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MUSEU DE

GRANDES NOVIDADES

LÚCIO
MUSEU DE
GRANDES NOVIDADES

LÚCIO
ÍNDICE

Prefácio - Violetas de Aleluia

1 - Sarapatel dos Estetas (setembro de 1997)


2 - Crônicas
2 - Crítica
3 - Crônicas no Jornal Correio Bom-Despachense
4 - Carta de Mário Morais
“Conheci algumas profetisas
Madame Samajour aprendera a deitar as cartas na Oceania
Foi lá que ela teve ocasião de participar
Numa saborosa cena de antropofagia
Embora não conte isso a toda a gente
Nunca se enganava em relação ao futuro”

Guillaume Apollinaire sobre As Profecias


Tradução de José Maria Alves
VIOlETAS DE AlElUIA
Prefácio por Vinícius de Morais do Espírito Santo

Eu dividia o quarto com o meu irmão Lúcio, 7 anos mais ve-


lho que eu. Óculos fundo de garrafa, muitos graus de miopia e uma
péssima coordenação motora. Ele não tinha nenhuma aptidão para
nenhum esporte e era visto como excêntrico e desajustado pelos ou-
tros meninos do prédio em que morávamos. Um enorme conjunto de
16 andares com 3 apartamentos por andar e dois blocos divididos por
um divertido playground no bairro Luxemburgo, em Belo Horizonte.
Foi fuçando nos cadernos de Lúcio que encontrei “Violetas de
Aleluia”, uma compilação de seus poemas impressos em papel ofí-
cio que ele mesmo mandara encadernar. Uma linguagem complicada
pra mim naquela época. Eu tinha 12 anos, creio. As imagens que ele
criava, aquela atmosfera onírica e surreal, James Dean, necrófilo indo
“passear” no cemitério. Ou a interessante “Elegia ao Fliper Pornô”,
que falava de sexo virtual através de máquinas de fliperama.
Tudo aquilo me fascinou, a fauna e a flora urbana que povoa-
vam aqueles poemas. As drogas, a rejeição, a inadequação dos so-
nhos juvenis ao mundo dos adultos, o spleen, a solidão, a cultura
beat, a cultura pop, os andróides e os anjos com que Lúcio sonhava.
Que eu me lembre, foi nessa ocasião que eu tive vontade de escrever
alguma coisa que fosse minha, que não fosse uma redação de colégio
ou uma coisa escrita simplesmente por obrigação.
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Desde então passei a frequentar os cadernos de Lúcio, copiar
o seu método de escrita e, confesso, roubava às vezes alguns versos.
Fui me familiarizando também com as coisas que ele lia na época: Al-
len Ginsberg, Laurence Ferligetti, Rimbaud, Jorge Mautner... Por tudo
isso, creio que a minha formação como leitor se deve muito ao Lúcio,
que é escritor e estudioso de literatura e ainda hoje me apresenta coi-
sas novas e inusitadas quando nos encontramos.
Enfim, pra mim é inevitável remeter minha iniciação no mundo
das letras à influência de meu irmão, pela reverberação afetiva que eu
tenho da época em que ainda morávamos juntos e dividíamos o mes-
mo quarto. Lúcio tinha a mania de ler deitado na cama penteando o
cabelo, o que era bastante cômico, pois ficava ali horas a fio fazendo
isso, às vezes passava o dia inteiro. Esse seu hábito era bastante co-
nhecido por todos em casa. Nunca entendi o que ele quis dizer com
“Violetas de Aleluia”. Nunca me esqueci dessa imagem. Logo, deixo
aqui minha homenagem.

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SARAPATEL DOS ESTETAS

O Sarapatel dos Estetas era o jornalzinho do meu grupo de


amigos de faculdade. Tínhamos a versão física e a versão digital, já em
setembro de 1997, graças principalmente ao esforço de André Du-
arte, hoje professor da UFOP. Era uma criação nonsense ao estilo
de Alfred Jarry, autor que admirávamos. A frase “sei lá entende, mil
coisas” originalmente estava numa adaptação de Jarry, segundo Marí-
lia Gabriela. Somos do tempo em que os jovens repetiam essa frase:
“sei lá, entende?” O grupo era: André Duarte, que foi quem colocou
no ar a página que está até hoje na tripod (https://sarapateta.tripod.
com), Larisse Mirna, Alexandre Magno, Érico Vieira Leão Pereira e
Rodrigo Soares. Muitos outros contribuíram: Sergei Claret, que então
assinou como Sergei Chiodi (e que escreveu um romance, Yuri em
seu Gabinete, onde o protagonista, Yuri, é inspirado em mim), Eli-
sângela da cidade de Esmeraldas, Letícia Abras, Rogéria Maciel, John-
ny Guimarães, Anderson da Filosofia, Andréa Beluga, Marcos Xavier.
Nessa época também publicamos crônicas no jornal O Plenário, do
saudoso Júlio Emílio Tentaterra e do Lucas. Fomos pioneiros em criar
um grupo de jovens literatos na internet brasileira – que existia desde
1988, mas ganhou corpo somente em 1994. O endereço saiu até na
Folha de São Paulo na época.

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O MOTORISTA E MINHAS AlgEmAS

“Sou levado
Como um navio sem piloto
Como através do ar
Um pássaro à deriva;
Nenhum vínculo me prende,
Nenhuma chave me aprisiona,
Busco meus semelhantes
E me junto aos insensatos.”
Carmina Burana, In Taberna

Osso duro de roer é andar a pé - ou de ônibus – na cidade dos


horizontes belíssimos. Pode às vezes ser perigoso.
Certa vez encontrei a turma da faculdade num bar próximo ao
viaduto de Santa Teresa. Nosso papo sempre nos leva a tentarmos
buscar soluções para o país – e de quebra – para a humanidade. So-
mos revolucionários de boteco por excelência.
– A salvação está no fim da má vontade!
Assim pregava meu amigo Vandré Henrique Felinto para minha
cara assombrada e para sua abismada namorada.
– Se nós não tivermos documentos o Sistema não vai poder
nos dominar ou identificar.
Ia dizendo isso e pegando a carteira da pobre moça para pôr
fogo e demonstrar sua teoria.
– Não, Vandré! – disse ela – reprimindo as tendências anárqui-
cas de seu amado.
– Comprove a teoria na sua carteira, vamos ver.
Vandré mudou rapidamente de assunto e eu tive ímpetos de
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cantar “Prá Não Dizer que Não Falei das Flores” em ritmo de rap, mas
me contive.
– Ninguém aqui está me entendendo! Se eu morresse agora vo-
cês distorceriam tudo o que eu disse, como fizeram com Jesus Cristo.
– “Jesus Christ, Superstar”, cantei.
– Oh, coitado! – era Lalá, a amada de Vandré, merecendo com
este tiro certeiro o apelido de Lalá Carabina.
– Você é o novo Jesus!
– Mesmo?
– Claro, você sempre nos chama para tomar uma e elas se multi-
plicam em dez. Trata-se do milagre da multiplicação das cervejas.
– Jesus Cristo foi um cara legal, prosseguia ele – um filho de
Deus que transforma a àgua em álcool, em vinho, ganha pontos co-
migo.
– E a Lalá, é a Madalena? Ora, podemos fazer um musical,
Vandré. Quando você fala com Madalena entra a música: “Madalena,
Madalena, você é meu bem-querer/ Eu vou contar pra todo mundo/
Vou contar pra todo mundo/ Que eu só quero você.”
– Acho que. Sei lá. Tenho medo de ser crucificado...
– Que isso!
– Só quem me entende aqui é o Miguel!
Miguel, colega nosso também presente à mesa, já estava entre-
tanto prá lá de Teerã. Em estado de embriaguez completa ele tentou
dizer algo, mas quase derrubou toda a mesa.
Mudamos novamente de assunto. Desdenhamos dos poemas
de Ho Chi Minh, eu me lembrava de ter lido que Bob Dylan desejava
lançar um livro chamado Ho Chi Minh no Harlem. Demonstramos
leve desprezo por Che Guevara e Lênin e nos unimos em louvores a
Camus. E nos deparamos com o mais cruel dos problemas humanos,
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o terror dos rebeldes botequineiros: a infindável, implacável e onipre-
sente CONTA! Dela ninguém escapa. Nem nós, apostoletes de Santo
Vandré.
E depois veio uma solitária e longa espera pelo ônibus. Ele che-
gou rápido demais naquela noite. Quem sabe fosse um milagre de
Santo Vandré. Lá dentro era como se houvesse uma luz de milagre. O
ônibus estava repleto de empregadas domésticas. Lá na frente havia
um bendito fruto, um sujeito meio careca e de camiseta verde. De
repente o cara foi reclamar da demora daquela linha – e com o moto-
rista. A coisa esquentou e com a intervenção irritada do trocador se
formou o clima caótico que precede os grandes desastres. Era como
se a explosão do Vesúvio estivesse iminente. O ônibus acelerou a
marcha e não parou mais em ponto nenhum. As jovens criadas fica-
ram histéricas. Eu ainda admitia a possibilidade de pular janela afora
quando a Barragem Santa Lúcia saltou à nossa frente. Meu ponto ia
se distanciando e eu ia adentrando nos reinos do pavor: o veículo ia
descarregar seu gado humano no batalhão da Polícia Militar que fica
entre a favela e os bairros de bacanas como o São Bento. Logo o cara
de verde estava amaciado e o motorista vociferava, tripudiando sobre
ele e sobre nós:
- Vocês nem me ajudaram, ficaram aí querendo descer! E este
sujeito aqui puxando briga!
Quando eu abandonei a confusão, o interior do ônibus estava
empestado por um perfume de couve-flor podre e tinha um ar de
templo profanado. Precisei sair dali rápido, antes que eu ganhasse um
belo par de algemas prateadas.
Um dia é da caça, outro do caçador.

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A MATIlHA DO SANTO ANTÔNIO

"O disco da lua nova


No lar azul das esferas
De nuvens que lembram feras
Como um réptil, sai da cova...”
Afonso Celso
Numa noite, fui perseguido por um “arrastão” de cães. Come-
çou quando um vira-lata começou a latir com arrogância para mim.
Logo uns dez começaram a latir também, deixando de chafurdar no
lixo, revoltados com a humanidade.
Um dos cães era algo como o líder, e este me perseguia, quase
mordendo minha perna. Eu corri e toda a matilha me seguiu. A única
solução que me veio à cabeça foi a música Os Cachorros das Ca-
chorrras, onde o protagonista dizia que namorava uma moça manca
pois, andando com ela, estava protegido de vira-latas: ela dava sem-
pre a impressão de estar se abaixando para pegar uma pedra.
Apesar do gosto duvidoso da canção, eureka! Ela me salvou,
me dando a chave da situação: decidi fingir que ia atirar pedras em
meus algozes. Fiz pontaria imaginária lá no chefe. O malhadinho sa-
fado deu um salto e latiu como se dissesse “meia-volta, volver!” para
seus pupilos.
Essa “matilha do bairro Santo Antônio” eram uns guerrilheiros
quadrúpedes, terroristas caninos. A carrocinha – isto existe? – que se
cuide. Eles andam soltos por aí, quem sabe tramando destruir nossa
decadente civilização Ocidental...

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MARCElINO, PÃO & VINHO

Ele fechava os olhos e se lembrava daquele dia, que passava


como um filme: ele, Marcelino, estava com os demais alunos do co-
légio Marista, na aula de Educação Física. O professor Aristóteles
obrigou-o a jogar. Marcelino relutava, não fazia milagres como o seu
homônimo. Acabou entrando, como um cego das pernas. Olhou ao
longe as montanhas da Serra do Curral: quarenta anos antes, quando
chegou a Belo Horizonte, o escritor francês George Bernanos excla-
mou: “mas é uma cidade caída da lua!”. Como se caísse da lua doutro
planeta, caiu Marcelino ali no campo.
– Passa pro Leonardo, seu lepra!!!
O rapaz era uma massa amorfa no campo, atirado no mundo,
como cão sem osso, sem pão nem vinho. Seu ser simplesmente se
agitava em meio aos outros corpos, com óculos de lentes grossas,
boca dentuça. Sua presença ali incomodava, ansiavam por riscá-lo,
fazê-lo encolher e sumir em frestas lodosas. Marcelino tinha pesade-
los com a orientadora educacional gorda, terrores noturnos onde era
comido por aquele colo guloso, devorador. No time de futebol, es-
tava cercado de criaturas com telencéfalo altamente desenvolvido e
polegar opositor, todas inteiramente nuas por debaixo das roupas.
– Vai! Vai! Marca o Marcelo!
A orientadora educacional Sulamita o achava estranho, pois
chamou Marcelino para uma conversa em particular, perguntou sobre
sua família, queria saber por que era tão calado. Ora, a razão é escrava
das paixões: Ciro, imperador persa, foi comido debaixo da escada, ri-
tual antropofágico como a última ceia onde o apóstolo comeu o cor-
po de Cristo e bebeu sangue. O barqueiro Caronte, encarregado de
levar as almas para a Ilha dos Mortos, surgiu à porta do inferno, viu as
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duas almas e riu, gargalhou... Marcelino era um cordeiro desgarrado,
decidira se confessar num diário inspirado por uma citação de Confi-
teor, de Paulo Setúbal, na aula de Moral e Cívica. Um dia viu um louco
nu, saindo pela rua, em frente à livraria, gritando no surto: “vocês me
fazem comer réptil!!”. Marcelino gostara da cena do Quarup, de Rui
Guerra, em que Cláudia Raia deu prum índio descolado. Nas escadas
da noite, Marcelino tateou o sexo da menina: levou da mão para a
boca, sentiu gosto de limão. Naquela época ele pensava que a letra
de Luiz Gonzaga era assim: “Vem cá, cintura fina, cintura de limão,
cintura de menina, vem cá, meu coração...” Propôs para Gislaine, a
menina do sexo sabor limão, a brincadeira de casinha. Gislaine tinha
uma noção restrita do que faziam marido e mulher e não propôs nada
mais instigante. A menina fantasiou que tinham uma filha. Faltava algo
para comer em casa, Gislaine lhe disse para ser o provedor. Marceli-
no sugeriu que comessem a própria filha, passo que resultou na sua
expulsão imediata da brincadeira, após o que, quem sabe, a garota
interpretou um monólogo sobre a viuvez.
Marcelino também comeu o réptil, também a pérola lhe foi
ofertada. Ela rolou e ele se recordou de um gol alegre que fizera em
outros tempos, um tempo distante que pareceu se esticar até aquela
ventosa ali girando. Chutou, e a bola bastarda estufou o véu da noiva.
Ele vibrou de alegria, redimido de anos de humilhação. Anjos toca-
vam frenéticos, foguetes espoucavam na sua cabeça oca. Foi como
se despencasse para o fogo tal um anjo caído, tal qual um Lúcifer num
casamento do céu com o inferno, com as palavras ditas por incendiá-
rios de dedos em brasa:
– Foi contra! COOONTRA!!!
Houve também uma bolada no primário, que acertou o olho
dele, a dor e os gritos de desespero ecoaram, aquela bola voltou
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como de um corredor polonês, direto para sua cara, uma chicotada
redonda do polvo que um dia abraçou o Nautillus de Júlio Verne, uma
bicada de galinha defendendo a ninhada, uma unhada de cachorro
em torno da mangueira, tudo se repetindo, o chão se desmanchando,
derretendo, um chão de geleia mofada onde Marcelino se afundava
em pão, vinho, lama, merda e sangue. Logo depois o tiraram do jogo,
Aristóteles fora derrotado em seu gesto ilógico.
Ao subir na arquibancada, o horror, foi como se o abismo se
reabrisse, agora dentro do peito, cavando uma mina escura e funda
por onde entrava de repente o trem de sua vida, como se pérolas, por
obra de um mágico, lhe saíssem pródigas da barriga: o pai vira tudo!
A dor chegava a ser indolor, era tão avassaladora que lhe apagava a
mente. O pai estava mais próximo do riso, o que fazia a dor se mul-
tiplicar por mil feridas, como se bocas com dentes se abrissem em
suas mãos, em seus pés, sentou-se aos pés do pai como um Cristo
dentuço e de óculos, no qual os olhos e os dentes subitamente se
alastrassem pelo corpo leproso. O pai nada disse, emitiu palavras que
não chegaram às ostras que as orelhas de Marcelino tinham se torna-
do e levou dali aquele zumbi, como se levasse embora uma semente
estéril, caída em meio aos cactos.

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2
CRÔNICAS

A arte do conto é exercida por outras pessoas em minha família,


bem como a arte literária em geral. Meu avô Mário Morais escreveu
dois livros de memórias e prosa: Coqueiros & Outras Histórias, bem
como Rastros na Poeira. Ao final desse livro, recolhi uma carta de
meu avô onde ele exerce a crítica literária. Meu pai publicou Teatro
de Fantoches e foi colaborador constante de revistas e jornais em
Uberaba e Belo Horizonte, entre os quais o jornal O Quarto Poder,
do descendente de Tiradentes, Joaquim Borges. Muitos de seus con-
tos foram publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, como
por exemplo, Quando Nascem os Ipês, dentre muitos outros. Junto a
meu pai, ainda criança, aos dez anos, escrevi Melissa, A Mosca Indis-
creta, ficção infantil inédita.

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CRAZY BITCH FROm COPACAbANA

Ele se chamava Vinícius de Morais. Gostava dos poemas de seu


homônimo, mas ouvia desde criança Raul Seixas e queria ser roquei-
ro. Logo ele criou duas bandas, os Dead Lover´s Twisted Hearts e os
Junkie Dogs. Os Dead Lover´s faziam um som mais pop, lembrando
Franz Ferdinand e os Strokes, enquanto os Junkie Dogs faziam um
som mais próximo de Sonic Youth e Velvet Underground. Vinícius
também queria musicar uma canção que dizia, com a melodia de Se
Essa Rua Fosse Minha: “Se eu tivesse, se eu tivesse muitos vícios,
eu seria, eu seria o Vinícius. Se esses vícios fossem muito imorais,
eu seria o Vinícius de Morais.” Vinícius queria eletrificar o folclore,
achava que Caetano estava errado ao combater os nacionalistas de
esquerda. Vinícius mudou-se para Londres e foi bafejado pela sorte:
a guerra do Iraque terminara havia pouco, gerando uma revolução
islâmica no país. O Reino Unido não tinha mais acesso ao petróleo
iraquiano. E o primeiro ministro trabalhista buscou se aproximar de
Hugo Chávez para obter petróleo venezuelano. Como parte da polí-
tica inglesa de conciliação, Chávez foi convidado a posar para Mada-
me Tussaud. O convite para virar estátua de cera no Mme. Tussads
lhe chegou em boa hora, pois a oposição recrudescera depois da
estatização do canal Globovisión e a aceitação na Inglaterra ajudaria
sua imagem interna, com certeza. Vinícius de Morais aproveitou-se
desse contexto, inspirou-se numa canção do disco Autófago, de
Makely Ka, onde o compositor mineiro colocou a fala de Chávez di-
zendo que Bush era o diabo e fez sucesso por todo United Kingdom
com o rock chavista “Soy Loco por Ti, Comandante”. Passou a viver
em Londres, separando-se dos Dead Lover´s e dos Junkie Dogs, se-
guindo uma carreira solo baseada principalmente em versões bossa-

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-trash tais como Crazy Bitch From Copacabana, uma pop paródia da
Garota de Ipanema e outras canções tais como Amor, Orgasmatron
(homenagem jazzy ao Sepultura).

O ENCONTRO MARCADO: FERNANDO SAbINO E O MAESTRO DAS


ÁgUAS

Nesse domingo de Páscoa, infelizmente, Bom Despacho per-


deu um dos maiores artistas de maior expressão que já pisou e viveu
nessa terra, o maestro Nivaldo de Oliveira Santiago (1929-2021), o
chamado “Maestro das Águas”. Amazonense, Nivaldo aclimatou-se
muito bem em Minas, tinha inclusive um estilo discreto de ser, muito
mineiro, nunca buscando publicidade. Isso, com certeza, fez com que
muitos de vocês leitores não o conhecessem.
Lembro-me que estávamos numa festa quando a professora
Maria do Socorro, minha querida colega de universidade, contou-me
que ela e Nivaldo já eram eternos, tornados que foram personagens
de um dos maiores escritores mineiros e um dos maiores brasileiros:
Fernando Sabino, autor de O Encontro Marcado, O Homem Nu, O
Grande Mentecapto, esses dois últimos adaptados com sucesso para
o cinema.
O livro Encontro das Águas, Crônica Irreverente de uma Cida-
de Tropical (1977) traz Nivaldo e Maria do Socorro Santiago entre
seus principais personagens.
Encontro Márcio Souza e Nivaldo Santiago me esperando no
aeroporto: – estamos aqui há mais de duas horas (...). Márcio Souza é
escritor. Nivaldo Santiago é maestro. São ambos da Fundação Cultu-
ral, e a eles fui em boa hora recomendado (SABINO, 1977, p.16).
Ambos me contaram que o texto de Sabino foi encomenda-

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do pela Sharp e recusado, pois não falou bem da Zona Franca de
Manaus; Sabino transformou-o, então, em livro. A empresa ficou
desgostosa, especialmente, com uma frase de Nivaldo: “Quando lhe
digo que me sinto como se estivesse dentro d´água, Nivaldo Santia-
go sorri: – Nós temos aqui mesmo o cérebro meio aguado” (SABI-
NO, 1977, p.34).
Nivaldo contou-me que falou isso com Sabino em meio a
muitas outras conversas e ele pegou e colocou no livro. Essa frase
foi considerada muito crítica e foi um dos motivos da recusa da em-
presa em adquiri-la para um encarte para seus clientes. O texto, em
geral, é positivo quanto a Manaus, mas salga quando fala na Zona
Franca.
Muitas de suas características curiosas são captadas: Maria do
Socorro dirige, Nivaldo não, enquanto isso, Nivaldo ficava “orques-
trando” o trânsito. Eu ainda observei isso quando “naveguei” junto
aos dois em Bom Despacho.
Nivaldo e Socorro são os astros do livro de Sabino. Além de
servirem de interlocutores, algumas das situações vividas pela intrépi-
da dupla repetem-se junto a outras pessoas da cidade, o que tornou-
-os símbolos de toda Manaus: ao pegar um táxi, Sabino encarnou o
maestro ao auxiliar o rapaz a enfrentar o confuso trânsito manauara;
ao sair de barco para conhecer a floresta, saindo do porto cheio de
outros barcos e canoas, Sabino é quem transforma-se em maestro
preocupado com a orquestra que é o trânsito fluvial! Como diz a can-
ção, todo encontro é também despedida. Como contou Sabino no
final do Encontro das Águas:
Conta-nos [Nivaldo Santiago] que em breve irá ao Rio para
contratar músicos: o governador assinou o ato criando a orquestra
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sinfônica de Manaus. É uma boa notícia: para celebrar, consumimos
o resto de uísque que sobrou de meu primeiro dia. E eles se vão,
deixando-nos a sós – integrados, nós próprios, em terna harmonia.
Já nos despedimos dos outros amigos que fizemos aqui. E já dis-
semos adeus a Manaus. Agora vamos partir. Manaus, Manaus! Em
breve estaremos lá em cima e esta cidade que durante alguns dias
me desnorteou com suas contradições, me entusiasmou com sua
grandeza, me deprimiu com seus problemas, me seduziu com seus
encantos não será mais do que um ponto de luz cercado pela escu-
ridão. De luz e de esperança (SABINO, 1977, p.110).
Há dezessete anos partiu Sabino, agora partiu Nivaldo. Um dia
todos vamos partir. Esperamos encontrá-los em outro plano agora,
lá em cima. Já são sem dúvida dois pontos de luz. E a esperança, essa
eles deixam aqui dentro de nós.

ACAbOU NOSSO CARNAVAl

Minha geração foi a última a ver as turmas de carnaval em Bom


Despacho. E, com certeza, uma das últimas a ver os desfiles das es-
colas de samba. Lembro-me do desfile em 1988. Era especialmente
fascinante a escola de Dona Sebastiana, composta só por negros.
Conversando com parentes que viveram o período, contaram-
-me que o desfile das escolas de samba foi acabando aos poucos,
pois implicava em gastos e dava trabalho.
As turmas vestiam fantasias e havia o prêmio por fantasia.
Lembro-me de ir ao Clube Social e ver as meninas da Unidos por
Acaso, vestidas com fantasias de capetinhas, de diabinhas. Pensei
como devia ser sexy participar de uma turma. Havia outras: Tropica-

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na, Staff, Oi Tentação. Os blocos alugavam uma sede, que era uma
sede ou casa velha, à noite tinha o Clube Social e o concurso dos
blocos. A cidade era toda decorada, Roniere Menezes fez uma mar-
chinha que tocou no rádio graças ao Célio Luquini; que sem dúvida
tem carinho pelas coisas da cidade.

Nós dois pela cidade


Foi no jardim sem flor
Que eu colhi você
Dei um sorriso
Abri meu coração
Vou te abraçar, te levar pela cidade
Lá na Biquinha
Molhei seu belo rosto na mina
Ouvi a sereia cantando
Matando a sede de Macunaíma
Nós dois, nós dois na rua do Céu, meu amor
Em lua de mel no paraíso
Nós dois, nós dois, na cruz do monte
Se você quer um beijo, eu te dou um monte
Na Taba, Taba, Tabatinga
Vi uma negra linda
Falar em outra língua
Na Taba, Taba, Tabatinga
Vi tabaque e ginga
Misteriosas colinas
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Na praça da estação
Chegou, chegou a turma do prazer
Larguinho, Garça, Quenta-sol
Só quero amar e despachar o mal
Lá nas palmeiras
Vi uma dona Doida de porta-bandeiras
Crianças de índio, Arlequim folião
E só magia, alegria geral na multidão
Nós dois, nós dois na matriz, meu amor
Sem mal-me-quer, sem diz-que-diz
Nós dois, nós dois na vila Aurora
Quero viver sete vidas como agora
Na Taba, Taba, Tabatinga
Vi uma negra linda
Falar em outra língua
Na Taba, Taba, Tabatinga
Vi batuque e ginga
Mistério das colinas

Havia um concurso de Rainha do Carnaval. Uma parente minha


ganhou, mas era marmelada, pediram a ela para ceder o lugar a duas
outras, pois era preciso desfilar no palco. Ela, tímida, ficou aliviada.
Na minha época (anos 90) eram Ideograu, Locaia, Pelourinho.
“Locaia” tinha o termo da Língua do Negro da Costa, “ocaia”, que é
mulher. Depois da minha época, as turmas acabaram. Acabou nosso
carnaval.
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2
CRÍTICA

Exerci e exerço a crítica literária durante mais de vinte anos.


Para isso formei-me em Estudos Literários na UFMG em 2001. Aqui
há registro disso e homenagens várias às produções de vários ami-
gos: Fábio, Anelito, Ramon Maia, Geovanne Sassá e muitos outros.
Pedro Moraleida morreu aos 22 anos e, posteriormente, em 2018,
protagonizou uma polêmica nacional com uma exposição sobre o
Corpo de Cristo. Caetano Veloso e o prefeito Khalil visitaram a ex-
posição, grupos pró e contra a exposição hostilizavam-se na porta,
xingando-se de fascistas e comunistas. Que pena Moraleida não ter
vivido para ver isso! Seria a glória! Agradeço também a muitos outros,
como o professor Reinaldo, sempre um interlocutor atento e interes-
sado. Luciene Guimarães, pesquisadora da Université Laval, também
foi uma interlocutora ao tempo da minha dissertação de mestrado
(não presente aqui, sobre as Imagens do Brasil em O Estrangeiro de
Plinio Salgado).

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XUxA AfRO, O mITO PROfANADOR

“Conheci uma crioula de encanto ignorado.


A graciosa morena, cálida e arredia,
Tem na postura um ar nobremente afetado;
Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,
Seu sorriso é tranquilo e seu olhar ousado.”
Charles Baudelaire

A Xuxa afro-brasileira, personagem criada pelo músico e ator


Geovane Sassá, que se apresentará no sábado que vem no festival
da música popular brasileira junto com os componentes de grupo
Tambolelê, busca parodiar Xuxa Meneghel, uma gaúcha de clara as-
cendência europeia e corpo escultural. A “rainha dos baixinhos” exer-
ce seu reinado submetendo seus súditos a seu otimismo kitsch e a
sorrisos pré-fabricados. A Xuxa Negra se autoproclama “rainha dos
neguinhos”, constituindo-se mito dessacralizador. A personagem se
cristaliza absorvendo elementos do belo grotesco e cômico que:
São duas formas do belo que se tocam, que se enlaçam
até se confundirem numa única emoção. De comum,
têem o elemento do ridículo, que nunca pode faltar ne-
las; de diferente, têm um grau diverso da deformidade
ou da caricatura da verdade.
Assim como as cócegas e certas formas de volúpia con-
fundem as fronteiras do prazer e da dor (demonstran-
do-nos pela centésima vez que as nossas classificações
são brinquedos infantis, fios de seda tecido entre os gra-
nitos da natureza); assim como o grotesco e o cômico
parecem folgar nos confins do belo e do feio, confun-
dindo-os um com o outro, com mão travessa.1

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A personagem de Geovane Sassá toma conta do ator, pos-
suindo seu corpo numa transmutação exuberante e esdrúxula como
a descida de uma pomba-gira ou a queda de um anjo. A Medusa de
Ébano possui uma força que se assemelha a um grito primal, telúrico,
dionisíaco. A Xuxa Negra dá à sua homônima um espelho circense: a
loira narcísica e ariana, ao tentar vender o mito da supremacia branca
num país mestiço, é subitamente colocada frente a frente com uma
imagem caricata e deformante de si mesma, mas que mostra a mo-
delo e dublê de artista na sua verdadeira face; a modelo “alemoa” é
denunciada, suas vísceras são postas à mostra. Fechou-se o ciclo. A
divindade africana lança uma luz desmistificante sobre a face da Eva
da burguesia brasileira, petrifica-se a megera. Aquilo que na moça
gaúcha era pura empulhação, sorriso de propaganda de creme den-
tal, manipulação mercadológica e ingenuidade calculada, ganha um
contraponto de impulsos vitalistas, convites indecorosos à fruição
imediata dos sentidos e volúpia das sensações mais lúbricas.
Exibindo seu corpo de ninfa multicolorida, cortesã apocalíptica
e sensual, nossa personagem remete a obras palpitantes de vida e
vigor como os quadros de Jackson Pollock; ela é, como as telas do re-
ferido pintor americano, uma rede intrincada de gotas, redemoinhos
e salpicos. “A pintura tem vida própria” - disse ele uma vez - “eu tento
deixá-la acontecer”. Geovane também poderia dizer o mesmo com
respeito às suas criaturas.
E a criatura em questão usa um óculos de armação antiga e
demodeé. São óculos de velha encarquilhada que escondem olhinhos
brilhantes de moça nova.
Sendo assim, a Xuxa Preta roda a baiana com a europeizada e
etnocêntrica vedete da TV.
A Xuxa Negra é santa e prostituta, homem e mulher, frágil e
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 29
sedutora, um misto de Marilyn Monroe e Benedita da Silva, e parece
ter nascido da conjunção carnal de Pelé e Hebe Camargo.
Ao apresentar-se, a Xuxa Preta evoca um clima de confraterni-
zação que também está presente, por exemplo, no rito do vodu, no
Haiti:
O vodu é, basicamente, a religião e o culto aos espíritos
ou divindades chamados loa. A classificação dos loas é
muito complexa, não somente por causa da grande di-
versidade de origem geográfica e étnica dos africanos
trazidos ao Haiti, mas também pela existência de uma
infinidade de divindades regionais ou locais.(...) Cada
loa tem sua morada particular: no mar, num rio, numa
montanha ou árvore, de onde vem para ajudar seus ser-
vidores fiéis, quando ouve suas orações ou o som dos
tambores sagrados pedindo a sua presença. Cada loa
tem também seu dia ou dias próprios durante a semana.
(...) As cerimônias do vodu são executadas em locais
abertos ao público.2

Igualmente são feitos às claras os rituais lúdicos da Xuxa


Afro. Podemos dizer que Geovane Sassá, também percussionista,
inconscientemente encarna um loa que sobrevive na sociedade de
consumo.
Quando achamos que já rimos da piada, a Xuxa Africana nos dá
um tapa de luva, transcendendo a herança católica de Minas Gerais:
ela rebola, nos remetendo ao homossexualismo baiano no tempo de
Momo. Digere Minas e silencia impávida como se quisesse nos devo-
rar, colocar-nos de volta para o útero. Uma música picante e, sarapa-
tética, espargirá energia como lança-perfume cintilante.
Só mesmo uma Xuxa Afrodescendente para nascer nos trópi-
cos e afugentar a tristeza destas plagas com uma descarga de alegria
tão vulcânica!
30 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
Uma Xuxa Preta está ligada ao espírito dionisíaco do carnaval,
afinal ela é intrinsecamente brasileira. Ela nos lembra do carnaval do
passado, expressão espontânea da vontade coletiva de libertar-se,
divertindo-se. Ela está ligada ao caráter dionisíaco e mesmo histéri-
co da festa carnavalesca (no sentido grego de rito coletivo uterino e
afrodisíaco) que imprimia à diversão um forte sentido de contestação
psicossocial. A personagem também estaria ligada à escatologia e ao
grotesco, no sentido que explicita Muniz Sodré:
A Escatologia implica numa atitude cultural com rela-
ção à história. A cultura oral brasileira foi marcada, des-
de as suas origens afro-indiano-portuguesas, por uma
Escatologia naturalista - que vê o homem como parte
de uma natureza manifesta em ritmos cíclicos, recorren-
tes. Como o homem estaria integrado organicamente
na natureza, qualquer desacerto, injustiça, aberração
do estado natural, remediável pelo culto ou pela magia.
(...) Essas escatologias influem poderosamente na ima-
ginação coletiva. O portador de deformação física, por
exemplo, é percebido historicamente como um desvio
da organicidade natural, como monstro (Teratos). Isto
gerou em nossa mitologia figuras como o lobisomem,
o mão-de-cabelo, etc. Ainda hoje, em cidades do inte-
rior do Brasil, o deformado físico (a mulher macaco, o
menino com cara de jumento, etc.) é vivido como um
fenômeno de origem sobrenatural – castigo dos céus –
e, às vezes, como espetáculo, já que pode ser exibido,
a dinheiro, em feiras, ou simplesmente vendido como
história na literatura de cordel. (...) O ethos da cultu-
ra de massa brasileira, tão perto quanto ainda se acha
da cultura oral, é fortemente marcado pelas influências
escatológicas da tradição popular. O fascínio pelo extra-
ordinário, pela aberração, é evidente nos programas de
variedades (fatos mediúnicos, aberrações físicas como

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 31


as irmãs siamesas, aleijões, flagelações morais, etc.). A
esta altura a Escatologia consegue juntar os dois senti-
dos: o místico e o coprológico.(...) Em Medicina, o ter-
mo (Escatologia) tem sentido coprológico – é o estudo
dos excrementos.3

É desta tradição popular que a Xuxa Preta, vista pelo público


dos programas onde se apresenta como bizarra ou aberrante, se
alimenta e se insere.

Notas:
1. GRONDIM, Marcelo. Haiti, Cultura, Poder e Desenvolvimento.
2. MANTEGAZZA, Paulo. A Fisiologia do Belo.
3. SODRÉ, Muniz. A Comunicação do Grotesco.

32 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


POR UmA CRíTICA DA PERDIÇÃO

INTRODUÇÃO

Que fim levou a crítica literária? Esta pergunta nos remete à si-
tuação das artes - e em especial da literatura - neste final do século XX.
Leyla Perrone-Moisés introduz a questão: hoje, em tempos ditos pós-
-modernos, ela (a crítica literária) anda um pouco anêmica, reduzida
ao rápido resenhismo jornalístico, necessário, mas não suficiente.1
A questão da crítica literária é colocada por Leyla Perrone-Moi-
sés como inserida dentro de uma problemática maior, a da luta entre
a cultura e a descultura pura e simples. Segundo ela,
nos campi universitários, os teóricos acadêmicos mo-
dernos discutem com os acadêmicos pós-modernos,
os literários com os culturalistas, os machistas com as
feministas, o vale-tudo ideológico e estético prospera
e aufere lucros, indiferente a qualquer teorização ou
crítica. (...) As querelas acadêmicas relativas à cultura
apenas refletem parte de uma luta maior, que se trava
em âmbito mundial, e do resultado da qual dependem
coisas fundamentais que, se formos ‘pós-modernos’,
não nomearemos, já que têm a ver com metanarrativas
e projetos. Coisas como os rumos da história e da es-
pécie humana.2

Farei mais adiante uma análise do artigo: A Contestação da


Harmonia, publicado no número 0, da revista Orobó. O artigo entra-
rá neste trabalho como amostra da fragilidade e do novo-riquismo da
crítica nesses dias “pós-modernos”; pretendo tirar dele alguns tópicos
para discussão. O artigo começa sob o signo das seguintes epígrafes:
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 33
Nada há de mais derrotado, no mundo contemporâ-
neo, do que a poesia. Sem ‘audiência’ e sem recepção,
vaga - no campo das artes e no mundo real - como um
fantasma ou senha de uma seita em extinção, sem que
ninguém a entenda ou organize.3
Neste momento, há a tendência de um ‘retorno à or-
dem’ como se dizia antigamente. Vejo que todos os
setores estão em crise. Do setor filosófico ao setor li-
terário. Vejo a tentativa de revalorizar modos de pen-
samento prevalentemente religiosos, que para mim são
superados.4

A primeira parte do artigo é uma introdução deslocada que dis-


cute a relação computador/poeta no mundo atual, citando muitos
autores. Deixando de lado esse coquetel teórico, parto diretamente
para a discussão do segmento seguinte.
Apesar de Dependente...
Anelito frisa, num segmento logo adiante, a necessidade de
Oswald, e elogia a ruptura de 22:
O grande salto dos modernistas de 22 foi justamente no
sentido de romper de vez com esse impasse - que nun-
ca teve sentido - entre arte e realidade brasileira (...).
Nunca é demais lembrar que o método utilizado tradi-
cionalmente para se pensar a cultura brasileira - contra
o qual Oswald foi o primeiro a se voltar radicalmente - é
europeucentrista.5

Aqui, Anelito parece ignorar que o modernismo foi a eclosão de


um novo modo de interpretar o Brasil, incluindo o folclore, a negritu-
de, a cultura popular, aspectos até então abordados marginalmente
por Lima Barreto, Graça Aranha e Sílvio Romero, e que ficam então
no proscênio. Seu intento era colocar São Paulo em contato com
as vanguardas estéticas, introduzindo-as em nosso país, elaborando
34 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
uma teoria singular para poder incorporar as suas criações dentro de
um movimento universal. Oswald, no entanto, representa um marco
no modernismo, e em sua riqueza pode ser reinterpretado, como faz
Eliana Lourenço:
É dessa canibalização da língua e da cultura estrangeira
que o “mau selvagem” vai tirar sua força: apropria-se de
uma “língua maior” para produzir uma “literatura me-
nor” no sentido dado por Deleuze e Guattari; recolhe
no acervo das culturas os textos que lhe agradam, des-
territorializando-os para dotá-los de novas significa-
ções.6

O escritor Silviano Santiago, que também atua como crítico


de renome internacional, adotou no artigo: Apesar de Dependen-
te, Universal uma posição que julgo próxima da Antropofagia e do
concretismo. Desejando escapar às dicotomias localismo versus cos-
mopolitismo, particular versus universal, negou tanto o nacionalismo
brasileiro quanto a sofisticada defesa de idéias estrangeiras, preten-
dendo adotar uma posição intermediária.
O abandono do nacionalismo é aconselhado pelo crítico e
escritor mineiro para que possamos superar a erudição onomásti-
ca, o “enciclopedismo europeocêntrico” que assola nossa produção
cultural de país dependente. A explicação para a construção de nós
mesmos surge através do conceito de entre-lugar, inventado por
Santiago em 1969: nem cartilha populista, nem folclore curupira - eis
as polarizações que devem ser evitadas a bem de um socialismo de-
mocrático. Nem o paternalismo, nem o imobilismo.7 Santiago repu-
dia simultaneamente o nacionalismo trabalhista (de Vargas, Brizola,
Jango, Arraes) e o nacionalismo verde-amarelo (de Plínio Salgado,
Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia), que Santiago analisa como
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 35
duas posturas opostas mas igualmente equivocadas. O nacionalismo
trabalhista culpava os estrangeiros pelos males nacionais, negando a
luta de classes que se processa dentro do Brasil subdesenvolvido. Já
o verde-amarelismo era um nacionalismo católico, messiânico e pa-
triarcal, que propunha um Brasil “com palmeira e sem luta de classes”.
Santiago combateu o nacionalismo de qualquer coloração política,
medida que, aparentemente, o crítico via (e provavelmente ainda vê)
como essencial para efetivar nossa modernização. O nacionalismo
lhe parece sempre escamotear a dívida para com as culturas domi-
nantes, tendendo a negar a dependência. Creio que o essencial a ser
notado, no trecho de Silviano Santiago acima citado, é a dissociação
do nacionalismo e do marxismo que fazia parte de seu receituário,
enquanto o cerne da questão se deslocava para a dicotomia centro
versus periferia. A reviravolta que Silviano Santiago faz é uma afirma-
ção do artista periférico:
Subversão esta que não é um jogo gratuito de cunho
nacionalista estreito, tipo integralismo dos anos 30, mas
compreensão de que, apesar de se produzir uma obra
culturalmente dependente, pode-se dar o salto por cima
das imitações e das teses enciclopédicas etnocêntricas e
contribuir com algo original.8

Aparentemente, Silviano Santiago desejava naquele ano de


1969 constatar a “morte do populismo”, em termos semelhantes aos
que Caetano Veloso usa quando se refere àquele período em depoi-
mento recente:
o golpe no populismo de esquerda liberava a mente
para enquadrar o Brasil numa perspectiva ampla, permi-
tindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica,
mística, formalista e moral com que nem se sonhava.9

36 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


Tentando aproximar-se das idéias de Silviano Santiago e do
tropicalismo, Anelito considera que o pensamento latino-americano
deve ser barroco, ou seja, dentro dele podem conviver autocontra-
dições oportunistas: Chacrinha pode se misturar com Ezra Pound, o
mau-gosto pode conviver com a erudição:
Marca, no Brasil, de uma verdadeira necessidade da de-
sarmonia para continuar suportando a vida neste conti-
nente, vida esta comumente miserável em quase todos
os países, é o carnaval grandioso do Rio de Janeiro a
poucos metros das grandiosas favelas, a alegria imen-
sa dos baianos sob a pobreza assustadora do nordeste,
enfim, essa eterna convivência entre o mais feio e o mais
belo, o luxo das novelas da Globo e o lixo da realidade
social.10

Essa dicotomia, esses contrastes que observamos no Brasil não


são no texto acima mostrados como fruto de um processo histórico,
e aparecem em outros contextos pela América Latina afora, não são
inexplicáveis o Brasil não é a pátria do absurdo e do nonsense, ao
contrário do que pensa Anelito, que desconhece o processo histórico
global que está em curso.
Embora o pensamento de Oswald pareça ter uma ambivalência
significativa, Eliana Lourenço esclarece:
É na idéia do bárbaro ou do selvagem que Oswald ope-
ra uma reversão da imagem europeia, invertendo-lhe
os valores, numa reação em que entram amor e ódio,
homenagem e dessacralização. O ‘bárbaro tecnicizado’
mantêm sua rebeldia inata ao rejeitar toda forma de ca-
tequização, mas absorve ‘o inimigo sacro’, isto é, prati-
ca uma antropofagia eletiva, ao mesmo tempo vingança
e homenagem: ‘uma civilização que estamos comendo,
porque somos fortes e vingativos como o jabuti’ (...).

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 37


Isto é, o traço que nos une seria a bulimia, a violência, a
“reação contra” à maneira do trickster jabuti (...) Mais
ainda, o marco zero da cultura brasileira estaria na ‘de-
glutição do bispo Sardinha’, ou seja, no primeiro ato de
apropriação agressiva da civilização europeia.11

Os autores concretistas e tropicalistas brasileiros se apropria-


ram da tradição ocidental, e a tomaram para criar novas tradições,
incorporando suas criações dentro de um processo universal: O pro-
dussumo, como o definiu Décio Pignatari: a poética de invenção no
consumo de massa, para além do ceticismo adorniano...12
Cumpre refletir sobre a produção que resultou e sobre os des-
dobramentos desse processo no Brasil. Caetano mantêm uma curio-
sa discussão com o psicanalista italiano Contardo Calligaris sobre o
projeto antropofágico-oswaldiano.
O psicanalista italiano Contardo Calligaris escreveu, no
início dos anos 90, um livro sobre o Brasil que coloca a
questão da antropofagia cultural, que ele encontrou dis-
seminada nos meios psicanalíticos brasileiros, como um
mito que, além de nocivo, é sintoma de nossa doença
congênita de não-filiação, da ausência de um ‘nome do
pai brasileiro’, da falta de um ‘significante nacional bra-
sileiro’. (...) Trazer de volta – como ele fez – ao mera-
mente orgânico o ato antropofágico ritual que Oswald
emprestava dos índios, (comer partes do corpo do ini-
migo admirado para adquirir-lhe a bravura, a destreza e
as virtudes morais) como receita de um comportamen-
to criativo em tudo diferente do que frequentemente se
faz no Brasil (...) era forçar a mão para, numa sanha
diagnosticadora, meter num mesmo saco a mediocrida-
de dos misturadores de informações mal assimiladas e o
gesto audaz de um grande poeta. (...) O ‘antropofagis-
mo’, como Calligaris prefere, teria surgido como solu-

38 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


ção para esse problema. E é por ele criticado duramente
por substituir pelo tubo digestivo (que todos sabem
onde vai dar...) o UM que o Brasil nunca conseguiu se
fazer. E essa substituição, afinal, seria uma sugestão do
colonizador ao colono no sentido de tomar como UM
nacional o corpo escravo que se oferece: o Brasil se-
ria assim exótico não só para os turistas como também
para os brasileiros.13
MODERNIDADE E CÂNONE
Anelito tematiza, no segmento seguinte, que se intitula “o tem-
po dos contrários”, a própria Modernidade:
Antes da modernidade, o tempo era concebido como
uma estrutura linear, formada por passado, presente e
futuro. Era um tempo sistematizado a partir de uma vi-
são linear sobre a história, fundamentada no historicis-
mo hegeliano, o qual se contentava em ‘estabelecer um
nexo causal entre vários momentos da história’, como
disse Walter Benjamim.14

O conceito de modernidade utilizado no parágrafo acima é


questionável se avaliarmos que o pensamento hegeliano, datado do
início do século XIX, consolida-se como a grande realização do pro-
jeto do racionalismo e do iluminismo. Hegel é contemporâneo da
revolução francesa e das guerras napoleônicas. A revolução francesa
é o marco da Idade Moderna para o âmbito político, econômico,
jurídico, e outros, mas Hegel é o marco da modernidade filosófica.
Formulações hegelianas, como “o real é racional e o racional é real”,
mostram o teor de seu pensamento. Fazendo uma crítica defasada e
confundindo moderno e pós-moderno, Anelito adere ao irracionalis-
mo:
Na Modernidade, não tem sentido a linearidade, a co-
erência, a pureza, enfim, todo o bom senso cartesiano,

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 39


totalmente europeucentrista. Os ‘agoras’, instantes
sempre diferentes, fazem da Modernidade um momen-
to, estrutura movente, em constante transformação,
‘constelação’. Então, pode-se pensar na Modernidade
como momento de diferenças porque, naturalmente,
as ‘estrelas’ dessa constelação, os dados, são sempre
diferentes.15

O panorama que vemos é nebuloso, o conceito de pós-mo-


derno, escorregadio, mas com certeza a modernidade, se a identifi-
carmos com o projeto racionalista/iluminista, está em xeque nos dias
atuais. Octavio Paz, citado pelo próprio Anelito, define que
“hoje assistimos ao crepúsculo da estética da mudança”
e “a Modernidade está ferida de morte: o sol do progres-
so desaparece no horizonte e ainda não vislumbramos
a nova estrela intelectual que há de guiar os homens”.

O ensaísta niilista, no entanto, encontra nesta posição de Paz


uma visão finalista da história, e julga que Paz é moderno e contradi-
tório nas suas definições:
Há uma clara contradição no fundo desta visão de Paz
que faz com que ela soe ainda mais instigante. Esta
contradição advém de um tratamento da Modernidade
como algo pertencente ao passado (“a Modernidade se
identificou com a mudança”). Em seguida, até mesmo
em decorrência da colocação da Modernidade no pas-
sado, advém um olhar finalista, portanto historicista, so-
bre a Modernidade (“Hoje assistimos ao crepúsculo da
estética da mudança”) (...). Analogicamente, isto pode
significar uma tentativa de recuperação da harmonia
com a qual a Modernidade rompeu.(...) Prova-confor-
16
to: ainda estamos no espaço da Modernidade.

Minha conclusão é a seguinte: embora existam noções diferen-


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ciadas de pós-moderno (os europeus o usam se referindo a tudo que
ocorreu depois das grandes guerras), é melhor utilizar o termo do
que avaliar que o momento atual ainda é o da modernidade. Me-
lhor dizer que o projeto modernista permaneceu inconcluso, e gente
como Anelito pretende preencher os interstícios com formas culturais
de origem norte-americana. No segmento seguinte, Anelito procura
criticar, via Octavio Paz, o conceito de pós-modernismo:
Vê-se, (segundo a visão de Paz), portanto, que pós-mo-
dernismo não passa de mais uma estratégia discursiva
que pensadores anglo-americanos colocam em prática
atualmente para se manterem no poder, determinando
padrões estéticos para o resto do mundo. A ignorância
da antecipação do modernismo em língua espanhola
não é gratuita, mas proposital, sendo, portanto, uma
decisão política, uma conseqüência do ‘etnocentrismo’.
Anglo-americanos querem institucionalizar a história
deste século, através de todos os meios, como sempre
fizeram: eles entre eles sobre eles como eles para eles.
Não lhes interessa o que se passou em outros lugares
do mundo simplesmente porque esses lugares não exis-
tem, não podem existir realmente, devem ser ficções.
Muitos insistem em enxergar esta verdade talvez com
medo de se indispor com o ‘pai’ - os Estados Unidos.
Duas posturas críticas - uma no plano da literatura e ou-
tro no da filosofia - revelam a face imperialista de norte-
-americanos neste fim-de-século, a ‘arrogância cultural’
e ‘insensibilidade histórica’ de que fala Paz. A primeira é
de Harold Bloom, exposta com precisão no seu O Câ-
none Ocidental (trad. Marcos Santarrita, RJ: Objetiva,
1995). A segunda é de Francis Fukuyama, exposta no
seu O Fim da História e o Último Homem.17

Aqui vale a pena anotar: Fukuyama é de origem nipônica, Bloom

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 41


é de origem judaica. Os dois falam a partir de um ponto de vista nor-
te-americano, mas suas ideologias também são diferentes: Bloom é
liberal e religioso; Fukuyama prescreve que já que aconteceu a vitória
da democracia liberal ocidental, esta seria “o ponto final da evolução
ideológica da humanidade”. É um político com formação filosófica
embasada em Hegel e Kojève. Bloom se aproxima do esteticismo de
Oscar Wilde, e do liberalismo de Emerson; Fukuyama não tem a arte
como preocupação evidente. Atacando tanto Hegel quanto o con-
ceito de pós-moderno, colocando-se numa posição comodamente
confusa, o pretenso “ensaísta” prossegue:
A visão de Bloom e Fukuyama é enraizada no historicis-
mo, o que os leva a reclamar uma ordenação das coi-
sas, uma disciplina, uma acomodação, uma harmonia,
portanto. Ambos se colocam na retaguarda da Moder-
nidade: o lugar do discurso de Bloom é o cristianismo,
enquanto o de Fukuyama é a filosofia hegeliana - todos
os dois totalmente ‘enterrados’ nas crenças fundadoras
da civilização ocidental.18

Bloom é liberal norte-americano, preocupado em ser “sacerdo-


te do estético”. Fukuyama propõe uma fusão inegavelmente original
entre as idéias de Hegel e Kojève:
De Hegel (Fukuyama) aproveitou dois elementos: o
constitucionalismo da Rechtsphilosophie – que, como
vimos, pode ser corretamente denominado o liberalis-
mo de Hegel; e o otimismo de sua concepção do pró-
prio fim, como a concretização da liberdade na Terra.
O primeiro destes elementos foi sempre estranho a
Kojève, para quem o liberalismo - político ou econômi-
co - era uma relíquia do passado. O segundo animou a
interpretação original de Kojève do seu tempo, quando
procurou uma estrada socialista para o domínio da liber-

42 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


dade mas a abandonou, trocando-a pela ironia de sua
visão final da expansão do capitalismo. De Kojève, por
outro lado, Fukuyama tomou o sentido da centralidade
do hedonismo do moderno consumo, e da caducidade
da significação tradicional do Estado nacional -- temas
inteiramente ausentes em Hegel. A síntese resultante é
original, reunindo a democracia liberal e a prosperidade
capitalista num enfático nó terminal.19

Os dois pensadores, portanto, têm interesses políticos diver-


sos. A minha crítica a Bloom passa por um viés diferente do irrespon-
savelmente adotado por Anelito. Bloom nega ser nacionalista, embo-
ra seu livro seja marcado por um certo dirigismo que o leva sempre
a voltar às culturas anglo-saxônicas. Em tese, porém, recusa tanto o
etnocentrismo quanto o nacionalismo: “A defesa do Cânone Ociden-
tal não é de modo algum uma defesa do Ocidente ou uma empresa
nacionalista”.20
Igualmente nem é apocalíptico, não segue as ideias dos pen-
sadores da Escola de Frankfurt nem é marxista, não aprofunda con-
ceitos de cultura de massa nem de indústria cultural. Apega-se ao
liberalismo, exerce sua liberdade de expressão, opina, demonstra pre-
ferências pessoais, acusa os adversários de formarem uma “Escola do
Ressentimento”. Mais adiante, comenta que muitos dos pensadores
desta “Escola” foram seus alunos; logo, podemos supor que Bloom
também escreve o Cânone Ocidental movido pelo ressentimento
contra seus ex-alunos, que o contrariaram, que distorceram a lição.
Suponho também que a mesma crença no liberalismo que
possui Harold Bloom foi reformulada pela vertente multiculturalista.
O fato de que seus ex-alunos fazem desdobramentos das mesmas
ideias liberais desagradou profundamente Bloom, liberal e religioso

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 43


ao mesmo tempo.
O objetivo de Bloom é atingir seus ex-alunos, contrapor-se a
eles e aos que os consagraram na mídia. Ele demarca o território e
começa o ataque:
A crítica literária é uma arte antiga, seu inventor, segun-
do Bruno Sell, foi Aristófanes, e inclino-me a concordar
com Heinrich Heine em que ‘houve um Deus, e cha-
mava-se Aristófanes’. A crítica cultural é mais uma tris-
te ciência social, mas a crítica literária, como uma arte,
sempre foi e sempre será um fenômeno elitista.(...) O
que mais me interessa é a fuga ao estético entre tantos
de minha profissão, alguns dos quais pelo menos co-
meçaram com a capacidade de sentir o valor estético.
(...) Por baixo da superfície de marxismo, feminismo e
neo-historicismo acadêmicos, continua a correr a antiga
polêmica do platonismo e a igualmente arcaica medicina
social aristotélica.21

A esses argumentos de Bloom, Anelito responde o seguinte:


Tudo o que era demasiadamente velho - e por isto
mesmo recebeu um ‘basta’ da Modernidade - volta no
mesmo discurso de Harold Bloom: a preocupação com
o que o outro vai ler, como se ler fosse uma obriga-
ção de todos; a preocupação com o passar do tempo
(“tão tarde na história”); o pessimismo em relação ao
futuro, estimulado pelo Apocalipse; a defesa do puris-
mo poético; a filiação clássica via Dante; o nacionalis-
mo e, finalmente, a inquietação em torno da idéia de
morte. Desta forma, Bloom se coloca totalmente fora
da Modernidade, foge em direção ao passado em busca
da ordem perdida, aquela coerente com a condição de
potência econômica dos Estados Unidos e de potência
cultural da língua inglesa. O fundamento desta visão fi-
nalista aparece na ressistematização da tese do fim da

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história por Fukuyama. Claro que os bloomianistas não
concordam com esta afirmação; provavelmente diriam
que ‘isso reduz o estético a ideologia’. Não penso que
‘reduz’ porque todo estético é irredutível a ideologia, já
que ideologia é uma negação do pensamento instituí-
do, da ‘língua dominante no tempo e lugar do artista’;
não há estético sem ‘essa trapaça salutar, essa esquiva,
esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do
poder, no esplendor de uma revolução permanente da
linguagem’, para dizer com Roland Barthes (Aula, trad.
Leyla Perrone-Moisés, SP, Cultrix, 1992, p. 16). O estéti-
co já é, portanto, uma espécie de ideologia, no sentido
de ser parcialmente determinado por um mal-estar na
história e incorporar uma inquietação que é política,
uma vontade de tensionar vozes para destruir a Verdade
instituída(...). Ideologia de uma contra-ideologia que
luta pela ‘subversão de toda ideologia’, eis o texto, eis
o estético.22

Dito isso, Anelito se alinha na dita “estética da mudança”,


apresentando também exigências ideológicas, estabelecendo como
único critério suficiente para a aprovação do estético a ruptura com o
instituído. O que “Alienito” define como sendo aquilo com que a mo-
dernidade rompeu, no fim das contas, é a própria modernidade – é
ele próprio um irracionalista que rompeu com a brasilidade, a tradição
enquanto história dos estilos, e quem sabe até com Afonso Ávila.
Prefiro criticar The Western Canon por um viés menos vio-
lento do que o de uma contra-ideologia que visaria, pelo que foi dito
acima, uma atitude semelhante à proposta da contracultura.
O que incomoda em Bloom é o individualismo arrogante mes-
clado a uma impregnação religiosa em seus textos, a partir da palavra
cânone, usada com freqüência por religiosos para definir aquilo que
foi consagrado. O satírico Aristófanes é chamado de Deus, Shakes-
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 45
peare é capaz de iluminar quaisquer teorias contemporâneas, sejam
elas o marxismo, o estruturalismo ou o neo-historicismo. Bloom
acredita que Shakespeare contêm todas estas teorias, pretendendo
então pensar Freud a partir de uma visão shakespeariana. Tal inten-
to é problemático, principalmente se fixarmos que Shakespeare é um
artista, não um pensador, e ele não produz conceitos como Freud.
Freud, Nietzsche, Marx, Hegel e outros produzem conceitos que lhes
permitem analisar a realidade. Em Freud estes conceitos seriam, por
exemplo, Eros e Thanatos. Quais são os conceitos de Shakespeare?
Shakespeare só produz situações que podem ser utilizadas por meio
da alusão. Neste sentido, Bloom se mostra anti-historicista – e a par-
tir desta postura se permite cometer anacronismos. Seu objetivo, ao
criticar o historicismo, parece ser o de preservar o estético, criticando
certas atitudes da esquerda norte-americana:
O professor Frank Lentricchia, apóstolo da mudança
social através da ideologia acadêmica, conseguiu ler
“Anedocte of the Jar” (“Historinha” do Jarro), de Walla-
ce Stevens, como um poema político, um poema que
expressa o programa da classe social dominante. A arte
de arrumar um jarro estava, para Stevens, aliada à arte
do arranjo de flores, e não vejo porque Lentricchia não
deva publicar um modesto volume sobre a política do
arranjo de flores, sob o título Ariel e as Flores de Nosso
Clima.23

A esquerda americana (principalmente a chamada New Left),


abdicou de fazer uma revolução e passou a priorizar questões como
ecologia, feminismo, Gay Power, Black Power, temáticas que entra-
ram em voga nos anos 60. Bloom toma um caso particular e critica
um professor esquerdista, ironizando sua preocupação mais ideológi-
ca que estética. Mas muitas questões permanecem em aberto, diante
46 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
das idéias de Bloom. Dou o seguinte exemplo: seria possível, então,
fazer uma leitura machadiana de Roberto Schwarz? Machado também
conteria todos literatos e críticos brasileiros posteriores? Ou Shakes-
peare é que conteria Machado? Está subentendido em Bloom que to-
das as literaturas ocidentais periféricas (inclusive a brasileira) estariam
contidas no Cânone Ocidental, confirmando assim nossa situação de
periferia do Ocidente. Como pensar a problemática das literaturas
ocidentais periféricas? Estas questões permanecem menosprezadas,
assim como Machado de Assis foi menosprezado.
Harold Bloom define, como cânone hispano-português, os
seguintes autores: Borges, Neruda e Pessoa. Em seguida afirma que
eles seriam desdobramentos da poética de Walt Whitman. A nós,
brasileiros, Bloom desconsiderou bastante ao escolher o português
Fernando Pessoa para o cânone da língua portuguesa. O que é mais
suspeito e particularmente irritante é que Bloom escolhe estes au-
tores considerando Walt Whitman como “pai simbólico” de todos.
Ressalta, aliás, o fato de que Borges e Pessoa são bilíngues, falam e
escrevem em inglês desde cedo, e têm sólidas ligações com o mundo
anglo-saxônico.
A cultura francesa é representada no Western Canon por
apenas três autores: Molière, Montaigne e Proust. Bloom demons-
tra antipatia pela psicolinguística de Lacan, e relativiza a importância
francesa em prol dos anglo-americanos. Bloom, embora se pretenda
não-nacionalista, acaba estabelecendo um “centro”, um núcleo do
Ocidente na cultura norte-americana e inglesa. As preferências que
daí decorrem menosprezam a literatura brasileira, que ficou relegada
a um mero apêndice da literatura portuguesa, por sua vez apenas um
desdobramento da literatura norte-americana. Diante de uma análise
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 47
mais rígida, emerge um componente tipicamente norte-americano:
Bloom canoniza também a visão de centro do mundo que os ame-
ricanos do norte têm. O fato de Harold Bloom estabelecer Fernan-
do Pessoa como paradigma literário da língua portuguesa coloca
a seguinte questão: para nossa literatura dependente, o paradigma
atropela nosso autor de maior grandeza, e nos condena a sermos
subsidiários de Portugal, sem nos ligarmos diretamente ao “centro”
anglo-saxônico. Nossa originalidade nacional foi moldada historica-
mente pelo fato de termos sido colônia de um país periférico. Nossa
literatura continua, do ponto de vista do cânone fixado por Bloom,
dependente de uma literatura de periferia. Bloom diz de Borges o
seguinte:
A avó paterna de Borges era inglesa; a biblioteca de seu
pai era grande e concentrava-se em literatura inglesa.
Em Borges, temos a anomalia de um escritor hispâni-
co que leu Dom Quixote pela primeira vez em tradução
inglesa, e cuja cultura literária, embora universal, perma-
neceu inglesa e norte-americana em sua sensibilidade
mais profunda.24

Mais adiante, após comentar a recepção que teve Whitman


na América Latina, comparando-o a Neruda, Borges, Paz, Vallejo,
Bloom traz à baila o nome de Fernando Pessoa (1888-1935). Em se-
guida, emenda sua teoria:
Pessoa não era louco nem ironista; é Whitman renasci-
do, mas um Whitman que dá nomes ao ‘eu’, ao ‘verda-
deiro eu’, ao ‘eu mesmo’, e escreve maravilhosos livros
de poesia por todos os três, além de um volume separa-
do sob o nome de Walt Whitman.25

Nas linhas anteriores, Bloom mostra Pessoa como também


sendo um caso anômalo:
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Pessoa, nascido em Lisboa e descendente pelo lado pa-
terno de conversos judeus, foi educado na África do Sul
e, como Borges, tornou-se bilíngue. Na verdade, até os
vinte e um anos escreveu poesia apenas em inglês. Em
eminência poética, equipara-se a Hart Crane, a quem se
assemelha de perto, sobretudo em Mensagem, uma se-
quência poética sobre a história portuguesa semelhan-
te a Bridge (Ponte) de Crane. (...) A lição última de
influência de Whitman - sobre Borges, Neruda, Paz e
tantos outros - talvez seja que só uma originalidade tão
ofensiva quanto a de Pessoa pode esperar contê-la sem
risco para o eu ou eus poéticos.26

Mas melhor a anomalia portuguesa do que a completa mar-


ginalidade a que relegou o Brasil o cânone norte-americano. Bem
diversa é a opinião de Salman Rushdie, que considera Machado de
Assis um de seus antecessores:
I stress this is only one of many possible strategies. But
we are inescapably international writers at a time when
the novel has never been more international form (a
writer like Borges speaks of the influence of Robert Lou-
is Stevenson on his work; Heinrich Böll acknowledges
the influence of Irish literature; cross-pollination is ev-
erywhere); and it is perhaps one of the more pleasant
freedoms of the literary migrant to be able to choose
his parents. My own - selected half consciously, half not
- include Gogol, Cervantes, Kafka, Melville, Machado
de Assis; a polyglot family tree, against which I measure
myself, and to which I would be honoured to belong.27

A polarização que se deu entre Harold Bloom e os multicul-


turalistas após o lançamento do Western Canon teve repercussões
internacionais. Harold Bloom foi também criticado no Brasil, mas não
por marginalizar a literatura do país, como acima observei. Bloom é
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 49
um prato cheio para multiculturalistas e feministas, por ter posições
que Leyla Perrone-Moisés define da seguinte maneira:
Na defesa do cânone e da tradição ocidentais, Bloom
mistura atitudes conservadora-reacionárias com atitu-
des resistentes, argumentos de caráter universal e opini-
ões arrogantemente individuais. Sua postura é apocalíp-
tica: “Tudo desmoronou, o centro não resistiu, e a pura
e simples anarquia se desencadeia sobre o que antes se
chamava ‘mundo culto’ ” (p.11) . Os Estados Unidos,
para ele, são um ‘país ocupado’ por feministas e multi-
culturalistas (p.24). Por aí já se vê o teor de sua diatribe.
Mas ele procura resguardar-se das possíveis acusações,
colocando-se numa aparente posição neutra: ‘Eu não
me preocupo com o atual debate entre defensores direi-
tistas do Cânone por seus supostos (e inexistentes) va-
lores morais, e a rede acadêmica que apelidei de Escola
do Ressentimento, que deseja derrubar o Cânone para
promover seus supostos (e inexistentes) programas de
transformação social. (p.13) . Ora, o livro todo prova
que ele se preocupa, e muito.28
Já a análise de Marcelo Coelho, articulista da Folha de São
Paulo, ressalta o individualismo exacerbado de Harold Bloom e a ar-
bitrariedade de seu cânone. O jornalista e crítico arrisca uma inter-
pretação: Bloom é um personagem de si mesmo, esta é a sua maior
vitória em termos de valor estético:
Trata-se de um ‘cânone’ altamente arbitrário, portanto.
Acontece que Bloom é um individualista ferrenho, um
emersoniano dos mais azedos. A escolha subjetiva é
tudo, desde que a pessoa a fazer as escolhas seja ‘forte’,
como ele gosta de dizer. Se fui arbitrário, se escolhi uns
e não outros, pouco importa, pois quem está escolhen-
do sou eu. Muito bem, se o autor estivesse publicando
uma coletânea de ensaios, do gênero ‘my favourite au-

50 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


thors’. Só que o livro de Bloom se apresenta como um
‘cânon’ – mais o ‘Cânon de Bloom’ do que o ‘Cânon
Ocidental’, como vimos – e, além disso, como uma His-
tória da Literatura. (...) Desde ‘A Angústia da Influência’
(Imago), seu mais poderoso livro, Bloom descobriu um
método genial de fazer crítica literária. A obra de um
poeta tem como assunto, na verdade, a obra de um an-
tecessor. Cada autor ‘forte’ está envolvido num conflito
com a tradição. É uma perspectiva iluminadora, em es-
pecial se levarmos em conta os hábitos da crítica literária
americana anterior a Bloom. Predominava o interesse
pelo ‘texto em si’ (...). Bloom contestou violentamente
este método. Não existem textos, só personalidades au-
torais em conflito, e entre elas, acima de tudo, a nossa
própria personalidade. (...) ‘O Cânone Ocidental’ mos-
tra o poder estético de um autor não apenas como o
poder de reagir a obras anteriores, mas também como
o poder de criar realidades, ou melhor, personagens ou
problemas, incontornáveis para as gerações seguintes.
(...) E, nesse sentido, talvez este livro de Bloom tenha
conseguido um êxito estético, segundo seus próprios
parâmetros. Criou, mais do que nunca, um personagem
literário: o próprio Bloom, que aparece como uma mis-
tura de Rei Lear, traído pelos discípulos de esquerda, e
de Falstaff, hedonista sarcástico (...). Não há textos; só
há uma personalidade neste livro, e é uma personagem
fictícia, a de um rabugento Dr. Johnson, de um Jó des-
graçado, de um Dom Quixote acadêmico, de um Whit-
man pessimista, ou qualquer outra coisa.

O importante para a crítica literária brasileira é avaliar, então,


o cânone estabelecido por Harold Bloom apenas como uma escolha
pessoal, centrada no mundo literário anglo-saxônico. Trata-se do câ-
none de Bloom, de maneira alguma o “cânone ocidental”.
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 51
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar, subscrevo alguns trechos publicados no jornal
literário Blau, de Porto Alegre:
Nos dias de hoje, quer dizer, depois de 1970, mais ou
menos, há uma grita generalizada dos autores com a
crítica literária de jornal no Brasil. Falta espaço, os críti-
cos são incompetentes, não têm delicadeza, etc., por aí.
Verdade? Em termos bem amplos, sim. De fato, a litera-
tura tem hoje menos espaço na imprensa do que já teve.
Até os anos 60, cada jornal que quisesse ser jornal tinha
lá seus críticos, seus colaboradores, seus suplementos,
que gastavam grandes quantidades de papel para tecer
comentários sobre romances, poesias, contos. Mas aí
é preciso relativizar a coisa para o contexto: também a
literatura tinha outro lugar no mundo. Imagine que não
havia computador, Internet, tevê a cabo, vídeo caseiro,
sequer redes nacionais de tevê; e as camadas ilustradas,
diferentemente de hoje, encontravam na literatura não
só o lazer, que hoje migrou para outros meios, como
também um fator de conhecimento do mundo.30

O trecho do professor Fischer acima citado resume uma das


razões que levaram ao sumiço da crítica literária: a perda de status
social da cultura humanística, com o subseqüente deslocamento da
literatura de sua posição anterior para uma mais retraída e modesta.
Outro autor se inclina sobre o mesmo tema, com uma perspectiva
diferente:
A crítica literária brasileira encontra-se em estado de
catalepsia. O tempo dos escritores parece condenado,
não o dos livros. Assim como as estrelas de hoje são as
top-models, paradigmas da aparência em oposição ao
conteúdo, que até podem possuir sem precisar demons-
trar, os autores admirados e disputados pelas editoras

52 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


brasileiras são cada vez menos os profissionais da prosa
literária e cada vez mais as celebridades: humoristas e
apresentadores de programas de televisão, atores, can-
tores, compositores de música popular e jornalistas.
Gente conhecida e com espaço garantido de divulga-
ção. (...) A mídia, que raramente se autodenuncia, tor-
nou-se cúmplice da penúria intelectual e das fórmulas fá-
ceis em literatura. Práticas desta época em que pensador
é o Gabriel. Os gurus da era diet fazem os seguidores
sentirem-se brilhantes graças à utilização de recursos es-
tilísticos que simulam complexidade ao alcance de men-
tes esquálidas. E viram gênios da classe média. (...) Até
quando os leitores terão de suportar o duelo entre os
vendedores de gadgets e os filhos da sínquise? Precisa-
-se, com urgência, de uma crítica da perdição.31

A crítica literária no Brasil, me parece, ficou limitada a um ni-


cho, restrita a um segmento do público. Tentei neste trabalho esbo-
çar alguns tópicos importantes para a prática da crítica literária (mo-
dernidade e pós-modernidade, herança antropofágico-oswaldiana,
discussão do cânone ocidental). Concluo concordando com o pro-
fessor Fischer: é necessária uma crítica que enfrente as celebridades
da mídia, que apelam ao consenso com obras medianas, e também
aos eruditos estéreis.

REfERÊNCIAS BIblIOgRáfICAS
1. PERRONE-MOISÉS. Leyla. Folha de São Paulo, 25/09/1996.
2. PERRONE-MOISÉS. Leyla. Altas Literaturas. São Paulo, Companhia das Le-
tras, 1998. p. 203.
3. BONVICINO, Régis. In: Revista Orobó, ano I, número 0, 1997, p. 58.
4. ARGAN, Giulio Carlo. In: Revista Orobó, ano I, número 0, 1997, p. 58.

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 53


5. OLIVEIRA, Anelito de. Revista Orobó, ano I, número 0, 1997, p. 61.
6. LOURENÇO, Eliana. O Antropófago e o Arlequim. Artigo inédito.
7. SANTIAGO, Silviano. Vale Quanto Pesa. Artigo: Apesar de Dependente,
Universal, Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra, 1992. p. 18.
8. SANTIAGO, Silviano. Vale Quanto Pesa. Artigo: Apesar de Dependente,
Universal. Rio de Janeiro, 1992. Editora Paz e Terra. p.18.
9. VELOSO, Caetano. A Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. p. 105.
10. Idem. Revista Orobó, ano I, número 0, 1997, p. 61.
11. LOURENÇO, Eliana. O Antropófago e o Arlequim. Artigo inédito cedido
pela autora, 1998.
12. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e Outras Metas. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1993. p. 231-255.
13. VELOSO, Caetano. A Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. p. 248, 249, 250.
14. OLIVEIRA, Anelito de. Revista Orobó, número O, 1997, p. 66.
15. Idem. Revista Orobó, número 0, 1997, p. 66.
16. Idem. Revista Orobó,número 0, 1997, p. 66.
17. Idem. Revista Orobó, número 0, 1997, p. 66.
18. Idem. Revista Orobó,número 0, 1997, p. 66.
19. ANDERSON, Perry. O Fim da História de Hegel a Fukuyama. Jorge Zahar
Editor. pp.81-82.
20. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarrita. 1993,
p. 67.
21. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarrita, 1993, p.
468.
22. OLIVEIRA, Anelito de. Revista Orobó, número 0, 1997, p. 66.

54 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


23. BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santar-
rita. p. 443.
24. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarrita. 1993. p.
462.
25. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarrita. 1993, p.
468.
26. Idem. O Cânone Ocidental. Ed. Objetiva. Trad. Marcos Santarita. 1993, p.
468.
27. RUSHDIE, Salman. Imaginary Homelands. The Arnold Anthology of
Post-Colonial Literature. P.902. London: Arnold, 1996. Tradução: Eu creio que
esta é uma das muitas estratégias possíveis. Mas nós somos inescapavelmente
escritores internacionais num tempo em que o romance se tornou uma for-
ma mais internacional (um escritor como Borges fala da influência de Robert
Louis Stevenson em seu trabalho; Heinrich Böll reivindica influências da lite-
ratura irlandesa; a transpolaridade está em todo lugar); e talvez uma das mais
agradáveis liberdades do imigrante literário está em sua aptidão para escolher
seus pais. Meus próprios - em parte escolhidos conscientemente, outros não
- incluem Gogol, Cervantes, Kafka, Melville, Machado de Assis; uma árvore de
família poliglota, onde eu posso me medir, e à qual eu posso com honra dar
continuidade.
28. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas. São Paulo, Companhia das
Letras, 1998. p. 199.
29. COELHO, Marcelo. Artigo: Bloom é seu Próprio Personagem Literário.
1994, Folha de São Paulo.
30. FISCHER, Luís Augusto. Secretário de cultura de Porto Alegre. Jornal Blau,
número 12, setembro de 1996.
31. MACHADO DA SILVA, Juremir. Jornal Blau, número 12, setembro de 1996.

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 55


QUATRO MUNDOS NASCIDOS DO CETIM: BERNARDO,
MEMÓRIAS DO INFORTÚNIO, COSMOFILIA & ÁGUAS

Tornou-se um lugar comum no Brasil dizer que literatura bra-


sileira não vende. A falta de renovação de talentos ameaça, inclusi-
ve, a existência de nossa literatura, que, segundo alguns, corre risco
de extinguir-se e passar a viver apenas dos livros de celebridades tais
como Jô Soares, Bruna Lombardi e Paulo Coelho. Esse último, sin-
tomaticamente um dos mais vendidos, sempre aclimatou seus livros
em todos os lugares, menos no Brasil. Vem daí a importância de uma
editora nova e independente tal como a Mundo de Cetim, capitanea-
da pelo poeta Ramon Maia. Falar de seus lançamentos, portanto, é
traçar estratégias de sobrevivência tanto do editor, do poeta quanto
do crítico.
Um clima poético permeia Memórias do Infortúnio (Ramon
Maia, Mundo de Cetim, 2006), mas aqui o clima se torna concreta
prosa poética. Dentre os dilemas de uma casta diva, que desliza entre
a estéril solidão e a melodia unânime e frívola, caminha como uma
personagem aparentemente poética e perdida na multidão, na súcia
ensandecida, a alma de Ramon, alma de poeta, no extremo de si, vê-
-se em pleno estertor de criar essas memórias. Começa a narrativa de
forma muito elegante:
“Ofereceu-me fósforo a fim de que eu acendesse meu
cigarro. O obséquio parece-me estrangeiro diante da

56 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


pletora do ríspido que tanto me aborda. Devolvi-lhe um
sorriso tímido e certeiro, contumaz, talvez, espanto na
indagação do primeiro gesto, da mão que se estende ao
ver balançar ao léu por entre lábios trêmulos”.

Trata-se de uma passagem em que a personagem nebulosa da


mulher, entre o evolar da fumaça e a duração de um toque ao café,
deixa-se como uma imersa, confundida, indiscernível no volume; ela
se lança ao delicado, tal qual o autor nessas memórias. Há uma frase
forte de Ramon que fica, depois da maré e da ressaca: “meu outono
irremediável perscrutava marolas de mim”. Em Da Vanidade, capítulo
dessas afortunadas memórias, o autor oscilou entre o cômico e o
sagrado ao buscar, tal qual um Santo Graal, a produção do litera-
to Raimundo Periquito em um monastério. Muito curioso também
foi o processo de desnaturação ontológica que surgiu no decorrer
dessa busca, uma verdadeira descontrução ôntica da dialética da ma-
landragem. Há momentos em que a narrativa partiu diretamente para
o realismo fantástico; outros existem em que o autor capta, esboça
impressões, tal qual um pintor impressionista; finalmente, quem sabe
num traço que o define, faz uso de um estilo metafórico, de vocabu-
lário rico, de talhe barroco e hermético.
A prosa de Ramon é bem poética também em Bernardo
(Memórias de Exílio e Cisão, Mundo de Cetim, 2005). Essa primeira
memória, estréia do autor de três livros de poemas como prosador,
possui um traço mais realista; quando trata da infância de Bernardo,
possivelmente colheu elementos biográficos. Igualmente, dentro de
Bernardo, há a voz, uma espécie de heterônimo feminino, de Maria

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 57


dos Prazeres, que representa a poesia quase em estado puro dentro
dessas memórias; é quase um fluxo de inconsciência intercalado. A
escrita busca idéia, imagem, fogo, tela, papel, acrílica. Tanto nessa
quanto na outra memória existiu todo um devaneio ligado ao mar e às
coisas marinhas, sempre surgindo como signo de liberdade e imagi-
nação infinita, sem peias. A prosa floreada, artística, intensamente tra-
balhada, talvez mais aveludada que acetinada, das duas memórias de
Ramon Maia também foi uma grande contribuição de um escritor que
também se fez bom editor, atuando corajosamente ao editar poesia e
prosa de autores iniciantes e da própria pena, num país onde os auto-
res iniciantes parecem condenados ao limbo pela maioria das editoras
e tudo o que se faz parece subserviente ao Deus do Mercado.
O livro Cosmofilia (Baco Graco, editora Mundo de Cetim,
2006) é uma poesia discursiva, ritmada, exuberante de vida. Um texto
que ousa dizer, num mundo carente de sentido e significado. Suas
palavras são prenhes de sentidos, buscando, tentacular, uma multipli-
cidade de objetos do mundo, navegando pelas singularidades, cons-
ciente de seu material, usando de três atitudes básicas: a disposição
de um rico arsenal vocabular, um poderoso jogo de imagens e uma
relação de temas de origens mítico-órficas.
Baseado em Marx, Baco afirma:
“Eu estou completo/com meu álcool e minha droga,
derramo feito copo engolido pela água: sede da água./
Marx, o sedento, deixou escrito que a paixão é a força
essencial do homem, de tendência enérgica ao objeto”.

Nesse momento, Baco mostrou-se o mais perigoso tipo de


marxista: o poeta marxista. Há, inclusive, um poeta dedicado a Rober-
to Piva, grande poeta brasileiro admirador de um dos mais perigosos
poetas marxistas já surgidos: Pier Paolo Pasolini. Marxista bacante,
58 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
professor e estudante de Filosofia de trinta anos, Baco Graco fez,
dentre outras obras marcantes, belíssima ode à cerveja:
“A cerveja desce de veludo/mergulha na alma/acarician-
do o coração/a cerveja viaja sem compromisso/chega
sem boa noite/ e é a noite. A cerveja reluz dourada e é
algo mais que o ouro/ a cerveja espuma e avança como
um mar inscrito no copo (...). A cerveja diz no ouvido/
verdades só nossas.”

Cosmofilia é uma excelente estréia e boa revelação de um


grande autor.
Já Águas (Sílvio Neves, Mundo de Cetim, 2006), aderiu ao
comedimento poético nas searas da poética recente. O poeta, ma-
duro, deixa o dito pelo não-dito. Do pego na bátega, muitos de seus
diamantes são preciosos, mas pagam apenas metade do esforço dis-
pendido. É uma coleção de 52 poemas, nenhum mais extenso do que
uma página. O objetivo foi seguir as lições hegemônicas de João Ca-
bral e Leminski. Seus verbos, mais que delirantes, são racionados, do-
sados em conta-gotas. Ele teatralizou estáticos obuses, deu tiros na
lebre de vidro, mesmo vendo que ela é estática clepsidra. Mas como
fazer o verbo delirar, se há até mesmo poemas sem verbo, como Dís-
ticos Recortes de Diamantina? O poema é, aliás, um dos melhores do
livro, justamente por se tratar de um momento em que o poeta aban-
donou um pouco sua preferência pelo som e perseverou no sentido.
Também plena de sentido é Canto, poesia dedicada aos músi-
cos Elzi e Helvécio, onde falou da voz que subtraiu o silêncio; há todo
um Réquiem Cerrado, com direito a andantino, presto e adagio. Sílvio
enfim se aproxima da música, musa da qual se afastara só para ficar
mais cabralino em seu desprezo pela música. Há, no entanto, um quê
de Cruz e Sousa em Sílvio Neves, um certo privilégio da musicalidade,
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 59
do som dos poemas em detrimento do conteúdo, do sentido. Os
poemas ganham quando recitados, pois, muitas vezes, quando lidos,
parecem vagas e veludosas vozes, mots en liberté soltas, vox claman-
tis por verbos de ligação.
Outras paixões de Sílvio se destacaram: Futebol Acuado e
Lance falam da paixão do poeta pelo futebol, que se mostra parecida
com a de Gonzaga e Marília: o poeta mais torce e observa do que
desfruta lances prazerosos com ela. Mais do que seguidor de João
Cabral, Sílvio sofre do efeito Cabral, ou seja, reafirma a própria poesia
cerebral: “Cirúrgicos poemas/o cérebro desobstrui/como se coração
fosse”. Uma vez na zona rural de Diamantina, reflete: “floresce algo
em mim”. Sua ambição, no entanto, é preparar-se para pedra à la
Manoel de Barros, “ter a mudez de um riacho”. A insanidade (e não
só a faca), descobre Sílvio, também é lâmina. O risco é que, passado
o feito em revista, muito se perca na voragem das Águas: atentemos
para o fato de que telhado não se faz sem risco. Embora com algumas
licenças poéticas acima citadas, o autor conduz o livro com matu-
ridade e segurança; o lançamento de qualidade enriquece a poesia
mineira e brasileira, tal como os outros títulos da Mundo de Cetim
acima referido.

COmPOSIÇÃO PARA QUADRIlíNEAS


[Esta é a orelha que escrevi para o livro de poemas do
meu amigo Ramon Maia, ainda a sair, chamado Qua-
drilíneas, texto dedicado ao grande artista plástico Amí-
lcar de Castro.]

Composição para Quadrilíneas: há, neste novo livro de Ra-


mon Maia, a palavra gemendo, a palavra-gema, no sentido mineral-
-visceral. O corte é seco... Dobrando, retirando mais do que pon-
60 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
do, esculpe nas palavras o valor, ao abrigo da corrosão do tempo.
Fala substantiva, a fala de Amílcar, concreta diante dos belorizontes.
As linhas cabralinas. A fala dos que comem pelas beiradas. Sem se
prender a predicado. Por isso, Quadrilíneas tem seu precipício no
princípio. Toda arte é uma força de vida. As Minas verbivocovisuais
que cava não são covas rasas nem superficiais. Afinal, trazem coisas
louçãs, finas, e fluem como águas de rio. Em seus espaços colhemos
os lírios do campo (e os do contracampo). A praça Sete é um nome
hirto, não tem setembros. A praça possui apenas o seu próprio tra-
ço, na foz das quase-ruas em transe. Nestes textos, em relação aos
dois livros já publicados pelo autor, há “marrons mais claros, escu-
ros,/Pretos mais graves e agudos,/(...)/ Morenos claros, escuros,/
negros mais negros e puros.” Depois da embriaguez da gênese no
Pluriverso & de Quiasmin (Ler-Minski), novas cores. E os tons ago-
ra são sóbrios. Antes as primeiras palavras se alçavam a títulos. Agora
os poemas traçaram seu norte nas folhas. E, como gel fixador de
asteriscos, desponta o risco dos pontos finais.
A musicalidade dos poemas destaca-se? O poeta garimpa.
Como viver depois que a música acaba? Ramon prossegue parindo
vocábulos.

PSICANálISE E EDUCAÇÃO: CONTRIbUIÇÕES DA PSICANálISE À PEDA-


gOgIA
Nesse livro motivado pela demanda dos professores em
entender melhor o contexto atual da educação, onde muitos estão
adoecendo, Eduardo Lucas Andrade busca em Freud, Foucault, Dol-
to e Ferenczi seus principais referenciais para oferecer instrumentos
aos professores para que consigam prosseguir em sua profissão com
prazer.
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 61
Pelo menos três pontos que Eduardo aponta são fundamen-
tais: 1) o fato de que os jovens zombam do mais velho diante dos
demais, mas em particular consideram aquele adulto como alguém
muito importante; 2) menos é mais, muitas vezes é mais importante
falar e ouvir mais, conversar com os alunos, saber suas histórias de
vida, do que dar conteúdo; 3) o aluno que faz piadas, zomba do pro-
fessor, provoca o profissional, é melhor do que o aluno calado, corpo
dócil, que apenas copia. Nessa altura, Eduardo recorre a Foucault
no que se refere ao processo de docilização dos corpos, embora ele
relativize esse processo ao tratar da escola: trata-se de repensar a es-
cola enquanto aparelho opressor do corpo e pensá-la como o lugar
da transferência. Freudiano, Eduardo pensa a educação a partir desse
processo.
Nesse momento histórico em que toda uma vertente de extre-
ma-direita assume o poder e quer impedir várias discussões na escola,
entre as quais a educação sexual e o comunismo, Eduardo é bem
direto e posiciona-se a favor do livre debate e da fala como proteção,
inclusive, contra o suicídio. E é taxativo: “Os caras da esquina têm
respostas para as perguntas sobre as quais vocês se negam a con-
versar” (ANDRADE, 2019, p.62). Sobre a sexualidade, ele aponta os
equívocos dos professores: dizer que a criança não vai entender. Mas
se ela pergunta, está no tempo dela e é preciso dar uma resposta. E
quando se diz que ela é inocente, logo em seguida vem alguém de-
sejar por essa criança ou adolescente e gozar a partir dessa posição.
Essa é a posição de Bolsonaro e seu grupo de extrema-direita ao falar
da “ideologia de gênero” e “doutrinação comunista”, quando fazem
campanha pelo conservadorismo nos costumes enquanto bandeira
eleitoral, muitas vezes falseando e difamando a prática dos professo-
res, mas gozando ao obterem o papel de guardiões de uma pequena
62 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
burguesia assustada com uma crise econômica que vem acompanha-
da de uma crise cultural.
Eduardo não trata da polêmica política, mas escreve que “sexua-
lidade não se limita a homem e mulher e de que isto é questão de
construção social” (ANDRADE, 2019, P. 62).
O livro tem, de fato, muita utilidade para os profissionais de educa-
ção, trata muito de nossa prática e de nossa fala, especialmente devi-
do ao fato de que a maioria das escolas não têm um psicólogo que
possa nos ajudar. Alguns pontos críticos podem ser observados, tais
como o momento em que Eduardo aborda o “sadomasoquismo”.
Esse termo foi criticado por Deleuze, que não aceita essa unidade
dialética que desfavorece o importante literato Sacher-Masoch, obs-
curecido em prol da literatura erótica de Sade. O próprio Foucault,
ao prefaciar o anti-Édipo de Deleuze, refere-se a Freud como parte
do passado. No entanto, é melhor fazer o que Eduardo fez: dar conta
de questões centradas na transferência, com maestria e domínio dos
temas, do que fazer um coquetel teórico eclético de autores con-
temporâneos. Nada disso, porém, é algo que prejudique a grande
qualidade que demonstra o texto.

PSICANálISE E VIDA COTIDIANA 2

Esse livro coletivo, editado pela editora Literatura Em Cena


(2020, organizado por Paulo Cecarelli, Victor Cruz e Eduardo Lucas
Andrade), inicia-se com um texto de Bartholomeu sobre a transfe-
rência, tema muito importante na análise. O segundo texto é sobre
o xamã David Kopenawa que, em associação com Eduardo Viveiros
de Castro, excelente antropólogo, faz uma antropologia do homem
branco.
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 63
A seguir, há o texto de Eduardo Lucas Andrade tratando do
pagamento para o analista e as situações que ele cria. O texto é muito
bem humorado e cita uma anedota contada por Ferenczi:
Mesmo o homem mais abastado faz cara feia quando
tem que dar dinheiro ao médico. Um exemplo descon-
certante ofertado por um paciente: doutor, se me ajudar
lhe darei toda a minha fortuna. O médico respondeu:
Me contentarei com as trinta coroas por sessão. Não é
um preço muito salgado, doutor? Foi a resposta inespe-
rada do paciente (FERENCZI, 1928, apud: ANDRADE,
2020, P.57).

Trata das várias questões que o pagamento levanta. Mas


finaliza dizendo que nada na vida é tão cara quanto a doença e a
estupidez. O texto de Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Lacan, tam-
bém tem colocações e provocações muito interessantes: ela observa
como a psicanálise decaiu na França.
Os autores clássicos como Dolto, Lacan e outros continuam
sendo editados e vendem bem, mas a produção contemporânea con-
centrou-se numa editora de Toulouse que edita apenas quinhentos
exemplares de cada livro. E boa parte dos lançamentos é voltada para
pedagogos e profissionais da saúde mental. Aliás, Roudinesco mostra
que a psicanálise perdeu a posição que tinha anteriormente, prestigia-
da junto a marxistas e surrealistas. Hoje os psicanalistas são trabalha-
dores da saúde mental. Os psicanalistas não contam com apoio da
psiquiatria, dentre outros problemas. Outro problema que ela apon-
ta é a participação em programas de gosto duvidoso, forçando uma
análise ruim ao colocar personagens públicas no divã, ao dizer coisas
como “Macron não tem superego, casou-se com a mãe, é narcísico”.
Roudinesco alerta que os psicanalistas brasileiros precisam evitar que
aconteça com eles o que houve na França, onde a psicanálise passou
64 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
a ter interesse histórico, virou coisa de museu, apenas.
O amor lésbico é assunto no texto muito arguto de Ivanildo e
Monik. Um conto muito bom e vigoroso de Natália Polessa, Primei-
ras Vezes, é analisado. Há um texto de Lavarini sobre a transferência
e a agressividade, bem como um de Leandro Alves sobre o tema do
perdão e sua importância para o tratamento psicanalítico. Ligia Maria
Durski fez um texto sobre um tema muito pertinente: a ligação entre
a macropolítica e a micropolítica (em tempos de fascismo cotidia-
no). O atual contexto de pandemia e crise política e econômica gera
situações em que a presença física do analista não pode acontecer
como anteriormente e alguns pacientes não adaptam-se ao trata-
mento on-line. O bizarro é quando um paciente simplesmente acha
exagerado o cuidado do analista, ou seja, alinha-se com a lógica dos
fascismos cotidianos. Para trazer luz a um contexto tão adverso, Lígia
Durski recorre a Foucault e sua análise de como poderia ser uma vida
não-fascista.
Bem conectado ao tema proposto pelo livro, Michael Lopes
analisa o infamiliar em uma série chamada A Maldição da Residência
Hill. Mirelli Barbosa fala do amor e dos poetas, cita Fernando Pes-
soa e Platão. Lembra do nosso sofrimento e adoecimento em nome
do amor. Monik, Stephanie e Ivanildo enveredam-se pelo fascinante
universo de Nelson Rodrigues. Encontram um tema excelente: a ri-
validade fraterna no conto Diabólica, de A Vida Como Ela É. Duas
irmãs disputam o mesmo homem. Natália Paez analisa a relação entre
Direito e Psicanálise tendo em mira nosso sistema prisional. Paulo
Cecarelli levanta uma hipótese sobre a violência e o trabalho de cultu-
ra, citando a amada de Nietzsche e pensadora da minha grande admi-
ração, Lou Salomé, que fala da hipocrisia da nossa civilização e nossa
inadequação a ela.
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 65
O único artigo da coletânea a trazer ilustrações é de Ro-
berto Barberena Grana sobre Winnicott e Francis Bacon,
o pintor, mas ele cita satiricamente algumas frases do fi-
lósofo também. E traz uma frase, a meu ver, marcante,
seminal: “Do ponto de vista deste capítulo este Francis
Bacon contemporâneo está se vendo no rosto de sua
mãe, mas com certa distorção, nele ou nela, que o en-
louquece ou nos enlouquece” (ANDRADE, 2020, p.233).

Igualmente, o texto sobre a palavra e o significante na toxico-


mania, de autoria de Rodrigo Pardini, tratou da dificuldade em tratar
os toxicômanos, iluminando problemas que, como professor, tam-
bém encontra ao lidar com adolescentes que usam drogas e estão
em idade escolar. E hoje eles são legião, são maioria. Observou que
chegam muitas vezes drogados ao consultório, bem como eles vão
ao consultório obrigados por alguém da família ou do trabalho. Ao
lidar com os drogados, muitas vezes eles são rompidos com o instru-
mento de trabalho do analista. Sua fala não faz troca simbólica. Os
significantes surgem e assim não é possível fazer aparecer o trabalho
do inconsciente. O drogadito tem uma fala que é vazia de conteú-
do. Monik contribui com um texto sobre a criatividade e, por fim,
Victor analisa o nosso difícil momento: o adoecer psíquico causado
pela conjugação entre isolamento social, pandemia e crise. Esse é
o tema de O Colapso Brasileiro em 2020. É um drama atualíssimo e
que ainda estamos vivendo em 2021. O analista conta que pacientes
com obesidade passaram a trancar-se dentro de casa e obter significa-
tivo ganho de peso. Para muitos pacientes, a pandemia agravou suas
patologias e tornou ainda mais difíceis de tratar. Uma frase citada é
muito bela “o luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura
secreta”. Há quem até tenha pesadelo com uma situação em que está
sem máscara, num salto de consciência dentro do próprio sonho. O
66 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
sonho é invadido por restos angustiados do consciente Felizmente,
diz ele, os sonhos estão em plena atividade, reconciliando-nos com a
nossa capacidade de imaginar um futuro melhor.

AmORNHECI PENSANDO Em NÓS

O livro de poemas Amornheci Pensando em Nós, Histórias


de um Analista Apaixonado (Ginotri, 2016) trata de duas paixões de
Eduardo: poesia e psicanálise. Ambas tratam do amor, daí Eduardo
resolveu ligar as duas coisas. Amor, amanheci pensando em nós, esse
é o trocadilho que instaura o livro.
Como ele escreve: “Ela aponta, tal como a análise, que é pre-
ciso separar um tempo para a vida. Nem sempre a vida rima” (AN-
DRADE, 2016, P. 33). É preciso tempo para a vida, é preciso ir além
da lógica de que tempo é dinheiro. Por vezes, como explica ele, ele
tem tempo, mas não está à venda. Ele quer tempo para descansar na
vida. Ele frisa que é preciso não comercializar a vida – e nem o tempo.
Muito bem-sucedido em explicar a teoria psicanalítica e ilus-
trá-la em sua poesia, um poema de Eduardo explica o ato falho de
forma brilhante no poema Educação do Amor. O ato falho é quando
a gente diz para a uma mulher bonita e atraente: “e aí, amada para o
final de semana?” Ao trocar amada com animada, o que subjaz é uma
cantada, é o desejo de saber se essa mulher bela e interessante está
acompanhada e já tem uma companhia para o fim de semana.
Outro esclarece, sempre com belos exemplos, a diferença en-
tre prazer, gozo e desejo em seu poema Prazer, Desejo:

“Peguei o pedaço do pão, comi e disse:


– Hum, gostoso!
Sem terminar de mastigar, coloquei mais um pedaço de

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 67


pão na boca e disse:
–Huum... Go... o som não saía. Quase engasgado pelo
excesso, fiz sinal de espera. Engoli e expliquei:
– A delícia extraída no pedaço de pão era a experiên-
cia do prazer, um apoio ao instintual desenvolvido pelo
singular. O prazer, difícil de abdicar, tende a promover
traçados de repetição e ali se acabar por excesso. Esse
era o gozo, destruição que toca no corpo também es-
taria de comer tudo de uma só vez em imediato tempo.
Entendem? Goza-se com o que se tem. Satisfaz-se com
o que experimenta e se podem extrair delícias (...). O
desejo é quando eu estiver em casa, longe do pão, aluci-
nando e fantasiando em imaginação a sua busca. Assim,
não mais tendo, terei que buscar por outro, suposta-
mente igual. Marca memória e faz avançar!”

E isso, esse casamento entre poesia e psicanálise, isso ele faz


de maneira sempre bela e intensa.

LIVRAI-NOS DE TODO O NORmAl: AmÉm


O texto Livrai-nos de Todo Normal, de Eduardo Andrade (Vir-
tual Books, 2017), é um livro que trabalha reinventando a poesia a
partir do lugar comum. A escrita atravessa os sentidos, escreve ele,
a partir da frase: “escuta só para você ver”, restaurando a potência
poética do lugar comum. É um livro atípico, original, que não tem o
nome do poeta na capa.
O poeta é assim, com palavras e situações aparentemente ba-
nais, ele constrói momentos brilhantes de sua poética, tais como: “Na
escola comemoram a nota azul. Adultos, já doentes, correm atrás da
receita azul. Também é ilusão desenhar nuvens azuis. Essa poesia não
rima, mas descreve um pedaço de mundo perdido”.
Eduardo também faz da poesia uma intervenção na realidade,
68 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
expondo uma postura que é, em última análise política e alinhada com
a luta antimanicomial de Michel Foucault, dentre outros: “Louco var-
rido é poeira perversa que resta na língua desbocada da lógica higie-
nista. Enquanto varremos vidas para debaixo do tapete” (ANDRADE,
2017, p 21).
Esse Andrade que não é parente de Drummond, mas que
também é bom poeta, busca sempre combater a linguagem precon-
ceituosa, assim como depurar os conceitos. Ele assume o lugar de
fala de mineiro e enfrenta temas pesados como a tragédia da Vale, en-
trelaçando o seu drama de diabético com o do rio Doce. Ele realiza,
em seus poemas, o sonho da fala própria enquanto poeta, estabele-
cendo um próprio estilo e uma temática preferida: os causos mineiros
trabalhados literariamente, a psicanálise, os achados do cotidiano, o
amor, o romance no escurinho do cinema, etc.
Eduardo transforma seus “causos”, suas situações cotidianas
em poesia e consegue lidar bem com a temática melindrosa do amor,
assunto a respeito do qual é fácil cair no lugar comum e no clichê: “O
fim de um relacionamento não é o fim do amor vivido, é o fim de um
futuro que não existiu. Quem crê que o fim do relacionamento é o fim
do amor vivido, além de perder o futuro, apodrece o passado” (AN-
DRADE, 2017, p. 45). Um achado exemplo de achado muito interes-
sante e que me faz lembrar o poema Ausência, de Carlos Drummond
de Andrade: a falta não é a ausência. A ausência assimilada, ninguém
mais tira de nós.

SUICíDIO E ClíNICA PSICANAlíTICA (EDUARDO ANDRADE)

Esse livro de Eduardo Andrade, publicado pela editora Litera-


tura em Cena, é um livro cheio de vida. Há muita riqueza nele ao de-
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 69
bater um tema tabu, mas fundamental: o suicídio. Falar sobre suicídio
é falar sobre a vida, ele é algo que está entre nós a ser resolvido. Há
passagens emocionantes como o “corte no osso e o corte no so-
nho”, relatos de pacientes que viveram episódios de autoextermínio.
Se não escolhemos quando vir ao mundo, deveríamos pelo
menos escolher quando sair de cena, quando sair desse mundo. Isso
Eduardo explica muito bem quando fala:
“Defronte ao insuportável, confrontado com o desam-
paro, e por não conseguir abordar o real que é jogado
na cara da existência, o sujeito se retira de cena numa
tentativa de fugir do sofrimento existencial que o habita,
não é o desejo de morrer que mune o suicídio.”

Eduardo resgata pontos muito importantes para serem traba-


lhados a respeito do suicídio e sobre o impulso autodestrutivo que o
move: mas nem todos são capazes de conter seus impulsos e acabam
cometendo crimes. E sobre o que fazer para conter o suicídio, Eduar-
do tem apontamentos muito importantes sobre como fazer para evi-
tar o suicídio, como quando cita Bukowski: “nós não precisamos de
grandes realizações, só precisamos realizar pequenas coisas que nos
façam sentir melhor ou não tão mal” (ANDRADE, 2019, p. 45). Senti
falta, nesse livro, de Albert Camus (embora o mito de Sísifo se faça
presente) e sua reflexão sobre o suicídio enquanto o único problema
filosófico realmente sério: devemos julgar se a vida merece ou não ser
vivida. Outros suicidas cujo trabalho pode também iluminar a análise
são Silvia Plath, Emil Cioran e Maiakóvski.
Quando o suicídio é verbalizado, a tragédia parece desmate-
rializar-se, na medida em que se torna outra coisa e o sujeito vê sua
própria face monstruosa. No mito da Medusa, quando a Medusa vê
seu próprio rosto materializado no escudo de Perseu, ela perde boa
70 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
parte de seu potencial para a tragédia. E Eduardo é muito feliz em
escolher seus autores e seus amores, tais como Goethe, Bukowski,
Tolstói, Dostoiévski, dentre outros.

ONDUlATÓRIA, O AmOR É PARA OS FORTES

Esse é um livro de poesias de Eduardo Andrade (Literatura em


Cena, 2019) onde o que me fascina é a imagem da onda, das ondula-
ções. Eduardo continua na linha de valer-se do cotidiano e das falas
ditas na clínica para fazer poemas e prosa poética. A moça disse que
o dedo era podre, mas não era o dedo físico: era no sentido figurado.
E aí Eduardo teve uma epifania:
“naquele momento percebi que o podre é o abandono
do cuidado interno que inclina-se a repetições cegas.
Anulação própria do luxo angustiante de poder esco-
lher. A repetição é uma prisão e a pior cegueira é a de
que não olha para dentro de si”.

Ele desenvolve, então, uma curiosa teoria das ondulatórias psí-


quicas:
“era das ondulatórias psíquicas, que na tentativa de serem
caladas, falavam gritando pelas pontas do dedo. O ato re-
faz o corpo. A existência quando calada, grita pelos poros
que encontram! Não se esconde de si mesmo”.

É como se uma questão, ao não ser falada pelo analisando,


falasse em si em seu corpo, falasse por si própria dentro dela ou dele.
Em resposta, sua poética fala: fala das ondulatórias das águas
(“estrias líquidas”), da labirintite psíquica ao sair da sessão de análise
(sair trocando as pernas?), da poesia enquanto nudes da alma. Outra
imagem da ondulação: “na lisura do seu macio cabelo escorre brin-

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 71


cando a esperança no humano; a esperança é uma criança”. O amor é
uma onda que só pode ser navegável pelas sutilezas dos fortes. Edu-
ardo utiliza-se de uma citação do livro Mulheres de Bukowski, que
diz que o sexo, para a maioria das pessoas, e só dar corda, o que nos
remete à imagem de pular corda, o que também é uma imagem da
onda, da ondulação.
Daí que, concluindo, o poeta reflete que o amor só é suportá-
vel para quem aguenta a sobrecarga psíquica, ou seja, o sexo pode
até ser para a maioria das pessoas, mas o amor é para quem não é
fraco em termos psíquicos, é para os fortes, como diz o título, como
os que fazem terapia, por exemplo.

AINDA qUE O O AmOR SEJA PARA TODOS,


AmAR NÃO É PARA QUAlqUER Um

Nesse livro, juntamente com o Ondulatória, ambos de 2019,


Eduardo elabora uma poética que parte de observações do cotidia-
no, de onde tira epifanias, no sentido de revelações do sagrado, da
beleza, da leveza, das lições da vida. O livro não tem poesias propria-
mente no formato de versos: utiliza-se do formato de crônicas, pro-
sa poética. Ele é muito perspicaz em notar que o ódio tem sua face
erótica: atrito, bater boca: “atrito. É briga, é contato”. Suas palavras
e observações são mamíferas, sugam o leite das coisas. No poema
a Invasão das Decisões, ele observa que as pessoas chegam para as
outras, sem ter conquistado liberdade para isso, e já imperam pelo im-
perativo do dizer o que esta deve ou não fazer (...). Geralmente o re-
sultado da justificativa é das próprias questões e não de uma acolhida
da história da pessoa. É muito curioso o trabalho da linguagem com
uma frase como “seja a si mesmo”, que remete ao “torna-te quem
72 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
és”, de Píndaro, ou o conhece- te a ti mesmo, de Sócrates. Eduardo
observa que ninguém tem uma identidade pronta, somos verbos. Ser
a si mesmo é ser plural, pois não podemos dizer que temos uma iden-
tidade una, que não somos e, a partir de um certo ponto, passamos a
assumir uma determinada identidade.
O que se tem é um melhor ajuste, é estar melhor resolvido ao
encontrar-se enquanto pertencente a uma determinada tribo (gays,
funkeiros, etc), ao descobrir em si mesmo um talento que os outros
reconhecem. Eduardo contesta a ideia de beleza, em especial quando
trata-se de um discurso voltado para a mulher. A feminista é sempre
feia para os controladores de plantão. Chamar de feia é uma estética
vazia. Ele diz a respeito: “é feio o outro escancarar assim os desejos
que tanto se luta por reprimir. Feio é sentimento que brota na epider-
me estética, mas que diz de como percebemos tal coisa. Nada é feio
sem interpretação. Feio é estado de espírito! Nada é bonito quando
se está bem consigo”. Feio, analisa ele, é um estado de espírito, ele
acredita em beleza interior, feio é um nome que damos para espelhar
o que de dentro temos. O que me lembra a frase de Jorge Amado
para responder a Vinícius: “algumas mulheres feias são irresistíveis”.

QUARENTENA POÉTICA: PAlAVRAS QUE AbRAÇAm

O livro coletivo Quarentena Poética (Editora Literatura em


Cena, 2020), organizado por Eduardo Lucas Andrade e capa ilustra-
da por Indries Andrade Simões, surge sob o signo do pesadelo que
o coronavírus disseminou pelo mundo. Há, então, a necessidade de
ser produtivo em meio a esse contexto que nos impõe isolamento
social, quarentena, etc. As palavras, então, fazem o papel do abraço.
Daí que todos são convidados a fazer poemas para suportar e enten-

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 73


der esse momento histórico que estamos vivendo, bastante similar ao
que passou-se no tempo da gripe espanhola.
Adriano Felipe da Silva utiliza as imagens míticas da Árvore e
Terra para tratar da intensidade de um relacionamento amoroso. Ao
final, quando o homem corta a árvore, ele corta seu contato com o
“Homem de Olhos Verdes”. A Terra é um personagem que deixou
que alguém criasse raízes em si e depois foi embora. O conto é para
sublimar e ficcionalizar essa dor intensa. Sem dúvida, Adriano é um
poeta intenso, mítico, caloroso.
Andressa Aguiar também lida com a dor. Primeiro, a dor de
não conseguir escrever. Os poemas em prosa em prosa que produz
chamam-se então, bem significativamente, Impasses: “Entre caos e
frustração me vi olhando pela janela em um dia chuvoso, ouvindo
uma canção francesa no fundo. Dias assim me são nostálgicos. Des-
perta-me para sentimentos que nem sei de onde vêm”. (AGUIAR,
2020, p.27).
A seguir, temos os pensamentos intermitentes de Claudete
Maria Coutinho. Ela tratou de um tema dos mais delicados na pan-
demia: o lar, no poema Confissão ao Meu Lar. Ela conta que sentiu
solidão, que falou sozinha, mas que superou rezando, ficando junto
dos filhos, tratou da casa, dos torrões das paredes, dos rabiscos das
crianças, fez sopa, plantou azaléias. Fez as pequenas coisas que po-
demos fazer para nos sentir melhor. Outro tema que ela abordou: a
solidão, uma verdadeira doença da pandemia.
A pandemia e o contexto histórico foi o tema de um poema
de Daniela Arêde: “Pandedia”: “Outro dia, mais um dia/Amanheceu o
dia/O sol há de brilhar”. E ela também sublinha a necessidade de lutar
contra o neoliberalismo e o fascismo que estão no poder no Brasil,
dificultando ainda mais a vida social.
74 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
Elisabete Andrade Araújo trata de lembranças que, agora nos
tempos da pandemia, precisamos resgatar. São os afetos da avó e da
neta, contatos agora dificultados, mas que podem ser lembrados e
transformados em poesia. São as recordações de infância em Patos
de Minas: “Na minha infância, minha mãe fazia doces num lindo tacho
de cobre”. A pracinha onde brincávamos em nossa cidade do inte-
rior. Lembranças boas que, nesse momento de isolamento social, é
muito aprazível retomar e transformar na saborosa prosa poética que
ela produz, uma poesia doce como os pés de moleques, doces de
ameixa, doces de leite e de queijo que aparecem maravilhosamente
no poema Recordações de Infância (ARAUJO, 2020, P. 64).
Evandro Vaz Santos, em seu Quarentologia, também aborda
esse drama do esvaziamento das ruas, da falta do contato humano:
“Acostumada estava... Tantas pessoas a andar na rua... E eu, em mi-
nha casinha, esculpida por mãos humanas, espreitava uma chance de
contato... Sempre deixavam algo degustável, naquela Praça... Agora,
vejo poucos por aqui... E, a maioria passa em disparada...” (SANTOS,
2020, p. 76).
Felipe Perin é um analista que atentou ao “Antes do Corona,
Depois do Corona” e seus dilemas. Como viver numa casa onde a
convivência sempre foi rasa? Fazer o que dentro de casa? Ele vai bem
no coração do drama que estamos vivendo: “Antes, não tínhamos
tempo para fazer, depois, não temos mais o que fazer”. Nossa vida,
segundo ele, passou a estar no passado. Antes estava no futuro. Ele
alerta que é preciso viver o presente, é uma barra, alerta. Os poetas
são a antena da raça mesmo, penso ao ler Soneto da Quarentena e
que, tratando da difícil necessidade de tocar, abraçar, transar, nesses
tempos em que não se pode tocar, a não ser a si mesmo. Outra obri-
gação é sentir o tempo de outra forma, repensar o tempo.
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 75
Fernando Vincit tratou também da falta, sensação muito acir-
rada nos dias que correm, no seu poema Peixes: “Eu sinto falta do
seu beijo morno, por que era assim que eu sentia quando seu cigarro
estava ao lado”. Para Vincit, os poetas escrevem a verdade, nem que
seja por um minuto.
Camargo Meira fala, de um a dez, dos seres que andam com
o coração no último grau de decomposição, mas que caminham com
a carcaça feliz.
Hildacira Gritti explica o nosso problema: “Corpo de Dor”:
“Não sou furo, sou borda/ Infinitamente cortada à lâmina/não sou a
dor de um corpo,/sou só um corpo de dor/eu não busco a morte/
porque já flertamos/e ela também não me quis”. No poema Finitude,
ela trata mais diretamente desses estranhos tempos em que perdemos
a autonomia: “Eu vi a pressa nos funerais, o impedimento do adeus, a
dor se acumulando num canto, para ser tratada e esquecida depois”.
Jefferson Guimarães Rodrigues fala de Minas. Em seus poe-
mas, encontramos aço e flor fundidos. Há uma tocante homenagem
a Marx, sutilíssima, uma crítica à Vale do Rio Doce que a vê como o
demônio indígena Anhangá, assim como ele vê o futuro da catástrofe
ecológica em Restituição de Posse. Muito me impressionou o poe-
ma Filha de Animais e Homens. Nele, a poética de Jefferson torna-se
barroca no bom sentido, no sentido de Murilo Mendes: “Margarida
selvagem, que brota do cemitério de cachorros, cães germinados,
respiram o ar composto pelo pó, do meu avô, carbonizado” (RO-
DRIGUES, 2020, p. 139).
Juliana Santos fala de forma muito cativante sobre um psicólo-
go, homenageando-o: “Aquele que te auxilia a suportar, e te mostra,
que além da dor, existe a beleza de amar-se e o poder de ser seu
próprio curador.” (NASCIMENTO, 2020, p. 143). É um poema muito
76 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
original e belo em homenagem a um psicólogo e a essa profissão.
Como ela muitas vezes lida com o que há de mais repugnante em nós,
suponho que poucas vezes origina poemas tão belos, ao menos na
literatura brasileira.
Juliana é voltada para outros assuntos além da quarentena
e da pandemia, adota temas líricos. É notável o contraste da poe-
sia de Juliana com o tom mais amedrontado e sombrio de Larissa
Wes Jorge, que trata dos temas da pandemia: “Luta contra um ini-
migo não conhecido assusta, ninguém sabe como tudo isso che-
gará ao fim. Como vamos estar e se esse final será bom ou ruim”
(JORGE, 2020, p. 154). Os poemas de Larissa foram direto no que
essa quarentena nos faz sentir: “Acordei sem vontade de viver/
Não quis ligar a TV/Nem ler o jornal”. Ela sente angústia diante
das ruas que se fecharam, das pessoas que não mais olham.
Luana Gomes também é uma professora e estudiosa da psi-
canálise. Ela escreve de forma íntima, temos a impressão de que esta-
mos invadindo sua privacidade, folheando seu diário. É um “veraneio
contigo” mesmo, ela chama, atrai, seduz. Ela conta de uma cirurgia
que teve de fazer e que implicava em altos riscos, conta de um amor
à primeira vista e de uma ida dramática ao psicólogo, que me tocou
profundamente: “Contou seus casos e no meio teve uma crise de
choro que lhe doía o estômago”. Ela conta que recebeu “espaço in-
finito” de sua analista.
Luciane da Silva Queroga fala de um curioso teatro poético
interno: “O Ato Sem o Amor”. Ela fala da necessidade de não dei-
xarmos que o medo tome o papel de estrela do nosso palco interior.
No teatro da alma, não pode valer o caos: temos de invadir o palco
e decretar que o protagonista do teatro de nossas almas é sempre
o amor, somos donos do espetáculo. O poema “Encaixe Perfeito”
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 77
fala de um Romeu e uma Julieta modernos: “ela voava, porque ele se
tornou suas asas”.
Esse encaixe ou desencaixe do amor e suas “variedades” é
um dos grandes temas de Mirelli Barbosa Martins e de um texto dos
mais curiosos, onde ela reflete sobre a fêmea ser o lugar de falta em
“Buracos de Todos nós, Amém”, onde ela discorre sobre macho e
fêmea não com ajuda da teoria da castração de Freud, mas com a
teoria de um vendedor de lajotas: “Afinal, por que ter buraco era
tão ruim para aquele vendedor? Talvez ele tivesse medo do que ele
poderia fazer com os próprios buracos”. De fato, Derrida revê essa
a teoria da bissexualidade de Freud e toma a mulher e não o homem
como o modelo da sexualidade humana (MARTINS, 2020, P. 200).
Natália Abreu também trabalha na confluência de poesia e
psicanálise e avisa que não é só uma, é muitas: “criança, menina, mu-
lher, esposa, amiga, filha, profissional, espiritualista...são tantas que
fica difícil listar. A compreensiva, educada e gentil, que sabe escutar. ”
(MACHADO, 2020, p. 202). Sua poesia espelha a multiplicidade des-
sa mulher mágica, que trabalha na confluência do divino e da loucura.
Rafael de Sá Machado, numa outra chave, fala da modernida-
de líquida: “Nosso egoísmo e mesquinhez, apontando uns contra os
outros, nossa falta de empatia, nossos tropeços, de uma breve exis-
tência”.(MACHADO, 2020, P. 244). Seus poemas funcionam como
incêndios, é toda uma antologia poética. Mas é importante que ele
pontua, em nossas vidas, a oposição entre artistas e fascistas: “Artis-
tas, escritores, poetas, romancistas, lutaram como podiam, sem en-
durecer, para calar os fascistas” (MACHADO, 2020, p. 247).
Saulo Mazagão é outro autor que me toca com seu bucolis-
mo mineiro e suas pontuações bem colocadas, no sentido tanto do
analista que vai ao ponto quanto do poeta que vai direto no sentimen-
78 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
to. Ele me faz pensar numa das últimas, senão a última entrevista de
Drummond, evidentemente deprimido, a um interlocutor que creio
que era o Luiz Fernando Emediato. Em dado momento, Drummond
comenta com ele que Emediato é mineiro, mas que Minas já foi um
lugar que produzia boa literatura, mas não é mais. Os mineiros tendem
a ser econômicos com as palavras, o que é essencial para produzir boa
literatura, bons poemas. Saulo Mazagão, sendo grande admirador de
Drummond, está aí para provar que Minas ainda produz bons poetas!
Raul Rizzo é um engenheiro da poesia que, mais do que o enge-
nheiro de alma João Cabral de Melo Neto, espelha-se no momento atual
para reescrever o Agora José de Drummond, texto muitíssimo atual. E
agora? Stop, a vida parou, foi o dia em que a Terra parou do profeta Raul
Seixas, atualíssimo também. Rizzo também fala de vivências fundamentais
e atuais, a atual solidão compartilhada, algoritmada: “O celular é minha
consciência, meu corpo, meu desejo e meu aflito. Como posso ser um
celular, se sou bicho de pele, pé, boca e beijo”. Sem dúvida, nossas vidas
estão agora nesses pequenos celulares, passamos a ser ferramenta. O ce-
lular passou a ser quase uma extensão de nosso corpo, de ferramenta,
também nos tornou ferramenta, como explica Rizzo, diante dele e das
redes sociais, somos “minimamente existência”.
Wildicleia Oliveira Lopes escreve poemas-cartas que dão asas
aos desejos com bastante fineza. É linda a sutileza com a qual ela
conta do ato de ajudar uma amiga a arrumar uma mala: “Pega as
roupas velhas e surradas pela repetição do uso e põe como base para
esta nova montagem, elas servirão de suporte caso a mala sofra um
grande baque” (OLIVEIRA, 2020, p. 250).
Essas palavras dessa antologia poética são muito alvissareiras.
Os poemas de todos esses poetas, alguns publicados pela primeira
vez, literalmente nos emocionam e aquecem o coração!
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 79
POEmAS SObRE O AmOR (OU NÃO)

O livro Poemas Sobre o Amor (Ou Não), de Saulo Mazagão,


com ilustrações de capa de Ideraldo (Literatura em Cena, 2019) des-
perta muitíssimo meu interesse. Penso que é muito importante fazer o
que ele faz nesse livro, retomar os poemas como rimas e com métrica.
Ele é um poeta que mais diz sim à vida, do que veleja os mares do não.
Nesse livro, de certa forma, Saulo passa naquilo que sua grande
admiração mineira, Carlos Drummond de Andrade, chamou “serviço
militar da métrica”, algo indispensável. É preciso resgatar a dicção
parnasiana, como dizia Paulo Leminski. Afinal, os parnasianos domi-
navam a forma. Isso só não basta, mas é muito importante.
Para falar do amor, foi preciso que ele falasse do corpo, é há um
bom poema e bem representativo de sua produção com esse nome.
Tomemos uma sequência de frases que tomo das estrofes: “O cor-
po é um ambiente sagrado (...). O corpo é minha morada (...). E
com ele, abraço minha amada”. É muito boa essa sonoridade, essa
musicalidade que Saulo conseguiu atingir. Os poemas rimam, mas o
ritmo é bastante singular, é um ritmo pessoal que Saulo busca para
conquistar a própria voz.
Ele também faz o elogio da escultura, dos quadros, da arte em
geral. O poema Quadros diz:
“São molduras de madeira de pinheiro, feitas para en-
feitar a vida, com fotografias do momento que é passa-
geiro, que retrata, relembra e me agrada esse vivenciar,
encanto de sentimentos contido em um papel” (MAZA-
GÃO, 2019, p. 74).

É um diálogo muito necessário entre as artes. O escultor é


apresentado como escritor: “Hoje é o dia do escultor! Escultor? Sim!
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Escultor de significados. Ele pega a palavra bruta, e transforma em
obra-prima, nas curvas e nas linhas, ressignifica palavras, faz o que
for, transforma o pecado em alegria, ódio em amor, sentimentos em
poesia, descreve o conto, a crônica e a poesia, diz de teoremas, sobre
os sentimentos, diz de ciência, política e magia, ilustra os momentos.
A caneta ou lápis, seus instrumentos são. Mas não posso ser careta e
esquecer o principal: o coração. Da entonação ao pensamento, faz
comédia do morrer, e descreve sobre seu descontentamento, faz tra-
gédia do ato de existir ou viver. (MAZAGÃO, 2019, p. 54).
Saulo bem reflete sobre seu fazer poético em Tarde da Noite:
“Tarde da noite/são quando as pessoas dormem,/É, eu
escrevo cansado,/E meus olhos e dedos já sofrem/Mas
meu cérebro respira aliviado. Mais letras, vomito para
fora, cansado de transmutar, coisas que não sei se são
de agora”.

A transmutação ocorre com mais frequência quando ele está


em solidão. Para ele, como para Glauber Rocha, a morte é invenção
da direita: “É inútil, Sr. Satã, sou ateu./E só vou morrer depois do
fim”.
Ele finaliza cantando tanto o aconchego da velha cabana quan-
to o vestido da amada. São ambos lugares do aconchego, do acolhi-
mento, lugares que ele não deixa de desejar.

ESSAS PAlAVRAS NÃO SÃO DÓlAR/LIbERDADE É Um ATO DE LINgUAgEm

Esse livro de Saulo Mazagão e Eduardo Andrade, que também


tem o nome de “Trem com Tanta Coisa Escrita” (Editora Literatura
em Cena, 2020) contêm dois livros em um, dois poetas coabitando e
colorindo o espaço literário.

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 81


Saulo Mazagão gera a poesia a partir de registros que lembram
diários e apresenta nostalgia das cartas. Num deles, Dias Cinzas, ad-
mite sentir inadaptação diante do mundo volátil como ele é hoje:
“Ainda assim, é mais difícil encontrar quem nos leia com respeito e
atenção”. Como ele explicou: “Para alguns, caracteres, mas para o
escritor, a palavra se sente”.
Achei tocante a forma como Mazagão aproveitou uma asso-
nância execrada pelos professores de Português, “a boca dela” para
poder criar uma poesia expressando sua dor a respeito de um amor
por uma mulher bonita, mas que o chamou de chato, não gostou de
sua voz, dentre outros signos de rejeição. É um achado falar do feio
de uma forma bela.
O poeta fala das coisas que o fazem sofrer, mas destaca as que
lhe fazem feliz no poema Entre Livros e Cafés: “Cheiro de livro, cheiro
de pessoas, de inteligência, cerveja ou café”. Muito agradável pen-
sar nessa ambiência evocada pelo poeta. Seus poemas também são
como cartas falando de suas estranhezas, referências boas ou ruins,
suas singularidades e particularidades e do amor. Ele mesmo avisa
que poetas falam do amor, falam de amores e, por vezes, são mal-
ditos. Em Um Escritor Como Outro Qualquer, ele fala também do
amor correspondido, algo que acontece mesmo nesses tempos de
internet, uma garota comprou o livro e acertou o seu coração em
cheio. Apesar da volatilidade, da falta de tempo, o amor pode desa-
brochar, pode acontecer.
Mazagão é jovem, mas admira a maturidade, como em Ode à Ma-
turidade. Ele admira Carlos Drummond de Andrade e conta que, no Rio,
sua namorada, uma “guria” catarinense, tirou uma foto dele junto ao po-
eta, momento maravilhoso de amor que ele guarda dentro de si.
Eduardo Lucas Andrade, nesse livro, estabelece conexões e re-
82 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
torna a alguns temas abordados em livros anteriores. Como um Sísifo
poeta, ele repete, mas repete de outra forma.
Eduardo Lucas continua a ligar poesia e psicanálise, desta vez,
no primeiro poema do livro, tomando um mito, o da serpente Ouro-
boros, para poder diferenciar entre gozo e desejo. O ato repetitivo da
serpente de destruir-se é o gozo. O desejo, motor do movimento, é
justamente o espaço entre a cauda e a boca da serpente.
As considerações de Eduardo são muito divertidas, ele mistu-
ra crônica, poesia e observação do cotidiano. A leitura me faz rir,
quando, em A Automutilação dos Vínculos, ele comenta o quanto
o diálogo é algo raro nos dias atuais. Em geral, a pessoa fala e o
outro diz, às vezes no meio da fala do outro: “olha aquela abelha
ali voando”! Quantas vezes isso não acontece no nosso dia a dia.
Na ausência do simbólico, os jovens atuam na carne. Os poemas de
Eduardo ensinam que somos como o lagarto que por vezes perde a
cauda para fugir do predador: nós precisamos, também, livrar-nos de
nossos predadores internos.
Eduardo escreve uma carta, em 2018, para si mesmo, uma
carta onde ele descobre que na doença encontrou o cuidado de si,
o conhecimento da ciência médica como um prazer a mais. Ele de-
monstra, também, gratidão aos lugares onde foi acolhido, como o
BH Hostel em Belo Horizonte, lugar onde deixou um livro e fez ami-
zades, lugar onde esqueceu uma insulina e via-a cuidada, guardada.
Um lugar onde, mais do que hospedar, simplesmente, há acolhida
dos hóspedes como sujeitos, como pessoas.
Ele também posiciona-se sobre o momento histórico em que
vivemos, em que “esfakeamos” uns aos outros, ou seja, as pessoas
passam fake news. A política virou futebol, onde uns fazem bullying
uns com os outros. No contexto em que vivemos, uma música de

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 83


Natal torna-se tortura. Ele alerta, em Legitimação do Pior, que não
devemos tolerar o insuportável, o preconceito, a violência, a aniqui-
lação das minorias.
Eduardo também desenvolve o conceito de “superhorrorida-
de”, também muito irônico: é a vontade de mostrar superioridade
desnecessariamente, sendo algo que não leva a nada.

PENUmbRA PERfUmADA: REINVENTAR A PRESENÇA


Penumbra Perfumada é um livro de poemas de Eduardo Lucas
Andrade (Literatura em Cena, 2020) que nasce sob o saturnino signo
da pandemia mundial. É um contexto em que o mundo está mais trá-
gico: pandemia de coronavírus, crise econômica mundial, governos de
extrema-direita. Eduardo comenta:
Eu sei gente... Eu sei que tem horas que parece que a
gente vai morrer, que estamos em um pesadelo e que o
acordar é o dormir. Eu sei que a ansiedade vem, que a
desesperança arritmia o coração e que a preocupação
rouba a cena. Eu sei da incerteza, sei também das vonta-
des de chorar (ANDRADE, 2020, p. 68).

É nesses tempos de isolamento social em que o poeta propõe va-


lorizarmos os pequenos gestos: o riso do familiar, a notícia boa de um
avanço científico. Não é preciso encontrar a vacina, mas fazer pequenos
gestos que nos possam fazer sentir melhor. A quarentena, o distancia-
mento social, implica em reinventar sua própria presença, bem como o
lugar onde se habita, é preciso reler as palavras, pois muitas vezes estão
grávidas, dão à luz a poemas, como nesse livro. Eduardo comenta sobre
como é bom ter a casa limpa: “cheiro de casa limpa, aconchego de lim-
peza”. E afasta, logo de cara, a psicose da dona de casa, a preocupação
obsessiva com a casa arrumada impedindo seus habitantes de habitá-la
84 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
harmonicamente (ANDRADE, 2020, p. 75). Na pandemia, é preciso re-
pensar tanto o corpo que habitamos quanto a casa. A casa tem que estar
na “penumbra perfumada”, um estado poetizado pelo autor, ou seja, ser
um lugar habitável, limpo, agradável. Em uma de suas reflexões mais atu-
ais, escreveu que, para estarmos realmente vivos, precisamos estar à beira
da morte, mas no centro da vida. A pandemia veio ameaçando retirar a
vida, mas pela via do amor, “vida vejo que ganhei”. Para o poeta, estar
junto no cuidado é estar mais junto do que de corpo. O luto é definido
como “uma peça que se encaixa mastigada no quadro da vida” (ANDRA-
DE, 2020, p. 126). Os poemas de Penumbra ajudam-nos a reinventar a
vida e a morte nesse contexto trágico.

ECOS DE NÃO-LUCIDEZ: PROSA DO ADORáVEl SílVIO NEVES


(Sempre Viva Editorial, 2019)

Nesse livro de contos que suponho o primeiro (nesse blog te-


mos uma resenha do livro de poemas), Sílvio Neves inspira-se em
Guimarães Rosa e Joaquim de Sousândrade, mas cria um estilo muito
pessoal, característico. Sílvio Neves vai além de toda essa tradição de
poesia concreta, está tudo muito bem pensado e digerido, prosa de
Rosa, poesia concreta, poesia de Leminski, etc. Tudo isso foi muito
bem digerido para criar um estilo muito seu.
Ouropel para Ourives conta a tragédia de um ourives, Entre
Prazeres e Rosário é uma história de amor desventurada entre Eulália
e Zé Arcanjo. Esse conto tem uma passagem bela que destaco:
Os olhos de Eulália, beatos nada enxergam, como que
enlevados por aquela tradição de caminhar com seme-
lhantes rogando súplicas aos céus para derrame de bên-
çãos, junto àqueles que fizeram tanto por seus atos, não
por preces”.

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 85


Surgem muitas outras singularidades: Zé Bié das orquídeas
(Mercês Aparecida), onde, em meio a uma história de amor, debate-
-se a identidade de Minas, o quadrilátero ferrífero reaparece no qua-
drilátero etílico. O conto Ah Bão tem um inusitado diálogo com o
início de O Estrangeiro de Camus: mamãe está morta. Eu a matei.”
Sílvio é assim, “irrefragável”.
O conto Trindade tem belas imagens de um crepúsculo:
O contraste do altiplano com as reentrâncias do Espi-
nhaço no horizonte às minhas costas causou-me um
apaziguamento que julgo não haver experimentado
antes. No oeste, o azul-escuro de nuvens carregadas
contrastava com a nesga de azul-claro e o fúlvido vivo
do crepúsculo. Um esplendor. Como as montanhas de
cabeça para baixo. Um Espinhaço espelhado” (NEVES,
2019, P. 190).

Sua prosa nos obriga a pensar nas feições que os contos as-
sumem. Ele proseia e mostra as feições. Ramerrão tem a divertida
história de um inimigo oculto onde o personagem ganha um cão que
o atormenta, após ter dado Vidas Secas a uma “senhorita Daslu”. E o
mais espirituoso conto do livro realmente fica para o conto final que
dá nome ao livro, onde ele narra, no Ensaio Sobre a Surdez e não
sobre a cegueira, uma operação auditiva que quase o enlouquece,
algo muito sensível para um Sílvio Neves que é um poeta pleno de
musicalidade e agora, contista.

MORAlEIDA & SCHIZOSKÓPIO DE VINIKOV & DOS VAgAbUNDOS:


NEPOTISmO NA CIDADE SOl

O texto Schizoskópio, de Vinícius de Morais (pseudônimo:


Vinikov) é um texto bróder. É um texto de um bróder, é um texto
irmão. Fernando Gonzaga, escritor e psicólogo, comentou uma vez
86 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
que, se minha mãe não quisesse que esse menino fosse boêmio, não
deveria ter colocado esse nome nele.
Esse livro tem até uma referência ao meu livro de poemas edi-
tado apenas na web, Violetas de Aleluia.
Na verdade esse livro não poderia ser lido sem que eu lesse os
outros seis amigos, os Vagabundos Iluminados, que lançaram livros
juntos – embora esse seja o primeiro livro do meu irmão Vinikov.
O poeta é meu bróder e a epígrafe de um de seus “bolaforismas”
é da filha Isa Júlia. Todos os movimentos que hoje reverenciamos têm
seus bróders. Como escreveu Glauber Rocha, ao especular se ia fazer
um filme com Dirk Borgade e Orson Welles no papel de Karl Marx e
Engels: ele queria filmar as “duas bichas” em meio às fumaças inglesas
do fim do século dezenove. Marx tinha seu movimento, ficava amigo
de Engels, brigava com Proudhon, trocava cartas chamando Bakunin
de burro, etc. O mesmo para Nietzsche, que conhecemos tanto e que
é tão celebrado: ele é apenas aquele que despontou e ficou de todo
um movimento: não seria quem ele é se não fossem seus amigos Franz
Overbeck, Paul Rée, Richard Wagner, sua amada Lou Salomé, etc.
Nesse livro, Raul Seixas toma uísque com Vinícius de Morais, os
beatniks pobres – vagabundos iluminados de 22 – namoram os con-
cretos, a tropicália é atravessada pelo punk. E o zen de Leminski transa
com punk. Muitas homenagens a artistas que eu e Vivi conhecemos
e que são importantes para nós, afetivamente: Rodrigo Rodarte, com
quem Vivi fez a banda Os Bimbantes e, junto a Vivi e Rodarte, fizemos
o efêmero Champignon Atômicos e os Fungos de Vênus, que tocou
somente na Maloca Maluca. Eu recitei os poemas Oração do Pescador
do Atual de Muroroa, então no Sarapatel dos Estetas e Anjo Extermina-
dor. Meu amigo Sergei recitou um poema sobre o escritor Paul Bowles.
Como os papos aqui no Revista Cidade Sol, no Schizoskópio

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 87


discute-se de tudo, inclusive a atitude tradicionalista do realismo so-
cialista húngaro frente à geração de artistas que experimentavam a
arte conceitual durante a década de 60. Como no Schizoskópio, aqui
há muitas Relíquias para Rasgar. As homenagens a pessoas como Ro-
drigo Rodarte, Paulo Leão e Pedro Moraleida são as que mais me
emocionam. Transcrevo o poema que homenageia Pedro Moraleida,
artista plástico que foi um dos maiores de nossa geração – e ainda
seria, se não fosse suicida (1977-1999):
Qualquer introspecção que ecoa
vai ao cerne
do coração, âncora
na carne
&
A fotografia assimétrica
da memória
traz uma figura inquieta
talvez um excêntrico riso
Gargalhada
a transbordar da ânfora;
Acima do mais alto edifício
(a luta está de luto)
e os apartamentos vazios
E quantos apartamentos
vazios dentro dele!
Quantas luzes apagadas
em seus pincéis!
Tinta, sangue, cortinas vermelhas
e a voz a despedaçar-lhe
as últimas palavras
88 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
TERÇA-fEIRA,
15 DE JUNHO DE 2010
O SHOW DOS DEAD LOVER´S NO LAPA fOI mÚlTI

Sábado passado, dia 11, numa noite de vento antártico, fui ao


show dos Dead Lover´s Twisted Heart, três DJs (Luiz PF, Deivid, Fael
e JJBZ, todos discotecando apenas vinis) e Fusile, no Lapa Multishow.
No show, pude sentir o calor e a emoção das canções da banda, que
acompanho há dois anos e na qual meu irmão Vinícius toca. No show
ao vivo, sente-se o frescor das emoções e muita coisa passa a fazer
sentido: a ligação da banda com Odair José, por exemplo, que sem-
pre me pareceu enigmática, pode ser desvendada pela herança Jovem
Guarda/country que Odair José e Dead Lover´s têm em comum.
E o show é celebração alegre, fanfarrona, do lançamento do
CD, um acontecimento para a banda, que tinha até agora apenas
um EP e um vinil. A abertura teve um quê eletrônico onde destacou-
-se Thiakov nos teclados. Depois, passou-se ao rockabilly dançante
ao folk melódico de canções como “Rock Hurts and The Heart Be-
ats”, quase um hino na banda, assim como “Shake your Hips” and
“Folk You”, todas representantivas do bom humor da banda e sua
alegria contagiante. Uma canção muito bonita (Isabelle), misto de
chanson française e the Doors, contou com a participação de Rafael
Ludicanti (dos Junkie Dogs, banda irmã). Todos os componentes
cantam bem e a voz da baterista impressiona, lembra muito a de
Maureen Mo Tocker, do Velvet Underground, o que nos introduz
num túnel do tempo.
O som do CD independente, que obteve qualidade profissio-
nal, dá uma enorme vontade de ver o que farão os Dead Lover´s
com uma gravadora e uma estrutura profissional. Ver a banda ao

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 89


vivo é uma experiência esclarecedora, diferente do som de MP3 e
do CD, que de qualquer forma separa um pouco os instrumentos.
Ao vivo, a banda faz diferença e produz um som mais encorpado,
convence mais, atrai mais.
A parte mais ousada do show foi a participação da orquestra
composta por amigos da banda. Os metais sobressaíram em relação
às cordas, mas mesmo assim a química entre os músicos (dentre
os quais, o Chico do poemacto.blogspot.com, que enfim conheci
pessoalmente no sábado passado) tinha um quê meio carnavales-
co, meio balcânico. Clima de festa fanfarrônica e intensa, ideal para
aquecer o inverno belo-horizontino.
A apoteose do show aconteceu em “Where I am” que diz
“Take me by the hand”. O público ergue as mãos e o que se vê é
justamente a banda seduzindo seu público, conduzindo-o pela mão.
A ordem das músicas no show me lembrou a do CD. Os Dead Lo-
ver´s, portanto, não me deixaram com coração de amante morto e
sim com uma promesse du bonheur muito bem cumprida.
MáI JÂNqUI BlÓgUIS: HEmOglObINA9
Escrevo sobre a banda Junkie Dogs pensando diferente do
que eles próprios se definem em seu perfil no MySpace (http://
www.myspace.com/thejunkiedogs). Eles se dizem “just another
new band”, ou seja, só uma nova banda qualquer, no entanto, eles
contam com uma densidade poética visível em suas letras, ainda que
a maioria seja escrita em inglês. A estética das canções é minimalista
e o som é “sujo”, marcado por distorções de guitarra que lembram
os discos do Velvet Underground e, mais recentemente, Sonic You-
th e Jesus and Mary Chain, ou melhor, são um elo perdido entre a
90 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
juventude sônica e o veludo nos subterrâneos. Brain Damage, The
Owl e outras canções podem também, suponho, ter alguns ecos
de Joy Division e da chamada “Onda Fria” (Cold Wave) que veio
antes da “New Wave”. Os Junkie Dogs, seguindo na tradição de Jimi
Hendrix, incluíram o ruído enquanto música, tematizando e vivendo
a dissonância, a melancolia e as sombras. Isso além da influência
beatnik que comentarei a seguir.
O nome da banda remete, por sua vez, a William Burroughs,
autor de Junkie e Almoço Nu, escritor tido como inspirador da con-
tracultura e do rock dos anos 60 em diante. A partir da repercussão
e da aura cult que ganhou William Burroughs (que chegou a parti-
cipar de filmes em Hollywood), ser junkie (viciado irrecuperável em
drogas) passou a ser um charme e até mesmo um look, um visual
que foi exibido por modelos esquálidas e anoréxicas: a primeira foi
a inglesa Twiggy, feia para os padrões brasileiros e atuais, mas já na
moda junkie. Existe uma banda de folk e country chamada Cowboy
Junkies e em Belo Horizonte mesmo, no cenário rock dos anos 90
de onde emergiu nacionalmente apenas o Pato Fu (esses “Mutan-
tes de mercado”, alegrando com seu humor debochado uma época
sem utopias), mas onde existia uma efervescência musical que ali-
mentava bandas como Náuplio, Elétrica Uzifur e Virna Lisi, existiram
também os Mickey Junkies. É numa cena agora consolidada, nos
anos 2000, que surgiram os Junkie Dogs, banda que conta com
muito talento poético e artístico, a exemplo dessa bela canção-poe-
ma, clamor forte e cheio de urgência, intitulada Hemoglobina9, utili-
zando, ao que parece, a escrita automática e aquilo que Drummond
chamou de palavra-puxa-palavra:

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 91


as horas passam
os homens passam
as tardes caem
enfim
acabou
o século vinte
Se apenas conseguisse comunicar sentimentos sem a lógica dos
sentidos como quem ressuscita da semente para dizer adeus e caminhar
na tempestade tentativa de atrasar um minuto perdido sonhando com
os mitos elementares que ocupam o imaginário das cidades delirantes
de tragédias anunciadas e sangue de juventude esgotada sem o prin-
cípio de uma nova vida em pleno inverno de pequenos objetos que
consomem todo o nosso afeto e distraem direções de olhares para dra-
mas em lâmpadas de querosene comburentes de noites inteiras na sua
chama amarela onde vejo minha alma extinta nos braços de um amor
que olha para mim e ri como se soubesse que sou cruel e verdadeiro e
sempre o mesmo para além do sol que chicoteia meu crânio nas marcas
de unha do chão que ficou para trás porque sei que a imagem colossal
do mundo povoado pelo homem se baseia em meu reflexo estampado
na superfície do espelho apavorado pela existência que contempla a si
mesma eternamente até mesmo quando olha outra pessoa e vê o pró-
prio olho nas descobertas retidas pelas mágoas do olhar de quem não
mais o ama (declamado com vigor e demência).
para os olhos
movimentos circulares no sentido horário
para o pescoço
movimentos circulares descendentes
no sentido anti-horário
(urro primal)
ah
92 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
QUEBRANTOS, RELANCE E ABISMOS VISTOS À LUZ: NOTAS
SOBRE A POESIA DE WILSON NANINI

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior


1. INTRODUÇÃO
Desde que lançou seu blog na rede mundial de computadores,
em 2007, o poeta Wilson Torres Nanini vem chamando a atenção de
diversas pessoas, entre elas, poetas conceituados e de renome e que
exploram este moderno mundo das letras.
Intitulando-se um poeta em fase de berçário, Wilson Nanini
busca nos versos de “Quebrantos, relances e abismos ao relento”,
seu primeiro livro de poemas (e que permanece inédito em papel),
uma poética que oscila entre o sagrado e o profano. Ainda pouco co-
nhecido, o poeta mesmo se intitula “um poeta em fase de berçário”.
No entanto, ele não é poeta aprendiz e já se apresentada dotado de
maestria no terreno da palavra poética.
Wilson Nanini, nascido em Poços de Caldas, mas criado desde
o berço em Botelhos, chegou a cursar Letras na Faculdade de São
João da Boa Vista, mas, após fazer um curso para soldado da Polícia
Militar, em Lavras, teve que abandonar a faculdade, só voltando para
Botelhos em 2007.
E foi em ambiente familiar da pequena cidade de Botelhos, jun-
to de sua mãe e suas tias, todas professoras, que Wilson Nanini teve
seus primeiros contatos com a literatura. Livros de fábulas e de histó-
rias cotidianas moldaram sua veia poética. Morando numa cidadezi-
nha de dezesseis mil habitantes, Nanini tem como leitora sua esposa,
sempre a primeira leitora crítica de seus poemas. Graças à internet,
estabeleceu contato com poetas tais como Cláudio Daniel, Renato
Mazzini, José Aloise Bahia e Micheliny Verunschk, por exemplo, cujos

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 93


contatos foram tão fundamentais para seu aprendizado, tanto quanto
seus versos.
No Ginásio, incentivado pelas professoras, Divina Moreira, Sil-
vana Siqueira e Márcia Frazão, Wilson Nanini começou a colocar no
papel seus primeiros versos. O poeta narra ter começado fazendo
letras de músicas para uma banda, formada por amigos, inspiradas
principalmente na poesia de Renato Russo, da Legião Urbana. As-
sim, fui aperfeiçoando e buscando referências nas letras do Renato,
como por exemplo, os poetas Arthur Rimbaud e Carlos Drumonnd
de Andrade. Em 2000, participou do Concurso de Poesia Falada
da cidade de São Paulo, promovido pela Prefeitura e pelo Instituto
Mario de Andrade. Ficou em segundo lugar, com a poesia O Corpo
Cervo Corpo.
Em 2001, na cidade de Machado participou do Primeiro Con-
curso Plínio Motta de Contos e Poesias, promovido pela Academia
Machadense de Letras, no qual foi premiado com a edição em livro
com o conto Farfalhas de Coisas Ambíguas. No Rio de Janeiro tam-
bém participou de um concurso de poemas promovido pela Editora
Líteres, cujos 20 melhores poemas, incluindo o seu, foram publica-
dos em livro. Segundo Wilson Nanini, todos estes anos de leitura e
produção resultou em uma coleção de poemas que já tem um des-
tino certo: o livro “Quebrantos, relances e abismos ao relento”, que
mesmo ainda sem data e edição para ser apresentado ao público,
traz toda sua verve literária, trazendo a poesia como forma lúdica e
de descarrego. Os “quebrantos” estão ligados ao sagrado e ao pro-
fano, das rezas, das benzedeiras, dos maus-olhados, das curas do
corpo e da alma. Relances são as cenas cotidianas, da sua vida como
filho, marido, o poeta com o seu olhar mais singular. Os abismos
aos relentos trazem toda sua vivência como soldado militar, que faz
94 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
das letras e formas um ato de purificar a si mesmo.
Entrevistado pelo escritor e poeta Marcelo Novaes, em seu
blog, Wilson se define como uma pessoa, até certo ponto, me-
lancólica, nostálgica. Devedor da ancestralidade, da própria e da
alheia, detém gosto ao saudosismo, mas apenas pela alegria já vi-
vida. Enquanto policial militar, o poeta lida com a morte alheia e
com a possibilidade da própria morte, rotineiramente. Centenas de
vezes esteve diante de pessoas com arame farpado e sangue nos
olhos. Como se estivesse produzindo artesanalmente um bálsamo,
um considerável número de seus poemas foi esboçado de manhã,
após noites de intensa labuta de seu ofício profissional. Seus poe-
mas remetem, então, aos poderes curativos e angelicais das palavras
desse poeta-guardião.

2. A POESIA ENTRE AbISmOS E QUEbRANTOS

Wilson é um poeta do extravio. Para falar utilizando a con-


ceituação de Ezra Pound, que divide os tipos de poesia em fa-
nopeia, melopeia ou logopeia, pode-se dizer que os poemas de
Nanini ficam entre o primado da imagem (“fanopeia”) e do ritmo
e da musicalidade (“melopeia”) mais do que o pensamento dis-
posto nos poemas (“logopeia”). Não há tanta intelectualização
em seus poemas, há uma entrega aos sentidos e ao mundo como
um fenômeno estético. O mundo subjetivo e objetivo, em espe-
cial a natureza e esse eu do poeta, derramam-se frequentemente
um no outro. Aliás, essa seria a metáfora preferencial do amor em
seus poemas. O poeta é como um toureiro que é muito hábil e
muito elegante em lidar com os touros, mas detesta a violência e
a vulgaridade da tourada:

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 95


O TOURO
o touro em seu arfar
de provocada fúria
mal sabe do espetáculo
de seu destino de carne crua
o touro, confinado entre touros,
conhece-se e se basta
– embora seu dia fareje
o martelo do abate
máscula fera/bela humilhada pelas
lições da infecção da castração
pelos ferrolhos
(arame farpado e ferro em brasa)
agora, a meio-instante da
perícia do cutelo, o touro
– acaso, com seu berro reza? –
com as narinas dilatadas para
farejar o prazer de outras épocas
(NANINI, 2010).

A escrita dele dá a sensação de precisão e de entendimento,


embora muitas das imagens sejam enigmáticas, tais como as “facas da
sina” (em Espólios de Infância) e os “obstetras de contêineres” (em
Interferência Urbana). Por vezes, ele se utiliza de sinestesias tais como
“penumbra rosa”, por outras, um simples substantivo adjetivado de
forma inusitada: “cerâmica inepta” (ambos em “Desdonzelamento”).
Nota-se, então, que há em sua poética uma busca de uma simpli-
96 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
cidade que ao mesmo tempo possa ser complexa e não simplória
(NANINI, 2010).
A poética de Nanini é a de um poeta do extravio. Ele combina
substantivos com adjetivos inusitados de forma a causar estranheza. A
escrita dele dá a sensação de precisão e de entendimento, embora mui-
tas das imagens sejam enigmáticas, tais como as “facas da sina” (em
Espólios de Infância) e os “obstetras de contêineres” (em Interferência
Urbana). Por vezes, ele se utiliza de sinestesias tais como “penumbra
rosa”, por outro, um nome adjetivado de forma inusitada: “cerâmica
inepta” (ambos em “Desdonzelamento”). Nota-se, então, que há em
sua poética uma busca de simplicidade que ao mesmo tempo possa ser
complexa e não simplória. Mas qual a natureza dessa complexidade? A
essa altura surge-nos a pergunta: Wilson Nanini seria barroco? Se consi-
derarmos as afirmações de Omar Calabrese, sim:
Por ‘barroco’ entenderemos categorizações que ‘ex-
citam’ fortemente a ordenação do sistema e que o
desestabilizam em algumas partes, que o submetem a
turbulências e flutuações e que o suspendem quanto à
resolubilidade dos valores (CALABRESE, 1988, p. 39).

Wilson Nanini “desestabiliza” um modo de ver e sentir o mundo,


criando uma obra que, tomada no seu conjunto, propõe uma nova or-
denação da sensibilidade, sem deixar de produzir (através dessa nova
ordenação) um sentimento de caoticidade (entendendo caoticidade
como imprevisibilidade ou ininteligibilidade da informação estética)
no momento da fruição dessa obra. Essa caoticidade é provocada
justamente pela superposição das informações advindas dos poemas,
que se configuram como labirintos de espelhos. Ao tentarmos com-
preender a lógica de um dos espelhos, o outro espelho modifica e
complexifica a informação daquele, e assim ad infinitum (falar na poe-

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 97


sia wilsoniana equivale a mergulhar num atordoante labirinto de espe-
lhos). O labirinto, novamente segundo Calabrese, é apenas uma das
formas do caos, entendido como complexidade, cuja ordem existe,
mas é complicada ou oculta. Essa ordem “oculta” produz a perda do
referencial acarretando o que Calabrese chama de “prazer da obnubi-
lação”, ou seja, o prazer de ver-se perdido e ser instigado a encontrar o
centro do labirinto. O prazer motivado por essa desorientação e pelo
“mistério do enigma” parece-nos semelhante ao prazer sentido por
nós ao nos defrontarmos com a obra de Wilson Nanini (CALABRESE,
1998, p. 39).
Diante da criação labiríntica do autor de Quebrantos, os pontos
de referência turvam-se e ocultam-se, fugindo de nossas mãos qual-
quer fio de Ariadne e causando em nosso espírito o prazer intelectual
de descobrir uma ordem onde aparentemente não existe nenhuma,
só caos e mistério. Novamente, seguindo Calabrese, poderíamos
dizer que o labirinto wilsoniano cria um “saber aberto”, posto que
em seus meandros e intersecções podemos sempre descobrir novas
ramificações e caminhos para novos e surpreendentes significados,
deixando o leitor sempre sujeito ao risco da perda de orientação (CA-
LABRESE, 1998, p. 39).
Para traçar essa simplicidade, os poemas encontram o sagrado
no banal e o que há de cru naquilo que há de aparentemente sagrado,
como nas frequentes referências bíblicas e católicas de que se valem
seus poemas, apontando, no entanto, para o catolicismo popular,
onde há o contato direto com a divindade, deixando de lado inter-
mediários e sacerdotes. A poesia é praticada, por Nanini, como um
sacerdócio do extravio, uma “cerâmica das coisas simuladas”, como
no poema “Lâmpada” (CALABRESE, 1998, p. 39).
E a poesia de Wilson transmite a impressão de alguém criando
98 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
esculturas sublimes utilizando somente um barro ao qual ele atribui a
leveza do sagrado, tal como nos quadros do artista contemporâneo
vietnamita Duy Huynh, que representa um homem de chapéu vestido
com formalidade, à la Magritte, mas com um carrossel infantil giran-
do, transbordante, na cabeça. Alguns poemas misturam religiosidade
e sensualidade com mitos universais, vendo a eternidade nos objetos
e imagens mais transitórios ao mesmo tempo em que reafirmam o
prazer dos sentidos como algo profundamente não superficial e sim
sagrado (CALABRESE, 1998, p.39).
Wilson é um poeta “ainda não de todo tocado de espelho e
idioma”, tateando a imagem-voz poética, ensaiando domar tempes-
tades. Diante da tangibilidade do mal no mundo, o poeta responde
que essa presença do mal provoca a poesia, a intima à sobrevivência,
ainda que espremida entre uma rotina aterradora e alentos cada vez
mais ineficientes (VERUNSCHK, 2010, p.1).
O pano de fundo dessa poética de quebrantos é a quebra das ins-
tituições sociais, a constatação da falência de alicerces, antes imprescin-
díveis e à tentativa frustrada de restaurar a espiritualidade religiosa dada
à bancarrota, já há algum tempo. E diante desses impasses, o poeta,
assim como os demais artistas, assume uma obrigação – quase social –
pois testa em si ferramentas de transcendência, um caminho novo que
perpasse ciladas, que perfure cegueiras, que dissolva obstáculos. Poesia
é a possibilidade que ele tem de tirar o mérito do caos, interagir com
as intempéries numa linguagem mágica, mítica, em pé de igualdade. Os
poemas de Wilson são atos de solidariedade: só existem porque o po-
eta quer pôr no mundo o antídoto, a vacina que destilou dentro de si,
de que foi a cobaia. Um de seus poemas, por exemplo, trata da alegria
de ver uma mulher procurando a sombrinha pela casa. Esse pequeno
encontro é algo sublime, é a esperança do encontro na vida, embora

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 99


haja tanto desencontro no mundo:
Preces de um poeta em fase de berçário
que onde houver fronteira,
eu tenha muita asa!
que Carolina consiga encontrar
sua sombrinha cor-de-rosa
perdida pela casa!
pois, antes, em mim havia
um acúmulo de silêncios,
uma demora profunda
do punhal no peito,
uma dor – dor como a de um
caminhão de crianças
caindo na ribanceira,
mas hoje nada temo:
nem um trem de ferro dentro da insônia
nem um avião dentro da turbulência
embora eu não me veja como
um deus lembrado
das coisas ainda não inventadas,
vou sendo um poeta impublicável:
à beira de ser tudo,
consigo ser só
quase
– embora, por vezes, feliz
como o primeiro cego
a ouvir gramofone

(NANINI, 2010).
100 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
Poemas que falam do cotidiano são uma constância inevitável
e muito apetecível na poesia de Nanini, cuja poesia tenta se dissociar
de um discurso literário rebuscado – e, por vezes, vazio – e da visão
caolha de que o poeta é o porta-voz do enlevo. O rumor de um avião
captado em meio à insônia, a mulher correndo ao varal para salvar
peças-íntimas da chuva, abraços recebidos da avó, sua esposa procu-
rando sua sombrinha cor de rosa, e tantos outros sinais de superfície
simples de sua poesia, mas que é, em seu cerne, riquíssima, aceita os
oferendas que o mundo acena ao poeta, e elas, depois de deflagra-
das, passam a habitar nele, num lugar entre pele e alma e, além de lhe
fornecerem um bom material poético (CUNHA, 2011, p. 1).
Guimarães Rosa dizia que escrever é um ato de empáfia, en-
quanto publicar requer humildade. O poeta, matéria escassa, concilia,
na alma, “pedra e vidro”, silêncio e petardo. Sua poesia se alimenta
da sintaxe de riachos, falas feitas de uma mistura de arame farpado,
roseiras e poentes, rezas de benzedeira, totens domésticos, gemidos
de facas. Pois um poeta é um poeta em qualquer âmbito: a noite
o habita. Wilson Nanini é uma pessoa, até certo ponto, melancóli-
ca, nostálgica, um devedor da ancestralidade, da própria e da alheia.
Detêm um gosto ao saudosismo, mas apenas pela alegria já vivida
(VERUNSCHK, 2011, p. 1).
Em termos de afinidades poéticas, demonstra paixão prepon-
derante pela poesia criada por poetas mulheres: Adélia Prado, Orides
Fontela e Micheliny Verunschk estão entre cinco poetas que mais vi-
sita. Os outros dois são Ferreira Gullar e Carlos Drummond de An-
drade. A mulher católica fervorosa tornou-se, para ele, um par per-
feito para o comunista de Itabira. Ele parte de uma premissa familiar
católica, já devidamente abandonada, e a poesia de Adélia, repleta
de nudez e Bíblia, encontrou nele terreno propício para inspirar-lhe
a eclosão de uma nova poética. Quem sabe seja aí, nessa comunhão
onde os dois poetas copulam “catecismos e assombros”, esteja seu

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 101


ponto de contato com Adélia Prado. Ele chega até a dedicar-lhe um
poema em homenagem a esse conúbio em verso:

Poema para Adélia Prado


Estrelas!
no pomar celeste da boca consolidá-las
fotografar o avesso
da treva do ventre do ferro do trem de ferro
convertido em sentimento
o hieróglifos
numa brancura fecunda
de constelar escuros,
de transgredir o tempo
mas recito insontemente: besouros são
sementes
de rinocerontes;
o lunático com um guarda-chuva,
a virgem com uma cabaça,
a beata com um calvário
atravessam a nado meu poema
num olor inato interno que mescla
bois borboletas
Deus: todos os
artefatos álacres
de escavar cosméticos
entre distúrbios
que concretos ou telúricos noitinvadem-me às vezes
NANINI, 2010).
102 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
Os poemas, mesmo os Poemínimos, possuem um “ritmo de
procissão”. Lendo-os, não há como não ouvir como que uma san-
fona ao fundo, um coro de beatas ou ladainhas, haja ou não andor,
ainda que o tema do poema seja uma procissão de insetos em direção
a um cadáver. A poesia de Nanini tem como fundo uma musicalida-
de do interior mineiro: folia de reis, banda de coreto, fanfarra, circo,
procissão de santos, desfiles cívicos, sanfonas e violas. Sua poesia é
filha de tudo isso: é um circo em plena missa, uma missa em plena
orgia, uma orgia em plena ciranda, uma ciranda em plena procissão
(VERUNSCHK, 2011, p. 2).
Alguns poemas misturam religiosidade e sensualidade com mi-
tos universais, vendo a eternidade nos objetos e imagens mais tran-
sitórios ao mesmo tempo em que reafirmam o prazer dos sentidos
como algo profundamente não superficial e sim sagrado. Não há
tanta intelectualização em seus poemas, há uma entrega aos senti-
dos e ao mundo como um fenômeno estético. O mundo subjetivo
e objetivo, em especial a natureza e esse eu do poeta, derramam-se
frequentemente um no outro. Aliás, essa seria a metáfora preferencial
do amor em seus poemas (NOVAES, 2011, p. 2).
A respeito da poesia de Wilson, pode-se dizer que se trata de
uma poesia madura, que encontrou sua voz e estilo próprios. Muito
embora ele se refira a Michelyni Verschunk e Adélia Prado com ad-
miração, sua lírica é muito própria e independente. Sua poesia tem
imagens leves e com colorido. A forma como compõe cuidadosa-
mente seus versos curtos e a separação de sílabas no enjambement é
pessoalíssima. É uma poesia que expressa emoções de forma contida
e intensamente trabalhada em seu artesanato poético. Ele apresenta
preferência por palavras fetiche: “orquídea”, “borboleta”, “rosas”, pa-
lavras relativamente comuns em contexto lírico, mas que nas mãos de

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 103


Wilson adquirem significado bastante diverso em cada poema, signi-
ficado, aliás, que muitas vezes surpreende pela criatividade e pela as-
sociação misteriosa que sugerem. Outro tema que o fascina é o labi-
rinto; sua poesia é, mesmo quando ele faz um poema que é de amor,
claramente, é barroca e labiríntica. Muitas vezes, o poeta usa uma
combinação hermética das palavras. A poesia de Wilson é bem mais
barroca e labiríntica do que cartesiana e seca. O poeta utiliza-se do
paradoxo: a febre é normalmente anúncio de uma doença e não pode
ser dócil nem partilhada. Nanini utiliza-se de combinações inusitadas
entre palavras, da ironia, do contraste e das antíteses (que também
fazem lembrar o barroco). A “cópula de catecismos e assombros”
também se mostra profícua com Micheliny Verunschk, como nesse
poema dedicado a essa última poeta:

Melancolia

luz lâmpada de torre telefônica


– a escureza dissimula o pedestal que a sustenta –
e vermelha verde vermelha amarela
(intermitente farol/sentinela
de pássaros insones/sonâmbulos
de aviões desgovernados/incautos)
paira: pseudo-astro alumbrado

ah meus cantares – policio


cata-ventos pipas em céus de ferrugem
: a alegria, devagar,
acata seus carrascos

e a cidade envolta em
104 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
catástrofes sem reparo
: próteses dentárias extraviadas
relógios de pulso abduzidos

eu – poeta (matéria
escassa)? – nasci para
conciliar pedra e vidro

mas percorro uma distância subterrânea


subcutânea
subterfúgica
e o mundo (tudo tudo!) –
esta manhã vai ficando
cada vez mais noite ampla
(NANINI, 2010).

O poema acima, em sua primeira linha, apresenta uma sequên-


cia sem preocupação gramatical, para enfatizar a urgência: “luz lâmpa-
da de torre telefônica”. A seguir, ele se desenvolve em uma sequência
sobre a tristeza solitária de um amanhecer numa cidade sem nome.
A frase seguinte intercala-se comentando a escuridão que faz com
que a luz pareça estar flutuando. Assim, encontra-se em Melancolia
um poema típico da lavra wilsoniana. Entre seus recursos já citados
anteriormente, ele experimenta outro: como Drummond, ele aproxi-
ma a palavra do próprio signo, que é um sinal de trânsito: “vermelha,
verde, vermelha, amarela”. Assim, faz com que o ritmo das palavras
imite a mudança de cores no semáforo luminoso, como se as palavras
fossem o próprio objeto que elas têm como referente. A frase interca-
lada, além de introduzir uma quebra no ritmo do poema, introduz um
neologismo: “escureza”. A primeira linha relaciona-se com a terceira.
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 105
As duas frases têm, em comum, o fato de se organizarem mais pela
semântica do que por sinais de pontuação. Com esse poema, Nanini
demonstra habilidade para, ao mesmo tempo, copular assombros e
catecismos, pedra e vidro, o canto para alegrar a cidade e o duro ofí-
cio de patrulhá-la. O poeta também policia “pipas e cata-ventos em
céus de ferrugem”, num verso que define tanto sua criação quanto,
de certa forma, seu diálogo com o diferente (no caso, o feminino)
e, de certa forma, também o autor no sentido biográfico (NOVAES,
2011, p.1).

CONClUSÃO

Os poemas de Nanini estão em constante transformação, ele


os trata a poder de faca, a corte impassível. O que se analisou aqui
é apenas uma amostra, realizando uma apresentação mais que ne-
cessária do poeta na forma de um artigo acadêmico. O blog é um
modo fantástico de expor aos olhos alheios o avesso transformado
em palavras. E, consequentemente, de aferir sua relevância, diante
de observações muito, muito pertinentes. Alguns dos poemas (em
especial os da primeira safra) que foram publicados em meu blog já
tiveram toda sua estrutura modificada. O poeta acredita em uma obra
dada pela vida. Sua poesia nasce da pedra bruta: há poemas que vem
trabalhando há anos, e, não raras vezes, pouco após achá-los bem
esculpidos, se percebe algum lapso, ele os “despoema”, os dilacera
rapidamente.
Wilson Nanini, afinal um poeta de 28 anos, traz em seus poemas
uma carga de paixão que é bem a cara da juventude em processo de
descoberta – e desilusão – do mundo. Para traçar essa simplicidade,
os poemas encontram o banal no sagrado e o que há de cru naquilo

106 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


que há de aparentemente sagrado, como nas freqüentes referências
bíblicas ou católicas de que se valem seus poemas, apontando para o
catolicismo popular, onde há o contato direto com a divindade, dei-
xando de lado intermediários e sacerdotes. A poesia é praticada, por
Nanini, como um sacerdócio do extravio, uma “cerâmica das coisas
simuladas”, como no poema “Lâmpada”. Como no catolicismo po-
pular, é sem cerimônia que Nanini se refere ao sagrado. E sua poesia
transmite a impressão de alguém criando esculturas sublimes utilizan-
do somente um barro ao qual ele atribui a leveza do sagrado.

REfERÊNCIAS BIblIOgRáfICAS
CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca. São Paulo, Martins Fontes, 1988.
CUNHA, Pedro. Pensamentos e outras letras. Disponível em: >. Acesso em 17
de junho de 2011.
VERUNSCHK, Micheliny. O cotidiano sagrado da poética de Wilson Nanini.
Revista Cronópios. Disponível em: . Acesso em 19 de junho de 2011.
NOVAES, Marcelo. Nota de rodapé. Disponível em: . Acesso em 16 de junho
de 2011.

A MORTE PORCA É BElA!


Jesus eu achava que você era carne escrita/Mas você é escrita
de carne.
Trecho do livro Coisa de Louco, de Lúcia Castelo Branco

Morte Porca (Edições Selo Zero, 2002, selozero@hotmail.


com), amostra da prosa do jornalista Wir Caetano, possui um arroja-
do projeto gráfico da autoria de Juarez Gonçalves. Isso. Sim, a capa de
Morte Porca é Bela. Já o texto não se ocupa da beleza das formas clás-

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 107


sicas, ou pelo menos rejeita violentamente a idéia da literatura como
sorriso da sociedade. Adentrando suas páginas, o texto me remete ao
artista plástico Pedro Moraleida (1977-1999), que reuniu lixo e pintou
sobre uma camisa: “A barbárie também é poesia”. Em sua vez, e pro-
vavelmente sem ter conhecido “Moral”, Wir Caetano diz: “A poesia
é uma coisa ordinária”. As palavras chulas no conto Trate-me Leon
em inglês reforçaram essa impressão: Moraleida sempre ilustrava os
quadros com frases em português, inglês ou alemão, contendo frases
de amor desfeito ou não. Afinal, se a pornografia é desfazer o amor,
W. Caetano desfaz as narrativas no aspecto formal, acompanhando a
desfeita das relações homem/mulher. No texto de W. Caetano reina
o anacoluto, tal como nos textos de outro prosador nascido no prin-
cípio dos anos 60 tal como Renato Russo e Bono Vox: Jorge Pieiro.
A Morte Porca contagia. Belesma. Mistura da beleza e da les-
ma. O texto de Wir Caetano é seminal, ou seja, estimula-nos a entrar
em sua tripi. Nós também derramamos nossa semente. Ele é o Cae-
tano que fala de bosta, de próstata, sem discos, mas mesmo assim
sua dentadura antropófaga morde fundo. Deixa na sua carne aquela
ferida. Sossega leão! Algumas vezes a prosa se desprega e assume o
formato da poesia. O homem comeu peixe (atum? Irrthum?) & o
peixe é símbolo caro aos cristãos. Jesus multiplicou peixes & depois
virou peixe. Referiam-se a ele de forma cifrada a ele enquanto Ictus: as
iniciais significavam Inri Cristi Teum Sanctus. Porém, “foram as letras
que comeram o homem”, como diz o narrador da Morte Porca. Esta
obra trata das ruínas urbanas, mas principalmente da ruína da rela- NÃO
ção homem/mulher, assunto presente no ambiente jornalístico tréxi SERIA
TRASH
de “Bandido Bate Palminha”. Morte Porca é bom no encaixe entre
palavra e imagem. Trata-se de um bode fenomenológico, urbano,
arruinado, e que ama os detritos. Mas não torçam o nariz: o ar nau-
108 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
seabundo que haurimos em Morte Porca não é estranho às páginas
policiais lidas com gula em nossos jornais, onde ocorrem MORTES
PORCAS REAIS. Não seria o Brasil? Fascinado com o tema da ruína,
tratei disso na minha dissertação de mestrado, intitulada As Imagens
do Brasil em O Estrangeiro de Plínio Salgado:
Dá o Brasil, por vezes, a impressão de uma dessas obras
feitas às pressas, errada desde os alicerces até a última
descrição interna; em corrigindo aqui, em retocando
além, terminamos por nos convencer de que o remé-
dio decisivo estaria na sua destruição total, para a re-
começar, cuidadosa e pacientemente, sob outras bases.
E como não é possível destruir uma nação, como se
destrói uma casa, temos que limitar a nossa atividade
a esta obra de reformas e de retoques diários, a esta
espécie de equilíbrio instável, que tão bem caracteriza
a nossa vida pública...Realizamos o estranho paradoxo
dum país novo e semideserto eivado de taras especiais
das civilizações esgotadas, uma Grécia ou Espanha em
decadência e em ruína. (José Maria Bello, Apud: LUCA,
1998, p.190)

A nossa ruína: carne humana flanando do alto do edifício Acaia-


ca em busca de sentir o gosto do seu próprio espatifo, de seu próprio
nada.

A VIDA SUSPENSA: CONTOS DE FábIO CAmARgO

Os contos de A Vida Suspensa, de Fábio Camargo, me faz lem-


brar a recente polêmica que travei com Cristiano Alves do blog Pági-
na Vermelha, autor que, de forma moralista e antidialética, quer com-
bater em nome da moral “proletária-dilmista” todos os movimentos
de direitos civis. Ao contrário, o livro de Fábio mistura engajamento

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 109


político à esquerda (como nos contos Trabalhador Brasileiro, A Ilha
e Companheira) e agrega a diversidade sexual como um elemento
de autenticidade a mais em sua escritura e temática (como no con-
to A Troca e No Mores Kisses), mas não um elemento, como quer
Cristiano, de “pós-modernismo decadente”. Assim sendo, o texto de
Fábio tem passagens muito importantes, pois valorizam a luta das or-
ganizações revolucionárias dos anos 60 e 70 e que são perfeitamente
verdadeiras do ponto de vista marxista, tais como:
– Mãe, o negócio é o seguinte: a repressão tem descido
o cacete pra cima de todo mundo e nós estamos na luta
armada para trazer ao Brasil a liberdade, a justiça que
esses milicos não querem nos dar. O grupo que se reú-
ne aqui vai cair na clandestinidade, todos teremos que
fugir e desaparecer. Eu e o Roberto também, e por isso
eu preciso de armas, para combater pela liberdade do
Brasil e dos brasileiros. (CAMARGO, 2014, p. 73)

Esse mesmo livro de contos que tem uma passagem libertária


como essa, tem também passagens que Cristiano Alves, com certeza,
repudiaria como “pós-modernas” e “porcas”:
No meu delírio eu afagava seus cabelos (...). Era como
se uma onda forte tomasse conta de mim como se
eu me elevasse acima da cama na qual nós estávamos
como se eu crescesse ainda mais quanto mais eu me
intumescia lá dentro daquele buraco apertado e quente
e macio que me recebia querendo me expulsar até que
minhas mãos agarraram o pescoço dele e eu comecei a
apertar mais fortemente e aperta ouvia seus gritos que
naquele momento eram grunhidos sempre com mais
força eu apertava como se tivesse garras (...) (CAMAR-
GO, 2014, P. 55).

110 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


Assim sendo, em algumas passagens como essas acima, or-
gânicas e autênticas no andamento dos contos, mas escandalosas
acaso citadas isoladamente, o livro de contos de Fábio me faz lem-
brar Jean Genet em Nossa Senhora das Flores, assim como Pasolini
e a linguagem desabrida de André Sant'Anna em Sexo. A experiência
material e prática com a qual os contos lidam, que é em grande parte
NÃO SERIA a violência e a homossexualidade, sobressai mais do que o trabalho
DECADENTE
com a linguagem e, dada matéria tão candente, terminamos por não
focar na escritura, ou seja, no “como” uma “coisa” é contada e sim
naquilo que está sendo contado, como é por demais dramático. O
conto O Beijo esboça uma ética materialista sobre o amor: “Afinal
amar é sofrer e o amor espiritual nunca foi nada além de uma ilusão
criada pelos poetas (CAMARGO, 2014, p. 48).
O que me espanta é que, dado o assunto, a linguagem de re-
pente se torna uma escritura branca, transparente, dando lugar para
que possamos focalizar principalmente os objetos nos quais ele fo-
caliza sua atenção. Embora o autor tenha escrito mestrado sobre as
mulheres de Machado, não há aqui finuras de machadiano e nem suti-
lezas marotas. Pelo contrário, os gritos de sua escrita “homocultural”
saem roucos e guturais.
A Vida Suspensa é sem dúvida um livro necessário, um objeto
inteiriço que nos queima as mãos. Os contos se interrelacionam:
O Beijo, o Garoto e No More Kisses são um crime passional visto
de vários ângulos; Desvario, Desgosto e Na Saída do Cinema são
também um ato violento e criminoso visto por diversos pontos de
vista, marcando o forte vínculo de Vida Suspensa ao cinema. Dian-
te de um livro novo, sempre nos perguntamos: por que escrever
mais um? Diante de Vida Suspensa, no entanto, não há esse tipo
de indagação. Esse livro é quase um ser vivo, escrito com sangue,

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 111


pulsando. Como o próprio autor define em Desgosto: “Não havia
mais separação; a ficção tomava de assalto a realidade, ou a ficção
estava demais impregnada de realidade." (CAMARGO, 2014, p. 33).
Apenas no último conto, Espaços, a escritura branca se des-
vanece e surge uma elucubração teórica camarguiana -- ele, então,
se define de corpo inteiro, definindo seu leitor como um espelho
quebrado e, muito bem, definindo sua escritura: “pois este me lê
em partes assim como meu texto só o suporta pelos fragmentos”
(CAMARGO, 2014, p. 88). Assim finaliza-se esse livro de contos
que nos deixa sempre com a respiração suspensa e, na realidade,
não finda quando terminamos a leitura, pois nos deixa com suas
imagens acompanhando-nos, suspensas no ar, após a leitura. Isso
é uma grande vitória para um autor nos dias que correm.

CENAS DElICIOSAS DE ANTROPOfAgIA: O WIDU DE LAgARES


Em seu romance Widu, Muito Além do Silêncio, romance da
história da Filosofia, o especialista em hipnose, coronel da PM e mes-
tre em aikidô Alcino Lagares enfrenta um desafio: trazer a Filosofia de
uma forma ágil e facilitada para os jovens. E é bem sucedido. O livro
tem muitos diálogos, ilustrações, adota todo um formato editorial
atraente e arejado.
A narrativa conta a viagem de um grupo de sábios brasileiros à
Nova Guiné, selva selvagem onde são aprisionados por um grupo de
antropófagos. Uma vez presos, são submetidos a um desafio por par-
te do sacerdote local: ou respondem o motivo pelo qual existe tudo
ao invés de existir nada ou são devorados num ritual antropófago.
Essa provocação motiva os sábios a saborosas discussões sobre o ser
e o nada para não serem comidos.
Ora escrito num tom de pornochanchada filosófica, ora história

112 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


da Filosofia de uma forma ao mesmo tempo digestiva e com sabor
brasileiro, esse banquete homérico onde Alcino reina nos diverte e
instrui. Retomando indiretamente o conceito filosófico brasileiro mais
bem sucedido mundialmente (a antropofagia de Oswald de Andrade)
a uma narrativa ao mesmo tempo máscula e sexy, consegue misturar
monadologia e sexo. Sendo assim, em sua prosa gostosa aprende-
mos muito sobre as “mônicas”, como dizia Caio Fernando Abreu,
também ele um antropofágico escritor estudante de Filosofia. Com
uma desenvoltura e irridescência tropical que surpreenderia muito o
filósofo de Konigsberg, as antinomias masturbatórias kantianas são
temperadas com bastante sexo, Freud e Lord Byron.
As divagações, no entanto, não chegam a bom termo, uma vez
que surge um conflito entre o líder político e o líder religioso dos
antropófagos. O ponto aqui parece-me ser o seguinte: os discursos
se esbatem e não sabemos ao certo em que ponto finalizou a discus-
são, o livro a deixa em aberto. Ou melhor: pode-se depreender que
as conclusões são, como as do filósofo platônico Russel Blade, alter
ego do Cel. Lagares, agnósticas, ou seja, não se pode dizer nem que
Deus existe ou não existe. Porém, pode-se supor que, atualmente, no
embate entre ciência e fé, a ciência e a razão estão num estágio tal que
conseguem vencer a religião.
A meu ver, Alcino obteve sucesso em seu intento: a grande dis-
cussão que ele focaliza é uma discussão comum entre adolescentes e
jovens hoje em dia: a oposição entre ciência e fé, entre materialismo
e idealismo. E essa discussão é que forma o clímax de seu romance,
quando debatem um rabino, um cientista ateu, um arcebispo e um
professor de Filosofia agnóstico, é bem interessante, ágil e azeitada,
podendo efetivamente atrair o interesse do público que ele visa ao
escrever um livro.

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 113


O livro possibilita um interessante confronto com Mundo de
Sofia de Jolstein Gaarder. Enquanto o Mundo de Sofia é um livro para
uma moça, Widu é masculino: há golpes de aikido, confrontos com
nativos antropófagos, viagens internacionais a um país como a Nova
Guiné, muito sexo, antropofagia e aventuras. Há muita ação, enfim,
elemento que é sacrificado em prol das discussões filosóficas em O
Mundo de Sofia. Além da derrota dos nativos com golpes de aikidô
em sequências ao estilo do cinema norte-americano, há também uma
história de amor e sexo em uma ambiência como a do filme “Lagoa
Azul”. O livro tem todo um vocabulário próprio, numa mistura
filosófica eclética e trepidante.
Em suma, ao final do livro não há como não terminar gritando:
“Kakhua! Laleô!” “Kakhua, laleô”, Alcino!

BECO DO ESCARRO
Fragmentos Inéditos de Oswald de Andrade

Os textos que aqui apresentamos são fragmentos garimpados


no arquivo CEDAE/UNICAMP, local onde está o acervo de Oswald
de Andrade (foram consultados os cadernos 1272, um caderno marca
Guarany 1280 e um caderno azul-marinho, número 1264). São apon-
tamentos esparsos de um romance incompleto. Eles comporiam o
terceiro volume do romance cíclico Marco Zero, do qual foram publi-
cados dois volumes: Revolução Melancólica e Chão. Estavam reuni-
dos num caderno de trezentas páginas, mas com anotações somente
no início e no fim, sob o título de Beco de Escarro. Em Marco Zero,
Beco do Escarro um aglomerado de bares do centro de São Paulo
onde viviam os desvalidos da metrópole, bêbados, fracassados, va-
gabundos e boêmios. São as inúmeras notas para “Beco and After”,
114 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
datadas de 29-11-1947 e maio de 1948, Oswald fez as seguintes ano-
tações, num conjunto mais substancioso, que foram debatidas aqui.
Oswald mesmo afirmou que Beco era o “recomeço de trabalho longo
tempo desviado” (ANDRADE, 1947).
Foram textos escritos sob o signo dos reveses que se acumu-
laram para Oswald no fim da vida. Rompido com os comunistas,
Oswald ficou numa posição difícil, combatido tanto pela esquerda
oficial quanto pelos conservadores, para os quais não era confiável.
Para agravar mais o quadro, seu estado de saúde foi piorando entre
o final dos anos 40 e o início da década de 50. O primeiro fragmento
de Beco do Escarro descreveu o momento em que foi encontrado
o corpo da personagem Lindáurea, vítima da “devoração universal”:
Junto ao muro, o boneco de engonço pendia sobre o pequeno
saco largado, preso no escuro das árvores. Seguira-se um silêncio
de devoração, onde o cigarro do homem não (...) mais. Um auto-
móvel passava estrídulo, luzes vermelhas ativas. O boneco descera,
duro, enorme, sobe o saco espedaçado. Lindáurea despendia-se dos
braços do homem (...). Um bafo de jasmin inundara a rua deserta
(ANDRADE, 1947)
A imagem acima descreveu um corpo tornado objeto, coisa
inerte, ou seja, uma denúncia de um processo de desumanização. To-
dos os fragmentos foram marcados por cenas de mulheres rebeldes:
a rebelião contra a vida de Lindáurea, a rebelião de Miguelona contra
seu destino e contra a família, a rebelião da filha de Diná, uma adoles-
cente rebelde que teria lido Freud, Schopenhauer e Nietzsche aos 14
anos, que se atreveu a dar “lições de psicanálise”, por supostamente
conhecer muito bem esses autores:
“Ela (a filha de Diná) retrucou: – você é um imbecil e
mamãe é uma cretina. Ela é bonita e moça e podia mui-

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 115


to bem ter dez amantes (...). Um atrasado como você,
um besta e um chato. Se eu fosse a mamãe te corneava
todos os dias!” (ANDRADE, 1947).

A cena seguinte foi montada também de modo a apresentar o


universo de um movimento em um fórum como sendo também frio e
desumano, além de repleto de contrastes sociais:
Aquilo ali era o Palácio da Justiça. Uma grande constru-
ção nova abafada de casas da velha cidade. Miguelona
Senofim entrava hipertensa seguindo um grupo de ho-
mens. Havia outra mulher no elevador. Saiu atrás dela
no último piso. Ali era a secretaria do tribunal. E ela
pôs-se a descer, a subir escadas, a percorrer corredores
escuros, a espiar as salas abertas e ativas no tumulto do
dia jurídico. Tinha tudo dum palácio, a grandiosidade
e o aperto, mas parecia uma feira, tal o movimento de
pessoas de todos os aspectos sobraçando pastas, levan-
do papéis, saindo, correndo (...).

O elevador despejou-se com ela no primeiro piso. Os circuns-


tantes sorriam. E durante alguns minutos a velha de óculos pateteou
pelos páteos, pelos corredores até que um grilo levou-a ao vasto pe-
ristilo central e lhe mostrou a porta do júri fechada.
– Está de férias!
Largou-a ali como uma criança abandonada. Ela perdera o ob-
jetivo. Encaminhou-se para a saída lateral, mas alguma coisa a retinha.
Era impossível que a justiça dormisse enquanto andavam soltos e impu-
nes os assassinos, os traidores e os ladrões de sua classe.
Mais adiante, Miguelona sentiu a “tragédia econômica” de sua
vida, pois sua irmã, D. Europa, fora mais sabida do que ela: “Ela nun-
ca mexera com o que tinha recebido – aquele renque de casinhas
operárias da rua Espósito.” Já a parte de Miguelona, uma vila numa
116 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
ponte terrosa da Móoca e os dois sobradinhos na Rua dos Estudan-
tes, ela trocou pelas terras imaginárias do Major. Chorando e xingan-
do, Miguelona repetiu para todos no fórum seu infortúnio:
“Stô na Formosa pratando argodó di meia. Fui lá que
o Índio Cristo deu em cima da Vesguinha e fiz morrê
inforcada a Maria Pedrão. Agorra vim aqui e o júri tá
fechado! Depois que mitomaro as terra tirrei as lágrima
dos óio. Fui robada do Majó! Nigócio com gente gran-
de non faço mais. Donde é a cadeia? Quero i na cadeia
(ANDRADE, 1947).

Segue-se um corte e, mais adiante, já estamos na “Vila Miguelo-


na”, espaço criado pela cínica D. Europa. O conflito nessa passagem
foi entre a mulher de Zico Venâncio e Maria Parede, um conflito que
espelhou o confronto entre a operária e a sedutora comunista de ori-
gem burguesa, provocando a revolta da mulher do operário:
Fora roubado (seu homem), primeiro pela causa comu-
nista. Não pudera assistir à agonia do filhinho em 32.
Tinham vindo buscá-lo e soltaram-no no final da revo-
lução (...). Crescera seu entusiasmo (de Zico) pelo co-
munismo como se visse na adesão da burguesa instruída
e bonita (Maria Parede) uma confirmação de seu des-
tino político. O comunismo era bom para os ricos, que
podiam se esconder, fugir, pagar advogados, receber na
prisão a comida dos restaurantes e a visita dos parentes.
E não eram espancados. Havia uma porção de gente
fina metida com os operários. Era gente formada, mas o
Dr. Torres lhe dissera que tudo aquilo era falso. Faziam
por vaidade, para terem vida interessante (ANDRADE,
1948).

O tema acima foi recorrente em Beco do Escarro: a crítica ao


comunismo. Na prática, continuou existindo a divisão entre pobres e

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 117


ricos, até mesmo dentro da luta comunista; Maria Parede veio trazer
mais problemas para o lar ao seduzir o marido operário:
Estudar a psicologia profunda. A história do homem é a
história da sua fome. O homem depois de satisfeita a sua
fome tem outra história, outras necessidades daí virem
as superestruturas e a divisão em classe. O trabalhismo,
a desorientação comum. O sectarismo e a inquietação
do proletariado. Prestes abúlico e reformista. Está per-
dida a grande militância.

A seguir, há uma nota chamada Marco Zero e a Comédia Hu-


mana. Oswald escreveu: “Balzac psicanalisa os personagens imedia-
tamente. Tudo isso é pinto perto de O Muro” (ANDRADE, 1947).
Outra figura feminina rebelde e insatisfeita com seu casamen-
to foi Stella. Ela surgiu mais adiante, num fragmento intitulado “Via
Sacra”, que contou a história de amor entre Stella e Vinícius. Oswald
buscou parodiar os diálogos Kitsch de uma fotonovela, inclusive com
um diálogo humorístico em que o apetite sexual foi equacionado com
a fome orgânica. O drama foi reduzido ao mínimo, numa narrativa
simples: Vinícius era casado e Stella, apaixonada, sofria com isso.
Logo quando se encontraram, Vinícius disse:
– Bravo, Stella! Uma vez mais você é pontualíssima nos
nossos públicos encontros! Faremos novamente a mes-
ma via sacra, apreciando os mesmos programas que
este jardim nos oferece (...).
– Vamos ver os peixinhos?
– Por que não? Quantas horas em seu relógio?
– 7,30, criança!
–Você disse criança? Por quê?
– Irrefletidamente. Sinto-me tão bem (...). Sabe que
gosto de versejar?
– Sei também que você não há de querer chegar tonto

118 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


em casa!
– Ironia?
– Não. Fome. Cansaço. Não está cansadinho?
– Não. Tem fome? Quer amor?
– Não, obrigada. Sinto-me tão bem que nem nisso pen-
so, além de que, nenhum sintoma de apetite.
– Amo-o muito, muito e muito.
– Obrigado, querida. Seja feliz. Que Deus a abençoe
(ANDRADE, 1948).

Mais adiante, a moça ingênua, quase tola, contou para o padre


de seu amor por um homem casado e levou um cômico sermão. Além
dessa verdadeira paródia de uma fotonovela ou dramalhão, onde o
oposto do pecado é aquilo que o antropófago mais fez: desejar o
alheio. As cenas escritas para Beco do Escarro caracterizaram-se por
conter brigas de família, polêmicas e discussões. As figuras de mulher,
sempre problemáticas, reaparecem aqui e ali:
“O pobre milionário que acumulou fortuna sente-se do-
ente e cansado aos 40 anos e impotente para vencer
a turma de Ubaldos e de Fúlvias que tem em casa. A
mulher uma pata-choca” (ANDRADE, 1948).

Finalmente, podemos dizer que Oswald buscou onde estavam


as deficiências nacionais para aí atacar e produzir uma obra. Primeiro
inovou na literatura, produzindo poemas e romances. Depois tentou
o teatro e finalmente quis inserir a filosofia como motivo-guia de seus
romances. A filosofia, no final de sua vida, foi uma força que o impul-
sionou. Dela tratou o personagem Dago Lima, nos seguintes termos:
Eu deixaria de ser Eu (nota prerrogativa. Eu quer dizer
Kierkegaard, Nietzsche ele). Se não agisse assim. Em
pânico diante do Nada que se levanta e opõe em meus
caminhos. Como Kierkegaard, a minha verdade está
na derrelição metafísica (...). Eu defendo a Gioconda.

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 119


Identificação de classe. O primeiro sorriso burguês! Era
muito fácil, no entanto, recorrer ao humanismo (AN-
DRADE, 1948).

E assim o texto prosseguiu, com referências às questões exis-


tenciais e ao Idiota de Dostoievski, a Sartre, entre outros. Oswald
seria um detector de áreas problemáticas da vida artística nacional.
É para essas áreas que ele dirigiu seu espírito crítico, sabendo-as ca-
rentes de desdobramentos no futuro. Ainda que deixado apenas no
esboço, Beco do Escarro serviu como um interessante esboço da pai-
xão de Oswald pela filosofia. Ele buscou, naquele momento, debater
o que de mais atual existia na Europa: o existencialismo. Resta-nos
investigar o que sobrou de seus experimentos e debater a forma de
humanizar o homem, envolvido agora em devorar a si mesmo e ao
planeta Terra, como mostram fenômenos como a globalização e o
aquecimento global.

BIblIOgRAfIA
ANDRADE, Oswald de. Beco do Escarro (fragmentos inéditos produzidos en-
tre 1947 e 1948). Campinas: CEDAE/UNICAMP, 2007.
____________________. Chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
___________________. Estética e Política. Rio de Janeiro: Globo, 1992.

120 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 121
122 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
3
CRÔNICAS NO JORNAL CORREIO
BOM-DESPACHENSE E OUTROS JORNAIS

Durante um ano, entre 2005 e 2006, trabalhei como colunista


no jornal Correio Bom-Despachense. Foi uma gratificante experiên-
cia e parte da produção foi recolhida aqui. Minha coluna chamava-se
Gente é Pra Brilhar. Sou muito grato ao editor, o grande professor
Getúlio. O próprio Getúlio foi homenageado numa coluna. Nesse
rico período lancei um livro chamado Penetrália, graças ao editor e
escritor Fernando Gonzaga, também homenageado em minha colu-
na. Nesse período fiz também um vídeo para o Big Brother em que
eu aparecia vestido de mosqueteiro, Big Brother Literatura Brasilis,
que perdi, assim como toda a minha produção audiovisual: os vídeos
O Corte, Desaparecidos Entre Ruínas, Une 97 em Belo Horizonte. O
único que é testemunha desses esforços chama-se Hospício é Deus,
disponível no youtube, que tem um roteiro meu adaptado pelo dire-
tor Sérgio Villaça. É com carinho que lembro-me do amigo falecido,
Laender Moura, também editor e diagramador e idealizador da colu-
na. Textos em homenagem ao professor Elvino e a Helena tiveram a
ajuda da minha querida Laudelina da Silva.

A todos agradeço.
UmA OCAIA AVURA: MARIA APARECIDA DA SIlVA MARTINS: PARÉ
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 123
TAbACA

Nascida Na Tabatinga, pelas mãos de uma parteira, Maria Apa-


recida da Silva Martins, mais popularmente conhecida como Paré Ta-
baca, é, segundo suas próprias palavras, uma pessoa? alegre, sem
depressão, católica, cafuvira também?. Formada como Técnica em
Enfermagem aqui em Bom Despacho mesmo. Sua família é de Reina- Estes textos

deiros. Seus pais eram lavradores. Eram sete irmãos, uma já falecida. estão cheios

É a caçula da família. Deve muito à família, uma família humilde, mas de interroga-

honesta, destaca ela. ?São muitos irmãos, irmãs, tios, primos a quem ção. É assim

tenho que agradecer, muito unidos, graças a Deus. Mas, em especial, mesmo?

ao meu tio Expedito e à Carmelita?.Casada com Carlos Alberto Mar-


tins, o Bebeto, com quem tem dois filhos encantadores, João Pedro
(doze anos) e Ana Carolina (dez anos). Bebeto trabalha com móveis
artesanais de juta e cana-da-índia, mas não entrou no Mapa Artístico-
-Cultural de Bom Despacho (atenção, secretaria municipal de cultura,
artes e turismo!). Bebeto faz móveis (cadeiras, mesas, sofás, estan-
tes) por encomenda e por pronta-entrega. Atende em casa mesmo,
na própria Tabatinga. Caso alguém se interesse, aí vai o telefone para
contato: 3522 4031.
Gosta do povão e do carnaval. Tinha uma turma que vale a
pena lembrar, a Sem Compromisso, que foi muito unida. A turma rea-
lizava tudo junto: faziam via-sacra na sexta-feira da paixão pelas igrejas
da cidade, rezavam, se alguém precisava de uma cesta básica, arru-
mavam os mantimentos. Agora todo mundo casou, é diferente, mas
continuam amigos. Paré estudou na Escola Estadual Miguel Gontijo
e trabalhou na Casa Freitas como balconista por dez anos, experiên-
cia da qual gostou muito. Atualmente, já tem vinte anos de trabalho
como Técnica de Enfermagem da Prefeitura. Trabalhou no posto do
124 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
Asilo, no Engenho, no bairro São Vicente, atualmente está na Policlí-
nica Doutor Gê. Diz ser gratificante trabalhar como Técnica de Enfer-
magem. Agradece a todos os colegas de serviço, todos os médicos
e enfermeiras, a todo seu meio. Também conhecida como ?Paré En-
fermeira?, diz que seu trabalho é aquilo que gosta. Acompanha tam-
bém a política. Por sugestão do Bil Morais, fundou a Associação de
Moradores da Tabatinga. Também com Bil e uma turma grande, foi
a São Paulo, para um Congresso de Associações de Moradores, no
Pacaembu; esteve também em Brasília para a posse de Tancredo. A
turma foi de ônibus fazendo festa; Hélder Paiva avisou que Tancredo
tinha sido internado, mas ninguém acreditou. Só quando chegaram à
capital é que viram que era verdade.
Em todos os lugares onde vai, divulga a Língua da Tabatinga, sem-
pre com muito bom humor. Até hoje é muito amiga do Bil: sempre quan-
do ele a vê, chama-a: “Ô ocaia da Tabaca, ocaia avura!” E, concordo,
com muita razão. Ao contrário de muitos, gosta de morar na Tabatinga
e prefere esse nome, com toda sua tradição, ao nome Ana Rosa. Vou
ensinar meus meninos a falarem o dialeto, ou melhor, já estou ensinando.
Na Língua da Tabatinga, Paré é craque. Aproveito essa ocasião para fazer
coro com o Bil: parabéns pelo seu trabalho, ocaia avura!

LEVANDO BOm DESPACHO PARA O MUNDO: JORgE FERNANDO DOS


SANTOS
A propósito do aniversário da cidade, saio em busca de sua
presença no mundo. Gostaria de homenagear alguém que valorizou a
Língua da Tabatinga, um linguajar muito nosso. Trata-se de Jorge Fer-
nando dos Santos, escritor de romances, contos e poemas, infantis e
adultos, editor do caderno D+ (Estado de Minas). Jorge Fernando
é admirador da Língua da Tabatinga. Ele conheceu as palavras da
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 125
Língua do Negro da Costa através do livro Pé Preto no Barro Branco,
de Sônia Queiroz. Interessou-se por elas e colocou-as na boca de um
personagem de seu livro Sumidouro das Almas (2003, editora Ciência
Moderna). No romance Sumidouro das Almas, a língua do negro da
costa? serviu para compor o personagem do negro Nonô Carvoeiro.
O romance é uma experiência válida de revitalizar esse linguajar, fa-
zendo dele uma utilização prazerosa. A fala de Nonô Carvoeiro, per-
sonagem que utilizou a “língua” é a fala seca de alguém de poucas
palavras. Inúmeros vocábulos da gíria dos cuetes foram citados no
decorrer da narrativa: “ongoró”, “canguro”, matuaba, quibas, camar-
go, grozope, respectivamente: cavalo, porco, cachaça, órgãos geni-
tais, pênis e cerveja. Para não comprometer a mensagem, o narrador
colocou a palavra na língua da Tabatinga e bateu ao lado um sinôni-
mo em português claro. No final ficou a mensagem, ou moral da his-
tória, do cantador de feira do nordeste: A vida não vale um desatino.

Pois o Mundo não passa de um livro


Cordel em rascunho mal escrito
Pelas mãos trêmulas do destino
Seja homem, seja mulher, seja menino
Cada qual acrescenta seu capítulo
A palavra é frágil feito vidro
Mas foi Deus quem inventou o verbo
Que se fez carne e era seu Filho
O verso é luz do poeta cego.

MARqUINHOS BACARá: Um BISAVÔ NO DIA DOS PAIS


Meu amigo Marquinhos (Marco Antônio Silva, que na foto
aparece acompanhado de sua companheira Odete) nasceu na Cruz
126 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
do Monte e seu aniversário foi no dia 26 de julho passado. Quando
criança, carregou muita comida para os empregados da Rede Ferro-
viária. Na fase adolescente, por volta de treze anos, comenta que era
muito difícil estudar. Na escola, a merenda era um caldo ralo de To-
ddy. O pai, Antônio Francisco da Silva, trabalhava numa escola agrí-
cola, onde atualmente localiza-se a FEBEM. Com cinquenta e cinco
anos, Marquinhos é um bisavô muito orgulhoso e feliz. Infelizmente,
o pai faleceu há vinte e cinco anos, enquanto a mãe (Francisca Idalina
de Jesus) permanece forte, é doméstica e cozinheira. Ela trabalhou no
Hotel da Lia, depois foi trabalhar para o Dr. Gê. O pai, que também
tinha o nome de Bacará, ajudou a fazer o livro de Sônia Queiroz (Pé
Preto no Barro Branco). Bacará ia tipurar no Bar Tupã, no Sinucão,
Bar do Gilson, etc. Tinha um grupo de amigos que conversava muito
na Língua da Tabatinga. O pai sempre gostava de tocar sanfona e
sempre apoiou Marquinhos. Quem mais deu força foi o falecido Zé
Vicente, funcionário da Rede Ferroviária. Ele dizia que eu um dia ia ser
sanfoneiro de Corte de Reinado
Quando começou a tocar sanfona, estava com a idade de vinte
e dois anos. Nessa época já participava de cortes de Reinado, em
especial do Corte do Baiano. Uma das alegrias era a Folia de Reis em
dezembro e janeiro. Era o maior presente para as pessoas da Taba-
tinga quando chegava a época de Folia de Reis e Reinado. Era uma
alegria grande mesmo, depois uns bebiam um Guaraná, outros uma
cervejinha. O segundo corte do qual participou foi o do Miguel, o ter-
ceiro foi o do Dunga. E agora Marquinhos é sanfoneiro do Corte do
Vital. Marquinhos gosta de falar na Língua da Tabatinga: ?O urungo
já invêm da cumbara avura? (o ônibus já vem da cidade grande), diz
ele, lembrando-se dos tempos de carregador de malas. ?O cuete do
urungo marcha lenta está chegando aí? (motorista do ônibus marcha

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 127


lenta está chegando aí), falavam os amigos de Bacará que, junto com
ele, pegavam as malas. Quando chegava ali no Hotel Glória, cuete
não é do cumbara nosso não, vamos caxar ingura avura? (o cara não
é de nossa cidade não, vamos ganhar dinheiro?), diziam.
Era uma turma muito organizada. Existia quem apoiava os car-
regadores de malas, tais como Geraldo Robertinho e sua mulher, Eva.
A D. Eva gostava que jantássemos na mesa com ela. Ela sempre teve
consideração conosco. Geraldo tinha prazer de receber a gente (os
meninos da Cruz do Monte e da Tabatinga). Marquinhos tinha doze
irmãos e só quatro são vivos atualmente. Os que moram em Bom
Despacho são: João Raimundo, José Eurípides, Jorge Rosário. Seu
irmão mais velho (Jorge) estudou com D. Anita para poder entrar na
Polícia e foi um pai para Bacará. Depois que ele casou, Bacará ficou
sendo o segundo pai dos outros irmãos. A filha chama-se Rosiane, a
neta Janaína, a bisnetinha, Bianca. Os filhos todos moram em Divinó-
polis. Eles são: Rosiana Cláudia, Sílvio, Marcos Everton Silva, Marlon
Francisco Silva, Carmen Mangelli Silva, Mauro César Rodrigues Silva.
Bacará lembra-se com carinho da professora que morava perto do
professor Majela, ela era deficiente, mas ajudava muito o pessoal sem
cobrar, fazia porque queria ajudar. Era uma pessoa muito querida.
Uma época, Bacará mudou-se para BH, para batalhar pela vida lá.
Porém, pouco depois foi chamado de volta pelo Vital, que o apoiou e
fez todas as suas despesas para poder voltar a Bom Despacho. Odete
e Bacará estavam numa Folia quando começaram a namorar. Estão
morando juntos há três anos e oito meses. Passou a fase em que
estava precisando de apoio; levantou seu astral. As pessoas boas, a
gente tem dar valor. Bacará acha muito importante lembrar de sua fé
em Deus e em Nossa Senhora do Rosário. Bacará, meu amigo, um
abraço para você, para a Odete e toda a família. Feliz dia dos pais!!!
128 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
Um CUETE NO DIA DE REIS: LUIZ AlbERTO AlVES

Escrevendo depois de desarmar os presépios, passado o cha-


mado Dia de Reis, resolvi entrevistar alguém que, com seus vinte três
anos, sabe muito sobre Folia e Reinado: Luiz Alberto Alves. Filho de
José Miguel Alves e Vilma Maria Alves, Luiz é de uma família que sem-
pre dançou Reinado e Folia de Reis. A família do pai veio da Chapada
para o Salitre; o Salitre era um “arruado”, uma “corrutela” próximo do
Vilaça. Quando o bisavô de Luiz Alberto morreu, a família veio para
Bom Despacho. O corte de Reinado do qual Luiz Alberto é capitão,
O Estrela do Oriente, já existe há uns cem anos. A história do Rei-
nado, assim como a história da Folia, é a história de luta por espaço
e compreensão da religiosidade popular. Luiz sabe muitas histórias,
contadas pelos mais velhos, a respeito da intolerância e o desrespeito
relativo a essas manifestações populares: anteriormente, só se “ba-
tia caixa” em beirada de rua, o Reinado não entrava nem no centro
da cidade, pois os Congregados Marianos impediam. A festa ficava
apenas na periferia. Algumas famílias, tais com a do Juca Rufino e a
do João Araújo, tomaram partido do Reinado e defenderam a festa
junto às autoridades eclesiásticas, pouco a pouco obtendo um maior
reconhecimento. Luiz explica que a adoração aos Reis Magos começa
na noite de natal e vai até dia seis de janeiro. Os foliões encenam a
viagem dos reis em busca do Deus-menino, revivendo as histórias
da Bíblia. A bandeira representa os três Reis Magos. O nome certo é
Companhia de Reis ou Embaixada de Reis. Os foliões saem cantan-
do, mas os únicos que dançam o lundum são o Pai Bastião e a Mãe
Catirina ou Mãe Leonora. Esses dois vão atrás da bandeira. Quando
chegam a uma casa, no portão, a bandeira entra primeiro, em sinal de
respeito.
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 129
As figuras de Pai Bastião e Catirina que, respectivamente, re-
presentam o bem e o mal, o preto e o branco, o equilíbrio entre as
forças da natureza. Um representa o Arcanjo Gabriel e outro o rei
Herodes. Esse governador romano fingia que tinha um coração bom,
que ia adorar o menino, mas às escondidas tramava matá-lo. São Ga-
briel é que avisou São José para fugir com sua família para o Egito. O
Arcanjo Gabriel avisou os Reis Magos para não voltarem pelo mesmo
caminho; os foliões vão por um caminho e voltam por outro. O Pai
Bastião tira a máscara diante do presépio. Depois desse momento,
é encenada a volta dos Reis para o Oriente. Eles tinham gasto toda
sua fortuna e voltaram pedindo ajuda. Daí o fato dos foliões pedirem
coisas. Quando os Reis Magos voltaram à terra deles, fizeram uma
grande festa. Luiz Alberto ressalta que tudo nas festas é pago pelos
foliões, com bastante dificuldade. O custo de uma viola, por exemplo,
é um salário mínimo. Em nome dos foliões e dos pobres, deixou um
desabafo:
“Peço à Igreja Católica, que é a única instituição em que
nós confiamos, um pouco mais de atenção e carinho
com nosso povo e nossas tradições, pois elas estão
sendo substituídas por outras importadas, tais como
o Halloween, sem que ninguém reclame. Quem sabe,
um dia, Bom Despacho não possa criar uma Associação
dos Foliões, com a união das companhias, das folias,
que aqui são doze.”

Finalizando, Luiz Alberto gostaria de agradecer a algumas pes-


soas que sempre o ajudaram: a mãe, D. Vilma, Nossa Senhora do Ro-
sário, São Sebastião, José Vieira, aos amigos do Reinado e de Folia,
aos irmãos. Luiz Alberto, que sua boa estrela continue lhe guiando
em sua “nobre embaixada!”.

130 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


DONA SEbASTIANA: CONfIANDO NOS TAmbORES DA DANDARA

Dia cinco de dezembro foi o aniversário de uma pessoa muito


especial: Sebastiana Geralda Ribeiro Silva, a “Vó Tiana”. Natural da
cidade de Bom Sucesso, veio para Bom Despacho em 1966, dia 2 de
setembro. Ela ainda se lembra do dia em que chegou, desembarcan-
do numa jardineira. D. Elisa Queiroz foi quem a trouxe para conhecer
Bom Despacho. Estavam em BD para fazerem juntas um trabalho so-
cial. Tiana foi criada com uma família sempre trabalhando em projetos
sociais. Ao chegar em Bom Despacho, sentiu que havia uma carên-
cia muito grande de eventos culturais, então montou peças teatrais e
grupos de dança. Desses, um dos mais ativos hoje em dia é o corte de
reinado Moçambique de São Benedito. Dentre seus feitos está tam-
bém uma escola de samba, escola esta que em 1988 obteve o primei-
ro lugar no carnaval em Bom Despacho. Criou também um grupo de
Afoxé, representando a África, um grupo de capoeira que funcionava
dentro de sua própria casa.Recentemente ocorreu um avanço nas lu-
tas da comunidade da Tabatinga, que agora já conta com uma Asso-
ciação dos Quilombolas. Foi reconhecida pelo governo federal como
Quilombo dos Carrapatos e Tabatinga, o que representará um impor-
tante canal para o investimento de ONGs, do movimento negro e do
governo federal na cidade e região. Tiana passa por dificuldades, mas
confecciona as roupas. Faz as apresentações; com seus grupos já se
apresentou em Abaeté, e também em locais como o Minas Shopping
e o Palácio das Artes, em BH. Em Bom Despacho já apresentou-se
em muitos lugares: SESC, Salão São Vicente, 7º Batalhão da Polícia
Militar, Colégio Millenium, Colégio Irmã Maria, entre outros. Alimen-
ta projetos de aulas de costura africana, penteados, etc. Quer resgatar
a cultura dos negros e a autoestima. Quer resgatar a história e fazer
MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 131
os negros deixarem de ter preconceitos, porque muitos têm precon-
ceito consigo mesmos, não gostam de ser negros. Quer que todos
os quilombos que existiram na região do Oeste de Minas venham
procurá-la para ficarem unidos. Quer fazer aqui em Bom Despacho a
central desses Quilombos, como diz logo a seguir, explicando que o
conceito de quilombo, inclusive para o governo federal, mudou:
Este é um projeto muito valioso, não precisa nem ser
de Quilombo, sendo negro, temos que nos reunir, para
resgatar nossa cultura e nossos direitos. Quero resgatar
coisas que foram perdidas, que nos foram tiradas. Por
exemplo, foram tiradas todas as terras dos Quilombos.
A única mensagem que eu quero deixar: Meu querido
povo do Brasil, confie nos tambores de Dandara. Sou
Umbandista, dentro de minha religião, Dandara é mãe
de todos, aqui sou eu quem a representa, sou muito feliz
em ser uma Dandara.

“Vó Tiana”, nesse dia do seu aniversário, receba nossos para-


béns pelos anos de vida, pela sua grande e abençoada luta, na certeza
das vitórias já acontecidas e daquelas que ainda virão nesse caminho
tão bonito que é o seu!

JOÃO BATISTA: Um JORNAlISTA A SERVIÇO DO SOCIAl

Trabalhando em jornal, muito me agrada homenagear um jor-


nalista; e o que homenageio é alguém especialmente caridoso, bas-
tante voltado para o social: João Batista de Oliveira. Ele nasceu aqui
em Bom Despacho mesmo, mas seus pais, Antônio de Oliveira Pinto
e Geralda Maria das Dores, já falecidos, eram do Capivari dos Alves.
Desde criança gostava de rádio. Conversamos sobre o fato de que,
até hoje, na roça, o rádio é um meio de comunicação ainda muito
132 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
forte. Muito jovem, João Batista saiu da roça diretamente para Bra-
sília. Ele comenta que sentiu-se “um caipira em Brasília”. Estudou na
capital federal, mas transferiu-se para a capital de nosso estado, mais
próxima: Belo Horizonte. João Batista estudou num tempo em que as
universidades eram poucas e, mesmo as privadas, eram concorridas e
era difícil entrar em uma universidade, o que dirá formar-se.Viveu em
Belo Horizonte durante treze anos. Voltou para ficar junto da mãe,
que na época estava doente, e para exercer aqui o Jornalismo. Dei-
xando para trás propostas de grandes jornais, um amplo horizonte
profissional, para atuar em nossa cidade. Ele diz isso sem arrependi-
mento. João contou que foi difícil readaptar-se em Bom Despacho.
Estranhou muito o ritmo das pessoas, que é mais lento do que o de
Belo Horizonte. Demorou a se adaptar com esse negócio de conver-
sar na praça, rodinha de pessoas batendo papo calmamente. Algumas
vezes, João Batista diz que pára e pensa: “por que essa correria?”
De início, ia muito a BH, por causa das atividades culturais que lá
existiam. Casou-se aqui na cidade com Maria Margarete de Oliveira.
Aí passou a permanecer mais na cidade, principalmente nos fins de
semana (momento em que costumava viajar). Ele define a rádio Di-
fusora como sendo cultura, lazer, informação e prestação de serviços.
Desde o tempo em que voltou (1988), João foi chamado pelo Dor-
velino para trabalhar na rádio Difusora. A rádio tinha necessidade de
entrevistas diárias. As pessoas precisavam de ajuda. Começou a en-
trevistar pessoas que tinham necessidades prementes e que pediam.
Eu lhe perguntei por que ele não faz política, pois a política seria uma
maneira de estender seus projetos e sua caridade para toda a comu-
nidade. Desiludiu-se muito com a política, ao acompanhar a rotina
da câmara dos vereadores, tarefa que ele exerceu durante muito tem-
po. Agora ele só cobre a câmara quando há algum assunto de desta-

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 133


que. Ele conta que já foi convidado para ser vereador, mas não quer
participar para não ter imagem destruída nem decepcionar o eleitor,
pois sabe que lá ele poderia ser somente uma minoria, uma vez que
não aceita entrar em esquemas e deixar de lado seus ideais. A Ética
é prioridade na vida de João Batista: ele conta que já foi convidado
a participar de jornais na cidade. Mas, sem Ética, João não coloca o
nome. Portanto, parabéns ao João por seu trabalho em prol do social
em nossa cidade. Façamos votos para que ele continue sempre com
seu notável profissionalismo e caridade como um exemplo para os
profissionais do Jornalismo em Bom Despacho.

TÂNIA ANAYA: CONSTRUINDO CASTElOS DE VENTO

Por ocasião da passagem do Dia da Consciência Negra, resolvi


fazer uma coluna divulgando não a biografia, e sim a obra de uma
artista ligada à cidade, mas que com certeza a desconhece: Tânia
Anaya, filha do pediatra Clodomiro Anaya Rojas e de Dona Ange-
la. Tânia, através de sua arte, procura valorizar a cultura indígena e
afro-brasileira. Em 2005, realizou um calendário que chegou a citar
a Tabatinga; em 2006 projetou e lançou outro, intitulado Meu Brasil
Africano (Minha África Brasileira) junto ao Ministério da Educação.
Atividades culturais como as desenvolvidas por Tânia Anaya perma-
necem iniciativas de indivíduos isolados em nossa região, onde, por
exemplo, uma ativa e antiga liderança comunitária só tomou conhe-
cimento da chamada Fundação Palmares (existente desde 1988) por
intermédio de minha pessoa e da equipe da qual eu então participava.
Outro fato é que o trabalho assistencial na Tabatinga, hoje saudado
por todos, iniciou-se com uma sala de alfabetização apoiada apenas
por Carlos Alberto Luiz da Silva, ex-secretário de Educação.
134 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
Mas voltemos para a arte: Tânia formou-se em Artes Plásticas
e é Mestre em Cinema pela UFMG. Realizou três filmes curta-metra-
gens em desenho animado: MU, Balançando na Gangorra e Moinhos
de Vento. Trabalhou como amadora no filme Os Salteadores de Abi
Feijó (Portugal). Atualmente reside em Brasília.
Recentemente, realizou dois filmes no gênero documentário,
um chamado Agtux, que conta uma história notável dos índios Ma-
xacali que habitam o vale do rio Mucuri, região Nordeste de Minas
Gerais, desde tempos imemoriais e que preservam de forma surpre-
endente sua cultura tradicional.
O outro documentário (Honrados Amados Benditos) é sobre
um grupo de quilombolas. A família dos Amaros descende de Amaro
Pereira das Mercês, escravo liberto que comprou terras abandonas e
erodidas nos arredores de Paracatu, em fins do século XVII, após a
decadência do ouro. Nesta terra, Pituba viveu com outros negros for-
ros, constituiu sua família, dançou suas festas, plantou sua roça, criou
seus poucos animais, viu a sociedade do ouro dar lugar às grandes
fazendas.
Os homens e mulheres do filme viveram em Pituba até o co-
meço da década de 60. Afastados de suas terras de origem, hoje os
Amaros vivem em um bairro da periferia da cidade, onde permane-
cem plantando, criando animais e produzindo arte em seus pequenos
quintais, além de dançarem em suas festas, tais como a Caretada, uma
mascarada em que os homens se enfeitam com fitas e cores para lou-
var, durante vinte e quatro horas ininterruptas, a virtude de São João.
Então, louvemos também Tânia, essa cineasta de expressão na-
cional que é ligada a nós efetivamente, desejando a ela muito sucesso,
apoio e realizações!

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 135


O POETA JOSÉ OSVAlDO E A PlENITUDE DO VIVER
José Osvaldo da Silva é um achado, um novo autor que a cida-
de precisa reconhecer. Filho de Guilhermino Ribeiro da Silva e Maria
Augusta da Silva. Os pais eram lavradores e vieram para a cidade. Seu
José Osvaldo nasceu na roça, no Picão, numa fazenda de Juca Rufino.
Eram dois filhos, ele e Maria Elísia da Silva. Quando veio para
Bom Despacho, em 1969, morou com um tio. Na roça, labutava na
lavoura; Na cidade, entrou na Siderúrgica União Bom-Despachense
Depois, foi para o reflorestamento, onde gostou de trabalhar com
as plantas, e ainda gosta de jardins. As plantas precisam de carinho,
explica, são como as pessoas.
Vinte e cinco anos reflorestando, aprendeu a plantar, adubar,
podar na hora certa, colocar água no momento adequado, observar
a lua certa. Numa certa época, a Siderúrgica fechou e José Osvaldo
foi para uma distribuidora da Skol, cujo dono era o Denner. Além
da distribuidora, trabalhava como motorista particular de Dona Zezé,
sogra de Denner. Depois esteve na Ford. Foi bom trabalhar, mas fo-
ram apenas oito meses. Depois, Marcelo (Tchelo) e Joaquim, pai da
Cláudia, que também trabalha na D´Vita, encaminharam-na para lá,
empresa do qual gosta muito.
José Osvaldo comenta que seria bom se o poder público asfal-
tasse a entrada da D'Vita, pois na época de chuva é muita lama, cami-
nhos andam, é esperar socorros e prejuízos. Muitas vezes, na época
da lama, a lotação nem desce até a frente da empresa, transmitindo o
incômodo dos funcionários.
Aproveitando a oportunidade, agradece à Gisele, uma excelen-
te pessoa, ao Sr. Fábio, Dr Cláudio, “Belau”, Paulo Sérgio Assunção,
nosso gerente, todos dão muita força no serviço. Agradece também
à esposa Alaesse Geralda dos Santos Silva, ao seu filho Denner Júlio
136 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
dos Santos Silva, ao seu filho Denner Júnio dos Santos Silva, à filha
Fernanda Júnia dos Santos Silva, que o apoiam em sua caminhada, e
ajudam no trabalho, cuidam de todas as obrigações.
É católico praticante, reza na Igreja do Rosário e em casa. Sua
leitura preferida é a Bíblia Sagrada. Redige homenagens, orações, po-
emas e romances. Adoraria compor no violão, já ama música. José
Osvaldo está terminando o Telecurso 2000 (...). A propósito, eis o
poema Falência do Viver:
Dizem que a vida começa aos quarenta,
mas é apenas um incentivo que nos ajuda a viver.
A vida inicia ao nascer, depois dos quarenta o bicho começa a
pegar, jacaré nada de costas e a cobra a fumar.
O mundo não acaba para nós, nós é que acabamos para o mundo.
Não sou o mesmo de ontem, amanhã não serei o mesmo de hoje.
Olho no espelho, vejo meu atraente rosto se desfigurar, não fico
triste, nem a lamentar, me alegro com o privilégio de envelhecer.
Muitos não tiveram este glorioso prazer, morrem antes de nascer.
Agradeço a Deus pela maravilhosa vida que concedeu-me,
a maravilha de viver.
Minhas ligeiras pernas se acalmaram,
encurtando meus longos passos.
Meu corpo não se elastica, como se elasticava.
Meu frágil esqueleto se curva, com o
leve peso do meu esbéltico corpinho sedutor.
Meus cabelos ondulados e bonitos, desconfiei-me que eles não
gostam de mim, começaram a dizer adeus
a flutuar no espaço e se perder no infinito.
No passar dos janeiros, minha memória poderá
se desmemoriar e se esquecer de tudo.

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 137


Só não posso lembrar de esquecer o amor da mulher amada.
São as mulheres a energia do meu viver,
o oxigênio que busco em cada amanhecer.
A vida sem elas perde o sabor, fica sem graça,
igual a um jardim sem flor.
Roberto de Melo Queiroz Neto: Uma Bela História de Vida.

Roberto de Melo Queiroz Neto é filho de Marlene Morais e


Roberto M.Q.Júnior. Formado em Psicologia há quatro anos, está
de volta à sua terra natal há um ano e meio. Desde seu retorno tem
trabalhado no Núcleo de Atenção à Saúde Mental e no consultório
particular. Apesar de jovem, já mostra uma experiência profissional e
pessoal.
Roberto, também chamado pelos mais íntimos de “Beto”,
conta que desde sempre se interessou por atividades que envolves-
sem grupos, desde o escotismo, os esportes coletivos, as turmas de
carnaval, o Tiro de Guerra, a capoeira. Ele percebe que seu interesse
pelo comportamento humano já havia começado com essas práticas.
Pensava em cursar Medicina, influenciada que era por sua fa-
mília, para que, de certa maneira, desse continuidade ao trabalho de
seu avô, o falecido e idolatrado Dr. Roberto. Beto conta que esse seu
árduo processo de discriminar o desejo dos outros e o seu desejo já
foi em si muito importante para sua opção pela Psicologia. Enfatiza
também a importância que a Literatura teve nesta sua reviravolta: “Foi
aí que percebi que meu interesse sobre as questões humanas ia muito
além do biológico”. Conta que o “ponto de mutação” se deu, defi-
nitivamente, quando leu Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
“Desde então”, diz, “tenho estado muito atento às questões ideológi-
cas, por assim dizer, que fundamentam nosso comportamento”.
138 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
Estudou na UFMG de Belo Horizonte, na sempre elegante FA-
FICH (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas). No curso de Filo-
sofia desde cedo se interessou pela Clínica e pela chamada Psicologia
Social e, dentro desta, pela Psicologia Comunitária, um ramo mais
voltado para os trabalhos em vilas e favelas. Desta maneira, partici-
pou da idealização e coordenação do Projeto Comunidade (UFMG),
um trabalho de organização comunitária, executado em dois dos
principais aglomerados de BH, o Morro do Papagaio e o Morro das
Pedras. Ele conta com saudade as experiências marcantes que teve
trabalhando nas favelas, experiências que mudaram suas vidas, prin-
cipalmente aquelas que aconteciam na privacidade dos atendimentos
psicoterapêuticos: “Nunca deixou de ser desgastante o trabalho nas
favelas. O risco era iminente. A violência aparecida de todas as for-
mas. Mas o que tínhamos de retorno – ver mudanças acontecendo,
das mínimas e individuais às de maior escala, dos contemplados e
também às nossas próprias – não nos deixava desistir”.
Beto terminou o curso no final de 2002, e em janeiro de 2003
já estava trabalhando na prefeitura de Belo Horizonte. Foi contratado
pela Secretaria de Direitos Humanos para prestar serviço às famílias
assoladas pelas chuvas daquele ano, que chegaram ao impressionante
número de 3000 desabrigados. Roberto relata a rica experiência que
teve no abrigo em que trabalhou durante 6 meses, dando plantão de
12 horas:
“a prefeitura alugou um hotel central, anteriormente de-
sativado, na chamada zona boêmia de BH. Colocou ali
certa de 450 pessoas, todos moradores das áreas mais
críticas das favelas. O nível de ansiedade daquelas pes-
soas era algo assustador, pois haviam perdido o pouco
que tinham, muitas vezes nada mais que um barraco de
madeirite na beira de um córrego sujo. Fizemos então

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 139


um trabalho de organização desta nova comunidade
que se formava (...). Somente depois desse trabalho é
que conseguimos começar a desativar a bomba-relógio
da prefeitura, como brincavam na época, referindo-se a
esse grupo”.

Depois deste exigente trabalho, e cansado também da própria


cidade de BH, Roberto decidiu mudar-se para um pequeno arraial
de 1000 habitantes, a 14 km de São João Del Rei, chamado Vitoria-
no Veloso, mas mais conhecido pelo nome de “Bichinho”. “Fui pro
Bichinho interessado em realizar um projeto de organização comu-
nitária de forma menos emergencial e porque queria realmente ter a
experiência de realmente morar em comunidade. Ali pudemos tecer
redes de trabalho dentro da comunidade, baeados no associativismo
e no cooperativismo. Realizamos também um importante marco na
história local, o 1º Manifesto Cultural do Bichinho, um evento aos
moldes dos festivais de inverno, no qual, durante 11 dias, houve apre-
sentações de grupos locais e regionais e outras diversas atividades
culturais como oficinas de arte para os moradores. Infelizmente, que
eu saiba as lideranças não deram continuidade ao Manifesto nos anos
seguintes, mas sai com o sentimento de missão cumprida, pois eles
puderam experimentar o poder que surge quando trabalhamos com
união”.
Ao voltar para Bom Despacho no início de 2005, Roberto foi
contratado pela Secretaria Municipal de Saúde para o cargo de psicó-
logo no Centro de Atenção Psicossocial/NASM de BD. Ele fala com
estampado carinho e envolvimento sobre seu atual trabalho: “Sin-
ceramente eu acho que não havia melhor momento em minha vida
para eu iniciar um trabalho como este. O perfil da instituição, isto é,
de atenção psicossocial, me possibilitou mais do que nunca integrar
140 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
minhas experiências no campo clínico, da psicoterapia e no campo
social, da psicologia comunitária. O fato de estar também com 4 anos
de formado também vejo como fator positivo, pois se chego com
alguma disposição e utopia, chego também com alguma bagagem”
Sobre o tipo de trabalho que realiza no CAPS, Roberto conta
que faz triagens, atendimentos clínicos individuais (psicoterapia), visi-
tas domiciliares e oficinas terapêuticas com grupos. Coordena o pro-
grama De Volta pra Casa através do qual visitou os Hospitais Psiqui-
átricos de Minas Gerais que ainda têm pacientes bom-despachenses,
estabeleceu contato e avaliou estes usuários, posteriormente conver-
sou com suas famílias e, atualmente, junto à equipe da Saúde Mental
a viabilidade de um lar abrigo para os pacientes. Mostra-se também
muito interessado nos trabalhos de cunho preventivo que o CAPS
pode realizar, isto é, na integração com a rede de atenção básica à
saúde: os PSF´s , entidades comunitários como associações de bair-
ro, SESC, SESI, Lions, etc. Em suas oficinas, Roberto enfatiza que têm
gostado de trabalhar com arte e também com o “acompanhamento
terapêutico”. “Tirar esses usuários deste lugar de doente e favorecer
sua reinserção na comunidade é fundamental. Aí entra o papel das
caminhadas pelos espaços da cidade.”
Seja muito bem-vindo, Roberto! Estamos certos de que você é
mais uma importante peça na nossa luta por uma sociedade melhor
e mais justa.

LONJURAS ATREVIDAS: UmA HOmENAgEm A Um LIVRO DE QUATRO


MÃOS

O livro de Cláudio Morais e Alexandre Chaves, ou autor, dois


livros (Lonjuras e Minha Vida, editora do autor), é um investimento

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 141


poético dos dois amigos editado na Agência Experimental de Publici-
dade, em Belo Horizonte.
Então se trata de um livro a quatro mãos, por isso afirmo que
é um livro “de” quatro mãos. Porque são as mãos da amizade que se
ajuntam a esses poemas. Sim, digamos que esse livro é fruto de uma
amizade. Conta também com fotos de autoria de Cláudio Morais. As
fotos de Cláudio serviram para ilustrar tanto os poemas (...) como
convêm numa camaradagem poética.
Os poemas dos dois obviamente se assemelham (...). No en-
tanto, gostaria de frisar que vejo Alexandre mais com seu mundo in-
terior. É um ser que, vivendo em meio a máquinas que tudo trituram,
incluindo a cultura e a educação, volta-se para o universo acolhedor
da memória (...). Seu ser é completo, inteiriço, diverso do mundo
de alienação onde ele busca se encaixar. Alexandre é um poeta mais
intimista. Já Cláudio é mais voltado para o mundo exterior, viajan-
do entre fogo, céu, vinho e corpo, seus poemas marcam o encontro
do corpo com a escrita, com rio e mar. Na viagem, o deslocamento
também repercute na mente. O ser que volta é um diferente do que
partiu. Na mudança do urbano para o rural emerge a clara preferência
pela paisagem urbana brasileira. Digo isso porque Cláudio é meu tio
e sei que ele poderia escrever também sobre a Inglaterra e os Estados
Unidos, países que ele conhece. Para ele, a viagem ao interior do
país representou, em seus poemas, uma viagem de auto-conhecimen-
to. Tanto Alexandre quanto Cláudio perdem-se como médicos para
renascerem como poetas. Cito um poema de Cláudio que traz até
mesmo a Língua da Tabatinga (a palavra “cuete”, que significa “cara”,
sujeito, tanto aqui quanto em Angola), por julgá-lo inspirado no Cine
Regina (Matineé Anos 60).
DONA IRENE: FIlHA E MÃE DE MARIA
142 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES
A propósito do dia das mães, eu me lembro de alguém que é
mãe três vezes: Dona Irene Madeira Morais, mais conhecida como
“Vô Sora” e “Vó Irene”, já usado e caído em desuso entre os netos
da minha geração, ela ganhou de uma empregada, a quem tudo en-
sinava incansavelmente, a moça ficou chamando-a de professora, daí
o apelido.
Dona Irene gosta muito que eu diga que vó é mãe duas vezes.
Então eu digo que ela agora é bisavó, ou seja, é mãe três vezes.
Irene tem muita história para contar. Ao falar da infância, lem-
bra-se com doçura do povoado doce onde ela passou a aurora de sua
vida, a agora cidade de Moema (em homenagem à princesa índia que
apaixonou-se pelo português Diogo Álvares?)
Quando criança, vivia na roça e não existia luz elétrica. Ela se
lembra do breu que eram as noites sem lua. O medo que era cochilar
à tarde e acordar à noite, dentro de casa, na maior escuridão, sem
saber nem onde pisar.
Na mocidade aprendeu a gostar de música. Até hoje adora can-
tar e sabe poemas de cor. A família se divertia com a espontaneidade
dela, que canta as letras do jeito que entende. Então, na versão de
In My Life, dos Beatles, feita por alguém da Jovem Guarda, o cantor
dizia: “quero um lago brando desse doce olhar”, ela cantava: “quero
o lado branco desse doce olhar”, divertindo a nós que ouvíamos.
Numa ocasião festiva alguns dias atrás, vovô Mário escreveu
um texto recente relatando que Irene foi uma dádiva que Deus lhe
deu. As bodas entre eles já são de diamante. No dia 3 de maio, vovó
Irene aniversariou com festa e muito bom humor. Criou dez filhos,
dois dos quais já se foram para junto de Deus. Está agora com dezes-
seis netos e um bisneto.
Há alguns anos, vovó Irene foi operada nos Estados Unidos.

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES ............................................................................................ 143


Internada por lá, tinha apenas o filho Cláudio, médico, para poder
conversar. Na maior parte do tempo, nem entendia o próprio nome,
apenas chamavam-na “airin”. Para acalmá-la, deram-lhe uma injeção de
calmante fortíssimo. Ficou achando a vida boa, rindo-se do espanhol
que os médicos esgrimiam, em vão, para comunicar-se com ela. No dia
seguinte, quando passou o efeito, pediu muito imperativa ao Cláudio:
peça a eles outra injeção dessa, agora!
Vovó Irene foi Filha de Maria e também mãe de uma Maria,
Maria Celeste, minha mãe. Vovó Irene é devota de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro. Quando criança eu fazia confusão e achava que a
Nossa Senhora dela é que “pepede” socorro.
Vovó, nesse dia das mães eu venho lhe ofertar essa simples ho-
menagem. Esse é um elogio para você que se dedicou à maternidade
a vida toda com tanta devoção, sinceridade, carinho, generosidade
e muita, muita compreensão. Para você, um abraço apertado e mil
beijos!

GíSIlA CICElAINE COUTO: A POESIA COmO JANElA DA AlmA

A poesia já nasceu com Gísila, segundo ela. Amante da arte de


escrever em verso e prosa, dedica-se, além do Direito, à poesia e às
crônicas. Começou com a poesia aos quatorze anos, ou seja, bem
antes de sua estreia literária em 1998, com a publicação do livro de
poesias Eterna Procura. Afinal, esse foi um bom título: o trabalho da
escritora inclui essa busca incessante de uma raiz, uma identidade, um
caminho.
Gísila admira Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Mo-
rais e outros, mas afirma que sua poesia nasce mais do contato com
a natureza e como uma homenagem às pessoas das quais gosta. Ela

144 ........................................................................................... MUSEU DE GRANDES NOVIDADES


passa os textos para o irmão (Iru), ex-colunista deste jornal, que tam-
bém lê e dá opiniões a respeito.
Se, com eterna procura, Gísila iniciou sua busca de uma identi-
dade literária própria, sua voz aprimorou-se com o livro seguinte, Ja-
nela dos Olhos, editado em 2002 como parte dos esforços da própria
autora, assim como suas outras obras.
Neste ano de 2006, inspirada pelo nascimento de seu filho Ga-
briel, publicou um livro de poemas dedicado ao público infantojuvenil
intitulado Fazendinha. Sempre gostou de ler e desde a gestação já
“lia” para Gabriel. Durante o dia, lê para ele algumas histórias, coloca
músicas. O livro, composto por poemas singelos e ilustrações para
colorir, contou com o entusiasmado prefácio de Pedro Couto Gonti-
jo, de dez anos: “Eu me identifiquei com esse livro, pois gosto muito
de fazenda e animais. A história que mais gostei é do cão Napoleão.
Apesar de, às vezes, ficar bravo, ele é muito esperto, brincalhão e
gosta de procurar confusão com o galo Toró (...). Amei!!!” Fazen-
dinha deixou Gísila em estado de graça com o seu sucesso: já foram
duzentos pedidos desde o mês passado. A recepção dos pequenos
também a encanta pela sinceridade. O poema que encantou Pedro foi
o seguinte: “Napoleão é um cão muito esperto/vigia toda a fazenda
e os animais/bem de perto./Adora caçar com seu dono/brincar com
a criançada/correr, pular/mas só não gosta de banho/que às vezes
tem que tomar/quando vê a água e o sabão/corre logo para outra
direção/mas não tem jeito não/é só pulga que salta do coitado do
Napoleão”.
Gísila, espero que você siga nessa sua bela carreira literária,
você que tem, como escreveu em seu poema realidade, “Somente
a vontade, não mais do que a vontade, de vencer a batalha da
vida”.

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RECONHECENDO OS VAlORES DA CIDADE: GláUCIA MAlAqUIAS

Vivendo num país como o Brasil, onde a maioria das pessoas


fala uma língua só, uma pessoa como a professora Gláucia Maria Ma-
laquias Hoffman chama-me a atenção. Graduada em Inglês, adquiriu
também ênfase em Língua Portuguesa e suas literaturas, especializou-
-se em Português e Linguística. Com todo um belo currículo, Gláu-
cia retornou a Bom Despacho para viver a sua maturidade. Para essa
professora cosmopolita, a cidade não reconhece os valores do nosso
povo, preferindo pessoas de fora. Com seu trabalho, ela ajuda as pes-
soas e produz confiança. Ainda segundo suas palavras, nossa cidade
é um local de muitos talentos, mas pouco incentivados e valorizados.
Aqui, por exemplo, existe muita gente com talento musical, mas é
decepcionante o desleixo com que a cultura é tratada.
Assim que Gláucia terminou o seu 2º grau, ela foi para Belo Ho-
rizonte, onde morou por 12 anos, casou-se e estudou Inglês. Depois
mudou-se para Ouro Branco, onde viveu por 18 anos. A mãe de Gláu-
cia era daqui, seu pai de Itapecirica, e seu marido Otto, falecido há 27
anos, era alemão. Cursou da 1ª à 4ª. Série na Escola Coronel Praxe-
des, ginasial e 2º grau no Colégio Miguel Gontijo. Passou pela Cultura
Inglesa de BH, concluindo graduação em Letras em Congonhas. Fez
curso de Inglês na Inglaterra. Gosta muito de viajar e faz isso bastante.
A última viagem que fez foi à Rússia, em 2004, e pretende ir à Israel.
Também gosta muito de música e de inglês. Mora com um piano
e tem páixão pela língua inglesa. De todos os lugares que já viajou
no mundo prefere o Brasil, não gostaria de morar em nenhum outro
país, exceto Inglaterra. Porém, pensa sempre em seu país em primei-
ro lugar. Formou-se professora, mas trabalhou por 30 anos como
secretária na Mannesmann e depois voltou a trabalhar dando aulas.
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Já esteve por cinco anos dando aulas na Faculdade de Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Alto São Francisco (Luz). Gláucia bus-
ca ser feliz com o que sabe e exerce seu papel passando adiante seus
conhecimentos.
Instalou em Bom Despacho o Quincy English School como
uma parte de seu sonho de criar um centro de ajuda pedagógica que
atendesse a uma comunidade carente, envolvendo pessoas num tra-
balho de voluntariado, por exemplo, professores aposentados. Gláu-
cia possui um sonho de fazer um encontro entre professores de Inglês
da região para discutir nossas dificuldades de professores, unir a Asso-
ciação de Professores de Inglês de Belo Horizonte.
Falando no Quincy, penso ser importante ressaltar a excelência
da equipe que Gláucia reuniu em seu curso de idiomas, composta em
boa parte de professoras que falam seus idiomas como suas primeiras
línguas (Brigitte Paredaens, Verlane Hahn, Lorena), das quais dese-
jo falar separadamente em outro momento. O Quincy é um espaço
de sonho mesmo, local onde se estuda inglês, francês, espanhol e
alemão com prazer. Assim deve ser todo estudo: o saber não pode
deixar de ter sabor.

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4
CARTA

Uma Carta de Mário Morais e a resposta do


poeta Celso Ribeiro

Meu caro poeta Celso Ribeiro:

Algumas leituras já programadas quando do lançamento de


“Solidão Povoada” privaram-me da leitura imediata do livro. Na opor-
tunidade, apenas folheei-o, e, somente agora, pude deleitar-me com
a sua leitura plena. Fiquei encantado. No gênero, há muito tempo
não lia um livro tão bom e agradável.
Naquela ocasião, em rápida conversa sobre poesia e literatura,
falei de meus primeiros contatos com a poesia na minha longínqua
meninice. As composições obedeciam a preceitos rigorosos de me-
trificação, ritmo, rima e cadência. Guardavam forma harmoniosa e
estética, mas, presas a essas exigências, não deixavam de encarcerar o
pensamento do autor.
A poesia moderna, como a sua, livre dessas peias, soltas as
asas, liberta o entusiasmo criador, a inspiração, o imaginário do po-
eta. Nesse clima de arrebatamento íntimo, de enlevo, o espírito se
ilumina e capta melhor o encanto da natureza, consegue a penetra-
ção no âmago das coisas, no sentimento das pessoas para que elas
se mostrem, revelem seus pesares, tristezas, dor, solidão, revolta e
outras emoções. Há, ainda, as que não escondem seu lado ridículo,

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cômico, grotesco. É esse o material de que você se serve, a ”matéria
prima de seus poemas”, conforme sua própria afirmação.
Enquanto Camões cantou a epopéia de seu povo, Bilac e ou-
tros o lirismo, sentimentos e emoções de nossa gente, Castro Alves
a libertação dos escravos, José de Alencar e Gonçalves Dias os senti-
mentos telúricos de nossos indígenas, você penetra na alma das pes-
soas, prescruta-lhes a consciência, os sentimentos de amargura, as
frustrações, os devaneios e toda essa carga de emoções que o nosso
ser carrega. São versos revestidos de profundo humanismo.
Em o “Retardado” identifico nosso popular Cláudio, desen-
gonçado, cambaleante, ziguezagueando no meio das ruas, silencio-
so, mas com a língua afiada para proferir obscenidades capazes de
envergonhar até pessoas mais despudoradas.
No poema “Impotência”, estranha a busca de inspiração em
coisas repugnantes e desagradáveis aos nossos sentidos: o nosso tris-
te lixão. Faz-nos lembrar Augusto dos Anjos.
Comovente o dramático apelo do velho em “Homo Consu-
me”: “Não quero ficar velho, esquecido, fedido, cuspido. Não me
deixe aqui, venha, venha me consumir, sumir, ir”.
Os recursos expressionais, principalmente as aliterações, além
do vigor que imprimem à idéia, produzem também uma sucessão
harmoniosa de efeitos sonoros estéticos, cria uma musicalidade que
valoriza o verso. Fede feia fumaça que fumega, do poema “Impotên-
cia”, e perpassa-se a vida passada, amada, amarrotada, dobrada, do
poema “Etrom”, além de vários outros exemplos, são expedientes
que embelezam a poesia. A morfologia flexional, suprimindo sílabas
e transformando os vocábulos em diminutivos, como em Ninzim de
Passarim e Nim de Nenezin, imprime ao poema um delicado senti-
mento de ternura e carinho. Todos estes recursos foram usados sa-

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biamente, com muita propriedade, inspiração e bom gosto.
Sem nenhum demérito aos demais poemas, todos de excelente
qualidade, um louvor especial para “Nossos Cultos Segredos”, “Nu-
dez”, e Deus Feminino.”
Não é necessário dizer, meu caro poeta, que estes ligeiros co-
mentários não são uma análise literária, mesmo porque me faltam
condições para tão grandiosa tarefa. Seu livro oferece campo para
uma dissertação muito mais desenvolvida, um estudo muito mais
avançado das sábias e filosóficas idéias de seus personagens, huma-
nos, irreais ou imaginários. O que escrevi é apenas a manifestação do
entusiasmo que me causou seu ótimo livro, mas o universo de minha
pequenez não me permitiu ir além disto.
Continue a escrever. Sua estréia é muito promissora.
Um abraço do amigo
Mario Morais

Bom Despacho, 07/04/06


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Bom Despacho, 13 de abril de 2006: (Quinta-feira. Véspera de


sexta-feira da Paixão! Treze! Número de azar para muitos... Sorte a
minha ter lido a carta que o senhor me enviou!...)

Ao Sr. Mário Morais,

Ave!
Grata surpresa ao receber missiva tão delicada e rara. Delicada
pelo gesto. Rara em nossos atribulados dias de atravessar pessoas
como se números estatísticos fôssemos todos, massa de notícias de
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todos os cantos. Sem alma. Ou com a alma tão perdida que se fica
sem saber se a temos ou não. Ou se foi leiloada ao Diabo por trinta
moedas de prata, ou dólares, ou euros, ou: as do momento.
De gesto tão espontâneo, não se tratando de crítica de algum
literário participante de alguma mesa de algum concurso, brotou-se
do genuíno, o simples, o belo, que em mim despertou.
Grato, e alegre, e enriquecido, lembrei-me eu novamente de
mim mesmo. Escapei, por um átimo, e tornei a lembrar de como se
faz, das artimanhas do Demo, artífice desta contabilidade: lide áspera
de se viver nos dias de hoje... Fazer, fazer, fazer... Sem sabermos exa-
tamente para quê...
Nascente alegria perpassou meu ser. Silêncio falante impôs-se.
Hora de significados. Tempo sem tempo.
Algo que eu disse, ousando escrever e mostrar ao outro, fa-
zendo com que esse outro ao ouvir-me digne-se a não se omitir, não
me deixa esquecer que bobagem é pensar que não existem mais almas
nesse mundo de Deus; e dos homens.
Viva a poesia!

Um abraço!
Celso Ribeiro.

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