trás com toda a força. Atirou-o ao chão com
muita facilidade porque o atacou pelas costas e porque a bebedeira
aumentou o efeito surpresa, a ausência de reflexos do agressor
agredido. Os casais mais próximos pararam de dançar e rodearam o
homem estendido no chão, que tentava levantar-se quando o
recém-chegado o impediu, pondo-lhe um pé em cima do estômago.
Nesse instante, o trio deixou de tocar e a voz de Manuel Arroyo
Benítez substituiu a música num súbito parêntesis de silêncio.
– A senhora não quer nada contigo. Estamos entendidos? – A
vítima não lhe respondeu, e ele pisou-o um pouco mais. –
Perguntei-te se estamos entendidos.
– Sim. – O homem assentiu com a cabeça. – Deixa-me.
Quando se levantou, a música voltou a tocar. Os dançarinos
afastaram-se, abrindo um corredor que lhe facilitou a fuga, e ao
cabo de alguns instantes tudo parecia estar como de costume. Mas
não estava. E nunca mais voltaria a estar.
– Ai, galego! – Simona olhou para o salvador com uma
expressão pesarosa, abanando levemente a cabeça. – Porque me
dificultas tanto as coisas?
Manolo pegou-lhe na mão, beijou-a um pouco mais do que o
necessário para que os lábios gravassem na memória a textura
daquela pele e fez menção de se afastar, mas ela reteve-o.
– Anda, vem, senta-te aqui. – Afastou a cadeira vazia ao seu
lado e ofereceu-lha. – Diz-me uma coisa. Sabes onde fica Fortín
Tiburcio? – Ele negou e ela brindou-o com um sorriso amargo,
enquanto chamava um empregado. – Nem imaginas a sorte que
tens…
Simona tinha dezanove anos quando Juan Gaitán morreu, o seu
pai, um verdadeiro galego, bom e carinhoso, que sempre a mimara,
recebendo em troca um amor incondicional. Naquela época,
Adelina, a mais dócil e obediente das duas, já se tinha casado com
um rapaz bom e trabalhador, daqueles de que a irmã não gostava.
Simona tinha herdado o nome e o feitio da mãe, uma mulher
decidida, mais inteligente e forte do que o marido, que fazia quase
tudo bem, mas que não conseguia traduzir em ternura o amor que
sentia por ele, pelas filhas. Na adolescência, a miúda convenceu-se
de que ela não a amava. Quando descobriu que estava enganada,
já era tarde.
– A minha velha avisou-me, a minha velha sabia. Não te cases
com esse homem, Simona, ouve o que te digo, pelo amor de
Deus… Eu nunca a tinha visto chorar, só quando o meu pai morreu,
só no enterro dele e nesse dia. Se fechar os olhos, ainda lhe vejo as
lágrimas enquanto me dizia, não te cases com esse homem,
Simona… Mas eu era pelotuda, tão pelotuda que não lhe dei
ouvidos. A minha mãe avisou-me, mas eu casei-me com o Renato.
Renato Bley era viúvo e tinha trinta e nove anos quando uma
Simona Gaitán com vinte recém-feitos achou que ele era a solução
para todos os seus problemas, a resposta às suas orações, se
alguma vez lhe houvesse ocorrido rezar. Conhecia-o há anos,
porque quando ele vinha a Buenos Aires, de três em três ou de
quatro em quatro meses, costumava almoçar no restaurante dos
pais. Sabia que lhe agradava e aceitava os galanteios por pura
vaidade, pela satisfação de seduzir um homem mais velho, rico e
bem-parecido, que chamava a atenção pela arrogância com que
andava nas ruas, com uma elegância de gaúcho refinado pouco
frequente na capital.
– Era bem convencido, sabes? E dançava… Ai, como aquele
filho da puta dançava o tango! Vínhamos aqui, e ele oferecia-me
flores, afastava a cadeira, levantava-se quando eu me levantava
para ir à casa de banho… Eu dava-me muito mal com a minha mãe.
Vivia com ela, trabalhava com ela, andávamos aos gritos o dia
inteiro, e ele sabia, ele dava-se conta de tudo. Por isso, ficou cá seis
meses seguidos, até que me convenceu. Casa-te comigo, Simona,
dizia-me todas as noites diante da minha velha, casa-te comigo…
Até que lhe respondi que sim.
Os recém-casados instalaram-se na fazenda de Bley, uns
milhares de hectares no meio de nenhures, perto de Junín, a norte
da província de Buenos Aires. Noutras regiões da Argentina, Renato
não seria um latifundiário, mas em Fortín Tiburcio, uma povoação
minúscula que cresceu em volta de um apeadeiro ferroviário com o
mesmo nome, nas margens do Regato Salado, ele era quase um
potentado. Antes de chegar à nova casa, Simona assustou-se com
a imensidão daquela planície quase deserta, onde se viam mais
vacas do que pessoas, com a pobreza das ruas de terra, com a
solidão dos trigais que o marido lhe apontava com o dedo, do carro
puxado a cavalos que os fora buscar. A casa era grande e austera,
com paredes nuas e móveis escuros, mas não estava vazia. Nela
viviam as irmãs de Renato, Augusta e Salomé, uma casada, a outra
solteira, ambas igualmente secas com a cunhada, igualmente
servis, aduladoras, com o seu marido. Porém, ele era um bom
amante, sabia dar prazer a uma mulher e, enquanto foi doce com
ela, não houve problemas. Ofereceu-lhe uma égua e Simona
aprendeu a montar, tomou gosto por cavalgar pela fazenda até que
começou a gostar daquela paisagem e, durante os dois primeiros
anos, viveu quase conformada com a vida.
– Mas era tudo um pouco estranho porque ele continuava a vir
cá de vez em quando, só que nem sempre me trazia. Cada vez me
deixava lá mais tempo com as irmãs, que me vigiavam como se eu
fosse uma safada e que andavam pendentes da minha
menstruação, obcecadas com isso, percebes? Eu não engravidava,
não fazia nada para o evitar, mas não engravidava… Então, a
Augusta disse-me que fosse a um médico e, numa das viagens do
Renato, acompanhou-me a Junín, à clínica do médico que sempre
tinha tratado da família. Era um homem grande, muito simpático,
que se surpreendeu muito ao ver-me ali. A senhora não consegue
ter filhos porque o seu marido é estéril. Ele sabe disso, veio
consultar-me com a primeira mulher, fizemos exames… Contei à
Augusta e ela disse-me que era impossível, que a culpa tinha de ser
minha. Quando o Renato regressou de Buenos Aires e soube o que
eu tinha feito, bateu-me e partiu-me duas costelas. Isso foi só o
princípio.
Foi um princípio muito longo, muito tenebroso, que se prolongou
por sete anos da vida de uma mulher tão nova que recuou até à
infância quase sem se dar conta, até ficar completamente submetida
à vontade absoluta de um homem que lhe dispunha da vida como
se fosse o seu pai. Era Renato quem lhe comprava a roupa, os
sapatos, que todos os dias decidia como se vestiria, que lhe
aprovava o penteado, que escolhia o que ia comer, que lhe dizia se
podia ou não dar um passeio à tarde, até onde lhe era permitido ir e
a que horas tinha de voltar, e que a premiava, que a castigava, sem
avaliar as ações, por capricho. Simona, a filha rebelde, a menina
que lutava com os rapazes nos descampados, a jovenzinha
temerária que levava sempre a sua avante, rendeu-se à autoridade
daquele animal sem conseguir perceber por que o motivo fazia,
porque a assustava demasiado questionar-se. Todos os anos,
quando se aproximava o mês de abril, Renato dizia-lhe que a levaria
a Buenos Aires para festejar o aniversário com a mãe e com a irmã.
Esse presente era acompanhado por duas sovas, uma antes, para
que não contasse nada, e outra depois, não lhe tivesse passado
pela cabeça ficar lá. Nessa altura, e sempre, os beijos, o sexo, os
mimos, alternavam com a pancada, e as palavras de amor eram
mais apaixonadas, mais ternas, quanto mais escuras eram as
marcas na sua pele. Simona habituou-se a viver assim, confundiu
terror com culpa, chegou a sentir-se responsável pelo que lhe
acontecia, por irritar o marido, por não fazer as coisas
suficientemente bem, por não ser capaz de conceber um filho de um
homem estéril. Porém, embora Renato tenha conseguido que a
mulher se sentisse um lixo, embora chegasse à capital carregado de
presentes comprados nas melhores lojas, embora a cada
aniversário Simona trouxesse joias maiores e mais caras, nunca
conseguiu enganar a sogra.
– A minha mãe começou a visitar-me de vez em quando, sem
avisar. Ficava num hotelzinho de Junín, apanhava o comboio e
aparecia em Fortín Tiburcio. Era nessa altura que eu tinha mais
medo, porque a amava tanto, precisava tanto de a ver, mas Renato
ficava furioso, tratava-a mal. Ela via-me magrinha, encolhida e… Há
quatro anos, tinha eu vinte e sete, encontrou-me de cama, doente,
com uma febre que não baixava, porque as minhas cunhadas não
tinham querido comprar-me medicamentos, não tinham chamado
ninguém, diziam que eu era uma mandriona, que não queria
trabalhar. A minha mãe trouxe um médico, comprou-me antibióticos,
ficou três noites ao meu lado até que eu melhorasse. Depois
informou o Renato de que me queria levar consigo para Buenos
Aires até eu recuperar completamente, e ele… Ouvi os gritos,
levantei-me, vi como ele a expulsava de casa aos empurrões,
agarrando-a pelos cabelos, à minha mãe, à minha pobre velha,
como me agarrava a mim… Disse-lhe que, se ela voltasse, nos
mataria às duas. Ela foi denunciá-lo à polícia, não podemos fazer
nada, senhora, disseram-lhe, é o marido.
Simona nunca mais recebeu uma carta da família porque a
cunhada Salomé se encarregou, a partir de então, de ir buscar o
correio. No seu vigésimo oitavo aniversário, o marido ofereceu-lhe a
informação de que nunca mais voltaria a pôr um pé em Buenos
Aires. Ela correspondeu com uma promessa secreta. Não faria trinta
anos em Fortín Tiburcio, não os faria, nem que tivesse de se matar.
No instante em que foi capaz de pensar nisso, de imaginar a raiva
de Renato diante do seu cadáver, voltou a ser ela própria. Via-se
morta, caída no chão da casa de banho, ouvia-o gritar, lamentar-se,
pontapear o cadáver, e sorria ante a ideia de que aqueles pontapés
já não a magoariam. A morte parecia-lhe um bálsamo pacífico,
indolor, um destino muito preferível à vida, e aquela conspiração
devolveu-lhe a coragem, a firmeza necessária para compreender o
mecanismo perverso que a sujeitara a uma corrente cada vez mais
curta. Porque estava longe, porque estava sozinha, porque não
podia trocar uma palavra com ninguém que não dependesse
economicamente de Renato, porque o mundo, o seu mundo, não
existia para lá dos limites da fazenda, de uma cerca concebida para
impedir tanto a fuga do gado quanto a de Simona Gaitán. O
conhecimento tornou-a mais forte, mais inteligente e aliviou-lhe a
vida quotidiana, porque lhe deu um motivo para acatar as normas,
para evitar as sovas, para agradar às cunhadas. A contrapartida foi
descobrir que não queria morrer, embora durante muito tempo tenha
julgado que nunca encontraria a saída do labirinto.
– E o filho da puta apercebeu-se disso. Andas muito mansinha,
tu, dizia-me, que aconteceu? Batia-me na mesma, mas eu já não
chorava. Só pensava em fugir, de manhã à noite, e ele nunca me
deixava sozinha, como se soubesse disso. Isso custou-lhe a vida, vê
lá, porque eu pensava, e pensava, mas era difícil, sabes? Ele
matou-me a égua com um tiro, eu não sabia conduzir, dormia num
quarto fechado à chave… Foi assim que fiz vinte e nove anos. Os
meses passaram, e eu já julgava que teria de me matar, quando,
num dia de janeiro, começou a chover… Ai, como chovia! Como se
o céu se esvaziasse, inacreditável, um dia, outro e mais outro, não
parava de chover e tudo se inundou. O Regato Salado, que é bem
grande, apesar do nome, cresceu tanto que não se via terra entre o
rio e uma lagoa imensa a que chamam Mar Chiquita. Já tinha
chovido, mas nunca tanto, tantos dias seguidos, e a água soltou a
terra, arrasou a cerca, um peão entrou lá em casa à hora do almoço,
as minhas cunhadas gritaram porque ele deixava um charco a cada
passo, mas ele gritou mais alto, o gado, patrão, a água está a
arrastar o gado… O meu marido levantou-se, atravessou a sala e
voltou-se de repente. Veste-te, disse-me, vens comigo.
Foram no todo-o-terreno, só os dois. O trilho tinha desaparecido,
mas Renato conduzia de cor, levantando duas cortinas de água nas
laterais do carro. Simona estava com muito medo porque não via
terra, apenas uns charcos acastanhados, terrosos, sobre os quais
as gotas caíam com tanta violência como se quisessem apagar para
sempre a memória da planície. A chuva entrava pelas janelas
fechadas, as vacas mugiam de desespero e a cerca desaparecera.
O jipe ficou atolado duas vezes, mas o marido conseguiu libertá-lo e
seguiu até à margem, onde os pedaços da cerca caída haviam
prendido o gado, impedindo-o de cair para o rio, embora a força da
torrente que descia a toda a velocidade, arrastando pedras, tijolos e
até árvores inteiras, já tivesse levado algumas reses. Renato desceu
do carro com uma corda, aproximou-se das vacas, resgatou uma,
depois outra. Simona pensava que o esforço dele era absurdo
porque os animais que tirava continuavam rodeados de água por
todos os lados, quando, de repente, deixou de o ver.
– Mas ouvi-o. Anda, Simona, traz uma corda, qualquer coisa,
despacha-te, rápido, Simona… Aproximei-me da margem, muito
devagar, e vi-o lá em baixo, tão indefeso, tão fraco de repente, o
filho da puta. Tinha escorregado e estava agarrado a uma raiz
pequenina que se partiu logo a seguir, antes que eu conseguisse
soltá-la com o pé. A água levou-o enquanto eu olhava para ele.
Tinha querido matá-lo, não salvá-lo, e não pude fazer nem uma
coisa, nem outra, mas, quando vi a cabeça dele embater numa
rocha, a espuma da água ficar vermelha, pensei que não era
possível, que aquilo era bom de mais para mim, bom de mais para
ser verdade. Nesse momento, nesse preciso momento, parou de
chover, acreditas? Depois de quatro dias e três noites, parou de
chover. Olhei para o céu, vi as nuvens passarem velozes, tirei o
capuz do impermeável e não caiu mais água, nem uma gota,
embora o rio continuasse a descer com a mesma força e só uma
semana depois tudo secasse. Voltei a pé, devagar, e demorei mais
de duas horas. Não me perdi, nem tive medo, sabes? Não. Demorei
simplesmente porque me lembrei da minha mãe e chorei muito,
depois parei de chorar, e senti que tudo se tornava maior, o mundo,
o campo, o meu peito. Respirava tão bem, nunca tinha respirado
assim desde que ali chegara… As botas chapinhavam na água e eu
gostava do som. O céu abriu-se, deixou ver um pedacinho de azul, e
eu parei para ver. Por isso demorei tanto, porque já podia voltar
quando quisesse. Não fui para casa, mas para Fortín Tiburcio avisar
a polícia. Depois, levaram-me para a fazenda no carro deles. O
Renato começou a aparecer passados três dias, o tronco com uma
perna quase inteira e meio braço, depois o outro, mais tarde uma
mão, e assim. A cabeça foi a última coisa que encontraram, mas
nem sequer tinham a certeza de ser a dele porque era só osso. O
resto, os peixes comeram.
Simona Gaitán fez os trinta anos em Buenos Aires. A autoridade
de Renato Bley não sobreviveu nem um instante à sua morte. A
primeira coisa que a viúva fez foi cortar o cabelo para que nunca
mais alguém a pudesse arrastar pelo chão. Depois tomou posse da
casa, de metade das terras e de um capital considerável, embora as
cunhadas tivessem tentado desacreditá-la, dizendo mal dela a todos
os vizinhos e contratando um advogado que nem sequer lhes
cobrou o serviço porque era impossível evitar que herdasse os bens
do seu marido. O cunhado Pedro, marido de Augusta, foi mais
amável porque percebeu que teriam de continuar a gerir a fazenda
com Simona durante muitos anos. Uma vez tratada a papelada com
ele, a viúva de Bley assentou arraiais no seu querido bairro,
comprou um apartamento na calle Rivadavia, no prédio contíguo ao
da mãe, e não contou a sua vida a ninguém até que a perseverança
amorosa de Manuel Arroyo Benítez a desarmou.
– E para que queres tu uma mina como eu, galego? – perguntou-
lhe no fim. – Há tantas pibas lindas, simples, boazinhas… procura
uma para ti. Eu já vivi, percebes? Não posso dar-te…
Nunca conseguiu terminar aquela frase. O galego inclinou-se,
beijou-a, e Simona não deixou de lhe corresponder, nem sequer
quando explodiu uma ovação a que Artemio se juntou, batendo duas
bandejas como se estivesse a tocar pratos. Nessa noite, o lar de
Manuel Arroyo Benítez dilatou-se, iluminou-se, cresceu dos
quarenta e cinco centímetros quadrados do banco no balcão dos
Angelitos até à medida exata do corpo de Simona Gaitán. A
hospitalidade foi tão decisiva que só quando se alojou nele Manolo
percebeu a dimensão da sua pobreza. Enquanto o colonizava
devagar, sempre atento à dolorosa magnitude da cicatriz que o
usurpara, descobriu que aquela mulher, extremamente sensível à
alegria, às carícias, ao prazer que lhe faltou durante muito tempo,
necessitava tanto de amor quanto ele próprio.
Quase a fazer quarenta anos, investira perto de metade da vida
numa luta incessante contra a derrota, um fracasso que o havia
perseguido como um cão de caça de Genebra a Londres, de
Londres a Valência, de Valência a Madrid, e de volta a Valência, a
Genebra, a Madrid, seguindo-lhe o rasto até Buenos Aires, sem
nunca deixar de lhe invadir o centro e as margens de todos os
horizontes. A cada manhã que acordava ao lado de Simona tornava-
se mais consciente de que não conseguira construir o que quer que
fosse, nem uma vocação, nem uma casa, nem uma família,
nenhuma variante de uma existência plena ou, sequer, aprazível.
Não tendo nada, nem o seu próprio nome conservava. Fora-o
perdendo, de impostura em impostura, de pensão em pensão, na
longa fiada de vidas emprestadas, roubadas, falsas, que resumiam
o que deveria ter sido a verdadeira existência de Manuel Arroyo
Benítez. Nesse aspeto, não era muito diferente da mulher que
amava. Também ele arrastava a memória de anos frustrados,
consumidos em vão, não tão cruéis, mas mais longos e igualmente
inúteis. Até se ter juntado a Simona Gaitán, nem sequer se havia
dado conta disso. Nunca teria escolhido semelhantes palavras para
contar a sua vida a alguém, mas, assumindo que o seu futuro só
poderia ter o nome daquela mulher, quis acreditar que o amor dela
era um símbolo, um indício, a promessa de uma vitória final,
definitiva. Com essa esperança, a 10 de novembro de 1950,
empurrou a porta do bar de jazz para se encontrar com Fred
Goodwin, e a primeira coisa que viu ao entrar incendiou-lhe o
coração.
– Pinche gachupín!
Margaret Carpani Williams correu para o abraçar e, enquanto a
estreitava os braços, Manuel Arroyo Benítez apercebeu-se de que
sentia saudades da sua altura, dos contornos daquele corpo
comprido e ossudo, do sotaque, do seu cheiro, tão diferente do de
Simona. Aquela saudade comoveu-o porque a gringa louca tinha
sido a mulher que mais amara durante muitos anos e, ao mesmo
tempo, um ingrediente essencial da pobreza íntima que um amor
diferente deixara a descoberto.
Meg, que nunca se entregara totalmente e nunca esperara mais
dele, havia sido uma primavera tépida, com o céu salpicado de
pequenas nuvens brancas, agradáveis mas que tapavam o sol, um
clima a que o verão nunca chegou. No entanto, à sua maneira
incompleta, reservada, entre a amizade, a camaradagem e o sexo,
Manolo amara-a muito. Porém, depois de provar outro tipo de amor,
que lhe secava a boca, lhe apertava o coração e fazia da ausência
de Simona ansiedade, a sua presença naquela tarde, numa
explosão de alegria tão intensa que quase lhe fazia mal, confirmou
que continuava a amá-la. Meg não tinha poder para modificar, e
ainda menos para ameaçar, a sua nova realidade porque provinha
de outra, mas a confusão sentimental em que o mergulhou o
reencontro inesperado com duas personagens do passado, aquela
mulher e uma versão caducada de si próprio, não o impediu de
questionar o motivo concreto do seu aparecimento. Vendo-a, disse
para consigo que só poderia ali estar para celebrar uma vitória
comum, porém, depois de ouvir as suas primeiras palavras, o
otimismo diluiu-se numa incerteza terrível.
– Estás tão bonito, Manolo! – Conhecia-a tão bem que aquele
elogio lhe transmitiu num instante a informação que pretendia adiar.
– Estás a matar, o Rio da Prata faz-te bem, fico muito contente por
te ver assim…
Por isso não encontrou nenhuma maneira de corresponder aos
piropos. Quando Meg desfez o abraço, ele ficou especado no meio
do bar, olhando ora para a amiga ora para o agente que a
acompanhava, com reações diferentes. Ela olhava-o, sorria-lhe, mas
ele tinha baixado os olhos, como se quisesse encontrar no chão
uma seta que lhe indicasse o melhor caminho para fugir. Desde que
partira pela primeira vez para Genebra, no outono de 1931, a sua
vida, pobre ou rica, boa ou má, tinha-o convertido num especialista
em derrotas diplomáticas, sendo que não precisou de mais pistas
para reconhecer aquela que seria a última.
– Não nos vão apoiar, não é? – Espantou-se com a sua própria
serenidade, com o aprumo com que proferiu aquelas palavras, como
se os seus lábios conseguissem cinzelá-las, gravá-las para sempre
num pedaço de granito. – Agora também não. Deixam-nos sozinho,
como sempre.
Meg dirigiu-se devagar até à mesa, sentou-se, pousou a mão
direita na cadeira a seu lado.
– Anda – disse-lhe. – Senta-te.
Meia dúzia de passos bastaram para que se sentisse mais velho,
mais cansado do que em qualquer um dos fracassos anteriores,
porque nunca se tinha envolvido tanto, porque nunca cumprira tão
bem o que lhe haviam pedido, mas, sobretudo, porque tinha a
certeza de que acabara de queimar o último cartucho. Tinha
chegado ao fim do caminho e a meta era-lhe tão familiar, tão
semelhante às que finalizaram as etapas anteriores, que se
perguntou se haveria algum motivo para continuar ali. Pressentiu
que não ouviria nada diferente do que já ouvira antes, tantas vezes,
em Genebra, em Londres, em Genebra novamente, e calculou que
a saliva que iria gastar seria um desperdício supérfluo, o preço de
um esforço agónico e estéril, condenado ao fracasso. Enquanto
hesitava entre sentar-se ou não, as pernas roçando o rebordo da
cadeira, fez um balanço amargo. Tinha esperado muito tempo,
corrido muitos riscos, engolido mais sapos do que nunca para
chegar àquele lugar, àquele momento, e não tinha qualquer vontade
de continuar ali.
O ambiente daquele bar conhecido ficou de súbito impregnado
de um ar turvo, insalubre, que o impedia de respirar. O teto parecia
mais baixo, as paredes mais próximas, a música, o guincho
insuportável de uma centena de trompetas agudas e estridentes. As
cores e as formas dos móveis desenhavam uma paisagem tão hostil
como se aquele lugar fosse seu inimigo, ou um amigo leal que
estivesse a alertá-lo a tempo para os perigos abomináveis que
espreitavam, os argumentos que derramariam sobre ele como uma
avalancha de rochas vorazes, dispostas a sepultá-lo sem piedade
caso não saísse dali a correr. Enquanto isso, a calle Lavalle
chamava por ele. Ouvia a sua voz, um sussurro quente que lhe
indicava a senda da única salvação possível, que o impelia a
avançar entre tantas mulheres bonitas, com os braços nus, no
entardecer tépido de uma primavera que prometia um verão
indubitável, sufocante, que o mandava procurar Simona Gaitán,
encontrá-la, refugiar-se na sua cama, cobrir-se com os seus lençóis,
abraçá-la antes de cair num sono profundo e nunca mais acordar.
Era isso o que queria fazer e, contudo, sentou-se, olhou para Fred
Goodwin, para Meg Williams, e ele próprio serviu o veneno,
enchendo até à borda o copo que deveria beber.
– Os crimes de guerra não bastaram, pois não? Milhões de
mortos inocentes, centenas de assassinos impunes a passear-se
pelo mundo, como se lhes pertencesse, graças à proteção do
assassino de El Pardo e à hospitalidade do Perón. No fim de contas,
o que é que isso significa? Nada, um pequeno inconveniente da
História, um acidente…
– Não digas isso, Manolo. – A voz de Meg definhara como se as
palavras que acabava de ouvir a tivessem contagiado com a doença
misteriosa a que o bar tinha sucumbido antes dela.
– E que queres que diga? – A amiga não respondeu, nem sequer
o olhou e ele percebeu porquê e para que é que tinha ficado. –
Deixa-me falar, pelo menos. Falar é a única coisa que posso fazer,
porque sou espanhol, um pária de merda, um cidadão de quinta
categoria, um desgraçado que teve a pouca sorte de nascer num
país que não interessa a ninguém.
– Não se trata disso. – Goodwin interveio num tom tão cauteloso,
tão objetivo e civilizado, que Manolo teve de reprimir o impulso de
lhe dar um tabefe. – O mundo mudou. O Estaline é o motivo…
– O Estaline ganhou a guerra para vocês. – Os dentes rangeram-
lhe com o esforço de cuspir as palavras sem gritar. – Sem o Estaline
nunca teriam entrado em Berlim. Nessa altura, não vos interessou
que fosse um tirano, ou não sabiam?
– O mundo mudou – repetiu Goodwin.
– E como! Agora mimam os vossos inimigos, investem milhões
de dólares em Itália, na Alemanha, na Áustria, transformaram-nos
em países democráticos, devolveram-lhes a independência, a
dignidade e o orgulho. Mas nós, espanhóis, não merecemos tanto,
não merecemos nada, embora tenhamos sido os únicos a lutar
contra o fascismo. Se calhar, foi esse o nosso pecado, termo-nos
atrevido a ser antifascistas sem contar convosco, sem vos pedir
licença, sem vos implorar ajudinhas providenciais, esses
desembarques que não teriam valido a ponta de um corno se o
Estaline não tivesse avançado pelo Leste. Como nos atrevemos a
não vos dever nada, agora o amigo dos vossos inimigos é vosso
amigo, e os inimigos do Franco são os vossos. É preciso ter lata!
Estava tão embalado que nem reparou no volume, na espessura
da língua dentro da boca, no travo ácido que lhe deixou aquela
verdade imutável, sepultada havia dez anos sob a esperança
ilusória de um final feliz que nunca chegaria. Durante mais de dez
anos, engolira-a enquanto assistia impassível às lágrimas de
crocodilo de todos aqueles homens, de todas aquelas mulheres que
levavam um lenço aos olhos ao ouvirem a palavra Espanha, e que
imploravam a sua compreensão face ao dilema trágico que os
levava a recusar novamente a sua ajuda. Durante mais de dez anos,
sacrificara a verdade à esperança, um oceano de fé, que, depois de
1945, tinha encolhido até caber, com uma folga progressiva, numa
tubagem cada vez mais estreita, finalmente numa torneira inútil,
avariada, que foi pingando uma vez por outra até ficar
completamente vazia, seca para sempre, num bar de Buenos Aires.
A esperança tinha acabado de morrer e deixava um órfão que
precisava de a chorar, de fazer o luto, de se despedir dela
dignamente. Para isso havia ficado, por isso falava, para presidir à
cerimónia de uma verdade que, naquela tarde, naquele lugar, só ele
podia oficiar. E falar doía-lhe, mas não estava disposto a calar-se,
porque as palavras eram a última propriedade que mantinha, o
único bem com que poderia encher a sua mala de apátrida, o
instrumento derradeiro da sua memória que ainda o poderia ajudar a
dizer o seu verdadeiro nome, o apelido do pai, da mãe, a identidade
que tinha queimado, juntamente com a juventude, no altar ingrato da
esperança. Não estava disposto a renunciar a essas palavras, que
fluíam livres, como se navegassem num rio de azeite que lhe
inundava a cabeça, ligando-lhe o cérebro à boca, como se
soubessem escolher-se a si mesmas, atropelando-se umas outras
até comporem frases completas que teciam um discurso que nunca
lhe parecera tão nítido, tão esmagadoramente poderoso, tão exato,
como naquele dia em que a verdade já não servia para nada, para
nada.
– O fascista que triunfou com a ajuda do Eixo esmaga com a sua
bota um país inteiro, semeado de cadáveres, e vocês dão a volta a
qualquer lógica, abençoam-no, apoiam-no, não estão dispostos a
incomodá-lo, nem a ele, nem aos criminosos que protege. E nós,
espanhóis, continuamos a ser tão estúpidos, tão ingénuos, que
arriscamos a vida todos os dias, esperando que vocês se deem
conta de que existimos. Mas não, porque para nós o mundo não
mudou e não mudará. O mundo não muda quando se vive numa
ditadura. Em Espanha, todos os dias são o mesmo dia, mas vocês
estão-se nas tintas para isso porque há sempre um inimigo novo,
um assassino mais odioso, um perigo mais urgente. E podem
sempre dizer que a culpa é nossa, porque a República se atirou
para os braços da União Soviética quando não havia nenhum outro
lugar no mundo a que pudéssemos recorrer, quando vocês nos
fecharam todas as portas, tendo o cuidado de deixar abertas de par
em par as que o Hitler e o Mussolini usaram para ajudar o Franco. O
nosso erro foi lutar, tentar viver, não querer morrer. Ter-nos-ia
corrido melhor se tivéssemos morrido. Com meio metro de terra em
cima já teríamos merecido ser vossos aliados. Isso já eu sabia, com
isso já eu contava, mas não esperava que as pilhas de cadáveres
das câmaras de gás mexessem tão pouco convosco como nós. Que
ingenuidade… No fim de contas, os judeus que morreram, mortos
estão, e aos que continuam vivos vocês já fazem muitas
homenagens. Portanto, que mais querem?
Nesse momento, calou-se. Disse o que tinha a dizer e teria
continuado durante horas, porém as razões do seu silêncio não se
prendiam com as palavras, mas com o corpo. Não se lembrava da
última vez que tinha visto aquele véu húmido embaciar-lhe os olhos
como uma cortina feia, esbranquiçada. Não sabia quantos anos teria
vivido sem sentir aquela congestão peculiar no nariz, a contração de
uns lábios que se franzem por iniciativa própria, sem que ele o
tivesse ordenado. Tinha passado tanto tempo que não conseguia
calcular, nem sequer aproximadamente, a data em que chorara pela
última vez, mas estava quase a chorar e não queria fazê-lo ali.
– Vou-me embora. – A voz quebrou-se contra a sua vontade. –
Tenho muito que fazer.
Olhou para a mesa, calculou o preço de um copo de vinho em
que não chegara a tocar, tirou a carteira, separou alguns pesos e
deixou-os. Depois tentou levantar-se, mas não o conseguiu
totalmente porque Meg lhe agarrou no pulso, o puxou para baixo, o
obrigou a sentar-se novamente e prendeu as mãos dele nas suas,
como se quisesse certificar-se de que ele não fugiria.
– Não vás, Manolo. – A súplica estava envolta no eco gutural,
quase cavernoso, que ele tivera tanto cuidado em evitar. – Por favor,
não vás. Continua a falar, diz o que te apetecer, porque tens razão.
Eu sei que tens razão e não posso deixar que te vás embora assim
porque concordo contigo, porque o que aconteceu me dá tanto nojo
como a ti. – Ela não se importou de chorar diante dele. – Eu teria
feito qualquer coisa… Tu sabes… diz-me que sabes.
O choro de Meg pulverizou-lhe a raiva, limou-lhe as arestas do
estado de espírito, nivelou-lhe a indignação, mergulhando-o num
pântano húmido e descomedido, numa lama pestilenta, espessa,
fria, que o privou do consolo do grito. Dando-lhe razão, Meg
concedia-a a si própria, e Manolo sabia que era sincera, mas até a
sua sinceridade lhe doía, o feria como um pau aguçado que entre
cada um dos seus soluços lhe penetrasse um pouco mais na
garganta, removendo a mágoa, uma tristeza que foi ficando mais
funda, mais densa, até, querer afogar numa orfandade sem limites.
Sentia que não podia mais, mas que tinha de poder, tinha de pensar
em Azcárate, em Guillermo, na melhor maneira de neutralizar a
operação paralela que ele próprio tinha posto em marcha. Precisava
de fazer muitas coisas antes de ficar a sós com a sua culpa, antes
de aprender a viver com a lembrança daquela iniciativa que lhe
havia parecido tão brilhante e que só servira para derramar infâmia
sobre a infâmia, fracasso sobre o fracasso. Tinha muito em que
pensar, muito que fazer, e não podia ficar ali a ver Meg chorar,
dividido entre a vontade de a abraçar e a certeza de que não era
capaz de o fazer, paralisado e tão só como se não houvesse outro
igual a si no mundo.
Porém, Fred Goodwin tomou a palavra a tempo e, enquanto o
ouvia, Manolo percebeu que, depois daquele dia, ela enxugaria as
lágrimas e regressaria ao trabalho, como Fred, e que ambos
desempenhariam outras tarefas em novos destinos, em lugares
seguros, onde se sentiriam úteis a combater as injustiças do mundo
e adormeceriam facilmente, sem assumir as culpas que ninguém
lhes poderia atribuir. Porque as guerras se ganham ou se perdem, e
Manolo Arroyo Benítez, cujas culpas nunca seriam perdoadas,
jamais conseguiria viajar no barco dos vencedores. Isso não tornava
Meg menos sincera, menos solidária ou menos apaixonada pela
causa de Espanha, porém a intervenção do colega afastou o pranto
e tornou-lhe as coisas mais fáceis.
– Apesar de tudo, devo dizer-te que, em Washington, estão
muito impressionados com o teu trabalho. – Os olhos do falso
jogador de polo estavam secos, o sotaque caribenho, intacto. –
Mesmo que penses, neste momento, que não serviu de nada, o que
fizeste foi uma verdadeira façanha. Os meus superiores estão
dispostos a tirar-te da Argentina quando quiseres, amanhã mesmo,
se for preciso. – Os lábios dele curvaram-se num sorriso de
satisfação que o interlocutor não conseguiu justificar. –
Encarregaram-me de te oferecer também a cidadania norte-
americana e de te comunicar o seu interesse em que te juntes à
nossa equipa. É uma grande oportunidade para ti. Trabalhar
connosco seria uma maneira excelente de continuar a pressionar…
– Não continues, nem te dês ao trabalho.
Finalmente, Manuel Arroyo Benítez levantou-se, como se as
palavras do diplomata tivessem ativado uma mola escondida na
cadeira, e por instantes voltou a sentir-se forte, apesar de se dar
conta de que a energia que o impelia era uma torrente escura, uma
água suja, uma má companhia, muito diferente daquela que sentira
no início da reunião.
– Nunca trabalharei para vocês. E se algum dia…
Esteve prestes a proferir em voz alta que se algum dia tivesse
oportunidade de trabalhar para os russos, o faria só para os lixar, o
que era verdade, mas engoliu-a, como engolira outras verdades
tantas vezes. O hábito da esperança, concluiu, um milésimo de
segundo antes de perceber que aquele velho hábito lhe havia
salvado a vida.
– Se algum dia precisarem de mim – corrigiu-se de caminho,
impondo-se à amargura que não lhe tinha permitido pensar com
clareza –, já sabem onde estou. Para o ano faço quarenta anos e
sinto-me demasiado cansado para recomeçar do zero. Por isso,
neste momento, a tua oferta não me interessa. – Goodwin olhou
para ele com uma expressão tão perplexa como se achasse
inconcebível que alguém no mundo recusasse todos os termos da
sua proposta. – Nunca é uma palavra muito longa, talvez me tenha
enganado ao usá-la. Se mudar de opinião, saberão, mas agora
tenho de me ir embora, a sério. Estou atrasado.
Inclinou-se para beijar Meg na cabeça, contornou a mesa e
dirigiu-se para a porta, que estava muito mais perto do que receara
enquanto a olhava de longe, naquele bar que parecia uma
masmorra. Chegado à rua, parou por instantes, encheu os pulmões
com o ar da Lavalle e, nessa pausa, ela alcançou-o.
– Espera, Manolo, enlouqueceste? – O assombro apagou os
vestígios do choro nos olhos dela, tornando-os maiores, mais claros.
– Não podes ficar aqui sozinho, na Argentina… Que vais fazer?
– Não estou sozinho, Meg. – Manolo estendeu o braço e
acariciou-lhe a cara. – Vou viver, simplesmente. O Fred não te
contou que sou professor de línguas numa escola? Acabam de me
promover a chefe de estudos e estou a ganhar quase o dobro do
que quando comecei.
– Sim, mas… Não percebo. – Enquanto balbuciava, olhando
para o céu, para o chão, para um lado e para o outro como se não
houvesse frente, ele tirou um cartão de visita de um dos bolsos e
estendeu-lho.
– E isto é para quê?
– Para que saibas onde estou. Se acontecer alguma coisa
estranha, espero poder contar contigo. – Ela assentiu com a cabeça,
ele beijou-a nos lábios, começou a recuar, tendo plena consciência
de que se afastava para sempre daquela mulher. – Amo-te muito,
Meg. Telefona, se voltares algum dia.
Começou a andar e fê-lo durante muito tempo, até ter à sua
frente só água. Sentou-se ali num banco e, finalmente, chorou,
deixando sair todas as lágrimas, sem tentar retê-las, sem limpar a
cara, sem se preocupar com os transeuntes que paravam para o ver
e seguiam caminho sem lhe dizer nada. A sós com o seu
desconsolo, sentia que o pranto desembocava no Rio da Prata, e
esse destino parecia-lhe bom, justo. Com essa convicção levantou-
se e fez o percurso inverso, diretamente para casa.
Dona Encarnación alarmou-se ao vê-lo chegar e ofereceu-lhe
todos os remédios caseiros de que se lembrou para pôr fim a uma
doença a que não conseguiu dar nome, mas de cuja virulência não
duvidava, porque não lhe ocorria outra explicação para uma
mudança tão profunda como a que tinha vergado os ombros,
apagado a pele e escurecido as pálpebras de um homem que, de
manhã, estava fresco como uma rosa. O hóspede respondeu-lhe
que só precisava de dormir mais. Não tinha marcado encontro com
Simona para aquela noite porque pressentira que a reunião, feliz ou
lastimável, seria longa. Quando se meteu na cama nem sabia que
horas eram. O sono fulminou-o quase instantaneamente e, ao
acordar, surpreendeu-se com o caudal de luz que lhe entrava pela
janela. Eram quase onze da manhã e o seu corpo respondeu muito
melhor do que o espírito ao desafio de continuar a viver sem
esperança.
Depois do pequeno-almoço, arrependeu-se de se ter despedido
de Meg sem antes de lhe perguntar se mantivera contacto com
Azcárate. Poderia localizá-la facilmente através de Goodwin, mas já
se tinha despedido e qualquer novo contacto, mesmo telefónico, só
mancharia aquele adeus limpo e triste. Depois de descartar essa
ideia, foi dar um passeio, porque andar sempre o havia ajudado a
pensar, e chegou a várias conclusões.
A conclusão fundamental advinha da sua longa experiência em
organizações secretas, onde o agente colocado em território hostil
era sempre, como os maridos cornudos, o último a saber. Onze
meses pareciam-lhe um período demasiado longo para se avaliar
um relatório, por mais transcendentes que fossem as
consequências. Em Washington teriam tomado uma decisão com
bastante antecedência e Meg decerto informara Azcárate antes de
apanhar o avião para Buenos Aires, não tanto para lhe dar as más
notícias pessoalmente, mas para apoiar Goodwin na missão de o
recrutar. Essa era a sua segunda conclusão. Os amantes sempre
foram úteis neste tipo de conjunturas, e ela tinha muitos motivos
para colaborar porque, uma vez posta de parte a intervenção em
Espanha, Manuel Arroyo Benítez era muito mais perigoso pelo que
poderia contar do que valioso pela qualidade do seu trabalho e, se
desse com a língua nos dentes, Margaret C. Williams encabeçaria
uma longa lista de lesados.
Nessa manhã, enquanto procurava uma florista sem se voltar
para confirmar se alguém o seguia ou não, Manolo calculou que,
durante algum tempo, viveria vigiado. Não o inquietou porque não
lhe interessava a vingança pessoal. Trabalhara, arriscara-se pelo
seu país, para atingir um objetivo concreto que não se cumpriria.
Não lhe seria difícil publicar o que sabia, de facto bastava-lhe enviar
o relatório para qualquer jornal, mas a contrapartida mais óbvia seria
a morte às mãos dos antigos aliados contra o fascismo, dos inimigos
nazis de ontem ou dos atuais protetores argentinos, sendo que não
estava disposto a deixar-se matar por tão pouco. Caminhando por
Buenos Aires numa manhã esplêndida, enquanto se congratulava
por ter sido capaz de morder a língua a tempo antes de mencionar
os russos diante de Goodwin, perguntou-se se alguém teria
pensado em eliminá-lo como medida preventiva. A resposta foi que
era o mais provável, embora devessem ter descartado
imediatamente a hipótese por não ser uma boa jogada. Nem sequer
Meg sabia quantas pessoas estavam a par da missão e a reação de
Pablo de Azcárate, do respetivo posto nas Nações Unidas, poderia
complicar muito as coisas. Vigiá-lo à distância, antecipando
qualquer movimento suspeito antes que ele pudesse agir, era uma
opção muito melhor.
Com essa certeza, enquanto esperava que a florista acabasse o
enorme buquê, juntando os dois que tinha escolhido, Manolo
pensou que o principal problema que enfrentava residia na
segurança de Guillermo. Os relatórios de Burnham haviam estado
sempre condicionados à resposta de Washington, a rede Stauffer
era a operação principal e o seu chefe, um homem demasiado
inteligente, experiente e responsável para usar os relatórios do
funcionário de La Meridiana enquanto o autor vivesse em Espanha.
Tinha a certeza disso, no entanto, ante a ideia de que Guillermo não
sobreviveria vinte e quatro horas se em Madrid descobrissem a
impostura, sentiu um calafrio mais violento do que qualquer outra
sensação física de que tivesse padecido desde a tarde anterior, uma
pontada de terror que lhe provou que a mente e o corpo se haviam
reequilibrado.
Saiu da florista com um ramo tão grande que precisou dos dois
braços para o transportar e regressou a casa. Depois de o meter
num balde cheio de água porque não cabia em jarra alguma,
fechou-se no quarto para escrever uma carta curta, que prometia
uma continuação mais pormenorizada. Dirigiu-a a Mister Pablo de
Azcárate y Flórez, nos escritórios da Comissão da Palestina da
Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque, e voltou a sair a
fim de a deixar na Central de Correios com a tarifa mais urgente de
entre as disponíveis. Nessa altura, já tinha recobrado a serenidade
suficiente para compreender que a venda do tesouro nazi gozaria
sempre da mesma blindagem dos criminosos de guerra que Franco
protegia. A resposta tranquilizadora de Azcárate começava e
terminava com uma frase, não te deixes ir abaixo, Manolo, que o fez
sorrir. Já chegara ao fundo mais fundo que conhecia, no entanto
podia ter corrido bastante pior porque Simona gostou muito mais
das flores do que da proposta de casamento.
– Reparaste no meu cabelo, galego? – As pontas já lhe
chegavam aos ombros. – Isso significa alguma coisa, percebes?
Amo-te, amo-te muito, mas… Porque te queres casar? Estamos
bem assim, não achas?
Manolo estudou-a e, enquanto calculava que parte da verdade
lhe poderia contar, não teve consciência da transfiguração que lhe
ocorria no rosto. O único espelho disponível era o olhar de Simona,
e não precisou de outro.
– Está bem, está bem. – Ela levantou-se e sentou-se nos joelhos
dele, abraçando-o. – Não olhes assim para mim, galego. Casamo-
nos, se é o que queres, casamo-nos, mas tira-me essa cara triste,
por favor…
Quando ela aceitou, ele contou-lhe tudo, sem saber muito bem
porque o fazia. Quem era, como se chamava, onde nascera, em que
trabalhava, porque tinha chegado a Buenos Aires e quanto
significava para ele o seu amor. Enquanto falava, a luz do dia foi-se
extinguindo, a noite chegou e caiu completamente antes de que ele
acabasse de falar. Simona ouviu-o calada, os olhos esbugalhados e
a emoção crescente de um ser que foi infeliz e se reconhece na
desdita de outra pessoa capaz de lhe dar felicidade. O seu silêncio
concentrado, compacto, foi mais eloquente do que as lágrimas que
lhe cobriam os olhos de vez em quando, sem nunca ultrapassar a
barreira das pálpebras, como tinha acontecido na noite em que fora
ela a contar a sua história. De seguida, só lhe perguntou uma coisa.
– E como devo tratar-te agora? Manolo?
– Não. – Ele sorriu. – Prefiro que continues a chamar-me galego.
– Anda, galego. Leva-me para a cama.
Manuel Arroyo Benítez sempre tivera muito azar e muita sorte,
mas, ao longo de mais de vinte anos, atreveu-se a pensar que o
primeiro, farto de desgraças, se rendera.
É 12 DE JANEIRO DE 1951 E OTTO SKORZENY ATERRA EM MADRID.
Nesse dia, como se de uma estrela de cinema se tratasse, a
agência EFE dá conta da sua chegada num avião das linhas
regulares, proveniente de Estugarda. Pouco depois, o Ministério de
Exteriores pede informações sobre o recém-chegado a Antonio
María Aguirre y Gonzalo, representante franquista na recém-criada
República Federal Alemã. Aguirre confirma que Skorzeny entrou em
Espanha com um visto válido que lhe havia sido concedido graças
ao seu objetivo de criar uma empresa de engenharia em Madrid
com o apoio de um banco industrial espanhol cujo nome não cita.
No entanto, menciona entre os patrocinadores o doutor Schacht e a
condessa Von Finkenstein. De seguida acrescenta que, ao que
parece, dispõe de um exército pessoal de duzentos mil homens,
dispostos a mudar-se para Espanha mal ele lhes peça. Nesta breve
mensagem a verdade e a mentira confundem-se, forjando em igual
a lenda perdurável de Otto Skorzeny.
Em 1948, quando recupera definitivamente a liberdade, o
financeiro Hjalmar Schacht, principal economista do Führer, funda
um banco próprio e começa a trabalhar como assessor de países
em desenvolvimento, função que lhe permite manter uma relação
estreita com o governo de Madrid. A sua sobrinha, Ilse Lüthje,
condessa Von Finkenstein por casamento com um aristocrata
prussiano, é a proprietária da herdade na Baviera onde Otto
Skorzeny se esconde no verão daquele mesmo ano, depois de uma
fuga misteriosa da cadeia de Darmstadt. Na verdade, as autoridades
do estabelecimento haviam-no entregado, sem perguntas, a três
presumíveis oficiais aliados que o ajudaram a desaparecer ao invés
de o transferirem para outra prisão. Ali, e embora também ele seja
casado, o fugitivo e a sua benfeitora dão início a um idílio
apaixonado. Nessa história de amor, perde-se a pista de Scarface
durante mais de dois anos.
Em fevereiro de 1950, a capa do jornal francês Ce Soir publica
uma fotografia onde Skorzeny aparece em Paris com uma mulher
que não é Ilse. O escândalo obriga-o a fugir, decerto rumo à
Alemanha, onde, a 7 de setembro, o consulado espanhol em
Frankfurt emite um visto em nome do cidadão alemão Rolf
Steinbauer, que nos últimos dois anos diversas testemunhas já
situavam em Madrid. Na fotografia, Skorzeny aparece de frente,
com uns óculos de massa, cuja sombra dissimula a cicatriz do rosto,
e com o cabelo pintado de louro. Usa a mesma roupa de outra
fotografia, uma pose diferente da mesma sessão, que figura num
documento de identidade alemão emitido em Freiburg, no mês de
fevereiro de 1950, em nome de Hans-Rudolf Frey. Diversos indícios,
entre eles o testemunho de um piloto da linha aérea FAMA que o
reconhece entre os passageiros de um voo Madrid-Buenos Aires,
sugerem que, além de passar temporadas na Alemanha e em
Espanha, Skorzeny/Steinbauer/Frey visita a Argentina nessa época.
Anos depois, afirma numa entrevista que em 1947 não tem outro
remédio senão dormir com Evita, numa ocasião propícia em que a
encontra sozinha em Buenos Aires, para afastar o boato de que o
verdadeiro objetivo da estada dela em Genebra, durante a sua
célebre viagem à Europa, residia em levantar o dinheiro depositado
pelo Terceiro Reich em diversos bancos suíços. Esta presumível
façanha sexual de um homem que nunca desperdiça uma
oportunidade para alimentar a sua lenda é o único ingrediente
fabuloso do périplo triangular bastante verosímil que, à exceção de
uma escapadela parisiense, divide a vida de Otto Skorzeny entre a
Alemanha, a Espanha e a Argentina, desde o verão de 1948 ao
inverno de 1951.
Antes de sair da Alemanha, Otto decide divorciar-se da segunda
mulher e unir-se a Ilse. A condessa Von Finkenstein, que depois do
divórcio continua a usar o título por iniciativa própria, antecipa-se-lhe
e espera-o em Madrid. Quando Otto/Rolf chega, ela já comprou uma
villa com jardim em El Viso. Até à morte dele, aquela será a casa do
casal que, apesar dos divórcios acumulados por ambos, se decide
por um casamento católico – o único disponível – em Madrid, em
1954.
A hospitalidade que o regime de Franco disponibiliza ao «homem
mais perigoso da Europa» é tal que, a 18 de maio de 1951, lhe
fornece um passaporte especial, onde figura com o seu nome
verdadeiro, Otto Skorzeny, a data de nascimento verdadeira – 12 de
junho de 1908 –, o local verdadeiro – Viena – e a condição de
apátrida. Na linha reservada à profissão consta que é engenheiro e,
como morada, surge a da empresa que funda, efetivamente, pouco
depois de chegar. O facto de na documentação dessa sociedade
surgir como Rolf O.S. Steinbauer não acarreta quaisquer problemas,
nem para obter esse passaporte, nem para a bem-sucedida carreira
empresarial que faz dele milionário graças ao apoio de Schacht, ao
seu papel de intermediário junto das companhias alemãs de aço e
às inúmeras concessões de obras públicas obtidas pela sua
empresa.
Esta é a informação verdadeira que Aguirre transmite a Martín-
Artajo em janeiro de 1951. Os duzentos mil homens preparados
para agir no instante em que Otto estale os dedos são uma fantasia
ligada ao mito de ODESSA, a organização omnipotente, opulenta e
invencível que Frederick Forsyth torna universalmente famosa em
1972, num romance em que a figura do principal vilão é inspirada
em Skorzeny.
Hoje em dia, os estudiosos descartam a existência de uma
Organisation der ehemaligen SS-Angehörigen (Organização dos
Antigos Membros das SS), mas Skorzeny surge ligado às redes de
evasão de nazis desde muito cedo. Em 1947, prisioneiro em
Dachau, organiza fugas com a cumplicidade de alguns guardas
polacos. Pouco depois, funda Die Spinne, A Aranha, rede que
facilita a evasão de fugitivos para Itália, onde conta com a ajuda de
dois bispos da cúria romana, o nazi austríaco Alois Hudal e o
ustacha croata Krunoslav Draganović, na gestão dessas fugas para
a América do Sul. Apesar de existirem muitas outras, algumas com
nomes tão pitorescos como Spanien oder Tod (Espanha ou Morte),
a única organização que concorre com a trama vaticana, superando-
a em dimensão e eficácia, é a que Clara Stauffer dirige em Madrid.
Ambas as redes, que mantêm uma colaboração habitual e partilham
a hospitalidade que a Argentina oferece aos protegidos, se afiguram
como o que de mais próximo à romanceada ODESSA existe na
realidade, um êxito perentório de eficácia e impunidade só
interrompido em 1955, quando um golpe de Estado militar derruba o
general Perón.
Skorzeny considera Espanha o sítio ideal para instalar um
quartel-general anticomunista universal, sendo que, ao longo dos
anos 50 promove a criação da «Legião Carlos V», um corpo do
Exército integrado por fascistas espanhóis e nacional-socialistas
alemães, pronto a agir quando eclodisse a Terceira Guerra Mundial.
Não consegue fazê-lo, ainda assim, continua a viver bem e a ganhar
dinheiro a rodos em Espanha, onde publica as suas memórias, na
tentativa de promover a sua fama de herói lendário. Não deixa de o
fazer até à morte, em Madrid, a 7 de junho de 1975, quatro meses
antes de esta dar conta do seu protetor.
A fama sobrevive a tal ponto que atualmente se pode ler na
internet que a sua morte foi uma patranha. Que, em 1999, depois de
trabalhar muitos anos nos Estados Unidos como carpinteiro, volta a
aparecer. Que confessa, então, que a sua derradeira missão
consistiu em ajudar o Führer a fugir de Berlim, vivinho da silva, num
avião pilotado por Hanna Reitsch, depois de alvejar na testa o seu
duplo no bunker da Chancelaria. E que assassinou o genial físico
sérvio Nikola Tesla, asfixiando-o com as próprias mãos no quarto do
Wyndham New Yorker Hotel, onde uma empregada encontra o
corpo sem vida a 7 de janeiro de 1943.
O facto de alguém se atrever a publicar, mesmo na internet, que
um oficial das SS, a um escasso mês da derrota de Hitler em
Estalinegrado, se passeia por Nova Iorque, onde comete um crime
irrelevante para o curso da guerra, regressando à Europa ileso,
como se voasse qual Super-Homem, ilustra o cariz das histórias
fabulosas e das conspirações mitológicas que Otto Skorzeny
continua a inspirar no século XXI.
MADRID, 21 DE OUTUBRO DE 1952

No início do mês, La Meridiana estreou a nova sede, um rés-do-


chão com acesso ao exterior, situada no fim da calle Almirante,
quase em Recoletos. Ainda não tivera tempo para abrir todas as
caixas que se amontoavam no meu gabinete quando o telefone
tocou.
– A Amparo Priego veio à tua procura há cinco minutos. Estava
muito nervosa e tinha os olhos inchados de chorar, mas não me quis
dizer o que se passava. Só me disse que era urgente, que tinha ido
a Alcalá e que o porteiro não lhe soube dizer para onde se tinham
mudado. Dei-lhe a morada e ela foi-se embora a correr. Não tarda
nada está aí.
O som daquele nome na voz da Rita era uma incongruência tão
grande que me fulminou, como se conseguisse traçar uma linha que
me dividisse a vida em duas partes capazes de se anular,
desterrando-me para uma terra de ninguém, de onde não fui capaz
de responder.
– Guillermo, estás aí?
– Hã… – Ainda demorei uns segundos a confirmar. Sim, mas… É
que não… Como sabe onde vivemos?
– Adivinha.
No verão de 1950, apercebi-me com espanto de que haviam
passado quase quinze anos desde as minhas últimas férias.
– Se preferires, poderíamos ir a Maiorca – No início de agosto,
eu andava há duas semanas a falar sozinho. A Rita ouvira-me como
se nada fosse. – Podíamos alugar uma casinha numa vila afastada,
perto do mar. Não acredito que os camponeses nos peçam o livro
de família e, se eu pagar…
– Temos de conversar, Guillermo.
Estávamos numa esplanada de Rosales, aproveitando a trégua
de um entardecer nublado, ventoso, depois de um dia de calor
infernal. Eu tinha pedido o mesmo de outras vezes, dois vermutes
de barril e umas batatas fritas, mas ela apressou-se a corrigir-me e
explicou ao empregado que queria uma horchata. Era novidade,
mas desvalorizei de tal forma que quando me interrompeu já me
tinha esquecido. Não me passou, porém, inadvertido o facto de me
ter tratado pelo verdadeiro nome porque, como se se tivessem
conhecido, a minha namorada usava o código iniciado por Manolo e,
fora da cama, só me chamava Guillermo quando tinha alguma coisa
grave ou importante para me dizer.
– Estamos a conversar, Rita. – Comecei a transpirar sem mais
razões além do som do meu verdadeiro nome e do escurecimento
repentino dos seus olhos, que se transfiguraram de súbito, quase à
traição, num negro total.
– Está bem, mas temos de falar de outra coisa.
Olhou para mim como se conseguisse ver-me por dentro. Tinha-
me dado conta de que, além de distraída, andava há alguns dias
muito séria, um estado pouco frequente nela. A princípio, supus que
se tratasse de problemas no Partido, mas perguntei-lhe se tinha
havido alguma prisão e ela negou. Se a mãe ou qualquer outra
pessoa próxima estivesse doente, ter-me-ia consultado, pelo que
julguei que aquilo se prendia com as férias, embora não percebesse
porque lhe era tão difícil decidir-se. Até me ter dito que
precisávamos de conversar e a minha mente sucumbir a um acesso
de pânico que a paralisou, deixando-me sozinho com uma única
possibilidade. Por instantes, tive a certeza de que a Rita me ia
deixar, de que só me diria que tinha conhecido outro homem, um
comunista legítimo e atraente, daqueles anteriores à guerra, um
lutador clandestino que entrara ilegalmente no país, com uma
pistola e uma lenda com as quais eu nunca poderia competir.
Enquanto decidia que não poderia haver outra explicação, tentei
imaginar a minha vida sem ela e não consegui ver nada, nem as
folhas das árvores que se agitavam ao capricho da brisa, nem os
prédios que se erguiam do outro lado do passeio, nem sequer a
mesa à nossa frente. Condenado a trevas sem limites, vi, no
entanto, as sobrancelhas dela arquearem-se e não fui capaz de
abrir a boca.
– Estou grávida.
– Ah! – O alívio não me permitiu avaliar as consequências
daquela revelação, mas desenhou-me nos lábios um sorriso de que
não tive consciência. – É isso.
– Pois, é isso. – Se a minha resposta não a tivesse espantado
tanto, ter-se-ia aborrecido comigo. – Que se passa, achas divertido?
– Não, não, não, não – apressei-me a responder –, não acho
divertido, mas é melhor do que… Quando me disseste que
precisávamos de falar, julguei que me ias deixar.
– Que te ia deixar? – Fechou a boca, desatou a rir, e eu, que
sentira tanta falta daquele sorriso nos últimos segundos, vi o céu a
abrir-se para o absorver, espalhando-o sobre o mundo como um
prémio que a minha estupidez não merecia. – Podes esperar, mas
não vais ter essa sorte. Estás ediota ou quê?
– Não. Quando muito, estou idiota.
– Foi isso que disse.
– Não, disseste ediota. – O meu sorriso recuperou o poder de
convocar o dela. – Quando és castiça não pronuncias bem, mas não
tem importância. Gosto muito de ti peixeira, já sabes.
– Pois olha que… – A minha reação, apesar de parva,
tranquilizara-a sem lhe dissipar a preocupação. – Além da minha
pronunciação incorreta, que vamos fazer?
– Depende. Queres outra horchata?
Negou com a cabeça enquanto eu pedia um segundo vermute
para ganhar tempo, no entanto, embora tivesse adorado escrever a
minha intervenção, não me restou outro remédio além de improvisar.
– Depende de quê? – Porque ela me apressou, mal o
empregado nos deixou sozinhos.
– Depende do que tu quiseres e do que esperares de mim. Se
estiveres a falar com o médico, eu… – E não foi nada fácil. – Podia
tentar… Podia provocar-te um aborto. Não é a minha especialidade,
mas nestes últimos anos tive de o fazer algumas vezes pelos teus
camaradas e correu bem. – Olhei para ela e vi que ante aquelas
palavras não moveu um único músculo do rosto. – Era o que te diria
se fosses minha paciente. Tens vinte e seis anos, és saudável, não
há razões para haver problemas.
– Mas não sou tua paciente.
– Claro que não. Por isso, se queres saber o que penso…
adoraria que essa criança nascesse, Rita. Gostaria de viver contigo,
de o trazer ao mundo, de o ver crescer. Já sei que tenho o defeito
de não ser comunista, mas se puderes perdoar-me… poderíamos
casar-nos.
– E assim não teríamos qualquer problema em veranear em
hotéis – sugeriu com uma expressão trocista, que me revelou
finalmente o que queria ouvir.
– Não – respondi, acatando escrupulosamente a sugestão. –
Assim eu seria feliz todas as noites ao deitar e todas as manhãs ao
acordar ao teu lado. Porque nunca amei ninguém como te amo a ti.
– Ainda bem que emendaste a mão. – Aproximou a cadeira da
minha, inclinou-se sobre mim e beijou-me nos lábios. – Porque isto
não estava a ser nada romântico.
– Se quiseres, ponho-me de joelhos.
– Isso ficaria bem, estás a ver? – Sabia que ela não falava a
sério, mas levantei-me, afastei a cadeira e comecei a dobrar um
joelho antes que ela me agarrasse pelo braço. – Não, parvo, era
uma piada.
A gravidez da Rita teria sido, no mínimo, um motivo de
preocupação para qualquer homem com uma vida só, com uma
identidade única, completa. Para a soma de pedaços que me
integravam foi um presente. Quase todas as semanas, eu, Guillermo
ou Rafael, quem quer que fosse, voltava a assassinar o Adrián
Gallardo. Pelo menos uma noite por semana disparava contra ele,
sentia-lhe o sangue espesso, quente, a encharcar-me a camisa,
orientava-lhe a cabeça com as mãos enluvadas, pousando-a no
tampo de vidro da mesa, e descobria que o morto era o Manolo
Arroyo, contemplava-lhe os olhos sem vida a observar-me com o
mesmo terror que o meu ato lhe teria inspirado se ainda estivesse
vivo. No sonho, eu sabia o que ia acontecer, mas não conseguia
impedir, não conseguia evitar que o asco me acordasse. Era mais
asco do que medo, e mais demorado do que o meu crime, quase
tanto como a companhia do suor que me ensopava o casaco do
pijama e que parecia não secar, não deixar de cheirar a sangue.
Nesses momentos, não sabia como conseguira viver o dia anterior,
como poderia viver o dia seguinte, mas o meu coração decidia por
mim, recuperava pouco a pouco o ritmo normal, convocava o
cansaço do sono interrompido e, mesmo sem compreender como,
voltava a adormecer. Ao acordar, percebia que, mais cedo ou mais
tarde, teria de falar com a Rita, teria de lhe contar tudo o que ela
não sabia, e percebia também que nunca seria capaz de o fazer.
Depois, enquanto tomava o pequeno-almoço, reunia argumentos a
meu favor, recordava-me de que a minha namorada militava num
partido ilegal, que ilustrava os panfletos, os jornais, que poderia cair
no instante em que a polícia descobrisse uma tipografia clandestina,
que o melhor para ela era saber o menos possível. Isso era
verdadeiro. Tão verdadeiro como eu ter assassinado um homem
sem me sentir um assassino, como ter trabalhado para uma
organização de antigos nazis, como ter possibilitado um comércio
criminoso, como ter aceitado o dinheiro com que pretendia pagar as
nossas férias. Era uma verdade demasiado grande, demasiado suja
e pesada para a poder partilhar com alguém que não estivesse a
milhares de quilómetros de Madrid, vivo ou morto, quem sabe, no
outro lado do oceano.
Por fora, eu e a minha namorada parecíamos um belo casal. Por
dentro, a balança estava tão desequilibrada, o meu prato tão pesado
de riscos e de culpas que, por vezes, quando ela se punha a falar
do partido, das suas missões, dos perigos que implicavam, me
parecia uma sacanice ligá-la a um indivíduo como eu. Não me
sentia culpado. Nos meus sonhos tinha asco de mim, mas mesmo a
dormir recordava os argumentos, as razões que haviam decretado a
morte da minha vítima, o plano que me havia imposto uma
colaboração excelente com o inimigo. Ainda tinha esperança, mas a
meta troçava um pouco mais de mim a cada dia de espera, sempre
mais longínqua, mais duvidosa e improvável do que na véspera. A
destempo, quando o meu amor era já irremediável, compreendi que
um homem como eu deveria ficar sozinho, que a Rita não merecia
arcar com os meus problemas, que o nosso namoro era um erro
mais grave do que a minha relação com a Amparo. Porém, eu não
era um herói, nunca teria arranjado coragem suficiente para
renunciar à minha única fonte de prazer, de alegria. Antes de
sairmos daquela esplanada de Rosales, o meu filho devolveu-ma,
livrou-me da obrigação de contar à sua mãe com quem ia casar-se.
Em troca da vida rotineira, tranquila e sem de sobressaltos que
convinha a ambos, a minha existência cobriu-se de uma nova
camada, de mais uma impostura, do último agasalho de um
refugiado condenado a levar tudo o que tinha às costas.
– Promete-me que não vais contar ao teu irmão.
Quando soube que ia ser avó, Caridad rejuvenesceu de repente.
Levantou-se de um salto da cadeira onde estava sentada, e aquela
repentina agilidade surpreendeu-me menos do que a expectativa do
seu sorriso, motor de uma transfiguração luminosa e completa que
lhe encheu os olhos de um brilho que eu nunca teria imaginado.
Enquanto a via percorrer, de um lado ao outro, a sala de sua casa,
como que perdida naquela novidade, apercebi-me de que até então
nunca lhe vira o mais pequeno assomo de felicidade. Talvez por
isso, por já ter perdido o hábito, a forma como a expressou tenha
sido tão estranha.
– Aviso-vos de que não sei fazer tricô… – Sem deixar de chorar,
nem de sorrir, pôs-se a andar pela sala. – Mas posso pedir à
porteira que me ensine, ela faz umas camisolas amorosas para os
netos… – Encaminhou-se para a cristaleira, abriu-a, ficou a olhar
como se não soubesse por que o fizera, voltou a fechá-la. – Não
tenho jeito nenhum para lavores, mas gostaria muito… – Abriu de
novo a cristaleira, tirou três copos, ficou a olhar para eles, voltou a
deixar um no sítio. – E se não, podemos encomendar-lhe o enxoval
e eu faço o que conseguir, mas têm de me prometer que um dia
vestirão a minha camisola ao vosso filho, mesmo que fique
horrorosa… – Pousou um copo na mesa, à minha frente, outro
diante da Rita, mas depois mudou-o de lugar, voltou à cristaleira,
tirou um copo de cristal facetado. – Porque vou amar tanto esse
menino, vou amá-lo tanto, ou essa menina, claro, se for menina
amá-la-ei da mesma forma, tanto, tanto, e ensinar-lhe-ei inglês, a
tocar piano, à minha neta, ou ao meu neto, claro, falar-lhe-ei do avô,
o Andrés ficaria tão contente… – Nessa altura estacou a meio da
sala e olhou para nós. – Que estou a fazer?
– Não sei, mamã. – Ao ouvi-la, voltei-me para a Rita e verifiquei
que também ela chorava.
Os copos ficaram vazios na mesa. A Caridad disse que ia
procurar uma garrafa de xerez que tinha por ali para brindarmos,
mas não a encontrou, e regressada da despensa já havia
recuperado o seu domínio ostentando um semblante grave, familiar.
– Tens de me prometer uma coisa, Ri. A primeira é que não te
metes em mais confusões. Não te podes arriscar a que te prendam
e te espanquem grávida. – A filha tentou protestar, mas ela
antecipou-se-lhe às mentiras erguendo uma mão. – Mas tu julgas
que nasci ontem? A partir de agora, outro que desenhe… E
promete-me que não vais contar ao teu irmão. Se ele souber, é
capaz de vir, e eu não quero, não confio nada nesta corja, não quero
que saibam onde ele está, nem o que faz, nem… Mais tarde, ficará
a par de que tem um sobrinho… – Quando parecia ter-se deixado
arrebatar novamente pela tristeza, o sorriso reconquistou-lhe os
lábios sem esforço. – Ou uma sobrinha…
Germán Velázquez Martín, o primogénito de Andrés e Caridad,
vivia na Suíça, onde trabalhava como psiquiatra porque o pai lhe
tinha cedido o lugar num dos últimos barcos que haviam conseguido
sair de Espanha. Teoricamente, não correria qualquer perigo vindo
ao casamento da irmã, mas Caridad não se fiava na teoria e fazia
bem. O filho não cometera delitos de sangue, mas tinha sido
soldado durante dois escassos meses, uma vez que se havia
alistado em desespero, quando a guerra já estava perdida, num dos
batalhões recrutados pela JSU como gesto de apoio, menos
romântico do que póstumo, à política de resistência de Negrín. Isso
não lhe acarretaria qualquer conselho de guerra, porém, se
regressasse, teria de fazer um serviço militar de três anos e não o
deixariam voltar a sair. Quando a mãe se certificou de que isso não
aconteceria, começou a tratar das coisas e solucionou rapidamente
o assunto da cerimónia.
Andrés Velázquez pertencia a uma família numerosa, mas a
viúva só se relacionava com três dos cunhados. Um deles, Ramón,
cónego da catedral de Barcelona, recomendou-lhe um padre que se
ofereceu para nos casar na última igreja de Madrid que nos teria
ocorrido. O senhor cónego pediu-me e não posso negar-lhe este
favor, agradeçam-lhe, porque a verdade é que com tanta pressa…
Não chegou a terminar a frase, mas agradeci-lhe na mesma. A Rita
não, porque estava sempre à defesa, à espera de uma rasteira que
dava por assente desde o instante em que saiu comigo da sacristia.
– Vão arranjar-nos um trinta-e-um, Guillermo. Mais cedo ou mais
tarde, vão fazê-lo, ouve bem o que te digo…
Casámo-nos em território inimigo e o casamento foi uma nova
manifestação da derrota. Desta vez, o espólio dos vencedores
constituiu na tristeza, uma série de pequenas humilhações
disfarçadas de diligências imprescindíveis, cursos, confissões,
comunhões, que se atropelavam no calendário para evitar que a
gravidez da noiva chamasse muito a atenção. O caminho foi tão
árduo que às vezes parecia-me que pretendiam que desistíssemos,
no entanto, quando a Rita se ia abaixo, eu recordava-lhe que, no fim
de contas, tínhamos sido recomendados e imaginava em voz alta o
calvário que um simples casamento representaria para qualquer
casal reconhecidamente vermelho de qualquer pequena povoação,
até conseguir que ela desse graças ao mesmo ritmo que eu. Era
isso que aquele padre queria ouvir, não tendo perdido uma única
oportunidade de mencionar a magnanimidade que a sua igreja nos
dispensava concedendo-nos o dom do matrimónio, como se fosse
um prémio que não merecíamos. Enquanto o ouvia, relembrava-me
de vez em quando das imagens de outro casamento, de outra noiva
grávida, alegre e risonha, daquele simulacro de final feliz, e
espantava-me por nessa altura, sendo tudo mentira, ter sido tão
fácil. Porém, embora o saldo me parecesse muito injusto, sempre
achei que os receios da Rita eram exagerados.
– A María Luisa ficou a saber, o Ramón contou-lhe tudo, mas
tudo, com luxo de detalhes. – E nem sequer mudei de ideias quando
a mãe acrescentou mais um requisito à lista das nossas obrigações.
– Telefonou-me há pouco. Primeiro deu-me os pêsames por te
casares grávida e disse-me que teve um desgosto enorme porque
teria adorado oferecer-te um vestido branco. Depois, animou-se e
deu-me uma esfrega. Eu disse-lhe que não tinha convidado
ninguém porque ainda não sabíamos a data, e ela ofendeu-se ainda
mais. Perguntou-me se seria uma convidada como as outras, se não
pensava apresentar-lhe antes o noivo, se sabemos como lhe
partimos o coração por não termos pensado nela, apesar de nos
amar tanto e de nos ter ajudado sempre, enfim… Sei que é uma
chatice, filha, mas vou ter de a convidar para um lanche ou coisa do
género. Não nos convém ter más relações com ela, já sabes.
A única condição que a Rita impôs foi que a tia não viesse
sozinha, e aproveitei a oportunidade para perguntar à Caridad se
havia forma de localizar o doutor Quintanilla. Assim, a curiosidade
da María Luisa Velázquez proporcionou-me uma festa muito
modesta e o reencontro com um dos homens mais importantes da
minha vida. O meu mestre veio sozinho porque tinha enviuvado
enquanto cumpria pena na prisão de Albacete. Numa década
envelhecera duas, mas ainda caminhava hirto e, quando se me
dirigiu, mais frágil do que magro, reconheci-lhe no sorriso uma
centelha da energia de outrora e emocionei-me mais do que ele.
Como a Caridad lhe contara que eu já não era médico nem me
chamava Guillermo, o coitado não se atreveu a dizer-me nada
enquanto nos abraçávamos em plena sala, mas a muda intensidade
do reencontro não passou despercebida à senhora que entrou a
seguir e que não precisou de que ninguém a convidasse a falar.
– Quem é, o pai dele? – Por cima do ombro do meu antigo chefe,
vi a Caridad negar com a cabeça. – Bom, mas parece, tanto
carinho… – Depois, sem esperar que a cunhada nos apresentasse,
veio direita a mim. – Olá, tu deves ser o Rafa. Eu sou a tia María
Luisa, dá-me dois beijos, rapaz.
Durante aquele verão sem férias, fomos à serra alguns domingos
para almoçar com a melhor amiga da minha namorada. A Manolita
Perales nunca se tinha casado, mas vivia em Cuelgamuros com um
livro de família falso, onde constava como esposa legítima de
Silverio Aguado, um preso político que cumpria pena nas obras do
Vale dos Caídos. Ela havia trabalhado durante uns anos na
pastelaria dos sogros de María Luisa e, num daqueles almoços,
recordou que quando conhecera a tia da Rita esta lhe tinha parecido
muito mais velha, mas depois mais nova do que a Caridad. Era uma
descrição melhor do que as que a sobrinha costumava fazer,
contudo, vendo-as juntas, pensei que era um eufemismo. A viúva e
a irmã do doutor Velázquez representavam dois modelos de mulher
tão opostos como se não pertencessem à mesma espécie ou
habitassem, no mínimo, planetas diferentes. Naquela tarde, a minha
futura sogra pareceu-me mais do que nunca um milagre, uma
sobrevivente tenaz do país do meu avô, da Espanha republicana
mas também burguesa, culta e, no entanto, esquerdista, generosa e
sem complexos, que Franco havia condenado a um extermínio do
qual se salvaram muito poucos espécimes. A María Luisa, pelo
contrário, era o fruto natural dessa vitória e uma senhora nascida e
criada no bairro de Salamanca, a evolução requintada das vizinhas
que me tinham visto crescer, uma imagem perfeita da mulher em
que a Amparo Priego se transformaria dali a vinte anos. Enquanto
calculava o sofrimento, pequeno mas constante, que os seus
alardes de carinho e de generosidade teriam significado para a
viúva do irmão, perguntei-me se já teríamos sido apresentados ou
se via nela, simplesmente, os traços de um estereótipo familiar.
Ainda não havia chegado a uma conclusão quando ela abriu um
pouco mais os olhos perfeitamente maquilhados, com as pálpebras
tão brilhantes como o ouro com que se enfeitava.
– Mas tu… Eu conheço-te. Tu não vivias antes da guerra na calle
Hermosilla…?
– Não, eu… – interrompi-a, antes que pudesse acrescentar um
número e continuei a falar quase sem me dar conta, porque
preparara muitas vezes, durante muitos anos, as palavras que agora
proferia pela primeira vez. – Desculpe. Sou de uma povoação de
Toledo e cheguei a Madrid há pouco tempo. Deve ter confundido.
– A sério? É inacreditável, porque te pareces imenso com um
rapaz que vivia em frente do don Fermín, o nosso notário…
– Mas, tia, não estás a beber nada? – Nesse instante, a Rita
aproximou-se, agarrou-a pelo braço e começou a puxar por ela até
ao outro canto da sala, com tanto nervosismo que qualquer
espectador imparcial teria descoberto que a convidada não se
enganara. – Vamos lá ver, o que te apetece?
Quando pude sussurrar ao ouvido da minha namorada que afinal
tinha razão, que nos haviam arranjado um trinta-e-um, a María Luisa
Velázquez era a única pessoa desconhecida que me havia
reconhecido desde que me mudara para o outro lado do Paseo de la
Castellana.
No sábado, 14 de outubro de 1950, ao meio-dia, Rafael Cuesta
Sánchez casou-se com a Rita Velázquez Martín na Basílica de la
Concepción, na calle Goya, muito perto da casa onde o Guillermo
García Medina vivera até ao fim da guerra. Quando o padre
perguntou se alguém tinha algum motivo para se opor à nossa
união, encorajando-o a falar naquele momento ou a calar-se para
sempre, ninguém abriu a boca, mas o silêncio não me tranquilizou.
Desde que entrei na igreja, levando a minha sogra pelo braço,
permaneci num estado de nervosismo estranho, numa inquietação
aguda, quase efervescente, que desenhava arestas em todos os
círculos e rarefazia o ar como se um inimigo invisível estivesse a
moer pimenta no meio da cúpula. A sensação de que o meu
passado estava à espreita dentro daquelas paredes não se dissipou
quando beijei a noiva, materializando-se, antes de alcançarmos o
adro, na silhueta de uma mulher, cuja elegância contrastava tanto
com o amarelo berrante do cabelo, como este com as suas
sobrancelhas escuras. A Amparo Priego abandonou a proteção do
último banco, deu um passo na direção da nave e sorriu quando
passei junto dela.
– Parabéns, querido.
Enquanto inclinava a cabeça perfumada na direção da minha,
verifiquei que o seu odor já não me perturbava. Ao cabo de
instantes, senti os dedos da Rita a cravarem-se-me no braço, senti-
lhe o braço rígido, a respiração repentinamente agitada e não de
surpresa, menos ainda por ciúmes, mas por medo de que aquela
presença fosse uma rasteira, uma armadilha oculta, traiçoeira, à
espera desde o princípio. Não pude fazer nada para a tranquilizar,
no entanto sabia que não se tratava disso. A Amparo viera ao meu
casamento para se exibir, para me oferecer e oferecer-se a si
própria uma representação pública do seu antigo poder, do domínio
que julgava manter, mas que já não lhe pertencia. Não foi uma boa
jogada e ela deu-se conta disso ao mesmo tempo que eu.
– Obrigado, Amparo.
Beijei-a rapidamente nas faces e continuei na direção da porta
da igreja sem olhar para trás. Fora muito mal-educado, mas ela não
me retivera. No entanto, já na rua, a María Luisa Velázquez trouxe-a
pelo braço, apresentou-a à sobrinha e iniciou a cordialidade artificial
e distante com que me trataria a partir de então.
Nunca soube até onde tinham chegado as confidências da
Amparo à tia da minha mulher, porém, passado o susto, percebi que
a minha ex-amante não poderia ter contado nada que não a
implicasse também a ela na defesa da Madrid sitiada, nada que não
me favorecesse aos olhos de qualquer fascista no tocante à minha
atuação posterior. Durante alguns meses, enquanto
comprovávamos que a minha entrada na família Velázquez realizara
o milagre de distanciar a Caridad da cunhada, aprendi que a Rita
tinha também o poder de me neutralizar todos os pesadelos, antigos
e recentes. A convalescença da cerimónia do casamento foi rápida
e tão doce que compensou todos os genuflexórios, todos os
confessionários e falsos arrependimentos que havíamos investido
nela. Depois, só nos preocupámos com uma coisa.
– Como vamos chamar-lhe?
Chamou-se Manuel, o nome dos melhores amigos dos pais, e
devolveu-me o meu filho Guillermo, ao cabo de muitos anos sem
pensar nele. Cada uma das suas expressões, o choro, o cheiro, os
pequenos avanços que se sucediam diariamente, recordavam-me
aquele outro bebé que também tinha aprendido a mamar, a agarrar,
a descobrir as mãos, a esticar os lábios para simular um sorriso
ainda inexistente, antes de desaparecer da minha vida. Enquanto o
via engordar, progredir e sobretudo quando começou a reconhecer-
me, adquiri um receio supersticioso à barreira dos seis meses, mas
o Manuel fê-los, e fez sete, oito, um ano, sem deixar de fazer parte
da minha vida, até se impor à lembrança do irmão e transformá-la
num sentimento diferente, numa saudade afetuosa, cada vez mais
pálida. Na primavera de 1952, quando a Rita voltou a engravidar,
comecei a pensar no Manuel como no meu filho mais velho, embora
não o fosse. A mãe do primogénito obrigou-me a recordá-lo ao
irromper-me pelo meu gabinete dentro quando ele tinha acabado de
fazer catorze anos, uma voz tão angustiada que ao vê-la nem
consegui olhar para ela.
– Ajuda-me, Guillermo, ajuda-o. – Só lhe ouvia o pânico na voz.
– É teu filho e está muito mal. Tens de o ajudar. Vem comigo, por
favor, peço-te.
– Mas que aconteceu? Teve algum acidente, intoxicou-se,
apanhou alguma…?
Em vez de me responder, desatou a chorar e eu levantei-me
imediatamente, disse à minha secretária que tinha uma urgência
familiar, e saí atrás dela a toda a pressa, sem parar para guardar as
pastas abertas em cima da mesa. Quando chegámos à rua, propus-
lhe que fôssemos a pé para que me pudesse explicar os sintomas
com calma e ela fez menção de recusar. Não lho permiti, mas
também não consegui averiguar grande coisa, exceto que todos os
médicos eram uns inúteis, que não percebiam nada e que só
pensavam em sacar-lhe dinheiro, até que chegámos à esquina das
ruas Velázquez e Ayala.
– Ouve-me, Amparo. – Ali agarrei-a pelos ombros e abanei-a até
ela olhar para mim. – Assim não chegamos a lado nenhum. Que é
que ele tem?
– Não sei, ninguém sabe. Um diz que é do crescimento, outro…
– Isso não interessa – insisti. – Diz-me o que ele tem, o que lhe
dói, de que se queixa. É isso que preciso de saber.
– Bom… Tem febre. Até agora não era muito alta, mas ontem à
noite subiu bastante e esta manhã ainda não tinha descido. Não tem
apetite, não come nada, nada mesmo, sente-se tão cansado que
não se aguenta de pé e dói-lhe… tudo. – Olhou para mim como se
estivesse a torturá-la por a obrigar a falar. – É o que ele diz, que lhe
dói tudo, e queixa-se muito, embora pareça bem. Por isso, o
pediatra dele não deu importância e anteontem foi visto por outro
médico que me disse qualquer coisa sobre umas febres, mas não
acredito nele, deve ser alguma coisa pior. Hoje disse-me que lhe dói
o coração e não sei o que fazer, estou desesperada…
O corpo do meu filho mais velho já não era o de uma criança,
mas ainda não tinha as dimensões de um adulto. Tinha crescido
muito, de forma ainda provisória, desproporcionada, nos quatro
anos que haviam decorrido desde que o vira pela última vez, e o
tamanho das pernas compridíssimas não aumentaria muito mais,
mas a sua forma continuava a ser tão infantil como o tronco magro,
de ombros estreitos e braços delgados, sobre o qual assentava uma
cabeça que continuava a parecer o decalque de uma imagem que
eu vira uma infinidade de vezes no espelho da casa de banho da
casa dos meus avós, enquanto lavava a cara antes de ir para a
escola.
– Olá, José Antonio, como estás? – Antes de me aproximar dele,
parei no umbral para que virasse a cabeça sobre a almofada e
olhasse para mim. – Chamo-me Rafa e sou médico. Também sou
amigo da tua mãe, que me pediu que viesse ver-te.
Enquanto atravessava o quarto, passei diante de uma estante
encastrada entre duas colunas e vi muitos livros, uma coleção de
carrinhos em miniatura e, junto de uma cópia do retrato do falangista
desconhecido que se encontrava sobre o piano da sala, um comboio
de madeira muito simples, três cubos abertos em cima, que faziam
de carruagens, pintados cada um de sua cor, e o cubo fechado que
fazia de locomotiva pintado de preto, como as rodas. Vendo que eu
tinha parado para o ver, o meu paciente apontou para ele da cama.
– Foi o meu pai que o fez durante a guerra. – A voz dele, um
apito agudo, imaturo, perturbado de vez em quando pelos tons
graves que anunciavam o adulto que abria caminho a partir da
infância, comoveu-me tanto como o buço que lhe escurecia o lábio
superior. – Não é muito bonito, mas é a única coisa que tenho dele.
– Nesse caso é bonito – contradisse-o suavemente, sentando-
me a seu lado, tocando-lhe na testa e detetando uma febre que não
ultrapassaria os trinta e sete graus e meio. – Diz-me uma coisa,
tiveste uma faringite ou uma amigdalite há duas ou três semanas?
– Que é isso? É quando dói a garganta, não é? – Assenti com
um movimento da cabeça. – Sim, e doía-me bastante, mas deve ter
sido há um mês, pelo menos…
– Claro. – Voltei-me para a Amparo e assenti de novo, porque
aquele precedente tinha acabado de confirmar o meu diagnóstico. –
Lembras-te do que lhe deste quando lhe doía a garganta?
– Sim. – Aquela curta conversa acalmara-a o suficiente para lhe
devolver a serenidade ao rosto, embora o meu estado de espírito se
tivesse alterado tanto que me dei conta de que olhava para ela
como para uma enfermeira, um elo secundário na corrente que me
unia àquele paciente. – Ainda tenho uma caixa por aí.
– Trá-la, por favor. – Voltei-me para ele. – Acho que já sei o que
tens, calma. – Destapei-o, sentei-o, comecei a auscultá-lo. – Diz-me
uma coisa – acrescentei, depois de ele inspirar e expirar de acordo
com as minhas instruções. – Gostas de ir à escola?
– Não! – Riu-se, e o riso fê-lo tossir. – Não gosto nada.
– Nesse caso, parabéns! – Examinei-o com muito cuidado, para
não lhe causar mais dores. – Porque vais faltar às aulas por uma
boa temporada…
Terminado o exame, ajudei-o a deitar-se, aconcheguei-o e, ao
cobrir-lhe o corpo com o lençol, um gesto que no meu caso nada
tinha de paternal porque o repetira muitas vezes com pacientes
desconhecidos, emocionei-me. Ele estava muito cansado, como se
a minha visita o tivesse esgotado. Murmurou que ia dormir um
pouco e voltou a cabeça devagar, na minha direção, com os olhos
fechados. Acariciei-lhe a testa, para lhe afastar os cabelos que o
suor tinha colado à pele, e disse-lhe que voltaria à tarde.
– Não te preocupes. – Fechei a porta sem fazer ruído para falar
com a Amparo no corredor. – Vou telefonar ao doutor Quintanilla
para que o venha ver. Ele continua a trabalhar numa clínica e tenho
a certeza de que conhece algum especialista. Vamos ver o que
dizem, mas estou certo de que é febre reumática.
– Foi isso que me disse o outro médico, mas… Reumatismo? – A
Amparo voltou a assustar-se. – Com catorze anos?
– A idade não tem nada que ver e também não é exatamente
reumatismo, embora se presuma que estejam relacionadas. É uma
doença bastante misteriosa, pouco frequente. Vi um caso muito
semelhante há uns anos e tive de voltar a estudar para o conseguir
tratar, por isso é que o reconheci, não por ser melhor médico do que
o pediatra, nem por ele ser um inútil. A verdade é que não sabemos
por que razão acontece, mas os efeitos… – Parei para escolher
palavras que ela pudesse compreender e que não a alarmassem em
excesso. – É como uma inflamação geral que pode afetar qualquer
órgão. Tem origem numa faringite mal curada. – Antecipei-me a
tempo aos seus protestos. – Não por tu teres cuidado mal dele, mas
porque o organismo não respondeu bem aos antibióticos que lhe
deste ou porque não os tomou durante o tempo necessário… Ou
simplesmente porque sim, porque lhe calhou a ele, vá-se lá saber,
mas não é obrigatoriamente grave. Para já, vamos dar-lhe
antibióticos específicos para tratar os vestígios da infeção, que
continua lá e é o que provoca a febre. Depois, o único tratamento
que existe é descanso e um ou dois meses de cama.
– Um ou dois meses?
– Ou três.
O pediatra que veio à tarde com um homem a quem eu
começara a chamar Fortu, tal como a minha mulher, contribuiu com
uma opinião mais autorizada, embora o diagnóstico coincidisse com
o meu e o tenha expressado com menos rodeios.
– Fica na cama os meses que forem precisos. Parece que não
há complicações graves, contudo, quando diz que lhe dói o coração,
não está a mentir. Tem uma inflamação no pericárdio. Para que não
aumente, é fundamental que não faça esforço, que fique deitado,
calmo, sem se alterar, sem desgostos, e que coma bem, uma dieta
ligeira a horas certas, até diminuir a dor e a inflamação dos
músculos. Pouco a pouco, à medida que a resposta dos membros
melhorar, ele próprio se dará conta disso. Convém ser seguido. –
Olhou para mim e eu assenti. – Para verificar o ritmo das melhoras.
Não se pode fazer outra coisa, no entanto, se seguir as minhas
instruções, ele recuperará e não terá sequelas.
De 22 de outubro de 1952 até meados de janeiro de 1953, em
todas as tardes passei algum tempo com o meu filho Guillermo. Ia
vê-lo mal saía do trabalho, examinava-o e conversava com ele, a
princípio pouco e só sobre o seu estado, depois, quando começou a
sentir-se melhor, de outras coisas. Na primeira semana, a Amparo
esteve sempre presente, muito perto, num estado de alerta que me
irritava, embora nunca lho tenha recriminado porque receava que
proibisse as visitas. Depois, a vigilância foi abrandando. Entre as
seis e as sete da tarde, tinha quase sempre alguma coisa que fazer
e, além disso, descobriu imediatamente que o doente tinha gostado
tanto de que lhe lesse em voz alta que quase não havia tempo para
mais nada.
Permitir-me-ão que, antes de mencionar o grande acontecimento
de que fui testemunha, diga algumas palavras sobre a minha
infância, explicando por que estranha maneira me levaram os
acasos da vida a presenciar a terrível catástrofe da nossa marinha…
– Se ficares cansado ou te aborreceres, dizes-me, está bem?
– Está bem, mas porque escolheste esse livro? – Estava na
estante, entre vários companheiros, com a lombada perfeita e as
páginas tesas, como se nem sequer o tivesse aberto para o folhear
quando alguém lho ofereceu. – Gostas dele?
– Sim. Li-o quando tinha a tua idade e gostei. É um romance de
aventuras sobre a batalha de Trafalgar e o protagonista é um rapaz,
como tu.
Ao falar do meu nascimento, não imitarei a maior parte daqueles
que contam feitos da própria vida e que começam nomeando a sua
parentela, o mais das vezes nobre, sempre fidalga, pelo menos, se
não se dizem descendentes do próprio Imperador de Trebizonda…
– Quem é o imperador de Trebizonda?
– Ninguém, é uma maneira de dizer que é pobre e o reconhece,
enquanto outros teriam dito que eram nobres ou príncipes. É como
dizer que alguém descende do sovaco de Cristo.
– Isso já ouvi. A Experta di-lo muitas vezes.
Eu, nesta parte, não posso adornar o meu livro com apelidos
sonoros; e além de minha mãe, que conheci por pouco tempo, não
tenho notícia de nenhum dos meus ascendentes, se não de Adão,
cujo parentesco me parece indiscutível. Dou início, pois, à minha
história como Pablos, o fura-vidas de Segóvia: felizmente Deus quis
que nisto só nos parecêssemos…
– Não percebo isso.
– Aquilo do fura-vidas? É uma personagem de outro romance,
muito pobre também, que ganhava a vida a enganar, a roubar
comida…
– É indiferente. Continua, gosto muito de te ouvir.
Eu nasci em Cádis, no famoso bairro da Viña, que não é hoje,
nem menos era então, escola de bons costumes. A memória não
me traz luz alguma sobre a minha pessoa e as minhas ações na
infância senão desde a idade dos seis anos; e se recordo esta data,
é porque a associo a um sucesso naval de que ouvi falar então: o
combate do cabo de São Vicente, ocorrido em 1797…
Todas as tardes lhe lia algumas páginas e respondia às
perguntas, a princípio muitas, mais tarde, quando insistiu que eu
terminasse um capítulo inteiro antes de me ir embora, cada vez
menos. Depois, media-lhe a temperatura, auscultava-o, pedia-lhe
que fizesse alguns movimentos muito suaves para calcular o grau
de inflamação dos músculos, apontava todos os dados num bloco
que guardava numa gaveta da mesa de cabeceira e ia para casa.
Nunca passava mais de uma hora com ele porque não o queria
cansar, embora as suas tentativas de me reter me comovessem
muito. Comoveu-me ainda mais comprovar que relia de manhã o
que eu lhe lera na tarde anterior, em primeiro lugar porque era um
indício evidente de melhoria, mas, além disso e sobretudo, porque
Trafalgar representava uma ilha deserta que só nós os dois
habitávamos, o vínculo íntimo, secreto, que me devolveu ao meu
filho perdido com uma intensidade mais decisiva do que as suas
febres reumáticas, quando já não tinha esperança de o recuperar.
O meu destino, que já me havia levado a Trafalgar, levou-me
depois a outros cenários gloriosos ou infaustos, mas todos dignos
de memória. Quereis saber a minha vida inteira? Pois aguardai um
pouco e dir-vos-ei algo mais noutro livro.
– Já está. – Numa escura e chuvosa tarde de novembro, acabei
de lhe ler o romance. – Acabou. Gostaste?
– Muito.
– Podemos ler o próximo.
– Não, eu já o comecei. – E tirou A corte de Carlos IV de debaixo
da almofada, rindo-se. Aplaudi, porque o riso era um sintoma tão
promissor como a leitura. – Mas podíamos fazer outra coisa, jogar
às cartas, por exemplo.
– Não, lembrei-me de uma coisa melhor.
No dia seguinte, ensinei o José Antonio Urbieta a jogar xadrez no
velho tabuleiro de don Fermín, que a mãe tinha guardado na parte
superior do roupeiro como se fosse um caco velho. De início, não
achou muita graça porque a Amparo o ensinara a mover as peças,
mas não lhe havia chegado a explicar o mecanismo do jogo. No
entanto, quando comecei a ensinar-lhe as aberturas, mostrando-lhe
por que motivo era importante não mover os peões ao acaso e até
onde poderia chegar se escolhesse um ou outro caminho, a
compreensão iluminou-lhe o rosto com uma luz quase selvagem. No
dia seguinte, ofereci-lhe um livro com problemas elementares para
que se entretivesse a praticar de manhã e, antes do Natal, quando
já conseguia levantar-se e sentar-se numa cadeira, começámos a
jogar partidas inteiras.
– Ainda bem que foste tu quem me ensinou – disse-me certa
tarde, depois de a Amparo nos ter descoberto e ter saído do quarto
a bufar, sem dizer nada. – É que me aborrecia imenso a jogar com a
mamã. E ela fica furiosa por eu agora gostar tanto.
– Percebo. – Sorri-lhe, embora só tivesse adivinhado em parte o
motivo do aborrecimento da Amparo. – É que ela jogou sempre
muito mal.
– Tu conhece-la desde pequena, não é? A Experta, que gosta
muito de ti, contou-me, sabias?
– E eu gosto muito dela.
– Foi por isso que a convidaste para o teu casamento, não foi? –
Assenti com um gesto da cabeça, recordando a insistência com que
a Experta me jurara ao almoço não ter sido ela a avisar a Amparo,
até que a María Aránzazu conseguiu pôr-nos a todos de bom humor
com as suas teorias sobre a liberdade das mulheres. Ele imitou-me,
como se quisesse dar razão a si próprio. – Ela diz-me sempre para
te dar ouvidos porque és muito bom médico e muito boa pessoa.
Naquela tarde, quando me despedi, descobri que a mãe dele
estava à minha espera e bastou-me um olhar para perceber que me
diria que o filho estava muito melhor e que já não era necessário vir
visitá-lo todas as tardes. Concordei com ela e depois, na esperança
de as prolongar o máximo de tempo possível, ofereci-me para
espaçar as visitas até que o José Antonio recuperasse
completamente. A Amparo ficou calada por momentos, como se a
minha mansidão a houvesse desconcertado, e eu voltei a adivinhar
que sozinha, no corredor, se preparara para uma briga cuja
ausência a obrigou a cuspir a verdade.
– Tinhas de o ensinar a jogar xadrez, não era? – Fora aquilo o
que a enfurecera. – Pois já o conseguiste, podes deixar-nos em paz.
Galdós escreveu muitos Episodios Nacionales, mas, mesmo que
decidisse lê-los todos, o meu filho terminá-los-ia alguma vez,
iniciando novas leituras que o fariam esquecer-se pouco a pouco
dos pormenores. No entanto, nunca se esqueceria de quem o havia
ensinado a jogar xadrez, tal como eu não me esquecera de que
quem me ensinara a mim tinha sido o meu avô. Isso era tudo o que
herdaria de mim e, para lhe reforçar a memória, fiz-lhe uma última
visita depois de lhe dar alta, já preparado para o perder outra vez.
– Olá. – Ele próprio abriu a porta e deu-me um abraço tão
apertado que me magoou. – Passei por aqui e lembrei-me de subir
para te perguntar como foi o regresso à escola.
– Bom… – Parou uns instantes para pensar e desatou a rir. – A
verdade é que agora, às vezes, até me parece divertida, percebes?
Mas tenho saudades tuas.
Não fui capaz de responder. Fiquei cravado no umbral da porta e
estendi a mão direita para lhe entregar o saco de papel que tinha
trazido, mas ele agarrou-a e puxou-me até ao corredor.
– Jogamos uma partida?
– Não, eu… – Era difícil resistir-lhe. – A tua mãe está?
– Nem pensar! Acabou de sair para ir ao teatro.
A 22 de janeiro de 1953, suicidei-me num tabuleiro de xadrez
pela primeira vez na vida, porém, quando saí da casa da Amparo, o
vencedor estava menos eufórico com o triunfo do que com o
presente que lhe dei como um troféu que certificava a minha
derrota.
– Que é? – perguntou-me, tirando do saco uma caixa de madeira
de cerejeira, com duas esferas com números romanos e botões de
latão dourado. – Para que serve?
– Para disputar partidas de xadrez. São dois relógios, estás a
ver? – O mecanismo era muito simples e ele percebeu-o
imediatamente. – É para ti, um presente por teres sido tão bom
paciente e por te teres curado tão depressa.
– A sério?
Aquele relógio de xadrez era o último bem verdadeiramente
valioso do baú que a Experta tinha enchido em abril de 1939 com o
que julgara serem as coisas mais caras da casa do comissário
Medina, mas ele não tinha como sabê-lo. No entanto, ficou a olhar
para mim com os olhos muito abertos e a expressão de um adulto
que se interroga por que motivo um médico acaba de lhe dar um
presente, um objeto tão estranho e, além do mais, tão antigo. Por
instantes, senti que me reconhecia, que, de alguma forma,
pressentira a espessura da nossa relação, mas a sensação durou
apenas um segundo. O José Antonio Urbieta tinha catorze anos e
eu mal o conhecia. Por isso, não consegui adivinhar que a
gravidade daquele olhar se diluiria a toda a velocidade num capricho
infantil.
– Vamos jogar uma partida rápida, uma, só uma, por favor, não
demoramos nada, a sério, prometo-te.
Jogámos três e ganhei-as todas. Depois disse-lhe que precisava
de me ir embora, enganei-o prometendo-lhe que voltaria de vez em
quando e despedi-me dele com um abraço, mas nenhum beijo, à
porta da sua casa. Quando cheguei à minha, peguei no Manuel ao
colo, como fazia todas as tardes mal regressava da calle Ayala, e
fiquei a brincar com ele durante muito tempo, enquanto a Rita me
observava com tanta concentração como se quisesse interpretar
cada um dos meus gestos, das minhas palavras.
– Ofereceste-lho, não foi? – perguntou-me nessa noite e eu
arqueei as sobrancelhas, embora soubesse do que falava. – O
relógio do teu avô, o que estava em cima da lareira… Já não está.
– Ofereci-lho, sim – admiti. – Com certeza não o verei mais.
Queria que tivesse alguma coisa minha.
– Bem… – Abriu os lábios, fechou os olhos e desfez por essa
mesma ordem a sequência antes de abanar a cabeça. – Nada. –
Mas voltou a olhar para mim. – É que… sei que não está certo, que
não devia pensar assim, porque esse menino é teu filho e estava
realmente doente. Mas fico muito contente por se ter curado
porque… Não gostava nada que fosses todos os dias a casa da
Amparo, percebes? No início, quando ele estava mal, bom… Mas
agora… – Voltou a fechar os olhos e enrugou a cara, como se
acabasse de provar uma coisa horrível. – Bolas! Fico furiosa por isto
me acontecer, a sério, sinto-me muito mal, mas queria dizer-te
porque… – Nessa altura teve uma ideia, voltou a olhar para mim e
quase sorriu. – Se calhar é devido à gravidez. Como estou tão
sensível e choro tanto…
– Não sei, mas é por isso que te amo tanto, Rita.
– Porque choro?
– Não. Pelas coisas que te acontecem.
Em abril tivemos uma filha, uma menina que por pouco não se
chamou Andrea, mas que acabou por chamar-se Rita Guillermina.
Pouco depois de nascer, mudámo-nos da Casa de las Flores, onde
tínhamos alugado um apartamento de duas assoalhadas, cujas
janelas olhavam de frente para a casa da Caridad, para um andar
maior, na calle Marqués de Urquijo. Na sala da nova casa também
havia uma lareira, que também nunca acenderíamos e, em cima
dela, a partir de 1955, um antigo relógio de xadrez em madeira de
cerejeira da marca Junghans, muito parecido com o do meu avô. A
minha mulher nada disse quando o coloquei no lugar, mas, a partir
dos cinco ou seis anos, o meu filho Manuel explicava às visitas que
quando fosse grande aquele relógio seria seu. Nunca paguei aquele
relógio, o presente que o melhor cliente de La Meridiana me deu no
Natal de 1954.
– Não me espanta que não o tenhas encontrado. – Sorriu-me
com a sua cara cortada. – Nem imaginas o trabalho que tive para o
conseguir.
O Rolf Steinbauer vivia em El Viso, tinha uma empresa com sede
na Gran Vía, às vezes despistava-se e eu precisava de lhe devolver
os contratos que ele assinara como Otto Skorzeny, para que mos
reenviasse com o nome falso, o único que o acreditava como
proprietário da sua empresa. Desde o verão de 1951 que recorria à
La Meridiana para enviar ou receber materiais ou documentos e,
embora não me tivesse agradado voltar a vê-lo, a nossa relação
mantinha-se amistosa, sem nunca superar o grau de confiança que
eu mantinha com outros clientes.
– Agora a transportadora é tua, não é verdade? – Quando mo
perguntou, da primeira vez que me veio ver, já sabia a resposta.
– Bom, os herdeiros do don Gabino mantêm trinta e cinco por
cento, mas o resto é meu, sim.
– Wunderbar! – Sorriu para me dar a entender que imaginava
com que dinheiro eu tinha comprado a maior parte da empresa
depois da morte do fundador. – Porque vamos fazer negócios… Não
como antigamente, claro.
– Ainda bem. – Esforcei-me por sorrir, porque aquele aviso me
tinha assustado. – Já estou muito velho para aventuras.
– E eu ainda mais. – Ele também sorriu. – Isso acabou.
Nos primeiros meses, comentou que gostaria de ir a minha casa
conhecer a minha família, mas eu empatei-o e ele não insistiu.
Desde então nem sequer nos telefonávamos, porque a secretária
dele tratava de tudo diretamente com a minha, mas almoçávamos
juntos duas vezes por ano porque o contrário, tendo em conta o
volume de negócios que implicavam as grandes importações de aço
das empresas alemãs que ele representava em Espanha, seria
muito suspeito.
Naqueles almoços, que eu pagava sempre, nunca falámos do
passado. O meu cliente só mencionou duas vezes, de passagem, a
Clara Stauffer e nunca falou do Hans Lazar nem do procedimento a
que recorrera para se livrar de um cadáver sem nome. Eu nunca
pronunciei o nome do Adrián Gallardo, nem mencionei a rua onde
estivera sediada a Sociedade Europeia de Comércio Externo.
Assumíamos ambos que tínhamos tido muita sorte e não nos
interessava dar mais voltas ao assunto. Eu conhecia os seus
motivos, ele ignorava os meus, mas o jogo estava empatado e seria
cómodo para ambos desde que nos limitássemos a falar de
negócios, de mulheres, de restaurantes ou de assuntos quotidianos,
como aquele antigo relógio de xadrez que não encontrei em lado
nenhum até ele o encomendar a um dos contactos que mantinha na
Alemanha, a fim de mo oferecer no Natal.
Só nos víamos duas vezes por ano, mas pensava nele amiúde,
porque o seu regresso me apanhara numa espiral tão contraditória
como a desencadeada pelo negócio que nos pusera em contacto
uns anos antes. Se é verdade que o comércio com o ouro nazi fizera
de mim um homem rico, também o tratamento favorecido que o
Skorzeny recebia do regime que eu quisera derrubar havia feito de
La Meridiana uma das transportadoras mais prósperas e
importantes de Espanha. O meu fracasso fora o meu êxito, a morte
da minha esperança, a origem da minha riqueza. Sabia que, se
tivesse podido escolher, teria escolhido o contrário. Sabia também
que o destino nunca me daria essa oportunidade. Foi por isso, e não
para igualar o património dos meus filhos varões, que pousei aquele
relógio de xadrez num lugar onde não pudesse deixar de o ver.
Nunca consegui que o Manuel se interessasse por xadrez. A
irmã Rita, no entanto, jogava muito bem, sobretudo partidas rápidas,
ainda assim, embora lhe tenha prometido que um dia o relógio seria
seu, não deixei que o levasse para o quarto. Continuou em cima da
lareira, como uma chave da minha vida, a de um homem que se
chamava Guillermo García Medina e que vivia como Rafael Cuesta
Sánchez, a de um médico que só o era parcialmente e em segredo,
a de um vermelho que tinha enriquecido a trabalhar para os nazis, a
de um empresário de sucesso que teria trocado sem hesitar o seu
gabinete por um lugar num simples centro de saúde ou num
hospital, a de um homem que já deixara de esperar, mas que teria
dado qualquer coisa para continuar a fazê-lo.
No fim de 1951, um remetente desconhecido enviou-me uma
encomenda de Buenos Aires. Reconheci pela forma que se tratava
de uma caixa de bombons e não fiquei surpreendido por ter
acertado. Nem por estar vazia. Desde então, todos os dias me
lembrava do Manolo, pensava em como estaria, onde viveria, quem
teria comido os bombons da caixa que materializou o nosso
fracasso.
Todos os dias, o Francisco Franco se levantava da cama no
palácio de El Pardo para voltar a ela todas as noites.
Todos os dias, a Rita dizia que não aguentaria muito mais, que a
situação em Espanha era inconcebível, que mais cedo ou mais
tarde teria de acontecer alguma coisa.
Todos os dias, quando me perguntava se não estava de acordo
com ela, eu dizia-lhe que a amava.
E isso, pelo menos, era verdade.
É 21 DE DEZEMBRO DE 1959 E DWIGHT D. EISENHOWER, PRESIDENTE DOS
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, ESTÁ EM MADRID.
A sua visita é a cereja no topo do bolo, o cartaz publicitário de
um processo consumado seis anos antes, mais concretamente a 23
de setembro de 1953, quando o ministro espanhol dos Assuntos
Exteriores, Alberto Martín-Artajo, e Mister James C. Dunn,
embaixador dos Estados Unidos em Espanha, assinam o Pacto de
Madrid no palácio de Santa Cruz. O ministro do Comércio, Manuel
Arburúa, acompanha o primeiro. O segundo aparece na companhia
do presidente da Câmara de Comércio norte-americana em
Espanha, Mister Max H. Klein.
A importância díspar dos representantes – dois ministros face a
um embaixador e a um dirigente de uma associação de empresários
– é suficiente para demonstrar a posição desigual de ambos os
países. Espanha tenta em vão que esse documento tenha maior
importância, mas um tratado teria exigido a aprovação por maioria
do Senado dos Estados Unidos. Consciente de que não a
conseguirá, o governo de Eisenhower opta por um simples acordo
entre governos, que não necessita de formalidades parlamentares.
A repugnância que o regime franquista inspira aos senadores norte-
americanos não influi na relação, mais abusiva do que vantajosa,
que o seu país estabelece com o velho amigo do Eixo. Para o
ditador, os ganhos são ainda maiores. O grande prejudicado é,
como de costume, o povo espanhol, que, mais uma vez, de nada
sabe.
A embaixada norte-americana envia um fotógrafo para
imortalizar a assinatura do pacto, mas a imprensa espanhola não
publica as fotografias. O ABC de 23 de setembro de 1953 não
menciona a cerimónia que se vai realizar em Santa Cruz. A notícia
do dia centra-se na visita do Caudilho a Ourense, onde, no dia
anterior, tinha inaugurado o Seminário Mayor del Divino Maestro,
afirmando no seu discurso que «o serviço de Deus e a grandeza de
Espanha marcham inseparavelmente unidos através dos séculos.»
Num dia em que se assina um pacto que afetará decisivamente a
soberania nacional durante décadas, a única notícia que rivaliza
com a viagem do Caudilho à Galiza é uma reportagem alucinante
que informa que Lavrenti Beria – o chefe omnipotente da polícia
política de Estaline, detido a 9 de julho de 1953 e executado
posteriormente em circunstâncias ainda não muito claras – se
encontra escondido em Espanha. Um piloto soviético que conhece o
terreno por ter combatido na aviação republicana durante a Guerra
Civil escolhe um lugar da Mancha, de cujo nome ninguém se quer
recordar, saltando de paraquedas com o desertor da União Soviética
que, segundo o ABC, está escondido numa povoação próxima, à
espera da chegada de agentes do FBI (sic) para passar com todos
os seus segredos para o Ocidente. Esta fantasia faz alusão ao
acontecimento histórico do dia, atrevendo-se a afirmar que o
governo de Washington «não queria de modo algum colaborar com
a saída de Beria do território espanhol sem contar com a
autorização prévia de Espanha, justamente nas vésperas do
possível Acordo hispano-norte-americano».
Este exclusivo memorável, publicado sem que ninguém se desse
previamente ao trabalho de lhe verificar a autenticidade, custa o
cargo ao diretor do ABC, Torcuato Luca de Tena y Brunet, destituído
de forma fulminante poucas horas depois. O seu sucessor, Luis
Calvo, mantém o silêncio sobre o Pacto de Madrid. A capa do dia 24
de setembro vai para Alfredo di Stefano, que se estreia em
Chamartín num jogo internacional contra o Nancy francês, sendo
que a sua equipa, o Real Madrid, perde por dois golos contra quatro.
É preciso ir até à página 17 para se encontrar um breve artigo sobre
a chegada de um grupo de senadores e de militares norte-
americanos a Madrid, sem que se expliquem as razões de tal
presença em Espanha. Os seus leitores podem mesmo pensar que
vêm falar com Beria. Nada mais distante da realidade.
O Pacto de Madrid consta de três acordos. O primeiro explica
detalhadamente o armamento que o governo de Washington se
compromete a entregar ao regime de Franco. Trata-se de material
em segunda mão, proveniente da Guerra da Coreia, terminada dois
meses antes. A delegação norte-americana avalia-o em 456 milhões
de dólares, número que os especialistas franquistas consideram
escandalosamente exagerado em virtude do desgaste do material
entregue, embora tais armas modernizem os recursos do Exército
espanhol, que, até então, dispõe apenas de armamento proveniente
da Guerra Civil. Como se isso não bastasse, o governo de
Washington impõe ao de Madrid uma utilização exclusivamente
defensiva desse armamento. Apesar da humilhação que tal implica,
a delegação espanhola aceita a limitação, porque nessa altura o
inimigo interno representa um perigo muito mais grave do que o
externo.
O segundo acordo faz alusão ao que só com muita generosidade
se pode denominar ajuda económica. Longe da prodigalidade
incondicional do Plano Marshall, os Estados Unidos oferecem a
Espanha uma linha de crédito de pouco mais de 1500 milhões de
dólares a devolver em dez anos, dos quais o governo espanhol
também não pode dispor livremente, uma vez que devem ser
utilizados obrigatoriamente na importação de produtos norte-
americanos.
O terceiro acordo é, para todos os efeitos, o mais importante.
Embora no texto seja apelidado de «pacto de ajuda para a defesa
mútua», na prática consiste na cedência de território nacional para a
instalação de quatro bases militares norte-americanas. Começa
imediatamente a construção de três bases aéreas, localizadas em
Morón (Sevilha), Saragoça e Torrejón de Ardoz (Madrid), e uma
naval, situada em Rota, na baía de Cádis.
Depois de manter em segredo a negociação e a assinatura do
pacto, Franco não tem outro remédio senão remeter a 5 de outubro
de 1953 o texto para as Cortes Espanholas – simulacro de
parlamento fundado em 1943 para manter as aparências junto dos
aliados. Mesmo numa ditadura apoiada por uma censura férrea, que
não permite a mais pequena margem de oposição, e apesar de a
imprensa, como é óbvio, só publicar elogios ao pacto, o
descontentamento que os seus termos provocam nos
pseudoparlamentares, escolhidos a dedo pelo ditador, acaba por se
manifestar e ser comentado com insistência em diversos círculos.
Os procuradores comprovam que, à partida, os Estados Unidos não
assumem qualquer obrigação com Espanha, pelo que não se pode
falar, de modo algum, de uma aliança. Irrita-os descobrir uma
isenção total de impostos, concedida a todos os investimentos e
gastos efetuados pelos Estados Unidos em território nacional,
transformando Espanha, não só para efeitos fiscais, numa colónia.
O Pacto de Madrid consta também de um protocolo secreto que
só se tornará público muitos anos depois. Os acordos adicionais
permitem, por exemplo, que os Estados Unidos decidam
unilateralmente a utilização das bases, que lá armazenem armas
nucleares – como fizeram efetivamente em Torrejón, a vinte e dois
quilómetros de Madrid, e em Rota –, que a ajuda económica seja
exclusivamente destinada a investimentos relacionados com os
acessos, a construção e a manutenção dessas bases, ou que os
tribunais espanhóis se coíbam de julgar qualquer cidadão norte-
americano que tenha cometido um delito civil ou penal em Espanha
contra espanhóis, entregando-o à jurisdição militar norte-americana.
Em troca de semelhantes presentes e de tanta humilhação,
Franco obtém o bem que por tanto anseia, a integração de Espanha
no Ocidente e o seu reconhecimento como líder do mundo livre na
luta contra o comunismo.
Um dia antes de a cidade de Valência receber o primeiro prémio
da Lotaria de Natal de 1959, o ditador recebe um prémio ainda
maior, quase tão valioso como aquele que as potências do Eixo lhe
dão no verão de 1936.
Nesse dia, o Air Force One aterra na nova base de Torrejón de
Ardoz, e Francisco Franco, que espera junto das escadas do avião,
une-se ao presidente Eisenhower num abraço inequivocamente
carinhoso.
Numa fotografia que, desta vez sim, dará a volta ao mundo, o
vencedor da Segunda Guerra Mundial absolve de todos os seus
pecados o Caudilho pela graça de Deus, protegido e aliado de Hitler
e de Mussolini.
A 21 de dezembro de 1959, Francisco Franco volta a ganhar a
guerra.
Os antifranquistas ficam total, gritante e definitivamente sós no
mundo, mas nem por isso deixam de lutar contra a ditadura.
TOULOUSE, CASA INÉS, 16 DE AGOSTO DE 1968

A cozinheira de Bosost, como a conheciam os clientes mais


antigos, estava tão atarefada como em qualquer sexta-feira de
agosto às duas menos um quarto da tarde.
– Inés! – Angelita deveria sabê-lo. – Vem cá um instante que
querem falar contigo!
– Agora não posso! – gritou da cozinha, negando com a cabeça.
– Tenho muito que fazer.
Parece mentira, resmungou sem deixar de atentar ao pil-pil,
quem se lembraria de vir agora visitar-me, só tu, insistiu sem deixar
de mexer a panela, no fim de contas trabalhamos juntas há vinte e
cinco anos, pelo que… Em outubro de 1944, quando chegou a
Toulouse com o exército da UNE que tinha invadido inutilmente o
vale de Arán, Inés Ruiz Maldonado fora trabalhar para a cozinha de
uma taberna pequenina, uma cooperativa de mulheres, onde todas
laboravam o mesmo número de horas, recebiam o mesmo salário e
partilhavam os lucros. Desde então, tinham prosperado bastante.
Agora eram proprietárias de um local que La Dépêche du Midi
classificara como «o melhor restaurante espanhol em França» antes
de o Guia Michelin lhe atribuir, em 1966, a sua primeira estrela. Mas
a comida não se faz sozinha… Vendo que o molho já tinha
engrossado, deixou-o nas mãos de um ajudante, corrigiu duas
vezes o ritmo a que ele o mexia e foi ver o forno onde assavam dois
borregos. Se alguém se esqueceu outra vez do alecrim, mato-o!,
exclamou, segundos antes de o nariz lhe revelar que tal não
acontecera. Nesse instante, Angelita não se lembrou de nada
melhor do que voltar à carga.
– Inés! – Não se conformou em gritar da porta. – Anda cá um
instante, mulher, não sejas teimosa. – A cozinheira pôs as mãos nas
ancas, lançando-lhe um olhar desafiador, mas a maître não se
afastou. – É um camarada que veio de Espanha visitar-te e parece
que tem muito interesse. Chama-se…
– Nem que se chamasse Miguel de Cervantes. – Apertou a
touca, voltou-lhe costas e abriu a porta do forno. – Agora não posso
sair daqui, já te disse. Não sei como não percebes, até parece que
não me conheces…
Angelita revirou os olhos antes de desaparecer, e Inés nem
sequer se voltou para olhar, não era preciso. Elas, aquelas quatro
mulheres que já não considerava sócias ou colegas de trabalho,
nem sequer amigas, porque naquela altura eram muito mais do que
isso, tão parte da sua família como o marido e os quatro filhos,
faziam-lhe sempre o mesmo reparo. Apesar de o número de
trabalhadores ter aumentado ao mesmo ritmo que o negócio, Inés
continuava a considerar «sua» a cozinha do restaurante. Nunca
tinha questionado a gestão do local, as campanhas publicitárias, as
reformas ou as ofertas, mas não tolerava que ninguém tocasse
numa colher e muito menos se atrevesse a tomar decisões, por
mais insignificantes que fossem, sem a sua aprovação. Não era por
acaso que o restaurante tinha o seu nome. Durante muitos anos,
fora a única chef da Casa Inés e já era demasiado velha para
aprender a trabalhar em equipa. Também tinha consciência dos
seus defeitos, demasiada soberba, demasiada exigência, porém não
sabia fazer as coisas de outra maneira e como a sua atitude criava
muitos problemas, às vezes com outros cozinheiros mas quase
sempre com a filha Virtudes, que lhe herdara o talento, mas também
o feitio, passava a vida a pedir desculpa.
A possibilidade de Angelita poder ser o próximo alvo do seu
arrependimento não lhe diminuiu a satisfação por se ter livrado dela
na altura mais complicada de uma sexta-feira de agosto. Vieram de
Espanha, pensava enquanto metia o nariz em todas as panelas,
vejam lá, que grande novidade… Nesse dia, como em todos os
outros dos últimos verões, a Casa Inés estava cheia, com todas as
mesas reservadas havia meses, a abarrotar de espanhóis que
continuavam a viver no seu país. Mesmo que não fossem nem mais
nem menos compatriotas do que os seus camaradas de exílio, elas
gostavam sempre de os receber. A fama do restaurante atravessara
os Pirenéus e a imprensa franquista costumava incluí-lo nas
recomendações, mas a maior parte dos clientes que telefonavam
para reservar com meses de antecedência não vinha só comer.
Sabiam que aquele local era um santuário do exílio comunista, um
monumento à memória da invasão de Arán, o restaurante que a
Pasionaria tinha escolhido para comemorar o seu quinquagésimo
aniversário, o lar de um pequeno exército de militares republicanos
e de guerrilheiros antifascistas que ali almoçavam ou jantavam
todos os dias. De início, as donas da Casa Inés não queriam
acreditar que o fracasso pudesse ter-se transformado em
publicidade para tantos jovens espanhóis educados sob a ditadura,
que nem sequer haviam feito a guerra. Porém, com o tempo,
alegraram-se por pensar que aquele desenlace inesperado tinha o
poder de transformar a derrota numa vitória final, duradoura, talvez
definitiva, muitos anos depois de se terem resignado a enterrar a
última esperança. A admiração com que todos aqueles miúdos
contemplavam as fotografias que decoravam as paredes, o orgulho
com que se identificavam como militantes do Partido, o respeito com
que pediam aos empregados que lhes tirassem uma fotografia,
sozinhos ou com qualquer combatente que tivessem conhecido,
comovia Inés, muitas vezes até às lágrimas. Porém, sempre depois
de ter acabado o serviço na cozinha, nunca antes, antes nunca…
Voltou a repeti-lo passados três quartos de hora quando finalmente
tirou a touca, pôs a cabeça de fora e viu que ninguém esperava.
– E então? – perguntou a Angelita, depois de lhe fazer sinal para
que se aproximasse. – Vamos lá ver, onde está essa visita tão
importante?
– Foram almoçar a outro sítio. Isto estava cheio e, como não
quiseste sair, não me atrevi a levá-los para a área reservada. Ele
disse-me que era amigo do Galán. Portanto, se o teu marido se
aborrecer contigo mais tarde, não te queixes.
– Bah! Pois sim… Ele que se atreva. – Voltou a pôr a touca e
encaixou-a bem na testa. – Avisa-me quando voltarem, se é que
voltam.
Regressou aos fogões para supervisionar as sobremesas e
esqueceu-se dos visitantes até Angelita a chamar. Nessa altura,
tirou a touca, alisou o cabelo, olhou-se um momento ao espelho que
havia posto perto da porta para estas ocasiões e seguiu-a
docilmente até à sala. Já passava das três, e a cozinha estava
calma, embora os últimos comensais tivessem acabado de se
sentar.
Encontrou-os de pé, junto do balcão, e os olhos da mulher
impressionaram-na mais do que o aspeto do homem, um espanhol
chapado, da sua idade. Alto, magro, de pele azeitonada, tinha o
cabelo escuro, a cara muito comprida e óculos de massa. Estava
absolutamente certa de que nunca o tinha visto, mas enganava-se
ao pensar que não o conhecia.
– Olá, deves ser Inés, não é? – Espantou-a um pouco que a
tratasse por tu sem mais nem menos, mas apertou-lhe a mão que
ele lhe estendia com um sorriso que também lhe pareceu excessivo
– Eu sou o Rafael Cuesta.
– Caramba!
Disse-o num murmúrio e esperou que o visitante se apercebesse
de que a exclamação grosseira não lhe era dirigida a ele, mas a si
própria. Porque um simples nome um apelido e tinham bastado para
convencer Inés Ruiz Maldonado de que cometera uma argolada
com quem menos o merecia.
Rafael Cuesta fora uma pessoa importantíssima para uma jovem
cozinheira espanhola que não conseguia dormir desde que chegara
a França. Não podia cozinhar com manteiga sem desvirtuar o sabor,
o aroma de todos os seus pratos, e o azeite francês, mau, escasso
e caríssimo, não era uma boa alternativa. Na segunda metade dos
anos quarenta, quando o marido começou a trabalhar
clandestinamente no interior, tentou que lhe trouxesse azeite de
Espanha em todas as viagens, mas ele só o conseguiu fazer uma
vez, e esse fornecimento continuou a tirar-lhe o sono até à
primavera de 1949. Em junho desse ano, Comprendes, o marido de
Angelita, levou até Toulouse uma vintena de guerrilheiros da Sierra
Sur de Jaén, que haviam fugido com as famílias. Nesse grupo,
chegou Fernanda, que sempre fora talhante, mas que se juntou de
boa vontade à cozinha e que se desatou a rir no dia em que Inés
quase chorou ao ver o pouco azeite que restava no último bidão que
Galán lhe tinha mandado de Saragoça.
– Mas, que é que tu queres? Azeite? Então vais-te fartar, minha
filha, porque em Fuensanta não temos nada, mas oliveiras… Uma
pessoa até se farta de as ver, é só o que te digo.
– Ouve, Fernanda… – Inés falou com ela ao cabo de um mês e
pico. – Esse teu amigo, o Pepe, o que nos comprou o azeite…
Confias nele?
Como na minha própria mãe, respondeu ela, mas nem sequer
essa resposta tranquilizou a chefe. Tinha razões para estar
preocupada, porque em menos de seis semanas recebera duas
cartas de um tal Rafael Cuesta Sánchez, em envelopes da mesma
transportadora de Madrid. A primeira era uma simples guia de
remessa que acompanhava o envio de noventa litros de um azeite
virgem de excelente qualidade. Porém, na segunda, o senhor
Cuesta Sánchez dirigia-se-lhe pessoalmente para a informar, numa
linguagem comercial, de que havia encontrado umas caixas de sidra
El Gaitero, que estava a guardar até ter oportunidade de lhas enviar
em boas condições porque eram muito frágeis.
Quando Inés lera aquelas palavras, havia muitos meses que
Galán, cujo primeiro nome de guerra fora Gaitero, tinha entrado em
Espanha e não havia voltado. Só regressou a 28 de novembro e,
nessa altura, entre outras coisas, contou à mulher que estava vivo
graças a um médico clandestino que trabalhava numa
transportadora chamada La Meridiana, o homem que ainda não
deixara de lhe enviar azeite e que, quando apareceu na Casa Inés,
ela não veio cumprimentar e teve de ir almoçar a outro restaurante.
– Desculpa, sinto muito, a sério. – Depois de lhe ter apertado a
mão, abraçou o recém-chegado com toda a força. – A culpa é
minha, a culpa é minha, não podia imaginar… Sinto muito, sinto do
fundo do coração…
– Mas… – O visitante ficou a olhar para ela boquiaberto. –
Sentes o quê?
– Ora, que tivessem de ir almoçar a outro sítio. Depois de tudo o
que fizeste por mim, com a quantidade de azeite que me mandaste,
e eu… – Fechou os olhos com força como se lhe doesse continuar a
vê-lo. – Isso sem falar do que aconteceu em Madrid, com o Galán,
em 1949…
Ele desvalorizou o que tinha acontecido, garantiu-lhe que
almoçaram muito bem, acrescentou a tempo que estava certo de
que ali teriam almoçado muito melhor e apresentou-lhe a mulher.
Quando a cozinheira esgotou as desculpas, ele disse-lhe que tinha
vindo de Madrid para se encontrar com o marido dela. Queria falar-
lhe de um assunto e, como calculava que estivesse de férias,
lembrara-se de passar no restaurante, não fosse ele estar ali a
almoçar.
Ouvindo-o, Inés deu-se conta de que ele estava preocupado,
adivinhou que as notícias que trazia para o marido não eram boas e
absolveu-se de todos os seus pecados. Sem lhes pedir mais
desculpa, conduziu-os até à última sala do restaurante, a que as
donas apelidavam de reservado da família, bateu à porta com os
nós dos dedos e rodou a maçaneta antes de obter resposta. Rafael
Cuesta e a mulher entraram atrás dela numa sala bastante grande,
com uma mesa oval, para uns vinte comensais, onde naquele
momento muitos homens e várias mulheres fumavam e bebiam um
copo.
– Sentem-se, por favor – limitou-se a dizer, enquanto aproximava
duas cadeiras da cabeceira onde estava o marido, que se voltou ao
ouvir-lhe a voz, para observar os recém-chegados.
– Rafa? – Primeiro pôs os óculos que trazia pendurados num
cordão. – Rafa! – Depois tirou-os velozmente para o abraçar. –
Rafa…
Há quase vinte anos que não se viam, mas falavam muitas vezes
por telefone. Quando o marido de Inés escapou da polícia,
atravessando a montra de uma pastelaria, ficou queimado para o
trabalho clandestino. Regressado a França, depois de muitas voltas
ao assunto, acabou por montar uma empresa de importação e
exportação, um negócio em que recorria muito a La Meridiana, com
uma frota de carros muito maior do que a dele, para envios
pequenos, cujo volume não tornava rentável a utilização de um
camião. Além disso, embora Rafa nunca se tivesse filiado no
Partido, encarregava-se de muitos dos envios que circulavam entre
Espanha e o exterior.
Inés, que sabia de tudo, deixou-os e regressou à cozinha para
trazer umas sobremesas. Antes disso, tirou o avental, anunciou que
ia ao reservado e, como ninguém respondeu, perguntou se não se
importavam de os deixar sozinhos. A filha Vivi revirou os olhos,
como Angelita fizera duas horas antes, e respondeu que não, que
não se importavam.
– Sei que devem ter comido sobremesa, eu sei, eu sei –
antecipou-se aos convidados enquanto pousava os pratos entre os
dois –, mas trouxe-vos isto, caso vos apeteça provar.
– Claro que sim, muito obrigado. – Rafael Cuesta sorriu antes de
retomar a conversa com Galán. – O que acontece é que é um favor
um pouco delicado. Por isso não me atrevi a pedi-lo por telefone…
No dia seguinte, os empregados de Inés festejaram os efeitos
terapêuticos que aquela visita tivera na chefe.
Angelita, que a conhecia muito melhor, prognosticou que as
melhoras não durariam muito, e acertou.
Duas semanas depois, a chef da Casa Inés já decidia o ritmo a
que deviam esmagar-se os alhos no almofariz da «sua» cozinha,
mas nunca mais deixou de ir à porta quando a avisavam de que
tinha visitas.
MADRID, 26 DE OUTUBRO DE 1968

Julgava que estava preparado, mas, quando o Ricardo


estacionou o carro na área reservada aos advogados, a fachada da
cadeia devolveu-me uma sensação quase esquecida, como se os
tijolos tivessem dedos capazes de se enfiarem na minha garganta,
obrigando-me a regurgitar o líquido azedo de uma má digestão de
que julgava ter-me livrado havia muito tempo. Não voltara a parar
naquela estação, a meio caminho entre o medo e a náusea, desde a
primavera distante de 1939, quando deambulava diariamente pela
cidade, para não enlouquecer num quarto da pensão Moderna de
Puente de Vallecas.
– Calma. – Ricardo apertou-me o braço esquerdo, sorrindo. – Sei
que impressiona, mas não te preocupes. Vai correr tudo bem.
Seis meses antes, a 11 de maio de 1968, sábado, tinha ido ao
cinema com as minhas duas filhas. A Rita precisava de participar
numa assembleia onde se discutiria a posição do Partido nos
protestos que agitavam a Universidade Complutense, no entanto,
mesmo antes de se realizar, aquela reunião já acarretava uma
consequência importante para mim. Ficas com a miúda, avisou-me
a minha mulher, porque o Manuel, com dezassete anos, saía aos
fins de semana sozinho, e a Rita, que tinha acabado de fazer
quinze, também costumava encontrar-se com as amigas. No
entanto, nessa tarde, decidiu vir com a Andrea e comigo, embora o
cartaz não fosse grande coisa. O único filme que encontrei para
todas as idades era um musical inglês, Half a Sixpence, no cinema
Paz.
Chegámos a tempo de conseguir bons lugares, comprámos
pipocas e vimos um filme enorme que me deu tempo para dormitar
um pouco. A Andrea, que tinha sete anos, aborreceu-se bastante,
mas a irmã, em plena idade do armário, emocionou-se como uma
idiota com o milionário repentino que permanece fiel à promessa de
amor feita a uma rapariga pobre, bonita e boazinha, quando era um
mero trabalhador sem um centavo. No entanto, aquele musical ficou
gravado para sempre na memória dos três. Não pelo argumento,
nem pelas canções, mas por uma banda sonora diferente, embora
não tão distante do espírito do romance que o havia inspirado.
– Operários e estudantes, unidos avante!
Antes de chegarmos à praceta de Bilbao, ouvimos esta palavra
de ordem multiplicada por um coro de vozes juvenis, enraivecidas,
cujo eco provocou uma debandada num passeio repleto de peões
que entravam ou saíam dos cinemas. Graças à clareira que abriram
ao dispersar-se, vimos que uma centena de pessoas haviam
cortado o trânsito da praça, invadindo o bloco inicial da calle
Carranza.
– O filho do operário, para a universidade!
Andrea assustou-se, deu-me a mão, começou a choramingar.
– Que é isto, papá? – Escondeu-se atrás do meu sobretudo. –
Quem são?
Há muitos anos que não via, muito menos ouvia, uma coisa
semelhante e o espetáculo deixou-me tão atónito que nem lhe
respondi. Fê-lo a minha filha Rita, com um desembaraço que me
deixou atordoado.
– Não é nada, Andrea. Estes são os bons, os amigos da mamã.
– Sim, bem, são… São os bons, claro. – Pareceu-me tão
estranho proferi-lo em voz alta, que nem me perguntei quantos anos
teriam passado desde a última vez que me atrevera a falar de
política na rua. – Vamos vê-los.
Aproximámo-nos da berma do passeio, e não fomos os únicos,
mas ninguém disputou a primeira fila.
– Espanha, amanhã, será republicana!
Eram muito jovens, estudantes universitários nos primeiros anos,
dois ou três anos mais velhos do que o meu filho Manuel, e viam-se
quase tantas raparigas como rapazes, elas de cabelo curto ou muito
comprido, com calças muito largas ou saias muito curtas, eles com a
nuca escondida pelas guedelhas e com a fralda das camisas visível
sob as camisolas, fora do cinto. Aquelas manifestações
instantâneas chamavam-se saltos, a Rita já mo havia dito, mas até
esse dia não tinha visto nenhum. Pensava que, mais uma vez, a
minha mulher exagerava, que se deixava arrastar por uma paixão
invencível que a levava a criar montanhas de fé com grãos de areia.
Porém, vendo-os achei que estavam bem organizados, até
habituados a cortar o trânsito. O ruído das primeiras sirenes que se
aproximavam pela esquerda provou-me isso mesmo, porque, num
instante, sem necessidade de se coordenarem, sem sinais de
surpresa e sem esperarem que alguém desse ordem de retirada,
começaram a fugir em todas as direções. Estavam treinados,
corriam muito depressa e dava gosto vê-los, mas, mal escutei um
estrépito de cascos de cavalos que se aproximava pela direita,
recuperei a sensatez a tempo de agarrar cada uma das minhas
filhas pela mão, de lhes pedir que corressem e de chegar com elas
ao refúgio da entrada de um prédio.
Dali não conseguia ver nada, mas o barulho das sirenes e das
buzinas levou-me a crer que os carros obstruídos pelos
manifestantes demoravam mais a arrancar do que a polícia teria
gostado. Ainda não tinha terminado este pensamento quando entrou
um casal, vindo da rua. Não deviam ter mais de vinte anos e vinham
ofegantes, o rapaz a puxar pela rapariga, que avançava a pé-
coxinho porque torcera um pé. Quando nos viram, assustaram-se e
pararam de chofre, entreolhando-se como se não soubessem o que
fazer.
– Calma – murmurei. – Entrem, escondam-se atrás das minhas
filhas.
– Obrigado, senhor – murmurou ele.
– De nada, mas enfia a camisa nas calças porque está a descer
alguém.
Eram duas mulheres, uma velhota que caminhava com
dificuldade e uma senhora de uns cinquenta anos, com aspeto de
empregada, e ambas se espantaram ao ver-nos, os cinco muito
juntos, encostados à parede.
– Boas tardes – respondi ao cumprimento delas e dei-lhes
também um conselho de graça. – Eu cá, não iria agora para a rua. A
polícia está lá fora, deve ter havido uma manifestação ou alguma
coisa…
– Ai, meu Deus! – A velhota tapou a cara com as mãos. – Jesus,
Maria, José!
Tinham descido a pé, mas subiram de elevador até ao primeiro
andar. Quando o motor parou e ouvi o ruído de uma porta a fechar-
se, dirigi-me aos jovens.
– Como se chamam? – Só depois de saber, falei com as minhas
filhas. – O Alberto e a Cristina, têm de se lembrar. Elas chamam-se
Rita – apontei com o indicador – e Andrea. Vamos lá ver, Andrea,
como se chamam eles?
– Alberto e Cristina.
– Muito bem, repete três vezes… – Ela repetiu como se
estivesse numa aula, com os olhos fechados de concentração. – O
Alberto é teu primo, está bem? E a Cristina é a namorada dele.
– Mas eu não tenho primos…
– Está bem, mas agora tens um. – Apontei para o rapaz com o
dedo. – Ele. – A minha filha sorriu, como se a ideia lhe agradasse
muito, e eu apresentei-me aos dois desconhecidos. – Chamo-me
Rafael, Rafa para vocês, já que vão ser o meu sobrinho e a sua
namorada, certo? Fomos todos ao cinema Paz ver um filme que se
chama Half a Sixpence, percebido?
– Já o vi – comentou ele e, observando-o com mais atenção,
reparei que usava uma camisola de gola em bico, azul-celeste, que
deixava ver o negativo da coroa de louros que alguém, talvez ele
próprio, tirara, cortando o fio com a ponta da tesoura, para a libertar
da infâmia da marca. – É uma merda.
– Nem pensar! – protestou a Rita. – Adorei, é muito romântico
e…
– Deixemos isso para mais tarde. Agora temos de sair daqui. Se
a polícia nos perguntar, fomos todos ao cinema, entrámos às quatro,
saímos às seis menos dez e deparámo-nos com o salto. Não, com o
salto não – lembrei-me a tempo. – É melhor dizermos
manifestação… – Fiquei a pensar. – Não, também não. Balbúrdia.
Deparámo-nos com a balbúrdia, ou com o barulho, ou com a
algazarra, o que mais gostarem, e tivemos medo de continuar na
rua porque a Andrea só tem sete anos e se assustou muito. Por
isso, enfiámo-nos na primeira entrada que vimos. O mais importante
é não ficarem nervosos. Se vos pedirem a identificação, vocês
mostram-na como se não fosse nada convosco, está bem? – Olhei
para o Alberto e para a Cristina e, enquanto assentiam, fiquei com a
certeza de que provinham de boas famílias burguesas. – De
acordo? – Olhei para as minhas filhas e só a Rita abanou a cabeça.
– É que eu não percebi muito bem – disse a Andrea. – Só que
tenho um primo…
– Não faz mal, querida. Tu não fales, está bem? Aconteça o que
acontecer, ficas calada.
Saímos daquela entrada com uma expressão risonha. ACristina
levava a Andrea pela mão, baloiçando o braço, mas aquela imagem
idílica de família não impediu que dois polícias armados nos
mandassem parar, muito respeitosamente.
– Boas tardes, senhor. – O que se dirigiu a mim levou a mão ao
chapéu em jeito de cumprimento. – Vivem nesse prédio?
– Não – respondi, repetindo palavra por palavra a história que
tinha engendrado na entrada, usando duas «barafundas» pelo meio.
– Posso ver os seus documentos?
– Naturalmente. – Estendi-os. Enquanto ele os estudava, a
Andrea ficou tão nervosa que me desobedeceu.
– O meu primo Alberto – disse ao outro polícia – diz palavrões. –
E olhou para ele. – Disseste que o filme era uma merda, e merda é
um palavrão.
– Então o que faço? – Era um homem novo e achou graça à
história da minha filha. – Zango-me com ele?
– Sim. – A Andrea desatou a rir. – Zangue-se com ele.
– Não se dizem palavrões, Alberto.
– Obrigado, senhor. – O colega devolveu-me os documentos e
não pediu mais nenhum. – Boas tardes.
Enquanto nos afastávamos, o Alberto ia dizendo que a Andrea
era uma queixinhas, embora lhe prometesse nunca mais dizer
palavrões. Porém, mal atravessámos na calle Fuencarral para
entrarmos na Hartzenbusch, deixámos de falar. Voltámos à direita
na calle Palafox até alcançar a calle de Luchana e continuámos a
andar, tão sérios e concentrados como se integrássemos um cortejo
fúnebre. Os meus protegidos ainda estavam assustados. Eu, muito
mais do que eles.
Até então, sempre tivera presentes as instruções que o Manolo
Arroyo me dera havia mais de trinta anos: tenta não te meter em
sarilhos e, se a polícia não te detiver, há de correr tudo bem. Meti-
me em muitos sarilhos, mas, como médico clandestino, os riscos
que os meus pacientes corriam justificavam os meus e, quando ele
próprio me recrutou para a organização Stauffer, a Clara e as
amigas protegiam-me, sendo que o Steinbauer o fez até ao fim.
Naquela tarde, no entanto, expusera-me a uma detenção sem rede,
sem nenhuma necessidade e com as minhas filhas pela mão. Sabia
que a identidade de Rafael Cuesta Sánchez estava bem
consolidada, garantida por trinta anos de boa conduta e presente
numa série de documentos públicos, não sendo considerada
suspeita, mas a minha imprudência assustou-me e o orgulhoso
prazer que ela me inspirou, ainda mais. Enquanto tentava acalmar-
me, pensando que, ao fim e ao cabo, tudo correra muito bem, o
choro súbito da Andrea arrancou-me aos meus pensamentos.
– Desculpa, papá, sinto muito. – Era a que mais se parecia com
a mãe, de quem herdara o talento e uma facilidade cativante para a
palhaçada mesmo nos momentos mais dramáticos, um dom que me
dificultava muito a tarefa de me aborrecer com alguma das duas. –
Falei, falei, eu não queria, mas falei…
Aquela explosão trouxe um final risonho, até divertido, ao
encontro.
– Muitíssimo obrigado, caro senhor. – O Alberto estendeu-me a
mão e sorriu. – Ou melhor, tio Rafael.
– Isso. – Enquanto a apertava, também eu sorri. – Boa sorte e
até à próxima.
– Muito obrigada. – A Cristina, mais expressiva, deu-me um
abraço cauteloso e um beijo na cara, mas não chegou a afastar-se
mais de dois passos. – Posso fazer-lhe uma pergunta?
O amigo, que já se dirigia para o metro, voltou-se de repente,
como se tivesse adivinhado tão bem como eu de que pergunta se
tratava.
– É que gostava de saber… O senhor é… – Baixou a voz como
se a palavra que se preparava para proferir a assustasse –
Vermelho?
– Mas, Cristina, por favor – censurou-a o Alberto –, como é te
passa pela cabeça…?
Levantei uma mão para a desculpar porque não me tinha
ofendido. Também não me foi difícil ver-me com os olhos dela ou
com os do polícia que acabara de me tratar com tanta consideração.
Eu era um senhor de cinquenta e quatro anos, com um blazer de lã
inglesa, calças desportivas, camisa bege e gravata de seda, tudo
muito burguês e de tanta qualidade como a educação das filhas, a
mais nova com um vestido branco às flores bordeaux, a combinar
com o casaco de malha, a mais velha com uma minissaia branca,
não muito curta, uma camisola às riscas e umas sandálias
vermelhas, como um anúncio de uma rebeldia com estilo, mesmo
elegante, a que se podia permitir uma boa menina da época, o
código de vestuário da própria Cristina. Isso também fazia parte da
minha impostura, da cobertura que me tinha permitido chegar sem
tropeções até esse dia e que poupara desgostos à minha mulher,
mas aquela pergunta não chegou aos ouvidos de Rafael Cuesta
Sánchez. Antes disso, encontrou outro caminho, um desvio que a
levou diretamente até Guillermo García Medina, o homem
desaparecido, inexistente, que nunca se esqueceu de que era neto
do seu avô. E foi ele, o meu eu verdadeiro, quem respondeu.
– Sou – respondi. – Desde muito antes de tu nasceres.
A Cristina abanou a cabeça e nenhum dos dois comentou a
resposta. Olhei-os em silêncio até entrarem no metro e parei um táxi
porque não sentia vontade de andar. Diante da entrada do meu
prédio, decidi que também não tinha vontade de subir. Estava
demasiado nervoso, excitado para dar aquela tarde por terminada.
Para a prolongar, anunciei às minhas filhas que íamos lanchar a um
café.
– Ouve, papá. – A Andrea abriu a boca suja com a nata e o
chocolate que havia escolhido para os bolinhos. – É verdade que tu
és…?
– Cala-te, Andrea – interveio a irmã. – Isso, sim, não se diz.
– És uma mandona, Rita. Não é verdade que se pode, papá?
– Bom… – safei-me como pude. – Ouve lá, acabámos por não
falar do filme. Que achaste? Foi uma merda ou não foi uma merda?
A Andrea, a quem nada agradava tanto como os palavrões,
desatou a rir e não voltou ao assunto. Mal chegámos a casa, foi
brincar para o quarto enquanto eu e a Rita disputávamos uma
partida na sala.
– E tu… – murmurei antes de mexer uma peça. – Como é que
sabes tanto?
– Papá, por favor. – Abanou a cabeça várias vezes, como se não
conseguisse acreditar no que ouvia, e respondeu-me: – Tenho
quinze anos. O que é que achas, que sou tonta?
Jogava com as brancas e ganhou, porque cada vez analisava
melhor o jogo e porque não consegui concentrar-me naquela
partida. Pedi-lhe desforra, mas não ma concedeu. Nem penses,
exclamou, para as poucas vezes que te ganho… Nesse momento, a
Rita abriu a porta, e segui-a até ao nosso quarto.
Quando voltou para dizer que o jantar estava pronto, detetei-lhe
nos olhos um brilho trocista que não vira antes, enquanto me
contava como tinha corrido a reunião. Também eu lhe relatei o salto,
mas antes de conseguir concluí-lo, o Manuel, que acabara de
chegar, interrompeu-nos para perguntar à mãe se podia comer o
que ela trouxera da rua. Ela respondeu-lhe que não, que era tudo
para o jantar, mas como não confiava muito na sua autoridade
enquanto o balcão da cozinha estivesse cheio de sacos, saiu
disparada para vigiar as compras.
– Fizeste uma estupidez. – Nessa noite foi difícil ficarmos
sozinho, mas, por volta da meia-noite, a minha mulher serviu-se de
uma bebida, deu-me outra e sentou-se no sofá ao meu lado. –
Sabes disso, não sabes?
– Quem te contou, a Ri? – Tínhamo-nos a tratá-la por aquele
diminutivo, que a mãe sempre achou ridículo, para não as
confundirmos.
– Claro. Se ficar à espera de que tu me contes…
Observando-a, constatei que ela era, de longe, a mais insensata
dos dois, porque a estupidez que eu cometera dava-lhe uma
satisfação maior do que a dureza com que parecera censurá-la.
– Enfim, uns pobres jovens – resumi. – Estavam a morrer de
medo e a mim, o que é que me podia acontecer? Escondemo-nos
antes de que a bófia saísse dos carros e eles chegaram àquela
entrada três segundos depois, de modo que… Tinha a certeza de
que não os tinham visto. – Bebi um gole e olhei para ela. – E tu, o
que terias feito?
– Eu? – A pergunta surpreendeu-a mais do que eu esperava, e
talvez ela própria. – Teria fugido a correr, evidentemente. Isso não
quer dizer que me pareça mal o que fizeste, acho muito bem, como
deves calcular, mas não teria sido tão estúpida, nem tão corajosa e,
estando com as miúdas, ainda menos. Nem sequer me teria metido
numa entrada. Teria virado em qualquer rua e desaparecido dali o
mais depressa possível.
– A sério? Bom, mas isso é porque tu os conheces, os viste mais
vezes, eles já te prenderam. Tu estás sempre com medo da bófia,
mas eu… Eu não via uma manifestação desde 1939, imaginas? E
emocionou-me tanto vê-los e, sobretudo, ouvi-los… Espanha,
amanhã, será republicana, diziam. – Ela sorriu e assentiu com um
movimento da cabeça. – Portanto, suponho que enlouqueci um
pouco.
Desde que tivera o Manuel, a Rita era extremamente cuidadosa,
mas, mesmo assim, já acumulava duas detenções. Na primeira, em
meados dos anos cinquenta, fora apanhada numa rusga
indiscriminada, conseguira convencer o juiz de serviço de que
estava só a passar por ali e foi imediatamente libertada. Na
segunda, no verão de 1960, esteve presa mais de vinte e quatro
horas. A polícia tinha irrompido numa reunião que decorria em casa
de uma atriz, que tivera o cuidado de distribuir cópias de uma peça
de teatro entre os assistentes. O comissário não engoliu a desculpa
de serem um grupo de teatro amador que se reunira para ensaiar,
porém, revistado o apartamento, os homens não encontraram nada.
Depois de uma segunda e uma terceira revistas, tão infrutuosas
como a primeira, falei com o primogénito de don Gabino,
subsecretário do Ministério da Agricultura, disse-lhe que a Rita
estava grávida de quatro meses, e consegui que a libertassem dois
dias antes dos outros. Quando a fui buscar, ela prometeu-me
solenemente que nunca mais voltariam a detê-la e até essa noite
cumprira a promessa.
– Não, claro que imagino que te tenhas emocionado e tudo isso
– disse, depois de pensar um pouco –, porque a verdade é que é
muito emocionante ver gente tão nova a gritar palavras de ordem,
mas o que me surpreende… – Fez uma pausa, olhou para o copo,
depois para mim, com uma expressão cautelosa, quase tímida. –
Não te ofendas, mas acho estranho que te tenha dado para isso,
justamente a ti, que nunca quiseste envolver-te em nada.
– Nunca quis envolver-me em nada?
– Está bem, como médico, sim – corrigiu-se rapidamente e dei-
me conta de que ela tinha interpretado mal o meu espanto,
confundindo-o com uma indignação inexistente –, refiro-me a outras
coisas. Nunca quiseste militar, não é verdade? Por isso… O que
fazes é muito valioso, para que conste, mais do que muitos, mas…
– Olha, Rita – interrompi-a antes que ela continuasse às voltas
com o mesmo argumento, como um burro preso a uma nora –, ando
há vinte anos à procura do momento certo para te contar uma
história, uma parte da minha vida de que não sabes nada.
– Não é preciso, hã? Também não leves isto…
– Não – voltei a interrompê-la. – É preciso, eu preciso. Vou
explicar-te porque nunca pensei em militar. Portanto cala-te e ouve-
me.
Comecei por um princípio que já lhe havia contado, lembras-te
do meu amigo Manolo, o secretário de Azcárate, a quem o Negrín
pediu que viesse para Madrid em 1937?, e cheguei a um final tão
recente que acabou no restaurante onde eu tinha ido almoçar com o
Rolf no fim de janeiro, e onde talvez o encontrasse dali a alguns
meses.
Na primeira parte da confissão, o que mais me assustava era
surgir-lhe como um assassino, mas só ante a descrição do crime ela
cravou os olhos nos meus. Não os afastou nem por um instante
enquanto eu evocava os pormenores, o peso da cabeça de Adrián
Gallardo contra o meu estômago, o calor pegajoso do sangue, o
tremor das minhas mãos, o medo, a culpa e aquela camisa húmida
de que me livrei na praça da Ópera, enquanto ela se arranjava em
casa da mãe para ir jantar comigo meia hora depois. Os seus olhos
enormes e estranhos, aos quais a passagem do tempo não roubara
nem um pouco de beleza, a sua semelhança perturbadora com
aqueles que o pincel antigo de um artista egípcio desenhara numa
parede, revelavam tanta compaixão como se quisessem absolver-
me de todos os pecados, mas a paz que transmitiam não durou
muito. Quando já não havia marcha-atrás, questionei-me se teria o
direito de fazer o que nesse momento fazia, se a Rita, tão perfeita
na sua imaculada pureza de lutadora alegre e cândida, merecia
ouvir uma verdade tão grotesca, tão suja, quase sempre tão feia,
depois de ter vivido comigo e sem ela durante tantos anos. Quando
terminei, já havia descoberto a resposta.
– Perdoa-me. – Ela continuava calada, agachada e imóvel,
olhando para baixo. – Não te devia ter contado isto. Tu tinhas razão,
não era preciso…
– Não. – Endireitou-se, dirigiu-se para mim, abraçou-me, e os
braços dela pareceram-me tão fortes, tão sólidos, como se a sua
vontade estivesse a resgatar-me de um abismo, do fundo do mar, da
beira de um precipício. – Não me peças perdão, sou eu quem tem
de to pedir… – Escondeu a cabeça no meu peito, abanou-a,
continuando a falar. – Que horror!
Aquelas duas palavras resumiam tudo, porque fora um horror.
Minutos antes das quatro da manhã fomo-nos deitar sem dizer
muitas mais. O sono venceu-me antes de que me desse conta disso
e só acordei quando a Andrea subiu os estores e se atirou para
cima de nós. A Rita disse-me que ia ficar na cama um pouco mais
porque não tinha dormido nada, mas ainda eu não acabara o café
quando veio ter comigo, com muito má cara.
– Estive toda a noite a pensar no assunto e… não percebo –
disse-me num sussurro quando ficámos sozinhos. – O que
aconteceu no fim?
– Nada. – Sorri, interpretando parcialmente o sentido da sua
pergunta. – Não aconteceu nada porque não correu bem. Foi por
isso que o Manolo me mandou uma caixa de bombons vazia. Não te
conto os pormenores porque não os conheço.
– Mas… Mas como é possível que aquele filho da puta continue
em El Pardo? – Olhou-me com os olhos da Andrea, com a
expressão de uma menina de sete anos que não percebia o que
estava a acontecer à sua volta. – Que mais é preciso para que o
tirem de lá? Quem mais precisa de matar, quantos assassinos mais
tem de proteger, que tem que fazer? – Abracei-a para a poupar a
uma resposta que conhecia tão bem como eu, mas ela não se
rendeu facilmente. – E nós… Que fizemos nós para estarmos pior
do que os nazis? Porque não valemos nada? Porque nunca se
importaram connosco?
Mantive-a abraçada em plena cozinha, beijando-a na cabeça
como a um bebé até lhe passar a vontade de perguntar, e o meu
silêncio acompanhou-a de volta à cama, de onde não se levantou
até à hora do almoço.
– Estou muito orgulhosa de ti, só para que saibas.
Tomara um banho, vestira-se e pintara-se, o que nela era quase
sempre uma decisão insólita, sobretudo num sábado de manhã. A
maquilhagem não era tanto uma promessa de firmeza, mas uma
tática para apagar as marcas de um desastre que ainda se podia ver
na lentidão dos passos, no vagar dos movimentos, na vermelhidão
que lhe sobrevivia nos olhos a um risco de lápis preto e muito rímel.
Beijou-me nos lábios e, quando afastou a cabeça da minha, sorriu
com uma difícil determinação antes de me fazer uma última
pergunta.
– Convidas-nos a almoçar por aí, como se fôssemos nazis?
Regressados da taberna de Argüelles onde tínhamos jantado
tantas vezes quando namorávamos, tudo parecia ter voltado à
normalidade. Não era verdade. Entre 11 e 12 de maio de 1968,
muitas coisas mudaram, não só no íntimo da Rita, que demorou
mais tempo do que eu esperava a recuperar a fé, a confiança
inabalável num futuro feliz que eu destruíra, abrindo fendas na sua
superfície que nunca fechariam completamente mas também no
meu íntimo. Porque, se ao sair do cinema Paz não tivesse
acontecido nada, teria acompanhado a minha mulher ao concerto de
Raimon, no sábado seguinte, mas não teria podido apresentar-lhe o
Alberto e a Cristina, que vieram cumprimentar-me, muito
sorridentes, e, sobretudo, não teria lido com tanta atenção a edição
do Informaciones que, alguns dias mais tarde, publicou a lista dos
detidos nos protestos da Universidade Complutense, entre eles,
junto às iniciais JAUP, o nome Guillermo García Priego, pelo qual
também era conhecido um professor de Económicas, militante
comunista.
– Que tens? Conhece-lo? – O meu amigo Federico, o único
clandestino com quem mantinha contacto ininterrupto desde que o
Pepe Moya me recrutara como médico em 1941, porque só podia
deslocar-se numa cadeira de rodas e nunca o tinham prendido,
olhou para mim com estranheza.
– Creio que sim. – Nunca lhe havia feito perguntas sobre
ninguém, mas também não lhe quis explicar os motivos do meu
interesse. – As iniciais coincidem com um nome que conheço e o
nome por que é conhecido também me diz qualquer coisa.
– Que queres saber?
– Não sei, qualquer coisa que me ajude a ter a certeza se é ele
ou não… – Parei para pensar. – Bastavam-me a data de
nascimento, por exemplo, ou o nome da mãe.
Três dias mais tarde, entregou-me uma cópia da primeira página
da instrução do processo aberto contra um subversivo, nascido a 11
de setembro de 1938, filho de um tal Juan Urbieta Campos e de
Amparo Priego Martínez.
– O advogado dele, que é muito bom rapaz, deu-ma. – De
repente, deu-se conta de mais qualquer coisa. – Acho que também
o conheces. Bom, a ele não, mas… Vamos ver se acerto. – Parou
para pensar como se precisasse de repetir de cor. – O Ricardo, este
advogado, é sobrinho da mulher daquele camarada que
escondemos há vinte anos, lembras-te? Aquele que atravessou a
montra de uma pastelaria e que tiveste de operar não sei quantas
vezes em casa do Cipri e da Carmen, na calle Buenavista…
O Ricardo Ruiz Aguilar, primogénito do irmão mais velho de Inés
Ruiz Maldonado, tinha a mesma idade que o meu filho mais velho,
trinta anos. Quando nos encontrámos pela primeira vez, quinze dias
depois do meu regresso de Toulouse, identifiquei-o pelo aspeto,
cara barbeada, o cabelo moderadamente comprido, uma camisa
clara com dois botões abertos, sem gravata nem casaco, apenas
uma camisola fina sobre os ombros. Aquela maneira de vestir,
calculada para o distanciar o mais possível do aspeto dos jovens
franquistas sem chamar muito a atenção, dava-lhe um ar infantil, de
menino grande, que ele próprio se encarregou de desmentir a
tempo.
– A primeira coisa que quero que saibas – explicou, inclinando-
se sobre a mesa para falar mais perto, embora às cinco da tarde
houvesse pouca gente, e nenhum ouvido próximo, na esplanada da
plaza de Santa Ana onde tinha marcado encontro comigo – é que o
que vamos fazer é, além de ilegal, uma conduta tipificada como
delito. Pelo que me disseram de ti, calculo que te seja indiferente,
mas eu sou advogado e tenho de to dizer.
Quando comprovei que JAUP era o meu filho Guillermo, a minha
primeira reação foi querer ir vê-lo a Carabanchel, simplesmente,
num dia de visita, mas a Rita começou a enumerar com os dedos de
uma mão por que motivos seria impossível.
– Um preso do Partido, em prisão preventiva, à espera de
julgamento num Tribunal de Ordem Pública, sem nenhum
parentesco comprovado contigo… – Sobrou-lhe o polegar. –
Esquece. Mesmo que ele pedisse, nunca autorizariam.
O Federico, a quem nunca expliquei a minha relação com aquele
preso, confirmou a opinião da Rita e propôs-me que lhe escrevesse
uma carta.
– Vão lê-la, vão ficar a par de tudo antes dele, mas se te
interessa tanto… É a única coisa que se pode fazer.
Teria sido a única se o meu filho tivesse outro advogado, se eu
não tivesse um amigo em Toulouse, se a Inés e o Galán não
tivessem querido ajudar-me, se o Ricardo não tivesse sorrido
enquanto me explicava que o que íamos fazer era um delito.
– Vais entrar em Carabanchel como advogado, não há outra
maneira, mas não te preocupes porque vou tratar de tudo. Só
preciso de uma fotografia tua para o cartão de um colega com
quem, teoricamente, partilharei a partir de agora a defesa do
Guillermo. – A partir desse momento, deixei de o ouvir. – Tu entras
na cadeia comigo, como se fosses ele, e…
– Chamas-lhe Guillermo? – A minha voz fraquejou um pouco
enquanto lho perguntava.
– Toda a gente o trata por Guillermo, ele nunca usa outro nome.
– O Ricardo olhou para mim, voltou a sorrir e abanou a cabeça. –
Mas não fiques nervoso antes de tempo, está bem? Já notifiquei o
tribunal de que outro advogado se irá juntar à defesa. Não vão dizer
que não porque é uma situação normal, sobretudo tendo em conta
que tenho em mãos mais de vinte casos semelhantes aos do teu
filho, mas não sei quando responderão. O advogado que nos vai
ajudar está inscrito em Madrid, mas não costuma tratar de casos
penais. Vive em Alcalá de Henares e dedica-se a pequenas coisas
de advogado de bairro, como redação de contratos, testamentos,
isso assim. É simpatizante do Partido, mas não tem ficha na polícia
e em Carabanchel quase nunca o viram. Tem menos quatro anos do
que tu, mas suponho que não te importes de rejuvenescer um
pouco…
Ao longo da minha trajetória enquanto médico clandestino,
desconfiara muitas vezes de que o PCE era o único que funcionava
bem em Espanha. Confirmei-o quando soube que Ángel Valverde
Roldán me ia emprestar o seu cartão da Ordem dos Advogados de
Madrid sem nunca me ter visto, guardando na carteira uma
falsificação tão boa que, segundo o Ricardo, nunca acreditou que
não fosse o documento autêntico. Com esse cartão e um papel do
tribunal que reconhecia o seu possuidor como advogado de defesa
do recluso José Antonio Urbieta Priego, entrei sem qualquer
dificuldade na cadeia de Carabanchel a 26 de outubro de 1968.
– As comunicações com os advogados não se fazem no locutório
geral – explicou-me o Ricardo, antes de sairmos do carro. – Cada
recluso fala com o seu advogado de defesa numa divisão com um
tabique a meio com uma janelinha. No lado do preso está presente
um guarda, que ficará à espera de que tu te sentes. Depois, o
normal é que vá para o corredor, embora deixe a porta aberta. Se
falares baixo, não ouve nada, mas o Guillermo ouvirá perfeitamente.
– Fez uma pausa para tirar uma pasta da mala. – De qualquer
forma, dá-lhe isto. Diz-lhe alto que são documentos que ele tem de
rever e, enquanto ele finge lê-los, podem falar tranquilamente. Tens
vinte e cinco minutos. Alguma pergunta?
Neguei com a cabeça, e ele assentiu porque não podia adivinhar
que lhe havia mentido. Na realidade, tinha uma pergunta, a mais
importante de todas, aquela que justamente por isso não me atrevi a
fazer. Só queria saber como o Ricardo lhe anunciara a minha visita,
mas tinha tanto medo da resposta que deixei passar, mais uma vez,
a oportunidade de o averiguar. Enquanto transpunha o portão da
entrada, a cada passo que dava ao longo de um corredor estreito e
mal-iluminado, a minha incerteza ia aumentando até ficar com uma
sensação tão angustiante que quase me convenceu de que não
tinha necessidade nenhuma de estar ali. Bastava-me dar meia-volta
e recuar alguns metros para chegar ao ar livre, parar um táxi e ir
para casa, mas ainda não tivera tempo de o considerar duas vezes
quando o Ricardo se dirigiu a um guarda prisional, assinalando-me
com o dedo.
– A número três. – O guarda, por seu turno, apontou para uma
porta, depois de verificar os meus documentos, de olhar para o
relógio e de anotar a hora num impresso. – Tem vinte e cinco
minutos, senhor Valverde.
A divisão era bastante pequena. Tinha as paredes nuas,
descascadas, o chão sujo e cheirava a comida, um odor triste e
desabrido, a verduras cozidas, que me transportou de novo às salas
do rés-do-chão do hospital de San Carlos em algumas tardes
escuras, chuvosas, de uma guerra perdida. Registei tudo isso antes
de me atrever a olhar em frente, para o buraco quadrado, gradeado,
atrás do qual me olhava uma versão de mim em que já não
consegui reconhecer-me com tanta precisão como noutras vezes
porque, embora estivesse preso, o meu filho tinha o cabelo mais
comprido do que eu alguma vez tivera.
Não fui capaz de dizer nada. Baixei os olhos até à cadeira,
afastei-a da parede para me sentar e, no momento em que levantei
novamente a cabeça, descobri que a imagem da janela tinha
mudado. O preso esticara o braço direito e apoiara a mão aberta na
grade. Calculei que fosse uma forma de cumprimento, mas ainda
não me tinha decidido a corresponder quando o murmúrio da sua
voz me abalou como um grito.
– Olá, papá.
Olhei para ele e achei-o muito mais calmo do que eu. Naquele
momento, sorria. Depois, deixei de o ver bem.
– Não chores, papá. – O tom da sua voz confirmou-me que não
deixara de sorrir. – Os advogados não choram.
– Suponho que não – consegui responder, baixando a cabeça e
limpando os olhos às mangas do casaco. – Claro que não. –
Pigarreei antes de levantar a voz. – Pega, trouxe-te alguns papéis
que tens de verificar…
Fiz um canudo com eles para os passar por uma abertura e os
dedos dele tocaram nos meus através da grade e não se retiraram,
prolongando o contacto por mais alguns segundos.
– Muito obrigado. – Desenrolou os documentos, pousou-os no
parapeito e voltou a olhar para mim. – Estás melhor?
– Sim, mas não percebo… Tu sabes? Julgava que… O nome
sim, mas eu… Não sei, não estava à espera disto…
No inverno de 1958, o José Antonio Urbieta estava a repetir o
primeiro ano de Economia. Desde os doze anos que não precisava
de ir à segunda época, contudo, chegado à universidade, em vez de
se aplicar, como a mãe esperava, virou-se para todas as direções
menos para os estudos. No primeiro ano da licenciatura, só foi
aprovado a uma disciplina e, à segunda tentativa, o resultado dos
exames não pressagiava um cenário muito melhor.
– Concluindo – resumiu-me dez anos depois, tratando-me com a
naturalidade risonha e firme que não teria com um simples
conhecido –, a minha mãe fechou a torneira no fim de janeiro. Ora
como eu nunca fui poupado, já tinha gastado tudo o que me deram
pelo Natal, até ao último centavo. Mas, além de comer, precisava de
mais quarenta paus porque tinha um encontro com uma rapariga de
quem gostava muito e tinha prometido levá-la a dançar. Nessa
altura, lembrei-me de que um amigo do colégio me tinha contado em
tempos que a mãe guardava o dinheiro na gaveta das cuecas.
Soava mal, era muito feio, mas pensei que justamente por isso
deveria ser um bom esconderijo. Uma tarde em que estava sozinho
em casa, esvaziei a gaveta das cuecas da minha mãe. Não havia
dinheiro lá, mas encontrei outras coisas muito bem guardadas
dentro de um envelope.
– A tua certidão de nascimento – aventurei, e ele assentiu. –
Nunca me teria ocorrido que não a tivesse queimado.
– Pois, mas lá estava, com um livro de família republicano…
Republicano! – Desatou a rir-se. – Foda-se, não conseguia
acreditar… Também encontrei a fotografia de um bilhete dela a pedir
desculpa por alguma coisa que não se percebia, e outra dela,
grávida, com um ramo de flores nas mãos, de braço dado com
aquele médico que veio ver-me todas as tardes quando estive
doente e que me ensinou a jogar xadrez.
– Não te esqueceste.
– Não, apesar de estares mais novo e, sobretudo, muito mais
magro, magríssimo… Mas, de início, foste o único que reconheci.
Demorei algum tempo a dar-me conta do resto. Apesar de ao fundo
se verem dois soldados, apesar de não estarem numa igreja, nem a
mamã estar vestida de branco, essa fotografia só podia ser de um
casamento e, pela data do livro de família, de um casamento
celebrado em Madrid, em plena guerra, ou seja, exatamente o
contrário do que me tinham contado. Naquela época, eu não sabia
nada de história, nem de política. A verdade é que sabia muito
pouco fosse do que fosse, mas era evidente que tu não usavas
farda de falangista e que não estavam na catedral de Burgos.
Depois havia a certidão de nascimento que eu tinha acabado de
descobrir, a única que vi na vida. A data coincidia, mas o resto…
Pensei que não fazia sentido a minha mãe guardar com tanto
cuidado uma série de documentos falsos. Portanto, se os que
estavam naquele envelope eram autênticos, os dados do meu
bilhete de identidade, aqueles que escrevi em todos os impressos
que preenchi na vida, o meu nome e o apelido paterno, não
poderiam ser verdadeiros. Ora, isso significava que eu próprio, do
princípio ao fim, era o raio de uma mentira. – Fez uma pausa,
acendeu um cigarro, abanou a cabeça. – Não te consigo explicar o
que senti. Guardei depressa todas as cuecas e enfiei-me na cama
vestido, tapei a cabeça com o lençol e desliguei a luz. Não me
levantei para jantar, não me despi, passei muitas horas acordado e
depois adormeci e só acordei à uma da tarde do dia seguinte.
– E a Amparo deu-se conta de tudo. – Durante as primeiras
visitas, ele falava sem parar, como se só esperasse que o ouvisse,
mas eu intervinha de vez em quando para que o guarda ouvisse o
som de duas vozes. – Quando abriu a gaveta, deve ter visto que
alguém desarrumou o que estava lá dentro.
– Não sei o que te dizer porque a verdade é que agiu como
sempre. Mediu-me a temperatura, mandou que me fizessem arroz
branco para o almoço e disse-me que tinha um compromisso com
as irmãs. Quando se foi embora, encaminhei-me para o quarto dela,
meti a mão na gaveta com muito cuidado, tirei o envelope e voltei a
esvaziá-lo. Esperava ter sonhado, esperava que tivesse sido um
pesadelo, sei lá… Mas não. Continuava tudo ali.
Três semanas depois da sua detenção, em meados de junho de
1968, um Tribunal de Ordem Pública condenou o José Antonio
Urbieta Priego a oito meses e um dia de prisão por ter convocado e
participado em assembleias universitárias. Entre 26 de outubro de
1968 e 12 de fevereiro de 1969, quando o puseram em liberdade
com os habituais dias de cadeia a mais, fui visitá-lo a Carabanchel
meia dúzia de vezes. As visitas duravam sempre vinte e cinco
minutos, embora nalguns dias me mandassem embora antes disso
e noutros ultrapassasse a meia hora, de acordo com a disposição
do guarda encarregado de as vigiar. A soma daqueles pedaços de
conversa era curta para que duas pessoas se conhecessem, mas
eu e o meu filho tivemos essa oportunidade e sobrou-nos tempo.
– Não me pareço nada com os meus primos Priego. Não tinha
parecenças com ninguém da minha família e menos ainda com
aquele Urbieta, cuja foto estava em cima do piano. Foda-se! – Riu-
se ao pensar nisso. Ora, se o tipo até era louro, eu não sei onde a
mamã foi desencantá-lo e como não encontrou nada melhor… De
facto, podia ter-me dado conta disso muito antes, mas até ter visto a
tua fotografia nunca me ocorreu pensar se me parecia ou não com o
resto da família. Depois, sim. Mais tarde, sentado na cama da minha
mãe, rodeado por montinhos de cuecas brancas e pretas, lembrei-
me de que, quando me conheceu, a rapariga que eu queria levar a
dançar me disse que, se eu tivesse o cabelo liso, seria igual ao
«Cavaleiro com a mão no peito». Quando a ouvi, fiquei a pensar por
que razão aquilo me parecia familiar. Quem conheço com a mesma
pinta? Tinha a sensação de já ter pensado o mesmo de alguém,
mas não juntei as peças, acreditas? Depois, olhando bem para a
fotografia… Claro!, compreendi, é com este que me pareço.
– E como correu? – Olhou para mim como se não tivesse
percebido a pergunta. – Com a rapariga. Levaste-a…?
– Nada! Acabei por nem sequer me encontrar com ela. Fiquei
todo o fim de semana em casa, fechado no quarto, como se tivesse
apanhado uma gripe. Bom… – Sorriu-me. – A verdade é que,
embora não me doesse nada, me sentia como se a tivesse
apanhado. A princípio estava meio aparvalhado, mas depois, dando
voltas ao assunto, tudo começou a encaixar. Vencidas aquelas
febres estive sempre bem, mas a mamã teve uma pneumonia lixada
pouco antes disto e o médico vinha vê-la todos os dias, mas ficava
cinco minutos, às vezes nem isso. Portanto… Um médico privado
ficar uma hora com um miúdo, todas as tardes, durante três meses,
a ler-lhe Trafalgar e a brincar com ele, não deveria ser muito normal.
E ninguém em casa ter voltado a falar de ti, a minha mãe não te ter
dado um presente e ficar tão zangada por me teres ensinado a jogar
xadrez… Não sei, eram muitas coisas, e estranhas de mais, para
que não fosses meu pai.
Pouco depois do Guillermo se curar da febre reumática, a
Amparo começou um noivado tardio e muito confortável com um
empresário, herdeiro de um empório industrial siderúrgico, que vivia
entre Madrid e Bilbau. A idade da noiva, que passava dos trinta e
cinco anos, e a opulência prestigiada do noivo, que oficialmente
continuava a viver na sua cidade natal, deram à relação uma
cobertura de respeitabilidade conveniente para ambos. No entanto,
ao fim de cinco anos, ela descobriu que estava cansada da casinha
de El Viso onde se encontravam e começou a encarar a
possibilidade de se casar. O seu único filho, que fora sempre o
pretexto para não dar esse passo, não só não se opôs como
aproveitou a oportunidade para tentar arrancar-lhe informações.
– A verdade é que já tinha feito algumas averiguações por conta
própria. Cada vez que a Experta nos vinha visitar, eu encurralava-a
na despensa e infernizava-a com perguntas. A princípio ela não
queria contar-me nada, mas quando lhe perguntei se queria que lhe
mostrasse a fotografia do casamento dos meus pais para comprovar
que também aparecia muito sorridente ao lado do noivo, amoleceu
um pouco… Já me tinha dito quem eras e que antigamente vivias no
apartamento da frente. Depois de lhe prometer que nunca a
denunciaria, contou-me mais algumas coisas. Que o meu bisavô
tinha morrido em plena guerra, que tu o tinhas enterrado, que tinhas
escondido a minha mãe, que tinham vivido juntos até 1939… Que
eras o meu pai. E que eras vermelho.
– E que pintei para ti o comboio de madeira que tinhas no quarto,
ao lado da fotografia desse tal Urbieta… Não te disse isso?
– Não me lixes! – Olhou-me com os olhos esbugalhados. – Disso
não sabia.
– Pois fui eu. – Ao dizê-lo, senti um alívio profundo,
desproporcional ao tamanho daquele mero brinquedo de madeira. –
Esse comboio era meu, ofereceram-mo num aniversário quando era
pequeno. Quando a tua mãe engravidou, encontrou-o num armário,
pintou-o com verniz das unhas e ficou horrível. No dia seguinte,
quando fui para o hospital trabalhar, trouxe do armazém um pincel e
algumas latas de tinta, lixei-o, arranjei-lhe as rodas e voltei a pintá-
lo. Apesar de não ter ficado uma maravilha, pelo que… Se calhar já
o deitaste fora e tudo.
– Não, ainda o tenho. A mamã dizia sempre que era a única
coisa que guardava do meu pai, o que não percebo é… – Ficou a
pensar durante algum tempo. – Quando ela me disse que estava a
pensar casar-se com o Iñaqui, tentei puxar-lhe pela língua. Nunca
me tinha contado nada acerca do primeiro casamento, só que o meu
pai se chamava Juan Urbieta, que se alistara na Divisão Azul e que
morrera na Rússia como um herói. Quando lhe pedi que me
contasse mais coisas, já tinha vinte anos. Disse-lhe que era um
adulto, tinha o direito de saber, que compreendia que tinham sido
anos muito duros, muito difíceis, que numa guerra aconteciam
coisas que não se passavam em tempos de paz, sei lá… Facilitei-
lhe tanto o trabalho de me contar a verdade que teve de se
aperceber de que eu sabia de alguma coisa, mas não abriu a boca e
acabou por se zangar comigo. No entanto, guardou esse comboio,
deu-mo, brincámos com ele no corredor muitas vezes… A Experta
disse-me que, se as coisas tivessem corrido de outra forma, se a
República tivesse vencido a guerra, a minha mãe nunca te teria
deixado. Que te abandonou porque estava certa de que te iam
fuzilar e não queria que ninguém soubesse que tinham vivido juntos
na Madrid vermelha. Em 1939, pôs-se a contar por aí que tinha
estado escondida numa aldeia da serra, em casa de uma amiga.
Mas ninguém a tinha visto lá, ninguém conhecia essa amiga e a
mamã tinha muito medo de que as pessoas começassem a fazer
perguntas, de que a relacionassem contigo, com os teus amigos,
sobretudo com um médico estrangeiro que fazia transfusões de
sangue. Isso é verdade? – Assenti com a cabeça, e ele respondeu,
negando com a sua. – Estás a ver, nunca acreditei…
Quando se restabeleceu da verdade, o Guillermo decidiu que a
sua vida não podia continuar a mesma. Até então, nunca se
interessara por política. O fantasma do pai falangista era
insignificante e a sua ausência demasiado ténue para o empurrar
nessa direção. Não simpatizava com os estudantes do SEU porque
eram uns papa-hóstias, além de castos e marrões, atributos dos
quais se sentia equitativamente distante. Nos comunistas nem tinha
reparado, porque a clandestinidade os obrigava a ser muito
cautelosos, porém, apesar disso, contactar com eles não lhe deu
assim tanto trabalho.
– De início, não queriam saber de mim para nada, claro. Não
percebiam a que propósito eu revelava tanto interesse de repente,
deviam pensar que eu era um infiltrado do SEU ou, mesmo, da
polícia. Mas entre eles havia uma rapariga do meu ano com quem
me dava muito bem. Contei-lhe a verdade, que tinha acabado de
saber quem era o meu pai, que não conseguia encontrá-lo porque
vivia com um nome falso, que queria entrar no Partido porque era a
única maneira que de o conhecer… Se tivesse contado a um rapaz,
ele provavelmente mandava-me dar uma curva mais as minhas
baboseiras sentimentais, mas ela compreendeu e ficou do meu lado.
Disse-me que ia ver o que podia fazer e perguntou-me como te
chamavas. Dei-lhe o teu verdadeiro nome, o único que conhecia,
aquele que aparecia nos documentos, e disse-lhe que eras médico,
embora não exercesses, que te chamavam Rafa e que trabalhavas
numa empresa de camiões. Foi isso o que a Experta me contou, o
que não era muito, mas, no fim de uma semana, a minha amiga veio
ter comigo, disse-me que os camaradas mais velhos, os que tinham
feito a guerra, te conheciam e falavam muito bem de ti, que tinhas
sido uma espécie de herói nos anos quarenta… – Arqueou as
sobrancelhas enquanto os lábios se curvavam num sorriso irónico. –
Vê lá tu a sorte que tenho, todos os meus pais são heróis.
– Bom – repliquei, devolvendo o sorriso e a ironia –, também não
é nada do outro mundo. É verdade que trabalho para o Partido
como médico desde 1941 e que salvei a vida de muitos comunistas,
claro, mas não mais do que qualquer outro cirurgião no meu lugar.
Além disso, como trabalho numa transportadora, dou uma mãozinha
de vez em quando, trazendo coisas e tirando pessoas do país, mas
não é nada heroico porque… – Parei para procurar uma maneira
melhor de lhe explicar. – Eu ficava sempre no gabinete. Não
passava a fronteira, a polícia não me revistava. Na realidade, os
heróis eram os camionistas, apesar de quase nunca saberem o que
levavam.
– Mas, se tivessem detido algum, tu irias para a cadeia, e eles
não.
– Isso é verdade. – Sorri, porque era divertido reconhecê-lo
naquele momento, naquele sítio. – Mas nunca aconteceu.
– Está bem, mas o facto é que a mim me disseram que eras um
herói e, claro, não tive outro remédio senão tornar-me comunista. –
Olhou para mim e ambos nos desatámos a rir ao mesmo tempo. –
Dito assim, parece uma frivolidade, mas foi o que aconteceu. Eu
nunca tinha sentido a falta de um pai, mas desde que soube que
existia, que estava vivo e porque o tinha perdido, foi impossível
manter-me à margem. Às vezes, eu próprio pensava que o que me
acontecia era muito estranho, sobretudo porque nunca deixei de
amar a minha mãe. Se o que a Experta contava era verdade, ela
também tinha sido uma vítima de Franco, eu próprio era uma vítima.
Não sei, tornar-me comunista pareceu-me a melhor solução para
continuar a amá-la, agindo ao mesmo tempo como teu filho. Nem
me passou pela cabeça odiar-te, envergonhar-me de ti, pelo
contrário. Já te conhecia, dos tempos de Trafalgar, e simpatizava
contigo. – Desatou a rir e eu ri-me com ele. – Claro que não podia
contar isto na faculdade. Também não tinha muito tempo para
conversas, acredita, passava todo o dia a estudar. Tive de ler O
Capital, de fazer um curso de marxismo e de marrar imenso, nessa
altura e mais tarde, porque os comunistas tinham de ser sempre os
melhores, os primeiros da turma, sabes disso.
– A tua mãe deve ter ficado satisfeita.
– Ficou doida. Ela queria que eu fizesse Económicas para entrar
numa empresa do noivo, estás a ver… Mas a verdade é que
descobri que gostava de estudar. Como nunca tinha praticado, não
fazia ideia, mas quando me dediquei, aprovei o que ainda me faltava
do primeiro ano e metade do segundo em junho, com boas notas.
Depois, a mamã casou-se, começou a passar temporadas em
Bilbau e eu fiquei com muito mais liberdade de movimentos, mas
nunca te encontrei.
– Claro, porque eu não sou do Partido. A minha mulher é
comunista, a maior parte dos meus amigos é comunista, receio que
até a minha filha Rita esteja prestes a tornar-se comunista, mas eu
nunca cheguei a filiar-me. Sou o que vocês chamam um
companheiro de estrada.
– E porquê?
– Porquê…? – Fiz uma pausa enquanto pensava por onde
começar.
– Sim – insistiu ele, contudo o guarda de serviço já estava a
entrar para pôr fim à visita do senhor Valverde. – Porque nunca o
fizeste?
Nesse dia não tive tempo de responder àquela pergunta e, no
encontro seguinte, o nosso diálogo mudou de direção.
– Estive a pensar no que me disseste outro dia – confessei-lhe,
depois de pousar a mão na dele através da grade –, e há uma coisa
que não compreendo muito bem. Porque não me procuraste?
Podias ter ido visitar-me, a Experta sabe onde trabalho.
– Sim, pensei nisso muitas vezes, mas… – Evitou os meus olhos
e interroguei-me se seria possível que estivesse a corar. – Vais
achar uma estupidez, mas… A verdade é que tinha medo. – Olhou
para mim e verifiquei que, de facto, corara. – Tinha muito medo de
ter mudado de vida por ti e que tu… Sei lá! – Quando a cor das
faces já roçava o vermelho, voltou a desviar os olhos. – Sabia que
estavas casado, que tinhas mais filhos, a Experta contou-me, e se
calhar… Se aparecesse no teu trabalho um belo dia, tu podias
pensar: e este parvo que pretende? Como lhe passou pela cabeça
complicar-me a vida nesta altura? Eu já era demasiado velho para
me armar em orfãozinho, não achas? E depois, a tua mulher, se
calhar… Não sei. Às vezes, as mulheres fazem coisas estranhas.
Quando me prenderam, a minha namorada não fazia outra coisa
senão pedir-me que nos casássemos, todos os dias, a toda a hora.
Mas, ainda nem estava há três meses na choldra, quando me
deixou por outro camarada, assim, sem mais nem menos, e acaba
de se casar com ele… A tua mulher, se calhar, também podia não
querer que entrasse na tua vida atual um filho da tua vida anterior.
Resumindo, não me atrevi.
Fiz uma pausa para pôr em ordem o que ele acabara de me
contar e avancei com a única conclusão possível.
– Tinhas medo de que eu te dececionasse. De teres feito tanto
por mim e de eu não querer fazer nada por ti.
– Sim – acabou por confessar. – Por isso é que me senti tão
orgulhoso quando soube da confusão que tinhas criado para entrar
aqui. – Então, sem que o rosto tivesse recuperado ainda a cor
normal, desatou a rir. – Os camaradas que souberam diziam-me
mas o teu pai está louco ou quê? Olha que, se o apanham, vai ter
tempo de sobra para te ver no pátio todos os dias… Ninguém
percebia, mas para mim foi muito importante.
– Para mim também – reconheci, e o rubor ultrapassou a barreira
da grade.
– Não sei, pensava que um dia nos encontraríamos numa
assembleia, numa reunião, em casa de alguém, e que poderia dizer-
te quem era, o que me tinha acontecido, sem parecer que estava a
pedir-te alguma coisa, percebes? Mas nunca te vi.
– E, no entanto, estive no concerto do Raimon, na tua faculdade.
– A sério? – Sorriu, já muito mais calmo. – Pois eu tive de me
esconder nessa mesma tarde, vê lá tu. Estive seis noites a dormir
na calle Moreto, no atelier de uma modista, mãe de um camarada
que é professor de Filologia Hispânica. Saía meia hora antes de as
raparigas chegarem e voltava a entrar quando as via sair, porém, no
dia 24, tinha uma reunião de Departamento para marcar os exames
de junho e fui, pensando que seria mais arriscado não aparecer.
Apanharam-me à porta da faculdade, nem cheguei ao vestíbulo.
– Pouca sorte.
– Tinha chegado a minha vez. – Voltou a sorrir. – Havia dez anos
que militava sem uma única detenção e, além disso… se não
tivesse acontecido, talvez nunca nos encontrássemos.
Mais tarde, o Manuel devolveu-me o irmão mais velho pela
segunda vez.
Demorei mais de um mês a convidá-lo a almoçar em minha casa,
porque temia que o encontro não corresse bem e que o Guillermo
acabasse por se transformar numa obrigação constrangedora, numa
espécie de parente fingido que a Rita convidava de vez em quando
só para não me fazer a desfeita. Para mim, teria sido muito mais
fácil prolongar uma relação paralela, à margem da minha casa, da
minha mulher, dos meus outros filhos, mas não o podia fazer sem
parecer que me envergonhava de ser seu pai e, além disso, os
irmãos estavam decididos a conhecê-lo. Quando cedi às
insistências, todos se deram conta de que nem sequer ele estava
tão nervoso como eu, mas o formalismo das apresentações não
durou muito.
– Eu teria gostado mais que fosses meu primo porque irmãos já
tenho, mas… – Só o tempo que a Andrea demorou a encontrar uma
maneira airosa de lhe dar as boas-vindas. – Vê lá tu, a mamã trata o
papá por Guillermo, embora nós tenhamos de dizer que se chama
Rafa. E o papá chama-te Guillermo a ti, embora nos tenha dito que
te chamas José Antonio. Portanto… É óbvio que deves ser desta
família.
Durante aquele almoço, o Manuel esteve o tempo todo atento ao
irmão. Sentou-se ao lado dele, riu-se das suas piadas e elogiou-lhe
as opiniões com um entusiasmo que não me pareceu fingido.
Embora eu nunca tivesse parado para pensar que ele pudesse
sentir a falta de um par, de outro rapaz com quem partilhar uma
fraternidade semelhante àquela que unia as irmãs, tive a impressão
de que estava a sucumbir ao feitiço do irmão mais velho, à tentação
de criar uma minúscula cápsula masculina que albergasse uma
aliança privada, especial, só dos dois. Como se quisesse dar-me
razão o mais depressa possível, no dia seguinte, domingo, mudou
de equipa de futebol sem pensar duas vezes e começou a ir com o
Guillermo ao estádio de Manzanares para apoiar o Atlético.
O calendário da Primeira Divisão possibilitou, muito mais
facilmente do que o parentesco, um contacto fluido e natural entre o
meu filho mais velho e os meus filhos mais novos. Nos domingos
em que a sua equipa jogava em casa, o Guillermo vinha buscar o
Manuel e iam juntos para o estádio. Nalguns domingos, éramos nós
que o convidávamos para almoçar e, noutros, era ele quem levava o
irmão a algumas tascas, perto do estádio, e as raparigas ficavam
ciumentas. Na oportunidade seguinte, depois do jogo, iam lanchar
os quatro e não lhes passava pela cabeça convidar-me. Eu não
gostava de futebol, porém, naquela época, a paixão dos meus filhos
chegou a causar-me inveja. No entanto, quando disse ao Manuel
que estava a pensar tornar-me sócio do Atlético para poder
acompanhá-los, ele disse-me que não era boa ideia. Foi assim que
soube que o Guillermo tinha começado a sair com a Laura, a filha
mais velha da Manolita, que conhecera no estádio porque era tão
entusiasta como ele e não perdia um jogo.
– Já basta ele ter de namorar diante do Silverio, coitado. Se tu
também começas a vir, da forma como o impressionas, dás-lhe cabo
do esquema.
– E tu? – perguntei-lhe, bastante surpreendido. – Tu não?
– Papá, por favor, eu sou irmão dele. – Enquanto me respondia
parecia mais surpreendido do que eu. – Não é a mesma coisa.
Gostei tanto daquela resposta que não insisti. Também não me
arrependi porque, meses depois, no verão de 1970, a luta livre deu-
me a oportunidade de partilhar esse gosto com os meus filhos.
O Guillermo tinha conhecido na cadeia um preso de delito
comum chamado Juan Gómez Gómez, um gigante que cumpria
pena por ter matado um homem numa rixa. Media quase dois
metros, tinha uma força descomunal e alegara sempre que o seu
crime fora um acidente, porque não pretendia matar a vítima quando
a atirara ao chão. Nunca conseguiu convencer nenhum juiz, mas o
aspeto temível que o prejudicou em tribunal ajudou-o a encontrar
trabalho mal saiu em liberdade. Desde então, ganhava a vida nos
espetáculos de luta livre que aqueciam o ambiente das noites de
boxe, com o nome artístico de O Demónio de Aço. Era muito
cândido, mas por mais que tentasse mudar de nome e de destino,
só lhe apareciam contratos para ser o mau da fita e perder contra os
bons. Para compensar aquela desgraça, eu e os meus filhos
transformámo-nos nos seus adeptos mais fervorosos e íamos vê-lo
sempre que atuava em Madrid ou nos arredores. Já o tínhamos
visto ser derrotado uma série de vezes quando, finalmente, lhe
ofereceram uma vitória, no segundo combate da noite que se
realizaria em Las Ventas a 15 de junho de 1974.
– Está louco de contentamento, coitado. – Os meus filhos foram
buscá-lo a casa, levaram-no até ao local do combate e esperaram lá
por mim. – Explicámos-lhe que não devia ter ilusões, que tem de
ganhar de vez em quando para que as pessoas o odeiem ainda
mais, mas ele não percebe.
– Nada, diz que vai ser um grande êxito…
O espaço estava a rebentar pelas costuras porque no combate
principal se disputava o Campeonato de Espanha. Quando
ocupámos os nossos lugares, os meus filhos já sabiam que eu não
ficaria para ver. Nunca gostara de boxe, nem sequer antes de me
cruzar com o Adrián Gallardo, mas a luta livre era pura
representação, uma espécie de ballet brutal, uma comédia
selvagem onde tudo, as pancadas, a dor, a vitória e a derrota, eram
fingidas, tão falsas como as manchas de molho de tomate que
florescem no peito dos atores que têm de morrer um segundo antes
de virem ao palco cumprimentar. No entanto, nessa noite, em Las
Ventas, alguém parecia não saber disso.
– Esmaga-lhe a cabeça, filho da puta! Assim, na nuca, com mais
força… Mata-o! Mata-o já!
Aqueles gritos inesperadamente impetuoso, insólitos numa luta
cuja violência combinada, fictícia, era conhecida de antemão pelo
público, chamaram tanto a nossa atenção como o que se passava
no ringue, embora, a princípio, fossem apenas um novo motivo de
diversão.
– Mas o que é que esse idiota julga? – O Manuel riu-se. – Que
estão a lutar a sério?
– Porra, que tipo doido. – O Guillermo deu-lhe razão enquanto
mo assinalava. – Olha, é aquele, o da gabardina…
– Mata-o, cabrão! – Segui-lhe a direção do dedo até um homem
muito alto, que se pusera de pé e dava murros no ar, provocando
um coro de protestos nas cadeiras atrás dele. – Arranca-lhe os
olhos!
Antes que um arrumador o obrigasse de novo a sentar-se, eu já
o tinha reconhecido, mas nada disse. Os meus filhos continuaram a
rir, a aplaudir, a gritar, enquanto O Demónio de Aço subia ao ringue
com uma capa vermelha, como os cornos do barrete e o tridente de
cartão com que ameaçava o público.
– Anda, Demónio, dá cabo dele! – O Manuel esganiçava-se para
suplantar as vaias quase unânimes. – Já é teu!
Os seus gritos não conseguiram cobrir os daquele homem que
ainda não se havia lembrado de olhar para cima. O Guillermo
começou a gritar com tanta intensidade como o irmão, mas eu não
os acompanhei. Nem sequer vi a vitória do Demónio de Aço, depois
de ter assistido a tantas derrotas. Estava fascinado com uma
gabardina, cento e noventa e cinco centímetros de fúria fingida, uma
representação dentro de outra representação, no meio de uma
terceira representação que fora a minha vida.
Quando o Juan ergueu os dois braços com os punhos fechados
na nossa direção, para nos oferecer a vitória, o Otto Skorzeny viu-
me, reconheceu-me e cumprimentou-me com a mão.
– Conhece-lo? – O Guillermo apercebeu-se disso. – Quem é?
– É…
Nunca lhe explicara porque não quisera filiar-me no seu partido,
e a primeira coisa que pensei foi que, finalmente, tinha essa
oportunidade, mas logo compreendi que não a ia aproveitar.
Depois olhei para os meus dois filhos. O Guillermo tinha trinta e
cinco anos, estava casado com a Laura e já era pai de um menino.
O Manuel tinha vinte e três e acabara agora o curso. Os dois haviam
nascido em Espanha, viviam em Espanha, tinham toda uma vida de
espanhóis pela frente. Por mais que tentasse explicar-lhes, nunca
compreenderiam o que eu sentia naquele momento.
– Não é ninguém, um conhecido.
Porque tive vergonha de lhes contar a verdade. Não por mim,
não pelo Manolo, nem pela nossa ingenuidade, aquele manancial de
esperança que nunca se esgotava enquanto nos deixávamos
sacudir por uns e por outros, mas pelo país em que viviam e em que
precisavam de continuar a viver. Tive vergonha de lhes dizer quem
era o Skorzeny e por que razão estava nessa noite ali, em Las
Ventas, a gozar do seu dinheiro e liberdade, a gritar como um
energúmeno. Tive vergonha de evocar a minha própria impotência,
a debilidade da minha causa, a força dos meus inimigos. A Rita
perguntou-me certa vez o que havíamos nós feito para que
estivéssemos pior do que os nazis, e eu não quis legar de herança
aos meus filhos essa pergunta e todas as suas respostas, as
coordenadas do lugar que o pai deles ocupara no mundo.
– Vou buscar uma cerveja, trago para vocês também? –
perguntei-lhes em vez disso.
E os dois responderam que sim.
É 24 DE MARÇO DE 1976 E UM GRUPO DE GENERAIS ARGENTINOS DÁ UM
GOLPE DE ESTADO EM BUENOS AIRES.
Os golpistas derrubam María Estela Martínez de Perón, a
primeira mulher da história do Ocidente a ocupar o cargo de
presidente de uma nação. A viúva do general é mais conhecida
como Isabel, ou Isabelita, o nome artístico – Isabel Gómez – com
que atua como dançarina no cabaré Passapoga de Caracas,
quando no fim de 1955 inicia uma relação amorosa com Juan
Domingo Perón, exilado na Venezuela, depois de ter sido deposto
em setembro desse mesmo ano pelos companheiros de armas.
Isabel acompanha-o nos desterros em diversos países até se
instalar com ele em Madrid, onde contraem matrimónio em 1961. A
partir de 1965, desloca-se várias vezes a Buenos Aires para
preparar o regresso do general, que vence as eleições presidenciais
de 1973 com uma lista em que a mulher ocupa o segundo lugar.
Poucas horas depois da morte de Perón, a 1 de julho de 1974, a
vice-presidente ascende à presidência da República Argentina, onde
se mantém durante mais de um ano e meio. Depois de a deterem e
de a confinarem a uma vila da província de Neuquén, na longínqua
Patagónia, os responsáveis pelo golpe instauram uma ditadura que
se autodenomina Processo de Reorganização Nacional.
O novo governo é presidido por um triunvirato, integrado por
representantes dos três ramos das Forças Armadas. O tenente-
general Jorge Rafael Videla assume o poder na qualidade de chefe
do Estado-Maior do Exército, o almirante Emilio Eduardo Massera,
na de chefe do Estado-Maior da Armada, e o brigadeiro-general
Orlando Ramón Agosti, na de chefe do Estado-Maior da Força
Aérea. Apesar desta estrutura tripla, o general Videla atua como
líder do Processo até 1981, quando a esta primeira junta sucede
outra, com um novo triunvirato à cabeça, presidida pelo tenente-
general Roberto Eduardo Viola. Mais duas juntas se sucedem no
poder até que a derrota da Argentina na Guerra das Malvinas, a
generalização dos protestos internos e a falta de apoio internacional
obrigam os militares a entregar o poder e a convocar eleições, que
se realizam em outubro de 1983.
Em março de 1976, a Argentina é o único país do Cone Sul que
mantém um regime democrático. No Uruguai, em 1973 o político de
extrema-direita Juan María Bordaberry implanta uma ditadura com o
apoio do Exército. Nesse mesmo ano, o general Augusto Pinochet
dá um golpe de Estado que lhe permite assumir todo o poder no
Chile. Segue o exemplo instituído pelo general Hugo Banzer, ditador
da Bolívia desde 1971. No Paraguai, no entanto, o general Alfredo
Stoessner exerce uma ditadura pessoal desde 1954. No Brasil,
Humberto de Alencar Castelo Branco instaura, em 1964, uma
ditadura militar que outros generais prolongarão após a sua morte –
por acidente, em 1967 – até 1985.
Este contexto é essencial para compreender a natureza da
ditadura argentina, que representa um novo êxito da denominada
Doutrina de Segurança Nacional, linha política assumida pela
diplomacia norte-americana na América Latina, com o objetivo de
combater, a qualquer preço, os movimentos e organizações de
esquerda em todo o continente. De acordo com o espírito da Guerra
Fria, o instrumento ideal para conquistar a vitória internacional
contra o comunismo consiste na implantação de ditaduras militares,
favorecidas e apoiadas por Washington com todas as
consequências possíveis e até inimagináveis. Neste sentido, a 26 de
março de 1976, quarenta e oito horas depois do golpe, William P.
Rogers, até há pouco tempo secretário de Estado do presidente
Richard Nixon, afirma «creio que devemos esperar muita repressão,
provavelmente uma boa dose de sangue na Argentina dentro de
pouco tempo. Creio que vão ter de procurar bem, não só os
terroristas, mas os dissidentes dos sindicatos e dos seus próprios
partidos.» Mais carinhosas são as palavras de Henry Kissinger,
sucessor de Rogers, que declara que «em qualquer oportunidade
que tiverem [os golpistas] necessitarão de algum apoio […]. Porque
quero apoiá-los. Não quero dar-lhes a sensação de que são
acossados pelos Estados Unidos.»
Esta atitude explica a completa impunidade com que o Processo
transforma o terrorismo de Estado no eixo principal da sua política.
Antes do golpe, María Estela Martínez de Perón já tem tanta
consciência do contexto internacional que, numa tentativa de
garantir o seu compromisso anticomunista, esperando prolongar o
tempo no poder, dá início a uma perseguição política sem
precedentes na história do país. A 5 de fevereiro de 1975, impõe o
chamado primeiro decreto de aniquilação, em que se baseia a
Operação Independência, uma intervenção militar teoricamente
destinada a acabar com a guerrilha na selva da província de
Tucumán e que, na prática, lhe permite dividir o país em cinco zonas
militares. Os chefes de cada área recebem poder ilimitado para
reprimir os subversivos. O general de brigada Acdel Vilas,
comandante-chefe das operações, defende desde o princípio que o
objetivo da Operação Independência é «eminentemente cultural»,
considerando que a guerrilha constitui só um aspeto, e não o mais
importante, da subversão. Em consequência, desencadeia uma
vaga de terror contra a população civil, professores, estudantes,
intelectuais, artistas, cientistas e mesmo religiosos, residentes em
San Miguel de Tucumán. Devido à sua intensidade e metodologia, a
Operação Independência pode considerar-se o prólogo da
repressão que se intensifica e aperfeiçoa durante o Processo de
Reorganização Nacional.
Entre a primavera de 1976 e o outono de 1982, a ditadura
argentina é culpada pelo desaparecimento forçado de milhares de
pessoas. Embora os números variem, uma vez que em grande parte
dos casos os cadáveres nunca apareceram, estima-se que as
vítimas ascendam às trinta mil. É um número consentâneo com as
declarações do general Ibérico Manuel Saint-Jean, governador
militar da província de Buenos Aires, ao The Guardian, em maio de
1977, para explicar, sem qualquer pudor, os objetivos do novo
regime: «Primeiro eliminaremos os subversivos; depois, os seus
cúmplices; mais tarde, os seus simpatizantes; por último, os
indiferentes e os fracos.»
Para atingir este objetivo ambicioso, a ditadura argentina não se
conforma com a implantação de um estado de sítio indefinido,
apoiado por uma legislação repressiva brutal, que suspende todos
os direitos e liberdades dos cidadãos e lhes nega a possibilidade de
abandonarem o país, instaurando uma estrutura de repressão
clandestina que funciona como uma indústria perfeita da morte. Os
membros desta organização criminosa distribuem-se pelos
denominados «grupos de tarefas», unidades especializadas numa
atividade concreta. Exemplos das funções que inspiram semelhante
divisão do trabalho são os sequestros e desaparecimentos, os
centros secretos de detenção, a tortura dos detidos, as execuções,
o desaparecimento dos cadáveres, as salas de parto clandestinas
onde as prisioneiras dão à luz bebés que nunca voltarão a ver as
mães, ou os escritórios encarregados de apagar a identidade destas
crianças roubadas e de gerir a sua entrega para adoção a famílias
de militares ou de civis afins à ditadura. Um caso extremo de
especialização são os chamados «voos da morte», nos quais os
pilotos militares transportam nos caças prisioneiros vivos,
amarrados e drogados, que são lançados ao mar de uma altura de
milhares de metros.
O terror desencadeado pela ditadura começa na própria noite de
24 de março de 1976, durante a qual se fazem centenas de
detenções ilegais. Desde esse momento, a prioridade de milhares
de argentinos é encontrar maneira de saírem do país para a fim de
ficarem a salvo.
A nação que recebe mais exilados é o México, um território
relativamente próximo e com uma longa tradição de acolhimento. A
segunda, paradoxalmente, é Espanha, onde acaba de morrer
Francisco Franco, que, de protegido, passara depois a protetor do
general Perón, e cuja figura é reiteradamente engrandecida,
adotada como exemplo e reivindicada como modelo pelos ditadores
latino-americanos da segunda metade do século XX, os quais
assumem técnicas, como o roubo de crianças às presas políticas,
que já se haviam demonstrado eficazes no pós-guerra espanhol.
Um capítulo particularmente cruel da história dos refugiados
argentinos em Espanha é aquele que escrevem os espanhóis
republicanos, que, depois de se haverem exilado em 1939,
conseguem forjar uma nova vida no outro lado do oceano só para,
ao cabo de quase quarenta anos, se verem obrigados a enfrentar
um novo exílio que os devolve a casa como estrangeiros e de mãos
vazias.
BUENOS AIRES, 30 DE NOVEMBRO DE 1976

Às seis e meia da manhã, a fila já dava a volta à esquina. No dia


anterior chegara um pouco mais tarde, tinha ocupado um lugar
semelhante e não conseguira ser atendido. Manuel Arroyo Benítez
sempre teve muito azar e muita sorte, porém, naquela manhã,
quando a porta do Consulado de Espanha abriu, foi direito ao balcão
de Informações sem pensar nem num, nem noutra.
– Bom dia, menina. Sou cidadão espanhol e preciso de arranjar
passaportes espanhóis para que a minha família saia comigo do
país.
– Como todas as pessoas da fila. – A funcionária sorriu com
amabilidade porque era ainda muito cedo. – Sinto muito, mas tem
de esperar.
Havia exatamente uma semana que os militares tinham ido
buscar o namorado da filha Simona, um fotógrafo que partilhava o
apartamento com um jornalista de La Nación, o jornal onde ela
trabalhava. Não o haviam encontrado, mas levaram o colega,
apesar de ele nem ser de esquerda… Como sabes isso, Simona?
Como sabes se é de esquerda ou não? Em vez de responder à
mãe, a filha abraçou-se a uma almofada e começou a chorar. Mas o
Charlie não falará, murmurou entre soluços, se o encontrarem não
falará, e o José Ignacio não sabe nada, que pode dizer o coitado se
não sabe nada? Até esse momento Manolo mantivera-se mudo,
imóvel, tão ausente como se as palavras da filha o houvessem
transportado para um lugar íntimo e remoto, para uma lembrança
até à qual nenhum membro da família o podia acompanhar,
contudo, ao voltar a si, recordou o homem que em tempos tinha sido
e extraiu da memória uma serenidade assombrosa até para si
próprio. Diz-me só uma coisa, Simona… Sem levantar a voz, sem
se alterar, pegou num banquinho, aproximou-o do sofá, sentou-se
nele para olhar a filha nos olhos e afastou as mãos dela da
almofada que abraçava, apertando-as entre as suas. Só preciso de
que me digas uma coisa, repetiu, o José Ignacio sabe que tu e o
Charlie são namorados? Simona assentiu com a cabeça. Nesse
caso, diz-me outra coisa, e o coração encolheu-se-lhe tão depressa
como se o medo o tivesse transformado num feijão preto e seco,
num calhau semelhante aos que lhe encheram a boca, apagando-
lhe a voz com que proferiu a pergunta crucial. O José Ignacio sabe
que tu militas como o Charlie? A mulher gritou ao ouvi-lo, mas ele
nem sequer se voltou enquanto a filha negava com a cabeça. Tens a
certeza?, insistiu, e Simona acabou por falar. Tenho a certeza, sim,
disse. Eu nunca ia às reuniões que ele fazia no apartamento,
porque… Levantou a cabeça ante os soluços da mãe, que se
deixara cair numa poltrona, chorando com as mãos na cara, e não
sou uma terrorista, mãe, percebes? Depois encarou-o novamente,
diz-lhe tu, papá, explica-lhe que não sou terrorista, que não estou na
guerrilha, que a minha organização… Isso agora não interessa,
Simona, olha para mim, responde-me. Tens a certeza de que o José
Ignacio não pode dizer nada a teu respeito? Sim, tenho a certeza.
Isso é muito bom, Manolo aprovou com a cabeça, levantou-se,
apercebeu-se de que o seu coração tinha regressado ao tamanho
normal e foi sentar-se no braço da poltrona onde a mulher chorava,
então agora vamos fazer o que eu disser… Simona abraçou-se a
Manolo, ele rodeou-lhe os ombros com um braço, acariciou-lhe a
cabeça com a outra mão e olhou dali para os três filhos. Vamos
todos fazer o que eu disser.
– Desculpe, menina. – Uma semana mais tarde, a funcionária do
consulado nem sequer o contemplou, à medida que ele ia pousando
uma série de papéis na mesa. – Mas não creio que o meu caso se
pareça com o de nenhuma outra pessoa da fila. Se quiser dar uma
vista de olhos a isto…
– Mas… – Diante dos seus olhos estavam meia dúzia de
documentos de identidade, de países e épocas distintas, com uma
única coisa em comum. – Que significa…? – Porque todas as
fotografias eram retratos do homem que a observava do outro lado
da mesa. – Quem é o senhor?
Inicialmente, o seu plano não foi bem-sucedido. Para, papá, não
posso fazer isso. A filha voltou a chorar quando o ouviu dizer que no
dia seguinte teria de ir ao jornal despedir-se, dando a desculpa de
que não sabia que o namorado era um subversivo e de que a notícia
a abalara tanto que precisava de algum tempo. Tu não sabes, não
percebes… Esquece, ninguém vai acreditar. Claro que sim, insistiu
ele, todos vão acreditar. Pensarão que és uma cobarde, mas não
tem importância, Simona, numa ditadura o normal é ser-se cobarde,
não se vão admirar. Depois falarão mal de ti, sim, chamar-te-ão
traidora, mas tu não chegarás a saber, porque amanhã, mal te
despeças, vamos todos para Fortín Tiburcio. Para Fortín Tiburcio?, a
mulher olhou para ele como se aquelas duas palavras não lhe
entrassem na cabeça. Enlouqueceste, galego? Que vamos fazer
para lá? Veranear, foi a resposta dele. Veranear?, não posso crer,
há anos que lá não vamos! E depois?, contra-atacou ele, a casa não
é tua? Quando os miúdos eram pequenos íamos quase todos os
anos. Se alguém te perguntar, dizes que a Simona está destroçada
porque não sabia que o namorado era subversivo, a filha bufou mas
ele continuou sem se voltar para ela, que o Guille e o Juan já
acabaram os exames, que vais pôr a casa à venda e que vieste
para tratar de tudo. Se encontrares comprador, melhor ainda.
Vender a casa?, repetiu Simona, e quem vai comprá-la? Sem as
terras não vale nada, viste?… Mas eu ainda não acabei os exames,
pai, interveio Guillermo, a quem só faltavam duas disciplinas para
terminar o curso de Engenharia Industrial. Tenho o último no dia 22
do mês que vem. Portanto, não posso ir para esse cu de judas. Eu
também não, apoiou-o o irmão, tenho que fazer aqui… Manuel
Arroyo Benítez olhou para eles e respirou fundo antes de falar.
Queres desaparecer, Simona? Ela não respondeu. Ele olhou
primeiro para a mulher, depois para os outros dois filhos. E vocês,
querem que ela desapareça?
– Cheguei à Argentina como agente da República Espanhola no
exílio para desempenhar uma missão diplomática que não teve
êxito. Não vim por vontade própria, mas para servir o meu país, e
fiquei aqui preso. Agora, a minha família está em perigo e creio que
tenho o direito de voltar.
– Espere um momento. – A funcionária pegou nos passaportes
antes de se levantar. – Vou falar com o cônsul, já volto.
Sei o que é um golpe de Estado militar, sei o que é uma guerra
civil, já passei por tudo isto… Enquanto falava, pensava no sítio
onde estava, na sua casa, no apartamento da avenida do General
Las Heras, quase na esquina com Callao, pelo qual Simona havia
abandonado a sua querida Balvanera. A nova casa ficava perto, a
seis quarteirões da sucursal da Escola de Línguas La Europea que
Manolo dirigia havia quase vinte anos na avenida Santa Fe. A viúva
de Bley investira uma boa parte do dinheiro que recebera pelas
terras de Fortín Tiburcio num negócio que, desde o princípio,
funcionou muito melhor do que o estabelecimento original da calle
Lavalle. O marido tratou de adaptar os cursos ao nível de vida de
Recoleta e, além de manter o inglês comercial, assinou acordos
com instituições e universidades estrangeiras, que, por um lado, lhe
permitiram atribuir diplomas oficiais e, por outro, comprar a parte do
senhor Brioschi no início dos anos sessenta. Nunca tinha pensado
em ficar a viver na Argentina, mas Buenos Aires era a sua casa, a
única que tivera desde que saíra de Robles de Laciana. Tinha uma
boa vida, com um bom trabalho, um bom apartamento, uma boa
situação económica, um bom amor, uma boa família, uma boa
reforma pela frente. Demasiado a perder para quem nunca tivera
nada. Demasiado para perder sem aviso prévio, mesmo sabendo de
antemão que não havia outro remédio.
– Bem-vindo, sinta-se em casa. – O cônsul que se levantou para
lhe estender a mão era um homem novo de cabelo comprido e
barba, o aspeto típico dos progres26 espanhóis que Manolo só
conhecia das reportagens que via na imprensa. – Sente-se, por
favor, senhor… – Voltou-se para a mesa, olhando para os
passaportes do visitante, pousados como peças de um quebra-
cabeças, e sorriu. – A verdade é que não sei como chamar-lhe.
– Chamo-me Manuel Arroyo Benítez – respondeu ele, apontando
para o passaporte mais antigo. – Mas tenho três filhos com o
apelido Pacheco, pelo que o melhor será manter esse apelido.
Ouve-me, minha filha, porque sei do que falo. Se estão à procura
do teu namorado, o mais certo é encontrarem-no, mais cedo ou
mais tarde. E ele recusar-se-á a falar, não discuto isso. Dirá que não
vai denunciar ninguém, dispor-se-á a resistir até ao limite das suas
forças e talvez o consiga, não te digo que não. Porém, os
torturadores levá-lo-ão muito além desse limite, primeiro partindo-lhe
os ossos e depois vergando tudo o resto, os nervos, a dignidade, a
consciência, até ele deixar de ser uma pessoa, até deixar de se
lembrar que te ama, até nem sequer saber como se chama. São
especialistas. Portanto, o Charlie falará, denunciar-te-á, e não terá
culpa. Por isso, não podem encontrar-te aqui, não podem encontrar
ninguém aqui… A filha tinha deixado de chorar e olhava para ele
com os olhos avermelhados, afundados nas órbitas, as faces cor de
cera e uma expressão de terror que o deixou simultaneamente
horrorizado e reconfortado, porque nunca mais a queria ver, porque
facilitava muito as coisas. Isto também tem que ver convosco, e
voltou-se para os filhos, porque se vierem buscar a vossa irmã e
não a encontrarem, levam-vos a vocês, fazem-no sempre, nunca
vão de mãos vazias. E interrogar-vos-ão, mesmo que vocês não
saibam nada, e não se conformarão com que não saibam… Em
Espanha foi igual, é sempre igual, e sei porque já o vivi. Fez uma
pausa para os olhar a todos, um por um. Sabem o que está a
acontecer, não sabem? Se quisermos continuar juntos, se
quisermos continuar vivos, não nos resta outro remédio senão partir.
De Buenos Aires ou…? A mulher estava prestes a chorar. Ele
aproximou-se, abraçou-a e não se atreveu a responder à pergunta.
– E já pensou no que vai fazer quando regressar a Espanha? –
Depois de preencher os impressos necessários para solicitar os
passaportes, o cônsul espanhol em Buenos Aires inscreveu todos
os membros da família Pacheco Gaitán na lista de residentes
espanhóis na Argentina, para proteger Simona, confessando ao
visitante que adoraria convidá-lo para almoçar e ouvir a sua história.
– Quer outro café?
– Não, obrigado. – Manolo sorriu àquele homem que se
comprometeu a acelerar todas as formalidades antes de lhe retribuir
o relato com uma história de família acerca de homens fuzilados e
de mulheres rapadas27, tão conhecida, tão triste como a de tantos
outros descendentes de republicanos espanhóis. – Já tenho
demasiadas dificuldades para dormir. Quanto ao meu regresso, vou
instalar-me em Madrid. Tenho lá um amigo que me vai ajudar.
Foi tudo muito difícil. Na terça-feira, 23 de novembro de 1976,
mal entrou no carro depois de se despedir do jornal, Simona
informou o o pai de que nunca lhe perdoaria. A mãe nada disse
porque estava demasiado preocupada com Guillermo, que, na noite
anterior, tinha dormido em casa de um amigo depois de anunciar
que ficaria em Buenos Aires. Juan, furioso por não ter conseguido
imitá-lo, passou metade da viagem a culpar a irmã por tudo,
levando-a às lágrimas, e não voltou a abrir a boca. Chegaram ao
destino num silêncio mais atroador do que os gritos, e Simona foi a
única que acedeu a dar um passeio com o marido. Aquilo bastou
para que os vizinhos ficassem a saber que se encontrava ali a
passar uns dias com os filhos, que queria vender a casa e que o
marido precisava de regressar ao trabalho na capital, embora
voltasse a tempo da consoada em família. Manolo pediu à mulher
que lhe telefonasse todas as noites contando novidades, porém,
quando voltou ao norte com o filho que faltava, ainda não tinham
nada de importante para contar. Charlie continuava escondido
quando o pai da namorada distribuiu passaportes e bilhetes de
avião. Guillermo guardou os seus, mas voltou a frisar que não iria
para Espanha.
A 28 de dezembro, toda a família Pacheco Gaitán regressou a
Buenos Aires pela última vez. Nessa noite, jantaram em casa da tia
Adelina, a quem Manolo pedira que representasse os seus
interesses no país durante a sua ausência. Simona fizera-o
prometer que não venderiam nada além daquela casa de campo
pela qual não sentia grande carinho, mas acedeu a alugar o
apartamento de Recoleta. Manolo, com muito mais experiência em
exílios, sabia que não conseguiria manter a promessa por muito
tempo, mas assinou uma procuração para que a cunhada tratasse
da venda de uma casa, do arrendamento da outra e da cobrança
dos lucros da escola. Antes de se sentarem à mesa, a sogra
afastou-se com ele para um canto a fim de lhe prometer que ficaria
atenta a tudo, e Manolo emocionou-se ao verificar que aquela
velhota fora a única a pensar nele. Já não vais poder reformar-te,
coitadinho, disse-lhe depois da sobremesa, pegando-lhe nas mãos,
e o genro deu-lhe razão. Sabia que teria de continuar a trabalhar,
mas que na sua idade, e depois de tantos anos de ausência,
também não encontraria um emprego muito bom, mas agora não
posso pensar nisso, reconheceu em voz alta. Havemos de nos
arranjar, acabou por acrescentar sem mais explicações, e o eco
daquelas palavras acompanhou a família até àquela que era ainda a
sua casa. No dia seguinte, um céu radiante contrastou com o
silêncio chuvoso com que fizeram as malas, quase sem falar, cada
um deles mergulhado na sua própria tristeza, tão absorto num luto
privado como se não partilhasse com os outros uma desgraça
comum. Quando Guillermo foi ter com ele para lhe dizer que tinha
deixado a mala no vestíbulo, Manolo adivinhou que o mérito era da
sogra e, depois de abraçar o filho que afinal não ficaria para trás,
sentiu-se melhor.
– Posso comprar uma caixa de alfajores? – A filha puxou-o pelo
braço, quando passaram pela loja do aeroporto. – Gostaria de a
levar como recordação.
– Claro que sim. – O pai olhou para ela e abraçou-a. – Vamos
comprar duas e comemos uma no avião, queres? – Ela assentiu
com os lábios num beicinho infantil e o pai teve tanta pena que
escolheu esse momento para começar a mentir em voz alta. – Não
nos vamos embora para sempre, Simona. Voltaremos mal
pudermos, prometo-te.
– Pois claro. – Juan sorriu com um canto da boca. – Se
demorarmos o mesmo que vocês… – O pai contemplou-o sem
saber o que dizer e ele ficou tão vermelho que não parecia ter
dezoito anos acabados de fazer. – Desculpa, velho, já sabes que
sou um boludo.
Sem soltar Simona, abraçou Juanito. Não se atreveu a dizer-lhe
que tinha razão, que o destino dos exilados é conhecer só uma
data, a do dia em que abandonam o país, nunca a do regresso, mas
percebeu que ele já o sabia. Talvez por isso, naquele instante,
abraçado à filha mais velha e ao filho mais novo, recordou
inadvertidamente Clara Stauffer, Magda Ivanissevich, Walter
Kutschmann, aquele comité que lhe dera as boas-vindas em Ezeiza
quase trinta anos antes, quando contava pelos dedos os meses
para voltar a Espanha como vencedor de uma guerra que tinha
voltado a perder. Despacha-te, velho, estão a chamar para o nosso
voo… A voz de Guillermo livrou-o de uma recordação que o feria, e
o resto foi mais fácil, comprar alfajores, passar pelo controlo,
embarcar num avião da Iberia, ocupar os cinco lugares da mesma
fila, voar, distanciando-se de casa durante muitas horas, atravessar
o oceano, tentar adormecer e consegui-lo com dificuldade. Quando
o avião aterrou em Barajas, estavam todos tão cansados que até os
filhos se alegraram com a chegada. Entraram oficialmente em
Espanha como espanhóis, com os seus passaportes novos,
impolutos, e Manolo não estranhou menos do que eles, porque o ar
não o soube abraçar como da primeira vez, e os ouvidos não se
emocionaram ante o sotaque áspero e seco da própria voz.
– Anda, galego… – A mulher apercebeu-se e tentou animá-lo. –
Alegra-te. Mereces, já voltaste a casa.
– Achas?
Nessa altura avistou uma cabeça grisalha, um semblante rígido,
o sorriso que lhe desfez num instante a seriedade, e alegrou-se
muito por voltar a ver o doutor García.
Sobretudo porque o seu aparecimento lhe poupou a amargura de
contradizer Simona.

26
Progre: progressista. (N. da T.)
27
Durante a guerra civil espanhola, mas também no período que se lhe
seguiu, utilizou-se contra mulheres e meninas uma forma de repressão que
consistia em rapar-lhes o cabelo. Muitas vezes esta punição vinha
acompanhada de outros atos de humilhação pública. (N. do E.)
V

As cicatrizes doem com as


mudanças de tempo
MADRID, 12 DE JANEIRO DE 1977

Quando entrei no Café Lion e o vi sentado ao fundo, na mesa do


costume, tínhamos dado muito mais abraços do que explicações.
– É um pesadelo do caraças, Guillermo.
A 26 de novembro de 1976, ao fim da manhã, a minha secretária
perguntou-me se podia atender um telefonema internacional. Quis
saber quem ligava e ela respondeu-me que era um senhor que não
quisera deixar o nome, só que estava em Junín, na Argentina. Eu
nem sabia que existia um lugar chamado Junín e não consegui
relacionar o nome com ninguém, mas intrigou-me tanto que decidi
atender. Só depois pensei no Manolo.
Olá, sou eu. Proferiu-o com o tom de voz que teria usado se
continuasse a trabalhar como porteiro noturno de um prédio da Gran
Vía, se nos tivéssemos embebedado juntos na noite anterior, se não
tivessem passado vinte e oito anos desde que me tinha telefonado
pela última vez, e a sua voz apoderou-se da minha, roubou-ma e
deixou-me mudo. Sou o Manolo, esclareceu antes de ma devolver,
sem me dar oportunidade de lhe dizer que o havia reconhecido,
continuo em Buenos Aires, embora te esteja a ligar de um telefone
público de outra cidade, não tenho muito tempo. Disse tudo isto de
uma tirada e depois fez uma pausa. Suponho que sabes como as
coisas estão por aqui.
Claro, consegui responder finalmente. Sabia como estavam as
coisas por lá, lia-o todas as manhãs no jornal, via a cara do filho da
puta do Videla na televisão todas as noites, mas nem sequer isso
impediu que fosse dominado pelo assombro, pela emoção de falar
com ele, de saber que continuava vivo, que me havia encontrado.
Devia ter percebido que, a milhares de quilómetros de distância,
uma ditadura nunca é o melhor prenúncio para uma chamada de
cortesia, mas desatei a falar de mim, dizendo-lhe como me alegrava
muitíssimo ouvi-lo, quanto me lembrara dele, e as saudades que
tinha, até que o silêncio clamoroso do outro lado me levou a fazer,
tarde de mais, aquela que deveria ter sido a minha primeira
pergunta.
– Como estás?
– Mal.
Proferiu aquela palavra como se ela lhe queimasse a língua,
antes de acrescentar que estava a viver a merda de um pesadelo. E
tínhamos partilhado tantos que, para lá da surpresa, da confusão,
do tempo e da distância, compreendi o que esperava de mim.
– Posso fazer alguma coisa?
– Muito, porque não tenho outro remédio senão voltar. – O tom
da sua voz era tão sombrio que nem sequer celebrei a notícia. – É a
mesma merda do costume, percebes? Tudo igual, aqui e aí, sempre
igual, o mesmo em toda a parte…
A 30 de dezembro de 1976, na porta das Chegadas do Terminal
Internacional de Barajas, demos o primeiro abraço. Eu tinha o
cabelo grisalho, ele completamente branco. Eu tinha engordado, ele
havia passado a ser o mais magro dos dois. Eu estava prestes a
fazer sessenta e dois anos, ele tinha feito sessenta e seis. Nem os
meus filhos nem os dele usavam os apelidos do pai, e ambos
tínhamos idade para ser avós dos mais novos. O corpo dele estava
bordejado de cicatrizes e tinham sido as minhas mãos a cosê-lo.
Nenhum dos dois usava o verdadeiro nome, embora ambos
tratássemos o outro pelo nome real. Ao ver-nos, saudáveis e ainda
vigorosos, dois pais de família vestidos como senhores, ninguém
teria adivinhado que nos havíamos afundado juntos, que tínhamos
tocado o fundo da nossa última derrota com as plantas dos pés.
Estávamos ambos cientes daquele longo fracasso partilhado, mas
por instantes voltámos a ser fortes, voltámos a ser jovens e
poderosos, tão intactos como a nossa fé, a esperança que nos unira
para sempre antes de nos abandonar na valeta onde
choramingavam os pobres imbecis, as crianças inábeis, os adultos
sem sorte. O nosso primeiro abraço significou tudo isso.
– Temos de conversar – disse-me num sussurro cavernoso,
antes de me soltar.
– Sim. – E a minha voz estremeceu junto do seu ouvido. – Tenho
muitas coisas para contar.
Contudo, não foi fácil encontrar o momento certo. A Rita, que
assumira o comando das operações desde que lhe tinha confessado
que, no primeiro telefonema, nem me lembrara de perguntar ao
Manolo se vinha sozinho ou com mulher, se tinham filhos ou não, e
com que idades, reservou-lhes um apartamento de três assoalhadas
num apart-hotel da calle Princesa. Isto é só para já, disse à Simona
quando saímos do aeroporto, porque estive a ver apartamentos para
arrendar no nosso bairro e encontrei alguns muito interessantes… A
mulher do Manolo assentiu, antes de olhar na direção dela como se
não conseguisse vê-la, e a minha, especialista desde a
adolescência em redes de solidariedade e comités de acolhimento,
substituiu-me nos abraços. Não desanimes, sei que isto é muito
duro para vocês, mas não estão sozinhos, não vamos deixar-vos
sozinhos, prometo-te…
Ouvindo-a, o meu amigo olhou para mim e sorriu.
– Estavas à espera do quê? – murmurei. – No fim tive de me
casar com uma comunista. O mercado não dava para mais.
Ele respondeu com uma gargalhada e alegrou-me ouvir-lhe o
riso.
Depois tiveram de se instalar, de desfazer as malas, de comprar
todas as coisas de que se haviam esquecido, de se adaptar ao
inverno repentino e à ideia de receber um novo ano noutro país, de
chorar juntos e a sós. No entanto, na noite de Fim de Ano jantámos
juntos em nossa casa e tivemos de aumentar a mesa da sala de
jantar com uma tábua e três cavaletes, trazer cadeiras do escritório,
falar alto todo o tempo, brindar pelos Guillermos e pelos Manuéis,
rirmos por qualquer coisa, rirmos até nos doerem os maxilares para
atordoar os recém-chegados, para os envolver nas bolhas de uma
trabalhosa e bem-aventurada efervescência, para derramar sobre
eles uma torrente velocíssima de piadas e de histórias que os
impedisse de pensar, de compreender onde estavam e porquê.
Depois das passas, os jovens saíram e o Manolo pediu-me a
desforra.
– Se me deixares ganhar, dou-te dois tabefes. – Sorriu,
convidando-me a mover o peão do rei, porque lhe tinham calhado as
pretas.
– Não tenhas grandes esperanças. – Tínhamos bebido tanto que
conseguimos repartir as vitórias, mas nenhum se atreveu a falar.
Às quatro da manhã, abraçámo-nos à porta da minha casa e fui
eu quem lhe lembrou que tínhamos uma conversa pendente. Ele
garantiu-me que não se esquecera, mas depois do Ano Novo vieram
os Reis e foi preciso calcorrear as lojas de meia cidade, comprar
presentes, encomendar bolos-reis, levar o meu neto à cavalgada
dos Reis Magos e abraçarmo-nos outra vez, muitas vezes. Nessa
altura, a Simona já se havia decidido por um apartamento alto e
luminoso, na calle Altamirano, e a Rita, que continuava ao comando,
decretou que faríamos a mudança entre todos. Finalmente, a 11 de
janeiro de 1977, ao sairmos para jantar depois de nos termos
derreado a transportar sofás, camas e eletrodomésticos durante
toda a tarde, o Manolo disse-me que no dia seguinte esperava por
mim no Café Lion, quando eu saísse do trabalho. Vendo-o sentado
na mesa do fundo, não senti necessidade de o voltar abraçar.
– Cerveja? – limitou-se a perguntar, levantando a mão para
chamar um empregado.
– Cerveja.
Ao seu lado, na cadeira onde gostava de se sentar para vigiar de
frente a porta do café, repousava um grosso dossiê, tão repleto de
papéis que as capas azuis desenhavam um ângulo obtuso perfeito.
Quando o empregado nos deixou sozinhos, ele pousou-o na mesa e
empurrou-a na minha direção.
– Toma, isto é para ti. – Abri-o com cuidado, como se algum
monstro escondido pudesse saltar e agarrar-me pelo pescoço,
enquanto o meu amigo começava a falar. – É uma cópia do
documento que escrevi em Buenos Aires. O Goodwin, o da
embaixada ianque, chamava-lhe Relatório Pacheco, que soa bem
como o caraças, mas, para o que serviu… A primeira parte, mais ou
menos, já conheces, embora lá tenha averiguado mais algumas
coisas. No entanto, a partir da página duzentos, ou por aí, escrevi
tudo o que fui descobrindo na Argentina.
Naquela pasta estavam mais de quatrocentas folhas
datilografadas a um espaço e quase uma centena de fotografias de
fachadas de edifícios, de interiores, de documentos e, sobretudo, de
pessoas, de muitos homens, de algumas mulheres.
– Está tudo aí, nomes falsos e verdadeiros, moradas pessoais e
profissionais, datas, lugares, linhas marítimas, aéreas… Até o
número do voo em que eu cheguei. Se tivessem querido, podiam ter
prendido numa única noite uma centena de criminosos de guerra em
Madrid e em Buenos Aires. Bastava-lhes ter ido buscá-los.
Clarita Stauffer, Ingrid Weiss, Eberhad Messerschmidt, Hans
Lazar, Johannes Bernhardt, Ante Pavelić, Walter Kutschmann, Jean-
Jules Lecomte, Darquier de Pellepoix, Léon Degrelle, Otto
Skorzeny… O relatório era tão exaustivo que nem sequer faltavam
os nossos alunos de espanhol, os seus dois croatas, o alemão de
Munique e o húngaro que frequentavam as minhas aulas e, ao vê-
los ali, enchi-me de uma tristeza infinita pela solidão do meu amigo,
pela inutilidade da sua coragem, pela magnitude daquele fracasso
monumental.
– Mas não quiseram – resumi.
– Não. – Sorriu. – Não lhes apeteceu. Elogiaram-me muito, é
verdade, puseram o meu trabalho nos píncaros. Basta dizer que ele
tentou recrutar-me para a CIA…
– Não me lixes! – Ao ouvir aquilo, assustei-me.
– Isso mesmo. – Ele, no entanto, desatou a rir-se. – O que
achas? Armei-me ao pingarelho, disse que não, mas depois andei
com muito medo, essa é a verdade. Com tanto medo que, durante
algum tempo, até me arrependi de ter ficado com uma cópia. Isto –
disse, acariciando a capa azul com a ponta dos dedos e com tanta
delicadeza como se não fosse um objeto inerte – não tinha servido
para nada, nunca serviria para nada, mas enraivecia-me tanto
pensar que o original teria acabado na trituradora de papel de algum
gabinete de Washington, que fiquei com ela, nem sequer a quis
enviar para o Azcárate. Quando me casei com a Simona, comprei
um cofre, eu próprio o encastrei numa das paredes e ela ficou ali um
ror de anos. Mais tarde, em 1955, quando o Perón caiu e os nazis
que estavam na Argentina deixaram de ser tão protegidos, fiquei
contente por não a ter destruído.
Enquanto o ouvia, continuei a folhear o relatório, a ler nomes,
números, linhas sublinhadas, datas, crimes, centenas, milhares,
milhões de pessoas assassinadas, deportadas, desaparecidas,
Dachau, Gusen, Birkenau, Jasenovac, Mauthausen, Auschwitz,
também Klooga, o crime do Adrián Gallardo, a minha própria vítima,
o homem que eu tinha matado para salvar a minha vida e a do meu
amigo, o protagonista do pesadelo que ainda me atormentava de
vez em quando, que continuaria a torturar-me talvez até à morte
embora naquela pasta fosse só mais um morto, um assassino
insignificante.
– Depois, quando deixei de ter medo, pensei várias vezes em
enviá-lo para Wiesenthal ou qualquer outro caçador de nazis. Mas já
estava casado, tinha filhos pequenos… Deu-me muito trabalho
desligar-me dos nazis de Buenos Aires, mas todos eles me
conheciam, não teriam demorado a localizar-me, pelo que publicar
isto continuava a ser muito perigoso para mim e, sobretudo… – Fez
uma pausa, apontou para o meu copo, levantou o braço com dois
dedos esticados, esperou que o empregado fizesse um sinal com a
cabeça. – Pensei que, se o fizesse, se acabassem por deter algum
destes filhos da puta graças a mim, em Espanha nada aconteceria,
o Franco ia partir-se a rir, de modo que… Essa não era a minha
guerra, Guillermo, e ninguém quis mexer um dedo por nós,
ninguém, nunca. Estava tão deprimido, tão enojado com tudo que
pensei não somos sempre os maus?, pois então que se fodam, se
isto não serviu para ajudar os espanhóis, os outros que se lixem. Sei
que esta reflexão não me deixa muito bem, mas… Nesta altura,
estou-me a cagar para a justiça universal, que queres que te diga.
– Não precisas de me dizer nada. – Esperei que o empregado
levasse os copos vazios e deixasse os cheios para lhe explicar
porquê. – A mim ainda me dói. Cada vez que a televisão passa um
filme de Hollywood sobre assassinos nazis, desligo-a. Nem espero
para ver o título.
– Pois… – Abanou a cabeça várias vezes como se, mais do que
a mim, desse razão a si próprio. – Arriscámos a vida para nada.
Julgámos que se tinham dado conta de que éramos os bons, de
que, finalmente, íamos acompanhar os bons, e nem assim. Mas nos
filmes a que te referes seríamos heróis. Portanto… Foda-se.
– Fodidos já estamos – reconheci pelos dois, batendo o meu
próprio recorde de cerveja.
– Evidentemente… – Ele também bateu o seu e lembrou-se de
alguma coisa. – Vou contar-te o que aconteceu no dia em que nos
vínhamos embora. Enquanto fazíamos as malas, tirei o dossiê do
cofre, pedi à Simona que o guardasse na mala e tivemos uma
discussão. Estávamos todos muito mal, muito nervosos, e ela, além
disso, muito triste, porque a mãe já tem muita idade, ela não sabe
se voltará a vê-la… Tinha de explodir por algum lado e foi pelo
dossiê. Nem pensar, disse-me, de modo nenhum. Estamos todos a
renunciar a coisas imprescindíveis, roupa, lembranças, objetos
valiosos… – Fez uma pausa antes de imitar na perfeição a voz, o
tom, o sotaque da mulher. – E tu pretendes ocupar meia mala com
essa papelada? Então tira a minha roupa, disse-lhe, tira tudo, é-me
indiferente porque já perdi uma guerra, percebes? Sei o que é
importante e o que não é, cheguei à Argentina com a roupa do
corpo e a única coisa que quero levar daqui é isto. Resumindo, o
meu filho Juanito, o mais novo, ouviu-nos discutir e, ao fim de algum
tempo, veio ter comigo. Ouve lá, velho, disse-me, tu na guerra de
Espanha foste dos bons, não foste? E eu respondi-lhe, pois olha,
meu filho, naquela guerra fui dos bons, mas fui sobretudo dos
pacóvios, em todas as guerras fui sempre a merda de um pacóvio…
E tive de lhe explicar o que significava a palavra, claro.
– Nesse caso, vai aprender uma melhor porque essa já passou
de moda. Agora, a pessoas como tu e como eu, os jovens chamam
otários.
– Otários? – Desatou a rir. – Está boa!
Então, de improviso, contei-lhe que o Adrián Gallardo Ortega
tinha voltado da Alemanha no fim de 1949, que havia aparecido no
meu trabalho a fazer perguntas, que eu não tivera outro remédio
senão matá-lo, e quando, e onde, e como o fizera. A princípio, ele
olhou para mim com os olhos muito abertos, depois semicerrou-os
antes de os fechar por completo e, finalmente, olhou para mim.
– Whisky? – limitou-se a perguntar.
– Whisky.
– Duplo?
– Claro.
Nessa noite tiveram de nos expulsar do Café Lion. Quando
chegámos à rua estava muito frio. Estávamos tão bêbedos que nem
conseguíamos andar em linha reta, no entanto, quando nos
abraçámos em pleno passeio, sabíamos porque o fazíamos.
Éramos dois otários e a nossa vida não tinha sido um filme, mas
os mortos não se podem embebedar.
A história de Guillermo

Nota da autora
A 22 de julho de 2013, comprei um caderno de capa verde-clara
numa papelaria do centro de Rota, a povoação da baía de Cádis
onde passo o verão. Ao voltar para casa, escrevi na sua primeira
página a data, o título e o subtítulo deste romance, e antes de voltar
a escrever qualquer coisa, inseri na barra do browser duas palavras
que já tinha escrito muitas vezes: Clara Stauffer. A minha busca
vomitou conteúdos que eu já conhecia e, em quinto lugar, uma nova
referência que me deu uma alegria e, logo a seguir, um desgosto.
Clara, que eu perseguia havia anos, só esteve ausente do meu
pensamento durante a primavera de 2013, enquanto terminava Las
tres bodas de Manolita. E a minha sorte, tão boa ou tão má como a
de Manuel Arroyo Benítez, determinou que justamente nesse
período em que eu não conseguia pensar noutra história senão na
que tinha entre mãos, um alfarrabista de Madrid pusesse à venda
um álbum de fotografias tiradas pela própria Stauffer entre os meses
de dezembro de 1948 e dezembro de 1949, durante uma longa
viagem pela Argentina, Peru, Bolívia e Chile. O site, que reproduzia
integralmente o seu conteúdo, anunciava na última linha da sua
descrição que o tinha vendido a 19 de março de 2013.
Há mais de vinte anos que partilho a minha vida com um bibliófilo
e com a sua biblioteca. Sei que os alfarrabistas conhecem muitas
vezes os seus clientes e entrei em contacto com este a toda a
pressa, para lhe dizer que estava disposta a comprar o álbum a
qualquer preço, até a pagar para que o seu dono me permitisse vê-
lo, manuseá-lo, fotografá-lo, mas nem sequer consegui saber o seu
nome. O livreiro contou-me que o tinha vendido rapidamente e a
única coisa que pôde acrescentar foi que o comprador tinha tido
mais sorte do que eu. Foi buscá-lo à loja, pagou em numerário e a
história acabou aí. Não era seu cliente, não sabia como se chamava
e não voltara a vê-lo ali.
Pensei em escrever um artigo, e até em pôr um anúncio, mas
ambas as opções me pareceram igualmente patéticas e
condenadas ao fracasso. Se quem o adquiriu fosse um
colecionador, não estaria interessado em partilhar o seu tesouro
comigo. Se fosse um fanático da obra de Clara, eu seria a última
pessoa a quem quereria fazer um favor. Ocorreram-me outras
opções, mas nenhuma era boa, de modo que me contentei em
guardar as imagens, em ampliá-las o mais que pude e em examiná-
las atentamente para escrever no meu caderno verde os nomes e
as datas que consegui decifrar entre as esmeradas anotações feitas
pela própria Stauffer, a caneta branca sobre cartolina preta.
Entre as recordações da sua viagem estavam as fotografias de
dois casamentos, dois nubentes, irmão e irmã, com os mesmos
apelidos. Não fui capaz de identificar o nome feminino. O masculino,
no entanto, lia-se com bastante nitidez, mas a minha busca na
internet de Hannibal D’Angelo Rodríguez não apresentou
resultados. Nessa altura, lembrei-me de que Clara Stauffer tinha
estudado na Alemanha. Experimentei a grafia espanhola do mesmo
nome e acertei em cheio, o que quase me consolou pela perda de
um álbum que nunca tinha sido meu.

A 3 de agosto de 2003, o jornal argentino Página/12 reproduziu,


num artigo intitulado «Testemunha inesperada», o conteúdo de uma
carta que Aníbal D’Angelo Rodríguez – sem «h» e só com um «n» –
tinha enviado para o diretor, Sergio Kiernan. Nela se apresentava
como filho de Magda Ivanissevich de D’Angelo Rodríguez,
professora argentina de origem croata, autora de um livro de
memórias, La ciudad de mi infancia, que obteve algum sucesso
como retrato nostálgico do bairro portenho de Villa Urquiza. O
apelido de solteira da mãe de Aníbal não era um dado irrelevante. O
seu irmão, Oscar Ivanissevich, tinha sido, por duas vezes, ministro
da Educação em governos de Perón.
Na semana anterior, o Página/12 tinha publicado uma
reportagem sobre a desclassificação dos arquivos da Direção
Nacional de Migrações, que forneceram inúmeras informações
acerca dos nazis que fugiram para a Argentina a partir de 1945.
Nesse texto mencionava-se Madga Ivanissevich em relação a um
criminoso de guerra de origem belga chamado Jean-Jules Lecomte.
Dias depois, o seu filho Aníbal escreveu para o jornal, reivindicando
com orgulho a sua participação nos factos. O primeiro parágrafo da
sua carta é tão eloquente pelo seu tom como pelo seu conteúdo.

Querido Sergio: Muito diver do o teu ar go sobre o camarada


Lecomte. De facto, eu e a minha mãe contribuímos para o salvar
dos «libertadores» que o queriam fuzilar. Sabes o que se passa,
Sergio? Que nem todos temos a sorte que têm vocês, os
esquerdalhos, que podem assassinar cem milhões de pessoas sem
terem um único desses assassinos julgado e condenado. E, sim, não
foi só Lecomte. Conheço e intervim em muitos outros casos apesar
de só ter 19 anos na altura. E efe vamente, como toda a gente
sabe, no primeiro peronismo houve muita gente que – como eu –,
se orgulhou (e se orgulha) de vos ter arrebatado algumas ví mas.

Eu já conhecia Lecomte, famoso, além dos seus crimes, por ter


sido o fugitivo nazi que a rede Stauffer pôs a salvo mais cedo na
Argentina. A carta publicada pelo Página/12, além de confirmar este
dado, dava um sentido concreto e muito forte às fotografias que eu
tinha acabado de descobrir. Clara Stauffer foi à América do Sul no
período mais fecundo do seu trabalho para supervisionar as
atividades da sua organização e para assistir ao casamento de dois
filhos de uma das suas colaboradoras mais próximas no ultramar.
Assim, um álbum que nunca tive nas mãos transformou-se num dos
eixos principais deste romance.

Como todos os livros da série Episódios de uma guerra


interminável, Os doentes do doutor García é um romance de ficção
construído em torno de factos reais. Alguns dos fios que teceram a
conjuntura histórica em que se apoia o meu relato são expostos nos
pequenos textos não ficcionais intercalados ao longo destas
páginas. Estes textos, narrados no presente histórico, descrevem
acontecimentos rigorosamente verdadeiros, mas não mais do que
outros factos e figuras que interagem com as minhas personagens
inventadas nos capítulos de ficção. Entre elas, a mais relevante é,
sem dúvida, Clara Stauffer.
Quando li o artigo do Página/12, havia cerca de sete anos que
lhe seguia os passos. Foi esse o prazo decorrido desde a
publicação de La guarida del lobo. Nazis y colaboracionistas en
España, uma investigação do jornalista Javier Juárez que comprei
num impulso irreprimível, como se, da capa, um bem-parecido e,
apesar de parecer paradoxal, desfigurado Otto Skorzeny, estivesse
a chamar-me aos gritos. O livro de Juárez foi a porta que me
franqueou o acesso a uma história clandestina, tenebrosa e
fascinante, irresistível e aterradora em partes iguais. Como ocorre
com todas as boas investigações, as suas páginas proporcionaram-
me, além de muita informação, pistas acerca dos caminhos mais
idóneos para aprofundar determinados aspetos. Apesar da
generosa bibliografia anexa, não foi fácil.
Entre todos os adjetivos que utilizei para qualificar a rede
Stauffer, o mais relevante é clandestino. O regime franquista nunca
reconheceu oficialmente a sua relação com a obra de Clara que,
evidentemente, também nunca tornou público, em momento algum,
qualquer documento relacionado com a sua missão. A
clandestinidade em que a rede permanece até hoje aumenta o
mérito dos autores que a estudaram. Por isso me impressionou
tanto a carta de Aníbal D’Angelo Rodríguez. Nunca tinha duvidado
da autenticidade daquela trama, mas o testemunho arrogante de um
dos seus colaboradores, tão vivo quanto belicoso no século XXI,
trouxe um banho de realidade e de atualidade assustadores a um
relato de uma gravidade quase inverosímil.
A partir do livro de Javier Juárez, outros foram também
imprescindíveis para escrever este romance. Não teria podido fazê-
lo sem Carlos Collado Seidel, cuja obra España, refugio nazi
contribui com informações fundamentais, não só sobre as
implicações diplomáticas, mas também sobre o trabalho de
Johannes Bernhardt e os vínculos económicos entre a Espanha de
Franco e o poder nazi alemão antes, durante e depois da Segunda
Guerra Mundial.
O livro de José María Irujo, La lista negra, que reproduz
integralmente esse documento, também conhecido como Lista dos
104, foi-me tão útil nesse aspeto como no que se refere às relações
entre a Igreja católica espanhola e os fugitivos do Terceiro Reich.
No que diz respeito à Argentina como destino final dos
protegidos de Stauffer e de outras redes, não podia aspirar a nada
melhor do que à investigação exaustiva que Uki Goñi publicou em
dois volumes, La auténtica Odessa e Perón y los alemanes.
Esgotados há muitos anos, só consegui lê-los graças à ajuda do
meu amigo Héctor Delgado que, da sua livraria portenha Los Siete
Pilares, especializada em livros antigos e esgotados, teve a
paciência de os procurar, a habilidade de os encontrar e a
generosidade de mos enviar para Madrid.
Por vias semelhantes me chegou às mãos Hunting Evil, um livro
do jornalista britânico Guy Walters sem tradução em espanhol.
Graças à ajuda de Luis Domínguez, responsável da livraria Marcial
Pons da plaza Conde del Valle de Súchil de Madrid, pude aceder a
uma descrição bastante completa das atividades da trama que
inclui, além disso, a transcrição de uma boa parte da entrevista que
Sefton Delmer fez a Clara em Madrid, em 1948.
Apesar de ser um romance de ficção, em Los pozos de la nieve,
de Berta Vias Mahou, descobri um esboço biográfico interessante
da família Stauffer.
E embora o seu conteúdo não esteja explicitamente refletido
neste romance, em El franquismo, cómplice del Holocausto, de
Eduardo Martín de Pozuelo, compreendi melhor a posição oficial do
Estado espanhol que tornou possíveis os factos que aqui se narram.

Mais uma vez, a ajuda dos meus amigos foi imprescindível para
escrever Os doentes do doutor García.
Há muitos anos, antes de este romance ter título, e ainda menos
subtítulo, a minha amiga Belén Guerra, velha companheira de
ativismo republicano, emprestou-me o seu exemplar de El fin de la
esperanza, de Juan Hermanos. O livro impressionou-me tanto que
ela mo ofereceu. Nunca me esqueci dele e quando planifiquei este
romance, decidi que a disparatada e emocionante rebelião
estudantil de dezembro de 1946, ignorada por todos sempre e
desde sempre, merecia aqui um lugar, mesmo que as velhas armas
dos seus protagonistas não brilhassem tanto como os galões dos
SS.
No momento certo, o meu amigo Eduardo Becerra facilitou-me o
contacto com o professor Francisco Caudet, autor da magnífica
introdução da edição espanhola do livro de Hermanos. Ele
respondeu às minhas perguntas com enorme paciência e
amabilidade e autorizou-me a contar a história de Marc – Marcelo –
Saporta, que tentou em vão permanecer escondido atrás do seu
pseudónimo fraternal durante toda a sua vida.
Ao meu querido Rafa Reig devo, além da sua amizade, dias
maravilhosos em Cercedilla, excursões a Camorritos e a Fuenfría,
refeições na Casa Gómez e longas conversas em Peña Pintada, a
casa rural que já foi uma estalagem. Sem a sua ajuda e o seu
entusiasmo, Manolo e Guillermo nunca teriam subido de burro até à
casa de Herr Messerschmidt. Graças a Rafa, a única coisa que tive
de inventar foi o nome espanhol – don Eduardo – do nazi mais
famoso de uma aldeia onde abundaram muito mais do que ela
merecia.
Como as personagens deste romance espanhol acabam por
viver muito mais longe de Espanha do que os protagonistas dos
meus restantes Episodios, tive de recorrer também à generosidade
e à sabedoria de alguns amigos estrangeiros que amo, e que me
amam o suficiente para suportarem o abuso da minha curiosidade.
Graças a eles pude situá-los corretamente no tempo e no espaço.
Assim, de Berlim, Dieter Ingenschay escolheu o bairro,
Schöneberg, e até a rua, Winterfeldstrasse, onde vive a família
Müller, e além de calcular o tempo que Agneta demora a pé da sua
casa até à Porta de Brandeburgo, tendo em conta os escombros,
acrescentou também que esse bairro de Berlim, onde ele viveu e
que eu visitei há muitos anos, ficou famoso por causa de uma
canção na qual um rapaz conta como beijou ali uma rapariga no
mês de maio. Quando ouvi a versão de Marlene Dietrich, não pude
resistir à tentação de transformar essa canção numa personagem
com que não contava.
Nunca poderei agradecer o bastante a Elena Boledi por tudo o
que fez para situar Manolo Arroyo em Buenos Aires. O mérito é
partilhado também por Adolfo González Tuñón, que se deixou
arrastar por ela e caminhou ao seu lado enquanto ela escolhia para
mim o bairro de Balvanera e a zona do Palácio da Justiça, dando-
me as coordenadas exatas para uma pensão e para uma academia,
e mencionando no fim a existência do maravilhoso Café de los
Angelitos. Foi também Elena quem decidiu situar a fazenda Bley nos
arredores de Junín, perto do sítio onde ela e Eva Perón nasceram.
Os capítulos portenhos deste romance teriam ficado muito piores e
muito menos autênticos sem a sua ajuda preciosa.

Na primavera de 2014, um desconhecido contactou o meu


marido através do Facebook, pondo-se à minha disposição. Tinha
uma história fabulosa para me contar, tão fabulosa que, com a
emoção, me esqueci de anotar o seu nome no meu caderno verde.
Lembro-me de que era professor de alguma disciplina relacionada
com Agricultura na Universidade Autónoma de Madrid, mas não fui
capaz de o encontrar por esta via, embora tenha a sensação, talvez
errónea, de que tinha o mesmo nome do seu pai. Este, Jesús del
Cerro García, cumpriu um estranho serviço militar em meados dos
anos cinquenta. Protegido por um capitão do Exército chamado
Antonio Rico, a sua única obrigação consistia em aparecer de vez
em quando na sacristia da paróquia do largo de Iglesia, em Madrid,
vestido à paisana, para ir buscar um envelope e levá-lo a uma
morada, sempre a mesma, onde vivia uma senhora cujo nome tinha
esquecido. Recordava, no entanto, que esses sobrescritos
continham certidões de batismo com nomes estrangeiros, que a ele
lhe pareciam os apelidos dos futebolistas alemães, e que o capitão
Rico o proibira expressamente de os entregar ao porteiro da sua
destinatária, que tinha de os receber em mão.
No inverno de 2017, o compositor Bernardo Fuster, que sempre
usou o seu apelido materno para evitar dar-se ao trabalho de
soletrar o paterno, confirmou-me que a paróquia de Iglesia tinha
desempenhado um papel fundamental nesta história. Como se fosse
o protagonista de um dos meus romances, Bernardo tinha
descoberto, aquando da morte do pai, que Bernardo Feuerriegel,
que sempre pensou ter sido um soldado enviado como professor de
música para os acampamentos da Juventude Hitleriana em
Espanha depois de ser ferido na frente russa, tinha sido, na
realidade, o chefe desta organização e, como tal, procurado pelos
aliados. E contou-me que, em criança, a sua avó materna, que
acolhera o seu pai e possivelmente outros soldados na própria casa,
estava em contacto permanente com o pároco dessa igreja.
Outro testemunho pessoal muito valioso para mim foi a imagem,
mais do que a história, que me ofereceu Juan António Méndez ao
recordar ter visto Otto Skorzeny a gritar como um energúmeno
durante um serão de luta livre em Las Ventas, em meados dos anos
sessenta, com tanta violência como se desconhecesse a natureza
fictícia daqueles combates. Essa imagem era tão irresistível que não
resisti à tentação de me apropriar dela.
Mais decisivo e precioso foi o testemunho de Juan-Ramón
Capella, cujo livro de memórias, Sin Ítaca, tive o privilégio de
apresentar em Madrid, em junho de 2011. Apesar de ser a última
coisa que esperava ler nas recordações de um catedrático de
Filosofia do Direito, Moral e Política, as suas páginas e a memória
do autor ajudaram-me a construir a personagem de Clara Stauffer
mais e melhor do que qualquer outra fonte. Os pais de Juan-Ramón
eram vizinhos de veraneio de Clara, em Sitges, e os filhos
brincavam muitas vezes com ela na praia. Até que uma noite, os
senhores Capella descobriram que no sótão da sua casa estavam
escondidos dois homens e cortaram relações com a responsável por
isso. Além disso, ele lembra-se de ter ouvido uma história que eu
não li em lado nenhum. De acordo com a sua memória familiar,
Clara teria estado comprometida com um homem espanhol, mais
jovem e de extração social mais baixa que a dela, um motorista com
quem se teria casado se ele não se tivesse aproveitado, justamente,
da rede da sua noiva para emigrar para a Argentina no último
momento. Graças à memória de Juan-Ramón, atrevi-me a
incorporar um pequeno idílio frustrado na biografia fictícia de uma
personagem real.

Num dia de 1953, Luis Zori Martínez estava a descer a Gran Vía
quando, por alturas da igreja de San José, no número 43 da calle
Alcalá, lhe tiraram uma fotografia num passeio cheio de gente.
Muitos anos depois, fotografou-se comigo em duas cerimónias,
quando nenhum de nós poderia adivinhar que essa fotografia em
que está tão bonito se transformaria na capa do romance. Quero
agradecer-lhe não só por ser meu leitor, mas por me ter permitido
usá-la. Também lhe agradeço ter consentido que o
transformássemos num señorito, engomando-lhe o casaco e
inserindo uma gravata que não existia na imagem original.

Entre os atrevimentos a que me permiti em Os doentes do doutor


García, um que com certeza tem mais valor para mim do que para o
leitor consiste na incorporação de diferentes registos linguísticos da
minha própria língua.28
Para a variante portenha, contei com a cumplicidade da minha
editora e, sobretudo, amiga Paola Lucantis, responsável pela
Tusquets Argentina.
Para a variante mexicana também procurei um cúmplice. O meu
amigo Ignacio Padilla ofereceu-se para a corrigir na última vez que
nos vimos, no festival Centroamérica Cuenta, celebrado em
Manágua em maio de 2016. Após a sua morte abrupta e dolorosa,
no verão do mesmo ano, desisti de procurar outro revisor. Os erros
que Meg Williams comete ao falar espanhol neste romance, serão
sempre a minha pequena homenagem pessoal a Nacho Padilla.

Os leitores de outros romances da série devem ter reparado nos


vínculos estreitos de Os doentes do doutor García com os meus
Episódios anteriores. É lógico, uma vez que depois da luta armada e
do início da resistência política no interior, a via diplomática foi o
último recurso dos republicanos no exílio para tentarem que os
aliados se lembrassem de que continuavam a existir. Na realidade,
esta tentativa concentrou-se sobretudo na declaração da ONU de
dezembro de 1964. Eu atrevi-me a chegar muito mais longe, sem
esquecer que se a norma da História é a verdade, a norma da
Literatura é a verosimilhança.
Manuel Arroyo Benítez é uma personagem de ficção, mas
Enrique Moradiellos, biógrafo de Negrín, confirmou-me que lhe
parecia verosímil o presidente do governo republicano enviar um
homem a Madrid em setembro de 1937 para averiguar se seria
possível repetir-se ali a rebelião de Barcelona. Na medida em que já
consegui apropriar-me completamente de alguns «homens da minha
vida», como Juan Negrín e Jesús Monzón, transformando-os em
personagens de ficção, quero reiterar a minha gratidão aos seus
biógrafos, Moradiellos e Ricardo Miralles no caso do primeiro, e
Manuel Martorell, no do segundo. E renovar os meus
agradecimentos a Xavier Moreno Juliá, que me ensinou tudo o que
sei sobre a Divisão Azul e sobre a sua sucessora, a Legião Azul.
Estarei sempre em dívida com os historiadores espanhóis que
devolveram o nosso país à normalidade, reescrevendo o relato da
guerra e da ditadura franquista de uma perspetiva rigorosamente
democrática, porque sem eles nunca teria conseguido avançar. E
aqui, sobretudo, com Ángel Viñas, a quem me atrevo a chamar meu
mestre, mesmo que nunca tenha sido sua aluna, a tal ponto sou
devedora da sua obra monumental sobre a diplomacia republicana,
as implicações internacionais da presidência de Negrín e o trabalho
de Pablo de Azcárate perante o Comité de Londres.
Não é em vão que um dos livros de Ángel tem como título a
mesma expressão com que Marcelo Saporta concluiu o bilhete que
escreveu para Les Temps Modernes, em 1949. Escolho essas
mesmas palavras para terminar este romance.

Pela honra da República


Madrid, 22 de maio de 2017
28
Sendo naturalmente intraduzíveis, optou-se por manter algumas palavras e
expressões típicas do México e da Argentina, de modo a evitar que a perda
fosse total. (N. da T.)
As personagens
(Nesta lista só aparecem as personagens que intervêm nos
capítulos de ficção deste romance. Os nomes em itálico identificam
pessoas reais.)

Três impostores
GUILLERMO GARCÍA MEDINA, nascido em Madrid, em 1914, conhecido
como RAFAEL CUESTA SÁNCHEZ a partir do mês de abril de 1939.
Também conhecido como ÁNGEL VALVERDE ROLDÁN entre outubro de
1968 e fevereiro de 1969.

MANUEL ARROYO BENÍTEZ, nascido em Robles de Laciana, León, em


1910, conhecido como RAFAEL CUESTA SÁNCHEZ de 21 de junho de
1937 a 25 de janeiro de 1938.
Conhecido simultaneamente como FELIPE BALLESTEROS SÁNCHEZ de 7
de novembro de 1937 a 17 de janeiro de 1938.
Adota novamente a identidade de FELIPE BALLESTEROS SÁNCHEZ,
apátrida, entre o verão de 1939 e 10 de setembro de 1946.
Conhecido como PETER LOUZÁN VALERO, cidadão norte-americano de
origem espanhola, de 10 de setembro de 1946 a 7 de junho de
1947.
Conhecido como ADRIÁN GALLARDO ORTEGA a partir de 7 de junho de
1947.
Conhecido simultaneamente como JOSÉ PACHECO HERNÁNDEZ a partir
de 1 de julho de 1947.

ADRIÁN GALLARDO ORTEGA, nascido em La Puebla de Arganzón, em


1917, conhecido como pugilista profissional pelo nome de O TIGRE DE
TREVIÑO desde o verão de 1937.
Adota a identidade de ALFONSO NAVARRO LÓPEZ a 2 de maio de 1945.

Num hospital da Madrid sitiada


FORTUNATO QUINTANILLA, chefe do serviço de cirurgia do hospital de
San Carlos.
BERNABÉ, porteiro do hospital.
NORMAN BETHUNE, médico e investigador científico canadiano que
chegou como voluntário para a defesa de Madrid no outono de
1936.
ANDRÉS VELÁZQUEZ, psiquiatra, amigo do DOUTOR QUINTANILLA,
membro do Comité Diretivo da Junta de Defesa de Madrid como
responsável de Saúde Pública.
PEPE MOYA AGUILERA, conhecido na sua terra como PEPE O
PORTUGUÊS, militante comunista, soldado republicano e paciente do
DOUTOR GARCÍA.
IGNACIO FERNÁNDEZ MUÑOZ, estudante de Direito, militante comunista,
soldado republicano e paciente assíduo do DOUTOR GARCÍA. Terá
uma neta chamada Raquel Fernández Perea.

No número 49 da calle Hermosilla


GUILLERMO MEDINA ACERO, comissário de polícia, dramaturgo, autor
clandestino de letras de canções de revista e de vaudeville sob o
pseudónimo de FEDERICO RAMOS. Avô materno do DOUTOR GARCÍA e
proprietário do primeiro direito.
FERMÍN MANTÍNEZ, notário, proprietário do primeiro esquerdo.
EXPERTA FERNÁNDEZ HERNÁNDEZ, criada da família Martínez.
AMPARO PRIEGO MARTÍNEZ, neta de DON FERMÍN.
AURORA SARMIENTO GUTIÉRREZ, mulher do COMISSÁRIO MEDINA, avó do
DOUTOR GARCÍA.
MIGUEL SALCEDO, amigo de GUILLERMO GARCÍA MEDINA.
ERNESTO MARTÍNEZ, filho de DON FERMÍN, tio de AMPARO.
ROSA MEDINA SARMIENTO, mãe do DOUTOR GARCÍA.
GUILLERMO GARCÍA BONET, neurologista, médico e mais tarde marido
de ROSA MEDINA, pai do DOUTOR GARCÍA.
SUSI, corista no coro do Eslava.
GUILLERMO GARCÍA PRIEGO, nascido a 11 de setembro de 1938, em
Madrid. Registado pela segunda vez no Registo Civil, aos seis
meses de idade, como JOSÉ ANTONIO URBIETA PRIEGO.
De Robles de Laciana até à retaguarda de Madrid em guerra
JUAN NEGRÍN LÓPEZ, fisiologista e investigador científico. Presidente
do governo da República de maio de 1937 até ao fim da guerra.
JUAN ARROYO, morador de Robles de Laciana, pai de MANUEL
ARROYO BENÍTEZ.
GERTRUDIS BENÍTEZ, sua mulher, mãe de MANUEL ARROYO BENÍTEZ.
JUAN, TORIBIO, TULA e ASUNCIÓN ARROYO BENÍTEZ, filhos prediletos de
GERTRUDIS.
HERMENEGILDO, MARÍA e LEOCADIA ARROYO BENÍTEZ, irmãos de MANUEL
ARROYO BENÍTEZ e, como ele, filhos não desejados.
DON MARCOS, pároco de Robles de Laciana.
FRANCISCO FERNÁNDEZ BLANCO Y SIERRA-PAMBLEY, intelectual
progressista. Fundador, em 1886, de uma escola para crianças
pobres em Villablino (León).
PABLO DE AZCÁRATE Y FLÓREZ, político e diplomata espanhol, alto
funcionário da Sociedade das Nações em Genebra até 1936.
Embaixador do governo da República Espanhola no Reino Unido
até ao fim da guerra.
MARGARET CARPANI WILLIAMS, diplomata norte-americana, auxiliar do
Departamento do Mediterrâneo da delegação do governo de
Washington na Sociedade das Nações em Genebra.
HANK WILLIAMS, congressista do Partido Democrata pelo estado do
Texas, pai de MEG.
CELSA, jovem imigrante espanhola que trabalha num café situado
perto do Barnard College de Nova Iorque.
LORDE WINDSOR-CLIVE, presidente do Comité de Não Intervenção em
Espanha, também conhecido como Comité de Londres.
FRANCISCO LARGO CABALLERO, dirigente do PSOE, presidente do
governo da República desde setembro de 1936 até maio de 1937.
ANDRÉS, ou ANDREU, NIN, fundador do POUM, assassinado às mãos
da NKVD soviética em data incerta, provavelmente em junho de
1937.
BASILIO RODRÍGUEZ, comissário da polícia.
JESÚS ROMERO, capitão de Infantaria do Exército Popular colocado
no Serviço de Inteligência Militar (SIM).
Entre La Puebla de Arganzón e o porto de Bilbau
ANTONIO OCHOA GOROSTIZA, capitão do Exército franquista, atacado
por uma doença misteriosa.
JOSÉ LUIS BARRIOS, tenente do Exército franquista, amigo do CAPITÃO
OCHOA.
ALFONSO NAVARRO LÓPEZ, falangista e soldado do Exército franquista,
pugilista amateur antes da guerra.
FERNANDO VILLA RUIZ, falangista navarro opositor ao decreto de
Unificação, detido e encarcerado em abril de 1937.
DON CARLOS ORTEGA, herdeiro da estirpe lendária dos Garrotes, avô
materno e ídolo infantil de ADRIÁN GALLARDO ORTEGA.
DONA MARÍA ORTEGA, filha mais nova de DON CARLOS, mãe de
ADRIÁN.
DON TEODORO GALLARDO, pai de ADRIÁN.

Na enfermaria do quartel de El Pardo


FERMÍN CUADRADO, comandante do Exército Popular, colocado no
quartel de El Pardo em novembro de 1937.
FELIPE BALLESTEROS SÁNCHEZ, artilheiro da IV Brigada Mista, morto
em combate a 7 de novembro de 1937.
Deixa uma viúva, Marina González Manzano, e uma filha de seis
meses, Elena Ballesteros González, que será entregue a um
hospício de Madrid quando a mãe morrer num bombardeamento. A
avó, dona Elena Manzano, tira-a de lá e leva-a a viver consigo em
Carmona e, depois, para uma povoação da província de Jaén
chamada Fuensanta de Martos.
ISIDRO e GLORIA, casal encarregado de cuidar das instalações do
Instituto Canadiano de Transfusões.
FRANCISCO ARRIETA, pediatra e falangista, assume a direção do
hospital de San Carlos no próprio dia em que as tropas de Franco
entram em Madrid.

O último cartucho de uma mulher desesperada


MARÍA EUGENIA LEÓN, que perde o seu amor antes de ganhar a
guerra.
PILAR PRIMO DE RIVERA, Chefe Nacional da Secção Feminina da
Falange Espanhola.
ESTEBAN MAROTO, patrocinador do golpe de 18 de julho de 1936,
marido de Geni.
MANUEL HEDILLA, sucessor de José Antonio na Chefia Nacional da
Falange Espanhola, preso a 25 de abril de 1937 por se opor ao
decreto de Unificação.
CLARA STAUFFER, aqui responsável de Imprensa e Propaganda da
Secção Feminina da Falange Espanhola, colaboradora e amiga de
PILAR PRIMO DE RIVERA.

Um armazém de cereais em Buenos Aires


JAN SCHMITT DE WANDALEER, militante da Juventude Hitleriana e da
Legião Flamenga, soldado na Europa, nascido em Buenos Aires.
MARIJKE DE WANDALEER, concebida na Antuérpia, nascida em La
Boca, criada num pátio de vizinhos em San Telmo, mãe de JAN.
PETER DE WANDALEER, imigrante flamengo, dono de um armazém de
cereais em Buenos Aires, pai de MARIJKE.
KLAUS SCHMITT, imigrante alemão na Argentina, marido de MARIJKE,
pai de JAN.
MARTIN SCHMITT, irmão de KLAUS, caído em 1917, na batalha de
Verdun.
JOSEF SCHMITT, gémeo de MARTIN, ferido em combate pouco depois.
JOHANN SCHMITT, o primogénito, suicida-se depois de ficar arruinado
durante a crise que sucede a derrota alemã na Grande Guerra.
MARTÍN SCHMITT DE WANDALEER, segundo filho de KLAUS e de MARIJKE.
JOSEFINA SCHMITT DE WANDALEER, terceira e última dos seus filhos.

Num palácio dos czares da Rússia


ERNESTO JUNQUERA, capitão da Divisão Azul, amigo e admirador do
TIGRE DE TREVIÑO.
TENENTE GUTIÉRREZ, outro dos oficiais que o admiram e protegem.
PADRE ARRIBAS, capelão da Divisão Azul.
JUAN MANUEL SUÁREZ, PIRULO, antigo legionário, antigo pugilista
profissional, treinador do TIGRE DE TREVIÑO no Ginástica Ferroviária
da calle Barbieri, em Madrid.
MAX SCHMELING, pugilista alemão, campeão do mundo de pesos
pesados em 1930.
ANNY ONDRA, estrela de cinema alemã de origem polaca, mulher de
MAX.
ANTÓN OÑATE, pugilista, adversário do TIGRE DE TREVIÑO no
Campeonato de Espanha de 1941.
AGUSTÍN MUÑOZ GRANDES, comandante-chefe da Divisão Azul,
condecorado por Hitler com a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro
com folhas de carvalho.
DON FERNANDO, proprietário do Ginástica Ferroviária.

Do outro lado da Castellana


ELENA ou ELENA OLMEDILLA, nome que usava na clandestinidade a
militante comunista PILAR SOLER, companheira de JESÚS MONZÓN em
Madrid.
FACUNDO, proprietário da residencial Moderna, situada em Puente de
Vallecas.
DONA ENRIQUETA, aluga quartos no seu apartamento no número 24
da calle Españoleto.
MARÍA ARÁNZAZU, sua sobrinha, que não admite que lhe chamem
Arancha.
MERCEDES SARMIENTO GUTIÉRREZ, irmã de DONA AURORA, tia-avó do
DOUTOR GARCÍA
MERCEDES FERNÁNDEZ SARMIENTO, filha de MERCEDES, prima segunda
do DOUTOR GARCÍA.
MILAGRITOS SAN SEBASTIÁN, cantora lírica, hóspede de DONA
ENRIQUETA.
MATÍAS, porteiro do número 26 da calle Españoleto.
DON GABINO DE LA FUENTE, dono da transportadora La Meridiana.
AMADOR FERNÁNDEZ, hóspede de DONA ENRIQUETA, mais tarde marido
de MARÍA ARÁNZAZU.
DONA BENIGNA, porteira do número 5 da calle Apodaca.
JESÚS MONZÓN REPARAZ, secretário-geral do PCE em França e em
Espanha durante a Segunda Guerra Mundial. A partir da primavera
de 1943, exerceu o cargo a partir de Madrid, onde residiu
clandestinamente até ao verão de 1945.

Num bosque do Norte da Estónia


ERNST KLEIBER, Hauptsturmführer, grau equivalente ao de capitão,
do III Panzerkorps das SS.
HEINRICH BEYER, soldado alemão mobilizado, enquadrado no III
Panzerkorps.
ESTHER, prisioneira judia do campo de Klooga, assassinada a 20 de
setembro de 1943.

Numa trincheira da Wilhelmstrasse


AGNETA MÜLLER, dirigente juvenil da Liga de Raparigas Alemãs
(Bund Deutscher Mädel).
RUDOLF, RUDI MÜLLER, porteiro da Câmara Municipal de Schöneberg,
pai de AGNETA.
BEATE MÜLLER, pertencente ao círculo fundador do Partido Nacional-
Socialista Operário Alemão (NSDAP) em Schöneberg, mulher de
RUDI, mãe de AGNETA.
ROSWITHA DOHRN, amiga e vizinha da família Müller.
FRITZ WEBER, soldado alemão do III Panzerkorps, companheiro de
ADRIÁN e de JAN em Klooga.
LAZLO, voluntário húngaro das SS, enquadrado no III Panzerkorps,
companheiro de ADRIÁN e de JAN em Klooga
ROBERT COLLARD, voluntário belga da 28.ª Divisão de Granadeiros
Valões, enquadrada na Legião Valona, destinada à defesa de
Berlim.
THOMAS DOHRN, irmão de ROSWITHA, tenente das SS.
MICHAEL SCHNEIDER, soldado da Wehrmacht, defensor de Berlim.

No gabinete do congressista Burnstein


SAL, nascido SAUL, BURNSTEIN, imigrante originário da Galícia polaca,
congressista do Partido Democrata dos Estados Unidos.
ABBY, a sua secretária.
LEWIS, nascido ELYAHU, BURNSTEIN, irmão mais velho de SAL, emigra
para os Estados Unidos no fim de 1918.
ABRAHAM BURNSTEIN, assassinado em Korczyna em 1919, pai de SAL.
SARA BURNSTEIN, de solteira BERKOWITZ, mulher de ABRAHAM, mãe de
SAL, morta no campo de concentração de Plaszów.
AGAR, filha mais velha de ABRAHAM e de SARA, casada, residente em
Cracóvia, morta com toda a sua família no campo de concentração
de Plaszów.
EFRAIM, filho de ABRAHAM e SARA, emigra para os Estados Unidos em
1919.
DAVID, filho de ABRAHAM e SARA, casado, residente numa povoação
próxima de Cracóvia, morto com toda a sua família no campo de
concentração de Plaszów.
LINKA, filha mais nova de ABRAHAM e SARA, professora, residente em
Varsóvia, morta com os seus filhos no campo de concentração de
Auschwitz.
REBECA, filha de ABRAHAM e SARA, casada, residente em Varsóvia,
morta com toda a sua família no campo de concentração de
Auschwitz.
MOSHE, marido de LINKA, morto na rebelião do gueto de Varsóvia.
SAMMY COHEN, filho de um magnata de Wall Street, membro de um
lobby judeu e amigo de SAL.
LOUIS, nascido ELYAHU, BERKOWITZ, irmão de SARA BURNSTEIN, emigra
para os Estados Unidos em 1907 e estabelece-se em Nova Iorque.
WILLIAM, BILL, MATTIOLI, senador do Partido Democrata, sogro de SAL.
GLORIA BURNSTEIN, em solteira MATTIOLI, filha de BILL, mulher de SAL.

Um weekend em Taplow
ROBERT, BOB, MCKAY, agente da CIA residente em Gibraltar.
SOLEDAD, SOLE, RUIZ, imigrante espanhola em Nova Iorque que,
antes de sair do país, trabalha como criada em Madrid, em casa de
CLARA STAUFFER.
JEAN-JULES LECOMTE, burgomestre de Chimay, na Bélgica, durante a
ocupação nazi, membro do Partido Rex e das SS. Criminoso de
guerra.
HORST CARLOS ALBERTO FULDNER, cidadão alemão nascido na
Argentina, membro da Sicherheitsdienst, ou SD, organização de
inteligência das SS.
WALTER SCHELLENBERG, general de brigada das SS, dirigente da SD e
chefe de Segurança da Gestapo.

Numa taberna da calle Barquillo


RAMÓN MATEOS, estudante de Engenharia Industrial, militante
antifranquista.
PACO CONTRERAS, filiado no PSOE anteriormente à guerra, antigo
cronista de espetáculos que ganha a vida como revisor de provas.
Padrinho de SILVERIO AGUADO GUZMÁN e amigo íntimo do seu pai.
JUANMA GÓMEZ, militante antifranquista, amigo de RAMÓN MATEOS e
paciente do DOUTOR GARCÍA.

Em Berlim depois da derrota de Hitler


PADRE SCHULZE, sacerdote católico de origem suíça, confessor do
prisioneiro ALFONSO NAVARRO LÓPEZ.
JOHANNES GRUNWALD, polícia municipal do distrito de Schöneberg.
AGNETA GRUNWALD, em solteira MÜLLER, sua mulher.
RUDI GRUNWALD, primogénito de JOHANNES e de AGNETA.

Entre o número 14 da calle Galileo e o vale da Fuenfría


CLARA STAUFFER, aqui dirigente de uma rede que ajuda nazis e
colaboracionistas perseguidos pela justiça a instalarem-se em
Espanha ou a emigrarem para um terceiro país.
INGRID WEISS, amiga e colaboradora de CLARA STAUFFER.
EBERHARD MESSERSCHMIDT, agente da inteligência naval do Terceiro
Reich colocado na embaixada de Madrid, posteriormente assessor
do Ministério da Marinha espanhol, cuja entrega é exigida pela
justiça aliada. Conhecido em Cercedilla como DON EDUARDO.
LÉON DEGRELLE, fundador do ultraconservador Partido Rex, mais
tarde oficial das SS. Julgado à revelia na Bélgica, em dezembro de
1945, e condenado à morte por crimes de guerra.
LOUIS DARQUIER DE PELLEPOIX, comissário-geral para os Assuntos
Judaicos do governo de Vichy. Julgado à revelia e condenado à
morte em 1947 pelas suas atividades antissemitas e
colaboracionistas.
JOHN ANGUS MACNAB, membro da União Britânica de Fascistas,
detido e preso em 1940. Depois de fugir da cadeia em 1945,
refugiou-se em Espanha.
MARJORIE MUNDEN, fascista britânica residente em Espanha.
Namorada de JOHN ANGUS MACNAB, com quem conviveu em Madrid
durante muitos anos.
MIRIAM DI SAN SERVOLO, nome artístico de MARIA PETACCI, atriz
italiana, irmã da companheira de Benito Mussolini.
HORIA SIMA, político fascista, líder da Guarda de Ferro, fundador do
Estado Nacional Legionário da Roménia. Criminoso de guerra.
WALTER KUTSCHMANN, militar alemão, encarregado de um grupo de
extermínio que operou na Polónia em 1942. Criminoso de guerra.
ANTE PAVELIĆ, político e ditador croata, fundador do grupo terrorista
fascista Ustacha (Movimento Revolucionário do Levantamento
Croata) e, depois, ditador do Estado Independente da Croácia,
marioneta do Terceiro Reich. Criminoso de guerra.
ABRAHAM KIPP, oficial de polícia de Haia durante a ocupação.
Condenado à morte à revelia em 1949 pela justiça holandesa.
Criminoso de guerra.
JOHANNES BERNHARDT, empresário alemão filiado no NSDAP, que fez
de mediador entre Franco e Hitler em julho de 1936. Alcançou a
patente de general honorário das SS. Amigo e patrocinador de
CLARA STAUFFER.
JOSÉ FÉLIX DE LEQUERICA, político e diplomata fascista espanhol.
Ministro dos Assuntos Exteriores desde agosto de 1944 até julho de
1945, ajudou inúmeros nazis e colaboracionistas a refugiarem-se
em Espanha.
VÍCTOR DE LA SERNA Y ESPINA, e o seu filho, VÍCTOR DE LA SERNA
GUTIÉRREZ-RÉPIDE, jornalistas espanhóis fascistas, relacionados com
as redes de evasão de fugitivos nazis, colaboracionistas e
criminosos de guerra.
MARCOS, refugiado croata, anteriormente colocado no campo de
concentração de Jasenovac, aluno do grupo de conversação de
RAFAEL CUESTA. Criminoso de guerra.
FRIEDRICH, nome falso de WILHELM, refugiado alemão, aluno de
conversação de RAFAEL CUESTA. Criminoso de guerra.
ATTILA, refugiado húngaro, dirigente da Cruz Flechada, aluno do
grupo de conversação de RAFAEL CUESTA. Criminoso de guerra.
OLIJ, refugiado holandês, membro das SS, aluno do grupo de
conversação de RAFAEL CUESTA. Criminoso de guerra.
OTTO SKORZENY, engenheiro e militar austríaco, coronel das SS, ao
comando de um grupo de operações especiais durante a Segunda
Guerra Mundial. Paradigma do ídolo nazi, durante e depois do
conflito.
ROLF STEINBAUER, identidade falsa que OTTO SKORZENY usa em
Espanha.
OTTO HORCHER, proprietário do Horcher, luxuoso restaurante alemão
de Madrid.
JOSEF HANS LAZAR, agregado de imprensa da embaixada do Terceiro
Reich em Madrid. Reclamado pela justiça aliada.

Na capital do general Perón


RODOLFO, RUDI, FREUDE, amigo íntimo e secretário pessoal de JUAN
DOMINGO PERÓN.
MAGDA IVANISSEVICH, cidadã argentina de origem croata, ativista das
redes de apoio e evasão de nazis.
PEDRO RICARDO OLMO, sacerdote carmelita espanhol que oferece o
seu passaporte a WALTER KUTSCHMANN para que este emigre para a
Argentina.
RADU GHENEA, embaixador em Madrid do ditador romeno Ion
Antonescu, requerido pela justiça do seu país, fugido para a
Argentina, onde assume a direção do Serviço Argentino de Receção
de Europeus, SARE.
SOFÍA FERRETI, funcionária argentina destacada para o SARE.
LUDWIG FREUDE, empresário multimilionário argentino de origem
alemã, membro do NSDAP, pai de RUDI FEUDE.
PIERRE DAYE, jornalista e político belga de ideologia nazi, julgado à
revelia e condenado à morte em Bruxelas, em 1946, pelas suas
atividades antissemitas e colaboracionistas.
CISSY VON SCHILLER, cidadã alemã que emigra de Madrid para
Buenos Aires, onde dirige uma organização de acolhimento que
colabora com a rede Stauffer.
JAN DEGRAAF VERHEGGEN, identidade falsa que consta no passaporte
espanhol com que JEAN-JULES LECOMTE entra na Argentina em maio
de 1946.
FRED GOODWIN, agente da CIA destacado em Buenos Aires.
HELEN MURRAY, rapariga britânica, titular de um apartado de correios
em Burnham, Buckinghamshire.

No número 16 da calle Velázquez


DONA SARA VILLAMARÍN, mulher de DON ANTONIO OCHOA.
SARA GÓMEZ MORALES, que em 1949 tem dois anos, afilhada de
DONA SARA VILLAMARÍN DE OCHOA, que a cria e educa como se fosse
sua própria filha até que, ao fazer dezasseis anos, a devolve aos
pais.

Na Casa de Campo
ZACARÍAS GONZÁLEZ PEÑA, pastor, morador de Aravaca.
MARI, sua mulher.
ROBERTO CONESA ESCUDERO, inspetor da Brigada Político-Social de
Madrid.
JERÓNIMO, coveiro do cemitério de La Almudena.

Na Casa de las Flores


RITA VELÁZQUEZ MARTÍN, uma agulha num palheiro.
CARIDAD MARTÍN, viúva do DOUTOR VELÁZQUEZ, mãe de RITA.
MARÍA LUISA VELÁZQUEZ, irmã do DOUTOR VELÁZQUEZ, tia de RITA.
FERNANDO GONZÁLEZ MUÑIZ, conhecido como GAITERO, depois como
GALÁN, militar comunista, um dos invasores de Arán, infiltrado
clandestinamente em Espanha, paciente do DOUTOR GARCÍA.
GERMÁN VELÁZQUEZ MARTÍN, psiquiatra exilado, residente na Suíça,
primogénito de ANDRÉS e de CARIDAD, protagonista de La madre de
Frankenstein.
MANOLITA PERALES GARCÍA, a melhor amiga de RITA.
SILVERIO AGUADO GUZMÁN, militante comunista, preso político que
cumpre pena no destacamento penal de Cuelgamuros, marido de
MANOLITA.
MANUEL CUESTA VELÁZQUEZ, nascido em 1951.
RITA GUILLERMINA CUESTA VELÁZQUEZ, nascida em 1953.

Em Rockport, Massachusetts
MICHAEL MORRISON, congressista do Partido Democrata por Rode
Island.
ANDREW SANDERS, adjunto do porta-voz do Partido Democrata no
Congresso dos Estados Unidos.
SARAH, empregada do Bearskin Inn.

O Café de los Angelitos, em Rivadavia e Rincón


SIMONA GAITÁN PERONI, uma mulher que não se pode resumir numa
linha.
DON HÉCTOR BRIOSCHI, dono da Academia de Línguas La Europea.
DONA ENCARNACIÓN RODRÍGUEZ, aluga quartos e é irmã de DONA
MARÍA, a mulher de BRIOSCHI.
ARTEMIO, empregado do Café de los Angelitos, que adora falar com
os clientes.
JUAN GAITÁN, imigrante espanhol, nascido na Galiza, pai de SIMONA.
ADELINA GAITÁN PERONI, a sua filha mais velha.
SIMONA PERONI, portenha de pais italianos, mulher de JUAN, mãe de
ADELINA e de SIMONA GAITÁN.
RENATO BLEY, proprietário de uma fazenda em Fortín Tiburcio, perto
de Junín, província de Buenos Aires, primeiro marido de SIMONA
GAITÁN.
AUGUSTA e SALOMÉ BLEY, irmãs de RENATO.
PEDRO, marido de AUGUSTA.
Na Casa Inés, no número 54 do Boulevard d’Arcole, Toulouse
INÉS RUIZ MALDONADO, a cozinheira de Bosost, mulher de FERNANDO
GONZÁLEZ MUÑIZ, conhecido como GAITERO, conhecido como GALÁN.
ANGELITA, amiga e sócia de INÉS, mulher de um guerrilheiro
comunista conhecido como COMPRENDES.
VIRTUDES GONZÁLEZ RUIZ, cozinheira, filha de GALÁN e de INÉS.
FERNANDA, talhante em Fuensanta de Martos que, na primavera de
1949, foge para França com o marido. Amiga de PEPE O PORTUGUÊS.

Do largo de Bilbao à prisão de Carabanchel


RICARDO RUIZ AGUILAR, advogado, comunista, sobrinho de INÉS RUIZ
MALDONADO.
ANDREA CUESTA VELÁZQUEZ, nascida em 1961.
ALBERTO e CRISTINA, estudantes universitários, manifestantes
antifranquistas.
FEDERICO, militante comunista, deficiente, amigo do DOUTOR GARCÍA.
ÁNGEL VALVERDE ROLDÁN, advogado inscrito na Ordem de Madrid.
LAURA AGUADO PERALES, filha mais velha de SILVERIO e de MANOLITA,
sócia do Atlético de Madrid.
JUAN GÓMEZ GÓMEZ, profissional de luta livre, conhecido como O
DEMÓNIO DE AÇO.

De Buenos Aires a Madrid


SIMONA PACHECO GAITÁN, nascida em 1952.
GUILLERMO PACHECO GAITÁN, nascido em 1953.
JUAN PACHECO GAITÁN, nascido em 1958.
CHARLIE, fotógrafo free lance, namorado de SIMONA PACHECO.
JOSÉ IGNACIO, colega de apartamento de CHARLIE.
E o CÔNSUL de Espanha em Buenos Aires em novembro de 1976.

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