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EDUARDO LOURENCO
,
PE55OA
REVISITADO
Leítura Estruturante d,o Drama em Gen
\.
N -,J
§
N
RIO DE JANEINO
TINTA DÂ CHINA
MMXVlI
EDUARDO LOURTNçO
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EDUARDO IOURENçO PESSOA ÀEVISITADO
contribuiu parâ reduzir o que ele á ao ,.que diz ser',. Recen frctÍcio criador deles, o ouror Caeiro) que surge essâ con-
temente, e resumindo num só epíteto, quarenta anos de r:lusão, aparentemente adequâda a Caeiro, de designar a
exegese equivocadâ, um poetâ e um crítico brilhantes,
José ruâ poesiâ como de "grau zero". Um "grau zero de poesia'
Augusto Seabra, assimilou Caeiro ao grau zero d,e poesía". ruporia uma palawa poética o mais próxima possivel (ou
Este equívoco de base perturba uma análise estrutural de âquela que mâis claramente se anula) do real que üsa por
uma frnura extrema. Se fosse necessário demonstrar que não poder sê lo. Náo é o caso de Caeiro. O "que ele diz" (e
â perspectiva da intertextualidade formal, mesmo levada também o que Pessoa ou Campos dizem que ele diz) é de
â cabo a partir de uma üsão nítida de heteronímia como l'acto a erpressão de uma vontade de "poesia grau zero" ou
"jogo" de polaridades e 'diferenças" melhor apreendidas melhor ainda, de qualquer coisa ânterior à própda distin-
que na perspectiva'estilística", magistralmente criticada
ção entre poesia e prosâ. Em suma, vontade de ndo poesio,
por José Augusto Sea-bra, deixa de lado o segred,o efectíoo como A. Seabra o sublinha com pertinência. Mas o que
J.
desse jogo, nenhum exemplo seria mais probante que o do que vive em cada poemâ é da- d,ístâ'ncio' (infrnita) que
do autor de,4lberro Caeiro ou o grau zero d,e poesía. Também separa consciência e mundo, olhar e coisâ vista. Caeiro
para J. A. Seabra, e mau grado a sua interessânte concep- nâsce parâ a anular, mas é no espaço que separa olhar e
qâo "galáxica" da heteronimia, Caeiro acaba por ser tra_ realidade, consciênciâ e sensação que o seu Yerbo (a sua
lad.o como realídad,e poética cerrad,a em si mesma e segundo voz) irónií'a e gravemenle se arl icula. É por isso gue. peni -
a funçâo ideal que Pessoa lhe assinala, em pafiicular no nente enquanto defrnição relativa a essa vontade de "poe-
célebre "retrato" de Campos, frcção de ficçâo- A novidade sia grau zero" manifestada pelo criodor (Pessoa), a mesmâ
e a eficácia hermenêutica da leitura de J. A. Seabra e que frase, aplicada a Câeiro, nâo tem sentido pois Caeiro rud,o é
a distingue das anteriores reside no facto de autojustifi- o suJsiro dos seus poemas: "em vez de procurar uma distân-
car Caeiro, de mostrar a sua c oerêncía ilteÍrra (e nâo como ciâ, um desüo em relação à prosa, Caeiro procura ao con-
outros exegetas, de fazer o seu "processo"). É pena que tal trário a redução da linguagem poética a uma pura função
"mostração" dependa e seja conexa com a tomada denotativa ou referencial, de que no limite estaria ausente
a sério
e no mesmo plano do personagem Caeiro, que nâo existe, todo o elemento conotativo.3 Simplesmente Caeiro não
fora dos poemas. E é, uma vez mais, de uma leitura que procura nadâ porque nAo eriste rráo só como "sujeito psi-
utiliza ao mesmo tempo dois planos (o dos poernos e do cológico' (ça d,e soi) mâs como "sujeito literário". Co€iro
é o resuhad,o, simples poesia em segundo grau que pres-
z José Augusto Seabra - Átbeno Caeíro ou le d,egré zerc d.e poésie. publicâdo no t..
supõe náo só aquele "implicito" que todâ a poesia recalca
número de Sriloger, reüstâ da Secçào de Esludos pôrrugueses e Brasiteiros
de poi para existir, mas o "explicito" de um outro universo
tiers, dirigidâ pelo Prof. R. Lâeron. O ani8o publicado €m r9?2 é o
único qu€ co
nhec€mos de mâis vasto fabâtho quô seniu de rese ao seu ator em r9n e ainda
3 Ob. c,,., pp. 48-49.
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xDU^ÀDO LOUAENçO PESSOÂ REVISITADO
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XDUAÀDO LOURXNÇO PÉSSOA À!VI SITÂDO
níetzschíanan'Lente trágicâ na sua yontade de aceitaçào do riôncia) entre Pessoa e o primeiro dos seus heterónimos,
gue é e que lhe era tào constitucionalmente estranha. Em primeiro na ordem da aparição, primeiro no lugar que
poema algum, como no vrr do "Guardador de Rebanhos", ocupa no cenário inconsciente do seu criador, mas pri-
Pessoa se fez seu pai inexistente e sua mâe, para se pegar meiro igualmente na morte. Caeiro morre cedo (a bem
ao colo e se abrigar dessa mesma chuva dos dias e do Des- dizer viveu um só d,io,, o celebrado "dia triunfal") porque
tino que com tão virgiliano tom diz aceitar. Com geomé- Pessoa não podia suportâr o peso de uma visào, de uma
trica precisão soube Pessoa mostrar-nos os meandros e verdade que não eram suas, senão sob a forma violenta,
os hos condutores que do "universo- Caeiro" partem para mágica, de um momento inversor do seu mais profundo,
Reis e Campos. Mas nâo soube, não pôde, ou não quis, constante e único sentimento de si mesmo e da vida:
explicar-se e explicar-nos, senão como mtlagre, o surgl. o d"a total e abíssa.L inealidade de ambos. Se Caeiro arranca
mento de Caeiro. Ele prlu-se criando Reis e Campos mas a Campos, seu biógrafo (em segundo grau), "as lágrimas
nâo o Mesrre deles e seu. que não dá a si mesmo nem à yida" é só porque nele se
É do exterior ou do olto que a série fulgurante que os plasma a inupossíbílíd"ad,e extrema de sentir o real e de usu-
poernas-Caeiro são, lhe aparece ou cai. Esta auto-oculta- fruir o sentimento da realidade de outra forma que na frc-
Çâo (que como veremos não foi total) é por de mais sig- ção, atrâvés do ficticio (e real...) "guardador de rebanhos"
nifrcativa da irrepressivel necessidade interior que os nunca guârdados.
poemas incarnam sob uma forma brutalmente censu, Não é só apenas porque, enquanto resposúo, Caeiro
rado, a pontos de Caeiro se apresentâr como o Outro. supôe para a compreensão plena da s.ua realid,ad,e o
A universal explicaçâo 'dramaúrgica' da génese hetero conhecimento daquilo que recalca, que a sua intrínseca
nimica, colocada por Pessoa sob o signo claro de Shakes- natureza é dialogante e de se8undo grau. Mesmo abs-
peare, é demasiado larga para o caso-Caeiro. Coeíro não é traindo desse nexo que lhe é co-essencialt', é impossí
o Hamlet nem a Lady Macbeth do eu (literário) de Pessoa. vel ler os poemas sem apreender o movimento pelo qual
E a sua directa manifestâção nôo rec onhecida. Ao seu nas. eles denunciam esse carácter dialógico e diferido. Na sua
cimento preside qualquer culpa ou transgressão que a realidâde, isto é, nâ textura dos poemas onde unicamente
consciência clara (no seu câso, hiperlúcida) do seu cria- existe, Caeiro nào é essa respostâ efectiya, essa ínt)ersdo
dor recusa, preferindo ver-se criad,o pela sua criatura. mirâculosâ da visão poética anterior a ele, como Pessoa,
Em nenhum dos seus heterónimos Pessoa se sente (mas vitalmente interessado nelâ, a auto - interpreta. Só o rniro
sabe?) mais alíenado quLe naquele criado para colmatar a Caeíro - e em particular na boca de Campos - cumpre
mâis indesrâizável e original índ,ecisã,o que o câracterizâ. ilililmilililil
Em suma, há uma relaçâo de má-consciência (transfrgu- 6 Istom€smoíoi6ensivelà minuciosâanáliseestrutu.alâqueJ.A. Seabraosú
meteu. Ve.oà. cir.. L. S. Picchio igualmcnr€ iÍrsistiu sobrc o ca.áct€. 'crítico' dos
rada na "recordação" de Campos em máxima boa-cons-
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NDUARDO LOUÀENçO PESSOÂ RNVI SITADO
essa funçâo real e impossível que o seu criâdor lhe atd- lher de ombros" absoluto, essa melancolia irredutível que
bui. Os poernos são outra coisa e sem véu algum o procla foi o sol negro de Pessoa. Nascido para pôr termo ideal à
mam: não o canto da re alidade ou mesmo da conciliação consciência de inexistência que o caracterizará sempre,
entre consciência e realidade com a felicidade suprema Caeiro elevará ao máximo. sem as supcrar. as aporias e
de que se acompanha, mas reiterado movimento de uma agonias dessa consciência. Mas em vez dâ música tântas
consciência para se anular enquanto tal e só a esse preço vezes já tocada de uma interioridade sem cessar debru-
se salvar. A uma consciência incapaz de tocar o mundo çada no poço de si mesma, brilha nele a vontade de a sus-
ou de ser tocada por ele, como é a que estrutura toda a pender na raiz regressando àquele poruto anterior à cisão
yisão poética de Pessoa onúenor a Caeíro sucede, aparen- de que a conscíéncia é justamente o (para ele) envenenado
temente, â visão oposta de uma omnipresençâ tào radi- fruto. Ser como o Sol:
cal do mundo que a consciência se anula ao seu contacto e
nessa anulação encôntrâ a solução para a infelicidade ori Dourar sem Iiteratura
ginal que lhe é inerente:
Em nenhum dos seus heterónimos se consubstanciou tão
Gosto que tudo seja real e tudo esteja ceno. fundamentalmente a questão ontológica que tem â Lin
guagem como centro:. A "prosa dos seus versos" é, por
Mas é a apologia mesma desse "gostar", a litania paté fora, a materialização (só simbólica, mas signifrcativa)
tica na sua ironia triste e na sua tranquilidade de sonho, da consciência que teve Pessoa da in capacid,ad,e rad,ícal d,a
que dedica à "espantosa realidade das coisas" e a exalta- linguagem para nomear o real. E só ó "poesia" em Caeiro,
"diÍerença" (diferença entre cada coisa, e dife- pela presença nela do visível sofrimento espiritual trans-
ção da sua
rença entre "coisa" e "consciência" igualmente reduzida frgurado em falso - contentamento pelas "coisas serem
a forma de "diferença" e nada mais) que desenha sob os o que sáo" e terem "os nomes" que têm. Queixar-se ou
traços do "poeta da realidade" e da "Natureza" a figura acusar de "intelectualista" a poesia-Caeiro é duplamente
inversa que o remete, com mais nitidez ainda, para o pleonástico. Ninguóm sabia e o disse com mais precisào
horizonte que desejou desertar. Não é um canto de exal que Pessoa traesmo, eregeta íncomparó,vel da sua criaçõ,o.
tação, nem sequer aquela alegria não manchada pela "Nestes poemas aparentemente tão símplices, o critico,
sombra cristâ que se atribui ao "paganismo" que Caeiro se se dispôe a uma análise cuidada, hora a hora se encon
e (para Campos) a que briiha nos seus poemas. E uma voz trâ defronte de elementos cada vez mais inesperados,
branca, ligeiramente irónica, consciente de si mesma
e do carácter hiperbólico da sua apologia da aparência
? Esta questão foi abordadã por nós num ensaio intitulado trierÀegoord e Pessoo
manifesta e por isso mesmo deixando frltrar esse "enco oua Conunicúçô,o l d,ite.io, d€ r954, só parciâlmente publicâdo.
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EDUAÂDO I,OUÀENçO
ftd., p. r54.
B O.P.. p. rqs ftd.. pp. 163-r64
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EDUAÀDO I,OURENçO PESSOA RDVI S ITADO
do universo. Apropriaçâo inone e pior do que isso, ilusória Vi que nâo há natureza,
e fautora de ilusão é essa para quem dela acorda, como Pes Que Natureza não existe,
soa, através de Caeiro, guer acordar. A linguagem é antes a Que há montes, vales, planícies,
forma suprema de fazer evaporar a realidade, de a afastar Que há árvores, flores, ervas,
de nós, de operder, de suspender e desatar o cordào umli- Que há rios e pedras,
lical que a ela nos uniria (e une) se conseguíssemos sílen Mas que não há um todo a que isso pertença,
ciri.-lo. É nesse sil Ctrcio üntenor à, po,laura que Caeiro deseja Que um conjunto real e verdadeiro
repousar. É mesmo nele que diz repousar. Regressar a esse É uma doenqa das nossas ideias.
silêncio nâo é voltar do mais ao menos, da vida à morte, do A Natureza é partes sem um todo.
dia à noite, mâs o contrário, o regresso ao pleno dia da rea Isto é talvez o tal mistério de que falam.
lidade, oo puro e꟤rrr, que ser-consciente (pensar e falar)
turvam em seu principio. É ser Foi isto o que sem pensar nem parar,
AceÍei que devia ser a verdade
o Descobridor da Natureza Que todos andam a achar e que não acham
o Argonauta das sensaçôes verdadeiras E que só eu, porque a não fui achar, achei,,
Não é um convite à fusão ou efusão, românticamente con- E absurdo e bem inútil parcelizarou fingir que são da ordem
cebidas, na esperânça ou na ilusão de uma identifrcação d.a pura afrmaçõo estas asserçôes de Caeiro para em seguida
salvadora com a Natureza a frngir de Deus disfarçado. as comparar opondo-as às de outro heterónimo ou dele
A Natureza é só o muro nu do erisÍir, não tem nada de par mesmo. Se o fossem não estaríâmos diante de um poema
ticularmente acolhedor ou maternal, a nâo ser pelo facto e quem âssim as recebe no mesmo momento o anula.
Que
bruto de ser nrio - c onsciência. roçam perigosâmente o ponto em que poderiam anulá_
Por razões diversas das de Malebranche, Caeiro diria -lo (e um Pascoaes, um Régio, Mário Sacramento e em boa
também que a Natureza é uma "quimera": parte Jâcinto do Prado Coelho e G. Lind o anularam) deve
conceder-se, mas a internâ interrogação que as acompanha
Num dia excessivamente nítido. com a temerosa inçietude mal sepultada donde nasce bas_
Dia em que davavontade de ter trabalhado muito tam para a devolver ao mundo ideâl da afirmação suspensa
Para nele não trabalhar mais, e a momento de mais vasta e ambigua arquitectura espi-
Entrevi. como uma esl rada por entre as ár.',otes, ritual, alheiâ a toda a âpropriação de ordem não poética.
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam- /óid., p. ,65
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TDUÂRDO LOUBXNqO PESSOA Àf,VI SITADO
Esta Nâtureza que "nâo tem dentro" já nâo é a máscara quando se examina melhor Caeiro, salta aos olhos a pre
de Deus, mas a fria ou neutra face da sua nõ,o-eristência. sença avassaladora, essencíal e não meramente acidental
Impossivel ler no rosto do Universo (nome ainda...) uma ou decorativa, de Walt V/hitman, cantor, mas à primeira
frnalidade ou um sentido. Em Antero, como em Hegel, e potência (em todos os sentidos) das coisas reais, na sua
mau grado a somlra de Schopenhauer, a Natureza é espirito multiplicidade transbordante e na plenitude da sua dfà
inconsciente e, nos momentos de efusão pânteísta, incons- renço. Alr)Vhitman, Pessoa tirou toda a carne, todo o âpetite
ciência em processo de consciencialização. A escada foi e paixão das coisas reais, guardando do choque potente da
descida por Pessoa Caeiro até ao frm. A Natureza é incons- sua leitura a nosrolgta descamada dessa saúde de pioneiro
ciêncía sem espíríto, pura superficie nua e vazia. O Universo que não era feita para ele. Com ela, e com o que era Caeiro.
é uma pluralidade sem nexo de seres e coisas separados uns Na galeria mais secretâ da sua alma estrangulou o Mes-
dos outros pela suaprôpriaeristência. O poetâ que ressentiu tre, e quando um dia, em frgura de gente e sem the pedir
como sua solidão das estrelas (ou queverteu nessa piedade
a licença, lhe apâreceu, não o reconheceu. Com aparência
estelar a que a si mesmo britanicamente se não concedia) é de razão: Caeiro ndo é Whitman. Separa o dele a distân-
o mesmo que ftnge estar contente (e de algum modo o está, cia que separa "a realidade" da imagrnação dela: Caeiro é
pois "frngir é conhecer-se") com esse dado de solidão, de umWhitman "imaginário" ou ântes , umlX4'titman em íd,eia.
diferença, de separaçâo, sem o qual nada viria à existência. Aadesáo realidade estava-lhe vedada (à "realidade" como
à
A univercal solítude, por assim dizer,fsico, das coisas, con- gerâlmente se entende, e ele mesmo a entendia) por ele ser
sola o da sua. É assim, negativamente, que Caeiro, poetâ da guem era, ou porque destino e deuses assim o decidiram,
"Natureza sem gente", comunica com o Universo... mas não lhe estava vedado o acesso ao sonho d,a realíd,ad,e.
O mistério da génese concreta de Caeiro, para além de Através de Caeiro o leya a cabo construindo um imaginário
mera possibilidade dialéctica incluída na forma de cons- refúgio contra o seu sentimento de irrealidade, mas como
ciência de Pessoa de onde surgiu, prende se sem equí,soco a frcção o podia consolar tanto ou mais que essa realidade
possível ao seu encontro com WaLt Wítmaru Não convinha onde nunca pôde descobrir outra coisa gue frcção, ele pró
ao orgulho (porventura inconsciente em sentido preciso) prio seu criador se lomou seu frlho e seu discípulo. E a mais
de Pessoa que o seu prímogéniro saisse com essa máscara insólita e pâtética aventura espiritual da nossa literatura.
colada à cara. Que pârece nâo ter saído é o que se depreende Mas só no espelho de Campos que a amplia e obriga a revi-
da unânime e óbüa relacionação que todos os crÍticos frze- sitá la a veremos melhor.
ram de Campos com Whitman e não com Caeiro'". Todaüa
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