Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
www.portoeditora.pt
ISBN 978-972-0-67975-8
Para o Luis.
Outra vez, e nunca serão bastantes
Hoje, quando da tua terra já não necessitas,
Ainda nestes livros te é querida e necessária,
Mais real e entressonhada que a outra;
Não essa, mas aquela é hoje a tua terra.
A que Galdós a conhecer te dera,
Como ele tolerante de lealdade contrária,
Segundo a tradição generosa de Cervantes,
Heroica vivendo, heroica lutando
Pelo futuro que era o seu,
Não pelo sinistro passado aonde à outra voltaram.
Hospital de sangue
É 25 DE JULHO DE 1936 E JOHANNES BERNHARDT ESTÁ EM BAYREUTH.
O compositor Richard Wagner, a quem esta pequena cidade do
Leste da Alemanha deve a sua fama universal, tem muito que ver
com a visita de Bernhardt. De facto, o carro que o trouxe de
Munique detém-se justamente diante da fachada de Wahnfried, a
bela villa que o músico aqui construiu graças ao patrocínio do Rei
Louco, Luís II da Baviera.
Em 1936, a proprietária de Wahnfried é Winifred Wagner, viúva e
herdeira de Siegfried, único filho varão do compositor, cujo corpo lhe
deu quatro filhos antes de a alma se entregar a outro amor. O
acontecimento mais importante da sua vida dá-se em 1923, quando
um jovem enérgico de trinta e quatro anos se apresenta à família
Wagner, depois de assistir a um espetáculo do Festival de Bayreuth.
É o líder do Partido Nacional-Socialista Operário Alemão, mas o
motivo da sua visita não é político. Está convencido de que não
existe obra comparável à de Richard em toda a história da música e
quer manifestar o seu fervor aos herdeiros do compositor. Em
segundo plano, a jovem esposa de vinte e seis anos assiste a esta
declaração apaixonada que lhe inspira uma paixão ainda mais
desmedida. Desde esse momento, Winifred vive exclusivamente por
e para Adolf Hitler.
Durante mais de uma década, a amizade íntima do Führer com
Winifred Wagner faz circular na Alemanha todo o tipo de rumores.
Johannes Bernhardt conhece-os decerto, e a sua ignorância acerca
da percentagem de verdade que terão talvez lhe aumente o
nervosismo, na antessala onde espera pela chegada do casal, que
assiste nesse momento a uma representação impecável de
Siegfried. Dali não se ouve a orquestra, as vozes dos intérpretes
que conseguiram arrancar Hitler de Berlim, trazendo-o uma vez
mais ao Festival de Bayreuth e à hospitalidade amorosa de Frau
Wagner. Johannes Bernhardt fez uma viagem muito mais longa para
estar ali.
Até à manhã de 23 de julho de 1936, a trajetória deste
empresário alemão de trinta e nove anos é uma sucessão anódina
de fracassos. Sem perspetivas no seu país, na primeira metade dos
anos trinta, emigra para Espanha, mas também não tem sorte na
Península. Vai procurá-la no Protetorado espanhol de Marrocos e
fixa residência em Tetuão, onde não consegue nada melhor do que
um emprego numa empresa alemã de importação e exportação.
Mas Bernhardt, membro veterano do Partido Nazi, opera também
em Tetuão como o homem da AO – Auslandsorganisation der
NSDAP –, a organização exterior do seu partido, mantendo
excelentes relações com o marechal Hermann Göring. Assim, a 17
de julho de 1936, a sublevação do exército espanhol em Marrocos
oferece-lhe a oportunidade que procurou durante anos com muito
esforço e pouco sucesso.
Bernhardt apressa-se a entrar em contacto com os militares
rebeldes. Não é, longe disso, o único nazi a viver em Espanha, nem
sequer o único de Marrocos espanhol, mas é o mais rápido, o mais
audacioso, aquele que, por isso, obterá o favor da fortuna. Sem
outros argumentos, sem nenhuma garantia além da sua própria
veemência, oferece-se como intermediário entre os militares
golpistas e o próprio Führer, e essa bazófia mudar-lhe-á a vida para
sempre.
O primeiro golpe de sorte de Bernhardt reside no facto de o
comandante militar das Canárias ser, justamente, Francisco Franco.
O segundo no facto de este aceder a reunir-se com ele em Tetuão
na manhã de 23 de julho, apesar de não ser, nem de perto, o
principal cabecilha de uma rebelião dirigida pelo general Mola, por
delegação do general Sanjurjo – chefe supremo dos rebeldes, morto
num acidente de avião três dias antes. O terceiro é encontrar um
avião da Lufthansa disponível e convencer o piloto, Alfred Henke, a
levá-lo a Berlim com o chefe do Partido Nazi no Protetorado, Adolf
Langenheim, e o capitão de aviação Francisco Arranz Monasterio,
chefe das forças aéreas sublevadas em Marrocos. Uma vez
completa a tripulação, os membros tiram uma fotografia diante do
aparelho com que vão atravessar meia Europa. Nela, Bernhardt
posa com um sorriso e com um envelope na mão.
A partir desse momento, a sorte, outrora esquiva, alia-se
descaradamente a ele. Às cinco da tarde do próprio dia 23, o
Junkers JU-52 descola do aeródromo de Tetuão rumo a Sevilha,
onde Henke arrisca uma aterragem perigosa porque a pista de
Tablada carece de luzes de sinalização e o motor do aparelho está
com uma avaria. Reparada no próprio aeródromo, prossegue o voo
até Marselha, onde se previa o reabastecimento de combustível. Os
franceses exigem o pagamento em francos, Bernhardt e os
companheiros não conseguem cambiar dinheiro, parece que a
viagem termina ali, mas também esses problemas se resolvem,
novamente por milagre, conseguindo eles prosseguir até Estugarda,
apesar de Henke, inicialmente, se recusar a aterrar em solo alemão
com receio das represálias que a Lufthansa pudesse exercer contra
ele, um piloto civil que saiu da base sem autorização. De Estugarda,
o voo até à capital da Alemanha é um passeio.
Rudolf Hess, responsável máximo do NSDAP em Berlim na
ausência de Hitler, recebe Bernhardt – autoproclamado chefe da
expedição apesar de Langenheim ter um posto superior no Partido –
e decide apoiar a causa. Oferece aos recém-chegados a sua
avioneta particular e acompanha-os a Munique, onde os aguarda
um carro que os deixa em Wahnfried ao cair da tarde do dia 25 de
julho, enquanto Adolf Hitler desfruta da música de Wagner no
camarote da sua amiga Winifred.
Ela organizou uma pequena receção para o convidado, mas o
Führer está mais interessado na carta que Bernhardt lhe traz de
Tetuão. Escrita à mão pelo próprio Franco, o conteúdo não
ultrapassa meia folha, deixando espaço livre para a tradução. No
entanto, o portador, que se deu ao trabalho de a copiar, nunca a
verteu por escrito para alemão. No momento culminante da sua
existência, preferiu ler diretamente na sua língua materna estas
palavras de Francisco Franco.
Excelência,
O nosso movimento nacional e militar tem como obje vo a luta
contra a democracia corrupta no nosso país e contra as forças
destru vas do comunismo, organizadas sob o comando da Rússia.
Permito-me dirigir-me a V. Ex.ª através desta carta, que lhe será
entregue por dois senhores alemães que par lham connosco os
trágicos acontecimentos atuais.
Todos os bons espanhóis decidiram firmemente começar esta
grande luta, para o bem de Espanha e da Europa.
Existem severas dificuldades em transportar rapidamente para a
Península as experientes forças militares de Marrocos, por falta de
lealdade da Marinha de Guerra Espanhola.
Na minha qualidade de chefe supremo destas forças, rogo a V.
Ex.ª que me facilite os seguintes meios de transporte aéreo:
10 aviões de transporte com a maior capacidade possível; além
disso solicito:
20 peças an aéreas de 20 mm.
6 aviões de caça Heinkel.
A maior quan dade possível de metralhadoras e de espingardas
com as suas munições em abundância.
Também bombas aéreas de vários pos, até 500 kg.
Excelência,
Espanha cumpriu em toda a sua história os seus compromissos.
Dessa vez também não houvera padre, mas foi uma cerimónia
bonita, até solene, com discursos comoventes, nenhum deles tão
tocante como a carta de despedida que eu não teria conseguido
acabar de ler se Miguel Salcedo não ma tivesse tirado das mãos,
substituindo-me nos parágrafos centrais e deixando-me chorar e
recompor-me antes de, finalmente, ma devolver. Antes, um
organista tocara A Marselhesa. Depois tocou o Hino de Riego e
voltámos todos a chorar, a abraçar-nos, enquanto aquela inscrição
se cobria de coroas de flores com fitas tricolores. A minha avó não
foi ao cemitério. Ficou em casa porque os enterros não lhe pareciam
apropriados às senhoras decentes, mas, quando lhe descrevi a
cerimónia, arrependeu-se de não me ter acompanhado. Tu achas
que será pecado enterrarem-me junto do avô, a mim que estive
sempre tão apaixonada por ele?, perguntou-me, e embora soubesse
que sim, respondi-lhe que era melhor consultar o confessor. Depois
justificou-se dizendo que parecia mentira, mas que saber que toda
aquela gente tinha gostado tanto do marido a consolara muito.
A Amparo, além de falangista, era uma mulher moderna e
recusara-se a ficar em casa. Instantes antes de o avô dela
acompanhar o meu na eternidade, recordei o enterro do comissário
Medina e estremeci ante a solidão de outra neta, uma tristeza que
não cederia perante nada do que fizessem ou dissessem aqueles
que a acompanhavam nesse dia, uma recordação infeliz que a partir
desse momento só iria aumentar, tornar-se cada dia maior, mais
amarga. Por isso, olhei em volta, procurei manchas de cor e não
encontrei nenhuma. Não havia uma única flor nas campas civis da
cidade sitiada, mas a Experta abriu um saco que trazia pendurado
no braço e tirou três molhos de gerânios vermelhos, frescos e
compactos, que cortara dos vasos que já não enfeitariam as
varandas da sua casa. Deu um à sua menina, deu-me outro a mim e
ficou com o terceiro, e aquelas flores caseiras, alegres, sempre tão
baratas, tão valiosas de repente, emocionaram-me por tornarem
maior, mais profunda, a tristeza de uma sepultura aberta, o peso das
palavras inscritas naquela lápide de granito, tão emocionantes para
mim, tão odiosas para ela, que lhe pesariam para sempre na
consciência como uma ignomínia irreparável. Por isso, sem pensar
no que fazia, estreitei a mulher que chorava à minha frente, cruzei
os braços em volta da sua cintura e beijei-lhe o cabelo.
– Reza, Amparo. Reza tudo o que quiseres. Se o teu Deus
existe, está a ver-te. Ele não sentirá a falta de um padre.
Ela voltou-se dentro do meu abraço, olhou para mim, abriu a
boca e não conseguiu falar.
– Pai Nosso, que estás no Céu…
Foi a Experta quem começou a rezar e a Amparo só se lhe
juntou no fim da oração. A seguir, rezaram as duas juntas uma ave-
maria e, finalmente, o bendito cadáver de don Fermín descansou na
terra. Depois de pousar os gerânios na campa, dei uma boa gorjeta
ao coveiro e segui a Experta, que segurava a Amparo nos braços
como se tivesse receio de que ela se desfizesse, até à porta do
cemitério. Já eram quase três e um quarto e eu precisava de voltar a
correr para o hospital, mas também não podia ir-me embora assim.
– Toma, Experta, as chaves da minha casa. Tenho outras no
hospital. Podem ir para lá, comer alguma coisa, descansar um
pouco… Hoje não vou dormir, não sei se conseguirei ir amanhã. A
Amparo que vá buscar tudo o que precisar e depois… Deixa-me o
chaveiro na caixa do correio, está bem? E já sabes onde estou, se
acontecer alguma coisa. – Olhei para Amparo para a incluir na
oferta. – O que quer que seja.
O táxi continuava a cheirar à morte de don Fermín, mas, ao
instalar-me no banco traseiro, entreguei-me a uma sensação mais
parecida com a alegria do que com a tranquilidade. O dia esgotante
de sangue, dor e corpos despedaçados que esperava por mim
parecia um horizonte quase agradável em comparação com o que
tinha vivido nas últimas horas. Sabia que depressa me arrependeria
desse pensamento, mas desfrutei dele em silêncio enquanto o táxi
avançava pela calle Alcalá. Minutos mais tarde, vesti uma bata
branca, a única coisa limpa que teria durante muitas horas, e depois
foi só cortar, coser, cauterizar e amaldiçoar entre dentes os aviões
que passavam, os que continuavam a passar, os que nunca
deixavam de passar.
O dia 20 de novembro já havia começado quando me deixei cair
num catre do serviço de urgências. Minutos depois, começou um
bombardeamento massivo, tão brutal que toda a gente se esqueceu
de mim. Quando uma enfermeira me acordou, eu tinha dormido
quase cinco horas e estava como novo. Desde esse momento até o
meu chefe me mandar novamente para casa, estive mais de vinte e
duas horas a trabalhar, quase sem interrupção.
– Mas são sete da manhã! Vou agora como?
– Com os dois pés, pondo um à frente do outro. Sabes como é,
não sabes? – Fez uma pausa para que eu me risse da piada, antes
de levantar o indicador e de apontar para o teto. – Enquanto aqueles
filhos da puta não distinguirem o dia da noite, nós também não o
podemos fazer. Vai para casa, mete-te na cama, dorme sete horas,
toma um pequeno-almoço como deve ser e volta à tarde. – Dera já
meia-volta quando me encarou novamente. – É uma ordem.
– Muito gostas de dizer isso…
O doutor Quintanilla era um excelente cirurgião e o melhor
professor que tive na faculdade, não só pela qualidade dos seus
conhecimentos, mas também, e sobretudo, pela capacidade de
seduzir os alunos com a sua sabedoria. Escolhi a especialidade só
para fazer o internato na equipa dele e, quando a guerra começou,
ele já tinha tanta autoridade sobre mim que nem sequer teve de se
esforçar para me fazer desistir dos meus objetivos.
– Vais alistar-te? Ah, muito bem! E para quê, para que te matem?
Para que a República ganhe um herói e perca um médico?
Caramba, isso é que é um bom negócio!
– Mas eu ainda estou no internato – tentei argumentar. – Ainda
não sou…
– Diz-me isso daqui a três meses – afirmou com segurança,
como se pudesse prever o futuro. – No internato ou não, é aqui que
fazes falta, Guillermo. Deixa que se alistem aqueles que não podem
salvar vidas, não arrisques a tua, que vale muito mais numa sala de
operações do que na frente, e agora vai à sala de tratamentos.
Chegou uma quantidade de enfermeiras voluntárias que não
pescam nada disto, vê lá o que consegues. – Assenti com a cabeça,
e ele sorriu. – Aviso-te de que algumas são muito jeitosas…
O decurso da guerra dar-lhe-ia razão. Também revelou a
capacidade mais importante do doutor Quintanilla, a de ser um
coordenador extraordinário que não precisava de consultar fosse
que papel fosse para ter presentes as altas e as baixas, os
cirurgiões disponíveis, as salas de operações livres, as ocupadas, e
há quantas horas trabalhava sem descanso cada elemento da sua
equipa. Mais tarde, quando começaram a faltar medicamentos,
instrumentos e até provisões para alimentar os doentes, o talento de
Fortunato Quintanilla manteria em funcionamento o serviço de
cirurgia do San Carlos em condições quase milagrosas. Em
novembro de 1936, quando os fornecimentos ainda não eram um
problema, nenhum dos seus subordinados podia passar mais de
quarenta e oito horas no hospital sem que ele soubesse, procurasse
por eles, os mandasse para casa dormir e acrescentasse sempre no
fim que era uma ordem.
– Para alguma coisa sou o chefe, não me lixem – respondeu-me
com um sorriso quando lho recordei.
E por isso lhe obedeci, fui direito à morgue, tomei o primeiro táxi
que saiu na direção do cemitério do Este e pedi ao motorista que me
deixasse na esquina das ruas Hermosilla e Núñez de Balboa. Dois
dias antes, ao vestir a bata, lembrara-me de ir buscar as chaves de
reserva que guardava numa gaveta da secretária, mas quando
cheguei à entrada do prédio não reconheci o porta-chaves. O
enterro de don Fermín já me parecia tão distante, tão vago, como se
tivesse acontecido noutra vida, mas na caixa do correio encontrei as
chaves que tinha emprestado à Experta.
Ao entrar em casa senti uma presença estranha, como se o ar
tivesse mudado desde que saíra dali. Mal acendi a luz, descobri a
razão. Estava tudo a brilhar, o chão, os móveis, os espelhos. Antes
de ir de férias para Zarauz, a minha avó pediu à empregada que
viesse limpar todos os dias, mas, desde que os bombardeamentos
haviam começado, ela só aparecia de vez em quando. Pensei que
tivesse sido uma dessas vezes, fui para a cama e adormeci mal
fechei os olhos.
Quando voltei a abri-los, o mostrador do relógio assustou-me.
Eram duas e cinco, de modo que me levantei, tomei um duche,
barbeei-me e vesti-me a toda a pressa antes de me lançar escadas
abaixo. Às três em ponto do dia 22 de novembro, vesti uma bata
branca, que iria substituindo por outras limpas, até que, à uma da
tarde do dia 24, o meu chefe voltou a mandar-me para casa.
– Isto já está mais calmo. – Tinha razão, não por os
bombardeamentos terem cessado, mas porque os madrilenos
tinham aprendido a interpretar os alarmes tão bem como nós a gerir
o fluxo de feridos. – Vem à meia-noite. Julgo que na próxima
semana, com um pouco de sorte, já conseguiremos fazer turnos
normais.
Ao cabo de uma semana tudo seria diferente, mas a 24 de
novembro de 1936 cheguei a casa à hora do almoço. Tinha dormido
uma sesta de madrugada e estava bem desperto, mas nem morto
de sono teria deixado de sentir a corrente de ar que me deu as
boas-vindas. Na sala vi uma janela aberta e um cinzeiro com duas
beatas. Antes de ter tempo de verificar que eram da minha marca
preferida, fechou-se uma porta na outra ponta do corredor e percebi
muitas coisas, todas, exceto a euforia espontânea, indomável, que
de repente me avolumou a braguilha. A empregada da minha avó
não fumava e limpava muito menos conscienciosamente do que a
criada do nosso vizinho, mas eu e a minha braguilha sabíamos que
não tinha sido a Experta quem se havia introduzido em minha casa.
Percorri o corredor com passadas fortes para fazer barulho, e ao
passar pela cozinha avistei uma panela no fogão. Pousei a mão em
cima e comprovei que ainda estava quente. Só tinha ouvido o ruído
de uma porta, o que reduzia as minhas opções a duas. Na
despensa não estava ninguém. Ao entrar no quarto da criada, parei
um pouco para pensar e optei pela abordagem frontal.
– Que fazes aqui?
Estava dentro do armário, de pé, com os braços colados ao
corpo, muito quieta. Não consegui ver-lhe os olhos porque, embora
o móvel fosse maior do que ela, a moldura da porta chegava-lhe à
altura do nariz, mas vi como os lábios lhe tremiam antes de se
moverem.
– E tu?
– Como assim? – A reação dela pareceu-me tão absurda que
não tive outro remédio senão rir. – Esta é a minha casa, Amparo,
aqui quem faz as perguntas sou eu.
– Está bem, mas… – Encolheu o corpo como que sacudida por
um calafrio e cruzou as mãos por cima da saia. – Não pensei que
viesses a esta hora.
– Mas cá estou. – Fiz uma pausa que ela não preencheu. – Sai
daí.
– Não posso.
– Não podes como? – Detetei na minha voz, subitamente rouca,
uma excitação de que ela parecia mais consciente do que eu.
– Não posso… – Porque aumentava a cada uma das suas
respostas. – É que tenho vergonha.
– Tens vergonha? Olha, Amparo, ou sais daí agora mesmo ou
tiro-te eu.
– Está bem, mas deixa-me ir à casa de banho, porque… – Os
lábios dela fizeram um beicinho que deu lugar a um ligeiro
choramingar e a mais qualquer coisa. – Porque, com o susto, fiz xixi
pelas pernas abaixo.
– Muito bem. – Não passava de um acidente, de um ato
involuntário, e eu sabia-o de sobra, conhecia o mecanismo que o
provocava, deparava-me diariamente com igual resultado em
pacientes de ambos os sexos e de todas as idades, mas o que
sabia não me explicou o que se estava a passar comigo. – Sai daí e
vai à casa de banho, depois conversamos.
– Está bem, mas antes sai tu… É que estou com muita
vergonha.
– Está bem, já vou. Espero por ti na sala.
Se estivesse em condições de compreendê-la, talvez eu também
sentisse vergonha. Mas a cena do armário, a confissão da Amparo,
a combinação desconcertante de impudor e fragilidade que lhe
palpitava na voz, e aquele choramingar fingido, tão falso como o de
uma criança que um adulto apanha em falta, tinham aumentado a
curva da minha excitação do nível básico, gerível, de uma
travessura, a um patamar em que me era impossível discernir a
minha própria identidade da ereção a que me vi reduzido. O sexo
palpitava-me com muito mais força do que o coração, não deixava
qualquer espaço para o raciocínio, menos ainda para a consciência,
e eu não tinha vontade nenhuma de ir para a sala. Acatei a vontade
dela sem resistência e, sem chegar a dobrar a esquina do corredor,
encostei-me à parede para a ver sair. A casa de banho não ficava
longe da cozinha e ela percorreu aqueles metros com passinhos
curtos, as pernas unidas e a cabeça baixa. Porém, a instantes de
entrar, levantou-a e olhou para mim como se soubesse exatamente
onde me encontrar. Foi um olhar longo, lento e carregado de
sentido. Um olhar manso e curioso, sem vestígios de censura. Um
olhar calculado e calculista, que pressagiava tudo o que aconteceria
mais tarde, embora eu não soubesse, ou não quisesse, dar-me
conta a tempo.
Demorou quase meia hora. Quando finalmente apareceu, já eu
tinha serenado o suficiente para reparar que ela escolhera um
vestido que a favorecia, que se penteara e maquilhara. Eu tinha
preparado o que ia dizer-lhe, mas ela voltou a tomar a iniciativa com
uma proposta desconcertante.
– Estava a preparar-me para almoçar – anunciou, a meio
caminho entre a porta e a poltrona onde me tinha sentado. – Se
quiseres acompanhar-me…
– Bolas, muito obrigado! – Levantei-me. – É a primeira vez que
me convidam para almoçar na minha própria casa.
– Não, queria dizer… – Fechou os olhos e corou. – Aqueci uma
carne guisada que a Experta trouxe.
Noutras circunstâncias, o prato que a Amparo me serviu ter-me-
ia parecido um estufado medíocre, mas, naquele dia, além da
curiosidade, tinha tanta fome que só tratei da primeira depois de
satisfazer a segunda.
– O pão é de hoje. Compraste-o? – Ela negou com a cabeça,
enquanto eu acabava de limpar o prato. – Estou a ver… A Experta,
não é verdade?
– Sim, ela… veio hoje de manhã, antes de abrirem a porta de
entrada.
– Muito bem, então agora que já almoçámos… Posso saber que
diabo fazes em minha casa, Amparo?
Ela improvisou uma careta de tédio genuína, como se tivesse
pensado que, depois de partilhar o seu almoço comigo, se ia livrar
das explicações. Contudo, logo de seguida, esticou-se na cadeira,
apoiou os braços na mesa, olhou para mim e começou a falar num
tom direto, sincero, com uma naturalidade que eu não lhe sentia
desde que a morte do avô voltara a juntar-nos.
– Não tenho para onde ir Guillermo. Fiquei sozinha em Madrid e
não posso viver em casa da Experta, não por ela, que é muito boa e
me ama muito, mas porque… Bom… – Nessa altura parou,
escolhendo as palavras pela primeira vez. – Em Vallecas são todos
de esquerda. Os filhos dela, os irmãos, os vizinhos, e todos me
conhecem. Ali eu chamaria demasiado a atenção e, mais cedo ou
mais tarde… – Fez uma segunda pausa para evitar qualquer
palavra, qualquer verbo que pudesse aborrecer-me. – Não seria
seguro para mim. A Experta foi a primeira a dizê-lo, apesar de
também ela ser vermelha, ou seja, de esquerda, quero dizer…
Podia ter voltado para o apartamento do avô, mas as coisas ali
foram tão más, estava tão só, tinha tanto medo… Cada vez que
ouvia o elevador, pensava que vinham buscar-nos.
– Quem, Amparo?
– Quem? Qualquer pessoa. Aqueles que passam revista às
casas, que prendem gente que não volta a aparecer, não me digas
que não sabes o que se está a passar, Guillermo.
– Claro que sei o que se passa. – Olhei-a com dureza e preparei-
me para ser injusto. – Neste momento, sei que os
bombardeamentos alemães já mataram milhares de pessoas e que
continuam a matá-las diariamente. – Porque ela não se referia a
esse tipo de violência. – Quem não sabe és tu, que não vais à rua
desde 19 de julho.
– Mas a Experta contou-me. – A minha resposta enfureceu-a, e
eu alegrei-me com a sua ferocidade, com a forma como se inclinava
sobre a mesa, com as faíscas que lhe brilhavam nos olhos, porque
precisava de motivos para a expulsar da minha casa. – Quem é que
achas que me proibiu de sair à rua? Nem espreitar pelas janelas do
pátio me deixava. Que o Quintín não a veja, pelo amor de Deus, que
o Quintín não a veja…
– Quintín? – O nome deixou-me perplexo, porque o porteiro do
prédio do número 49 da calle Hermosilla, um velho, sempre fora
amável, pacato, incapaz de fazer mal a fosse a quem fosse. – Mas,
como vos passa pela cabeça…! Coitado do Quintín!
Desconfiarem do porteiro não me magoou tanto pelo que essa
ofensa tinha de injusto, mas por ter sido a Experta a fazê-la. Da
boca da Amparo ter-me-ia parecido natural, porque ela, como todos
os conspiradores que apoiaram o golpe, precisava de o justificar, de
acumular ofensas a qualquer preço, de defender a ação que
desencadeara a tragédia, afirmando que a guerra era
imprescindível, que era uma intervenção sagrada e salvadora, uma
ordem direta de Deus. Reconhecendo os saques, os homicídios, a
vingança criminosa exercida diariamente por gente do seu próprio
bando, do meu, Experta demonstrava mais honra do que eu, mas
essa qualidade, admirável por si, pareceu-me obscura, miserável,
porque estava impregnada de servilismo. Nem numa situação
revolucionária como a que vivíamos, a criada de don Fermín
conseguia livrar-se dos seus amos de toda a vida e renunciava
inclusive a dormir duas, três noites por semana, para vir a pé do seu
bairro alimentar um velho e uma menina inútil que teria sido incapaz
de fazer o mesmo por ela. A mansidão infiltrada na sua bondade,
outra virtude admirável que eu naquele momento não conseguia
admirar, deu-me mais pena do que raiva, porque se situava
exatamente no extremo oposto da vingança, como se nós,
espanhóis, nunca fôssemos capazes de encontrar um ponto justo,
um meio-termo.
– O Quintín já não vive aqui – acabei por dizer, de qualquer
forma. – Há um porteiro novo, chamado Paco, um refugiado que
veio a pé de Córdova com a família, depois de lhe terem matado os
irmãos. Não te conhece, Amparo.
– Está bem, mas é que… – Voltou a reclinar-se na cadeira, a
pousar as mãos no colo, a olhar para mim com olhos de carneiro
mal morto. – É que também não conhecíamos de lado nenhum o
tipo que veio da parte do tio Ernesto. Dizia que era falangista, sim,
mas… – Observou-me pelo canto do olho e a minha expressão não
lhe disse nada. – Não sei, não me caiu no goto. E de cada vez que
ouvia o motor do elevador pensava, pronto. Este já contou a alguém
que conhece um velho que está sozinho em casa com um dinheirão
e vêm roubar-nos. Agora hão de dizer que nos vão tirar daqui, mas
depois levam-nos para um descampado, dão-nos dois tiros e adeus,
passem bem.
– Ou seja, nem nos teus te fias. – Disse-o a sério, porque o
medo dela me pareceu autêntico.
– Enquanto estive sozinha com o avô lá em casa, não. E, se
agora tiver de voltar para lá, também não. Se tiver de voltar agora…
– Os olhos humedeceram-se-lhe só de o pensar. – Morro, Guillermo.
Prefiro ir para a rua e que me aconteça o que tiver de acontecer,
digo-te a sério. Mas confio em ti, mesmo que sejas vermelho, e por
isso pensei… – Fez uma pausa para se recompor e conseguiu
passar num instante do papel de donzela desconsolada para o de
adolescente malandra. – Tu quase nunca estás em casa. Sei porque
passei muitas noites acordada, colada ao óculo da porta, a vigiar as
escadas. Tu só vens dormir. Há dois dias chegaste às sete da
manhã e eu estava acordada, pouco depois levantei-me, fui à
cozinha, tomei o pequeno-almoço, só leite, isso sim, porque não
queria que a casa cheirasse a café, mas tomei o pequeno-almoço,
lavei o copo, voltei para o meu quarto e tu nem deste conta. Ou
deste?
Por essa altura, eu já não sabia quem era a mulher à minha
frente, se era uma ou várias ao mesmo tempo, nem quais eram
falsas, quais autênticas. Aquela ingenuidade repentina parecia-me
incompatível com a astúcia dela, e esta, por sua vez, incompatível
com a soberba que demonstrara aquando do nosso reencontro, uma
altivez imprópria da sua cobardia e mais contraditória ainda com o
método a que eu tivera de recorrer para a acalmar. Contudo, nada
me espantava tanto como a mescla improvável de descaramento e
desamparo que exibira momentos antes, no armário, e que acabava
de inspirar uma gabarolice que eu não estava disposto a deixar
passar.
– O teu quarto? – Ela assentiu com um vislumbre de sorriso. –
Tu não tens nenhum quarto nesta casa, Amparo.
– Eu sei, mas apercebi-me de que agora dormes no quarto da
tua mãe. E instalei-me no teu quarto de criança. Conheço-o porque
brincámos lá muitas vezes. Esta casa é muito grande, Guillermo. Se
tivesses vindo do trabalho a uma hora normal, não me terias
descoberto. Pensava fechar-me todos os dias às escuras, às seis da
tarde, e ficar com a luzinha da cama acesa e as portadas fechadas.
Era o que pensava fazer. Levava uma sandes ou umas bolachas,
não fosse ter fome, não fazia barulho, metia-me na cama, quietinha,
e esperava que tu adormecesses para adormecer também. Teria
aguentado muito tempo assim, tenho a certeza. Se não tivesses
chegado hoje, claro, embora…
Nesse momento, vislumbrou alguma coisa nos meus olhos que a
fez sorrir, mas eu, absorto como estava com a imagem da Amparo
fechada às escuras, todas as tardes, no meu quarto de criança,
nunca cheguei a saber exatamente o quê.
– Ainda podemos fazê-lo, ou não?
Olhou para mim como se soubesse melhor do que eu até que
ponto um plano aparentemente tão inocente me tentava.
– Não.
Neguei com a cabeça para reforçar a minha resposta, mas ela
continuou a sorrir, como se tivesse calculado com muita
antecedência que alguma obscura faculdade do meu cérebro
saberia avaliar a sua oferta, extraindo dela uma conclusão
perturbadora, fascinante.
– E porque não?
– Porque não quero viver contigo, não quero viver com ninguém,
estou muito bem assim. Gosto de viver sozinho e tenho demasiado
trabalho para poder cuidar de ti. – Era isso que tinha pensado dizer-
lhe e declarei-o como um menino que papagueia uma lição, mas tive
de renunciar a olhá-la para o conseguir. – Percebo que não queiras
voltar para casa do teu avô sozinha, mas posso ajudar-te a
encontrar outro sítio. – Nesse ponto, consegui falar como se
acreditasse totalmente no que estava a dizer e voltei a encará-la,
descobrindo-lhe um sorriso quase trocista. – Podemos ir à paróquia
anglicana que fica aqui ao lado. Eles arranjar-te-iam asilo na
embaixada britânica, sei que o fizeram com outras pessoas. Ou
posso oferecer-te um trabalho como enfermeira no meu hospital. Há
um pavilhão com dormitórios para residentes e não há sítio mais
seguro em Madrid. Ninguém te imaginaria a viver ali. E, se não
quiseres trabalhar, poderíamos…
– Seria como um jogo – interrompeu-me ela, continuando a falar
como se eu não tivesse dito nada –, desses de que gostávamos
tanto quando éramos pequenos. Serei um duende, uma fada que
aparece e desaparece num piscar de olhos. Nunca me verás e, se
algum dia me visses…
Deixou o fim daquela frase suspenso no ar e eu quase consegui
ver o fio dourado, transparente, de onde pendia. Pressenti que era
perigoso, que, se cometesse o erro de perguntar, esse fio se iria
multiplicar até tecer uma rede que me tolheria como uma armadilha,
mas não resisti à tentação.
– Se algum dia te visse, o que aconteceria?
– Oh, bom…
Inclinou a cabeça, sorriu e fechou os olhos. Quando voltou a
abri-los, brilhavam mais do que os meus.
– Se algum dia me visses, dava-te uma prenda. O que tu
quisesses, o que me pedisses, qualquer coisa. Como dantes,
lembras-te?
Assenti devagar, olhei para ela ainda mais devagar e rendi-me
muito depressa.
– Mas não quero ver-te, Amparo. – Envolvi essa mentira num
sorriso.
– Claro que não. – Ela sorriu, pagando-me da mesma moeda.
Porque nos lembrávamos ambos de tudo.
Ambos sabíamos que ela sempre fora muito batoteira e que eu
jogava xadrez muito melhor.
É 14 DE DEZEMBRO DE 1936 E NORMAN BETHUNE ESTÁ EM MADRID.
Para este médico e investigador canadiano, nascido no outro
canto do mundo – Gravenhurst, estado de Ontário, Canadá –, em
1890, a capital de Espanha é um objetivo longamente acarinhado.
Não lhe foi fácil chegar aqui. Após semanas de diligências frenéticas
junto do governo do seu país e de campanhas de recolha de fundos
a todos os níveis, desde departamentos governamentais a coletas
populares, para cumprir o seu desejo, o doutor Bethune teve de
cruzar o Atlântico, de atravessar França por estrada numa viagem
de etapas extenuantes, quase sem descanso, e de fazer um
percurso acidentado por uma Espanha dividida em duas. A
satisfação que sente ao sair de um camião diante da porta do
número 36 da calle Príncipe de Vergara compensa-lhe largamente
todos os esforços.
O doutor Bethune chega a Madrid, como tantos outros milhares
de voluntários estrangeiros, para se pôr ao serviço da Junta de
Defesa e do governo da República. No entanto, a sua vontade é
extremamente ambiciosa, a sua colaboração é tão importante que
as autoridades o instalam num apartamento sumptuoso, com quinze
assoalhadas, antiga casa de um diplomata alemão que depois do
golpe de Estado decidiu prolongar indefinidamente as férias. No piso
de cima fica a sede do Socorro Vermelho Internacional, cujos
trabalhadores acolhem de braços abertos esta representação
entusiasta do povo do Canadá.
Em poucas horas, Bethune e os seus colaboradores retiram
móveis, quadros e tapetes, transformando a residência luxuosa num
laboratório com aparelhos desconhecidos na Espanha da época.
Um armário misterioso, que mais não é do que um frigorífico da
marca Electrolux, um autoclave de grandes dimensões e dois
esterilizadores enormes ocupam a maior parte do espaço dos
amplos quartos. Onde antes havia camas, agora há macas, e, nas
paredes, estantes e vitrinas exibem uma coleção exaustiva de
objetos de vidro. Garrafas com tampas a vácuo, frascos com
sangue, sistemas de soro e recipientes partilham as estantes com
seringas, microscópios, conjuntos completos de instrumentos de
cirurgia torácica, hemocitómetros, uma grande provisão de soro e
máscaras de gás. Contudo, o verdadeiro tesouro de Bethune são
quinze mochilas com outros tantos equipamentos portáteis, entre
eles garrafas adicionais, de embalagens de soro fisiológico e de
solução de glicose, juntamente com uma caixa esterilizada com
toalha, uns fórceps, um bisturi, uma seringa e um fio de costura. O
pessoal destinado à manutenção da casa – um cozinheiro, duas
criadas e um homem encarregado da lavandaria – nunca vira nada
assim. Ignoram certamente que mais ninguém vira, em lugar algum
do mundo, o que eles estão a ver em Madrid.
O Instituto Canadiano de Transfusão de Sangue acaba de surgir
e os seus responsáveis não têm tempo a perder. No dia seguinte à
sua chegada, publicam anúncios nos jornais com a mesma
mensagem que se difunde em todas as rádios ao longo de três dias.
Pedem dadores de sangue voluntários para socorrer os soldados na
frente, mas não sabem que resposta terá o seu apelo. Até esse
momento, só são possíveis as transfusões diretas corpo a corpo,
braço a braço. Aquilo a que se propõem implica um avanço
gigantesco deste procedimento, mas o apelo não se faz a partir de
um hospital, pelo que o resultado os inquieta.
A 18 de dezembro, os nervos quase não deixam Norman
Bethune conciliar o sono. A 19, sábado, dia marcado para o início
das doações, levanta-se muito cedo e abre a cortina para, da
varanda, contemplar a rua. Só dali a algumas horas o Instituto abrirá
as portas e a fila de voluntários já dá a volta à esquina. A resposta
dos madrilenos aumenta e reforça a fé deste canadiano, que
começa a sentir-se em casa, embora não perceba uma palavra da
língua falada pelos pacientes que lhe enchem o consultório. O seu
apelo atrai um grupo heterogéneo de civis e de militares de todas as
idades, profissões e condição, embora haja sempre mais mulheres
do que homens a ocupar as macas.
Depois de confirmar que estão em jejum, requisito imprescindível
no qual a publicidade insistiu irritantemente, os voluntários dispõem-
se a doar meio litro de sangue à causa da República. A sua oferta
preciosa flui para uma garrafa a que foi acrescentada uma pequena
quantidade de citrato de sódio e que é identificada, depois de cheia,
com uma etiqueta onde consta o tipo de sangue, a data da recolha e
a identidade do dador. Cada um deles recebe, além do convite para
um gole na garrafa de brandy preparada para a ocasião, um vale
para comprar comida. Mais tarde, à medida que o cerco endurece
as condições de vida na cidade sitiada, será entregue uma lata de
carne de vaca por cada doação.
O Instituto Canadiano de Sangue atrai tamanha quantidade de
madrilenos que, em pouco mais de três dias, as garrafas saturam a
capacidade do maior frigorífico que existe no mercado, continuando
os dadores a fazer fila todas as manhãs, no passeio dos números
pares da calle Príncipe de Vergara. «Não temos a certeza de por
quanto tempo se conservará no frigorífico e em bom estado o
sangue com citrato, mas esperamos que dure várias semanas»,
escreve Normam Bethune no seu primeiro relatório a Benjamin
Spence, presidente do Comité de Ajuda à Democracia Espanhola
em Toronto e, antes do mais, seu amigo, além de protetor e
patrocinador da missão.
A 23 de dezembro de 1936, chega a hora da verdade. De
manhã, muito cedo, a equipa de Bethune enche as garrafas dos
equipamentos portáteis com sangue de todos os grupos, carrega as
mochilas no camião e dirige-se para o Hospital de Sangre de la
Casa de Campo. Ali, na própria linha da frente, o investigador
canadiano examina os corpos dos soldados desenganados que
agonizam no chão. Procura um candidato ideal e tem muito por
onde escolher, mas decide-se imediatamente por um rapaz que, até
esse momento, estava condenado a morrer por choque
hipovolémico, uma perda massiva de sangue.
O médico espanhol que o está a tratar dá-o por perdido, como a
tantos outros que chegaram antes nas mesmas condições. Com o
pulso fraco, tem a pele pálida, húmida e fria, tensa sobre as faces
fundas de um cadáver, sem vestígios de cor nos lábios. No entanto,
o intérprete do recém-chegado aproxima-se do diretor do hospital
para lhe explicar que aquele senhor calvo que não fala castelhano
lhe quer pedir autorização para tentar ressuscitar o ferido. O
espanhol franze os lábios numa expressão cética. Nunca na vida
ouviu semelhante disparate, mas autoriza a intervenção porque tem
a certeza de que, de qualquer maneira, o soldado vai morrer. No
entanto, e por via das dúvidas, fica a assistir.
Bethune pica o soldado num dedo e recolhe a amostra com uma
pipeta de vidro. Dois minutos depois, identificado o grupo
sanguíneo, injeta-lhe uma agulha para fazer a transfusão da
primeira garrafa de sangue. Nesse instante, acontece o impossível.
O cadáver move-se, o morto abre os olhos, mas ainda não é
suficiente. Perdeu tanto sangue que o canadiano faz a transfusão de
uma segunda garrafa. Antes de tudo terminar, o paciente olha para
ele e sorri.
Norman Bethune conseguiu. Pela primeira vez na história, uma
transfusão de sangue conservado em frigorífico devolve a vida a um
paciente sem esperança de salvamento. A partir de então já não é
necessário que o dador esteja junto do recetor, ligado a ele por duas
agulhas e uma borracha. Esta nova técnica torna as transfusões
muito mais fáceis, mais cómodas, mais práticas e mais eficazes.
A descoberta de Bethune salva milhares de soldados do Exército
Popular da República durante a Guerra Civil Espanhola. Mais tarde,
serão incontáveis os milhões de beneficiários desta invenção que
um investigador comunista, internacionalista e canadiano quis
oferecer à capital do NO PASARÁN, aos homens que nela resistem
e que, por ela, continuarão a resistir durante quase três anos. Só no
Hospital de Sangre de la Casa de Campo, só naquela manhã, a sua
intervenção faz reviver doze soldados.
Não se conhece o nome do primeiro sobrevivente. Porém, sabe-
se que, para comemorar o seu regresso à vida, os companheiros lhe
põem, antes de mais, um cigarro aceso na boca. O soldado chupa
com ânsia enquanto, em volta, uma vaga inesperada de alegria, de
esperança, inunda o recinto tristíssimo do hospital de campanha.
Aqueles que assistiram explodem em vivas ao Canadá, em vivas
àquele médico de apelido impronunciável, em vivas à República, à
luta da classe operária e à solidariedade internacional. Então, o
ressuscitado oferece o seu próprio contributo para a festa,
reivindicando a sua participação imprescindível num acontecimento
histórico.
– Viva eu! – exclama.
Norman Bethune não percebe o que ele disse, mas aquelas
palavras fazem dele o homem mais feliz do mundo.
MADRID, 5 DE JANEIRO DE 1937
1
Institución Libre de Enseñanza. (N. da T.)
2
No dia 14 de abril de 1931, proclamou-se a Segunda República Espanhola.
(N. da T.)
É 6 DE JANEIRO DE 1937 E CLARA STAUFFER ESTÁ EM SALAMANCA.
Hoje, a Secção Feminina da Falange Espanhola realiza o seu
primeiro Congresso Nacional. Mais do que um batizado, é um baile
de debutantes.
O ramo feminino da Falange é fundado em junho de 1934 com
objetivos muito modestos, mais assistenciais do que políticos. Antes
da guerra, as militantes dedicam-se apenas a visitar os presos do
Partido e a acompanhar as respetivas famílias, de acordo com o
princípio orientador do pensamento da sua criadora, Pilar Primo de
Rivera, que repetirá durante toda a vida que a função da mulher é
servir. No entanto, o conflito armado atribui à Secção Feminina uma
relevância que justifica um Congresso, ao qual acorrem delegadas
de todas as províncias situadas na zona franquista. A única exceção
é a direção madrilena, presidida pela própria Pilar, primeira, última e
única Chefe Nacional. À sua direita, Marichu de la Mora
desempenha o cargo de Secretária Nacional. No degrau
imediatamente inferior, Clara Stauffer, Delegada de Imprensa e
Propaganda, ocupa o terceiro lugar na cúpula da organização.
Nenhuma das três é uma mulher comum. Pilar é a filha mais
nova do general Miguel Primo de Rivera, que exerceu uma ditadura
militar entre 1923 e 1930, e a irmã preferida do Grande Ausente,
José Antonio, fundador da Falange, elevado à categoria de mártir da
Cruzada depois de fuzilado na prisão de Alicante, a 20 de novembro
de 1936. Marichu, a única casada das três, é neta de don Antonio
Maura, um notável da direita espanhola, presidente de cinco
governos do Partido Conservador entre 1903 e 1922. Em
comparação com a estirpe aristocrática das duas companheiras, as
origens burguesas de Clara são pouco ilustres, mas irão adquirir
uma importância decisiva para o apogeu do partido e, sobretudo,
para os interesses do exército franquista.
Clara, ou Clarita, como toda a gente continua a chamar-lhe
embora esteja quase com trinta e três anos, é filha de Konrad
Stauffer e de Julia Loewe. O pai é um conceituado mestre cervejeiro
de Nuremberga, que a família Mahou contratou, no fim do século
XIX, para dirigir a moderna fábrica de cervejas que funciona na calle
Amaniel desde 1891. A mãe, madrilena, que conservará sempre a
nacionalidade dos pais, é de uma das grandes famílias que
sustentam o poder económico alemão em Espanha. Clarita, como
Julia uns anos antes, nasceu em Madrid em 1904, mas estudou na
Alemanha e, no dia de Reis de 1937, ainda só tem nacionalidade
alemã.
A condição de estrangeira não representa um obstáculo para a
sua brilhante carreira no meio reduzidíssimo do desporto feminino
espanhol da época, onde sobressai tanto na prática da natação
como na do esqui. Também não lhe prejudica a carreira política.
Embora pareça paradoxal, o seu não é o único apelido estrangeiro,
longe disso – vemos Marjorie Munden, Carmen Werner, Josefina
Veglison –, entre as camisas velhas, militantes femininas de primeira
hora na ultranacionalista Falange Espanhola. A sua nacionalidade,
pelo contrário, depressa faz dela uma peça-chave nas relações
entre o governo de Burgos e o Terceiro Reich. Clara, franquista em
Espanha, nazi na Alemanha, tem vistas largas e percebe o que vê.
Inteligente, capaz, extremamente enérgica e muito simpática, a 6 de
janeiro de 1937 dá um passo atrás para ganhar influência de futuro.
Sem contar com a imperecível Pilar, Marichu de la Mora parece,
à primeira vista, a grande vencedora do I Congresso Nacional da
Secção Feminina. Stauffer relega-se para o lugar de Auxiliar Central
de Imprensa e Propaganda, deixando a Marichu o cargo de
Delegada Nacional, naquilo que pode ser interpretado como um ato
propagandístico. De la Mora parece ter sido a única namorada
conhecida de José Antonio, embora não existam indícios que
comprovem tal relação, exceto o testemunho da dirigente falangista.
De qualquer forma, depressa se torna evidente que a propaganda
da organização continua a estar nas mãos de Clara Stauffer. É ela a
autora de todos os textos não assinados e a editora de todos os
textos assinados do livro oficial da Secção Feminina que se publica
pela primeira vez, sem ficha técnica – Madrid ainda se encontra
dolorosamente nas mãos dos vermelhos –, em 1938, e que será
reeditado amiúde no início dos anos quarenta. Mais a mais, desde
janeiro de 1937, colabora no jornal diário El Adelanto de Salamanca,
enquanto porta-voz das falangistas. Porém, como já se sabe que as
mulheres são capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo,
pouco depois o seu trabalho ultrapassa as fronteiras do país natal
para se focar na pátria do pai.
Clara Stauffer viaja frequentemente à Alemanha, onde se chama
Klara, para trabalhar como guia-intérprete de diversos enviados da
Falange e do governo franquista até ao fim da Guerra Civil e mesmo
depois. A criadora do Auxílio Social, Mercedes Sanz Bachiller, e a
sua colaboradora mais próxima, a aristocrata e romancista Carmen
de Icaza, viajam várias vezes sob a sua tutela, quase sempre para
Hamburgo, a fim de conhecer os programas assistenciais do Partido
Nazi e, mais especificamente, o Auxílio de Inverno – Winterhilfe –,
que adotam como modelo para a sua própria organização. No
entanto, ainda antes, Clara intervinha já também noutro tipo de
missões, em embaixadas mais discretas ou declaradamente
secretas, nas quais representantes do exército franquista
negociavam a ajuda militar que o Terceiro Reich lhes forneceria e a
sua contrapartida em volfrâmio e outras matérias-primas.
Enquanto isso, a sua imagem populariza-se muito entre os
membros da abundante colónia nazi que se move em redor do
governo de Burgos. Veem Klara Stauffer como um deles, nem mais
nem menos correligionária do que Pilar ou Marichu. Assim, na
primavera de 1939, quando volta a instalar-se em Madrid, continua a
exercer sem contratempos uma dupla militância, franquista em
Espanha, nazi na Alemanha, que lhe permite facilitar o contacto da
embaixada de Berlim com o novo governo. A sua casa, no número
14 da calle Galileo, depressa se transforma num ponto de encontro
harmonioso e imprescindível para os seguidores de Hitler e os
seguidores de Franco, a quem se sente unida por laços indistintos,
equitativamente fraternais.
Entre os seus convidados mais assíduos conta-se Johannes
Bernhardt, já então um empresário brilhante e omnipotente,
presidente da Hispano-Marroquí de Transportes (HISMA), empresa
fantasma que o Terceiro Reich utilizou como fachada para canalizar
a ajuda económica e de armamento prestada ao bando de Franco
durante a Guerra Civil. Bernhardt, longe de interromper a sua
atividade após a vitória franquista, fundará, em dezembro de 1939, a
Sociedade Financeira Industrial (SOFINDUS), um consórcio
gigantesco de empresas alemãs que chega a monopolizar o
comércio externo espanhol, encarregando-se também de canalizar
ajuda na direção contrária, com matérias-primas de Espanha para o
exército alemão desde o início da Segunda Guerra Mundial.
Se a vitória de Franco torna Clara Stauffer e Johannes Bernhardt
grandes amigos, a derrota de Hitler irá estreitar definitivamente
esses vínculos de irmandade e de camaradagem, sobretudo a partir
do verão de 1945, quando a primeira Delegada Nacional de
Imprensa e Propaganda da Secção Feminina decide, finalmente,
renunciar à nacionalidade dos pais, solicitando a nacionalidade do
país onde nasceu e viveu desde a adolescência.
Mas a cor do seu passaporte não altera as coisas.
Clara Stauffer permanecerá falangista e nazi, espanhola e
alemã, até ao dia da sua morte.
VALÊNCIA, 29 DE MAIO DE 1937
3
Pinche pendejo: grande imbecil (parvo, palerma). A palavra pinche tem
inúmeras aceções que dependem da utilização. Pode ser usada como
aumentativo do substantivo ou adjetivo que precede, ou individualmente, com
o significado de maldito, péssimo, miserável, insignificante… (N. da T.)
4
Chamaca: miúda. (N. da T.)
5
Ni modo: Não há nada a fazer. (N. da T.)
6
Órale: vamos lá. Outro vocábulo mexicano com inúmeros significados.
Dependendo do contexto, órale pode ser uma expressão de estímulo, de
concordância, de alegria. (N. da T.)
7
A poco? / a poco no?: não me digas; a sério. (N. da T.)
8
Cuate: amigo. (N. da T.)
9
Hijo de la chingada!: Grande filho da mãe. Vocábulo com inúmeras
utilizações, chingado/a é sempre utilizado para adjetivar de uma forma
violenta e negativa qualquer expressão. (N. da T.)
10
Pinche gachupín: espanhol de um raio. Gachupín, como galego, é usado
no México para designar os espanhóis. (N. da T.)
PORTUGALETE, 18 DE JULHO DE 1937
11
A sombra é um exercício praticado no boxe em que o pugilista treina golpes
e movimentos com um inimigo imaginário. (N. do E.)
MADRID, 19 DE NOVEMBRO DE 1937
Processos infecciosos
ANTUÉRPIA, 20 DE SETEMBRO DE 1941
12
Pebetas: raparigas. (N. da T.)
13
Pelotudo: tonto, estúpido. (N. da T.)
PALÁCIO DE POKROVSKAYA, FRENTE DE LENINEGRADO, NOITE DE NATAL DE
1942
14
¿Viste?: Sabes? Percebes? Bengala linguística usada na Argentina. (N. da
T.)
15
Mina: miúda, rapariga. (N. da T.)
16
Plata: dinheiro ou riqueza na América do Sul. (N. do E.)
17
Pibe: rapaz. (N. da T.)
18
Boludo: estúpido, tonto. (N. da T.)
19
Referência a uma canção natalícia espanhola. (N. da T.)
20
Nome pelo qual são denominados os espanhóis, independentemente da
sua origem, na Argentina e em muitos outros países da América Latina. (N. da
T.)
21
Forma de tratamento informal entre amigos. (N. da T.)
É 2 DE FEVEREIRO DE 1943 E JOSEF HANS LAZAR ESTÁ EM MADRID.
O assessor de imprensa da embaixada do Terceiro Reich em
Espanha sabe tudo. Sabe que, a 30 de janeiro, promovendo
Friedrich Paulus à patente mais elevada da escala de comando do
exército alemão, o Führer lhe recorda que nenhum marechal de
campo do seu país alguma vez se rendeu. Que essa nomeação
significa que Hitler espera que ele se suicide antes de se deixar
capturar. Que o marechal de campo Paulus acaba de se render em
Estalinegrado, entregando à União Soviética o que resta do VI
Exército depois de ter perdido cerca de duzentos mil homens, dos
quais quase dois terços morreram.
Lazar sabe sempre tudo e sabe que o mais provável é que em
Estalinegrado se tenha perdido a guerra, ainda assim a única coisa
que o preocupa hoje é conseguir que os espanhóis não o saibam.
Fá-lo admiravelmente, como de costume. Na capa do ABC de 3 de
fevereiro, aparece uma fotografia dramática a preto e branco das
ruínas da cidade soviética e, em caixa, sob o nome Estalinegrado,
um breve texto que equipara a resistência dos últimos soldados
alemães à façanha do desfiladeiro das Termópilas e, evidentemente,
à glória pátria do Alcácer de Toledo. Em lado algum surgem
palavras como rendição ou capitulação e muito menos o nome de
Paulus. A 4 de fevereiro, o ABC mente airosamente aos seus
leitores nas páginas interiores, garantindo que o VI Exército se
recompõe a grande velocidade após o revés de Estalinegrado. E, no
dia 5 de fevereiro, surge com três fotografias que ilustram o que um
título qualifica como campanha submarina triunfal das armadas do
Eixo no Atlântico. A imprensa espanhola comportou-se mais uma
vez como um coro de crianças inocentes sob a direção de Hans
Lazar.
Os diplomatas aliados, que nunca conseguem contrabalançar o
descarado tratamento de favoritismo que o Eixo recebe em Espanha
– teoricamente um país neutro –, propagam, após o fim da
contenda, que tudo não passou de uma operação de compra e
venda, mas isto é só parte da verdade. É verdade que Lazar, o
único diplomata alemão em Madrid que se mantém inalterável no
posto, agindo com idêntica eficácia sob as ordens de três
embaixadores sucessivos, sabe gratificar com generosidade os
jornalistas mais influentes de todas as redações. Porém, o facto de
os meios de comunicação que ele comprou não se terem vendido
mais tarde ao melhor licitador, quando uma volumosa lista de
generais franquistas já cobrava gratificações em libras esterlinas, é
mérito exclusivo de um homem fora do vulgar.
Josef Hans Lazar nasceu em 1895, em Istambul, filho de um
diplomata colocado na embaixada austríaca do Império Turco e de
uma albanesa, de origem, pelo menos em parte, judia. Hans mudou-
se para a Áustria na adolescência para completar os estudos,
bruscamente interrompidos em 1914 pela eclosão da Primeira
Guerra Mundial. As feridas graves sofridas em combate nas fileiras
do exército imperial austro-húngaro provocam-lhe dores crónicas e
dependência de morfina. Reintegrado na vida civil, em 1927, aceita
o cargo de correspondente da Deutsches Nachrichtenbüro, a
agência oficial alemã de notícias, em Bucareste. Ali conhece uma
jovem aristocrata romena, a baronesa Elena Petrino Borkowska,
com quem se casa em 1937. Em 1938, muda-se com ela para
Berlim e torna-se assessor de imprensa da embaixada da Áustria
perante Hitler. O governo do seu país escolhe-o para o cargo graças
à simpatia pública que nutre pelo nazismo, esperando que os seus
contactos lhe permitam trabalhar eficazmente na preservação da
independência austríaca, todavia, mal chega à capital alemã, Herr
Lazar dedica-se a fazer exatamente o contrário.
Baixo, rechonchudo e com uma pele muito escura, o novo
diplomata está filiado há anos no partido de Hitler, apesar de a sua
genealogia infringir todas as leis raciais. As origens nunca lhe trarão
qualquer problema. O Terceiro Reich contrai com ele uma dívida
impagável enquanto trabalha sob as ordens de Goebbels no
gabinete da embaixada austríaca, na qualidade de um apaixonado
propagandista da Anschluss, a anexação do seu país pelo Reich
alemão. Quando o processo se consuma, ele próprio comunica em
Viena aos correspondentes estrangeiros que o país dos seus
antepassados é agora mais uma região da Alemanha de Hitler.
Depois do sucesso obtido nesta missão, o Führer decide enviá-lo
para Espanha, onde ele viverá o resto da vida.
Em junho de 1938, Hans Lazar apresenta-se ao governo de
Burgos como correspondente da agência noticiosa Transocean,
fundada poucos anos antes para propagar os ideais da nova
Alemanha em Espanha e na América Latina. Após a vitória de
Franco, ocupa o cargo de assessor de imprensa da embaixada,
onde, a avaliar pelos comentários que circulam pela cidade,
depressa granjeia mais poder do que o próprio embaixador, o
estilizado, bem-parecido, altíssimo e totalmente ariano Eberhard von
Stohrer.
Apesar do evidente aspeto de judeu de leste e do tom aciganado
da sua pele, Hans Lazar transforma-se numa estrela fulgurante da
vida social de Madrid no pós-guerra. Cosmopolita, poliglota,
cultíssimo, sempre vestido com uma elegância extrema e com um
monóculo de ouro no olho direito, sobressai em qualquer salão
graças aos modos imperiais e à cortesia refinada. É um homem
extremamente astuto e tão inteligente que compreende a essência
do regime melhor do que qualquer outro diplomata de qualquer
nacionalidade. Além disso, Hans Lazar – Bam para os amigos – é
muito simpático, engenhoso, divertido. E a mulher, a baronesa
Petrino – Lenta, na intimidade –, uma grande cozinheira com
enorme sucesso nos jantares seletos que o assessor alemão
oferece em casa frequentemente. Aí, alguns jornalistas, escolhidos
entre os obscuros redatores madrilenos que dificilmente sobrevivem
com os seus salários, além de desfrutarem da requintada cozinha
de Frau Lazar enquanto bebem os melhores vinhos, têm a
oportunidade de conviver, de igual para igual, com grandes
personagens do governo franquista e outros diplomatas nazis,
convidados habituais, em cuja companhia se sentem superiores,
escolhidos para roçarem os dedos no verdadeiro poder.
Assim, as habilidades sociais dos Lazar compram mais
vontades, e mais lealdade, do que os envelopes que Hans distribui,
permitindo-lhe concretizar verdadeiras proezas, como infiltrar-se na
recém-criada agência EFE para difundir a opinião de Berlim na
América Latina ou apoiar-se noutras organizações espanholas sem
que ninguém consiga provar que a embaixada, e muito menos o seu
governo, está por detrás de tais operações. Enquanto vai criando a
opinião pública mais favorável ao Eixo entre os países neutrais,
Lazar trabalha também em benefício próprio. A miséria dos
espanhóis nos anos mais duros do pós-guerra oferece-lhe
oportunidades únicas para reunir uma grande coleção de obras de
arte.
Hans Lazar é a peça-chave e insubstituível da embaixada do
Terceiro Reich em Madrid durante a guerra e mesmo depois. Porque
possivelmente o serviço mais valioso, o mais importante que prestou
na sua vida à Alemanha nazi, se consuma a 5 de junho de 1945.
Nesse dia, quase um mês depois da capitulação de Berlim, os
representantes aliados conseguem finalmente entrar na sede da
embaixada alemã depois de ultrapassados os inúmeros obstáculos
burocráticos com que as autoridades franquistas adiaram o mais
possível esse momento, e o que encontram é um edifício que
parece ter sido saqueado. Não resta nada. Nem documentos, nem
registos de qualquer espécie, nem dinheiro, nem ouro, nem
antiguidades, nem as obras de arte que decoravam as salas dias
antes. Os cofres estão vazios, as paredes nuas, e nem sequer os
móveis sobreviveram à derrota.
A única coisa que os aliados ali encontram é um senhor muito
moreno, envolto num roupão de seda, que avança no corredor.
Quando lhe perguntam quem é e o que faz ali, Hans Lazar sorri,
identifica-se e esclarece que não faz nada de especial, uma vez que
a sua residência privada fica no próprio edifício.
E aquele sorriso é a única coisa que os aliados obtêm da
embaixada alemã em Madrid.
MADRID, 16 DE JULHO DE 1943
Tumores infiltrados
É DEZEMBRO DE 1949 E SAI EM PARIS O NÚMERO 50 DA REVISTA LES TEMPS
MODERNES.
Fundada em 1945 por Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e
Maurice Merleau-Ponty, esta publicação toma o nome do filme de
Charles Chaplin – Modern Times –, que em 1936 mostra ao mundo
os efeitos da crise de 1929 sobre o grau de exploração dos
operários norte-americanos. Além da declaração de princípios
implícita no título, Les Temps Modernes é um projeto de conteúdo
político, literário e filosófico, impregnado do espírito da resistência à
ocupação nazi que os fundadores militaram. As suas páginas são o
lugar ideal para a pré-publicação de um livro intitulado La fin de
l’espoir. Numa nota que acompanha o texto, os leitores de Les
Temps Modernes descobrem qual é a esperança que está a chegar
ao fim.
E nunca me arrependi.
A história que ouvi metia medo, mas também era excitante, era a
coisa mais emocionante que me acontecia em sete anos, anos
longos como quinquénios, a pequena eternidade que havia
decorrido desde que abandonei o meu cargo no San Carlos. A
clandestinidade não me assustava. Embora não tivesse um cartão
de militante, nem outras armas senão os velhos instrumentos
médicos que passearam por meia Madrid numa pasta de escritório,
vivia como um militante clandestino desde a primavera de 1941. A
minha contribuição prática para a resistência tinha sido muito mais
relevante do que os meus contributos teóricos para a constituição da
UNE e, no entanto, nessa noite, enquanto dava voltas na cama
como um adolescente deslumbrado com o primeiro encontro,
compreendi que as reuniões em Ciudad Lineal poderiam ser mais
importantes do que tinha julgado.
– Como pensas chegar à Stauffer? – perguntei-lhe durante o
pequeno-almoço do dia seguinte. – Tens algum contacto com ela?
– Nenhum – confessou-me. – Agora o que mais me preocupa é
escolher uma identidade. Pensei que seria mais fácil, mas a Meg
está bastante desanimada, embora ainda não tenha terminado de
compilar informações. Quando decidir quem serei, teremos de
encontrar alguém que me apresente à Clarita, mas vá-se lá saber…
Isso também pode acabar por ser um problema.
– Talvez não. – Sorri. – Se calhar, posso tratar disso.
Manolo ergueu as sobrancelhas, olhando para mim com os olhos
muitos abertos.
– Tu conhece-la?
– Não, mas conheço uma mulher que a odeia.
Depois de estudarmos o calendário, escolhemos o dia 18,
quarta-feira, suficientemente próximo da noite de Natal para que em
casa dos ricos tivesse aumentado o tráfego de moços de recados e
visitantes, e suficientemente distante para que aqueles que
passavam o Natal nas suas regiões de origem estivessem ainda em
Madrid. Antes de sair do escritório, preenchi uma guia de remessa
com os dados de um envio fictício, sem especificar o conteúdo, e
meti-o num envelope juntamente com um dos meus cartões de
visita. Trabalhar na transportadora dava-me muita liberdade de
movimentos. Ninguém se admirava que eu saísse do escritório nas
horas de expediente, porque precisava muitas vezes de visitar
clientes ou supervisionar a carga ou a descarga de algum camião.
Tentava não abusar do privilégio e costumava atender os meus
pacientes durante o almoço, nas três horas que o meu horário
deixava livres. Essa não foi uma exceção.
Um empregado carregado com um grande cabaz de Natal, três
andares cobertos por celofane sob uma fita que não escondia os
dois presuntos pata negra, antecipou-se-me uns instantes ao
perguntar ao porteiro pelo apartamento dos senhores Maroto.
Quando lhe disse que ia para o mesmo sítio, observou-me durante
alguns segundos e apontou para o elevador principal. Chegado ao
terceiro, esperei um pouco, para dar tempo a que as criadas
aceitassem o cabaz, antes de tocar à campainha. Uma empregada
fardada, com as faces tão coradas como uma atleta acabada de
cortar a meta, abriu-me a porta.
– Ah! Espere um momento, já o trago… – Tinha começado a
correr na direção do corredor quando consegui reagir.
– Mas o que me vai trazer?
– A gorjeta de Natal. – A rapariga olhou finalmente para a minha
cara. – O senhor não é…? – E tapou a sua com o avental antes de
voltar para trás. – Ai, desculpe-me, confundi-o com o carteiro. É que
estamos tão atarefadas…
– Margarita! – Ouvi os saltos da dona da casa antes de lhe ouvir
a voz. – Quem é…?
María Eugenia León emudeceu de espanto ao ver-me à porta da
sua casa. Haviam passado mais de dois anos desde que nos
despedíramos pela última vez e eu não tinha a certeza de que ela
ficasse satisfeita por me ver, mas também não encontrei explicação
para a expressão de terror que se apoderou da cara dela enquanto
caminhava na minha direção, tão devagar como se cada perna
pesasse mais do que conseguia suportar.
– Rafa, que surpresa… – Estava muito elegante, perfumada,
arranjada para sair. – Feliz Natal. – Voltou-se para a criada e
apercebi-me de que lhe custava comportar-se com naturalidade,
impor-se ao tremor da sua voz. – Volta para a cozinha, Margarita, eu
atendo. É um velho amigo.
A corredora desapareceu num instante, e Geni voltou a cabeça
para se certificar disso antes de me dar um abraço protocolar,
distraído.
– Entra, por favor – acrescentou em voz alta e só depois de
fechar a porta continuou a falar num murmúrio. – O que aconteceu
ao Sito?
– Nada. – Permiti-me o alívio de sorrir por ter deslindado o
mistério, mas tive a precaução de me explicar num murmúrio tão
silencioso como o que ela escolhera. – Bom, nada pior do que
continuar na prisão de Ocaña à espera de um conselho de guerra.
Mas já sabias disso, calculo. Detiveram-no em Barcelona, quando
se preparava para passar a fronteira pela serra.
– Sim, já sabia disso, claro, mas é que, ao ver-te, pensei… – Fez
uma pausa, desatou a rir, abraçou-me outra vez, desta vez a sério, e
beijou-me nas faces. – Bom, agora sim, estou contente por te ver.
Numa noite de fevereiro de 1944, apenas duas horas depois de
nos conhecermos, saímos ambos da casa de Monzón em último
lugar. A inexplicável desconhecida que María Eugenia León era
então para mim estendeu-me a mão no gradeamento do jardim e
dirigiu-se para um carro estacionado em frente, mas deu a volta a
meio do caminho.
– Está uma noite péssima – comentou, e era verdade porque a
neve rala que caía parecia querer transformar-se de um momento
para o outro num bom nevão. – Para onde vais?
– Para o centro – respondi, consciente de que teria de andar um
bom bocado até à paragem do elétrico. – Para a calle Bilbau.
– Ah, somos vizinhos… – Abriu a porta do lado do condutor e
chamou-me com a mão. – Eu vivo na calle Almagro. Anda, eu levo-
te.
Não reagi imediatamente. O seu desembaraço não me
surpreendeu porque nos tínhamos conhecido numa reunião onde a
norma era tratar toda a gente por tu, porém, depois de me levar à
primeira, Pepe avisara-me para que tivesse cuidado. Aqui hás de
conhecer muita gente, disse-me textualmente, ainda assim, mesmo
que conspirem connosco, nem todos são de esquerda, ou até
republicanos, pelo que convém evitar familiaridades porque nunca
se sabe… De todas as pessoas que conheci em Ciudad Lineal,
ninguém encaixava melhor do que Geni nesse aviso, mas aceitei a
oferta dela pelo motivo insignificante de não ver nenhum motorista
dentro do carro.
– Uma mulher a conduzir – comentei, sentando-me ao seu lado.
– Há anos que não via uma.
– Não me surpreende. – Conduzia com uma grande destreza, os
olhos fixos no espelho da esquerda, sem parar de falar. – Eu deixei
de usar o carro porque estou farta de que olhem para mim como
para um macaco amestrado. Quando os miúdos começaram a gritar
comigo e a rir-se nas esquinas, deixei de conduzir, mas para vir
aqui… Pedi-lo ao motorista do meu marido não era viável.
– Imagino.
– Bom… Posso perguntar-te uma coisa? – Não esperou pela
resposta. – É que, ao ver-te, pensei… Tu não tens a pinta dos
outros que estavam lá dentro, sabes? E dei-me conta de que és
muito amigo do rapaz do dente torto, mas… – Parou por momentos
para escolher as palavras. – Não quero ofender ninguém, mas
naquela casa tinham todos pinta de operários ou de pequenos
funcionários públicos e o que quero dizer é que… Se calhar soa-te
mal na mesma, mas a verdade é que pareces um tipo de boas
famílias…
– Olha quem fala.
Aquele comentário fê-la rir-se com tanta vontade que o seu riso
me aproximou dela, como me tinha aproximado do dono da casa de
onde havíamos acabado de sair no dia em que a conheci.
– Pois, mas é que eu sou amiga do Sito há muitos anos. As
nossas famílias conhecem-se desde sempre, em miúdos
brincávamos juntos todas as tardes, no parque. Ele gosta de dizer
que foi o meu primeiro namorado…
Voltou-se para mim e calculei que fosse retificar o que tinha
acabado de dizer. Depressa aprenderia que essa era a forma
natural de se expressar, avançando dois passos e retrocedendo um,
sem nunca perder o fio à meada.
– Vejamos, eu devia ter doze anos e ele onze, ou por aí. Naquela
época, era muito mais espevitado do que eu, embora, com o tempo,
eu tenha melhorado bastante, essa é a verdade… Depois
frequentámos durante uns tempos o mesmo grupo, em Pamplona,
até que me calhou casar-me, e ele decidiu tornar-se comunista.
Nessa altura, deixámos de nos ver, mas continuámos a gostar muito
um do outro. Quando ele me convidou para vir aqui, não pensei
duas vezes, embora não perceba muito bem qual o meu papel em
tudo isto… Também és comunista?
– Não. – Sorri ao lembrar-me da Experta. – Mas sou, de facto,
um menino de boas famílias.
Na primeira noite, despedimo-nos à porta da casa dela. Na
segunda, ela convidou-me para subir e tomar um copo. Antes de
abrir a porta, pediu-me que não fizesse barulho para não acordar os
filhos e levou-me por um andar enorme, através de três grandes
salas que comunicavam entre si, até outra mais pequena, situada
perto do seu quarto.
– Vou ver como estão as crianças – disse-me, antes de apontar
para uma cómoda de madeira com embutidos, cujo aspeto não
denunciava o conteúdo. – Serve-te do que quiseres, já venho.
Quando regressou com o gelo, a única coisa que não tinha
encontrado naquele bar camuflado, atrevi-me a fazer-lhe a pergunta
por que ela esperava.
– E o teu marido?
– Em Paris.
Voltou-se, observando-me, enquanto se servia de uma bebida, e
reparei num fundo de amargura a pairar sobre o seu perpétuo
sorriso irónico, de mulher mundana, que até então havia
interpretado como um traço de personalidade.
– O meu marido está sempre em Paris.
Foi assim que ela me permitiu descobrir que aquela expressão
radiante era menos e muito mais do que parecia, a máscara
perfeita, muito bem maquilhada, atrás da qual a María Eugenia León
se escondia do mundo.
Estivemos juntos até às quatro e meia da manhã. Contou-me
que vinha de uma família de vinhateiros de La Rioja que sempre
repartira o seu tempo entre um andar em Pamplona e uma grande
propriedade rodeada de vinhedos, em Haro. Eu falei-lhe do meu
avô, diverti-a com a sua vida tripla de comissário da polícia,
dramaturgo respeitável e autor clandestino de textos para revistas
lascivas. Não lhe escondi o seu republicanismo, nem o meu, mas
também não lhe revelei os motivos que me haviam levado à reunião
daquela tarde, e ela não me perguntou. Quando nos despedimos,
ela disse-me que se tinha divertido muito, e eu respondi com a
verdade, porque me divertira tanto como ela. Por isso, na terceira
noite, quando entrámos no elevador, ela não carregou no botão do
segundo andar, mas no do sétimo.
– Este é o apartamento dos encontros do Esteban – explicou
com grande naturalidade enquanto abria a porta. – Ele não sabe
que eu tenho uma cópia da chave, mas, como está em Paris… Aqui
podemos falar alto sem incomodar ninguém.
Fizemos mais qualquer coisa e foi bom, prazeroso e superficial
para ambos. Comprovei que continuava preso à maldição da
Amparo, à lembrança daquela paixão que não conseguia comparar
com nenhuma outra e que bastava para envenenar a atração que
pudesse inspirar-me qualquer mulher no instante em que caíamos
nus numa cama. O sexo, depois da Amparo, tinha passado a ser
uma brincadeira de crianças, um passatempo previsível, cujas
regras eu conhecia e aplicava mecanicamente para obter uma
compensação minúscula em comparação com a que recordava,
como se, ao desaparecer da minha vida, ela tivesse levado para
sempre um ingrediente da minha natureza, mas não fui o único
amante incompleto no ninho de amor do senhor Maroto. A María
Eugenia León também não era totalmente dona de si. Aquela
mulher atraente, divertida e sensual, estava apaixonada pela vida,
não pela sua, que no encontro anterior havia partilhado comigo, mas
por outra, que lhe tinha pertencido antes de a perder e que nunca
mais recuperaria.
– Que tens aí dentro?
Antes de se despir, ela tinha tirado o relógio e os brincos, mas
mantivera uma corrente fina de ouro de onde pendia um pequeno
medalhão ovalado que lembrava as joias antigas que escondiam
uma madeixa de cabelo. Enquanto se movia em cima de mim, vira-o
dançar, bater-lhe suavemente no peito e, quando os nossos corpos
se separaram, também vi como o beijava.
– Aqui… – Voltou a beijá-lo antes de me responder. – Aqui está o
amor da minha vida. Não posso vê-lo porque mandei soldar as duas
metades para que ninguém descobrisse, mas sei que a cara dele
está cá dentro.
Nunca falei da Amparo à Geni, no entanto ela contou-me a
história de Fernando Villa, a sua vida, o amor deles, as prisões, a
morte e o rancor infinito que guardava aos culpados.
– Não devia dizer isto. Não devia falar assim porque à minha
volta há demasiada gente a sofrer e a verdade é que vivo muito
bem. Tenho três filhos bons, saudáveis, e posso vê-los crescer,
brincar com eles. Sou uma felizarda em muitas coisas, mas… –
Beijou novamente o medalhão e olhou para mim. – Mesmo que não
acredites, o rancor é a única coisa que me dá forças. Só o rancor
me faz levantar da cama todas as manhãs e me sustém até tornar a
deitar-me todas as noites. Por isso, estou disposta a colaborar com
os comunistas, com quem quer que seja, no que quer que seja.
Porque a eles, nunca lhes perdoarei na minha vida. E a elas, nem
quando estiver morta.
Voltámos a ir para a cama depois de cada reunião, mas nunca
marcámos encontro algum fora da agenda da União Nacional.
Também nunca mais falámos de Fernando, embora eu não me
tenha esquecido das suas palavras. Quando a invasão do vale de
Arán fracassou, deixámos de nos encontrar e eu não senti
necessidade de a procurar, embora às vezes sentisse a sua falta. A
Geni havia sido um presente do destino, um prémio que eu não
tinha muita certeza de merecer quando o acaso que nos juntou
decidiu separar-nos. Senti que estava bem assim e fui deixando de
pensar nela, até que na noite de insónia que se sucedeu à confissão
do Manolo Arroyo vi a cara dela desenhada no teto do meu quarto
com uma clareza espantosa.
– Agora que já sei que não vens dar-me más notícias… – No dia
seguinte ficou a olhar para mim com uma curiosidade indisfarçável,
depois descartar qualquer intenção romântica ou sexual naquela
visita diurna e doméstica. – O que te traz por cá?
– Ias sair, não ias?
– Sim… – Esperou por um esclarecimento que preferi adiar. –
Tenho de ir a um almoço de Natal de uma associação de caridade,
uma seca, às duas e meia… – E poupou-me outra pergunta. – É
aqui ao lado, na calle Sagasta.
– Ótimo – acabei por dizer. – Vamos beber uma cerveja para
fazeres tempo.
Saímos juntos, e eu recusei o primeiro bar que ela propôs,
pequeno e cheio de gente, escolhendo um café maior, quase vazio.
– Aqui não há cerveja de barril – avisou-me mal me viu empurrar
a porta.
– Não faz mal, não tenho sede.
Conduzi-a até uma mesa do fundo e só falei quando o
empregado nos deixou sozinhos com duas garrafas e umas batatas
fritas.
– Vim ver-te porque tenho um amigo que precisa de uma
informação que te é muito fácil de conseguir. Não implica nenhum
perigo e não te comprometeria, mas a mim far-me-ias um grande
favor e uma sacanice à Clarita Stauffer.
– Ohhh! – Ergueu os braços, como se quisesse dar graças a
Deus, antes de meter a mão no decote, tirar o medalhão e beijá-lo
três vezes. – O que tenho de fazer?
– Quase nada. Precisamos de uma lista de pessoas, homens e
mulheres, do círculo de relações da Stauffer, pessoas de quem nos
pudéssemos aproximar para pedir que nos apresentem ou que nos
ponham em contacto com o círculo dela.
– E que mais?
– Nada mais. – Sorri ante a expressão dececionada que lhe
enrugou os lábios. – Só isso. Sei que tu própria nos poderias
apresentá-la numa festa, mas tu és suspeita, Geni, e isso não nos
convém. Precisamos de um intermediário de muita confiança, de
alguém em quem ela confie plenamente.
Ela fez uma pausa, aproximou-se e dirigiu-me um olhar entre
divertido e astuto.
– Isto é por causa dos nazis, não é?
– Quer dizer que tu sabes – admiti, remoendo lentamente o
espanto.
– Eu? – Soltou uma gargalhada. – Toda a gente sabe! Bom,
vamos lá ver… – Baixou a voz para retificar com uma expressão
cautelosa. – Mais do que saber, desconfia-se. O que quero dizer é
que, desde que os nazis perderam a guerra, a Clarita anda a pedir
favores a metade das empresas de Madrid para colocar alemães.
Impingiu dois ao meu marido, claro que ele não sabe que… Enfim,
não sabe que eu não falo com ela. Bom… – Como de costume,
retificou pela segunda vez. – Falar falo, porque não tenho outro
remédio, tu percebes-me. A questão é… Suponho que não me vais
contar por que razão o teu amigo precisa disso, pois não? – Neguei
com a cabeça. – Mas podes dizer-me se o que ele quer é lixar a
Clarita?
– Isso garanto-te. Se isto correr bem, mais do que lixá-la, vai
fazê-la cair. E, se correr muito bem, o regime cairá com ela.
Ela voltou a beijar o medalhão, apagou o cigarro, rodou a cabeça
na direção da janela e observou a rua durante algum tempo antes
de olhar novamente para mim.
– Já sei o que vamos fazer. – Os olhos brilhavam-lhe de repente,
como se tivesse febre. – A Sociedade Alemã de Beneficência
organiza todos os anos uma festa para entregar brinquedos às
crianças pobres. Costumam fazê-la na semana a seguir ao dia de
Reis e é a Clarita quem trata de tudo, de coletar o dinheiro, de
comprar os presentes, da lista de convidados… A mim já não me
convida, mas uma das irmãs do Esteban vai todos os anos porque é
casada com um manda-chuva dos Sindicatos, e eu dou-me muito
bem com ela, pelo que não se importará que eu a acompanhe. A
maior parte dos convidados dessa festa são amigos da Clarita e eu
conheço-os quase todos, com certeza, até me parece que vou
almoçar com algumas delas daqui a pouco. Posso dar-te uma lista
em meados de janeiro. É isso que pretendes?
– Sim. – Peguei-lhe numa das mãos e apertei-a com força. – Isso
seria maravilhoso. Obrigado, Geni.
– De nada, mas não posso fazer mais qualquer coisa? Ando tão
aborrecida, Rafa. Morro de tédio. Não sabes a falta que sinto das
reuniões de Ciudad Lineal. Já sei que não fazíamos nada, mas pelo
menos tinha a ilusão de estar a fazer alguma coisa e, agora… Ai, já
são duas e vinte! Tenho de me ir embora. É melhor não sairmos
juntos, não achas?
Levantei-me para me despedir dela, sem comentar os
conhecimentos que decerto adquirira a ver filmes de espiões e,
quando me estendeu a mão com uma expressão de menina
dissoluta, apertei-a com muita formalidade.
– Quando tiver a lista, como te aviso?
O Manolo recebeu os resultados da minha diligência com uma
frieza que me teria dececionado se ele não me revelasse a seguir o
motivo de tal atitude.
– A Meg acabou de sair. – Nem sequer levantou os olhos dos
papéis espalhados sobre a mesa. – E não trazia boas notícias.
A colaboração da Geni não teria qualquer valor se ele antes não
encontrasse um criminoso de guerra espanhol a quem pudesse
usurpar a identidade, mas até então não tinha aparecido nenhum
que servisse.
– Ela também não pode continuar a ver os processos de
Nuremberga porque o Burnstein lhe enviou tanta documentação que
não lhe deixa tempo para fazer o seu trabalho. Mas eu posso fazê-lo
aqui, se não te importares que transforme a tua sala num escritório,
agora que vou ter de voltar para casa da María Aránzazu.
– É evidente. – Ele olhou para mim com as sobrancelhas
levantadas e eu fui mais explícito. – É evidente que vais ter de voltar
para casa da María Aránzazu e é evidente que não me importo que
venhas trabalhar para aqui. Ela ficará mais tranquila quando souber
que encontraste um emprego e eu até posso dar-te uma ajuda ao
fim da tarde.
– Está bem, porque… Isto está com mau ar, na verdade. Em
quatro meses, a Meg só encontrou dois criminosos de guerra
espanhóis com paradeiro desconhecido. Um deles tem menos treze
anos do que eu. E o outro passou metade da guerra de cadeia em
cadeia, acusado de furtos, de insubordinação, de violações, enfim…
É tudo menos um nacionalista exemplar, pelo que não creio que a
Clarita mexesse um dedo para o salvar.
– Porra! – resumi. – E não há mais?
– Não. Parece mentira, apesar da quantidade de divisionários
que foram parar às SS, ela não encontrou mais nenhum.
A María Aránzazu convidou-nos para jantar em sua casa na noite
de Natal e, uma semana depois, a Meg desistiu do cocktail da
embaixada porque quis que fôssemos comer as passas para a
Puerta del Sol. Depois, demos as boas-vindas a 1947 no
apartamento dela com uma bebedeira monumental. Com essas
duas exceções, e a correspondente ressaca de Ano Novo, o Manolo
não fez outra coisa senão ler atas judiciais e relatórios da polícia
aliada na Alemanha, de 20 de setembro de 1946 a 14 de janeiro de
1947.
– Como correu? – perguntava-lhe todas as tardes ao voltar do
trabalho, e ele respondia-me abanando invariavelmente a cabeça.
Eu sentava-me ao seu lado, pegava na primeira pasta da pilha e,
mais cedo ou mais tarde, sucumbia ao mesmo desânimo. O único
fruto desta parceria foi o de aliviar o trabalho de Manolo. Só
encontrei dois nomes espanhóis, ambos de reclusos de
Mauthausen, que haviam sido testemunhas, e já tínhamos
começado a desesperar quando ele chegou à ficha de um oficial das
SS chamado Ernst Kleiber.
– Aqui… – Aquela palavra soou como um grito. – Aqui… Aqui,
aqui, mas como é que ele se chama? – Ficou tão nervoso que se
levantou, começou a andar em círculos sem parar de ler, e não me
ocorreu nada melhor além de segui-lo. – Como se chama? – Dei
duas voltas à sala atrás dele, como se jogássemos ao macaquinho
de imitação. – Diz-me, filho da puta, diz-me como é que ele se
chama…
Chamava-se Adrián Gallardo Ortega, mas demorámos algum
tempo a descobrir.
Quando consegui que se acalmasse o suficiente para se voltar a
sentar, contou-me que esse tal Kleiber tinha sido acusado de
recrutar um grupo de homens que participaram no extermínio de
mais de dois mil judeus, prisioneiros de um campo na Estónia, e de
assassinar a sangue-frio um soldado alemão que recusara cumprir
ordens. Os seus subordinados tentaram atribuir-lhe a
responsabilidade, mas Kleiber insistiu que todos, incluindo o
insubmisso que tivera de executar, haviam sido voluntários e
ofereceu-se para os identificar. O primeiro homem que implicou era
um espanhol que havia competido como pugilista profissional antes
de ir para a frente russa e que andava sempre com um indivíduo
muito estranho de nome flamengo e apelido alemão, mas nascido
na América do Sul. Tinha-se esquecido do apelido do espanhol,
porém lembrava-se do outro: Schmitt. O documento incluía um
anexo com a identificação dos subordinados de Kleiber e a
informação que haviam fornecido. Nessa lista, Jan Schmitt aparecia
com um ponto de interrogação, em penúltimo lugar. O último era
ocupado por um nome próprio que poderia ser espanhol, embora
estivesse transcrito sem acento, Adrian, e com outro ponto de
interrogação.
– Não tenhamos ilusões. – A euforia do Manolo durou pouco. – A
interrogação não significa que tenha desaparecido, é muito possível
que esteja morto, mas… – Levantou-se da cadeira de um salto. –
Vou descer e telefonar à Meg. Devem existir listas que possamos
consultar…
– O quê? – interrompi-o, agarrando-o por um braço e obrigando-
o a sentar-se novamente. – Não sabemos o apelido.
– É verdade. – A expressão de abatimento voltou a surgir-lhe no
rosto.
– Mas foi pugilista profissional, não é verdade? Será por aí que o
encontraremos. Adrián não é um nome muito comum e não há
assim tantos pugilistas.
Para a vice-conselheira de Comércio da Secretaria de Negócios
dos Estados Unidos em Espanha foi muito simples telefonar à
redação do ABC e pedir para falar com algum jornalista desportivo,
especializado em boxe. Decidimos que o melhor seria a Meg
inventar um amigo norte-americano, cronista de desporto em algum
jornal, que estivesse a escrever um livro sobre o boxe e a guerra e
precisasse de uma lista de pugilistas espanhóis que tivessem
combatido nos conflitos da última década. O jornalista que a
atendeu foi muito amável e não desconfiou das suas intenções, mas
avisou-a de que precisaria de algum tempo para consultar os
arquivos. Fevereiro já tinha começado quando ele a contactou e a
convidou a passar na redação para ir buscar a pasta que havia
preparado para ela.
Estava tudo ali. Um combate numa barcaça fundeada no porto
de Bilbau, em março de 1938, o Campeonato de Castela de pesos-
pesados em 1940, o vice-campeonato de Espanha em 1941, um
nome com o acento no sítio, Adrián, e dois apelidos, Gallardo
Ortega. No parágrafo inicial de uma entrevista publicada nas
vésperas do combate de Barcelona figuravam outros dados, entre
eles que pertencia ao clube Ginástica Ferroviária de Madrid.
– Claro, claro que sim. – O dono do ginásio lembrava-se muito
bem dele. – O Tigre de Treviño, como lhe chamávamos. Era bom
rapaz, muito forte, ainda que muito lento, embora o treinador tenha
feito maravilhas com ele. Poderia ter sido campeão de Espanha,
mas foi-se abaixo de repente, não sei porquê…
Na cidade de Madrid de 1947, era completamente impensável
uma mulher, mesmo estrangeira, aparecer sem mais nem menos
num ginásio para dar uma vista de olhos. Que o homem que, pouco
tempo depois, passaria a ser Adrián Gallardo Ortega tivesse lá ido
perguntar por si próprio teria sido ainda pior, pelo que me calhou a
mim. Don Fernando, um homem baixo e rechonchudo com aspeto
de quem nunca havia sido atleta, estava sentado diante do ringue
onde lutavam dois rapazes, embora prestasse menos atenção ao
combate do que ao charuto que rodava entre os dedos. Estava tão
aborrecido que teria aceitado qualquer pretexto para ir beber um
café, e a visita de um velho companheiro de armas de Adrián que
procurava por ele para reatar a sua amizade pareceu-lhe tão bom
como qualquer outro.
– Não sei dizer-lhe onde está, não faço ideia. Foi para a Rússia.
Sabe disso, não é verdade?
– Sim, soube disso, mas calculava que tivesse regressado.
– Por aqui não o vimos. Temos as malas dele guardadas desde
que se alistou e não veio buscá-las. A verdade é que há uns dois
anos… – Franziu o sobrolho como se precisasse de se concentrar. –
Ou três, é possível, não sei, porque ele ainda estava na Rússia…
Escreveu-me de lá. Dizia que pensava voltar aos combates como
profissional. Queria contactar o treinador, mas eu contei-lhe a
verdade, que o Pirulo estava na prisão, de modo que…
– Pirulo?
– O treinador dele. – Desatou a rir-se. – Eu sei que parece
mentira, mas era assim que lhe chamávamos. De qualquer maneira,
encorajei-o a voltar, ofereci-me para lhe procurar outro treinador,
mas nunca mais soube nada dele.
Antes da minha visita ao ginásio, a Meg já tinha começado a
procurar Adrián Gallardo Ortega em todas as listas de que o
Conselho de Controlo Aliado em Espanha dispunha. Não podíamos
pôr de parte a hipótese de ele ter morrido, mas, nesse caso, teria
sido enterrado sem identificação ou esta não constava em nenhum
documento. Não estava ferido, não estava fugido, não estava preso.
Nem sequer surgia em nenhuma lista oficial de desaparecidos. A
última coisa que se sabia dele era que tinha participado na defesa
de Berlim. Depois, parecia ter-se esfumado no ar.
– Órale – convidou-nos a jantar nos primeiros dias de março para
celebrarmos. – Já o temos.
Ergueu o copo para brindar e o Manolo tocou nele com o seu
copo exibindo uma expressão grave. Para ele tinha chegado a hora
da verdade. Para mim também, embora a minha hora e a minha
verdade fossem diferentes.
A 20 de janeiro de 1947, quase um mês e meio antes daquele
brinde, María Eugenia León viera ver-me ao escritório.
– Aqui tens. – Estendeu-me três folhas de papel datilografadas. –
Como me aborreço tanto, pus os nomes por ordem alfabética e
sublinhei a vermelho os convidados que conheço o suficiente para
os convidar a almoçar contigo. Bom, contigo e com o teu amigo, se
é que existe.
– Muitíssimo obrigado, Geni. – Dei uma vista de olhos por alto,
vendo que ela tinha identificado umas quarenta pessoas e
sublinhado mais de metade. – Não esperávamos tanto, de facto.
– Também inseri as direções que sei, caso vos conviesse. A
verdade é que naquela festa estava meia Madrid, embora a
simplória da minha cunhada não conhecesse quase ninguém. Não
percebo aquela mulher, a sério. – Deixei-a falar enquanto ia lendo
os nomes, um por um. – Aos anos que vai a estes sítios e não sabe
nada. Cumprimentamos e vamo-nos embora, disse-me ao entrar, e
eu estive quase para lhe responder que não, embora depois tenha
pensado, olha, é melhor assim, ela que se vá embora e eu circulo
como me apetece, mais à vontade…
De repente, deixou de falar, e eu nem sequer me dei conta disso.
– O que tens, Rafa?
Ouvi a pergunta e não reagi, como se nunca tivesse respondido
por esse nome.
– Rafa! – A Geni assustou-se. – Ficaste branco…
– Não é nada – acabei por responder. – Bom, de facto é… Está
aqui um nome… Amparo Priego Martínez.
– Martínez? – Ergueu muito as sobrancelhas. – Não sabia o seu
segundo apelido.
– Eu sim. Eu… – Alarguei o nó da gravata, limpei a testa com a
mão, apesar de não estar a suar, percebi que não poderia ter sido
de outra maneira. – A família dela tinha muitas ligações com a
Alemanha, claro, e ela estudou no Colégio Alemão… – recapitulei,
mais para mim do que para a Geni, antes de a olhar novamente. –
Conhecemo-nos desde crianças, os nossos avós eram vizinhos.
– Bom… e que mais?
– Muito mais – reconheci –, mas o que interessa… A Amparo é
amiga da Clarita?
– Sim. Bom, vamos lá ver… Amiga íntima não sei se é, mas de
que a conhece tenho a certeza.
Foi assim que soube que um grupo de senhoras de Madrid, entre
as quais se contavam várias dirigentes da Secção Feminina, tinha o
hábito de ir à missa aos domingos na igreja de Santa Bárbara.
– Não sei se vou dar-te uma alegria ou um desgosto, mas… – A
María Eugenia León inclinou a cabeça para olhar para mim de lado,
como se assim conseguisse descobrir o que eu não lhe quisera
contar. – A Amparo não costuma faltar.
22
Me vale madres: estou-me nas tintas. (N. da T.)
23
Chamaquito: menino, rapazinho. (N. da T.)
24
Ya no chinges: para de chatear. (N. da T.)
BERLIM, 24 DE FEVEREIRO DE 1947
Pontos de sutura
MADRID, CASA DE CAMPO, 1 DE JANEIRO DE 1950
26
Progre: progressista. (N. da T.)
27
Durante a guerra civil espanhola, mas também no período que se lhe
seguiu, utilizou-se contra mulheres e meninas uma forma de repressão que
consistia em rapar-lhes o cabelo. Muitas vezes esta punição vinha
acompanhada de outros atos de humilhação pública. (N. do E.)
V
Nota da autora
A 22 de julho de 2013, comprei um caderno de capa verde-clara
numa papelaria do centro de Rota, a povoação da baía de Cádis
onde passo o verão. Ao voltar para casa, escrevi na sua primeira
página a data, o título e o subtítulo deste romance, e antes de voltar
a escrever qualquer coisa, inseri na barra do browser duas palavras
que já tinha escrito muitas vezes: Clara Stauffer. A minha busca
vomitou conteúdos que eu já conhecia e, em quinto lugar, uma nova
referência que me deu uma alegria e, logo a seguir, um desgosto.
Clara, que eu perseguia havia anos, só esteve ausente do meu
pensamento durante a primavera de 2013, enquanto terminava Las
tres bodas de Manolita. E a minha sorte, tão boa ou tão má como a
de Manuel Arroyo Benítez, determinou que justamente nesse
período em que eu não conseguia pensar noutra história senão na
que tinha entre mãos, um alfarrabista de Madrid pusesse à venda
um álbum de fotografias tiradas pela própria Stauffer entre os meses
de dezembro de 1948 e dezembro de 1949, durante uma longa
viagem pela Argentina, Peru, Bolívia e Chile. O site, que reproduzia
integralmente o seu conteúdo, anunciava na última linha da sua
descrição que o tinha vendido a 19 de março de 2013.
Há mais de vinte anos que partilho a minha vida com um bibliófilo
e com a sua biblioteca. Sei que os alfarrabistas conhecem muitas
vezes os seus clientes e entrei em contacto com este a toda a
pressa, para lhe dizer que estava disposta a comprar o álbum a
qualquer preço, até a pagar para que o seu dono me permitisse vê-
lo, manuseá-lo, fotografá-lo, mas nem sequer consegui saber o seu
nome. O livreiro contou-me que o tinha vendido rapidamente e a
única coisa que pôde acrescentar foi que o comprador tinha tido
mais sorte do que eu. Foi buscá-lo à loja, pagou em numerário e a
história acabou aí. Não era seu cliente, não sabia como se chamava
e não voltara a vê-lo ali.
Pensei em escrever um artigo, e até em pôr um anúncio, mas
ambas as opções me pareceram igualmente patéticas e
condenadas ao fracasso. Se quem o adquiriu fosse um
colecionador, não estaria interessado em partilhar o seu tesouro
comigo. Se fosse um fanático da obra de Clara, eu seria a última
pessoa a quem quereria fazer um favor. Ocorreram-me outras
opções, mas nenhuma era boa, de modo que me contentei em
guardar as imagens, em ampliá-las o mais que pude e em examiná-
las atentamente para escrever no meu caderno verde os nomes e
as datas que consegui decifrar entre as esmeradas anotações feitas
pela própria Stauffer, a caneta branca sobre cartolina preta.
Entre as recordações da sua viagem estavam as fotografias de
dois casamentos, dois nubentes, irmão e irmã, com os mesmos
apelidos. Não fui capaz de identificar o nome feminino. O masculino,
no entanto, lia-se com bastante nitidez, mas a minha busca na
internet de Hannibal D’Angelo Rodríguez não apresentou
resultados. Nessa altura, lembrei-me de que Clara Stauffer tinha
estudado na Alemanha. Experimentei a grafia espanhola do mesmo
nome e acertei em cheio, o que quase me consolou pela perda de
um álbum que nunca tinha sido meu.
Mais uma vez, a ajuda dos meus amigos foi imprescindível para
escrever Os doentes do doutor García.
Há muitos anos, antes de este romance ter título, e ainda menos
subtítulo, a minha amiga Belén Guerra, velha companheira de
ativismo republicano, emprestou-me o seu exemplar de El fin de la
esperanza, de Juan Hermanos. O livro impressionou-me tanto que
ela mo ofereceu. Nunca me esqueci dele e quando planifiquei este
romance, decidi que a disparatada e emocionante rebelião
estudantil de dezembro de 1946, ignorada por todos sempre e
desde sempre, merecia aqui um lugar, mesmo que as velhas armas
dos seus protagonistas não brilhassem tanto como os galões dos
SS.
No momento certo, o meu amigo Eduardo Becerra facilitou-me o
contacto com o professor Francisco Caudet, autor da magnífica
introdução da edição espanhola do livro de Hermanos. Ele
respondeu às minhas perguntas com enorme paciência e
amabilidade e autorizou-me a contar a história de Marc – Marcelo –
Saporta, que tentou em vão permanecer escondido atrás do seu
pseudónimo fraternal durante toda a sua vida.
Ao meu querido Rafa Reig devo, além da sua amizade, dias
maravilhosos em Cercedilla, excursões a Camorritos e a Fuenfría,
refeições na Casa Gómez e longas conversas em Peña Pintada, a
casa rural que já foi uma estalagem. Sem a sua ajuda e o seu
entusiasmo, Manolo e Guillermo nunca teriam subido de burro até à
casa de Herr Messerschmidt. Graças a Rafa, a única coisa que tive
de inventar foi o nome espanhol – don Eduardo – do nazi mais
famoso de uma aldeia onde abundaram muito mais do que ela
merecia.
Como as personagens deste romance espanhol acabam por
viver muito mais longe de Espanha do que os protagonistas dos
meus restantes Episodios, tive de recorrer também à generosidade
e à sabedoria de alguns amigos estrangeiros que amo, e que me
amam o suficiente para suportarem o abuso da minha curiosidade.
Graças a eles pude situá-los corretamente no tempo e no espaço.
Assim, de Berlim, Dieter Ingenschay escolheu o bairro,
Schöneberg, e até a rua, Winterfeldstrasse, onde vive a família
Müller, e além de calcular o tempo que Agneta demora a pé da sua
casa até à Porta de Brandeburgo, tendo em conta os escombros,
acrescentou também que esse bairro de Berlim, onde ele viveu e
que eu visitei há muitos anos, ficou famoso por causa de uma
canção na qual um rapaz conta como beijou ali uma rapariga no
mês de maio. Quando ouvi a versão de Marlene Dietrich, não pude
resistir à tentação de transformar essa canção numa personagem
com que não contava.
Nunca poderei agradecer o bastante a Elena Boledi por tudo o
que fez para situar Manolo Arroyo em Buenos Aires. O mérito é
partilhado também por Adolfo González Tuñón, que se deixou
arrastar por ela e caminhou ao seu lado enquanto ela escolhia para
mim o bairro de Balvanera e a zona do Palácio da Justiça, dando-
me as coordenadas exatas para uma pensão e para uma academia,
e mencionando no fim a existência do maravilhoso Café de los
Angelitos. Foi também Elena quem decidiu situar a fazenda Bley nos
arredores de Junín, perto do sítio onde ela e Eva Perón nasceram.
Os capítulos portenhos deste romance teriam ficado muito piores e
muito menos autênticos sem a sua ajuda preciosa.
Num dia de 1953, Luis Zori Martínez estava a descer a Gran Vía
quando, por alturas da igreja de San José, no número 43 da calle
Alcalá, lhe tiraram uma fotografia num passeio cheio de gente.
Muitos anos depois, fotografou-se comigo em duas cerimónias,
quando nenhum de nós poderia adivinhar que essa fotografia em
que está tão bonito se transformaria na capa do romance. Quero
agradecer-lhe não só por ser meu leitor, mas por me ter permitido
usá-la. Também lhe agradeço ter consentido que o
transformássemos num señorito, engomando-lhe o casaco e
inserindo uma gravata que não existia na imagem original.
Três impostores
GUILLERMO GARCÍA MEDINA, nascido em Madrid, em 1914, conhecido
como RAFAEL CUESTA SÁNCHEZ a partir do mês de abril de 1939.
Também conhecido como ÁNGEL VALVERDE ROLDÁN entre outubro de
1968 e fevereiro de 1969.
Um weekend em Taplow
ROBERT, BOB, MCKAY, agente da CIA residente em Gibraltar.
SOLEDAD, SOLE, RUIZ, imigrante espanhola em Nova Iorque que,
antes de sair do país, trabalha como criada em Madrid, em casa de
CLARA STAUFFER.
JEAN-JULES LECOMTE, burgomestre de Chimay, na Bélgica, durante a
ocupação nazi, membro do Partido Rex e das SS. Criminoso de
guerra.
HORST CARLOS ALBERTO FULDNER, cidadão alemão nascido na
Argentina, membro da Sicherheitsdienst, ou SD, organização de
inteligência das SS.
WALTER SCHELLENBERG, general de brigada das SS, dirigente da SD e
chefe de Segurança da Gestapo.
Na Casa de Campo
ZACARÍAS GONZÁLEZ PEÑA, pastor, morador de Aravaca.
MARI, sua mulher.
ROBERTO CONESA ESCUDERO, inspetor da Brigada Político-Social de
Madrid.
JERÓNIMO, coveiro do cemitério de La Almudena.
Em Rockport, Massachusetts
MICHAEL MORRISON, congressista do Partido Democrata por Rode
Island.
ANDREW SANDERS, adjunto do porta-voz do Partido Democrata no
Congresso dos Estados Unidos.
SARAH, empregada do Bearskin Inn.